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Psicologia ·
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SIGMUND FREUD O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 18 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19301936 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO 1930 NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 1933 PREFÁCIO 29 REVISÃO DA TEORIA DO SONHO 30 SONHOS E OCULTISMO 31 A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA 32 ANGÚSTIA E INSTINTOS 33 A FEMINILIDADE 34 ESCLARECIMENTOS EXPLICAÇÕES ORIENTAÇÕES 35 ACERCA DE UMA VISÃO DE MUNDO O PRÊMIO GOETHE 1930 TIPOS LIBIDINAIS 1931 SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA 1931 A CONQUISTA DO FOGO 1932 MEU CONTATO COM JOSEF POPPERLYNKEUS 1932 POR QUE A GUERRA CARTA A EINSTEIN 1932 UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE CARTA A ROMAIN ROLLAND 1936 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19301936 APRESENTAÇÃO DE THE MEDICAL REVIEW OF REVIEWS PRÓLOGO A DEZ ANOS DO INSTITUTO PSICANALÍTICO DE BERLIM O PARECER DA FACULDADE NO PROCESSO HALSMANN APRESENTAÇÃO DE ELEMENTI DI PSICOANALISI DE EDOARDO WEISS EXCERTO DE UMA CARTA A GEORG FUCHS CARTA AO PREFEITO DA CIDADE DE PˇRÍBOR APRESENTAÇÃO DE TEORIA GERAL DAS NEUROSES SOBRE BASE PSICANALÍTICA DE HERMANN NUNBERG PRÓLOGO A DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE DE RICHARD STERBA SÁNDOR FERENCZI PRÓLOGO A EDGAR POE ESTUDO PSICANALÍTICO DE MARIE BONAPARTE A THOMAS MANN EM SEU 60o ANIVERSÁRIO A SUTILEZA DE UM ATO FALHO 4286 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronológica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclarecimento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No ent anto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será composta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catá logo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtragsband Volume suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas al guns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais importantes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupa dos no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidel idade ao original sem interpretações ou interferências de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa biblio grafia sobre o tema Também informações sobre a gênese e a importância de cada obra podem ser encontradas na literatura secundária principalmente na biografia em três volumes de Ernest Jones lançada no Brasil pela Imago do Rio de Janeiro e no mencionado aparato editorial da Standard inglesa A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiuse começar por um período intermediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí pro ceder para trás e para adiante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interes sam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da pub licação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a pub licação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é 6286 fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu sig nificado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões es trangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já aparecidas em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de im por as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e per cepções da psicanálise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita Esta edição não pretende ser definitiva pelo simples motivo de que um clássico dessa natureza nunca recebe uma tradução definitiva E tendo sido planejada por alguém que se aproximou de Freud pela via da linguagem e da literatura destinase não apenas aos estudiosos e profissionais da psicanálise mas a todos aqueles que em vários continentes leem e se exprimem nessa que um grande poeta português chamou de nossa clara língua majestosa e um eminente tradutor e poeta brasileiro qualificou de portocálido brasilírico idiomaterno 7286 pcs O tradutor agradece o generoso auxílio de Caetano Veloso que durante um ano lhe permitiu se dedicar exclusivamente à tradução deste volume 8286 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO 1930 TÍTULO ORIGINAL DAS UNBEHAGEN IN DER KULTUR PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO VIENA INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL 1930 136 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 421506 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 191270 I É difícil escapar à impressão de que em geral as pessoas usam medidas falsas de que buscam poder sucesso e riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm subestimando os autênticos valores da vida E no entanto corremos o risco num julgamento assim genérico de esquecer a variedade do mundo hu mano e de sua vida psíquica Existem homens que não deixam de ser ven erados pelos contemporâneos embora sua grandeza repouse em qualidades e realizações inteiramente alheias aos objetivos e ideais da multidão Provavel mente se há de supor que apenas uma minoria reconhece esses grandes ho mens enquanto a maioria os ignora Mas a coisa pode não ser tão simples devido à incongruência entre as ideias e os atos das pessoas e à diversidade dos seus desejos Um desses homens excepcionais se declara meu amigo em cartas que me escreveu Eu lhe enviara a pequena obra em que trato a religião como ilusão e ele respondeu que estava de acordo com o meu juízo sobre a religião mas lam entava que eu não tivesse apreciado corretamente a fonte da religiosidade Esta seria um sentimento peculiar que a ele próprio jamais abandona que ele viu confirmado por muitas pessoas e pode supor existente em milhões de outras Um sentimento que ele gostaria de denominar sensação de eternidade um sentimento de algo ilimitado sem barreiras como que oceânico Seria um fato puramente subjetivo não um artigo de fé não traz qualquer garantia de sobrevida pessoal mas seria a fonte da energia religiosa de que as diferentes Igrejas e sistemas de religião se apoderam conduzem por determinados canais e também dissipam sem dúvida Com base apenas nesse sentimento oceânico alguém poderia considerarse religioso ainda que rejeitasse toda fé e toda ilusão Tal manifestação de um amigo que reverencio e que já apreciou ele mesmo poeticamente a magia da ilusão trouxeme dificuldades de alguma monta1 Eu próprio não consigo divisar em mim esse sentimento oceânico Não é fácil trabalhar cientificamente os sentimentos Podese tentar descrever os seus sinais fisiológicos Quando isso não ocorre e receio que também o senti mento oceânico se furte a uma caracterização assim nada resta senão ater se ao conteúdo ideativo que primeiro se junta associativamente ao sentimento Se compreendi bem o meu amigo ele quer dizer o mesmo que um dramaturgo original e um tanto excêntrico ao brindar com este consolo o herói que vai se matar Para fora deste mundo não podemos cair2 Um sentimento de vincu lação indissolúvel de comunhão com todo o mundo exterior Devo dizer que para mim isso tem antes o caráter de uma percepção intelectual certamente com uma tonalidade afetiva mas tal como ela não faltaria em outros atos de pensamento de envergadura semelhante Por experiência própria não pude me convencer da natureza primária de tal sentimento Mas isso não me autoriza a questionar sua ocorrência em outros Perguntamos apenas se ela é interpretada de modo correto e se deve ser admitida como fons et origo fonte e origem de todas as necessidades religiosas Nada tenho a apresentar que possa influir decisivamente na solução desse problema A ideia de que o homem adquire noção de seu vínculo com o mundo por um sentimento imediato desde o início orientado para isso é tão estranha ajustase tão mal à trama de nossa psicologia que podemos tentar uma explicação psicanalítica isto é genética para esse sentimento A seguinte linha de pensamento se oferece Normalmente nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos de nosso Eu Este Eu nos aparece como autônomo unitário bem demarcado de tudo o mais Que esta aparência é en ganosa que o Eu na verdade se prolonga para dentro sem fronteira nítida numa entidade psíquica inconsciente a que denominamos Id à qual ele serve como uma espécie de fachada isto aprendemos somente com a pesquisa psicanalítica que ainda nos deve informar muita coisa sobre a relação entre o 11286 Eu e o Id Mas ao menos para fora o Eu parece manter limites claros e precisos Só é diferente num estado por certo extraordinário mas que não pode ser condenado como patológico No auge do enamoramento a fronteira entre Eu e objeto ameaça desaparecer Contrariando o testemunho dos sentidos o en amorado afirma que Eu e Tu são um e está preparado para agir como se assim fosse Algo que pode ser temporariamente abolido por uma função fisiológica também poderá ser transtornado por processos mórbidos A patologia nos ap resenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática ou os limites são traçados incorreta mente casos em que partes do próprio corpo e componentes da própria vida psíquica percepções pensamentos afetos nos surgem como alheios e não per tencentes ao Eu outros em que se atribui ao mundo externo o que evidente mente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele Logo também o senti mento do Eu está sujeito a transtornos e as fronteiras do Eu não são permanentes Prosseguindo na reflexão vemos que esse sentimento do Eu que tem o adulto não pode ter sido o mesmo desde o princípio Deve ter passado por uma evolução que compreensivelmente não pode ser demonstrada mas que po demos construir com certo grau de probabilidade3 O bebê lactante ainda não separa seu Eu de um mundo exterior como fonte das sensações que lhe sobre vêm Aprende a fazêlo aos poucos em resposta a estímulos diversos Deve impressionálo muito que várias das fontes de excitação em que depois recon hecerá órgãos de seu corpo possam enviarlhe sensações a qualquer momento enquanto outras entre elas a mais desejada o peito materno furtamse temporariamente a ele e são trazidas apenas por um grito requisitando ajuda É assim que ao Eu se contrapõe inicialmente um objeto como algo que se acha fora e somente através de uma ação particular é obrigado a aparecer Um outro incentivo para que o Eu se desprenda da massa de sensações para que reconheça um fora um mundo exterior é dado pelas frequentes varia das inevitáveis sensações de dor e desprazer que em sua ilimitada vigência o 12286 princípio do prazer busca eliminar e evitar Surge a tendência a isolar do Eu tudo o que pode se tornar fonte de tal desprazer a jogar isso para fora form ando um puro Eudeprazer ao qual se opõe um desconhecido ameaçador fora As fronteiras desse primitivo Eudeprazer não podem escapar à reti ficação mediante a experiência Algumas coisas a que não se gostaria de renun ciar por darem prazer não são Eu são objeto e alguns tormentos que se pre tende expulsar revelamse como inseparáveis do Eu de procedência interna Chegase ao procedimento que permite pela orientação intencional da ativid ade dos sentidos e ação muscular apropriada distinguir entre o que é interior pertencente ao Eu e o que é exterior oriundo de um mundo externo e com isto se dá o primeiro passo para a instauração do princípio da realid ade que deve dominar a evolução posterior Essa distinção serve natural mente à intenção prática de defenderse das sensações de desprazer percebidas ou das que ameaçam O fato de o Eu na defesa contra determinadas excitações desprazerosas vindas do seu interior utilizar os mesmos métodos de que se vale contra o desprazer vindo de fora tornase o ponto de partida de signific ativos distúrbios patológicos É desse modo então que o Eu se desliga do mundo externo Ou mais cor retamente no início o Eu abarca tudo depois separa de si um mundo externo Nosso atual sentimento do Eu é portanto apenas o vestígio atrofiado de um sentimento muito mais abrangente sim todoabrangente que corres pondia a uma mais íntima ligação do Eu com o mundo em torno Se é lícito supormos que esse primário sentimento do Eu foi conservado na vida psíquica de muitos homens em medida maior ou menor então ele ficaria ao lado do mais estreito e mais nitidamente limitado sentimento do Eu da época madura como uma espécie de contraparte dele e os seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o todo os mes mos com que meu amigo ilustra o sentimento oceânico Mas temos o direito de supor a sobrevivência do que é original junto ao que vem depois que se originou dele 13286 Sem dúvida Algo assim não é estranho no âmbito psíquico e tampouco em outras áreas Com relação aos animais mantemos a hipótese de que as espécies mais evoluídas procederam das mais baixas No entanto ainda hoje todas as formas simples de vida se acham presentes Os grandes sáurios se extinguiram e deram lugar aos mamíferos mas um autêntico representante daquela família o crocodilo ainda vive entre nós A analogia pode parecer remota e padece também do fato de as espécies inferiores sobreviventes não serem as verdadeir as ancestrais das mais evoluídas de hoje Em geral os elos intermediários se ex tinguiram ou são conhecidos apenas em reconstituição Já no âmbito psíquico é tão frequente a conservação do primitivo junto àquilo transformado que dele nasceu que não é preciso demonstrálo mediante exemplos Via de regra isso ocorre em consequência de uma cisão no desenvolvimento Parte de uma atit ude de um impulso instintual permaneceu inalterada enquanto outra con tinuou se desenvolvendo Com isso tocamos no problema mais geral da conservação no psíquico que quase não foi trabalhado mas é tão importante e atraente que nos é permitido lhe conceder um momento de atenção embora a ocasião não pareça justificá lo Desde que superamos o erro de achar que nosso habitual esquecimento sig nifica uma destruição do traço mnemônico tendemos à suposição contrária de que na vida psíquica nada que uma vez se formou pode acabar de que tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz em circun stâncias adequadas mediante uma regressão de largo alcance por exemplo Vamos tentar apreender o que esta suposição envolve por meio de um símile de outra área Tomemos como exemplo a evolução da Cidade Eterna4 Os his toriadores ensinam que a mais antiga Roma foi a Roma quadrata um povoa mento rodeado de cerca no monte Palatino Seguiuse então a fase do Septi montium uma federação das colônias sobre os respectivos montes depois a cidade que foi cercada pelo muro de Sérvio Túlio e ainda mais tarde após to das as transformações do tempo da república e dos primeiros césares a cidade que o imperador Aureliano encerrou com seus muros Não acompanharemos 14286 mais as mudanças sofridas pela cidade Perguntemonos agora o que um visit ante da Roma atual munido dos mais completos conhecimentos históricos e topográficos ainda encontraria desses velhos estágios Excetuando algumas brechas verá o muro de Aureliano quase intacto Em certos lugares achará trechos do muro de Sérvio trazidos à luz por escavações Se tiver suficiente in formação mais do que a presente arqueologia poderá talvez desenhar no mapa da cidade todo o traçado desse muro e o contorno da Roma quadrata Das construções que um dia ocuparam essa moldura ele achará quando muito vestígios pois elas não mais existem O melhor conhecimento da Roma repub licana lhe permitiria no máximo indicar onde se localizavam o templo e os edifícios públicos da época Nesses lugares há ruínas atualmente não das con struções mesmas porém e sim de restaurações de épocas posteriores feitas após incêndios e destruições Não é preciso dizer que esses resíduos todos da antiga Roma se acham dispersos no emaranhado de uma metrópole surgida nos últimos séculos a partir da Renascença Seguramente ainda muita coisa antiga se acha enterrada no solo da cidade ou sob as construções modernas É assim que para nós se preserva o passado em sítios históricos como Roma Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não seja uma morada humana mas uma entidade psíquica com um passado igualmente longo e rico na qual nada que veio a existir chegou a perecer na qual juntamente com a úl tima fase de desenvolvimento todas as anteriores continuam a viver Isto sig nifica que em Roma os palácios dos césares e o Septizonium de Sétimo Severo ainda se ergueriam sobre o Palatino que o Castelo de SantAngelo ainda mostraria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a invasão dos godos etc Mais ainda que no lugar do palácio Caffarelli estaria novamente sem que fosse preciso retirar essa construção o templo de Júpiter Capitolino e este não apenas em seu último aspecto tal como o viam os romanos da época imperial mas também naqueles mais antigos quando ainda apresentava formas etruscas e era ornado de antefixas de terracota Onde agora está o Coliseu poderíamos admirar também a desaparecida Domus Aurea de Nero 15286 na Piazza della Rotonda veríamos não só o atual Panteão como nos foi deix ado por Adriano mas também a construção original de Agripa e o mesmo solo suportaria a igreja de Maria Sopra Minerva e o velho templo sobre o qual ela está erguida Nisso bastaria talvez que o observador mudasse apenas a direção do olhar ou a posição para obter uma ou outra dessas visões Evidentemente não há sentido em continuar tecendo essa fantasia que leva ao inimaginável ao absurdo mesmo Quando queremos representar espacial mente o suceder histórico isso pode se dar apenas com a justaposição no es paço um mesmo espaço não admite ser preenchido duas vezes Nossa tent ativa parece uma brincadeira ociosa ela tem uma justificação apenas mostra nos como estamos longe de dominar as peculiaridades da vida psíquica por meio da representação visual Há uma objeção que devemos ainda levar em conta Pode nos ser question ado por que escolhemos justamente o passado de uma cidade para fazer a com paração com o passado psíquico Também para a vida psíquica a hipótese da conservação de tudo o que passou vale apenas na condição de que o órgão da psique tenha permanecido intacto de que seus tecidos não tenham sido afeta dos por trauma ou inflamação Mas interferências destruidoras que poder íamos equiparar a essas causas de doença não faltam na história de nenhuma cidade mesmo se ela teve um passado menos agitado que Roma mesmo se ela como Londres jamais foi devastada por um inimigo Ainda a evolução mais pacífica de uma cidade implica demolições e substituições de prédios o que em princípio a torna inadequada para essa comparação com um organismo psíquico Nós nos rendemos a esta objeção e renunciando a um formidável contraste voltamonos para um objeto de comparação que em todo caso é mais afim o corpo humano ou animal Mas também aí deparamos com a mesma dificuldade As fases anteriores do desenvolvimento não são conserva das em nenhum sentido desfazemse nas posteriores às quais forneceram o material Não se pode ver o embrião no adulto a glândula do timo que a 16286 criança possui é substituída por tecido conjuntivo após a puberdade deixando ela mesma de existir no osso largo do homem adulto podemos desenhar o contorno do osso infantil mas este desapareceu ao se estirar e adensar até at ingir sua forma final O fato é que a conservação de todos os estágios anteri ores ao lado da configuração definitiva é possível apenas no âmbito psíquico e não temos como representar visualmente esse fenômeno Talvez levemos longe demais esta suposição Talvez devêssemos nos con tentar em afirmar que o que passou pode ficar conservado na vida psíquica não tem necessariamente que ser destruído De toda maneira é possível que também na psique elementos antigos sejam apagados ou consumidos via de regra ou excepcionalmente a tal ponto que não mais possam ser reanimados e restabelecidos ou que em geral a conservação dependa de certas condições fa voráveis É possível mas nada sabemos a respeito Podemos tão só nos ater ao fato de que a conservação do passado na vida psíquica é antes a regra do que a surpreendente exceção Se estivermos assim dispostos a reconhecer que em muitos homens há um sentimento oceânico e inclinados a fazêlo remontar a uma fase primitiva do sentimento do Eu surge uma nova questão que direito tem esse sentimento de ser visto como a fonte das necessidades religiosas Para mim esse direito não é seguro Um sentimento pode ser uma fonte de energia apenas quando é ele mesmo expressão de uma forte necessidade Quanto às necessidades religiosas pareceme irrefutável a sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por ele tanto mais que este sentimento não se prolonga simplesmente desde a época infantil mas é duradouramente conservado pelo medo ante o superior poder do destino Eu não saberia indicar uma necessidade vinda da infância que seja tão forte quanto a de proteção paterna Desse modo o papel do sentimento oceânico que po deria buscar o restabelecimento do narcisismo ilimitado é excluído do primeiro plano Podemos rastrear a origem da atitude religiosa em claros 17286 contornos até o sentimento do desamparo infantil Talvez se encontre algo mais nisso mas atualmente está envolto em névoas Posso imaginar que o sentimento oceânico tenha se vinculado à religião posteriormente Este serum com o universo que é o seu conteúdo ideativo apresentasenos como uma tentativa inicial de consolação religiosa como um outro caminho para negar o perigo que o Eu percebe a ameaçálo do mundo exterior Confesso uma vez mais que me é bastante difícil trabalhar com tais grandezas quase inapreensíveis Um outro amigo ao qual um insaciável afã de saber impeliu às mais incomuns experiências terminando por transformálo num sabetudo asseguroume que nas práticas da ioga com o afastarse do mundo exterior o fixar a atenção nas funções do corpo com métodos especiais de respiração podese realmente despertar em si novas sensações e sentimen tos de universalidade que ele apreende como regressões a estados arcaicos da vida psíquica há muito tempo cobertos Enxerga neles um fundamento fisioló gico por assim dizer de muitas sabedorias da mística Nesse ponto se ofere ceriam nexos com obscuras modificações da vida psíquica como o transe e o êxtase Quanto a mim sintome levado a exclamar com o mergulhador de Schiller Alegrese Quem aí respira na luz rósea II Em O futuro de uma ilusão eu estava menos interessado nas fontes profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição e de outro lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra 18286 existência as eventuais frustrações desta Essa Providência o homem comum só pode imaginar como um pai grandiosamente elevado Apenas um ser assim é capaz de conhecer as necessidades da criatura humana de ceder a seus rogos e ser apaziguado por seu arrependimento Tudo isso é tão claramente infantil tão alheio à realidade que para alguém de atitude humanitária é doloroso pensar que a grande maioria dos mortais nunca se porá acima desta concepção de vida Ainda mais vergonhoso é constatar que um bom número de contem porâneos embora percebendo como é insustentável essa religião procuram defendêla palmo a palmo numa lamentável retirada Quase nos juntaríamos às fileiras de crentes para lembrar a advertência Não invoquem o santo nome do Senhor em vão aos filósofos que acreditam salvar o Deus da religião substituindoo por um princípio impessoal espectralmente abstrato Se alguns dos maiores espíritos de tempos passados fizeram o mesmo não se pode invocálos neste ponto Sabemos por que tinham que fazêlo Voltemos ao homem comum e à sua religião a única que deveria ter esse nome Então nos ocorrem as conhecidas palavras de um dos nossos grandes poetas e sábios ao se manifestar sobre os laços da religião com a arte e a ciên cia Elas dizem Quem tem ciência e arte tem também religião Quem essas duas não tem esse tenha religião5 Por um lado a religião é aí colocada em oposição às duas maiores realiza ções do ser humano por outro lado afirmase que ela pode representar ou substituir ambas no que toca ao valor para a vida Se quisermos privar o homem comum de sua religião tudo indica que não teremos a nosso favor a autoridade do poeta Tentaremos um caminho particular para a apreciação do seu dito A vida tal como nos coube é muito difícil para nós traz demasiadas 19286 dores decepções tarefas insolúveis Para suportála não podemos dispensar paliativos Sem construções auxiliares não é possível disse Theodor Font ane Existem três desses recursos talvez poderosas diversões que nos per mitem fazer pouco de nossa miséria gratificações substitutivas que a di minuem e substâncias inebriantes que nos tornam insensíveis a ela Algo desse gênero é imprescindível6 É para as distrações que aponta Voltaire ao terminar seu Cândido com a sugestão de cada qual cultivar seu jardim uma tal distração é também a atividade científica As gratificações substitutivas tal como a arte as oferece são ilusões face à realidade nem por isso menos eficazes psiquicamente graças ao papel que tem a fantasia na vida mental Os entorpecentes influem sobre nosso corpo mudam a sua química Não é fácil ver o lugar da religião nesta série Teremos que lançar mais longe o olhar A questão da finalidade da vida humana já foi posta inúmeras vezes Jamais encontrou resposta satisfatória e talvez não a tenha sequer Muitos dos que a puseram acrescentaram se a vida não tiver finalidade perderá qualquer valor Mas esta ameaça nada altera Parece isto sim que temos o direito de rejeitar a questão O seu pressuposto parece ser aquela humana soberba de que já con hecemos tantos exemplos Ninguém fala sobre a finalidade da vida dos ani mais a menos que ela consista em servir aos homens talvez Mas isso também não é sustentável pois com muitos animais o ser humano não sabe o que fazer exceto descrevêlos classificálos estudálos e inúmeras espécies ani mais se furtaram também a este uso ao viver e se extinguir antes que o homem as visse Novamente apenas a religião sabe responder à questão sobre a final idade da vida Dificilmente erramos ao concluir que a ideia de uma finalidade na vida existe em função do sistema religioso Então passaremos à questão menos ambiciosa o que revela a própria con duta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar É difícil não acertar a resposta eles buscam a felicidade querem se tornar e permanecer felizes Essa busca tem dois lados 20286 uma meta positiva e uma negativa quer a ausência de dor e desprazer e por outro lado a vivência de fortes prazeres No sentido mais estrito da palavra felicidade se refere apenas à segunda Correspondendo a essa divisão das metas a atividade dos homens se desdobra em duas direções segundo procure realizar uma ou outra dessas metas predominantemente ou mesmo exclusivamente Como se vê é simplesmente o programa do princípio do prazer que es tabelece a finalidade da vida Este princípio domina o desempenho do aparelho psíquico desde o começo não há dúvidas quanto a sua adequação mas seu programa está em desacordo com o mundo inteiro tanto o macrocosmo como o microcosmo É absolutamente inexequível todo o arranjo do Universo o contraria podemos dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da Criação Aquilo a que chamamos felicidade no sentido mais estrito vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem prosseguimento isto resulta apenas em um morno bemestar somos feitos de modo a poder fruir in tensamente só o contraste muito pouco o estado7 Logo nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição É bem menos difícil ex perimentar a infelicidade O sofrer nos ameaça a partir de três lados do próprio corpo que fadado ao declínio e à dissolução não pode sequer dis pensar a dor e o medo como sinais de advertência do mundo externo que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas inexoráveis destruidoras e por fim das relações com os outros seres humanos O sofrimento que se ori gina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro tendemos a considerálo um acréscimo um tanto supérfluo ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem Não é de admirar que sob a pressão destas possibilidades de sofrimento os indivíduos costumem moderar suas pretensões à felicidade assim como também o princípio do prazer se converteu no mais modesto princípio da 21286 realidade sob a influência do mundo externo se alguém se dá por feliz ao escapar à desgraça e sobreviver ao tormento se em geral a tarefa de evitar o sofrer impele para segundo plano a de conquistar o prazer A reflexão ensina que podemos tentar a solução dessa tarefa por caminhos bem diferentes todos eles foram recomendados pelas escolas de sabedoria de vida e foram trilhados pelos homens A satisfação irrestrita de todas as necessidades se apresenta como a maneira mais tentadora de conduzir a vida mas significa pôr o gozo à frente da cautela trazendo logo o seu próprio castigo Os outros métodos nos quais evitar o desprazer é a intenção predominante se diferenciam conforme a fonte de desprazer a que mais dirigem a atenção Alguns são extremos outros moderados alguns são unilaterais e outros atacam vários pontos simultanea mente O deliberado isolamento o afastamento dos demais é a salvaguarda mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas Compreendese a felicidade que se pode alcançar por essa via é a da quietude Contra o temido mundo externo o indivíduo só pode se defender por algum tipo de distanciamento querendo realizar sozinho essa tarefa É verdade que existe outro caminho melhor enquanto membro da comunidade humana e com o auxílio da técnica oriunda da ciência proceder ao ataque à natureza submetendoa à vontade humana Então se trabalha com todos para a felicid ade de todos Mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio organismo Pois todo sofrimento é apenas sensação existe somente na medida em que o sentimos e nós o senti mos em virtude de certos arranjos de nosso organismo O método mais cru mas também mais eficaz de exercer tal influência é o químico a intoxicação Não creio que alguém penetre inteiramente no seu mecanismo mas é fato que há substâncias de fora do corpo que uma vez presentes no sangue e nos tecidos produzem em nós sensações imediatas de prazer e também mudam de tal forma as condições de nossa sensibilidade que nos tornamos incapazes de acolher impulsos desprazerosos Os dois efeitos não só acontecem ao mesmo tempo como parecem intimamente ligados Mas deve 22286 haver na química de nosso corpo substâncias que realizam algo semelhante pois conhecemos ao menos um estado patológico a mania em que se produz esse comportamento análogo à embriaguez sem ter havido ingestão de estu pefaciente Além disso nossa vida psíquica normal mostra oscilações entre uma maior ou menor dificuldade em experimentar prazer paralelamente às quais há uma receptividade acentuada ou diminuída ao desprazer É muito lamentável que esse lado tóxico dos processos psíquicos tenha até agora es capado à exploração científica O serviço dos narcóticos na luta pela felicidade e no afastamento da miséria é tão valorizado como benefício que tanto indiví duos como povos lhes reservaram um sólido lugar em sua economia libidinal A eles se deve não só o ganho imediato de prazer mas também uma parcela muito desejada de independência em relação ao mundo externo Sabese que com ajuda do afastatristeza podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer momento e encontrar refúgio num mundo próprio que tenha mel hores condições de sensibilidade É notório que justamente essa característica dos entorpecentes determina também o seu perigo e nocividade Em algumas circunstâncias eles são culpados pelo desperdício de grandes quantidades de energia que poderiam ser usadas na melhoria da sorte humana Mas a complicada estrutura de nosso aparelho psíquico também admite um bom número de outras influências Do mesmo modo que a satisfação de instin tos é felicidade tornase causa de muito sofrer se o mundo exterior nos deixa à míngua recusandose a nos saciar as carências Então é possível esperar que agindo sobre esses impulsos instintuais fiquemos livres de uma parte do so frer Esse tipo de defesa contra o sofrimento já não lida com o aparelho sen sorial busca dominar as fontes internas das necessidades De modo extremo isso ocorre ao se liquidar os instintos como prega a sabedoria do Oriente e como praticam os iogues Tendose conseguido isso também qualquer outra atividade foi abandonada e a vida sacrificada e novamente se adquiriu por outro meio apenas a felicidade da quietude Seguese o mesmo caminho quando os objetivos são mais moderados ao se procurar apenas o governo dos 23286 instintos Então governam as instâncias psíquicas mais elevadas que se sub meteram ao princípio da realidade Com isso o propósito da satisfação não é absolutamente abandonado uma certa proteção contra o sofrer é alcançada pois a não satisfação dos instintos subjugados não é sentida tão dolorosamente como a dos não inibidos Em troca há uma inegável diminuição das potencial idades de fruição A sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem não domado pelo Eu é incomparavelmente mais forte do que a ob tida ao saciar um instinto domesticado O caráter irresistível dos impulsos perversos talvez o fascínio mesmo do que é proibido tem aqui uma explicação econômica Outra técnica de afastar o sofrimento recorre aos deslocamentos da libido que nosso aparelho psíquico permite através dos quais sua função ganha muito em flexibilidade A tarefa consiste em deslocar de tal forma as metas dos instintos que eles não podem ser atingidos pela frustração a partir do mundo externo A sublimação dos instintos empresta aqui sua ajuda O melhor res ultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual Então o destino não pode fazer muito contra o indivíduo A satisfação desse gênero como a alegria do artista no criar ao dar corpo a suas fantasias a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade tem uma qualidade especial que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente Agora podemos dizer apenas de modo figurado que ela nos parece mais fina e elevada mas a sua intensidade é amortecida comparada à satisfação de impulsos instintuais grosseiros e primários ela não nos abala fisicamente A fraqueza desse méto do porém está em não ser de aplicação geral no fato de poucos lhe terem acesso Ele pressupõe talentos e disposições especiais que não se acham presentes em medida eficaz Também a esses poucos ele não pode assegurar completa proteção do sofrimento não lhes proporciona um escudo impenet rável aos dardos do destino e costuma falhar quando o próprio corpo é a fonte do sofrer8 24286 Se já neste procedimento é nítida a intenção de tornarse independente do mundo exterior buscando suas satisfações em processos internos psíquicos as mesmas características surgem mais fortemente no próximo Nele o vínculo com a realidade é ainda mais frouxo a satisfação é obtida de ilusões que a pess oa reconhece como tais sem que a discrepância entre elas e a realidade lhe per turbe a fruição O âmbito de que se originam tais ilusões é aquele da vida da fantasia quando ocorreu o desenvolvimento do sentido da realidade ele foi expressamente poupado do teste da realidade e ficou destinado à satisfação de desejos dificilmente concretizáveis Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição de obras de arte que por intermédio do artista se torna acessível também aos que não são eles mesmos criadores9 Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente como fonte de prazer e con solo para a vida Mas a suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real Mais enérgico e mais radical é um outro procedimento que enxerga na realidade o único inimigo a fonte de todo sofrimento com a qual é impossível viver e com a qual portanto devemse romper todos os laços para ser feliz em algum sentido O eremita dá as costas a este mundo nada quer saber dele Mas podese fazer mais podese tentar refazêlo construir outro em seu lugar no qual os aspectos mais intoleráveis sejam eliminados e substituídos por out ros conformes aos próprios desejos O indivíduo que em desesperada revolta encetar este caminho para a felicidade normalmente nada alcançará a realid ade é forte demais para ele Tornase um louco que em geral não encontra quem o ajude na execução de seu delírio Mas dizse que cada um de nós em algum ponto age de modo semelhante ao paranoico corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade É de particular importância o caso em que grande número de pess oas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade Devemos 25286 caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade Naturalmente quem partilha o delírio jamais o percebe Não acredito que seja completa essa enumeração dos métodos pelos quais os homens se esforçam em obter a felicidade e manter à distância o sofrer e sei também que o material admite uma outra ordenação Um desses procedimen tos ainda não mencionei não que o tenha esquecido mas porque nos ocupare mos dele ainda em outro contexto E como seria possível esquecer justamente essa técnica da arte de viver Ela se distingue pela combinação muito peculiar de características diversas Claro que também procura a independência face ao destino o melhor nome a se usar e com esse propósito localiza a satis fação em processos psíquicos internos valendose aí do mencionado caráter deslocável da libido mas não se afasta do mundo exterior agarrase aos seus objetos pelo contrário e obtém felicidade de uma relação afetiva para com eles Também não se dá por satisfeita com evitar o desprazer uma meta di gamos de cansada resignação mas ignora isto e se apega ao esforço origin al apaixonado por uma realização positiva da felicidade Talvez ela realmente se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método Estou falando claro daquela orientação de vida que tem o amor como centro que espera toda satisfação do amar e ser amado Essa atitude psíquica é familiar a todos nós uma das formas de manifestação do amor o amor sexual nos proporcion ou a mais forte experiência de uma sensação de prazer avassaladora dandonos assim o modelo para nossa busca da felicidade Nada mais natural do que insi stirmos em procurála no mesmo caminho em que a encontramos primeiro O lado frágil dessa técnica de vida é patente senão a ninguém ocorreria aban donar esse caminho por outro Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofri mento do que quando amamos nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor Mas com isso não encer ramos o tema da técnica de vida baseada no valor de felicidade do amor haverá muito mais a dizer sobre isso 26286 Aqui podemos transitar para o caso interessante em que a felicidade na vida é buscada sobretudo no gozo da beleza onde quer que ela se mostre a nossos sentidos e nosso julgamento a beleza das formas e dos gestos humanos de ob jetos naturais e de paisagens de criações artísticas e mesmo científicas Essa at itude estética para com o objetivo da vida não oferece muita proteção contra a ameaça do sofrer mas compensa muitas coisas A fruição da beleza tem uma qualidade sensorial peculiar suavemente inebriante Não há utilidade evidente na beleza nem se nota uma clara necessidade cultural para ela no entanto a civilização não poderia dispensála A ciência da estética investiga as condições em que o belo é percebido sobre a natureza e origem da beleza ela nada pôde esclarecer como de hábito o insucesso é escondido numa prodigalidade de pa lavras altissonantes e pobres de sentido Infelizmente tampouco a psicanálise tem muito a dizer sobre a beleza O que parece fora de dúvida é apenas a de rivação do terreno das sensações sexuais seria um exemplo perfeito de um im pulso inibido em sua meta A beleza e a atração originalmente são carac terísticas do objeto sexual É digno de nota que os genitais mesmos cuja visão tem efeito excitador quase nunca sejam tidos como belos enquanto a qualid ade da beleza parece ligada a certas características sexuais secundárias Apesar dessa incompletude de nossa investigação arriscome a fazer algu mas observações conclusivas O programa de ser feliz que nos é imposto pelo princípio do prazer é irrealizável mas não nos é permitido ou melhor não somos capazes de abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta a obtenção de prazer ou ao negativo evitar o desprazer Em nenhum desses caminhos po demos alcançar tudo o que desejamos No sentido moderado em que é ad mitida como possível a felicidade constitui um problema da economia libidinal do indivíduo Não há aqui um conselho válido para todos cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz Fatores os mais variados atu arão para influir em sua escolha Depende de quanta satisfação real ele pode 27286 esperar do mundo exterior e de até que ponto é levado a fazerse independente dele e também afinal de quanta força ele se atribui para modificálo con forme seus desejos Já neste ponto a constituição psíquica do indivíduo à parte as circunstâncias externas será decisiva Aquele predominantemente erótico dará prioridade às relações afetivas com outras pessoas o narcisista inclinado à autossuficiência buscará as satisfações principais em seus eventos psíquicos internos o homem de ação não largará o mundo externo no qual pode testar sua força Para o segundo desses tipos a natureza de seus dons e a medida de sublimação instintual que lhe é possível determinarão onde colocará seus in teresses Toda decisão extrema terá como castigo o fato de expor o indivíduo aos perigos inerentes a uma técnica de vida adotada exclusivamente e que se revele inadequada Assim como o negociante cauteloso evita imobilizar todo o seu capital numa só coisa também a sabedoria aconselhará talvez a não esperar toda satisfação de uma única tendência O êxito jamais é seguro depende da conjunção de muitos fatores e de nenhum mais talvez que da capacidade da constituição psíquica para adaptar sua função ao meio e aproveitálo para con quistar prazer Quem possuir uma constituição libidinal particularmente desfa vorável e não tiver passado apropriadamente pela transformação e reorde nação de seus componentes libidinais imprescindível para realizações posteri ores terá problema em obter felicidade da sua situação externa ainda mais quando for colocado frente a tarefas mais difíceis A última técnica de vida que ao menos lhe promete satisfações substitutivas é a fuga para a doença neurótica que em geral ele empreende ainda jovem O indivíduo que numa id ade posterior fracassa nos esforços pela felicidade encontra ainda consolo no prazer obtido por meio da intoxicação crônica ou faz a desesperada tentativa de rebelião que é a psicose10 A religião estorva esse jogo de escolha e adaptação ao impor igualmente a todos o seu caminho para conseguir felicidade e guardarse do sofrimento Sua técnica consiste em rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a im agem do mundo real o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência 28286 A este preço pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual Mas pouco mais que isso Existem como dissemos muitos camin hos que podem levar à felicidade tal como é acessível ao ser humano mas nenhum que a ela conduza seguramente Tampouco a religião pode manter sua promessa Quando o crente se vê finalmente obrigado a falar dos inescrutá veis desígnios do Senhor está admitindo que lhe restou como última possib ilidade de consolo e fonte de prazer no sofrimento apenas a submissão incon dicional E se está disposto a isso provavelmente poderia ter se poupado o rodeio III Até agora nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou muita coisa que já não fosse conhecida E se lhe dermos prosseguimento perguntando por que é tão difícil para os homens serem felizes a perspectiva de aprender algo novo também não parece grande Já demos a resposta ao indicar as três fontes de onde vem o nosso sofrer a prepotência da natureza a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família no Estado e na sociedade No tocante às duas primeiras nosso julga mento não tem por que hesitar ele nos obriga ao reconhecimento dessas fontes do sofrer e à rendição ao inevitável Nunca dominaremos completamente a natureza e nosso organismo ele mesmo parte dessa natureza será sempre uma construção transitória limitada em adequação e desempenho Tal conheci mento não produz um efeito paralisante pelo contrário ele mostra à nossa atividade a direção que deve tomar Se não podemos abolir todo o sofrer po demos abolir parte dele e mitigar outra parte uma experiência milenar nos convenceu disso Temos outra atitude para com a terceira fonte de sofrimento a social Esta não queremos admitir não podendo compreender por que as 29286 instituições por nós mesmos criadas não trariam bemestar e proteção para to dos nós Contudo se lembrarmos como fracassamos justamente nessa parte da prevenção do sofrimento nasce a suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza indomável desta vez da nossa própria constituição psíquica Começando a nos ocupar dessa possibilidade deparamos com uma afirm ação tão espantosa que é preciso nos determos nela Ela diz que boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primit ivas A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido como quer que se defina o conceito de civilização que tudo aquilo com que nos prote gemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização Como é que tantas pessoas chegaram a partilhar esse ponto de vista de sur preendente hostilidade à civilização Acho que uma profunda duradoura in satisfação com o estado civilizacional existente preparou o solo no qual em de terminadas ocasiões históricas formouse uma condenação Acredito recon hecer a última e a penúltima dessas ocasiões não sou erudito o bastante para seguir o seu encadeamento muito longe na história da humanidade Um fator assim hostil à civilização já devia estar presente na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs Estava ligado à depreciação da vida terrena efetuada pela doutrina cristã A penúltima ocasião se deu quando no esteio das viagens de descobrimento estabelecemos contato com tribos e povos primitivos Devido à observação insuficiente e à compreensão equivocada de seus usos e costumes eles pareceram aos europeus levar uma vida simples feliz de par cas necessidades inatingível para os visitantes culturalmente superiores A ex periência posterior corrigiu vários julgamentos dessa ordem em muitos casos se atribuíra erradamente à ausência de complicadas exigências culturais uma maior facilidade no viver que realmente se devia à generosidade da natureza e à comodidade na satisfação das grandes necessidades A última ocasião nos é bem familiar surgiu ao tomarmos conhecimento do mecanismo das neuroses que ameaçam minar o pouco de felicidade que tem o homem civilizado 30286 Descobriuse que o homem se torna neurótico porque não pode suportar a me dida de privação que a sociedade lhe impõe em prol de seus ideais culturais e concluiuse então que se estas exigências fossem abolidas ou bem atenuadas isto significaria um retorno a possibilidades de felicidade Um outro fator de decepção juntase a estes Nas últimas gerações a hu manidade fez progressos extraordinários nas ciências naturais e em sua ap licação técnica consolidando o domínio sobre a natureza de um modo antes inimaginável Os pormenores desses progressos são conhecidos não é mister enumerálos Os homens estão orgulhosos dessas realizações e têm direito a isso Mas eles parecem haver notado que esta recémadquirida disposição de espaço e de tempo esta submissão das forças naturais concretização de um an seio milenar não elevou o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida não os fez se sentirem mais felizes Dessa constatação deveríamos concluir apenas que o poder sobre a natureza não é a condição única da felicidade hu mana assim como não é o único objetivo dos esforços culturais e não que os progressos da técnica não tenham valor nenhum para a economia de nossa feli cidade Podemos objetar não é um positivo ganho de prazer um inequívoco aumento na sensação de felicidade se sou capaz de ouvir a qualquer momento a voz do filho que mora a centenas de quilômetros de distância se logo após o desembarque do amigo posso saber que ele suportou bem a longa e penosa viagem Não significa nada o fato de a medicina haver conseguido reduzir ex traordinariamente a mortalidade dos bebês o perigo de infecção nas mulheres que dão à luz e prolongar consideravelmente a duração média de vida do homem civilizado E a esses benefícios que devemos à tão vilipendiada era do avanço técnico e científico podese ainda acrescentar toda uma série Mas aqui se ergue a voz da crítica pessimista lembrando que a maioria dessas satis fações segue o modelo do prazer barato que é louvado numa certa anedota Ele consiste em pôr fora da coberta uma perna despida numa noite fria de in verno e em seguida guardála novamente Não havendo estradas de ferro para vencer as distâncias o filho jamais deixaria a cidade natal não seria necessário 31286 o telefone para ouvirlhe a voz Sem os navios transatlânticos o amigo não empreenderia a viagem e eu não precisaria do telégrafo para acalmar minha inquietação por ele De que nos serve a diminuição da mortalidade infantil se justamente ela nos força a conter enormemente a procriação de sorte que afi nal não criamos mais filhos do que nos tempos anteriores ao domínio da higiene mas por outro lado dificultamos muito a nossa vida sexual no casamento e provavelmente contrariamos a benéfica seleção natural E enfim de que nos vale uma vida mais longa se ela for penosa pobre em alegrias e tão plena de dores que só poderemos saudar a morte como uma redenção Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização mas é difícil julgar se e em que medida os homens de épocas anteriores sentiramse mais felizes e que papel desempenharam nisto suas condições cul turais Sempre nos inclinaremos a apreender nossa miséria objetivamente isto é a nos transportar para tais condições com as nossas exigências e suscetibilid ades para então examinar que ocasiões nelas veríamos para experimentar feli cidade ou infelicidade Este modo de consideração que parece objetivo porque abstrai das variações da sensibilidade subjetiva é naturalmente o mais subjetivo que pode haver ao colocar a nossa própria constituição psíquica no lugar de todas as outras que não conhecemos Mas a felicidade é algo inteira mente subjetivo Por mais que nos arrepiemos ante determinadas situações a do antigo escravo nas galés do camponês na Guerra dos Trinta Anos da ví tima da Sagrada Inquisição do judeu à espera do pogrom é para nós im possível nos sentirmos na pele dessa gente intuir as mudanças que o torpor original o gradual entorpecimento a cessação de expectativas as maneiras mais finas e mais grosseiras de narcotização provocaram na suscetibilidade para sensações de prazer e desprazer Na possibilidade de dor extrema também passam a agir dispositivos psíquicos especiais de proteção Não me parece fecundo levar adiante esse aspecto do problema É hora de nos voltarmos para a essência desta civilização cujo valor para a felicidade é posto em dúvida Não vamos requerer uma fórmula que expresse 32286 tal essência em poucas palavras antes mesmo que nossa investigação nos en sine algo Bastanos então repetir11 que a palavra civilização designa a in teira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais e que servem para dois fins a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si Para maior clareza vamos reunir os traços característicos da civilização tal como se apresentam nas sociedades humanas Nisso não hesitaremos em nos deixar guiar pelo uso corrente da língua ou como também se diz pelo sentimento da língua confiando em que assim faremos justiça a intu ições que ainda se furtam à expressão em palavras abstratas O começo é fácil Vemos como culturais todas as atividades e valores que são úteis para o ser humano colocando a terra a seu serviço protegendoo da violência das forças naturais etc Sobre esse aspecto do que é cultural não parece haver dúvida Se voltamos suficientemente atrás no tempo os primeir os atos culturais foram o uso de instrumentos o domínio sobre o fogo a con strução de moradias Entre eles sobressai o domínio do fogo realização ex traordinária e sem precedente12 com os outros o homem iniciou caminhos que desde então nunca deixou de seguir e cujo estímulo primordial não é difícil imaginar Com todos os seus instrumentos ele aperfeiçoa os seus órgãos tanto motores como sensoriais ou elimina os obstáculos para o desempenho deles Os motores lhe colocam à disposição imensas energias que tal como seus músculos ele pode empregar em qualquer direção os navios e os aviões não deixam que a água e o ar lhe impeçam a movimentação Com os óculos ele corrige as falhas da lente de seu olho com o telescópio enxerga a enormes dis tâncias com o microscópio supera as fronteiras da visibilidade que foram de marcadas pela estrutura de sua retina Com a câmera fotográfica ele criou um instrumento que guarda as fugidias impressões visuais o que o disco de gramofone também faz com as igualmente transitórias impressões sonoras no fundo os dois são materializações da sua faculdade de lembrar de sua memória Com o auxílio do telefone ele ouve bem longe de distâncias que 33286 seriam tidas por inalcançáveis até mesmo em contos de fadas a escrita é na sua origem a linguagem do ausente e a casa um sucedâneo do útero materno a primeira e ainda provavelmente a mais ansiada moradia na qual ele estava seguro e sentiase bem Não apenas parece um conto de fadas é mesmo o cumprimento de todos os não da maioria dos desejos dos contos isso que o homem por meio de sua ciência e técnica realizou nesta Terra onde ele surgiu primeiramente como um fraco animal e onde cada indivíduo de sua espécie tem que novamente en trar oh inch of nature como uma desamparada criança de peito Todo esse patrimônio ele pode reivindicar como aquisição cultural Há tempos ele havia formado uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses Atribuiulhes tudo o que parecia inatingível para seus desejos ou que lhe era proibido Podese então dizer que os deuses eram ideais cul turais Agora ele aproximouse bastante desse ideal tornouse ele próprio quase um deus Claro que apenas na medida em que os ideais no julgamento geral dos homens costumam ser alcançados Não inteiramente em alguns pontos de modo algum em outros somente em parte O ser humano tornou se por assim dizer uma espécie de deus protético realmente admirável quando coloca todos os seus órgãos auxiliares mas estes não cresceram com ele e ocasionalmente lhe dão ainda muito trabalho Ele tem o direito de consolarse porém com o fato de que essa evolução não terminará justamente no ano da graça de 1930 Épocas futuras trarão novos inimagináveis pro gressos nesse âmbito da cultura aumentarão mais ainda a semelhança com Deus Mas não devemos esquecer no interesse de nossa investigação que o homem de hoje não se sente feliz com esta semelhança Portanto reconhecemos o alto nível cultural de um país quando vemos que nele se cultiva e adequadamente se providencia tudo o que serve para a explor ação da Terra pelo homem e para a proteção dele frente às forças da natureza em suma tudo o que lhe é proveitoso Em tal país os rios que ameaçam 34286 inundar as terras têm seus cursos regulados e suas águas são conduzidas por canais até os lugares que delas necessitam O solo é cuidadosamente trabal hado e plantado com a vegetação que lhe for apropriada os tesouros minerais das profundezas são extraídos com diligência e usados na fabricação dos in strumentos e aparelhos necessitados Os meios de transporte são abundantes rápidos e confiáveis os animais selvagens e perigosos se encontram extermina dos e prospera a criação daqueles domesticados Mas nós requeremos ainda outras coisas da civilização e é digno de nota que esperemos vêlas realizadas nos mesmos países Como se estivéssemos negando a exigência feita em primeiro lugar saudamos também como civilizado o fato de as pessoas se pre ocuparem com coisas que absolutamente não são úteis que antes parecem in úteis por exemplo quando numa cidade os parques necessários como áreas de lazer e reservatórios de ar possuem também canteiros de flores ou quando as janelas das casas são adornadas com vasos de flores Logo notamos que a coisa inútil que esperamos ver apreciada na civilização é a beleza Exigimos que o homem civilizado venere a beleza onde quer que ela lhe surja na natureza e que a produza em objetos na medida em que for capaz de fazêlo Isso está longe de esgotar o que reivindicamos da civilização Requeremos ainda ver sinais de limpeza e ordem Não achamos que tivesse alto nível de civilização uma cidade inglesa do tempo de Shakespeare quando lemos que diante da casa de seu pai em Stratford havia um monte de esterco nós nos indignamos e tachamos de bárbaro que é o contrário de civilizado quando vemos sujos de papéis os caminhos do Bosque de Viena A sujeira de qualquer tipo nos parece inconciliável com a civilização estendemos para o corpo humano a exigência de limpeza ouvimos espantados que a pessoa do Roi Soleil exalava um cheiro péssimo e balançamos a cabeça quando na Isola Bella mostram nos a pequenina bacia que Napoleão usava na toalete matinal Não nos sur preendemos se alguém coloca o uso do sabão como medida direta do grau de civilização O mesmo sucede com a ordem que tal como a limpeza está lig ada inteiramente à obra humana Mas enquanto não podemos esperar que 35286 predomine a limpeza na natureza a ordem pelo contrário nós copiamos dela A observação das grandes regularidades astronômicas deu ao ser humano não apenas o modelo mas os primeiros pontos de partida para a introdução da or dem na sua vida A ordem é uma espécie de compulsão de repetição que uma vez estabelecida resolve quando onde e como algo deve ser feito de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico O benefício da ordem é inegável ela permite ao ser humano o melhor aproveitamento de espaço e tempo enquanto poupa suas energias psíquicas Seria justo esperar que se im pusesse à atividade humana desde o princípio sem dificuldades e é de espantar que isto não aconteça que as pessoas manifestem um pendor natural à neg ligência irregularidade e frouxidão no trabalho e a duras penas tenham de ser educadas na imitação dos modelos celestes Beleza limpeza e ordem ocupam claramente um lugar especial entre as exigências culturais Ninguém dirá que elas são importantes para a vida como o domínio das forças naturais e outros fatores que ainda veremos mas nin guém as porá em segundo plano como coisas acessórias O fato de a civiliza ção não considerar apenas o que é útil já se mostra no exemplo da beleza que não desejamos ver excluída dos interesses da civilização A vantagem da or dem é evidente quanto à limpeza devemos considerar que é também re querida pela higiene e podemos conjecturar que esse nexo não era inteira mente desconhecido antes da época de prevenção científica das doenças Mas a utilidade não explica de todo esse empenho algo mais tem de estar em jogo Entretanto nenhum traço nos parece caracterizar melhor a civilização do que a estima e o cultivo das atividades psíquicas mais elevadas das realizações intelectuais científicas e artísticas do papel dominante que é reservado às idei as na vida das pessoas Entre essas ideias se destacam os sistemas religiosos cujo intrincado edifício procurei elucidar em outra obra ao lado deles as es peculações filosóficas e por fim o que se pode chamar de construções ideais dos homens suas concepções de uma possível perfeição dos indivíduos partic ulares do povo de toda a humanidade e as exigências que colocam a partir 36286 dessas concepções O fato de essas criações não serem independentes umas das outras mas bastante entremeadas dificulta fazer sua exposição e também averiguar sua derivação psicológica Se admitimos de maneira bem geral que o móvel de toda atividade humana é o empenho visando as duas metas conflu entes utilidade e obtenção de prazer temos que aceitar isso como válido tam bém para as manifestações culturais aqui mencionadas embora seja facilmente visível apenas na atividade científica e artística Não se pode duvidar contudo que também as outras correspondem a fortes necessidades dos homens talvez aquelas desenvolvidas apenas numa minoria Tampouco é lícito nos deixarmos enganar por julgamentos de valor sobre qualquer desses sistemas religiosos e filosóficos ou desses ideais quer sejam vistos como a realização maior do es pírito humano quer sejam deplorados como equívocos é mister reconhecer que sua existência em especial seu predomínio indica um elevado grau de civilização Restanos apreciar o último dos traços característicos da civilização que certamente não é dos menos importantes o modo como são reguladas as re lações dos homens entre si as relações sociais que dizem respeito ao indivíduo enquanto vizinho enquanto colaborador como objeto sexual de um outro como membro de uma família e de um Estado Aqui se torna bem difícil manterse livre de determinadas exigências ideais e apreender o que é mesmo cultural Talvez possamos começar afirmando que o elemento cultural se ap resentaria com a primeira tentativa de regulamentar essas relações Não hav endo essa tentativa tais relações estariam sujeitas à arbitrariedade do indiví duo isto é aquele fisicamente mais forte as determinaria conforme seus in teresses e instintos Nada mudaria caso esse mais forte encontrasse alguém ainda mais forte A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo Então o poder dessa comunidade se estabelece como Direito em oposição ao poder do indivíduo condenado como força bruta Tal substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo 37286 cultural decisivo Sua essência está em que os membros da comunidade se lim itam quanto às possibilidades de gratificação ao passo que o indivíduo não conhecia tal limite Portanto a exigência cultural seguinte é a da justiça isto é a garantia de que a ordem legal que uma vez se colocou não será violada em prol de um indivíduo Não é julgado aqui o valor ético desse direito O curso posterior da evolução cultural tende a tornar esse direito não mais a expressão da vontade de uma pequena comunidade casta camada da população tribo que novamente age como um indivíduo violento face a outros grupos talvez mais numerosos desse tipo O resultado final deve ser um direito para o qual todos ao menos todos os capazes de viver em comunidade con tribuem com sacrifício de seus instintos e que não permite de novo com a mesma exceção que ninguém se torne vítima da força bruta A liberdade individual não é um bem cultural Ela era maior antes de qualquer civilização mas geralmente era sem valor porque o indivíduo mal tinha condição de defendêla Graças à evolução cultural ela experimenta re strições e a justiça pede que ninguém escape a elas Aquilo que numa comunidade humana se faz sentir como impulso à liberdade pode ser revolta contra uma injustiça presente e assim tornarse propício a uma maior evolução cultural permanecendo compatível com a civilização Mas também pode vir dos restos da personalidade original não domada pela civilização e desse modo tornarse fundamento da hostilidade à civilização O impulso à liberdade se dirige portanto contra determinadas formas e reivindicações da civilização ou contra ela simplesmente É pouco provável que mediante al guma influência possamos levar o homem a transformar sua natureza na de uma térmite ele sempre defenderá sua exigência de liberdade individual contra a vontade do grupo Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado isto é que traga felicidade entre tais exigências individuais e aquelas do grupo culturais é um dos problemas que concernem ao seu próprio destino a questão de se este equilíbrio é 38286 alcançável mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel Ao deixar a visão comum nos indicar os traços na vida do ser humano que devem ser designados como culturais tivemos uma impressão nítida do quadro geral da civilização embora até o momento não tenhamos aprendido nada que não seja do conhecimento geral Nisso nos guardamos de apoiar o preconceito que diz que civilização equivaleria a aperfeiçoamento seria o cam inho traçado para o homem chegar à perfeição Agora se nos apresenta uma concepção que talvez nos oriente de outro modo A evolução cultural nos surge como um processo peculiar que se desenrola na humanidade no qual muita coisa quer nos parecer familiar Podemos caracterizar este processo pelas mudanças que ele efetua nas conhecidas disposições instintuais humanas cuja satisfação é afinal a tarefa econômica de nossa vida Alguns desses instin tos são absorvidos de maneira tal que em seu lugar aparece o que no indivíduo descrevemos como traço de caráter O mais notável exemplo desse fato achamos no erotismo anal da criança Seu interesse original na função excret ora nos órgãos e produtos dela transformase durante o crescimento no grupo de características que conhecemos como parcimônia sentido da ordem e limpeza que valiosas e bemvindas em si podem exacerbarse até adquirir um marcante predomínio e resultar no que chamamos caráter anal Como isto su cede não sabemos mas não há dúvidas quanto à justeza dessa compreensão13 Ora vimos que ordem e limpeza são exigências essenciais da civilização em bora sua necessidade para a vida não salte aos olhos e tampouco sua ad equação como fontes de prazer Neste ponto a semelhança entre o processo de civilização e o desenvolvimento libidinal do indivíduo tinha que fazerse evid ente para nós Outros instintos são levados a deslocar a situar em outras vias as condições de sua satisfação o que na maioria dos casos coincide com a nossa familiar sublimação das metas instintuais e em outros se diferencia dela A sublimação do instinto é um traço bastante saliente da evolução cultural ela torna possível que atividades psíquicas mais elevadas científicas artísticas 39286 ideológicas tenham papel tão significativo na vida civilizada Cedendo à primeira impressão seríamos tentados a dizer que a sublimação é o destino im posto ao instinto pela civilização É melhor refletirmos mais sobre isso porém Em terceiro lugar enfim e isto parece ser o mais importante é impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a renúncia instintual o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação supressão repressão ou o quê mais de instintos poderosos Essa frustração cultural domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens já sabemos que é a causa da hos tilidade que todas as culturas têm de combater Ela também colocará sérias exigências ao nosso trabalho científico aí teremos muito o que esclarecer Não é fácil compreender como se torna possível privar um instinto de satisfação É algo que tem seus perigos se não for compensado economicamente podemse esperar graves distúrbios Porém se quisermos saber que valor pode reivindicar nossa concepção do desenvolvimento cultural como um processo peculiar comparável à matur ação normal do indivíduo teremos de atacar um outro problema perguntandonos acerca das influências a que esta evolução cultural deve sua origem como nasceu e o que determinou seu curso IV Uma tarefa desmedida ao que parece diante dela é natural perdermos o alento Aqui está o pouco que pude entrever Após o homem primitivo descobrir que estava em suas mãos literal mente melhorar sua sorte na Terra mediante o trabalho não podia lhe ser indiferente o fato de alguém trabalhar com ele ou contra ele O outro indiví duo adquiriu a seus olhos o valor de um colaborador com o qual era útil viver Ainda antes em sua préhistória antropoide ele havia adotado o hábito de construir famílias os membros da família foram provavelmente os seus 40286 primeiros ajudantes É de supor que a formação da família relacionouse ao fato de a necessidade de satisfação genital não mais se apresentar como um hóspede que surge repentinamente e após a partida não dá notícias por muito tempo mas sim estabelecerse duradouramente como um inquilino Assim o macho teve um motivo para conservar junto a si a mulher ou de modo mais geral os objetos sexuais as fêmeas que não queriam separarse de seus fil hotes desamparados também no interesse deles tinham que ficar junto ao macho forte14 Nessa família primitiva falta ainda um traço essencial da civiliz ação a arbitrariedade do pai e chefe não tinha limites Em Totem e tabu pro curei mostrar o caminho que levou dessa família ao estágio seguinte da vida em comum os bandos de irmãos A vitória sobre o pai havia ensinado aos fil hos que uma associação pode ser mais forte que o indivíduo A cultura totêmica baseiase nas restrições que eles tiveram que impor uns aos outros a fim de preservar o novo estado de coisas Os preceitos do tabu constituíram o primeiro direito A vida humana em comum teve então um duplo funda mento a compulsão ao trabalho criada pela necessidade externa e o poder do amor que no caso do homem não dispensava o objeto sexual a mulher e no caso da mulher não dispensava o que saíra dela mesma a criança Eros e Ananke tornaramse também os pais da cultura humana O primeiro êxito cul tural consistiu em que um número grande de pessoas pôde viver em comunid ade E como os dois grandes poderes atuavam aí conjuntamente cabia esperar que a evolução posterior ocorresse de modo suave rumo a um domínio cada vez melhor do mundo externo e à ampliação do número de pessoas abrangido pela comunidade Assim não é fácil entender como essa cultura pode não tor nar felizes os que dela participam Antes de investigar de onde pode vir a perturbação o reconhecimento do amor como um fundamento da cultura nos propiciará uma digressão a fim de preencher uma lacuna deixada anteriormente Afirmamos que a descoberta de que o amor sexual genital proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação dálhe realmente o protótipo de toda felicidade deve têlo feito 41286 continuar a busca da satisfação vital no terreno das relações sexuais colocando o erotismo genital no centro da vida Prosseguimos dizendo que assim ele se torna dependente de maneira preocupante de uma parte do mundo exterior ou seja do objeto amoroso escolhido e fica exposto ao sofrimento máximo quando é por este desprezado ou o perde graças à morte ou à infidelidade Por causa disso os sábios de todas as épocas desaconselharam enfaticamente esse caminho não obstante ele jamais deixou de atrair um grande número de seres humanos Uma pequena minoria pode devido à sua constituição achar a felicidade pela via do amor mas isso requer vastas alterações psíquicas da função amorosa Tais pessoas se fazem independentes da concordância do objeto ao deslocar o peso maior de ser amado para amar elas protegemse da perda do objeto ao voltar seu amor igualmente para todos os indivíduos e não para ob jetos isolados e evitam as oscilações e decepções do amor genital afastandose da meta sexual deste transformando o instinto em um impulso inibido na meta O que produzem em si mesmas desse modo um estado de sentimento uni forme terno estável já não tem muita semelhança exterior com a vida amorosa genital tempestuosamente agitada de que no entanto deriva Nessa utilização do amor para o sentimento interior de felicidade quem mais avançou foi talvez são Francisco de Assis O que vemos como uma das téc nicas de realização do princípio do prazer foi frequentemente vinculado à reli gião com a qual pode estar ligado naquelas remotas regiões em que é negli genciada a distinção entre o Eu e os objetos e entre os próprios objetos Há uma concepção ética cujos motivos profundos ainda se farão claros para nós que enxerga nessa disposição para o amor universal aos homens e ao mundo a mais excelsa atitude a que pode chegar o ser humano De imediato queremos expor as nossas duas principais objeções Um amor que não escolhe parecenos perder uma parte do seu valor ao cometer injustiça com o objeto Além disso nem todos os humanos são dignos de amor 42286 O amor que fundou a família continua ativo na civilização tanto em seu cunho original em que não renuncia à satisfação sexual direta como em sua modificação a ternura inibida na meta Nas duas formas dá prosseguimento à função de unir um número considerável de pessoas de maneira mais intensa do que a obtida pelo interesse do trabalho em comum O desleixo com que na linguagem se usa a palavra amor tem uma justificação genética Chamase amor a relação entre homem e mulher que fundam uma família tendo por base as suas necessidades genitais mas também são amor os sentimentos posit ivos entre pais e filhos entre os irmãos numa família embora tenhamos que descrever tal relação como amor inibido em sua meta como ternura O amor inibido na meta foi na origem amor plenamente sensual e ainda o é no incon sciente humano Ambos amor plenamente sensual e amor inibido na meta vão além da família e estabelecem novas uniões com pessoas antes desconhecidas O amor genital conduz à formação de novas famílias aquele inibido na meta a amizades que culturalmente se tornam importantes pois escapam a várias limitações do amor genital a exclusividade por exemplo No curso da evolução porém o vínculo entre amor e civilização deixa de ser inequívoco Por um lado o amor se opõe aos interesses da cultura por outro lado a cul tura ameaça o amor com sensíveis restrições Essa divergência parece inevitável sua razão não percebemos de imediato Manifestase primeiramente como um conflito entre a família e a comunidade mais ampla a que pertence o indivíduo Já notamos que um dos principais em penhos da civilização consiste em juntar os homens em grandes unidades Mas a família não quer ceder o indivíduo Quanto maior for a coesão dos membros da família mais frequentemente eles tenderão a se apartar dos outros e mais dificilmente ingressarão no círculo mais amplo da vida O modo de vida em comum que é filogeneticamente mais antigo o único existente na infância defendese da superação por aquele posteriormente adquirido cultural A sep aração da família tornase para todo jovem uma tarefa na solução da qual a so ciedade com frequência o ajuda por meio de ritos de puberdade e iniciação 43286 Vemnos a impressão de que estas são dificuldades inerentes a todo desenvol vimento psíquico e mesmo orgânico no fundo Depois são as mulheres que contrariam a corrente da civilização e exercem a sua influência refreadora e retardadora elas que no início estabeleceram o fundamento da civilização através das exigências de seu amor As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual o trabalho da cultura tornouse cada vez mais assunto dos homens colocalhes tarefas sempre mais difíceis obrigaos a sublimações instintuais de que as mulheres não são muito capazes Como um indivíduo não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica tem que dar conta de suas tarefas mediante uma adequada dis tribuição da libido Aquilo que gasta para fins culturais retira na maior parte das mulheres e da vida sexual a assídua convivência com homens a sua de pendência das relações com eles o alienam inclusive de seus deveres como marido e pai Então a mulher se vê relegada a segundo plano pelas solicitações da cultura e adota uma atitude hostil frente a ela Do lado da cultura a tendência a restringir a vida sexual não é menos clara do que a de ampliar o âmbito de cultura A primeira fase cultural a do totem ismo já traz consigo a proibição da escolha incestuosa de objeto talvez a mais incisiva mutilação que a vida amorosa humana experimentou no curso do tempo Por meio de tabus leis e costumes são produzidas mais restrições que atingem tanto os homens como as mulheres As culturas não percorrem todas a mesma distância nessa via a estrutura econômica da sociedade também influi sobre a medida de liberdade sexual restante Já sabemos que nisso a cultura segue a coação da necessidade econômica pois tem de subtrair à sexualidade um elevado montante da energia psíquica que despende Nisso a cultura se comporta em relação à sexualidade como uma tribo ou uma camada da popu lação que submeteu uma outra à sua exploração O medo de uma revolta dos oprimidos leva a rigorosas medidas de precaução Nossa cultura europeia ocidental mostra um ponto alto nessa evolução Psicologicamente se justifica que ela comece por desaprovar as manifestações da vida sexual infantil pois 44286 não há perspectiva de represar os desejos sexuais dos adultos sem um trabalho preparatório na infância De modo algum se justifica porém que a sociedade civilizada tenha chegado ao ponto de também negar esses fenômenos facil mente comprováveis evidentes até A escolha de objeto do indivíduo sexual mente maduro é reduzida ao sexo oposto a maioria das satisfações extrageni tais é interditada como perversão A exigência expressa em tais proibições de uma vida sexual uniforme para todos ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos priva um número considerável deles do prazer sexual e se torna assim a fonte de grave injustiça O resultado dessas medidas restritivas poderia ser que nas pessoas normais que nisso não se acham impedidas por sua constituição todo o interesse sexual flui sem perda para os canais deixados abertos Mas o que permanece isento de pro scrição o amor genital heterossexual é ainda prejudicado pelas limitações da legitimidade e da monogamia A civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel entre um homem e uma mulher que não lhe agrada a sexualidade como fonte de prazer autônoma e que está disposta a tolerála somente como fonte até agora insubstituível de multiplicação dos seres humanos Isto é naturalmente algo extremo Sabese que demonstrou ser in exequível mesmo por breves períodos Apenas os fracos se sujeitaram a uma interferência tão ampla na sua liberdade sexual as naturezas mais fortes o fizeram apenas em troca de uma compensação da qual falaremos depois A so ciedade civilizada viuse obrigada a fechar os olhos para muitas transgressões que segundo suas normas deveria punir Mas não cabe enganarse na direção oposta e supor que tal atitude é inócua por não atingir todos os seus propósi tos A vida sexual do homem civilizado está mesmo gravemente prejudicada às vezes parece uma função que se acha em processo involutivo como nossos dentes e nossos cabelos enquanto órgãos Provavelmente é lícito supor que como fonte de sensações felizes ou seja no cumprimento de nossa finalidade de vida sua importância diminuiu sensivelmente15 Há ocasiões em que 45286 acreditamos perceber que não somente a pressão da cultura mas também algo da essência da própria função nos recusa a plena satisfação e nos impele por outros caminhos Pode ser um equívoco é difícil decidir16 V O trabalho psicanalítico nos ensinou que são justamente essas frustrações da vida sexual que os indivíduos chamados de neuróticos não suportam Eles cri am com seus sintomas gratificações substitutivas que no entanto causam so frimento ou tornamse fonte de sofrimento ao lhes criar dificuldades com o ambiente e a sociedade Este segundo fato compreendese facilmente o primeiro nos traz um novo enigma Mas a civilização ainda requer outros sac rifícios além da satisfação sexual Abordamos a dificuldade da evolução cultural como uma dificuldade geral de desenvolvimento ao fazêla remontar à inércia da libido à relutância desta em abandonar uma posição velha por uma nova Dizemos aproximadamente o mesmo ao derivar a antítese entre civilização e sexualidade do fato de que o amor sexual é uma relação entre duas pessoas na qual uma terceira é talvez supérflua ou importuna ao passo que a civilização repousa sobre vínculos entre muitas pessoas No auge de uma relação amorosa não há interesse algum pelo resto do mundo o par amoroso basta a si mesmo não precisa sequer de um filho para ser feliz Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser o propósito de transformar vários em um mas quando como é proverbial alcança isso no amor entre dois seres humanos não ad mite ir além Até aqui podemos muito bem imaginar uma comunidade cultural que con sistisse de tais indivíduos duplos que libidinalmente saciados consigo mesmos achamse ligados pelo trabalho e os interesses em comum Neste caso a civilização não precisaria retirar energia à sexualidade Esse desejável 46286 estado de coisas não existe e nunca existiu porém A realidade mostra que a civilização não se contenta com as uniões que até o momento lhe foram per mitidas que quer unir também libidinalmente os membros da comunidade que se vale de todos os meios favorece qualquer caminho para estabelecer for tes identificações entre eles e mobiliza em grau máximo libido inibida na meta para fortalecer os vínculos comunitários através de relações de amizade Para realizar esses propósitos é inevitável a limitação da vida sexual Mas não per cebemos qual necessidade impele a civilização por esse caminho e fundamenta sua oposição à sexualidade Deve se tratar de um fator de perturbação que ainda não descobrimos A pista nos pode ser fornecida por uma das chamadas exigências ideais da sociedade civilizada Ama teu próximo como a ti mesmo diz ela é con hecida universalmente sem dúvida mais velha que o cristianismo que a osten ta como sua mais gloriosa reivindicação mas decerto não é muito antiga em tempos já históricos era ainda estranha à humanidade Vamos adotar uma atit ude ingênua diante dela como se a ouvíssemos pela primeira vez Não podere mos então suprimir um sentimento de estranheza e surpresa Por que dever íamos fazer isso Em que nos ajudará Sobretudo como levar isso a cabo Como nos será possível Meu amor é algo precioso para mim algo que não posso despender irresponsavelmente Ele me impõe deveres os quais tenho que me dispor a cumprir com sacrifícios Quando amo a outrem este deve merecêlo de algum modo Não considero a vantagem que ele possa me trazer nem a possível importância dele como objeto sexual esses dois tipos de relacionamento não contam para o preceito do amor ao próximo Ele o merece se em importantes aspectos semelha tanto a mim que posso amar a mim mesmo nele ele o merece se é tão mais perfeito do que eu que posso am ar nele o meu ideal de mim eu tenho que amálo se ele é filho de meu amigo pois a dor do amigo se algo lhe acontecesse ao filho seria também minha dor eu teria de compartilhála Mas se ele me é desconhecido e não me pode atrair por nenhum valor próprio nenhuma significação que tenha adquirido em 47286 minha vida emocional dificilmente o amarei E estaria sendo injusto se o fizesse pois meu amor é estimado como um privilégio pelos meus seria in justo para com eles equiparálos a desconhecidos Mas se devo amálo com esse amor universal apenas porque também vive nesta Terra como um inseto uma minhoca uma serpente então receio que uma parte mínima de amor lhe caberá sem dúvida alguma menos do que pelo julgamento da razão estou autorizado a guardar para mim mesmo A que vem um preceito tão solene mente enunciado se o seu cumprimento não pode ser racionalmente indicado Olhando com mais vagar encontro ainda outras dificuldades Esse descon hecido não apenas não é digno de amor em geral tenho de confessar honesta mente que ele tem mais direito à minha hostilidade até ao meu ódio Ele não parece ter qualquer amor a mim não me demonstra a menor consideração Quando lhe traz vantagem não hesita em me prejudicar não se perguntando mesmo se o grau de sua vantagem corresponde à magnitude do dano que me faz Mais até ele não precisa sequer ter vantagem nisso quando pode satisfazer um prazer qualquer com isso não se incomoda em zombar de mim em me ofender me caluniar exibir seu poder e quanto mais seguro ele se sentir mais desamparado estarei eu mais seguramente é de esperar essa sua conduta para comigo Quando se comporta de maneira diferente quando sendo eu descon hecido me poupa e me considera achome disposto a retribuirlhe na mesma moeda sem qualquer preceito De fato se esse grandioso mandamento dis sesse Ama teu próximo assim como ele te ama eu nada teria a objetar Há um outro mandamento que me parece ainda mais incompreensível e me des perta uma oposição ainda mais forte Ele diz Ama teus inimigos Mas pensando bem não é justo rejeitálo como uma impertinência ainda maior No fundo é a mesma coisa17 Agora acredito ouvir de uma voz respeitável a admoestação seguinte Justamente porque o próximo não é digno de amor mas antes teu inimigo é que deves amálo como a ti mesmo Então pelo que entendo é um caso semelhante ao Credo quia absurdum Creio porque é absurdo 48286 Ora é bem provável que o próximo quando solicitado a me amar tanto quanto a si mesmo responda exatamente como eu e me repudie pelos mesmos motivos Espero que não com a mesma razão objetiva mas isso ele também pensará Há diferenças na conduta humana que a ética classifica de boas ou más não considerando que foram produzidas por condições determinadas Enquanto essas inegáveis diferenças não forem suprimidas obedecer às eleva das exigências éticas implicará danos aos propósitos da cultura por estabelecer prêmios para a maldade Não podemos deixar de lembrar um evento sucedido no parlamento francês quando se discutia a pena de morte um orador havia advogado apaixonadamente sua abolição e colhia aplausos fervorosos até que uma voz prorrompeu no recinto Que messieurs les assassins commencent Que os senhores assassinos comecem O quê de realidade por trás disso que as pessoas gostam de negar é que o ser humano não é uma criatura branda ávida de amor que no máximo pode se defender quando atacado mas sim que ele deve incluir entre seus dotes in stintuais também um forte quinhão de agressividade Em consequência disso para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão para explorar seu trabalho sem recompensálo para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade para usurpar seu patrimônio para humilhálo para infligirlhe dor para torturálo e matálo Homo homini lupus O homem é o lobo do homem quem depois de tudo o que aprendeu com a vida e a história tem coragem de discutir essa frase Via de regra essa cruel agressividade aguarda uma provocação ou se coloca a serviço de um propósito diferente que poderia ser atingido por meios mais suaves Em circunstâncias favoráveis quando as forças psíquicas que normalmente a inibem estão ausentes ela se ex pressa também de modo espontâneo e revela o ser humano como uma besta selvagem que não poupa os de sua própria espécie Quem chamar à lembrança os horrores da migração dos povos32 das invasões dos hunos dos mongóis de Gêngis Khan e Tamerlão da conquista de Jerusalém pelos piedosos 49286 cruzados e ainda as atrocidades da recente Guerra Mundial terá de se curvar humildemente à verdade dessa concepção A existência desse pendor à agressão que podemos sentir em nós mesmos e justificadamente pressupor nos demais é o fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios33 Devido a essa hostilidade primária entre os homens a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração O interesse do trabalho em comum não a manter ia paixões movidas por instintos são mais fortes que interesses ditados pela razão A civilização tem de recorrer a tudo para pôr limites aos instintos agressivos do homem para manter em xeque suas manifestações através de formações psíquicas reativas Daí portanto o uso de métodos que devem inst igar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas em sua meta daí as restrições à vida sexual e também o mandamento ideal de amar o próximo como a si mesmo que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser mais contrário à natureza humana original Com todas as suas lidas esse empenho da civilização não alcançou muito até agora Ela espera prevenir os excessos mais grosseiros da violência conferindo a si mesma o direito de praticar a violência contra os infratores mas a lei não tem como abarcar as ex pressões mais cautelosas e sutis da agressividade humana Cada um de nós vive o momento em que deixa de lado como ilusões as esperanças que na ju ventude depositava nos semelhantes e aprende o quanto a vida lhe pode ser dificultada e atormentada por sua malevolência Ao mesmo tempo seria injusto acusar a civilização de pretender excluir da atividade humana a luta e a disputa Estas são imprescindíveis não há dúvida mas oposição não significa necessar iamente inimizade é apenas mal utilizada como ocasião para ela Os comunistas acreditam haver encontrado o caminho para a redenção do mal O ser humano é inequivocamente bom bemdisposto para com o próx imo mas a instituição da propriedade privada lhe corrompeu a natureza A posse de bens privados dá poder a um indivíduo e com isso a tentação de mal tratar o próximo o despossuído deve se rebelar contra o opressor seu inimigo 50286 Se a propriedade privada for abolida todos os bens forem tornados comuns e todos os homens puderem desfrutálos desaparecerão a malevolência e a inim izade entre os homens Como todas as necessidades estarão satisfeitas nin guém terá motivo para enxergar no outro um inimigo e todos se encarregarão espontaneamente do trabalho necessário Não é de minha alçada a crítica econ ômica do sistema comunista não tenho como investigar se a abolição da pro priedade privada é pertinente e vantajosa18 Mas posso ver que o seu pres suposto psicológico é uma ilusão insustentável Suprimindo a propriedade privada subtraímos ao gosto humano pela agressão um dos seus instrumentos sem dúvida poderoso e certamente não o mais poderoso Mas nada mudamos no que toca às diferenças de poder e de influência que a agressividade usa ou abusa para os seus propósitos e tampouco na sua natureza Ela não foi criada pela propriedade reinou quase sem limites no tempo préhistórico quando aquela ainda era escassa já se manifesta na infância quando a propriedade mal abandonou sua primária forma anal constitui o sedimento de toda relação terna e amorosa entre as pessoas talvez com a exceção única daquela entre a mãe e o filho homem Se eliminamos o direito pessoal aos bens materiais sub siste o privilégio no âmbito das relações sexuais que se torna fonte do mais vivo desgosto e da mais violenta inimizade entre seres que de outro modo se acham em pé de igualdade Suprimindo também este mediante a completa lib eração da vida sexual ou seja abolindo a família célula germinal da civiliza ção fica impossível prever que novos caminhos a evolução cultural pode en cetar mas uma coisa é lícito esperar que esse indestrutível traço da natureza humana também a acompanhe por onde vá Evidentemente não é fácil para os homens renunciar à gratificação de seu pendor à agressividade não se sentem bem ao fazêlo Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor de permitir ao instinto um escape através da hostilização dos que não pertencem a ele Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade Certa vez discuti o fenômeno de justamente 51286 comunidades vizinhas e também próximas em outros aspectos andarem às turras e zombarem uma da outra como os espanhóis e os portugueses os alemães do norte e os do sul os ingleses e os escoceses etc Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento Percebese nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade através da qual é facilitada a coesão entre os mem bros da comunidade O povo judeu espalhado em toda parte conquistou desse modo louváveis méritos junto às culturas dos povos que o hospedaram Infelizmente todos os massacres de judeus durante a Idade Média não bastaram para tornar a época mais pacífica e segura para seus camaradas cristãos Depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fun damento de sua congregação a intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornouse uma consequência inevitável Os ro manos cuja organização estatal não se baseava no amor desconheciam a intol erância religiosa apesar de entre eles a religião ser assunto de Estado e o Estado ser permeado de religião Tampouco foi um acaso incompreensível que o sonho de um domínio mundial germânico evocasse o antissemitismo para seu complemento e podemos entender que a tentativa de instaurar na Rússia uma nova civilização comunista encontre seu apoio psicológico na perseguição à burguesia Só nos perguntamos preocupados o que farão os sovietes após li quidarem seus burgueses Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à sexualidade mas também ao pendor agressivo do homem compreendemos melhor por que para ele é difícil ser feliz nela De fato o homem primitivo estava em situação melhor pois não conhecia restrições ao instinto Em compensação era mínima a segurança de desfrutar essa felicidade por muito tempo O homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança Mas não esqueçamos que na família primitiva somente o chefe gozava dessa liberdade instintual os outros viviam em submissão escrava Logo a oposição entre uma minoria gozando as vantagens da cultura e uma maioria destituída dessas vantagens foi levada ao 52286 extremo naquela época primeira da civilização Informandonos mais cuida dosamente acerca dos primitivos que ainda hoje vivem aprendemos que não se pode invejálos a liberdade em sua vida instintual esta é sujeita a limitações de outra espécie mas talvez de maior rigor que as daquela do civilizado moderno Se justificadamente objetamos em nosso estado atual de civilização que ele não preenche nossos requisitos de um sistema de viver que faça feliz que ad mite muito sofrimento que se poderia provavelmente evitar se de modo im placavelmente crítico buscamos expor as raízes de sua imperfeição sem dúvida exercemos o nosso mero direito não nos mostramos inimigos da cul tura É lícito esperar que pouco a pouco lhe introduziremos mudanças que sat isfaçam melhor as nossas necessidades e escapem a essa crítica Mas talvez nos familiarizemos igualmente com a ideia de que há dificuldades inerentes à cul tura que não cederão a tentativas de reforma Além das tarefas de restrição in stintual para as quais estamos preparados surgenos o perigo de um estado que podemos denominar a miséria psicológica da massa Tal perigo ameaça sobretudo quando a ligação social é estabelecida principalmente pela identi ficação dos membros entre si e as individualidades que podem liderar não ad quirem a importância que lhes deveria caber na formação da massa19 O estado de civilização na América de hoje daria uma boa oportunidade para o estudo desse dano cultural que tememos Mas eu fujo à tentação de entrar numa crítica à civilização da América não quero despertar a impressão de pretender eu mesmo servirme de métodos americanos VI Nenhum outro trabalho me deu a sensação como este de expor algo con hecido de gastar papel e tinta e fazer trabalhar o tipógrafo para falar de coisas evidentes De modo que se parecer que o reconhecimento de um instinto de 53286 agressão especial autônomo significa uma mudança na teoria psicanalítica dos instintos de bom grado me ponho a discutir isso Veremos que não é bem assim que se trata apenas de captar mais nitida mente uma alteração há muito efetuada e de lhe tirar as consequências De to das as partes que gradualmente se desenvolveram na teoria psicanalítica a teoria dos instintos foi a que tateou mais penosamente o seu caminho E no en tanto era tão indispensável ao conjunto que alguma coisa teve que ser posta em seu lugar No completo desnorteio inicial uma frase do poetafilósofo Schiller segundo a qual a fome e o amor sustentam a máquina do mundo forneceume o ponto de partida A fome poderia representar os instintos que querem manter o ser individual enquanto o amor procura pelos objetos sua função principal favorecida de toda maneira pela natureza é a conservação da espécie Assim primeiramente se defrontaram instintos do Eu e instintos obje tais Para designar a energia destes exclusivamente para ela introduzi o nome de libido com isso a oposição se dava entre os instintos do Eu e os instintos libidinais do amor no sentido lato dirigidos para o objeto É certo que um desses instintos objetais o sádico sobressaía pelo fato de sua meta não ser nada amorosa e em vários pontos ele claramente se juntava aos instintos do Eu não podia esconder sua estreita afinidade com instintos de dominação sem propósito libidinal mas essas discrepâncias foram superadas O sadismo fazia claramente parte da vida sexual o jogo da crueldade podia suceder ao da ternura A neurose aparecia como o desfecho de uma luta entre o interesse da autopreservação e as exigências da libido uma luta que o Eu vencera mas ao custo de severo sofrimento e renúncia Todo analista admitirá que ainda hoje isso não parece um erro há muito constatado Mas uma mudança tornouse imprescindível quando nossa pesquisa avançou do que é reprimido para o que reprime dos instintos objetais para o Eu Foi decisiva neste ponto a introdução do conceito de narcisismo isto é a compreensão de que o próprio Eu se acha investido de libido constitui mesmo o reduto original dela e em certa medida permanece como o seu 54286 quartelgeneral Essa libido narcísica voltase para os objetos tornase então libido objetal e pode transformarse novamente em libido narcísica O con ceito de narcisismo tornou possível apreender analiticamente a neurose traumática assim como a psicose e muitas afecções vizinhas a esta A inter pretação das neuroses de transferência como tentativa de o Eu defenderse da sexualidade não precisou ser abandonada mas o conceito de libido ficou ameaçado Como também os instintos do Eu eram libidinais por um momento pareceu inevitável fazer coincidirem libido e energia instintual tal como CG Jung pretendeu anteriormente Mas me restava uma quase que certeza ainda a ser fundamentada segundo a qual os instintos não podiam ser todos da mesma espécie O passo seguinte foi dado em Além do princípio do prazer 1920 quando tive a ideia da compulsão de repetição e do caráter conservador da vida instintual Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos concluí que deveria haver além do instinto para conservar a sub stância vivente e juntála em unidades cada vez maiores20 um outro a ele con trário que busca dissolver essas unidades e conduzilas ao estado primordial inorgânico Ou seja ao lado de Eros um instinto de morte Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta ou antagônica dos dois Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte As manifestações de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas era de supor que o instinto de morte trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo para a dissolução deste mas isso não constituía prova é claro Levavanos mais longe a ideia de que uma parte do instinto se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão e destruição Assim o próprio instinto seria obri gado ao serviço de Eros na medida em que o vivente destruiria outras coisas animadas e inanimadas em vez de si próprio Inversamente a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição aliás sempre ex istente Ao mesmo tempo a partir desse exemplo podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente talvez nunca surgem isoladas uma 55286 da outra mas se fundem em proporções diferentes e muito variadas tornando se irreconhecíveis para nosso julgamento No sadismo há muito conhecido como instinto parcial da sexualidade teríamos uma fusão assim particular mente forte entre o impulso ao amor e o instinto de destruição e na sua con traparte o masoquismo uma ligação da destrutividade dirigida para dentro com a sexualidade o que faz visível e notável a tendência normalmente imperceptível A suposição de um instinto de morte ou de destruição encontrou resistência até mesmo nos círculos psicanalíticos Sei que é frequente a inclinação de at ribuir a uma bipolaridade original do próprio amor tudo o que nele é encon trado de perigoso e hostil No começo expus apenas tentativamente essas con cepções mas com o tempo elas ganharam tal ascendência sobre mim que já não posso pensar de outro modo Acho que teoricamente são muito mais pro veitosas que quaisquer outras pois produzem aquela simplificação sem neg ligência ou violentação dos fatos que buscamos no trabalho científico Recon heço que no sadismo e no masoquismo sempre vimos as manifestações forte mente mescladas com o erotismo do instinto de destruição voltado para fora e para dentro mas já não entendo que pudéssemos ignorar a onipresença da agressividade e destrutividade não erótica deixando de lhe conceder o devido lugar na interpretação da vida A ânsia de destruição voltada para dentro se subtrai geralmente à percepção é verdade quando não é tingida erotica mente Recordo a minha própria atitude defensiva quando a ideia do instinto de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica e quanto tempo durou até que eu me tornasse receptivo a ela O fato de outros haverem mostrado e ainda mostrarem a mesma rejeição não me surpreende Pois as cri anças não gostam de ouvir quando se fala da tendência inata do ser humano para o mal para a agressão a destruição para a crueldade portanto Deus as criou à imagem de sua própria perfeição ninguém quer ser lembrado o quanto é difícil conciliar a irrefutável existência do mal apesar das assever ações da Christian Science com sua onipotência e infinita bondade O 56286 Diabo seria o melhor expediente para desculpar Deus teria a mesma função econômica de descarga que têm os judeus no mundo do ideal ariano Mas mesmo assim podese pedir a Deus satisfações pela existência do Diabo tal como pela do mal que ele personifica Tendo em vista essas dificuldades é aconselhável que cada um se incline bastante nas ocasiões devidas ante a natureza profundamente moral do ser humano ajuda a ser benquisto e a ter muita coisa perdoada21 O nome libido pode mais uma vez ser aplicado às expressões de força de Eros para diferençálas da energia do instinto de morte22 Devemos admitir que nos é bem mais difícil apreender este último que com ele atinamos em certa medida apenas como resíduo por trás de Eros e que ele furtase a nós quando não é revelado pela fusão com Eros É no sadismo em que ele modi fica a seu favor a meta erótica mas não deixa de satisfazer plenamente o ím peto sexual que atingimos a mais clara compreensão de sua natureza e de sua relação com Eros Mas também ali onde surge sem propósito sexual ainda na mais cega fúria destruidora é impossível não reconhecer que sua satisfação es tá ligada a um prazer narcísico extraordinariamente elevado pois mostra ao Eu a realização de seus antigos desejos de onipotência Domado e moderado como que inibido em sua meta o instinto de destruição deve dirigido para os objetos proporcionar ao Eu a satisfação das suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza Como a hipótese dele está baseada essencialmente em razões teóricas é preciso admitir que também não se acha inteiramente a salvo de objeções teóricas Mas é assim que as coisas se nos apresentam no es tado atual de nossa compreensão a pesquisa e a reflexão futuras trarão certa mente a luz decisiva Portanto em tudo o que segue me atenho ao ponto de vista de que o pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser hu mano e retorno ao que afirmei antes que a civilização tem aí o seu mais po deroso obstáculo No curso desta investigação impôssenos a ideia de que a cultura é um processo especial que se desenrola na humanidade e nós 57286 continuamos sob o influxo dessa ideia Acrescentemos que é um processo a serviço de Eros que pretende juntar indivíduos isolados famílias depois etni as povos e nações numa grande unidade a da humanidade Por que isso teria de ocorrer não sabemos é simplesmente a obra de Eros Essas multidões hu manas devem ser ligadas libidinalmente entre si a necessidade apenas as vant agens do trabalho em comum não as manterão juntas Mas a esse programa da cultura se opõe o instinto natural de agressão dos seres humanos a hostilidade de um contra todos e de todos contra um Esse instinto de agressão é o de rivado e representante maior do instinto de morte que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo Agora acredito o sentido da evolução cultural já não é obscuro para nós Ela nos apresenta a luta entre Eros e morte instinto de vida e instinto de destruição tal como se desenrola na espécie humana Essa luta é o conteúdo essencial da vida e por isso a evolução cultural pode ser designada brevemente como a luta vital da espécie hu mana23 E é esse combate de gigantes que nossas babás querem amortecer com a canção de ninar falando do céu VII Por que nossos parentes os animais não exibem uma luta cultural semelhante Não sabemos Provavelmente alguns entre eles as abelhas formigas térmitas esforçaramse durante milênios até encontrar as instituições estatais a divisão de funções a limitação imposta aos indivíduos que hoje admiramos neles É característico de nosso estado presente sentirmos que em nenhuma destas so ciedades animais em nenhum dos papéis aí destinados ao indivíduo estaríamos contentes Em outras espécies animais podese ter chegado a um equilíbrio momentâneo entre as influências do meio e os instintos que nelas lutam entre si e desse modo a uma parada no desenvolvimento No homem primitivo pode ser que um novo avanço da libido tenha ocasionado uma renovada 58286 oposição do instinto de destruição Há muitas questões a serem feitas aqui para as quais ainda não há respostas Uma outra pergunta nos está mais próxima De que meio se vale a cultura para inibir tornar inofensiva talvez eliminar a agressividade que a defronta Alguns desses métodos já conhecemos mas não o que parece ser mais import ante Podemos estudálo na evolução do indivíduo O que sucede nele que torna inofensivo o seu gosto em agredir Algo bastante notável que não ter íamos adivinhado e que no entanto se acha próximo A agressividade é intro jetada internalizada mas é propriamente mandada de volta para o lugar de onde veio ou seja é dirigida contra o próprio Eu Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Supereu e que como consciência dispõese a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostar ia de satisfazer em outros indivíduos À tensão entre o rigoroso Supereu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa ela se manifesta como ne cessidade de punição A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo ao enfraquecêlo desarmálo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior como por uma guarnição numa cidade conquistada Quanto à origem do sentimento de culpa o psicanalista pensa diferente mente dos outros psicólogos mas também para ele não é fácil prestar contas sobre isso Primeiro ao se perguntar como alguém adquire sentimento de culpa obtémse uma resposta que não admite discussão a pessoa se sente culpada pecadora dizem os devotos quando fez algo que é reconhecido como mau Em seguida vemos como essa resposta é pouca Após alguma hesitação talvez se acrescente que mesmo quem não fez esse mal e apenas re conhece em si o propósito de fazêlo pode se considerar culpado e então se le vantará a questão de por que nisso o propósito é equiparado à execução Os dois casos porém pressupõem que já se reconheceu o mal como algo repreensível cuja execução deve ser evitada Como se chega a essa decisão É lícito rejeitar uma capacidade original por assim dizer natural para 59286 distinguir entre o bem e o mal Com frequência o mal não é em absoluto uma coisa nociva ou perigosa para o Eu mas pelo contrário algo que ele deseja e que lhe dá prazer Aí se mostra então a influência alheia ela determina o que será tido por bom ou mau Como o próprio sentir não teria levado o ser hu mano pelo mesmo caminho ele deve ter um motivo para se submeter a essa in fluência externa Podemos enxergálo no desamparo e na dependência dos outros e a melhor designação para ele seria medo da perda do amor Se perde o amor do outro do qual é dependente deixa também de ser protegido contra perigos diversos sobretudo expõese ao perigo de que esse alguém tão poder oso lhe demonstre a superioridade em forma de castigo Portanto inicialmente o mal é aquilo devido ao qual alguém é ameaçado com a perda do amor por medo dessa perda é preciso evitálo Também por causa disso não importa se já fizemos o mal ou se ainda o faremos em ambos os casos o perigo só aparece quando a autoridade descobre a coisa e ela se comportaria do mesmo modo nos dois Chamamos a esse estado má consciência mas na realidade ele não merece esse nome pois nesse estágio a consciência de culpa não passa clara mente de medo da perda do amor medo social Na criança pequena não pode ser outra coisa mas em muitos adultos também não há diferença exceto que o lugar do pai ou de ambos os pais é tomado pela grande sociedade hu mana Daí eles habitualmente se permitirem realizar o mal que lhes for agradável se tiverem certeza de que a autoridade não saberá ou nada poderá fazer contra eles seu medo é apenas o de serem descobertos24 É com esse es tado que a sociedade de hoje deve geralmente contar Uma grande mudança ocorre apenas quando a autoridade é internalizada pelo estabelecimento de um Supereu Com isso os fenômenos da consciência Gewissen chegam a um novo estágio no fundo só então se deveria falar de consciência e sentimento de culpa25 Neste ponto desaparece o medo de ser descoberto e também se desfaz por completo a diferença entre fazer o mal e desejar o mal pois ante o Supereu nada se pode esconder nem os 60286 pensamentos A seriedade real da situação já passou é verdade pois a nova autoridade o Supereu não tem motivo segundo cremos para maltratar o Eu ao qual está intimamente ligado Mas a influência da gênese que faz continuar a viver o passado e superado manifestase no fato de que no fundo a coisa per manece como era no início O Supereu atormenta o Eu pecador com as mes mas sensações de angústia e fica à espreita de oportunidades para fazêlo ser punido pelo mundo exterior Neste segundo estágio de desenvolvimento a consciência mostra uma pe culiaridade que não havia no primeiro e que já não é fácil de explicar Quanto mais virtuoso o indivíduo mais severa e desconfiadamente ela se comporta de maneira que precisamente os que atingem maior santidade se recriminam da mais triste pecaminosidade Nisso a virtude perde algo da recompensa que lhe foi prometida o Eu dócil e abstinente não goza da confiança de seu mentor esforçase em vão ao que parece para conquistála Agora se poderá objetar que essas são dificuldades artificialmente compostas que a consciência mais rigorosa e vigilante é justamente o traço característico do ser moral e quando os santos se dizem pecadores não é sem razão que o fazem em vista das tentações para satisfazer o instinto a que se acham expostos em medida es pecialmente elevada pois é sabido que a frustração contínua só faz crescer em as tentações ao passo que elas diminuem ao menos temporariamente com a satisfação ocasional Um outro fato do âmbito da ética tão rico em problemas é que o infortúnio ou seja a frustração a partir de fora promove bastante o poder da consciência no Supereu Enquanto as coisas vão bem para a pessoa também a sua consciência é branda e permite ao Eu muitas coisas quando uma infelicidade a atinge ela se examina reconhece sua pecaminosidade eleva as reivindicações da consciência impõese privações e castiga a si mesma com penitências26 Povos inteiros se comportaram e continuam se comportando as sim Mas isso se explica facilmente pelo original estágio infantil da consciência que portanto não é abandonado após a introjeção no Supereu mas subsiste junto e por trás dela O destino é visto como substituto da instância parental 61286 quando uma pessoa tem infortúnio significa que não mais é amada por esse poder supremo e ameaçada por essa perda de amor inclinase novamente ante a representação dos pais no Supereu que no momento da fortuna tendia a negligenciar Isso é particularmente claro quando em sentido estritamente religioso vemos no destino somente a expressão da vontade divina O povo de Israel se considerava o favorito de Deus e quando o grande Pai fez cair um infortúnio após o outro em cima deste seu povo ele não perdeu a confiança nessa relação nem duvidou do poder e da justiça de Deus mas produziu os profetas que lhe repreenderam a pecaminosidade e a partir de sua consciência de culpa forjou os preceitos tão severos de sua religião sacerdotal É notável como o primitivo se conduz diferentemente Se foi vítima do infortúnio não atribui a si a culpa mas sim ao fetiche que evidentemente não cumpriu suas obrigações e bate nele em vez de castigar a si mesmo Conhecemos então duas origens para o sentimento de culpa o medo da autoridade e depois o medo ante o Supereu O primeiro nos obriga a renun ciar a satisfações instintuais o segundo nos leva também ao castigo dado que não se pode ocultar ao Supereu a continuação dos desejos proibidos Vimos igualmente como é possível entender a severidade do Supereu os reclamos da consciência Ela simplesmente dá continuidade ao rigor da autoridade externa a que sucedeu e que em parte substitui Agora percebemos que relação há entre a renúncia ao instinto e o sentimento de culpa Originalmente a renúncia ao in stinto é resultado do medo à autoridade externa renunciase a satisfações para não perder o seu amor Tendo feito essa renúncia estamos quites com ela por assim dizer não deveria restar sentimento de culpa É diferente no caso do medo ante o Supereu Aí a renúncia instintual não ajuda o bastante pois o desejo persiste e não pode ser escondido do Supereu Apesar da renúncia efetuada produzse um sentimento de culpa portanto e essa é uma grande desvantagem econômica na instituição do Supereu ou como se pode dizer na formação da consciência A renúncia instintual já não tem efeito completa mente liberador a abstenção virtuosa já não é recompensada com a certeza do 62286 amor um infortúnio que ameaça a partir de fora perda do amor e castigo da autoridade externa é trocado por uma permanente infelicidade interna a tensão da consciência de culpa Essas relações são tão complicadas e ao mesmo tempo tão importantes que eu gostaria de abordálas a partir de outro lado ainda correndo o risco da re petição Então a sequência temporal seria primeiro renúncia instintual devido ao medo à agressão da autoridade externa pois a isso equivale o medo ante a perda do amor o amor protegendo dessa agressão punitiva depois es tabelecimento da autoridade interna renúncia instintual devido ao medo a ela medo da consciência No segundo caso equiparação de ato mau e má intenção e daí consciência de culpa necessidade de castigo A agressividade da con sciência conserva a da autoridade Até aqui parece estar tudo claro mas onde cabe a influência reforçadora do infortúnio da renúncia imposta a partir de fora sobre a consciência o extraordinário rigor da consciência nas pessoas melhores e mais obedientes Já explicamos as duas peculiaridades da consciên cia mas provavelmente ficou a impressão de que tais explicações não chegam ao fundo de que deixam um resto inexplicado E aqui surge afinal uma ideia inteiramente própria da psicanálise e alheia ao pensamento habitual das pess oas Ela é de gênero tal que nos faz compreender como o objeto de estudo tinha de nos parecer tão confuso e opaco Pois ela diz que no início a consciên cia mais corretamente o medo que depois se torna consciência é causa da renúncia instintual mas depois se inverte a relação Toda renúncia instintual tornase uma fonte dinâmica da consciência toda nova renúncia aumenta o rigor e a intolerância desta e se pudéssemos harmonizar isso melhor com o que sabemos da história da origem da consciência seríamos tentados a defend er a tese paradoxal de que a consciência é resultado da renúncia instintual ou de que esta a nós imposta do exterior cria a consciência que então exige mais renúncia instintual Na verdade a contradição entre essa frase e a gênese da consciência aqui oferecida não é tão grande e divisamos um meio de reduzila ainda mais A 63286 fim de facilitar a exposição vamos tomar o exemplo do instinto de agressão e supor que nestas relações se trata sempre da renúncia à agressão Isto será nat uralmente apenas uma suposição temporária O efeito da renúncia instintual sobre a consciência se dá de maneira tal que toda parcela de agressividade que não satisfazemos é acolhida pelo Supereu e aumenta a agressividade deste contra o Eu Isso não condiz com o fato de que a agressividade original da consciência é prosseguimento do rigor da autoridade externa ou seja nada tem a ver com a renúncia Fazemos desaparecer essa incoerência no entanto se supomos uma derivação diferente para essa primeira dotação agressiva do Supereu Um considerável montante de agressividade deve ter se desen volvido na criança contra a autoridade que lhe impede as primeiras e também mais significativas satisfações quaisquer que sejam as privações instintuais re queridas Ela é obrigada a renunciar à satisfação dessa agressividade vingativa Encontra saída para essa difícil situação econômica recorrendo a mecanismos conhecidos ao acolher dentro de si por identificação essa autoridade inatacável que então se torna Supereu e entra em posse de toda a agressivid ade que a criança gostaria de exercer contra ela O Eu da criança tem de se contentar com o triste papel da autoridade assim degradada o pai A situ ação se inverte como é frequente suceder Se eu fosse o pai e você o filho eu trataria você mal A relação entre Supereu e Eu é o retorno deformado pelo desejo de relações reais entre o Eu ainda não dividido e um objeto externo Também isso é típico A diferença essencial porém está em que a severidade original do Supereu não é ou não é tanto a que experimentamos de sua parte ou atribuímos a ele mas representa nossa própria agressividade para com ele Se isso estiver correto podese mesmo afirmar que a consciência surgiu inicialmente pela supressão de uma agressão e que depois se fortalece por novas supressões desse tipo Qual das duas concepções está certa A primeira que geneticamente nos parecia inatacável ou a mais nova que arredonda a teoria de maneira opor tuna Claramente e também pelo testemunho da observação direta ambas se 64286 justificam não se contradizem e até mesmo concordam num ponto pois a vingativa agressão da criança é também determinada pela medida de agressão punitiva que espera do pai A experiência ensina no entanto que de modo al gum a severidade do Supereu desenvolvido pela criança reflete a severidade do tratamento que recebeu27 Surge independente dela uma criança educada brandamente pode ter uma consciência bastante severa Mas seria incorreto ex agerar essa independência Não é difícil nos convencermos de que o rigor da educação também influi grandemente na formação do Supereu infantil Ocorre que fatores constitucionais herdados e influências do meio real atuam conjuntamente na formação do Supereu e gênese da consciência e isso não é nada estranho mas a condição etiológica geral de todos esses processos28 Podese também dizer que quando a criança reage às primeiras grandes renúncias instintuais com agressividade em demasia e correspondente rigor do Supereu segue um modelo filogenético e vai além da reação presentemente justificada pois o pai da préhistória era certamente terrível e capaz de extrema agressividade As diferenças entre as duas concepções sobre a origem da con sciência diminuem ainda mais portanto se passamos do desenvolvimento in dividual para o filogenético Por outro lado surge aqui uma nova e signific ativa diferença nesses dois processos Não podemos afastar a hipótese de que o sentimento de culpa da humanidade vem do complexo de Édipo e foi ad quirido quando do assassínio do pai pelo bando de irmãos Ali a agressão não foi suprimida mas levada a efeito a mesma agressão cuja supressão deve ser fonte de sentimento de culpa na criança Agora eu não me surpreenderia se um leitor exclamasse irritado Então não importa se alguém mata o pai ou não de toda forma se tem sentimento de culpa Aí podemos nos permitir algumas dúvidas Ou é errado que o sentimento de culpa deriva de agressões suprimi das ou toda a história do assassínio do pai é um romance e os homens primit ivos não matavam seus pais com mais frequência do que os de hoje Além do mais se isso não for um romance mas história plausível teremos um caso em que sucede o que todos esperam ou seja alguém sentirse culpado por ter 65286 realmente feito algo que não se justifica E para esse caso que aliás ocorre to dos os dias a psicanálise nos deve ainda uma explicação Isso é verdadeiro e deve ser reparado Também não é um segredo especial Quando se tem sentimento de culpa após haver infringido algo e por têlo feito esse sentimento deveria antes ser denominado arrependimento Referese apenas a um ato e naturalmente pressupõe que uma consciência a disposição de sentirse culpado já existia antes do ato Tal arrependimento não pode portanto ajudarnos a encontrar a origem da consciência e do sentimento de culpa O que sucede nesses casos cotidianos é habitualmente que uma ne cessidade instintual adquiriu força para satisfazerse não obstante a consciên cia também limitada em sua força e que em virtude do natural debilitamento da necessidade pela sua satisfação é restaurado o anterior equilíbrio de poder Então a psicanálise está certa ao excluir desta discussão o caso do sentimento de culpa por arrependimento por mais frequente que ele seja e por maior que seja a sua importância prática Mas se o sentimento de culpa humano remonta ao assassinato do pai primit ivo esse foi mesmo um caso de arrependimento e não valeria para aquele tempo o pressuposto de consciência e sentimento de culpa anteriores ao ato De onde vinha o arrependimento nesse caso Certamente ele deve nos aclarar o segredo do sentimento de culpa pondo um fim a nossas dificuldades E penso que o faz Esse arrependimento era resultado da primordial ambivalên cia afetiva perante o pai os filhos o odiavam mas também o amavam Depois que o ódio se satisfez com a agressão veio à frente o amor no arrependimento pelo ato e instituiu o Supereu por identificação com o pai deulhe o poder do pai como que por castigo pelo ato de agressão contra ele cometido criou as restrições que deveriam impedir uma repetição do ato E como o pendor agressivo contra o pai se repetiu nas gerações seguintes também o sentimento de culpa persistiu e fortaleceuse de novo com cada agressão suprimida e transferida para o Supereu Creio que agora apreendemos duas coisas muito 66286 claramente a participação do amor na gênese da consciência e a fatídica inevit abilidade do sentimento de culpa Não é decisivo realmente haver matado o pai ou deixado de fazêlo em ambos os casos temos de nos sentir culpados pois o sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalência da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos enquanto essa comunidade assume apenas a forma da família ele tem de se manifestar no complexo de Édipo instituir a consciência criar o primeiro sentimento de culpa Ao se procurar uma ampliação dessa comunidade o mesmo conflito prossegue em formas dependentes do passado é fortalecido e resulta numa in tensificação do sentimento de culpa Como a cultura obedece a um impulso er ótico interno que a faz unir os homens em uma massa intimamente ligada só pode alcançar esse fim mediante um fortalecimento cada vez maior do senti mento de culpa O que teve início com o pai se completa na massa Se a cultura é o curso de desenvolvimento necessário da família à humanidade então está inextricavelmente ligado a ela como consequência do inato conflito ambi valente da eterna disputa entre amor e busca da morte o acréscimo do sen timento de culpa talvez a um ponto que o indivíduo ache difícil tolerar Lem bramos da comovente denúncia contra os poderes celestiais feita pelo grande poeta Vocês nos trazem à existência Deixando que o pobre se torne culpado Depois o abandonam ao sofrimento Pois toda culpa na terra se paga29 E bem podemos dar um suspiro ao perceber que a alguns indivíduos é dado retirar sem maior esforço do torvelinho dos próprios sentimentos os conhecimentos mais profundos aos quais temos de chegar em meio a tortur ante incerteza e incansável tatear 67286 VIII Chegando ao fim desse caminho o autor precisa desculparse com o leitor por não lhe ter sido um guia mais hábil por não lhe haver poupado trechos monótonos e digressões penosas Não há dúvida de que é possível fazer mel hor Tentarei em seguida compensar em parte esses defeitos Em primeiro lugar imagino que os leitores tenham a impressão de que a discussão sobre o sentimento de culpa excedeu as balizas deste ensaio apropriandose de muito espaço e impelindo para a margem o conteúdo rest ante com o qual nem sempre se vincula de modo íntimo Isso pode haver pre judicado a arquitetura do trabalho mas corresponde bem ao propósito de situ ar o sentimento de culpa como o problema mais importante da evolução cul tural e de mostrar que o preço do progresso cultural é a perda de felicidade pelo acréscimo do sentimento de culpa30 O que ainda parecer estranho nesta frase que é o resultado final de nossa investigação pode provavelmente re montar à relação especial até agora não compreendida entre o sentimento de culpa e nossa consciência Bewußtsein Nos casos comuns de arrependimento que consideramos normais ele é bastante perceptível para a consciência es tamos inclusive acostumados a falar de consciência de culpa Schuldbewußtsein em vez de sentimento de culpa O estudo das neuroses às quais devemos as mais valiosas indicações para o entendimento do normal revela situações contraditórias Em uma dessas afecções a neurose obsessiva o sentimento de culpa se impõe de modo ostensivo à consciência dominando o quadro patológico e a vida dos doentes mal deixando que algo mais apareça Na maioria dos outros casos e formas de neurose porém ele permanece total mente inconsciente sem por isso manifestar efeitos menores Os doentes não acreditam em nós quando lhes atribuímos um sentimento de culpa 68286 inconsciente para que nos compreendam em alguma medida nós lhes falam os de uma inconsciente necessidade de castigo na qual se expressa o senti mento de culpa Mas a relação com uma forma particular de neurose não deve ser superestimada também na neurose obsessiva há tipos de doentes que não percebem o seu sentimento de culpa ou que o sentem como um doloroso mal estar uma espécie de angústia apenas quando se veem impedidos de executar determinadas ações Deveria ser possível compreender finalmente essas coisas ainda não somos capazes disso Talvez seja aqui bemvinda a observação de que o sentimento de culpa nada é no fundo senão uma variedade topográfica da angústia e em suas fases posteriores coincide inteiramente com o medo ao Supereu Na relação com a consciência a angústia exibe as mesmas ex traordinárias variações De algum modo a angústia se acha por trás de todo sintoma mas ora reivindica ruidosamente para si a consciência inteira ora se oculta de modo tão perfeito que nos vemos obrigados a falar de angústia in consciente ou se quisermos ter uma mais limpa consciência Gewissen psicológica já que a angústia é em princípio uma sensação de possibilidade de angústia E por isso é fácil conceber que também a consciência de culpa produzida pela cultura não seja reconhecida como tal permaneça inconsciente ou venha à luz como um malestar uma insatisfação para a qual se busca out ras motivações Pelo menos as religiões não desconheceram jamais o papel do sentimento de culpa na cultura Elas pretendem algo que não considerei em outro lugar31 redimir a humanidade desse sentimento de culpa a que chamam pecado A partir do modo como se atinge essa redenção no cristian ismo com a morte sacrificial de um indivíduo que toma a si a culpa comum a todos inferimos qual poderia ter sido a primeira ocasião em que se adquiriu essa culpa original com a qual também a cultura teve início32 Pode não ser de muita importância mas provavelmente não será supérfluo esclarecermos o sentido de vocábulos como Supereu consciência Gewissen sentimento de culpa necessidade de castigo e 69286 arrependimento que usamos talvez frequentemente de maneira frouxa e intercambiável Todos dizem respeito à mesma coisa mas designam diferentes aspectos dela O Supereu é uma instância explorada por nós a consciência uma das funções que a ele atribuímos a de vigiar os atos e intenções do Eu e de julgar exercendo uma atividade censória O sentimento de culpa a dureza do Supereu é então o mesmo que a severidade da consciência é a percepção que tem o Eu de ser vigiado assim a apreciação da tensão entre os seus es forços e as exigências do Supereu e o medo ante essa instância crítica subja cente à relação inteira a necessidade de castigo é uma expressão instintual do Eu que por influência do Supereu sádico tornouse masoquista ou seja emprega uma parte do instinto para destruição interna nele presente para formar uma ligação erótica com o Supereu Não se deve falar de consciência moral antes de demonstrar a existência de um Supereu quanto à consciência de culpa é preciso admitir que se apresenta antes do Supereu ou seja tam bém antes da consciência moral É então a expressão imediata do medo à autoridade externa o reconhecimento da tensão entre o Eu e esta última o de rivado direto do conflito entre a necessidade do amor dela e o ímpeto de satis fação instintual cuja inibição gera a tendência à agressão A superposição des sas duas camadas do sentimento de culpa uma vindo do medo à autoridade externa outra do medo à interna tornou mais difícil enxergarmos a trama da consciência moral Arrependimento é um nome geral para a reação do Eu num caso de sentimento de culpa contém pouco transformado o material de sensações da angústia que atua por trás é ele mesmo um castigo e pode incluir a necessidade de castigo também ele pode ser mais velho que a consciência moral Não fará nenhum mal passarmos em revista as contradições que por um momento nos confundiram em nossa investigação O sentimento de culpa de via ser em determinado ponto consequência de agressões não realizadas mas em outra ocasião e justamente no seu início histórico o parricídio consequên cia de uma agressão levada a cabo Achamos também a saída para essa 70286 dificuldade O estabelecimento da autoridade interna do Supereu mudou radicalmente a situação Antes o sentimento de culpa coincidia com o arre pendimento nisso observamos que se deve reservar a designação de arre pendimento para a reação após efetivamente haver sido realizada a agressão Depois a diferença entre agressão intencionada e realizada perdeu sua força devido à onisciência do Supereu o sentimento de culpa podia ser gerado tanto por uma violência realmente consumada como todos sabem quanto por uma apenas intencionada como verificou a psicanálise O con flito entre os dois instintos primordiais oriundo da ambivalência produz o mesmo efeito com ou sem mudança na situação psicológica Somos tentados a buscar aí a solução para o enigma da relação variável que o sentimento de culpa mantém com a consciência O sentimento de culpa por arrependimento em virtude da má ação teria de ser sempre consciente aquele por percepção do mau impulso poderia permanecer inconsciente Não é tão simples porém a neurose obsessiva contradiz enfaticamente isso A segunda contradição era que a energia agressiva da qual imaginamos dotado o Supereu apenas dá con tinuidade e mantém para a vida psíquica segundo uma concepção a energia punitiva da autoridade externa enquanto para outra concepção seria antes a nossa própria agressividade que não tendo alcançado aplicação é dirigida contra essa autoridade inibidora A primeira visão parecia adequarse melhor à história a segunda à teoria do sentimento de culpa Uma reflexão mais de morada apagou quase em demasia a oposição aparentemente inconciliável restou de essencial e comum a ambas que se trata de uma agressão deslocada para dentro A observação clínica por sua vez permite distinguir realmente duas fontes para a agressividade atribuída ao Supereu das quais uma ou outra exerce o efeito maior num caso particular mas que em geral atuam conjuntamente Este é o lugar creio para defender seriamente uma concepção que antes sugeri como suposição provisória Na mais recente literatura psicanalítica há 71286 uma predileção pela teoria segundo a qual toda espécie de frustração toda sat isfação instintual contrariada tem ou pode ter por consequência uma elevação do sentimento de culpa33 Acho que reduziremos bastante as dificuldades teóricas se deixarmos isso valer apenas para os instintos agressivos e não se achará muita coisa que vá de encontro a essa hipótese Pois como explicar dinâmica e economicamente que no lugar de uma exigência erótica não cumprida surja um acréscimo do sentimento de culpa Isso parece possível apenas por um rodeio que o impedimento da satisfação erótica desperte um quê de pendor agressivo contra a pessoa que atrapalha a satisfação e que essa agressividade mesma tem de ser suprimida Mas então é somente a agressivid ade que se transforma em sentimento de culpa ao ser suprimida e transmitida para o Supereu Estou convencido de que poderemos expor muitos processos de modo mais simples e transparente se limitarmos aos instintos agressivos o achado da psicanálise relativo à derivação do sentimento de culpa O exame do material clínico não fornece resposta inequívoca neste ponto pois conforme nosso pressuposto as duas espécies de instintos quase nunca aparecem puras isoladas uma da outra mas a apreciação de casos extremos provavelmente apontará na direção que espero Fico tentado a extrair uma primeira vantagem dessa concepção mais rigorosa aplicandoa ao processo de repressão Os sin tomas das neuroses são como vimos essencialmente satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados No curso do trabalho psicanalítico apren demos para nossa surpresa que talvez toda neurose esconda um quê de senti mento de culpa inconsciente que por sua vez fortalece os sintomas ao usálos como castigo Agora é plausível formular a seguinte proposição quando uma tendência instintual sucumbe à repressão seus elementos libidinais se trans formam em sintomas seus componentes agressivos em sentimento de culpa Ainda que seja apenas aproximadamente correta esta frase merece o nosso interesse 72286 Alguns leitores deste trabalho podem achar que ouviram demasiadas vezes a fórmula da luta entre Eros e instinto de morte Ela caracterizaria o processo cultural que se desenrola na humanidade mas referese também ao desenvol vimento do indivíduo e desvendaria além do mais o próprio segredo da vida orgânica Parece indispensável pesquisar as relações que existem entre os três processos A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que o processo cultural da humanidade e o desenvolvimento do indivíduo são tam bém processos vitais e portanto participam da característica mais ampla da vida Por outro lado justamente por isso a constatação desse traço geral não contribui em nada para a diferenciação entre eles enquanto certas condições particulares não vêm delimitálo Só podemos nos tranquilizar então afirm ando que o processo cultural é a modificação que o processo vital experimenta sob influência de uma tarefa colocada por Eros e instigada por Ananke a real necessidade e que essa tarefa consiste na união de indivíduos separados em uma comunidade ligada libidinalmente Mas se olharmos a relação entre o processo cultural da humanidade e o processo de desenvolvimento ou edu cação do indivíduo sem muito hesitar decidiremos que ambos são de natureza muito parecida se não forem o mesmo processo realizado em objetos difer entes Naturalmente o processo cultural do gênero humano é uma abstração de ordem mais alta que o desenvolvimento do indivíduo e portanto mais difícil de apreender vivamente tampouco a busca de analogias deve ser exagerada compulsivamente Mas tendo em vista a semelhança dos fins num caso a integração de um indivíduo num grupo humano no outro a criação de uma unidade coletiva a partir de muitos indivíduos não pode nos surpreender a similaridade dos meios empregados e dos fenômenos advindos Em virtude da sua extraordinária importância não cabe silenciar por mais tempo a respeito de um traço diferenciador dos dois processos No processo de desenvolvimento do indivíduo conservase a principal meta do programa do princípio do prazer achar a satisfação da felicidade e a integração ou adaptação a uma comunidade aparece como uma condição inevitável que se deve cumprir para 73286 alcançar a meta de felicidade Se pudéssemos fazêlo sem esta condição seria talvez melhor Em outros termos o desenvolvimento individual nos aparece como um produto da interferência de duas tendências a aspiração à felicidade que habitualmente chamamos de egoísta e a aspiração à união com outros na comunidade que denominamos altruísta As duas designações não vão muito além da superfície No desenvolvimento individual como foi dito a ên fase cai geralmente na aspiração egoísta ou à felicidade a outra que pode ser chamada cultural contentase via de regra com o papel restritivo É difer ente no processo cultural Nele o principal é de longe a meta de criar uma unidade a partir dos indivíduos humanos a meta da felicidade ainda existe mas é impelida para segundo plano quase parece que a criação de uma grande comunidade humana teria êxito maior se não fosse preciso preocuparse com a felicidade do indivíduo O processo de desenvolvimento individual pode então ter traços especiais que não se repetem no processo cultural humano é apenas na medida em que o primeiro desses processos tem por meta a incorporação na comunidade que ele necessariamente coincide com o segundo Assim como um planeta circula em volta do seu astro central além de rodar em torno do seu próprio eixo também um ser humano participa do curso evol utivo da humanidade enquanto segue o seu caminho de vida Para nossos ol hos obtusos no entanto o jogo de forças do céu parece fixado numa ordem imutável na vida orgânica vemos ainda como as forças lutam entre si e os res ultados do conflito mudam constantemente Assim também as duas tendências a de felicidade individual e a de união com outros seres têm de lutar uma com a outra no interior de cada indivíduo assim os dois processos de evolução in dividual e cultural precisam defrontarse e disputar um ao outro o terreno Mas essa luta entre indivíduo e sociedade não deriva da oposição provavel mente inconciliável entre os dois instintos primevos Eros e Morte significa uma desavença na casa da libido comparável à briga pela distribuição da libido entre o Eu e os objetos e admite um equilíbrio final no indivíduo oxalá 74286 também no futuro da civilização apesar de atualmente dificultarlhe tanto a vida A analogia entre o processo cultural e o desenvolvimento do indivíduo pode ser ampliada num aspecto importante Pois é lícito afirmar que também a comunidade forma um Supereu sob cuja influência procede a evolução cul tural Pode ser uma tarefa atraente para um conhecedor das culturas humanas perseguir em detalhes essa analogia Eu me limitarei a destacar alguns pontos notáveis O Supereu de uma época cultural tem origem semelhante ao de um indivíduo baseiase na impressão que grandes personalidadeslíderes deix aram homens de avassaladora energia espiritual ou nos quais uma das tendên cias humanas achou a expressão mais forte e mais pura e por isso também com frequência a mais unilateral Em muitos casos a analogia vai ainda mais longe na medida em que essas pessoas frequentemente talvez sempre foram durante a vida zombadas maltratadas e mesmo cruelmente eliminadas pelas outras tal como também o pai primevo ascendeu a divindade apenas muito depois de sua morte violenta O mais impressionante exemplo dessa conjunção do destino é justamente a pessoa de Jesus Cristo se porventura não pertence ao reino do mito que a chamou à vida em obscura memória daquele evento primevo Um outro ponto de concordância é que o Supereu da cul tura exatamente como o do indivíduo institui severas exigências ideais cujo não cumprimento é punido mediante angústia de consciência E aqui se produz mesmo o caso curioso de os processos psíquicos em questão serem para nós mais familiares e mais acessíveis à consciência quando vistos no grupo do que podem sêlo no indivíduo Neste apenas as agressões do Supereu no caso de tensão fazemse audíveis como recriminações enquanto as exigências mes mas com frequência ficam inconscientes no segundo plano Se as trazemos para o conhecimento consciente revelase que coincidem com os preceitos do Supereu cultural prevalecente Nesse ponto os dois processos o da evolução cultural da massa e o do indivíduo estão colados um ao outro por assim dizer Daí que não poucas manifestações e características do Supereu podem ser 75286 mais facilmente notadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo O Supereu da cultura desenvolveu seus ideais e elevou suas exigências Entre as últimas as que concernem às relações dos seres humanos entre si são designadas por ética Em todos os tempos as pessoas deram enorme valor a essa ética como se dela esperassem realizações de particular importância De fato a ética se dedica ao ponto facilmente reconhecido como o mais frágil de toda cultura Ela há de ser vista então como tentativa terapêutica como es forço de atingir por um mandamento do Supereu o que antes não se atingiu com outro labor cultural Já sabemos que aqui se coloca o problema de como afastar o maior obstáculo à cultura o pendor constitucional dos homens para a agressão mútua e por isso mesmo nos interessamos especialmente por aquele que é provavelmente o mais jovem dos mandamentos do Supereu cultural o que diz Ama teu próximo como a ti mesmo A investigação e a terapia das neuroses nos levam a sustentar duas objeções contra o Supereu individual Pela severidade dos seus mandamentos e proibições ele se preocupa muito pouco com a felicidade do Eu não levando devidamente em conta as resistên cias ao cumprimento deles a força instintual do Id e as dificuldades do ambi ente real Daí que movidos pela intenção terapêutica frequentemente somos obrigados a combater o Supereu e nos empenhamos em fazer baixarem suas exigências Recriminações idênticas podem ser feitas às reivindicações éticas do Supereu cultural Também este não se preocupa suficientemente com os fatos da constituição psíquica do ser humano emite uma ordem e não se per gunta se é humanamente possível cumprila Supõe isto sim que para o Eu do ser humano é possível psicologicamente tudo aquilo de que o incumbem que o Eu tem domínio irrestrito sobre o seu Id Isto é um erro e também nos cha mados homens normais o controle sobre o Id não pode ir além de certos lim ites Exigindo mais produzimos no indivíduo rebelião ou neurose ou o tor namos infeliz O mandamento Ama teu próximo como a ti mesmo é a mais forte defesa contra a agressividade humana e um belo exemplo do 76286 procedimento antipsicológico do Supereu cultural O mandamento é in exequível uma tão formidável inflação do amor só pode lhe diminuir o valor não eliminar a necessidade A civilização negligencia tudo isso recorda apenas que quanto mais difícil o cumprimento do preceito mais meritório vem a ser ele Mas quem segue tal preceito na civilização atual põese em desvantagem diante daquele que o ignora Que poderoso obstáculo à cultura deve ser a agressividade se a defesa contra ela pode tornar tão infeliz quanto ela mesma A chamada ética natural nada tem a oferecer aqui salvo a satisfação narcísica de o indivíduo poder se considerar melhor do que os outros A ética que se apoia na religião introduz aqui suas promessas de um alémtúmulo melhor Acho que enquanto a virtude não compensar já nesta vida a ética pregará em vão Pareceme também fora de dúvida que uma real mudança nas relações das pessoas com a propriedade será de maior valia neste ponto que qualquer mandamento ético mas entre os socialistas esta compreensão é turvada por um novo desconhecimento idealista da natureza humana e assim tornada sem val or para a aplicação A linha de abordagem que procura estudar nos fenômenos da evolução cul tural o papel de um Supereu me parece prometer ainda outros esclarecimentos Apressome a concluir Mas de uma questão não posso me es quivar Se a evolução cultural tem tamanha similitude com a do indivíduo e trabalha com os mesmos recursos não seria justificado o diagnóstico de que muitas culturas ou épocas culturais ou possivelmente toda a humanidade tornaramse neuróticas por influência dos esforços culturais A dis secação analítica dessas neuroses poderia ser acompanhada de sugestões terapêuticas que reivindicariam muito interesse prático Não posso dizer que uma tentativa dessas de transferência da psicanálise para a comunidade cultur al não teria sentido ou estaria condenada à esterilidade Mas teríamos de ser muito prudentes e não esquecer que se trata apenas de analogias e que não apenas com seres humanos também com conceitos é perigoso retirálos da 77286 esfera em que surgiram e evoluíram O diagnóstico das neuroses da comunid ade também encontra uma dificuldade especial Na neurose individual nos serve de referência imediata o contraste que distingue o enfermo de seu ambi ente tido como normal Tal pano de fundo não existe para um grupo igual mente afetado teria que ser arranjado de outra forma E no que diz respeito à aplicação terapêutica da compreensão de que adiantaria a mais pertinente an álise da neurose social se ninguém possui a autoridade para impor ao grupo a terapia Apesar de todas essas dificuldades podese esperar que um dia al guém ouse empreender semelhante patologia das comunidades culturais Está longe de mim pelos motivos mais diversos fazer uma avaliação da cultura humana Esforceime para manter distância do preconceito entusiasta segundo o qual nossa civilização é o que temos ou podemos ter de mais pre cioso e sua trilha nos levará necessariamente a alturas de insuspeitada per feição Posso ao menos escutar sem indignação o crítico que acha que tendo em conta os fins do empenho cultural e os meios de que se utiliza deveríamos chegar à conclusão de que o empenho todo não vale a pena e o resultado pode ser tão só uma condição intolerável para o indivíduo Facilita a minha impar cialidade o fato de saber muito pouco sobre tudo isso de saber apenas uma coisa com certeza que os juízos de valor dos homens são inevitavelmente gov ernados por seus desejos de felicidade e que portanto são uma tentativa de escorar suas ilusões com argumentos Eu entenderia muito bem quem desta casse o caráter forçoso da cultura humana e dissesse por exemplo que a in clinação a limitar a vida sexual ou a impor o ideal humanitário à custa da seleção natural é uma direção evolutiva que não pode ser desviada nem evitada ante a qual é melhor curvarse como se fosse uma necessidade da natureza Conheço também a objeção a isso a de que tendências tidas por in superáveis foram frequentemente na história da humanidade postas de lado e substituídas por outras Assim me falta o ânimo de apresentarme aos semel hantes como um profeta e me curvo à sua recriminação de que não sou capaz 78286 de lhes oferecer consolo pois no fundo é isso o que exigem todos tanto os mais veementes revolucionários como os mais piedosos crentes de forma igualmente apaixonada A meu ver a questão decisiva para a espécie humana é saber se e em que medida a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição Precis amente quanto a isso a época de hoje merecerá talvez um interesse especial Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o úl timo homem Eles sabem disso daí em boa parte o seu atual desassossego sua infelicidade seu medo Cabe agora esperar que a outra das duas potências celestiais o eterno Eros empreenda um esforço para afirmarse na luta contra o adversário igualmente imortal Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace 1 Liluli 1923 1919 Desde a publicação dos livros La vie de Ramakrishna e La vie de Vivekananda 1930 não preciso mais esconder que o amigo de que falo no texto é Romain Rolland Nota acrescentada em 1931 2 Christian Dietrich Grabbe Hannibal Ja aus der Welt werden wir nicht fallen Wir sind ein mal darin Sim para fora do mundo não cairemos Simplesmente estamos nele Tradução literal do verbo konstruieren aqui empregado no sentido figurado de traçar es boçar conceber o substantivo correspondente aparece no título de um dos últimos textos de Freud Konstruktionen in der Analyse 1937 e na citação que ele faz do romancista Theodor Fontane algumas páginas adiante Das versões estrangeiras consultadas três adotam essa mesma solução a argentina a italiana e a Standard inglesa enquanto duas preferem recon struir a espanhola de Rey Ardid Biblioteca Nueva e a inglesa de Joan Riviere no vol 54 de Great Books of the Western World e a francesa de Odier traz reconstituer As notas chamadas por asterisco e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As notas do autor são sempre numeradas 79286 3 Ver os numerosos trabalhos sobre desenvolvimento do Eu e sentimento do Eu desde Entwicklungsstufen des Wirklichkeitssinnes Estágios no desenvolvimento do sentido da realidade 1913 de Ferenczi até as contribuições de Paul Federn em 1926 1927 e depois 4 Segundo The Cambridge ancient history v vii 1928 The founding of Rome por Hugh Last Es freue sich Wer da atmet im rosigen Licht Schiller Der Taucher O mergulhador 5 Wer Wissenschaft und Kunst besitzt hat auch Religion Wer jene beiden nicht besitzt der habe Religion Goethe Zahmen Xenien ix Gedichte aus dem Nachlass No original Es geht nicht ohne Hilfskontruktionen a frase se acha no mais célebre romance de Fontane cujo título é o nome da protagonista Effi Briest 1895 6 Em Die Fromme Helene Wilhelm Busch diz a mesma coisa de maneira mais chã Wer Sorgen hat hat auch Likör Quem tem pesares tem também licores Zweckdienlichkeit no original tratase de uma substantivação do adjetivo zweckdienlich que significa útil ou adequado dienlich a um determinado fim Zweck Nas versões estrangeiras consultadas encontramos adecuación y eficiencia carácter acorde a fines efficacia utilité effi ciency efficacy Além daquelas normalmente utilizadas as duas em espanhol a italiana e a Standard inglesa dispusemos de uma antiga versão francesa Malaise dans la civilisation Par is puf 1971 trad Ch e J Odier e da pioneira tradução inglesa de Joan Riviere Civilization and its discontents de 1930 reproduzida em Great books of the Western world vol 54 Chicago Encyclopaedia Britannica 1952 7 Goethe chega a advertir Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos Mas isso pode ser um exagero Freud utiliza entre aspas uma expressão coloquial para a bebida alcoólica Sorgenbrecher lit eralmente quebrador de preocupações Nessa frase os termos Triebregung aqui vertido por impulso instintual e Trieb aqui traduzido por instinto são claramente usados como sinônimos 80286 8 Não havendo uma disposição especial que prescreva imperiosamente a direção dos interesses vitais de alguém o trabalho acessível a todos pode ocupar o lugar que lhe é proposto pelo sá bio conselho de Voltaire Não é possível nos limites de um panorama sucinto examinar satis fatoriamente a importância do trabalho para a economia libidinal Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à realidade como a ênfase no trabalho que no mínimo a insere de modo seguro numa porção da realidade na comunidade humana A possibilidade que oferece de deslocar para o trabalho e os relacionamentos humanos a ele lig ados uma forte medida de componentes libidinais narcísicos agressivos e mesmo eróticos emprestalhe um valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a afirmação e justificação da existência na sociedade A atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente isto é quando permite tornar úteis através da sublimação pen dores existentes impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados E no en tanto o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade As pessoas não se lançam a ele como a outras possibilidades de gratificação A imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade e graves problemas sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho 9 Cf Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico 1911 e a 23a das Conferências introdutórias à psicanálise 1917 10 Sinto que devo apontar ao menos uma das lacunas da exposição acima Uma consideração das possibilidades humanas de felicidade deveria levar em conta a relação do narcisismo com a libido objetal Necessitamos saber o que significa para a economia libidinal depender essencial mente de si mesma 11 Ver O futuro de uma ilusão 1927 No original Kultur termo que consta no título deste ensaio Em alemão também existe Zivilisation mas seria um simplismo verter automaticamente os dois termos por cultura e civilização em português pois o campo semântico ou conjunto de sentidos de cada um deles não é idêntico nas duas línguas e pode variar até mesmo no interior de uma delas de acordo com a época Assim em determinado período consideravase Kultur algo interior pro fundo germânico numa concepção devedora do romantismo alemão diferentemente de Zivilisation que seria algo externo superficial francês Talvez seja a essa oposição que Freud se refere ao afirmar em O futuro de uma ilusão que se recusa a distinguir entre Kultur e 81286 Zivilisation Para chegar aos sentidos de um termo é preciso verificar os contextos em que é usado o significado se depreende do uso Neste texto Kultur é empregado muitas vezes para designar o que chamamos de civilização ou seja uma cultura onde há enorme desen volvimento das instituições técnicas e artes e algumas vezes para designar cultura num sen tido mais antropológico digamos sendo que em várias ocasiões os termos são intercambiáveis Portanto o leitor também encontrará cultura no texto Nas versões estrangeiras consultadas os tradutores recorreram geralmente a civilização para verter o título com exceção do sempre literal argentino que preferiu cultura e do italiano que dispõe do singular vocábulo civiltà que não é exatamente civilizzazione nem cultura Já o adjetivo kulturell é aqui normal mente vertido por cultural e a solução encontrada para Kulturmensch foi homem civiliz ado Acrescentemos que a tradução do título deste ensaio foi objeto de um pequeno debate em 1930 quando ia ser publicada a versão inglesa de Joan Riviere O problema era achar um equi valente para Unbehagen pois não havia dúvidas quanto a civilization para Kultur Pensouse em unease malaise discontent desgosto insatisfação Freud sugeriu Mans dis comfort in civilization mas finalmente foi adotada a solução da tradutora Civilization and its discontents título que permanece até hoje cf Peter Gay Freud a life for our time Nova York Norton 1988 p 552n ed brasileira Freud uma vida para o nosso tempo São Paulo Compan hia das Letras 1989 trad Denise Bottmanns No original innere Einsichten nas traduções consultadas intuiciones profundas intelecciones internas intimi convincimenti intuitions profondes inner attitudes inner discernments Não util izamos o adjetivo internas ou interiores porque seria redundante junto a intuições a versão que aqui demos a Einsichten 12 Algum material psicanalítico incompleto de interpretação não inteiramente segura permite ao menos uma conjectura que parece fantástica acerca da origem dessa proeza humana É como se o homem primitivo estivesse habituado ao se deparar com o fogo a satisfazer nele um prazer infantil apagandoo com seu jato de urina Segundo as lendas que possuímos não há dúvida quanto à concepção fálica original da flama que se ergue para o alto em labareda Apagar o fogo urinando algo a que também recorrem depois os gigantes Gulliver em Lili put e Gargântua de Rabelais era então como que um ato sexual com um homem uma fruição da potência masculina numa disputa homossexual Quem primeiro renunciou a este prazer poupando o fogo pôde leválo consigo e colocálo a seu serviço Ao amortecer o fogo de sua própria excitação sexual havia domado a força natural do fogo Essa grande conquista cultural seria então o prêmio por uma renúncia instintual Além disso é como se a mulher 82286 fosse designada a guardiã do fogo aprisionado no lar pois a sua construção anatômica lhe proíbe ceder à tentação desse prazer É também digna de nota a regularidade com que a exper iência analítica atesta a relação entre fogo ambição e erotismo uretral Literalmente ó polegada da natureza A expressão de sotaque shakespeareano não se acha em Shakespeare de acordo com Strachey mas no romance de um contemporâneo do po eta George Wilkins Freud a teria lido numa citação do crítico dinamarquês Georg Brandes Rei Sol isto é Luís xiv É interessante notar que a palavra alemã aqui vertida por móvel é Triebfeder que tem o conhecido Trieb entre seus componentes e que quando se refere a um mecanismo relógio por exemplo é traduzida por mola Nas versões consultadas achamos resorte nas duas em espanhol molla ressort the force behind motive force Vorgang no original Cabe lembrar que o termo alemão admite os significados de processo e de evento Algumas linhas acima foi naturalmente vertido por processo o termo Prozess de sentido inequívoco 13 Ver Caráter e erotismo anal 1908 e numerosas contribuições de Ernest Jones e outros 14 A periodicidade orgânica do processo sexual foi mantida mas o seu efeito na excitação psíquica reverteu no oposto Essa mudança está ligada antes de tudo à retração dos estímulos olfativos através dos quais o processo de menstruação atuava sobre a psique masculina O seu papel foi assumido por excitações visuais que contrastando com os estímulos olfativos inter mitentes podiam ter um efeito permanente O tabu da menstruação deriva dessa repressão or gânica como defesa contra uma fase de desenvolvimento superada todas as outras mo tivações são provavelmente secundárias cf C D Daly Hindumythologie und Kastration skomplex Imago v 13 1927 Este processo se repete em outro nível quando os deuses de uma era cultural ultrapassada se tornam demônios Mas a retração dos estímulos olfativos parece consequência do afastamento do ser humano da terra da decisão de andar ereto que fez os genitais até então escondidos ficarem visíveis e necessitados de proteção despertando assim o pudor No começo do decisivo processo de civilização estaria portanto a adoção da postura ereta pelo homem O encadeamento parte daí através da depreciação dos estímulos olfativos e do isolamento da menstruação até a preponderância dos estímulos visuais a visibilidade que obtêm os órgãos genitais chegando à continuidade da excitação sexual à fundação da família e com isso ao limiar da cultura humana Esta é apenas uma especulação teórica mas de 83286 importância suficiente para justificar uma averiguação exata do modo de vida dos animais próximos ao homem Também é inequívoca a presença de um fator social no esforço cultural pela limpeza que acha uma justificação posterior em considerações higiênicas mas já se manifestava antes delas O impulso à limpeza vem do afã para eliminar os excrementos que se tornaram desagradáveis à percepção sensorial Sabemos que é diferente com os bebês Os excrementos não despertam neles aversão parecemlhes valiosos uma parte que se desprendeu do seu próprio corpo Nisso a educação intervém com particular energia apressando o estágio seguinte do desenvol vimento que deve tornar os excrementos sem valor repugnantes nojentos e condenáveis Tal inversão de valor não seria possível caso essas substâncias expelidas do corpo não fossem con denadas por seus fortes odores a partilhar o destino reservado aos estímulos olfativos depois que o ser humano adotou a postura ereta Portanto o erotismo anal sucumbe primeiramente à repressão orgânica que abriu o caminho para a cultura O fator social que cuida da posteri or transformação do erotismo anal mostrase no fato de que não obstante todos os progressos evolutivos do ser humano dificilmente ele acha repulsivo o cheiro de suas próprias fezes apenas o daquelas de outras pessoas Quem é sujo isto é quem não esconde os próprios excre mentos ofende o outro não demonstra respeito por ele o que também é confirmado pelos mais fortes e mais usuais xingamentos Pois seria incompreensível o fato de o homem utilizar o nome do seu mais fiel amigo no reino animal como termo de insulto se o cachorro não provo casse o desprezo por duas características ser um animal de olfato que não tem horror aos ex crementos e não se envergonhar de suas funções sexuais O adjetivo aqui empregado no original é ökonomisch diferente daquele usado pouco antes e traduzido da mesma forma wirtschaftlich Este tem apenas o sentido comum da palavra em português enquanto o primeiro pode também adquirir em Freud o significado técnico de algo referente à economia psíquica como por exemplo no título O problema econômico do masoquismo de 1924 não é o que ocorre no presente contexto porém 15 Entre as obras do sensível escritor inglês John Galsworthy que atualmente goza do recon hecimento geral há um conto que logo apreciei intitulado The appletree A macieira Ele mostra convincentemente como na vida do homem civilizado de hoje não há mais lugar para o amor simples e natural entre duas criaturas 16 Eis algumas observações em apoio da conjectura acima Também o homem é um animal de inequívoca disposição bissexual O indivíduo corresponde à fusão de duas metades simétricas 84286 das quais uma é puramente masculina e a outra puramente feminina na opinião de vários pesquisadores É igualmente possível que cada metade fosse originalmente hermafrodita A sexualidade é um fato biológico que embora de significação extraordinária para a vida psíquica é psicologicamente difícil de apreender Estamos habituados a dizer que cada pessoa mostra impulsos instintuais necessidades características tanto masculinas como femininas a natureza do masculino ou feminino porém pode ser indicada pela anatomia mas não pela psicologia Para esta a oposição dos sexos empalidece ante aquela entre atividade e passivid ade na qual identificamos precipitadamente a atividade com a masculinidade e a passividade com a feminilidade o que de maneira nenhuma se confirma invariavelmente no reino animal Muita coisa ainda não é clara na teoria da bissexualidade e na psicanálise só podemos ver como um contratempo o fato de não se ter ainda achado conexão entre ela e a teoria dos instintos Como quer que seja se tomamos como verdadeiro que na sua vida sexual o indivíduo quer sat isfazer tanto os desejos masculinos como os femininos estamos preparados para a possibilidade de que essas exigências não sejam cumpridas pelo mesmo objeto e que interfiram umas com as outras quando não se consegue mantêlas separadas e conduzir cada impulso por uma trilha especial apropriada para ele Outra dificuldade vem de que frequentemente se junta à relação erótica além dos seus próprios componentes sádicos um quê de inclinação direta à agressão O objeto amoroso nem sempre vai encarar essas complicações com o entendimento e a tolerân cia da camponesa que reclamou de que seu marido não mais a amava porque há uma semana não a espancava A conjectura que nos leva mais fundo porém é a que retoma as observações feitas na nota 14 p 61 de que com a postura ereta do homem e a depreciação do sentido do olfato não apen as o erotismo anal mas também toda a sexualidade ameaçou tornarse vítima da repressão or gânica de modo que desde então a função sexual é acompanhada de uma repugnância inex plicável de outra forma que impede uma satisfação plena e impele para longe da meta sexual rumo a sublimações e deslocamentos da libido Sei que Bleuler certa vez em Der Sexual widerstand A resistência sexual Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen v 5 1913 chamou a atenção para a existência de uma atitude assim de rejeição primária da vida sexual Todos os neuróticos e muitos além deles chocamse com o fato de que Inter urinas et faeces nascimur Nascemos entre fezes e urina Também os genitais produzem fortes sensações olfativas que para muitas pessoas são intoleráveis e lhes estragam as relações sexuais Assim teríamos que a mais profunda raiz da repressão sexual que acom panha a cultura é a defesa orgânica da nova forma de vida adquirida com a postura ereta con tra a anterior existência animal um resultado da investigação científica que de maneira notável 85286 coincide com preconceitos banais frequentemente expressos Todavia por enquanto estas são apenas possibilidades incertas não consolidadas pela ciência Tampouco devemos esquecer que apesar da inegável depreciação dos estímulos olfativos mesmo na Europa existem povos que valorizam como estimulantes da sexualidade os odores genitais que nos repugnam e não querem renunciar a eles Ver as informações folclóricas obtidas no questionário de Iwan Bloch Über den Geruchssinn in der vita sexualis Sobre o sentido do olfato na vita sexual is em diversos volumes da Anthroprophytea de Friedrich S Krauss 17 Um grande escritor pode se permitir expressar de modo brincalhão pelo menos ver dades psicológicas severamente contidas É assim que Heinrich Heine confessa Tenho a mais pacífica disposição Meus desejos são uma modesta cabana com teto de palha mas uma boa cama boa comida leite e manteiga bem frescos flores diante da janela em frente à porta algu mas belas árvores e se o bom Deus quiser me tornar inteiramente feliz me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos serem enforcados nessas árvores De coração tocado eu lhes perdoarei em sua morte todo o mal que na vida me fizeram pois devemos perdoar nossos inimigos mas não antes de serem executados Heine Gedanken und Einfälle Migração dos povos Völkerwanderung como os alemães designam o que os não alemães denominam invasões dos bárbaros e obriga a civilização a seus grandes dispêndios und die Kultur zu ihrem Aufwand nötigt damos aqui uma tradução literal da palavra Aufwand Strachey também usa expenditure mas acrescenta of energy entre colchetes Etcheverry faz o mesmo e a versão italiana diz un grande dispendio di energia Algumas traduções anteriores apresentam variações uma dela equivocada despliegue de preceptos Rey Ardid tant defforts Odier high demands Riviere 18 Quem na sua juventude viveu as desgraças da pobreza e experimentou a indiferença e ar rogância dos abastados deveria estar a salvo da suspeita de não ter compreensão e boa vontade para com os esforços de combater a desigualdade material entre os homens e tudo o que dela deriva No entanto se esta luta invocar a igualdade entre os homens como exigência abstrata de justiça é fácil objetar que a natureza dotando os indivíduos de aptidões físicas e talentos in telectuais bastante desiguais introduziu injustiças contra as quais não há remédio Em O tabu da virgindade 1918 a terceira das Contribuições à psicologia do amor 19 Ver Psicologia das massas e análise do Eu 1921 86286 20 A oposição que aí surge entre a incansável tendência expansiva de Eros e a natureza em geral conservadora dos instintos é algo que chama a atenção e que pode vir a ser ponto de partida para outras indagações No original Denn die Kindlein Sie hören es nicht gerne Segundo Strachey tratase de uma citação do poema Die Ballade vom vertriebenen und heimgekehrten Grafen Balada do conde banido que retornou de Goethe citação inexplícita pois Freud não usa aspas Strachey acrescentouas na edição inglesa 21 Bastante convincente é a identificação do princípio mau com o instinto de destruição no Mefistófeles de Goethe Denn alles was entsteht Ist wert daß es zu Grunde geht So ist denn alles was Ihr Sünde Zerstörung kurz das Böse nennt Mein eigentliches Element tudo o que vem a ser É digno só de perecer Por isso tudo a que chamais Pecado destruição o mal Meu elemento é integral O próprio Diabo não designa o que é sagrado o bom como seu adversário mas a energia da natureza em procriar em multiplicar a vida Eros portanto Der Luft dem Wasser wie der Erden Entwinden tausend Keime sich Im Trocknen Feuchten Warmen Kalten Hättich mir nicht die Flamme vorbehalten Ich hätte nichts Aparts für mich Da terra da água e mais dos ares Brotam os germes aos milhares No seco frio úmido quente Se não me fosse a chama reservada Pra mim não restaria nada Fausto Primeira Parte cena 3 trad Jenny Klabin Segall São Paulo Nacional sd 22 Nossa atual concepção pode ser expressa de modo aproximado dizendo que em toda mani festação instintual há libido mas nem tudo nela é libido 23 Provavelmente especificando tal como teve de se configurar a partir de um determinado acontecimento ainda a ser descoberto 87286 Referência a um verso de Heinrich Heine em Deutschland Ein Wintermärchen Alemanha Um conto de inverno 1844 Caput i Gewissen no original Recordemos que a palavra portuguesa pode significar duas coisas a percepção que o indivíduo tem de seus atos e sentimentos e a capacidade de fazer distinções morais em alemão se usa Bewußtsein no primeiro caso e Gewissen no segundo É possível re correr a uma paráfrase consciência moral para verter Gewissen No original Angst que designa tanto medo como angústia O leitor deve ter isso presente ao deparar com um desses dois termos em traduções do alemão 24 Recordemos o célebre mandarim de Rousseau Cf Considerações atuais sobre a guerra e a morte 1916 25 Todo espírito lúcido compreenderá e levará em conta que nessa breve exposição é separado nitidamente o que na realidade sucede em transições graduais e que não se trata apenas da ex istência de um Supereu mas de sua relativa força e esfera de influência Tudo o que até agora se disse sobre consciência Gewissen e culpa é de conhecimento geral e praticamente incontestado 26 Esse reforço da moral através do infortúnio é tratado por Mark Twain num delicioso conto The first melon I ever stole O primeiro melão que roubei na vida Por acaso esse primeiro melão não está maduro Assisti ao próprio Mark Twain lendo em público esse conto Depois de anunciar o título ele parou e perguntou a si mesmo como se estivesse em dúvida Was it the first Com isso já dizia tudo O primeiro não foi o único 27 Como foi corretamente destacado por Melanie Klein e outros autores estes ingleses 28 Os dois tipos principais de métodos patogênicos de educação a severidade e a tolerância ex cessivas foram pertinentemente avaliados por Franz Alexander em Psychoanalyse der Gesamtpersönlichkeit Psicanálise da personalidade total 1927 retomando o estudo de Aich horn sobre a juventude abandonada O pai brando e indulgente além da conta favorece na criança a formação de um Supereu demasiado rigoroso porque sob a impressão do amor que recebe esse filho não terá outra alternativa para a sua agressividade que não voltála para den tro Quanto ao abandonado o que foi educado sem amor nele não há tensão entre Eu e Super eu toda a sua agressividade pode se dirigir para fora Então abstraindo um fator constitucional que se supõe existir podese dizer que a consciência severa tem origem na atuação conjunta de 88286 duas influências vitais a frustração do instinto que desencadeia a agressividade e a experiên cia do amor que volta essa agressividade para dentro e a transfere para o Supereu 29 Goethe Canções do harpista em Wilhelm Meister no original Ihr führt ins Leben uns hinein Ihr lasst den Armen schuldig werden Dann überlässt Ihr ihn der Pein Denn jede Schuld rächt sich auf Erden Não há espaço de uma linha vazia entre esse parágrafo e o anterior na edição alemã utilizada Gesammelte Werke Mas considerando que faz sentido um espaço nesse ponto e que ele se acha numa edição alemã mais recente Studienausgabe resolvemos incorporálo aqui e em alguns outros lugares 30 Assim a consciência nos torna a todos covardes Hamlet ato iii cena 1 O fato de ocultar ao jovem o papel que a sexualidade terá em sua vida não é a única recriminação que se deve fazer à educação atual Ela também peca em não preparálo para a agressividade de que ele certamente será objeto Ao soltar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão in correta a educação age como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos Tornase aí evidente um certo abuso das exigências éticas A severidade destas não prejudicaria muito caso a educação dissesse Assim deveriam ser os ho mens para serem felizes e tornarem os outros felizes mas é preciso ter em conta que eles não são assim Em vez disso fazem o jovem acreditar que todos os demais cumprem as pre scrições éticas que são virtuosos Nisso é fundamentada a exigência de que ele também o seja 31 Refirome a O futuro de uma ilusão 1927 32 Totem e tabu 1912 33 Particularmente em Ernest Jones Susan Isaacs Melanie Klein mas também segundo en tendo em Reik e Alexander Na Standard inglesa há um pequeno erro nessa última oração however much that civiliz ation may oppress the life of the individual today lêse ali se xxi p 141 Mas o pronome usado por Freud nesse trecho er diz respeito a der Kampf a luta não a die Kultur a civil ização como entendeu Strachey 89286 NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 1933 TÍTULO ORIGINAL NEUE FOLGE DER VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIE PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO VIENA INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL 1933 255 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XV PP 1197 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE I PP 447608 PREFÁCIO As Conferências introdutórias à psicanálise foram proferidas nos semestres de in verno de 191516 e 191617 numa sala da Clínica Psiquiátrica de Viena para uma plateia de ouvintes de todas as Faculdades A primeira metade das confer ências foi improvisada e redigida imediatamente depois as da segunda metade foram esboçadas no verão durante uma estação de férias em Salzburgo e pro feridas fielmente no inverno seguinte Naquele tempo eu ainda possuía o dom de uma memória fonográfica À diferença daquelas estas novas conferências não foram jamais proferidas Nesse meiotempo a idade me havia dispensado da obrigação de evidenciar mediante conferências que eu pertencia ainda que perifericamente à universidade e uma operação cirúrgica havia me inutilizado como orador Portanto é somente por um artifício da imaginação que eu me coloco nova mente num auditório nas exposições que se seguem Isso pode me ajudar a não perder de vista o leitor ao aprofundar o assunto Estas novas conferências não pretendem de maneira nenhuma tomar o lugar das anteriores Elas não constituem algo independente que possa esperar ter um círculo próprio de leitores sendo antes continuações e complementos que na relação com as anteriores dividemse em três grupos Num primeiro grupo estão novas abordagens de temas que já foram tratados quinze anos at rás mas que devido ao aprofundamento de nossas descobertas e à mudança em nossas concepções exigem agora uma apresentação diversa são revisões críticas portanto Os outros dois grupos contêm as ampliações propriamente ditas tratando de coisas que na época das primeiras conferências ou não exis tiam na psicanálise ou estavam muito pouco presentes para merecer todo um título de capítulo Não há como evitar nem por que lamentar que algu mas das novas conferências reúnam características desses e daquele grupo A dependência destas novas conferências para com as primeiras também se manifesta no fato de continuarem sua numeração A primeira deste volume é chamada de 29a Como as anteriores pouco oferecem de novo ao analista profissional dirigindose ao grande número de pessoas cultas às quais atribuí mos um interesse benévolo ainda que reservado pelas peculiaridades e as conquistas da jovem ciência Mas também nisso a intenção que me guiou foi nada sacrificar a uma aparência de simplicidade completude e unidade não ocultar problemas não negar a existência de lacunas e incertezas Em nenhum outro campo de trabalho científico alguém poderia se gabar de propósitos as sim tão sóbrios e modestos Em toda parte são tidos como evidentes o público não espera outra coisa Nenhum leitor de uma obra de astronomia se sentirá decepcionado nem desdenhará a ciência se lhe forem mostrados os limites em que nosso conhecimento do universo se desfaz em névoas Apenas com a psicologia é diferente nela a constitucional inaptidão humana para a busca científica se revela em plena medida Parece que da psicologia não se exige progresso no saber mas alguma outra satisfação todo problema não resolvido toda incerteza confessa é transformada em recriminação a ela Quem ama a ciência da vida psíquica terá de aceitar também essas durezas viena verão de 1932 freud 29 REVISÃO DA TEORIA DO SONHO Senhoras e senhores Após um intervalo de mais de quinze anos chameios novamente para verificarmos o que esse período trouxe de coisas novas talvez também melhores na psicanálise então é justo e razoável de mais de um ponto de vista que voltemos nossa atenção primeiramente para a teoria dos 92286 sonhos Ela tem lugar especial na história da psicanálise designa um ponto de virada com ela a psicanálise fez a passagem de procedimento psicoterapêutico a psicologia da profundidade Desde então a teoria do sonho é o que há de mais característico e próprio na jovem ciência algo para o qual não existe con trapartida no restante de nosso saber um pedaço de terra nova subtraído à crença popular e ao misticismo A estranheza das afirmações que ela teve de fazer conferiulhe a função de um xibolete cujo emprego decidia quem se tor nava um seguidor da psicanálise e quem não conseguia apreendêla Para mim mesmo ela foi um amparo seguro naqueles tempos difíceis em que os fatos desconhecidos da neurose costumavam nublar meu inexperiente juízo Sempre que eu começava a ter dúvidas sobre a validez dos meus hesitantes conheci mentos quando tinha sucesso em transformar um sonho confuso e sem nexo num claro e inteligível processo psíquico daquele que sonhou renovavase minha confiança de estar na trilha certa Logo para nós há um interesse especial em acompanhar no caso da teoria dos sonhos as mudanças que a psicanálise sofreu nesse intervalo por um lado e os progressos havidos em sua compreensão e avaliação pelos contem porâneos por outro lado Já lhes digo que ficarão decepcionados nos dois aspectos Vamos folhear a coleção da Internationale Zeitschrift für ärztliche Psycho analyse Revista Internacional de Psicanálise Médica em que desde 1913 são reunidos os trabalhos de ponta em nossa área de estudo Nos primeiros volumes vocês acharão uma rubrica permanente intitulada Sobre a inter pretação dos sonhos com substanciais contribuições a diferentes temas da teoria dos sonhos Quanto mais progredirem porém mais raras se tornam es sas contribuições e afinal desaparece a rubrica permanente Os analistas se comportam como se nada mais tivessem a dizer sobre a teoria dos sonhos como se ela estivesse concluída Mas se vocês perguntarem o que foi aceito da interpretação dos sonhos por aqueles de fora os muitos psiquiatras e 93286 psicoterapeutas que esquentam seu guisado em nosso fogo sem muita gratidão por nossa hospitalidade aliás as chamadas pessoas instruídas que costumam assimilar as descobertas mais palpáveis da ciência os literatos e o grande público então a resposta é pouco satisfatória Algumas fórmulas se tor naram conhecidas entre elas umas que jamais defendemos como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual mas coisas importantes como a funda mental distinção entre conteúdo onírico manifesto e pensamentos oníricos lat entes a percepção de que os sonhos angustiantes não contrariam a função de satisfazer desejos do sonho a impossibilidade de interpretar um sonho quando não temos as devidas associações daquele que sonha mas sobretudo o recon hecimento de que o essencial no sonho é o processo do trabalho do sonho tudo isso parece ainda tão alheio à consciência geral como trinta anos atrás Posso afirmar isso porque durante esse tempo recebi um bom número de cartas cujos remetentes contavam seus sonhos para interpretação ou pediam informações sobre a natureza do sonho que diziam haver lido a Interpretação dos sonhos e no entanto em cada sentença revelavam sua incompreensão de nossa teoria Isso não nos impedirá de mais uma vez apresentar sinteticamente o que sabemos sobre os sonhos Vocês se lembram que da vez anterior util izamos várias conferências para mostrar como viemos a compreender esse fenômeno psíquico até então inexplicado Digamos que alguém um paciente em análise por exemplo nos relata um de seus sonhos Nós supomos que desse modo ele faz uma das comu nicações que se comprometeu a fazer iniciando um tratamento psicanalítico Uma comunicação com meios inadequados é certo pois o sonho não é uma expressão social um meio de entendimento Não compreendemos o que ele quer dizer e ele próprio não sabe o que é Então temos que tomar rapidamente uma decisão ou o sonho como nos asseguram os médicos que não são psican alistas é um indício de que a pessoa dormiu mal de que nem todas as partes do seu cérebro descansaram igualmente de que alguns pontos quiseram continuar 94286 trabalhando sob a influência de estímulos desconhecidos e só puderam fazêlo de modo bastante incompleto Se assim for será correto não nos ocuparmos mais do produto psiquicamente sem valor da perturbação noturna pois o que tal pesquisa traria de útil para nossos propósitos Ou então perce bemos que desde o início já decidimos de outra forma Fizemos o pressuposto adotamos o postulado bem arbitrariamente devese admitir de que tam bém esse sonho incompreensível teria de ser um ato psíquico inteiramente válido de sentido e valor plenos que podemos usar como qualquer outra comunicação na análise Somente o resultado da tentativa pode mostrar se es tamos certos Se conseguirmos transformar o sonho numa expressão valiosa desse tipo teremos a perspectiva de aprender algo novo de obter comu nicações de um tipo que para nós de outra forma continuaria inacessível Agora surgem as dificuldades de nossa tarefa e os enigmas de nosso tema Como fazemos para transformar o sonho numa comunicação normal e como explicamos que uma parte das manifestações do paciente tenha assumido essa forma incompreensível para ele e para nós Como veem senhoras e senhores desta vez eu não tomo o caminho de uma exposição genética mas sim dogmática O primeiro passo é estabelecer nossa nova atitude ante o problema do sonho introduzindo dois novos conceitos dois novos nomes Ao que se denominou sonho chamamos de texto do sonho ou sonho manifesto e àquilo que buscamos conjecturamos por trás do sonho por assim dizer de pensamentos oníricos latentes Então podemos enunciar nossas duas tarefas da seguinte forma temos que transformar o sonho manifesto no sonho latente e indicar como na psique do sonhador esse último tornouse aquele A primeira parte é uma tarefa prática cabe à interpretação do sonho necessita de uma técnica a segunda é teórica deve esclarecer o processo suposto do trabalho onírico e pode ser somente uma teoria As duas tanto a téc nica da interpretação dos sonhos como a teoria do trabalho do sonho têm de ser criadas 95286 Com qual parte devemos começar Com a técnica da interpretação dos sonhos creio terá maior efeito e lhes fará uma impressão mais viva Então o paciente relatou um sonho e devemos interpretálo Ouvimos calmamente sem ativar nossa reflexão Que fazer em seguida Resolver nos ocupar o mínimo possível do que acabamos de ouvir do sonho manifesto Sem dúvida este sonho manifesto exibe todo tipo de característica que não é total mente indiferente para nós Pode ser coerente polidamente composto feito uma criação poética ou incompreensivelmente confuso quase como um delírio pode ter elementos absurdos ou gracejos e conclusões aparentemente espirituosas pode parecer claro e bem definido para quem sonha ou turvo e borrado suas imagens terão a plena força sensorial das percepções ou serão vagas como uma névoa indistinta as mais diversas características podem se achar no mesmo sonho distribuídas em lugares diferentes o sonho pode en fim apresentar um tom emocional indiferente ou ser acompanhado das sensações mais alegres ou mais dolorosas não pensem que desdenhamos essa infinita diversidade do sonho manifesto depois retornaremos a ela e en contraremos muita coisa útil para a interpretação mas agora vamos ignorála e tomar a via principal que leva à interpretação Ou seja pedimos ao sonhador que também se liberte da impressão do sonho manifesto que tire sua atenção do conjunto e a dirija para os elementos do conteúdo do sonho e nos comu nique o que lhe ocorre a respeito de cada um desses elementos um após o outro que associações lhe vêm quando os examina separadamente Uma técnica singular não é verdade Não é o modo tradicional de lidar com uma comunicação ou manifestação Certamente vocês já adivinham que por trás desse procedimento se escondem premissas que ainda não foram expli citadas Mas continuemos Em que ordem fazemos o paciente abordar as difer entes partes de seu sonho Há vários caminhos possíveis Podemos simples mente seguir a ordem cronológica tal como ela se deu no relato do sonho Este é digamos o método mais rigoroso clássico Ou podemos orientar o 96286 sonhador para buscar primeiro os restos diurnos do sonho pois a experiência nos ensina que quase todo sonho inclui um resíduo de lembrança ou uma alusão a um evento frequentemente a vários do dia anterior ao sonho e quando seguimos tais ligações muitas vezes damos com a passagem do mundo onírico aparentemente remoto para o mundo real do paciente Ou lhe dizemos para iniciar com os elementos do conteúdo do sonho que mais o impressionam pela nitidez e intensidade Sabemos que lhe será bastante fácil ter associações a partir deles Não faz diferença por qual dessas duas formas nos aproximamos das associações buscadas Então obtemos as associações Elas nos trazem as coisas mais diversas lem branças do dia anterior o dia do sonho e de épocas passadas reflexões dis cussões com prós e contras perguntas confissões Algumas delas jorram do paciente por assim dizer e antes de algumas outras ele para um momento A maioria mostra uma clara relação com um elemento do sonho o que não sur preende já que procedem desses elementos Mas também acontece de o paciente introduzilas com as seguintes palavras Isso parece não ter nada a ver com o sonho falo porque me ocorre Ouvindo todas essas coisas que lhe ocorrem logo notamos que elas têm mais em comum com o teor do sonho do que simplesmente o ponto de partida Lançam uma luz surpreendente sobre todas as partes do sonho preenchem as lacunas entre elas tornam compreensíveis as suas peculiares justaposições Por fim tornase clara a relação entre elas e o conteúdo do sonho Este aparece como um excerto abreviado das associações produzido segundo regras ainda não desvendadas seus elementos sendo como os representantes eleitos de uma multidão Não há dúvida de que conseguimos mediante nossa técnica algo que é substituído pelo sonho e no qual se acha o valor psíquico do sonho mas não mais exibe as estranhas peculiaridades do sonho sua bizarria sua confusão Mas que não haja malentendido As associações relativas ao sonho ainda não são os pensamentos oníricos latentes Estes se acham contidos nas 97286 associações como numa águamãe mas não inteiramente contidos As asso ciações por um lado dão muito mais do que precisamos para formular os pensamentos oníricos latentes a saber todos os desenvolvimentos as transições ligações que o intelecto do paciente teve de produzir no caminho da aproximação aos pensamentos oníricos Por outro lado a associação muitas vezes para antes dos pensamentos oníricos propriamente só chega perto deles toca neles apenas em alusões Nesse ponto nós interferimos completamos as insinuações tiramos inevitáveis conclusões explicitamos aquilo que o paciente apenas roçou com as associações Pode parecer que fazemos nosso engenho e nosso arbítrio jogarem com o material que o sonhador coloca à nossa dis posição e que dele aproveitamos para ler em suas manifestações aquilo que nelas não se acha escrito E também não é fácil mostrar a legitimidade de nosso procedimento numa exposição abstrata Mas façam vocês mesmos a análise de um sonho ou estudem um exemplo bem relatado na literatura psicanalítica e se convencerão da força comprobatória desse trabalho de interpretação Se na interpretação de sonhos nós dependemos em geral e em primeira linha das associações do sonhador em relação a determinados elementos do conteúdo do sonho nós agimos com inteira independência sobretudo porque temos de fazêlo porque normalmente faltam as associações no caso deles Logo notamos que isso ocorre sempre com os mesmos conteúdos Eles não são numerosos e a experiência acumulada nos ensinou que devem ser vistos e in terpretados como símbolos de algo mais À diferença dos outros elementos do sonho pode lhes ser atribuído um significado fixo que não precisa ser inequí voco porém e cuja extensão é determinada por regras especiais com que não estamos habituados Como sabemos traduzir esses símbolos e o sonhador não embora os tenha usado ele próprio pode acontecer que o sentido de um sonho venha a ser claro para nós assim que ouvimos o seu texto antes de qualquer esforço de interpretação enquanto para o próprio sonhador ele permanece um enigma Mas a respeito do simbolismo de nosso conhecimento dele e dos 98286 problemas que nos oferece eu já disse tanta coisa nas conferências anteriores que não há necessidade de me repetir agora Então este é nosso método de interpretação de sonhos A pergunta seguinte inteiramente justificada é podemse interpretar todos os sonhos com ele E a resposta é não todos não mas tantos que estamos seguros da utilidade e justificação do método Mas por que não todos Essa resposta nos ensinará algo importante que já nos introduz nas condições psíquicas da form ação do sonho porque o trabalho da formação do sonho se realiza contra uma resistência que varia de grandezas insignificantes até o insuperável ao menos para nossos meios atuais As manifestações dessa resistência não podem ser ignoradas no decorrer do trabalho Em alguns lugares as associações se fazem sem hesitação e já a primeira ou segunda coisa que ocorre ao paciente traz a explicação Em outros ele para e vacila antes de apresentar uma asso ciação e é frequente ouvirmos uma longa série de coisas que lhe ocorrem até obter algo de útil para a compreensão do sonho Quanto mais longa e tortuosa a cadeia de associações tanto mais forte é a resistência é a nossa funda mentada opinião Também no esquecimento de sonhos advertimos a mesma influência Muitas vezes sucede que o paciente apesar de todo o esforço não mais consegue se lembrar de um sonho Mas depois que com algum trabalho analítico eliminamos uma dificuldade que vinha atrapalhando sua relação com a análise o sonho esquecido reaparece de repente Duas outras observações também cabem aqui Com muita frequência sucede faltar inicialmente uma parte do sonho que depois é acrescentada como complemento Isso deve ser visto como uma tentativa de esquecer essa parte A experiência mostra que justamente ela é a mais significativa supomos que havia uma maior resistência à sua comunicação do que à das outras partes Além disso notamos que às vezes o sonhador busca impedir o esquecimento dos sonhos registrandoos por escrito logo depois de acordar Podemos lhe dizer que isso é inútil pois a resistência à qual ele subtraiu a conservação do texto do sonho deslocase para a associação e torna inacessível à interpretação o sonho manifesto Nessas 99286 circunstâncias não devemos nos admirar de que um incremento da resistência suprima as associações e faça malograr a interpretação Disso tudo tiramos a conclusão de que a resistência que notamos no tra balho de interpretação também deve participar da gênese do sonho Podemos inclusive distinguir entre sonhos que se originaram sob uma pequena ou sob uma elevada pressão da resistência Mas também essa pressão varia de lugar para lugar no interior do mesmo sonho ela é responsável pelas lacunas ob scuridades e confusões que podem interromper a continuidade do mais belo sonho Mas o que está criando resistência e contra o quê Ora a resistência é para nós o mais seguro indício de conflito É preciso haver uma força que quer ex pressar algo e uma outra que busca impedir essa expressão O que então se produz como sonho manifesto pode reunir todas as decisões em que se con densou esta luta entre as duas tendências Num local uma das forças pode ter conseguido impor o que queria dizer em outros a instância oposta logrou ex tinguir inteiramente a comunicação pretendida ou substituíla por algo que não exibe traço dela Os casos mais frequentes e mais característicos da form ação de sonho são aqueles em que o conflito resultou num compromisso de modo que a instância comunicadora pôde dizer o que queria mas não como queria e sim de forma atenuada distorcida irreconhecível Portanto se o sonho não reproduz fielmente o pensamento onírico se é necessário um tra balho de interpretação para cobrir o hiato entre os dois isto é consequência da instância opositora inibidora e limitadora que inferimos de nossa percepção da resistência ao interpretar sonhos Enquanto estudamos o sonho como fenô meno isolado independente das formações psíquicas a ele aparentadas demos a essa instância o nome de censor do sonho Há muito vocês sabem que esta censura não é uma instituição peculiar à vida onírica que o conflito entre duas instâncias psíquicas que denominamos imprecisamente de reprimido inconsciente e o consciente governa nossa vida psíquica em geral e que a resistência à interpretação do sonho o 100286 indício da censura do sonho não é senão a resistência da repressão mediante a qual as duas instâncias se separam Também sabem que o conflito entre elas produz em determinadas condições outras formações psíquicas que tal como o sonho são o resultado de compromissos e não me solicitarão que repita agora tudo o que se acha na introdução à teoria das neuroses a fim de lhes ex por o que sabemos sobre as condições de tal formação de compromissos Vocês entenderam que o sonho é um produto patológico o primeiro membro da série que compreende o sintoma histérico a obsessão o delírio mas que se distingue dos demais por sua fugacidade e por originarse em circunstâncias que são parte da vida normal Pois tenhamos presente que a vida onírica como já disse Aristóteles é o modo como trabalha nossa psique durante o estado de sono Este cria um alheamento do mundo externo real e com isso gerase a condição para o desenvolvimento de uma psicose O mais cuidadoso estudo das psicoses sérias não nos revelará nenhum traço que seja mais característico dessa condição patológica Mas na psicose o afastamento da realidade é provo cado de duas maneiras ou quando o reprimidoinconsciente se torna demasi ado forte de modo que se sobrepõe ao consciente ligado à realidade ou porque a realidade se tornou tão insuportavelmente dolorosa que o Eu ameaçado jogase nos braços dos instintos inconscientes em desesperada re volta A inócua psicose do sonho é o resultado de um consciente e intencional recolhimento ante o mundo externo e desaparece quando são retomadas as re lações com ele Durante o isolamento do sonhador produzse também uma mudança na distribuição de sua energia psíquica uma parte do dispêndio em repressão habitualmente usada para subjugar o inconsciente pode ser poupada dado que se este emprega sua relativa liberação para fins de ativid ade encontra fechado o caminho para a motilidade e livre apenas aquele para a inofensiva satisfação alucinatória Então pode se formar um sonho mas o fato da censura do sonho mostra que também durante o sono mantevese sufi ciente resistência de repressão 101286 Aqui se abre para nós um caminho para responder a pergunta de se o sonho tem uma função se lhe é confiada uma tarefa útil O sossego livre de estímu los que o estado de sono pretende estabelecer é ameaçado de três lados de maneira mais casual por estímulos externos durante o sono e por interesses di urnos que não puderam ser interrompidos e de maneira inevitável pelos insa ciados impulsos instintuais reprimidos que espreitam por uma oportunidade de expressão Devido à diminuição noturna das repressões haveria o perigo de o repouso do sono ser perturbado toda vez que a incitação interna ou externa alcançasse uma ligação com uma das fontes instintuais inconscientes O pro cesso do sonho faz o produto de tal colaboração desembocar numa inocente vivência alucinatória e garante assim a continuidade do sono Não contraria essa função o fato de o sonho acordar momentaneamente o sonhador acom panhado de angústia é antes um sinal de que o guardião vê a situação como perigosa demais e já não acredita poder dominála Não é raro ouvirmos então ainda dormindo a observação tranquilizadora que busca evitar o despertar É só um sonho Isto senhoras e senhores é o que queria lhes dizer sobre a interpretação dos sonhos cuja tarefa é conduzir do sonho manifesto aos pensamentos oníri cos latentes Tendose alcançado isto geralmente acaba o interesse pelo sonho na análise prática Juntase às demais a comunicação recebida em forma de sonho e continuase a análise Mas ainda queremos nos deter no sonho temos interesse em estudar o processo pelo qual os pensamentos oníricos latentes transformaramse no sonho manifesto Nós o chamamos trabalho do sonho Vocês se lembram que nas palestras anteriores eu o descrevi com algum de talhe de modo que hoje posso me limitar a um sucinto resumo Portanto o processo do trabalho do sonho é algo inteiramente novo e sin gular semelhante ao qual nada se conhecia antes Ele nos deu nosso primeiro vislumbre dos processos que ocorrem no sistema inconsciente e nos mostrou que são inteiramente diferentes daquilo que conhecemos de nosso pensar 102286 consciente que para esse último devem parecer inauditos e defeituosos A im portância desse achado foi depois realçada pela descoberta de que na formação dos sintomas neuróticos atuam os mesmos mecanismos não ousamos dizer processos de pensamento que transformaram os pensamentos oníricos latentes no sonho manifesto No que se segue não poderei evitar uma forma esquemática de exposição Vamos supor que num determinado caso enxergamos todos os pensamentos latentes carregados de afeto em maior ou menor grau que substituíram o sonho manifesto depois de realizada a interpretação Chamanos a atenção uma diferença entre eles diferença esta que nos levará longe Quase todos esses pensamentos oníricos são aceitos ou reconhecidos pelo sonhador ele ad mite que pensou aquilo em tal ocasião ou em outra ou que poderia ter pensado aquilo Apenas um pensamento ele se recusa a aceitar é desconhecido para ele talvez até repugnante possivelmente o afastará de si com apaixonada veemência Então se torna claro para nós que os demais pensamentos são frag mentos de um pensar consciente ou melhor préconsciente Eles poderiam ter sido pensados também na vida diurna e provavelmente se formaram dur ante o dia Mas esse pensamento negado ou melhor esse impulso é filho da noite pertence ao inconsciente do sonhador por isso é por ele negado e re jeitado Teve de esperar pelo relaxamento noturno da repressão para chegar a algum tipo de expressão De todo modo essa expressão é atenuada distorcida camuflada sem o trabalho da interpretação não a teríamos encontrado Esse impulso inconsciente deve à ligação com os outros pensamentos oníricos ir repreensíveis a oportunidade de penetrar em discreto disfarce a barreira da censura por outro lado os pensamentos oníricos préconscientes devem a essa mesma ligação o poder de ocupar a vida psíquica também durante o sono Pois já não temos dúvida este impulso inconsciente é o verdadeiro criador do sonho ele fornece a energia psíquica para a sua formação Como qualquer outro impulso instintual ele pode buscar somente a própria satisfação e nossa experiência em interpretar sonhos nos mostra também que este é o sentido da 103286 atividade de sonhar Em todo sonho um desejo instintual deve ser apresentado como realizado O isolamento noturno da vida psíquica diante da realidade a regressão a mecanismos primitivos que assim é possibilitada permitem que a desejada satisfação instintual seja vivida alucinatoriamente como presente Devido à mesma regressão ideias são convertidas em representações visuais nos sonhos os pensamentos oníricos latentes são dramatizados e ilustrados Dessa porção do trabalho onírico obtemos informação sobre algumas das características mais distintas e peculiares do sonho Repetirei o curso de event os da formação do sonho A introdução o desejo de dormir o intencional al heamento do mundo exterior Duas consequências dele para o aparelho psíquico primeiro a possibilidade de que modos de trabalho mais antigos e primitivos surjam neste a regressão segundo a diminuição da resistência de repressão que pesa sobre o inconsciente Como consequência desse último fator dáse a possibilidade da formação do sonho que é aproveitada pelos en sejos os estímulos internos e externos que se tornaram ativos O sonho que se origina desse modo já é uma formação de compromisso Ele tem uma dupla função é por um lado conforme ao Eu pois serve ao desejo de dormir lid ando com os estímulos que perturbam o sono por outro lado permite a um impulso instintual reprimido a satisfação possível nessas circunstâncias na forma de uma realização alucinada do desejo Mas todo o processo da form ação do sonho admitido pelo Eu que dorme é sujeito à condição da censura exercida pelo resto da repressão conservada De maneira mais simples eu não consigo expor o processo ele não é mais simples Agora posso continuar com a descrição do trabalho do sonho Vamos voltar aos pensamentos oníricos latentes Seu mais forte elemento é o impulso instintual reprimido que neles conquistou expressão apoiandose na presença de estímulos casuais e em transferência para os resíduos diurnos ainda que uma expressão atenuada e camuflada Como todo impulso instintual também pressiona pela satisfação através da ação mas o caminho para a motil idade lhe é bloqueado pelos dispositivos fisiológicos do estado de sono ele é 104286 obrigado a tomar a direção regressiva para a percepção e a contentarse com uma satisfação alucinatória Os pensamentos oníricos latentes são convertidos numa série de imagens sensoriais e cenas visuais Por essa via lhes sucede o que nos aparece como algo tão novo e estranho Todos os recursos linguísticos com que são expressas as mais sutis relações de pensamento as conjunções e preposições as mudanças de declinação e conjugação desaparecem porque faltam os meios de representálos Como numa linguagem primitiva sem gramática apenas o material bruto do pensamento é expresso as coisas ab stratas são remetidas às coisas concretas que a elas subjazem O que resta pode facilmente parecer desconexo O fato de na representação de determinados ob jetos e eventos serem empregados em larga medida símbolos que se tornaram estranhos para o pensamento consciente corresponde tanto à regressão arcaica no aparelho psíquico como às exigências da censura Mas outras modificações feitas nos elementos dos pensamentos oníricos vão muito além disso Aqueles que permitem que se faça algum ponto de contato entre eles são condensados em novas unidades Na transposição de pensamentos em imagens são inequivocamente preferidos aqueles que admitem tal reunião ou condensação como se atuasse uma força que submetesse o material a uma compressão ou concentração Devido à condensação um elemento do sonho manifesto pode corresponder a numerosos elementos nos pensamentos oníri cos latentes e de modo inverso um elemento dos pensamentos oníricos pode ser representado por várias imagens no sonho Ainda mais notável é o outro processo o deslocamento ou transferência de acento que no pensamento consciente figura apenas como erro de raciocínio ou recurso humorístico As diferentes ideias nos pensamentos oníricos não têm de fato o mesmo valor são investidas de montantes de afeto variados e correspondentemente são julgadas como sendo mais ou menos importantes e dignas de interesse No trabalho do sonho essas ideias são separadas dos afetos que lhes dizem respeito e os afetos são tratados por si podem ser deslocados para outra coisa podem ser conservados sofrer mudanças ou nem aparecer 105286 no sonho A importância das ideias despojadas de afeto retorna nos sonhos como intensidade sensorial das imagens oníricas mas notamos que o acento passa de elementos significativos para aqueles indiferentes de modo que nos sonhos aparece em primeiro plano como coisa principal o que nos pensamen tos oníricos tem papel apenas secundário e inversamente o essencial dos pensamentos oníricos encontra somente uma representação passageira e pouco nítida Nenhuma outra parte do trabalho do sonho contribui tanto para tornar o sonho estranho e incompreensível para o sonhador O deslocamento é o principal recurso da deformação onírica a que os pensamentos oníricos têm de submeterse por injunção da censura Após essas influências nos pensamentos oníricos o sonho está quase pronto Há ainda um fator meio inconstante a chamada elaboração secun dária depois que o sonho emerge ante a consciência como objeto de per cepção Então nós lidamos com ele como estamos habituados a tratar os con teúdos de nossa percepção buscamos preencher lacunas introduzir nexos com frequência incorrendo em graves malentendidos Mas essa atividade como que racionalizadora que no melhor dos casos provê o sonho de uma fachada lisa que não pode se adequar a seu verdadeiro conteúdo também pode ser omitida ou expressarse num grau muito modesto e então o sonho exibe claramente suas fissuras e rachas Por outro lado não se deve esquecer que o trabalho do sonho também não ocorre sempre com a mesma energia com frequência limitase a determinadas porções dos pensamentos oníricos enquanto outras podem surgir inalteradas no sonho Então se tem a impressão de haver realizado no sonho as operações intelectuais mais sutis e complicadas de ter especulado feito piadas tomado decisões resolvido problemas quando tudo isso é produto de nossa atividade espiritual normal podendo ter sucedido tanto no dia anterior ao sonho como durante a noite nada tendo a ver com o trabalho do sonho e nada mostrando que seja característico do sonho Tam bém não é supérfluo enfatizar o contraste que existe nos pensamentos oníricos 106286 mesmos entre o impulso instintual inconsciente e os resíduos diurnos En quanto esses demonstram toda a multiplicidade de nossos atos psíquicos aquele que se torna o verdadeiro motor da formação do sonho termina regu larmente numa realização de desejo Tudo isso eu poderia ter lhes dito quinze anos atrás aliás creio que cheguei a lhes dizer isso naquele tempo Agora vamos resumir o que houve de mudanças e descobertas nesse intervalo Já lhes disse que receio que achem que é muito pouco e não compreendam por que lhes faço escutar duas vezes e exponho duas vezes a mesma coisa Mas passaramse quinze anos e eu espero dessa forma restabelecer mais facilmente o contato com vocês E também são coisas tão elementares de tão decisiva importância para o entendimento da psicanálise que bem podem ser ouvidas mais uma vez e saber que permanecem idênticas após quinze anos é interessante em si mesmo Naturalmente vocês encontram na bibliografia desse período um grande número de confirmações e de pormenores dos quais pretendo lhes dar apenas amostras Ao mesmo tempo posso abordar algumas coisas que já eram con hecidas antes Referemse sobretudo ao simbolismo e aos outros modos de representação no sonho Saibam que há pouco tempo os professores de medi cina de uma universidade americana se recusaram a atribuir à psicanálise o caráter de ciência com o argumento de que ela não admite provas experi mentais Poderiam ter levantado a mesma objeção à astronomia pois é ex tremamente difícil fazer experiências com os corpos celestes Nela é preciso re correr à observação De todo modo alguns pesquisadores vienenses começaram a confirmar experimentalmente o nosso simbolismo onírico Um certo dr Schrötter descobriu já em 1912 que dando a pessoas profundamente hipnotizadas a instrução de sonhar com experiências sexuais no sonho dali resultante o tema sexual aparece substituído por símbolos que conhecemos Por exemplo uma mulher é instruída a sonhar que tem relação sexual com 107286 uma amiga Em seu sonho a amiga aparece com uma maleta na qual há uma etiqueta que diz Apenas para mulheres Ainda mais impressionantes são os experimentos de Betlheim e Hartmann 1924 que trabalharam com doentes que tinham o chamado distúrbio de Korsakoff Eles lhes contaram histórias de grosseiro conteúdo sexual e observaram as deformações que surgiam quando os pacientes eram solicitados a reproduzilas Novamente se eviden ciaram os símbolos para os órgãos sexuais e o intercurso sexual que nos são fa miliares entre eles o da escada do qual os autores dizem acertadamente que jamais seria obtido num desejo consciente de deformação Numa série de experiências muito interessantes Herbert Silberer mostrou que é possível surpreender o trabalho do sonho in flagranti por assim dizer no ato de transpor pensamentos abstratos em imagens Quando ele num estado de fadiga e sonolência insistia em fazer trabalho intelectual com frequência o pensamento lhe escapava e no seu lugar surgia uma visão que claramente era um substituto dele Eis um exemplo simples Estou pensando diz Silberer na minha in tenção de melhorar um trecho irregular num ensaio Visão Vejome aplain ando um pedaço de madeira Com frequência sucedia nesses experimentos que o conteúdo da visão não vinha a ser o pensamento à espera de elaboração mas o sentimento subjetivo do experimentador durante o esforço o estado em vez do objeto algo que Silberer chamou de fenômeno funcional Um ex emplo lhes mostrará o que quero dizer O autor se empenhou em comparar as opiniões de dois filósofos sobre determinado problema Em sua sonolência no entanto uma delas sempre lhe fugia e por fim lhe ocorreu a visão de que ele solicitava uma informação a um secretário rabugento que curvado sobre uma escrivaninha a princípio não atentava para ele e depois o olhava de má vont ade As condições mesmas do experimento devem explicar por que a visão as sim obtida constituía frequentemente um resultado da autoobservação 108286 Continuemos com os símbolos Havia alguns que acreditávamos recon hecer mas nos incomodava não saber dizer de que modo aquele símbolo chegara a ter aquela significação Nesses casos confirmações vindas de outra parte da linguística folclore mitologia ritual eram particularmente bemvin das Um exemplo desse tipo era o símbolo do manto ou casaco Mantel Dizíamos que no sonho de uma mulher o manto significava um homem Es pero que fiquem impressionados ao ouvir o que Theodor Reik nos relatou em 1920 Na antiga cerimônia nupcial dos beduínos o noivo cobre a noiva com um manto especial denominado aba dizendo as seguintes palavras De agora em diante ninguém te cobrirá exceto eu conforme Robert Eisler Weltenmantel und Himmelszelt Coberta do mundo e tenda do céu Munique 2 vols 1910 Encontramos também vários outros símbolos novos dos quais quero lhes dar pelo menos dois exemplos Segundo Abraham 1922 a aranha no sonho é um símbolo da mãe mas da mãe fálica da qual se tem medo de forma que o temor da aranha exprime o pavor do incesto com a mãe e o horror dos genitais femininos Talvez vocês saibam que uma criação mitológica a cabeça da Medusa referese ao mesmo tema do pavor da castração O outro símbolo de que gostaria de falar é aquele da ponte Ferenczi o esclareceu em 192122 Ele significa originalmente o membro masculino que liga o pai e a mãe no intercurso sexual mas depois desenvolve outros significados oriundos daquele Na medida em que se deve ao membro masculino o fato de se ter vindo ao mundo a partir do líquido amniótico a ponte se torna a passagem do Além o nãohaveraindanascido o útero materno para o Aquém a vida e como o ser humano também imagina a morte como retorno ao útero ao líquido a ponte adquire também o significado de transposição para a morte e enfim afastandose mais ainda do sentido inicial vem a designar passagem mudança de estado Harmonizase com isso o fato de uma mulher que não su perou o desejo de ser homem sonhar frequentemente com pontes que são muito curtas para alcançar a outra margem 109286 No conteúdo manifesto dos sonhos aparecem com frequência imagens e situações que lembram conhecidos temas de contos de fadas lendas e mitos A interpretação desses sonhos lança alguma luz sobre os interesses originais que geraram esses temas mas não podemos esquecer naturalmente a mudança de sentido que esse material sofreu ao longo dos tempos Nosso trabalho de inter pretação desvela por assim dizer a matériaprima que muitas vezes pode ser chamada de sexual no mais amplo sentido mas que encontra o mais variado emprego em elaborações posteriores Tais derivações costumam nos render a ira dos pesquisadores de orientação não psicanalítica como se quiséssemos negar ou menosprezar tudo o que em desenvolvimentos posteriores foi edi ficado sobre aquilo No entanto tais percepções são instrutivas e interess antes O mesmo vale para a derivação de certos temas das artes plásticas quando por exemplo M J Eisler em 1919 seguindo indicações nos sonhos de seus pacientes interpreta psicanaliticamente o jovem que brinca com o menino no Hermes de Praxíteles Por fim não posso deixar de mencionar a frequência com que temas mitológicos precisamente acham explicação através da interpretação de sonhos Assim por exemplo a lenda do labirinto pode ser vista como representação de um nascimento anal os caminhos intrincados sendo os intestinos e o fio de Ariadne o cordão umbilical Os modos de representação usados no trabalho do sonho um material fas cinante e quase inesgotável foram ficando cada vez mais conhecidos mediante o estudo aprofundado Eu lhes darei algumas amostras deles Por exemplo o sonho representa a relação de frequência com a multiplicação do mesmo Es cutem o peculiar sonho de uma menina Ela entra numa sala grande e acha ali sentada numa cadeira uma pessoa o que é repetido seis sete oito vezes mas é sempre o seu pai a pessoa Isto é fácil de compreender quando descobrimos por determinadas circunstâncias da interpretação que aquele espaço é útero materno Então o sonho passa a equivaler à fantasia bem nossa conhecida da garota que já na vida intrauterina teria se encontrado com o pai quando ele 110286 durante a gravidez da mãe visitavalhe o útero O fato de algo no sonho estar invertido de a entrada do pai ser deslocada para ela não deve confundir vo cês isso tem aliás uma significação particular A multiplicação da pessoa do pai só pode expressar que o evento em questão ocorreu várias vezes Na real idade devemos admitir que o sonho não ousa muito quando exprime frequên cia mediante acumulação Ele apenas retomou a significação primordial da pa lavra que hoje designa para nós uma repetição no tempo mas que procede do ajuntamento no espaço Sempre que possível o trabalho do sonho converte relações temporais em espaciais e as apresenta assim Vejase num sonho uma cena entre pessoas que aparecem bem pequenas e distantes como se as vísse mos pelo lado errado de um binóculo Tanto a pequenez como a distância es pacial significam aqui o mesmo a distância no tempo devese entender que a cena é de um passado distante Talvez se recordem além disso que em palestras anteriores já lhes disse e mostrei com exemplos que havíamos aprendido a usar traços formais na interpretação também ou seja a transformálos em conteúdo dos pensamentos oníricos latentes Ora vocês sabem que todos os sonhos de uma noite fazem parte do mesmo contexto Mas faz diferença se os sonhos aparecem ao sonhador como um continuum ou se ele os divide em várias partes e quantas são estas O número dessas partes corres ponde muitas vezes a igual número de pontos centrais distintos da formação de pensamentos nos pensamentos oníricos latentes ou de correntes que lutam entre si na psique do sonhador das quais cada uma tem expressão dominante mas nunca exclusiva em determinada parte do sonho Um breve sonho pre liminar e um longo sonho principal frequentemente têm entre si a relação que há entre premissa e realização de que vocês encontram um exemplo nítido nas primeiras conferências Um sonho designado pelo sonhador como de al guma forma interpolado corresponde realmente a uma cláusula secundária nos pensamentos oníricos Num estudo sobre pares de sonhos de 1925 Franz Alexander mostrou que não é raro dois sonhos de uma mesma noite 111286 partilharem de tal modo o cumprimento da tarefa do sonho que tomados em conjunto eles constituem a realização do desejo em duas etapas algo que nen hum deles consegue por si Digamos que o desejo do sonho tenha por con teúdo um ato ilícito em relação a determinada pessoa Nesse caso a pessoa surge claramente no primeiro sonho mas o ato é apenas insinuado No se gundo sonho é diferente o ato é claramente mencionado mas a pessoa é tor nada irreconhecível ou trocada por uma outra qualquer Isso realmente dá uma impressão de astúcia Outra relação semelhante entre as duas partes de um par de sonhos é aquela em que um deles apresenta o castigo e o outro a realização pecaminosa do desejo Seria como dizer quando você assume o castigo pode se permitir o proibido Não posso detêlos por mais tempo nessas pequenas descobertas nem nas discussões que dizem respeito ao uso da interpretação dos sonhos no trabalho psicanalítico Imagino que estejam impacientes para saber das mudanças havi das nas concepções fundamentais sobre a natureza e o significado dos sonhos Já os avisei que justamente quanto a isso não há muito a relatar O ponto mais controverso de toda a teoria era talvez a afirmação de que todos os sonhos são realizações de desejos A inevitável sempre recorrente objeção levantada pelos leigos de que existem tantos sonhos angustiados já foi respondida de forma cabal como acredito poder dizer nas conferências anteriores Com a di visão em sonhos de desejo de angústia e de castigo mantivemos intacta a nossa teoria Também os sonhos de castigo são realizações de desejos mas não os dese jos dos impulsos instintuais e sim os da instância crítica censora e punitiva na psique Se nos achamos diante de um puro sonho de castigo uma simples op eração mental nos permite restaurar o sonho de desejo do qual o sonho de cas tigo é a resposta e que mediante esse repúdio foi substituído como sonho manifesto Vocês sabem que o estudo do sonho foi o que primeiro nos levou à compreensão das neuroses Também acharão natural que nosso conhecimento 112286 das neuroses tenha influído em nossa concepção dos sonhos Como verão fomos obrigados a supor na psique uma instância especial crítica e proibidora que chamamos de Supereu Ao enxergar também a censura onírica como obra dessa instância fomos levados a considerar mais atentamente o papel do Supereu na formação do sonho Contra a teoria do sonho como realização de desejo apareceram apenas duas dificuldades sérias cuja discussão pode levar longe mas ainda não teve conclusão satisfatória A primeira se dá pelo fato de pessoas que experiment aram um choque um severo trauma psíquico como sucedeu frequentemente na guerra e também se encontra na base da histeria traumática serem regular mente reconduzidas à situação traumática pelo sonho Isso não deveria ocor rer segundo nossas hipóteses sobre a função do sonho Que desejo seria satis feito por esse retorno à experiência traumática tão dolorosa Difícil dizer O segundo fato encontramos quase diariamente no trabalho analítico ele não im plica uma objeção forte como o primeiro Como sabem uma das tarefas da psicanálise é levantar o véu de amnésia que esconde os primeiros anos da in fância e levar à recordação consciente as manifestações da vida sexual infantil que eles contêm Ora essas primeiras vivências sexuais da criança estão liga das a penosas impressões de angústia proibição desapontamento e castigo Compreendese que tenham sido reprimidas mas não que tenham tão amplo acesso à vida onírica que proporcionem o modelo para tantas fantasias oníricas que os sonhos sejam plenos de reproduções dessas cenas infantis e de alusões a elas Sua natureza desprazerosa e a tendência de o trabalho do sonho realizar desejos parecem dificilmente conciliáveis Mas talvez exageremos a di ficuldade nesse caso Pois às mesmas vivências infantis se acham ligados todos os desejos instintuais perenes insatisfeitos que por toda a vida fornecem a en ergia para a formação dos sonhos dos quais bem podemos esperar que tam bém empurrem para cima em seu poderoso ímpeto o material dos eventos sentidos como penosos Por outro lado na maneira como esse material é re produzido se mostra inconfundivelmente o esforço do trabalho do sonho que 113286 busca negar o desprazer mediante a deformação transformar desapontamento em realização Nas neuroses traumáticas é diferente nelas os sonhos termin am via de regra com desenvolvimento de angústia Acho que não devemos nos esquivar de admitir que nesse caso a função do sonho fracassa Não invo carei o ditado de que a exceção confirma a regra sua sabedoria me parece duvidosa Mas a exceção pode não abolir a regra Se isolamos do conjunto uma atividade psíquica como o sonho para fins de estudo possibilitamos encontrar as leis que lhe são próprias Se novamente a inserimos no todo devemos estar preparados para descobrir que esses resultados são obscurecidos ou prejudica dos pela colisão com outras forças Nós dizemos que o sonho é uma realização de desejo se quiserem considerar essas últimas objeções poderão dizer que o sonho é tentativa de realização de desejo Ninguém que seja capaz de penetrar a dinâmica psíquica entenderá outra coisa Em determinadas circunstâncias o sonho leva a cabo sua intenção de modo bastante imperfeito ou tem de abandonála inteiramente A fixação inconsciente num trauma talvez seja o maior desses impedimentos à função do sonho Enquanto o sonhador é obri gado a sonhar pois o afrouxamento noturno da repressão faz com que a pressão para cima da fixação traumática se torne ativa fracassa a função do seu trabalho do sonho que quer transformar os traços mnemônicos do evento traumático numa realização de desejo Nessas circunstâncias ocorre de a pess oa ficar insone renunciar ao sono por temer o malogro da função do sonho A neurose traumática nos mostra aqui um caso extremo mas é preciso recon hecer também o caráter traumático das vivências infantis e não devemos es tranhar que também surjam transtornos menores da operação do sonho em outras circunstâncias 30 SONHOS E OCULTISMO 114286 Senhoras e senhores Hoje tomaremos um caminho estreito mas que pode nos conduzir a um vasto panorama O anúncio de que falarei sobre a relação entre os sonhos e o ocultismo difi cilmente os surpreenderá Pois o sonho já foi tido frequentemente como a porta para o mundo do misticismo e ainda hoje é para muita gente um fenô meno oculto Também nós que dele fizemos um objeto de investigação científica não contestamos que haja um ou vários fios que o ligam às coisas ocultas Misticismo ocultismo o que se entende por essas palavras Não esperem de minha parte nenhuma tentativa de circunscrever com definições esses domínios mal delineados De maneira bem geral e indefinida todos nós sabemos do que se trata É uma espécie de além do mundo claro e gover nado por leis inexoráveis para nós edificado pela ciência O ocultismo afirma a existência de mais coisas entre a terra e o céu do que sonha a nossa filosofia escolar Bem não vamos nos apegar à estreiteza da escola estamos dispostos a crer no que vem a ser digno de crédito para nós Vamos proceder assim como fazemos com qualquer outro material da ciên cia primeiro verificar se tais acontecimentos são efetivamente comprovados e depois mas só depois que sua realidade não der margem a dúvidas procurarmos a explicação para eles Mas não se pode negar que já essa decisão nos é dificultada por fatores intelectuais históricos e psicológicos É diferente de quando nos aplicamos a outras investigações Vejamos primeiro a dificuldade intelectual Permitamme dar alguns exem plos concretos e toscos Digamos que o problema seja o da constituição do in terior da Terra Como é notório não há conhecimentos seguros sobre isso Supomos que consista de metais pesados em estado de incandescência Então aparece alguém afirmando que o interior da Terra é água saturada de ácido carbônico ou seja uma espécie de soda Diremos sem dúvida que isso é muito improvável contraria todas as nossas expectativas não considera pon tos básicos de nosso conhecimento que nos levaram à hipótese dos metais No entanto não é inconcebível se alguém nos apontar um caminho para testar a 115286 hipótese da soda nós o seguiremos sem resistência Mas então surge outra pessoa que afirma seriamente que o âmago da Terra se compõe de marme lada A isso reagiremos de outra forma Diremos a nós mesmos que a marme lada não ocorre na natureza é um produto da cozinha humana além disso a existência desse material implica a presença de árvores frutíferas e de seus frutos e não vemos como levar plantas e culinária humana para o interior da Terra O resultado dessas objeções intelectuais será uma mudança na direção do nosso interesse em vez de nos pormos a investigar se realmente o âmago da Terra consiste de marmelada iremos nos perguntar que indivíduo é esse que pode chegar a tal ideia e no máximo lhe perguntaremos de onde tirou isso O infeliz criador da teoria da marmelada se sentirá ofendido e nos acusará de lhe negarmos uma apreciação objetiva de sua afirmação devido a um preconceito supostamente científico Mas isso não o ajudará Notamos que os juízos pre concebidos nem sempre são condenáveis que às vezes são justificados servindo para nos poupar trabalho inútil São simplesmente conclusões por analogia com outros juízos esses bem fundamentados Bom número de afirmações de natureza ocultista tem em nós um efeito semelhante ao da hipótese da marmelada de maneira que nos cremos autoriza dos a rejeitálas de antemão sem maior exame Mas isso não é tão simples Uma comparação como a que fiz não prova nada prova o que provam as com parações É discutível que ela seja adequada e vêse que a atitude de rejeição depreciativa já influiu em sua escolha Juízos preconcebidos são algumas vezes apropriados e justificados mas outras vezes são errôneos e prejudiciais e nunca se sabe quando são uma coisa ou outra A história das ciências é pródiga em casos que advertem contra uma condenação precipitada Por muito tempo considerouse uma hipótese absurda que as pedras atualmente chama das meteoritos tivessem alcançado a Terra a partir do espaço ou que rochas das montanhas que contêm restos de moluscos tivessem um dia constituído o leito do mar Aliás também não foi muito diferente com a psicanálise quando ela apareceu com a inferência do inconsciente Por isso nós psicanalistas 116286 temos razão especial para sermos cautelosos em recorrer a motivos intelectuais na rejeição de novas colocações e devemos admitir que eles não nos fazem su perar a aversão a dúvida e a incerteza O segundo fator denominei psicológico Refirome à tendência geral das pessoas à credulidade e à crença em milagres Desde o começo quando a vida nos toma em sua severa disciplina há em nós uma resistência à inexorabilidade e monotonia das leis do pensamento e às exigências do exame de realidade A razão tornase a inimiga que nos priva de tantas possibilidades de prazer Descobrimos o prazer existente em nos furtarmos ainda que momentanea mente a ela e nos entregarmos às seduções do absurdo O escolar se diverte com trocadilhos após um congresso científico o especialista faz troça de sua atividade e mesmo o homem grave saboreia uma brincadeira Uma hostilid ade mais séria a razão e ciência a força maior que tem o homem aguarda sua oportunidade apressase em dar ao curandeiro ou milagreiro a preferên cia em lugar do médico estudado acolhe as afirmações do ocultismo na medida em que seus pretensos fatos são tomados como infrações de regras e leis faz adormecer a crítica falseia as percepções obtém confirmações e anuências que não se justificam Quem leva em conta esse pendor humano tem todo motivo para negar valor a muitas comunicações da literatura ocultista O terceiro senão eu denominei histórico querendo assim indicar que no mundo do ocultismo nada sucede de realmente novo que nele ressurgem to dos os sinais prodígios profecias e aparições de outros tempos que nos são relatados em velhos livros e que acreditávamos ter liquidado há muito tempo como rebentos de uma imaginação desenfreada ou de um engano deliberado como produtos de uma época em que ainda era grande a insciência humana e o espírito científico ainda engatinhava Se aceitamos como verdadeiro o que se gundo as informações dos ocultistas ainda hoje ocorre temos que admitir também a credibilidade dos relatos antigos E nos damos conta de que os livros sagrados e as tradições dos povos estão plenos dessas histórias maravilhosas e que as religiões baseiam sua pretensão de credibilidade justamente nesses 117286 acontecimentos extraordinários e maravilhosos neles enxergando as provas da atuação de forças sobrehumanas Então se torna difícil evitar a suspeita de que o interesse no ocultismo é na verdade religioso de que um dos motivos ocul tos do movimento ocultista é socorrer a religião ameaçada pelo progresso do pensamento científico E o reconhecimento de tal motivo faz aumentar nossa desconfiança e também a relutância em adentrar a investigação dos supostos fenômenos ocultos Mas por fim essa relutância deve ser superada Tratase de uma questão factual de se o que os ocultistas relatam é verdadeiro ou não Isso deve poder ser resolvido mediante a observação No fundo temos de ser gratos aos ocultistas Os relatos prodigiosos de épocas antigas escapam ao nosso exame Se dizemos que não podem ser provados temos que admitir que não podem ser rigorosamente refutados Mas quanto ao que sucede no presente a que po demos estar presentes deve ser possível para nós obter um juízo mais seguro Se chegamos à convicção de que tais prodígios não ocorrem hoje não tememos a objeção de que poderiam ter sucedido em épocas passadas Nesse caso outras explicações são mais plausíveis Então deixamos de lado nossos senões e estamos dispostos a participar da observação dos fenômenos ocultos Infelizmente logo deparamos com circunstâncias muito desfavoráveis ao nosso honesto propósito As observações de que nosso julgamento deve de pender são feitas em condições que tornam incertas as percepções de nossos sentidos que embotam nossa atenção na escuridão ou em precária luz ver melha após longos períodos de vã expectativa Dizemnos que já nossa pos tura incrédula ou seja crítica pode impedir o surgimento dos fenômenos aguardados A situação que assim se produz é uma verdadeira caricatura das circunstâncias em que costumamos fazer investigações científicas As obser vações são realizadas nos chamados médiuns pessoas às quais se atribuem faculdades sensitivas especiais mas que não se distinguem por eminentes qualidades do espírito ou do caráter nem são tomados por uma grande ideia ou um sério propósito como os antigos milagreiros Pelo contrário mesmo os 118286 que acreditam em seus poderes secretos não os veem como particularmente confiáveis a maioria deles já foi desmascarada como embusteira e é de esperar que o restante tenha o mesmo destino O que fazem dá a impressão de traves suras infantis ou truques de prestidigitação Jamais nas sessões com esses médiuns revelouse alguma coisa útil como uma nova fonte de energia por exemplo É certo que tampouco esperamos da mágica do prestidigitador que faz sair pombos da cartola vazia alguma melhoria para a criação de pombos Posso colocarme facilmente no lugar de alguém que desejando satisfazer os requisitos da objetividade participa de sessões de ocultismo mas após algum tempo se cansa e aborrecido com o que dele esperam retorna a seus precon ceitos anteriores insciente como antes Podese objetar a essa pessoa que este não é o procedimento correto não é lícito prescrever aos fenômenos que se quer estudar como devem ser e em que condições devem surgir Caberia isto sim perseverar e valorizar as medidas de precaução e de fiscalização com que ultimamente se busca precaverse da inconfiabilidade dos médiuns Mas infel izmente essa técnica protetora moderna põe fim ao fácil acesso às observações ocultistas O estudo do ocultismo tornase uma profissão especial difícil uma atividade que a pessoa não pode exercer juntamente com seus outros in teresses E enquanto os pesquisadores nela envolvidos não chegam a con clusões ficamos entregues à dúvida e às nossas próprias suposições Entre essas suposições a mais provável seria a de que no ocultismo há um núcleo real de fatos ainda não reconhecidos em torno do qual o engano e a fantasia teceram um invólucro de difícil penetração Mas como podemos simplesmente nos aproximar desse núcleo em que lugar atacar o problema Creio que neste ponto nos vem em auxílio o sonho sugerindo que de toda essa confusão retiremos o tema da telepatia Como sabem chamamos telepatia o fato suposto de um evento que ocorre num determinado instante chegar simultaneamente à consciência de uma pess oa distante sem que as vias de comunicação familiares tenham algum papel nisso Pressupõese tacitamente que esse evento diga respeito a uma pessoa 119286 na qual a outra receptora da notícia tem um forte interesse emocional Por exemplo a pessoa A sofre um acidente ou morre e a pessoa B a ela intima mente ligada mãe filha ou amada toma conhecimento disso no mesmo in stante enxergando um rosto ou escutando algo nesse último caso portanto como se tivesse sido informada por telefone embora não fosse o caso foi como uma contrapartida psíquica da telegrafia sem fio Não preciso lhes lem brar como são improváveis tais acontecimentos E a maioria desses relatos pode ser rejeitada com bons motivos há alguns em que isso não é tão fácil Permitamme agora para os fins da minha comunicação que deixe de lado a palavra suposto e prossiga como se acreditasse na realidade objetiva do fenômeno telepático Mas tenham em mente que esse não é o caso que não me ative a nenhuma convicção Na verdade tenho pouco a lhes comunicar apenas um fato bem modesto E limitarei ainda mais sua expectativa dizendolhes que o sonho no fundo tem pouco a ver com a telepatia Nem a telepatia lança uma nova luz sobre a natureza do sonho nem o sonho dá testemunho direto da realidade da tele patia O fenômeno telepático também não se acha ligado ao sonho pode ocor rer também durante a vigília A única razão para discutir o vínculo entre sonho e telepatia está em que o estado onírico parece particularmente adequado para a recepção da mensagem telepática Temos um sonho dito telepático e nos convencemos na sua análise de que a notícia telepática teve o mesmo papel que um outro resíduo diurno e como este foi mudada pelo trabalho do sonho e posta a serviço de sua tendência Na análise desse sonho telepático sucede então algo que me parece in teressante o suficiente para apesar de sua trivialidade servirme como ponto de partida para esta conferência Em 1922 quando fiz a primeira comunicação sobre esse tema dispunha de apenas uma observação Desde então fiz várias semelhantes mas conservarei o primeiro exemplo pois é o de mais fácil ap resentação e com ele os levarei de imediato in medias res ao assunto 120286 Um homem obviamente inteligente nada inclinado ao ocultismo em suas próprias palavras escreveme a respeito de um sonho que lhe parece notável Adianta que sua filha casada que mora longe dele espera o primeiro filho para meados de dezembro Esta filha lhe é muito cara e ele sabe que tam bém ela lhe tem muito apego Na noite de 16 para 17 de novembro ele sonha que sua mulher teve gêmeos Há outras particularidades que aqui posso omitir que também não acharam todas elas explicação A mulher que no sonho tornouse mãe de gêmeos é sua segunda esposa a madrasta da filha Ele não deseja ter filhos com essa mulher que ele não considera capaz de criar sensata mente uma criança e na época do sonho além disso havia muito não tinha re lações sexuais com ela O que o faz escrever a mim não é uma dúvida na teoria do sonho que seria justificada pelo conteúdo onírico manifesto pois por que a mulher tem filhos no sonho em total contradição com os desejos dele Nem há razão para o temor de que esse evento indesejado se realize como informa ele O que o levou a me relatar o sonho foi a circunstância de que na manhã de 18 de novembro ele recebeu por telegrama a notícia de que a filha tivera gêmeos O telegrama fora entregue no dia anterior e o nascimento se dera na noite de 16 para 17 aproximadamente na mesma hora em que ele sonhou com sua mulher parindo gêmeos Esse homem me pergunta se acho puramente cas ual a correspondência entre sonho e fato Ele não ousa chamar o sonho de telepático pois a diferença entre o conteúdo onírico e o fato se acha justamente no que lhe parece essencial a pessoa da parturiente Mas um de seus comentários dá a entender que ele não se espantaria com um autêntico sonho telepático A filha diz ele certamente pensou muito nele durante o parto Estou certo senhoras e senhores de que já podem explicar este sonho e também compreendem por que lhes relatei ele Eis um homem insatisfeito com a segunda mulher que gostaria de ter uma esposa como a filha do primeiro casamento Para o inconsciente claro esse como desaparece Chegalhe durante a noite a mensagem telepática de que a filha teve gêmeos O trabalho 121286 do sonho se apodera dessa notícia faz sobre ela atuar o desejo inconsciente de que a filha tome o lugar da segunda mulher e assim se produz o estranho sonho manifesto que esconde o desejo e distorce a mensagem Temos que ad mitir então que somente a interpretação nos mostrou que este é um sonho telepático a psicanálise revelou um fato telepático que de outra forma não conheceríamos Mas não se deixem enganar Apesar de tudo a interpretação do sonho nada afirmou sobre a verdade objetiva do evento telepático Ele pode ser algo apar ente explicável de outra maneira É possível que os pensamentos latentes do sonho fossem estes Hoje é o dia em que haveria o parto se minha filha se equivocou por um mês como creio E seu aspecto quando a vi pela última vez era de quem teria gêmeos Minha falecida mulher gostava tanto de cri anças como não teria se alegrado com os gêmeos Insiro esse último ele mento com base em associações ainda não mencionadas do homem que son hou Nesse caso o estímulo para o sonho teriam sido conjecturas bem funda mentadas do sonhador não uma mensagem telepática o resultado seria o mesmo Vocês veem que também essa interpretação nada nos disse sobre a questão de podermos atribuir ou não realidade objetiva à telepatia Isso se re solveria apenas mediante uma investigação aprofundada de todas as circun stâncias do evento algo que infelizmente não foi possível nesse caso nem nos outros casos de que tenho notícia Claro que a hipótese da telepatia fornece a explicação mais simples mas isso não adianta muito A explicação mais simples nem sempre é a correta frequentemente a verdade não é simples e antes de nos decidirmos por uma hipótese de tamanho alcance devemos obser var todas as precauções Podemos agora deixar o tema sonho e telepatia nada mais tenho a lhes dizer sobre ele Mas reparem que não foi o sonho que pareceu nos ensinar algo sobre a telepatia mas sim a interpretação do sonho a elaboração psicanalítica Assim de agora em diante podemos não mais abordar o sonho e verificar 122286 nossa expectativa de que a aplicação da psicanálise lance alguma luz sobre out ros fatos denominados ocultos Há por exemplo o fenômeno da indução ou transmissão de pensamento que é bastante próximo da telepatia podendo mesmo sem muito exagero ser identificado com ela Ele diz que eventos psíquicos de uma pessoa ideias estados emocionais impulsos da vontade podem transmitirse para outra pessoa através do espaço sem recorrer às notórias vias de comunicação por palavras e sinais Vocês percebem como ser ia curioso e que importância prática talvez tivesse se algo assim realmente ocorresse Aliás causa estranheza que justamente esse fenômeno seja o menos falado nos antigos relatos de prodígios Durante o tratamento psicanalítico de pacientes veiome a impressão de que as atividades dos videntes profissionais escondem uma boa oportunidade para fazer observações inatacáveis sobre transmissão de pensamento Eles são pessoas irrelevantes ou mesmo de menor valor que se dedicam a práticas di versas como pôr as cartas ler caligrafias e linhas das mãos fazer cálculos as trológicos e que nisso preveem o futuro de seus clientes após terem se mostrado familiarizadas com algumas de suas vicissitudes presentes e passadas Geralmente os seus visitantes se mostram satisfeitos com o trabalho e não se aborrecem quando as profecias não se cumprem Deparei com vários desses casos pude estudálos analiticamente e dentro em pouco lhes relatarei o mais curioso desses exemplos É pena que a força comprobatória dessas comu nicações seja prejudicada pelas várias omissões que me são impostas pelo de ver da discrição médica Mas evitei distorções a todo custo Ouçam então a história de uma de minhas pacientes que teve uma experiência desse tipo com um vidente Ela era a mais velha de uma série de irmãos cresceu fortemente ligada ao pai casouse jovem encontrou plena satisfação no casamento Apenas uma coisa faltava para sua felicidade permanecera sem filhos não podendo situar inteiramente o seu amado esposo no lugar do pai Quando após anos de 123286 decepção ela quis submeterse a uma operação ginecológica o marido lhe revelou que era ele o culpado ele é que devido a uma doença anterior ao casamento tornarase incapaz de procriar Ela recebeu mal essa desilusão tornouse neurótica angustiavase visivelmente com a tentação de traílo A fim de animála o marido a levou consigo numa viagem de negócios a Paris Ali se achavam numa tarde no vestíbulo do hotel quando ela notou certo re buliço entre os funcionários Ao perguntar o que havia soube que Monsieur le professeur o senhor professor tinha chegado e estava atendendo numa saleta próxima Ela manifestou o desejo de também ver como era uma consulta O marido se opôs mas num instante em que ele não olhava ela penetrou na saleta e achouse diante do vidente Ela tinha 27 anos de idade parecia mais jovem e havia tirado o anel de matrimônio Monsieur le professeur fez com que ela colocasse a mão num vaso repleto de cinzas estudou cuidadosamente a im pressão deixada e em seguida faloulhe coisas diversas sobre as lutas que ela tinha pela frente finalizando com a consoladora garantia de que ela ainda se casaria e aos 32 anos teria dois filhos Quando me contou essa história ela tinha 42 anos estava seriamente enferma e sem nenhuma perspectiva mais de ter filhos Portanto a profecia não se cumpriu mas a mulher não falava dela com nenhum traço de amargura e sim com inegável satisfação como se lhe re cordasse uma vivência feliz Era fácil perceber que ela não tinha a menor ideia do que os dois números da profecia podiam significar ou se significavam algo Vocês dirão que essa é uma história tola e incompreensível e perguntarão por que a relatei Eu teria a mesma opinião se este é o ponto capital a análise não nos possibilitasse uma interpretação da profecia que convence justamente por explicar os pormenores Pois os dois números têm lugar relev ante na vida da mãe da paciente A mãe casouse tarde após os trinta anos e na família comentavase que ela tivera êxito em recuperar o tempo perdido Os dois primeiros filhos nossa paciente em primeiro lugar nasceram no mesmo 124286 ano com o menor intervalo possível e aos 32 anos ela já tinha dois filhos O que Monsieur le professeur disse à minha paciente foi portanto Consolese você ainda é jovem Ainda terá o mesmo destino de sua mãe que também teve de esperar bastante você terá dois filhos com 32 anos de idade Mas ter o mesmo destino da mãe colocarse na posição dela tomar o lugar da mãe junto ao pai era o maior desejo de sua juventude e a não realização desse desejo é que a fazia adoecer A previsão lhe prometia que ele ainda se realizaria como poderia ela não ter simpatia pelo profeta Mas vocês acham possível que Mon sieur le professeur tivesse informações íntimas da história familiar de uma cli ente ocasional Impossível De onde vinha então o conhecimento que lhe per mitiu expressar o mais forte e mais secreto desejo da mulher ao incluir os dois números em sua profecia Vejo apenas duas possibilidades de explicação Ou a história tal como me foi contada não é verdadeira ocorreu de outra forma ou devese admitir que a transmissão de pensamento existe como fenômeno real Podemos também supor sem dúvida que após um intervalo de quinze anos ela tenha introduzido os dois números naquela lembrança a partir do in consciente Não há esteio para essa conjectura mas não posso descartála e imagino que vocês estarão dispostos a acreditar antes num tal expediente do que na realidade da transmissão de pensamentos Caso se decidam por essa úl tima não esqueçam que apenas a análise criou o fato oculto descobriuo quando estava deformado a ponto de ser irreconhecível Se não houvesse outro caso como o de minha paciente poderíamos dar de ombros e seguir adiante Ninguém vai basear numa observação isolada uma crença que implica uma virada tão decisiva Mas acreditem quando lhes asse guro que este não é o único caso de que tenho notícia Juntei toda uma coleção dessas profecias e em todas elas me veio a impressão de que o vidente apenas exprimira os pensamentos e em especial os desejos secretos dos clientes de modo que era justificado analisar tais profecias como se fossem produções 125286 subjetivas fantasias ou sonhos das pessoas em questão Claro que os casos não são todos igualmente comprobatórios nem é igualmente possível excluir ex plicações mais racionais em todos eles mas resta no conjunto um bom saldo de probabilidade em favor da transmissão de pensamentos A relevância do tema justificaria que eu lhes apresentasse todos os meus casos mas não posso fazêlo pela amplitude que teria a exposição e a inevitável quebra da discrição devida Tentarei apaziguar minha consciência na medida do possível oferecendolhes alguns exemplos mais Um dia sou procurado por um homem jovem e muito inteligente um estudante que tem pela frente os exames finais do doutorado mas que não se acha em condição de prestálos pois se lamenta de haver perdido todo in teresse toda capacidade de concentração e mesmo a faculdade de memória or ganizada A história pregressa desse estado de quase paralisia logo se revelou ele adoeceu após um grande ato de autossuperação Tem uma irmã à qual se ligava por um amor intenso mas sempre contido tal como ela a ele Que pena que não podemos casar diziam frequentemente um ao outro Um homem respeitável apaixonouse por essa irmã ela respondeu à afeição mas os pais não admitiram a união Nesse apuro o casal dirigiuse ao irmão que não lhes negou ajuda Ele intermediou a correspondência entre os dois e com sua influência obteve enfim o consentimento dos pais Mas na época do noivado sucedeu algo cuja significação é fácil adivinhar Ele empreendeu uma difícil excursão às montanhas com o futuro cunhado estavam sem guia per deram o caminho e arriscaram não retornar sãos e salvos Logo após o casamento da irmã ele ficou naquele estado de exaustão mental Por influência da psicanálise ele recobrou a aptidão para o trabalho e me deixou para fazer seus exames mas voltou por um breve período no outono do mesmo ano após realizálos com sucesso Então me contou uma experiên cia singular que tivera no verão Na cidade onde ficava sua universidade havia uma vidente de numerosa clientela Até os príncipes da casa governante a 126286 consultavam antes de uma iniciativa importante O modo como ela trabalhava era simples Pedia a data de nascimento de determinada pessoa não solicitava nenhuma informação mais sobre ela nem mesmo o nome pesquisava em obras de astrologia fazia demorados cálculos e por fim enunciava uma profe cia sobre a pessoa em questão Meu paciente decidiu valerse de suas artes ocultas com relação ao cunhado Ele a visitou e deulhe a data exigida Após realizar os cálculos ela previu Essa pessoa vai morrer de intoxicação por os tras ou caranguejo em julho ou agosto desse ano E meu paciente concluiu seu relato com estas palavras Foi formidável Desde o início eu ouvira a contragosto Após essa exclamação ousei per guntar O que lhe parece tão formidável nessa previsão Estamos no fim do outono seu cunhado não morreu ou você já teria me dado essa notícia Port anto a profecia não se realizou Isto certamente não disse ele mas o curioso é o seguinte Meu cunhado é um apaixonado apreciador de ostras e caranguejos e no verão passado antes da consulta na vidente contraiu uma intoxicação por ostras que quase o matou Que podia eu dizer Pude apenas me irritar com o fato de aquele homem tão instruído que vinha de uma análise bemsucedida não perceber claramente o nexo De minha parte em vez de acreditar que por meio da astrologia se pode calcular a incidência de uma intoxicação por ostras ou caranguejo prefiro supor que meu paciente ainda não havia superado o ódio ao rival cuja repressão o fizera adoecer e que a astróloga simplesmente exprimiu a sua própria expectativa um gosto assim não se perde e um dia ele vai perecer disso Confesso não saber de outra ex plicação para esse caso exceto talvez que o paciente tenha se permitido uma brincadeira comigo Mas nem então nem depois ele deu motivo para essa sus peita e parecia falar sério Outro caso Um homem jovem de elevada posição social tem um relacio namento com uma mulher mundana caracterizado por uma singular com pulsão De vez em quando ele a irrita com palavras de escárnio e menosprezo 127286 até ela ficar desesperada Tendoa levado a esse ponto ele fica aliviado reconciliase com ela e lhe dá um presente Mas agora ele quer livrarse dela a compulsão tornouse algo inquietante ele nota que sua própria reputação é afetada por esse relacionamento quer ter uma esposa fundar uma família Como não se desliga dessa mulher por sua própria força ele recorre à psic análise Após tal cena de xingamento já durante a análise ele obtém que ela escreva algo num cartão e o leva a um grafólogo Este lhe faz o seguinte comentário Essa caligrafia é a de uma pessoa em desespero extremo que cer tamente se matará nos próximos dias Isso não ocorre a mulher continua viva mas a análise consegue afrouxar seu vínculo ele a deixa e se volta para uma moça da qual tem a expectativa de que será uma boa esposa Pouco depois há um sonho que pode ser interpretado apenas como expressão de dúvida in cipiente no valor da moça Também dela obtém uma amostra da caligrafia que apresenta à mesma autoridade a sentença que ouve sobre essa letra confirma suas apreensões Então ele abandona o propósito de tornála sua esposa Para julgar as afirmações do grafólogo sobretudo a primeira devemos saber algo da história íntima desse homem Quando mais jovem ele havia em conformidade com sua natureza passional se enamorado loucamente de uma mulher jovem mas mais velha do que ele Rejeitado por ela fez uma tentativa de suicídio de cuja seriedade não podemos duvidar Escapou à morte por um triz e somente após demorados cuidados se recuperou Mas esse ato insano causou profunda impressão na mulher que amava e ela lhe concedeu seus favores ele se tornou seu amante ficaram ligados secretamente e ele se portava como um cavalheiro em relação a ela Após mais de vinte anos os dois tendo envelhecido ela naturalmente mais que ele surgiu nele a necessid ade de afastarse dela ficar livre levar uma vida própria e até estabelecer casa e família E juntamente com esse fastio avivouse nele a necessidade há muito reprimida de vingarse da amada Se antes ele quisera se matar porque ela o havia desprezado agora ele queria a satisfação de vêla buscar a morte porque 128286 ele a deixava Mas seu amor era ainda forte demais para que esse desejo se tor nasse consciente e tampouco era ele capaz de lhe fazer mal o bastante para impelila à morte Nesse estado de espírito ele tomou a mundana como uma espécie de bode expiatório a fim de satisfazer in corpore vili sua sede de vingança permitindose fazer nela as torturas que ele esperava teriam nela o resultado que ele desejava para a amada O fato de que a vingança dizia re speito a essa última revelavase pela circunstância de que ele a tornou sua con fidente e conselheira quanto à relação em vez de dela esconder a deserção A coitada que há muito decaíra da posição de quem dá para a de quem recebe favores provavelmente sofria mais com suas confidências do que a mundana com sua brutalidade A compulsão de que ele se queixava em relação a essa pessoa substituta e que o impeliu à análise naturalmente fora transferida da antiga amada para ela era dela que ele queria se livrar mas não podia Não sou um conhecedor da grafologia e não tenho em alta consideração a arte de adivinhar o caráter a partir da escrita tampouco creio na possibilidade de pre dizer dessa maneira o futuro de alguém Mas vocês podem ver que não im portando o valor que se dê à grafologia é inegável que o especialista ao dizer que o dono da caligrafia mostrada se mataria nos próximos dias apenas trouxe novamente à luz um forte desejo oculto da pessoa que o consultava Algo semelhante aconteceu depois no caso da segunda opinião mas aí não se tratava de um desejo inconsciente e sim da dúvida e preocupação incipientes do consulente que acharam clara expressão pelo grafólogo De resto meu pa ciente conseguiu com a ajuda da análise encontrar um objeto amoroso fora do círculo de encantamento em que estava preso Senhoras e senhores Acabaram de ver o que a interpretação dos sonhos e a psicanálise podem esclarecer em relação ao ocultismo Viram exemplos em que mediante sua aplicação são mostrados fatos ocultos que de outro modo permaneceriam desconhecidos A questão que certamente lhes interessa mais 129286 se podemos acreditar na realidade objetiva desses achados a psicanálise não é capaz de responder diretamente mas o material revelado com o seu auxílio faz pelo menos uma impressão favorável a uma resposta afirmativa Mas seu interesse não vai ficar nisso Vocês quererão saber que conclusões poderão ser tiradas do material bem mais rico de que a psicanálise não parti cipa E não poderei acompanhálos nisso já não é o meu âmbito A única coisa que posso ainda fazer é relatar observações que têm com a psicanálise a relação única de terem sido feitas durante o tratamento analítico e talvez tornadas possíveis pela influência deste Vou lhes comunicar um exemplo desses aquele que me deixou a mais forte impressão e serei meticuloso pedirei sua atenção para uma série de detalhes e ainda terei de suprimir várias coisas que aument ariam bastante o poder persuasivo da observação É um exemplo no qual o fato vem claramente à luz e não necessita ser desenvolvido pela análise Em sua dis cussão não poderemos dispensar a análise porém Mas já lhes adianto que tam bém esse caso de aparente transmissão de pensamentos na situação analítica não se acha imune a toda objeção não permite uma incondicional posição em favor da realidade dos fenômenos ocultos Então escutem Um dia no outono de 1919 pelas 10h45 o dr David Forsyth recémchegado de Londres faz com que me entreguem seu cartão enquanto me ocupo de um paciente Meu distinto colega da London University certamente não verá como indiscrição o fato de eu revelar com isso que por alguns meses ele se iniciou comigo nas artes da técnica psicanalít ica Eu só tenho tempo para saudálo e marcar um encontro para depois O dr Forsyth merece o meu particular interesse é o primeiro estrangeiro que me procura após o isolamento dos anos de guerra e isso deve inaugurar uma épo ca melhor Logo em seguida às 11 horas chega um de meus pacientes um homem espirituoso e agradável de quarenta a cinquenta anos de idade que começou a análise algum tempo atrás devido a dificuldades com as mulheres Terapeuticamente seu caso não prometia sucesso Há muito lhe propus cessar 130286 o tratamento mas ele desejou que continuasse obviamente por sentirse à vontade numa suave transferência paterna para comigo O dinheiro não im portava então pois havia muito pouco em circulação As horas que eu passava com ele também eram estímulo e distração para mim e desse modo ignorando as estritas regras da atividade médica o trabalho analítico foi sendo conduzido até um prazo estipulado Nesse dia P voltou a suas tentativas de estabelecer laços amorosos com mulheres referindose novamente à garota pobre bonita e interessante com a qual ele poderia ter sucesso se o fato de ela ser virgem não lhe desencorajasse qualquer empenho sério Já falara dela em várias ocasiões e pela primeira vez contou que ela que naturalmente não faz ideia dos motivos reais do seu im pedimento costuma chamálo de sr Vorsicht Esta informação me surpreende o cartão do dr Forsyth está em minha mão eu o mostro a ele Este o fato Já sei que lhes parecerá irrelevante mas escutem um pouco mais há mais coisas por trás dele Quando jovem P viveu alguns anos na Inglaterra e conservou um in teresse permanente na literatura inglesa Possui uma rica biblioteca de livros ingleses e costuma trazerme livros A ele devo o conhecimento de autores como Bennett e Galsworthy dos quais havia lido muito pouco Um dia me emprestou um romance de Galsworthy intitulado The man of property que se desenvolve no seio de uma família Forsyte inventada pelo escritor O próprio Galsworthy foi evidentemente cativado por essa criação pois em outros volumes retornou a membros dessa família e afinal reuniu sob o título The Forsyte saga todas as obras a ela relacionadas Poucos dias antes do evento que relato P me trouxe um novo livro dessa série O nome Forsyte com as carac terísticas que o autor quis nele personificar também surgia nas minhas conver sas com P tornouse parte da linguagem secreta que se forma entre duas pess oas que se veem regularmente Ora esse nome dos romances pouco difere daquele do meu visitante Forsyth para ouvidos alemães quase não se diferen cia e o vocábulo inglês que pronunciamos da mesma forma seria foresight 131286 traduzido por Voraussicht previsão ou Vorsicht precaução Portanto P havia realmente extraído de suas relações pessoais o mesmo nome de que eu então me ocupava devido a um acontecimento por ele ignorado A coisa já fica melhor não é verdade Mas acho que obteremos uma im pressão mais forte desse fenômeno singular e até um vislumbre das condições do seu surgimento se esclarecermos analiticamente duas outras associações que P apresentou na mesma sessão Primeira num dia da semana anterior eu havia esperado o sr P em vão às 11 horas e depois havia saído para visitar o dr Anton von Freund em sua pensão Fiquei surpreso ao descobrir que o sr P morava num outro andar da casa onde se achava a pensão Referindome a isso falei depois a P que eu por assim dizer lhe fizera uma visita em sua casa mas estou certo de que não lhe disse o nome da pessoa que visitei na pensão E logo depois de mencionar o sr Vorsicht ele me pergunta se a mulher de sobrenome FreudOttorego que ensina inglês na Volksuniversität Universidade Popular seria por acaso minha filha E pela primeira vez em nossa longa relação distorce meu nome da mesma forma que funcionários públicos autoridades e tipógrafos costum am fazer diz Freund em vez de Freud Segunda no final da mesma sessão ele relata um sonho do qual acordou an gustiado um verdadeiro pesadelo Alptraum diz Acrescenta que há não muito tempo esqueceu a palavra inglesa para isso e quando alguém lhe per guntou respondeu que pesadelo se diz a mares nest em inglês Claro que isso é absurdo diz ele a mares nest significa algo inacreditável uma lorota a tradução de Alptraum é nightmare O único elemento em comum nesta asso ciação e na anterior parece ser inglês mas a mim ela não deixa de lembrar um pequeno incidente ocorrido um mês antes P estava sentado em meu con sultório quando inesperadamente surgiu outro visitante querido de Londres o dr Ernest Jones após uma demorada separação Eu lhe fiz sinal para que se di rigisse a outro aposento enquanto eu terminava com P Mas este o reconheceu 132286 imediatamente por uma foto na parede da sala de espera e inclusive mani festou o desejo de lhe ser apresentado Jones é autor de uma monografia sobre o pesadelo nightmare Eu não sabia se P a conhecia ele evitava ler livros de psicanálise Agora quero investigar com vocês que entendimento analítico podemos al cançar do conjunto das associações de P e suas motivações Ele tinha a mesma atitude que eu em relação ao nome Forsyte ou Forsyth para ele significava a mesma coisa e eu inclusive lhe devia o conhecimento desse nome O fato curioso é que ele o trouxe para a análise repentinamente tão logo o nome tornouse significativo para mim através de um novo acontecimento a chegada do médico de Londres Talvez não menos interessante que o fato mesmo é o modo como o nome surgiu na sessão de análise O paciente não disse por exemplo Agora me vem o nome Forsyte dos romances que o sr conhece mas sim sem nenhuma relação consciente com essa fonte entremeouo com suas próprias vivências e o trouxe à luz a partir delas o que poderia ter sucedido havia muito tempo e não sucedera até aquele momento E então disse Eu também sou um Forsyth a garota me chama assim Não é difícil perceber a mescla de solicitação ciumenta e melancólica depreciação de si que se exprime nesse comentário Não haverá erro em completálo da seguinte forma Fico aborrecido de seus pensamentos se ocuparem tanto do recémchegado Volte a mim eu também sou um Forsyth embora apenas um homem de Vorsicht prudência como diz a garota E o curso de seus pensamentos retrocede pelo fio associativo do elemento inglês a duas opor tunidades anteriores que puderam despertar o mesmo ciúme Há alguns dias o sr fez uma visita a minha casa infelizmente não a mim mas a um sr von Freund Esse pensamento o faz alterar o nome Freud para Freund amigo A mulher de nome FreudOttorego do programa de cursos serve aqui por forne cer a associação manifesta como professora de inglês Enfim vem a lembrança de uma outra visita algumas semanas antes um visitante do qual ele também não podia se sentir à altura pois o dr Jones foi capaz de escrever um ensaio 133286 sobre o pesadelo enquanto ele apenas produziu sonhos desse tipo Também a menção de seu erro quanto ao sentido de a mares nest cabe nesse contexto pois pode apenas querer dizer Não sou um verdadeiro inglês assim como não sou um verdadeiro Forsyth Não posso descrever seus ciúmes nem como inadequados nem como in compreensíveis Ele estava ciente de que sua análise e portanto nossa relação terminaria quando pacientes e discípulos estrangeiros retornassem a Viena e assim aconteceu realmente pouco depois Mas o que realizamos até então foi uma porção de trabalho analítico o esclarecimento de três associações que ele trouxe na mesma sessão alimentadas do mesmo tema e isso não tem muito a ver com a questão de se tais associações podem ou não se produzir sem trans missão de pensamento Essa questão aparece em cada uma das três associações decompondose assim em três questões diversas Podia P saber que o dr For syth estava fazendo sua primeira visita Podia saber qual era o nome da pessoa que visitei no seu prédio Sabia que o dr Jones escreveu uma monografia sobre o pesadelo Ou foi apenas o meu conhecimento dessas coisas que se rev elou em suas associações A resposta a essas três perguntas determinará se minha observação permite uma conclusão favorável à transmissão de pensamentos Deixemos a primeira de lado por um instante as duas outras são mais fáceis de lidar O caso da visita à pensão faz uma impressão muito con fiável à primeira vista Estou certo de não haver falado nenhum nome numa menção rápida e brincalhona à visita em seu prédio Acho bastante improvável que P tenha se informado na pensão sobre o nome da pessoa acredito isto sim que a existência desta permaneceu desconhecida para ele Mas o valor de evidência desse caso é comprometido por uma casualidade O homem que eu visitei na pensão não apenas se chamava Freund mas era para nós todos um verdadeiro Freund amigo Era o dr Anton von Freund cuja doação havia tornado possível a nossa editora Sua morte prematura e a do nosso Karl Abra ham alguns anos depois foram os maiores infortúnios a atingir o desenvolvi mento da psicanálise Então eu posso ter dito ao sr P Visitei no seu prédio 134286 um Freund e com essa possibilidade desaparece o interesse ocultista em sua segunda associação Também a impressão causada pela terceira associação se esvanece rapida mente Podia P saber que Jones publicou uma monografia sobre o pesadelo uma vez que não lia jamais a literatura psicanalítica Sim podia saber Ele pos suía livros de nossa editora podia ter visto nas sobrecapas os títulos das novas publicações anunciadas Isso não pode ser provado mas tampouco re futado Por esse caminho não chegaremos a decisão nenhuma portanto La mento que minha observação sofra do mesmo defeito de tantas outras Foi re gistrada tarde demais e discutida num momento em que eu já não via o sr P e não podia mais questionálo Voltemos então ao primeiro caso que mesmo isolado torna sustentável aparentemente o fato da transmissão de pensamento Podia P saber que o dr Forsyth estivera ali quinze minutos antes Podia saber de sua existência ou de sua presença em Viena Não se deve ceder à inclinação de negar redonda mente as duas questões Vejo um caminho que leva a uma resposta afirmativa parcial Eu posso ter informado ao sr P que esperava um médico inglês para ser treinado na análise a primeira pomba após o dilúvio Isso pode ter sido no verão de 1919 o dr Forsyth havia se entendido comigo por carta meses antes de sua vinda Posso até haver mencionado o seu nome embora isto seja im provável Em vista da outra significação que o nome tinha para nós dois sua menção traria uma conversa que teria ficado em minha memória No entanto pode ser que isso tenha acontecido e eu o tenha esquecido completamente de pois de modo que o sr von Vorsicht de cautela na sessão de análise pôde me impressionar como algo prodigioso Quando o indivíduo se considera um cético é bom duvidar às vezes do seu próprio ceticismo Talvez se ache tam bém em mim a secreta inclinação pelos prodígios que tanto favorece a criação de eventos ocultistas 135286 Tendo afastado uma das possibilidades de prodígio deparamos com outra a mais difícil delas Supondo que o sr P soubesse que havia um dr Forsyth e que este era esperado em Viena no outono como explicar que se tornasse re ceptivo em relação a ele justamente no dia de sua chegada e após sua primeira visita Podese dizer que isso foi acaso isto é deixálo sem explicação mas eu discuti as duas outras associações de P justamente para excluir o acaso para lhes mostrar que ele realmente sentia ciúmes de pessoas que me visitam e que eu visito ou para não descuidar da possibilidade extrema podese aventar a hipótese de que P teria notado uma agitação especial em mim da qual nada sei de fato e dela tirado sua conclusão Ou o sr P que afinal chegou apenas quinze minutos após o inglês o teria encontrado no pequeno trecho do caminho que era comum aos dois o teria reconhecido na sua aparência ca racteristicamente inglesa e pensado Ah este é o dr Forsyth que porá fim à minha análise com sua chegada E provavelmente está vindo do professor agora Não posso ir mais adiante com essas conjecturas racionais Haverá novamente um non liquet não está provado mas devo confessar que minha sensação é de que também aí a balança se inclina a favor da transmissão de pensamentos Aliás não sou o único a vivenciar tais acontecimentos ocultos na situação analítica Helene Deutsch deu a conhecer observações similares em 1926 estudando como seriam determinadas pelas relações de transferência entre pacientes e analistas Estou convencido de que vocês não se acham muito satisfeitos com minha posição ante esse problema a de não se convencer inteiramente e no entanto estar disposto a ser convencido Talvez digam Eis novamente o caso de um homem que toda a sua vida trabalhou honestamente como cientista e na velhice tornouse estúpido religioso ingênuo Sei que alguns grandes nomes se incluem nessa categoria mas não devem me colocar nela Pelo menos reli gioso não me tornei e tampouco ingênuo espero Apenas ocorre que quando alguém passou a vida encurvado a fim de evitar um choque doloroso com os 136286 fatos conserva também na velhice o dorso arqueado a curvarse ante novas realidades Certamente vocês prefeririam que eu me ativesse a um moderado teísmo e fosse implacável na rejeição a todo ocultismo Mas sou incapaz de granjear benevolência devo sugerir que pensem mais amigavelmente sobre a possibilidade objetiva da transmissão de pensamentos e portanto da telepatia Não esqueçam que somente abordo aqui esses problemas na medida em po demos nos avizinhar deles a partir da psicanálise Quando eles surgiram primeiramente no meu horizonte há mais de dez anos também senti o medo de uma ameaça à nossa visão de mundo científica que caso parcelas do ocult ismo se mostrassem verdadeiras teria de ceder lugar ao espiritismo ou ao mist icismo Hoje penso diferente acho que não damos testemunho de grande con fiança na ciência se não a cremos capaz de acolher e elaborar o que se revelar válido nas afirmações ocultistas E particularmente quanto à transmissão de pensamentos ela parece inclusive favorecer a extensão do modo de pensar científico mecanicista segundo os adversários às coisas espirituais de tão difícil apreensão O processo telepático deve consistir em que um ato men tal de uma pessoa provoca o mesmo ato mental em outra pessoa O que há entre os dois atos mentais pode facilmente ser um processo físico no qual o psíquico se converte numa ponta e que na outra ponta se converte novamente no psíquico Seria clara então a analogia com outras conversões como no falar e ouvir ao telefone E imaginem se pudéssemos nos apoderar do equival ente físico do ato psíquico Pareceme que com a inserção do inconsciente entre o físico e o até então denominado psíquico a psicanálise nos preparou para a hipótese de eventos como a telepatia Se nos habituamos à ideia da tele patia podemos fazer muita coisa com ela claro que só na imaginação por enquanto Como é notório não sabemos como surge a vontade geral nas grandes sociedades de insetos Possivelmente isso ocorre pela via de uma transferência psíquica direta desse tipo Somos levados à conjectura de que esta seria a via de entendimento original arcaica entre os seres individuais que no curso da evolução filogenética é sobrepujada pelo método superior da 137286 comunicação com ajuda de sinais captados pelos órgãos dos sentidos Mas o método mais antigo poderia permanecer no fundo e ainda prevalecer em de terminadas condições por exemplo em multidões apaixonadamente agitadas Tudo isso é ainda incerto e pleno de enigmas não resolvidos mas não é motivo para nos assustarmos Se houver telepatia como processo real podese conjecturar não obstante sua difícil demonstração que seja um fenômeno bem frequente Estaria de acordo com nossa expectativa se pudéssemos mostrála justamente na vida psíquica da criança Com relação a isso lembramos a frequente angústia que têm as crianças de que os pais conhecem todos os seus pensamentos sem que elas os tenham comunicado a plena contrapartida e talvez a fonte da crença dos adultos na onisciência divina Uma pesquisadora digna de crédito Dorothy Burlingham comunicou recentemente num ensaio intitulado A an álise infantil e a mãe observações que se confirmadas porão fim às dúvidas restantes sobre a realidade da transmissão de pensamentos Ela recorreu à situ ação agora já não rara em que mãe e filho se acham simultaneamente em an álise e relatou eventos curiosos como este que segue Um dia na sessão a mãe falou de uma moeda de ouro que teve determinado papel numa das cenas de sua infância Logo depois ao chegar em casa seu filho de dez anos de idade vai ao seu quarto e lhe dá uma moeda de ouro que ela deve guardar para ele A mãe lhe pergunta surpresa onde a arranjou O menino a ganhou no aniver sário mas este aconteceu meses atrás e não há por que ele lembrarse da moeda justamente agora A mãe informa a analista do garoto sobre a coin cidência e lhe pede que investigue junto a ele o motivo daquele ato Mas a an álise do garoto nada esclarece o ato penetrou em sua vida naquele dia como um corpo estranho Algumas semanas depois a mãe está sentada na escrivan inha para registrar o acontecido como lhe solicitaram vem o garoto pedindo de volta a moeda de ouro para levar e mostrar na sessão de análise Nova mente sua análise não consegue achar a motivação para esse desejo E com isso retornamos à psicanálise da qual partimos 138286 31 A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA Senhoras e senhores Sei que conhecem a importância que tem o ponto de partida em suas próprias relações sejam elas com pessoas ou com coisas Foi assim também com a psicanálise fez diferença para o desenvolvimento que teve e a recepção que encontrou que ela tivesse começado seu trabalho com o sintoma aquilo que na psique é mais alheio ao Eu O sintoma vem do reprim ido é como que o representante dele ante o Eu mas o reprimido é para o Eu terra estrangeira terra estrangeira interior assim como a realidade permitamme a expressão insólita é terra estrangeira exterior Partindo do sintoma o caminho nos levou ao inconsciente à vida instintual à sexualidade foi a época em que a psicanálise teve de ouvir as engenhosas objeções de que o homem não é apenas um ser sexual de que também conhece impulsos mais nobres mais elevados Poderiam ter acrescentado que exaltado pela consciên cia desses sublimes impulsos ele frequentemente se arroga o direito de pensar absurdos e negligenciar fatos Vocês sabem mais coisas desde o início sustentamos que o ser humano ad oece graças ao conflito entre as exigências da vida instintual e a resistência que nele se estabelece contra elas e em nenhum instante esquecemos essa instância que resiste rechaça reprime que imaginamos dotada de suas forças particu lares os instintos do Eu e que coincide justamente com o Eu da psicologia popular No entanto dado o laborioso progresso do trabalho científico tam bém a psicanálise não pôde estudar simultaneamente todos os campos e manifestarse de uma só vez sobre todos os problemas Por fim avançamos de modo a poder afastar nossa atenção do reprimido e voltála para o repressor e achamonos diante desse Eu que parecia ser tão evidente com a segura 139286 expectativa de também ali achar coisas para as quais não podíamos estar pre parados mas não foi fácil encontrar o acesso inicial a ele É a respeito disso que hoje pretendo lhes falar Mas devo manifestar a suspeita de que esta minha exposição da psicologia do Eu lhes produzirá um efeito diverso daquele da introdução ao mundo psíquico subterrâneo que a precedeu Não sei dizer com segurança por que isso deve ser assim Primeiramente pensei que achariam que antes lhes relatei sobretudo fatos embora estranhos e peculiares enquanto agora ouvirão prin cipalmente concepções ou seja especulações Mas não é isso refletindo mel hor devo dizer que o montante de elaboração intelectual do material concreto em nossa psicologia do Eu não é maior que na psicologia da neurose Tive de rejeitar outras motivações possíveis para minha ideia inicial agora creio que isso está relacionado de algum modo à natureza do material mesmo e à nossa falta de costume em lidar com ele De toda forma não me surpreenderei se vo cês se mostrarem ainda mais reservados e cautelosos do que antes A situação em que nos achamos no início de nossa pesquisa deve nos indi car ela mesma o caminho Queremos fazer do Eu o nosso próprio Eu o objeto de nossa pesquisa Mas podese fazer isso Afinal o Eu é o sujeito por excelên cia como pode tornarse objeto Ora não há dúvida de que isso é possível O Eu pode tomar a si mesmo por objeto tratar a si mesmo como a outros objetos observarse criticarse e fazer sabe Deus mais o que consigo mesmo Nisso uma parte do Eu contrapõese ao resto Portanto o Eu é divisível ele se divide durante várias de suas funções ao menos provisoriamente Suas partes podem unirse novamente depois Isso não é propriamente novidade talvez seja uma ênfase pouco habitual em coisas geralmente conhecidas Por outro lado achamonos familiarizados com a noção de que a patologia na me dida em que aumenta e torna mais grosseiro pode chamar a atenção para con dições normais que de outra maneira não perceberíamos Ali onde ela nos mostra uma ruptura ou uma fenda pode haver normalmente uma articulação 140286 Se lançamos um cristal ao chão ele se quebra mas não arbitrariamente ele se parte conforme suas linhas de separação em fragmentos cuja delimitação em bora invisível é predeterminada pela estrutura do cristal Os doentes mentais são estruturas assim fendidas e despedaçadas Também não podemos lhes negar um tanto do temor reverencial que os povos antigos demonstravam para com os loucos Eles deram as costas à realidade externa mas justamente por causa disso sabem mais da realidade interna psíquica e podem nos revelar coisas que de outro modo nos seriam inacessíveis A respeito de um grupo desses doentes afirmamos que sofrem de delírio de ser observado Queixamse de ser importunados incessantemente até nos atos mais íntimos pela obser vação da parte de poderes desconhecidos provavelmente pessoas e têm alu cinações em que ouvem tais pessoas enunciarem o resultado de sua obser vação Agora ele vai dizer isso agora ele se veste para sair etc Tal obser vação não é o mesmo que uma perseguição mas não está longe disso pres supõe que as pessoas desconfiam deles que esperam flagrálos em ações proi bidas pelas quais devem ser castigados Como seria se esses loucos tivessem razão se em todos nós houvesse uma tal instância no Eu observadora e punit iva que neles apenas tivesse se separado agudamente do Eu e sido deslocada erradamente para a realidade externa Não sei se com vocês sucede o mesmo que comigo Desde que sob a forte impressão desse quadro clínico tive a ideia de que a separação de uma instân cia observadora do resto do Eu poderia ser um traço regular da estrutura do Eu essa ideia não me abandonou mais e fui impelido a investigar as demais ca racterísticas e relações dessa instância assim segregada O passo seguinte logo foi dado O teor do delírio de ser observado já leva a crer que a observação é apenas um preparativo para o julgamento e a punição e assim nos aperce bemos de que uma outra função dessa instância deve ser aquilo que chamamos de nossa consciência Não parece haver em nós algo mais que separamos regularmente do nosso Eu e a ele contrapomos tão facilmente como a nossa consciência Sinto uma inclinação para fazer algo que promete me dar prazer 141286 mas não o faço argumentando que minha consciência não o permite Ou deixo que a enorme expectativa de prazer me leve a fazer algo contra o qual a voz da consciência levanta objeção e depois do ato minha consciência me pune com dolorosas recriminações levandome a sentir arrependimento pelo ato Eu po deria simplesmente dizer que a instância especial que começo a distinguir no Eu é a consciência mas é mais prudente conservar essa instância como algo in dependente e supor que a consciência seja uma de suas funções e a autoobser vação indispensável como pressuposto para a atividade judicativa da con sciência seja outra E como é próprio do reconhecimento de uma existência distinta dar à coisa um nome próprio passarei a designar essa instância do Eu como o Supereu Nesse momento estou preparado para ouvilos perguntar ironicamente se nossa psicologia do Eu resumese apenas a tomar literalmente e tornar mais grosseiras as abstrações comuns a transformálas de conceitos em coisas algo com que não se ganharia muito E respondo que na psicologia do Eu é difícil evitar o que é geralmente conhecido tratase antes de concepções e arru mações novas que de novas descobertas Logo não lhes peço que abandonem sua atitude crítica mas que aguardem os desenvolvimentos seguintes Os fatos da patologia dão a nossos esforços um pano de fundo que vocês buscariam em vão na psicologia popular Prossigo então Mal nos familiarizamos com a ideia de um tal Supereu que goza de certa autonomia persegue seus próprios ob jetivos e possui energia independente do Eu chamanos a atenção um quadro patológico que ilustra muito bem a severidade a crueldade mesmo dessa in stância e as suas cambiantes relações com o Eu Refirome ao estado de melan colia mais precisamente ao surto de melancolia do qual também vocês já ouviram falar ainda que não sejam psiquiatras Nesse transtorno de cujas cau sas e mecanismo sabemos muito pouco a característica mais saliente é a maneira como o Supereu a consciência moral vocês podem dizer trata o Eu Enquanto em épocas sadias o melancólico pode ser mais ou menos severo consigo mesmo como qualquer pessoa no surto melancólico o Super 142286 eu tornase rigoroso demais xinga humilha e maltrata o pobre Eu ameaçao com os mais duros castigos recriminao por atos passados que na época não foram levados a sério como se durante todo o intervalo houvesse juntado acusações e esperasse apenas seu fortalecimento atual para apresentálas e com base nelas fazer a condenação O Supereu aplica o mais rigoroso critério moral ao Eu abandonado à sua mercê representa mesmo as exigências da mor alidade e logo notamos que o nosso sentimento de culpa é expressão da tensão entre Eu e Supereu É uma notável experiência ver como um fenômeno per iódico a moralidade supostamente dada por Deus e profundamente arraigada em nós Pois sucede que após alguns meses todo aquele alvoroço moral desa parece a crítica do Supereu silencia o Eu é reabilitado e goza novamente de todos os direitos até o próximo surto E em certas formas da doença ocorre o oposto nos intervalos o Eu se acha num estado de venturosa embriaguez tri unfante como se o Supereu tivesse perdido toda a força ou se fundido com o Eu e este Eu liberado maníaco permitese realmente a franca satisfação de to dos os seus apetites Eventos pródigos em enigmas não resolvidos Sem dúvida vocês esperarão mais do que uma simples ilustração se lhes digo que aprendemos muitas coisas sobre a gênese da consciência Apoiando se numa conhecida frase de Kant que justapõe a consciência moral dentro de nós e o céu estrelado um homem religioso poderia ser tentado a venerar essas duas coisas como as obrasprimas da Criação As estrelas são magníficas sem dúvida mas quanto à consciência moral Deus fez uma obra desigual e des cuidada pois a maioria dos homens a tem numa medida bastante modesta ou até insuficiente para que seja mencionada Não desconhecemos o quê de ver dade psicológica existente na afirmação de que a consciência moral é de ori gem divina mas isso requer interpretação Se a consciência é algo dentro de nós não o é desde o início Nisso forma um verdadeiro contraste com a vida sexual que desde o começo da vida está presente não é acrescentada depois Mas o bebê é notoriamente amoral não tem inibições internas para seus im pulsos que buscam o prazer O papel que o Supereu virá a assumir é 143286 desempenhado primeiramente por um poder externo pela autoridade parental A influência dos pais governa a criança concedendolhe provas de amor e ameaças de castigo que atestam a perda do amor e são temidos por si mesmos Essa angústia realista é precursora da posterior angústia moral enquanto ela vigora não precisamos falar de Supereu e de consciência moral Apenas mais tarde se cria a situação secundária que nos dispomos demasiado prontamente a ver como normal em que o obstáculo externo é internalizado em que o Supereu toma o lugar da instância parental e então observa dirige e ameaça o Eu exatamente como os pais faziam com a criança Mas o Supereu que dessa forma assume o poder a função e até os méto dos da instância parental é não apenas sucessor mas também legítimo her deiro desta Ele se origina diretamente dela logo veremos por qual processo Primeiro devemos lidar com uma discrepância entre os dois O Supereu parece ter tomado unilateralmente apenas a dureza e severidade dos pais sua função punitiva e proibidora mas sua amorosa solicitude não tem continuação Se os pais exerceram de fato um regime severo acreditamos ser compreensível que também na criança se desenvolva um Supereu severo mas a experiência mostra contrariando nossa expectativa que o Supereu pode adquirir a mesma implacável dureza quando a educação foi branda e bondosa evitando ao máx imo os castigos e ameaças Retornaremos a essa contradição quando abordar mos as transformações do instinto durante a formação do Supereu Sobre a mudança da instância parental em Supereu não sei lhes dizer tanto quanto gostaria em parte porque esse processo é tão complicado que sua ex posição não cabe nos limites de uma introdução tal como aqui lhes ofereço e por outro lado porque não cremos nós mesmos havêlo compreendido inteira mente Queiram satisfazerse portanto com o seguinte esboço A base deste processo é o que se chama de identificação isto é o assemelhamento de um Eu a outro em que o primeiro Eu se comporta como o outro em determinados aspectos imitao de certo modo o assimila A identificação já foi comparada não sem razão à incorporação oral canibalesca da outra pessoa É uma forma 144286 muito importante de ligação com outro alguém provavelmente a mais primor dial não é a mesma que a escolha de objeto Podese exprimir assim a difer ença quando o menino se identifica com o pai ele quer ser como o pai quando o faz objeto de sua escolha ele quer têlo possuílo no primeiro caso seu Eu é modificado segundo o modelo do pai no segundo isto não é necessário Iden tificação e escolha de objeto são em larga medida independentes uma da outra mas é possível alguém se identificar com a mesma pessoa que tomou por objeto sexual mudar seu Eu segundo ela Dizse que a influência exercida no Eu pelo objeto sexual é particularmente frequente nas mulheres e algo carac terístico da feminilidade Na primeira série de conferências devo ter lhes falado sobre aquela que é de longe a mais instrutiva relação entre identificação e escolha de objeto É facilmente observada tanto em crianças como em adultos em pessoas normais e pessoas doentes Quando alguém perdeu ou teve de abandonar um objeto com frequência compensa isso identificandose com ele instaurandoo novamente dentro de seu Eu de modo que a escolha de objeto como que regride à identificação nesse caso Eu próprio não estou satisfeito com essas observações sobre a identificação mas bastará que vocês me concedam que a instauração do Supereu pode ser vista como um caso bemsucedido de identificação com a instância parental O fato decisivo para essa concepção é que essa nova criação de uma instância su perior no Eu se acha intimamente ligada ao destino do complexo de Édipo de modo que o Supereu aparece como herdeiro dessa ligação afetiva tão import ante na infância Entendemos que com a cessação do complexo de Édipo a cri ança teve de renunciar aos intensos investimentos de objeto que fez nos pais e como compensação por essa perda de objeto são bastante fortalecidas as identi ficações com os pais que provavelmente existiam há muito no seu Eu Tais identificações enquanto precipitados de investimentos objetais abandonados repetirseão depois frequentemente na vida da criança mas está inteiramente de acordo com o valor afetivo desse primeiro exemplo de tal transformação que o seu resultado venha a ter uma posição especial no Eu O 145286 aprofundamento da investigação nos ensina também que o Supereu é preju dicado na força e no desenvolvimento quando a superação do complexo de Édipo não é inteiramente conseguida No curso do desenvolvimento o Super eu acolhe também as influências das pessoas que tomaram o lugar dos pais ou seja de educadores mestres modelos ideais Em geral ele distanciase cres centemente dos pais originais tornandose mais impessoal por assim dizer Não esqueçamos também que a criança estima diferentemente os pais con forme as diferentes épocas de sua vida No tempo em que o complexo de Édipo dá lugar ao Supereu eles são algo formidável depois perdem muito Então ocorrem também identificações elas inclusive contribuem grandemente para a formação do caráter mas então afetam apenas o Eu já não influem no Supereu que foi determinado pelas primeiras imagos parentais Espero que já percebam que nossa postulação de um Supereu descreve de fato uma relação estrutural não personifica simplesmente uma abstração como a da consciência moral Temos ainda a mencionar uma importante função que atribuímos a este Supereu Ele é também o portador do ideal do Eu pelo qual o Eu se mede o qual busca igualar e cuja demanda por uma perfeição cada vez maior ele se empenha em satisfazer Sem dúvida esse ideal do Eu é o precipit ado da velha ideia que a criança tinha dos pais a expressão da admiração de quem os considerava perfeitos Sei que ouviram falar muito do sentimento de inferioridade que caracteriz aria justamente os neuróticos Ele aparece principalmente nas chamadas belas letras Um autor que utiliza a expressão complexo de inferioridade acred ita desse modo satisfazer todas as exigências da psicanálise e elevar sua ex posição a um mais alto nível psicológico Na realidade tal expressão quase não se usa na psicanálise Não significa para nós algo que seja simples muito menos elementar Relacionálo à autopercepção de eventuais atrofias de ór gãos como gosta de fazer a escola que chamam de psicologia individual parecenos um equívoco estreito O sentimento de inferioridade tem fortes 146286 raízes eróticas A criança sentese inferior ao notar que não é amada e assim também o adulto O único órgão realmente considerado inferior é o pênis at rofiado o clitóris da garota A parte principal do sentimento de inferioridade no entanto vem da relação do Eu com seu Supereu é tal como o sentimento de culpa expressão da tensão entre os dois Sentimento de inferioridade e sen timento de culpa são dificilmente separáveis Talvez seja pertinente ver no primeiro a complementação erótica do sentimento de inferioridade moral Na psicanálise demos pouca atenção a esse problema da delimitação dos dois conceitos Justamente porque o complexo de inferioridade tornouse tão popular permitome entretêlos com uma breve digressão neste ponto Um person agem histórico de nosso tempo que ainda vive agora retirado tem um defeito num dos seus membros consequência de uma lesão sofrida no nascimento Um conhecido autor contemporâneo que se dedicou a biografias de pessoas eminentes também abordou a vida desse homem a que me refiro Pode ser difícil ao escrever uma biografia suprimir a necessidade de aprofundamento psicológico Por isso este nosso autor se aventurou a basear toda a evolução do caráter do herói no sentimento de inferioridade que o defeito físico despertava Nisso ele ignorou um fato pequeno mas não insignificante Geralmente ocorre que uma mãe a quem o destino deu um filho doente ou de algum modo defi ciente procure compensálo por essa injusta desvantagem com amor em abundância No caso de que falamos a orgulhosa mãe agiu de outra forma ela subtraiu ao filho seu amor por conta daquele defeito Quando o filho se trans formou num homem poderoso seus atos demonstraram inequivocamente que não perdoava a mãe Ao considerarem a importância do amor materno para a vida psíquica de uma criança vocês deverão corrigir mentalmente a teoria de inferioridade do biógrafo Voltemos agora ao Supereu Atribuímos a ele a autoobservação a con sciência moral e a função de ideal Do que dissemos sobre sua gênese resulta 147286 que ele tem como pressupostos um fato biológico importantíssimo e um fato psicológico pleno de consequências a longa dependência que a criança tem dos pais e o complexo de Édipo ambos intimamente relacionados Para nós o Supereu é o representante de todo limite moral o advogado do anseio por perfeição em suma aquilo que pudemos apreender psicologicamente do as pecto dito elevado da vida humana Como ele próprio remonta à influência dos pais educadores etc sua importância ficará mais clara se nos voltarmos para essas fontes Via de regra os pais e autoridades análogas seguem na edu cação da criança os preceitos do seu próprio Supereu Não importando como o seu Eu tenha se arranjado com seu Supereu na educação da criança eles são rigorosos e exigentes Esqueceram as dificuldades de sua própria infância es tão satisfeitos de poder identificarse totalmente com os próprios pais que a seu tempo lhes impuseram essas duras restrições De modo que o Supereu da criança é construído não segundo o modelo dos pais mas do Supereu dos pais preenchese com o mesmo conteúdo tornase veículo da tradição de to dos os constantes valores que assim se propagaram de geração a geração Vocês já percebem que importante ajuda a consideração do Supereu pode fornecer para o entendimento da conduta social humana por exemplo a questão da delinquência e talvez também que sugestões práticas dela res ultam para a educação Provavelmente as concepções históricas chamadas de materialistas pecam por subestimar esse fator Elas o põem de lado com a ob servação de que as ideologias dos homens nada mais são que produto e su perestrutura de suas relações econômicas atuais Isso é verdade mas muito provavelmente não é toda a verdade A humanidade nunca vive inteiramente no presente o passado a tradição da raça e do povo prossegue vivendo nas ideologias do Supereu apenas muito lentamente cede às influências do presente às novas mudanças e na medida em que atua através do Supereu desempenha um grande papel na vida humana independentemente das con dições econômicas 148286 Em 1921 busquei aplicar a distinção entre Eu e Supereu ao estudo da psico logia das massas Cheguei a uma fórmula assim uma massa psicológica é uma junção de indivíduos que introduziram a mesma pessoa em seu Supereu e com base nesse elemento em comum identificaramse uns com os outros em seu Eu Naturalmente ela vale apenas para massas que têm um líder Se tivéssemos mais aplicações desse tipo a hipótese do Supereu perderia o quê de estranheza que ainda tem para nós e nos livraríamos totalmente do em baraço que nos sobrevém quando acostumados à atmosfera do mundo subterrâneo movemonos nas camadas mais superficiais mais elevadas do aparelho psíquico Obviamente não acreditamos que ao diferenciar o Super eu falamos a última palavra sobre a psicologia do Eu Tratase isto sim de um primeiro passo mas neste caso não apenas o começo é difícil Agora nos aguarda uma outra tarefa na extremidade oposta do Eu por as sim dizer Ele nos é apresentado por uma observação feita no trabalho analítico uma observação bem antiga na verdade Como não raro acontece foi necessário muito tempo até nos resolvermos a apreciála Como sabem toda a teoria psicanalítica se acha realmente construída sobre a percepção da resistência que o paciente oferece em nossa tentativa de tornarlhe consciente o seu inconsciente O sinal objetivo da resistência é suas ideias espontâneas não aparecerem ou se afastarem muito do tema tratado Ele também pode re conhecer subjetivamente a resistência no fato de ter sentimentos dolorosos ao se avizinhar do tema Mas esse último sinal pode estar ausente Então dizemos ao paciente que deduzimos da sua conduta que ele agora está em resistência e ele responde que nada sabe que nota apenas que as ideias espontâneas se tor nam mais difíceis Revelase que estávamos certos mas sua resistência também era inconsciente tão inconsciente quanto o elemento reprimido em cuja re moção trabalhávamos Há muito deveria ter sido lançada esta pergunta de que parte da sua psique vem uma tal resistência inconsciente O iniciante na 149286 psicanálise tem a resposta à mão é justamente a resistência do inconsciente Uma resposta ambígua sem utilidade Se com isso ele quer dizer que a res istência vem do reprimido temos de replicar certamente não Ao reprimido devemos atribuir antes um forte impulso para cima um ímpeto para chegar à consciência A resistência pode apenas ser expressão do Eu que a seu tempo efetuou a repressão e agora quer mantêla Esta sempre foi nossa concepção Desde que supomos uma instância especial no Eu que representa as exigências limitadoras e afastadoras o Supereu podemos dizer que a repressão é obra desse Supereu que a realiza ele próprio ou encarrega o Eu de fazêla Se então ocorre que a repressão não se torna consciente para o paciente na análise isto significa que o Supereu e o Eu trabalham inconscientemente em situações muito importantes ou o que seria mais significativo ainda que partes de am bos do Eu e do Supereu são inconscientes Nos dois casos temos de consid erar a desagradável percepção de que Super Eu e consciente de um lado e reprimido e inconsciente do outro lado de maneira nenhuma coincidem Senhoras e senhores Necessito fazer uma pausa para respirar que também para vocês será um alívio e desculparme antes de prosseguir Ofereçolhes complementos a uma introdução à psicanálise que iniciei quinze anos atrás e tenho de agir como se também vocês nesse meiotempo tivessem se ocupado apenas de psicanálise Sei que é uma pretensão indevida mas não tenho escolha Isto se relaciona ao fato de ser muito difícil dar uma visão da psicanál ise para quem não é psicanalista Acreditem não gostamos de dar a impressão de ser uma sociedade secreta e praticar uma ciência oculta Mas tivemos de perceber e proclamar como nossa convicção que ninguém tem o direito de in tervir numa discussão da psicanálise se não adquiriu determinadas experiên cias que apenas mediante a própria análise podem ser adquiridas Quando proferi minhas conferências quinze anos atrás busquei pouparlhes certos 150286 trechos especulativos de nossa teoria mas justamente a eles é que se ligam as novidades de que falarei hoje Retornando ao nosso tema Ante a dúvida se o Eu e o Supereu são eles próprios inconscientes ou se apenas produzem efeitos inconscientes decidimo nos com boas razões pela primeira possibilidade Sim grandes porções do Eu e do Supereu podem permanecer inconscientes são normalmente incon scientes Ou seja a pessoa nada sabe de seus conteúdos e é preciso despender algum esforço para tornála consciente deles É fato que Eu e consciente rep rimido e inconsciente não coincidem Sentimos necessidade de revisar pro fundamente nossa atitude ante o problema conscienteinconsciente Primeiro nos inclinamos a diminuir o valor do critério de ser consciente já que ele mostrou não ser confiável Mas aí estaríamos sendo injustos Ele é como a vida não vale muito mas é o que temos Sem a luz da característica de ser con sciente estaríamos perdidos na escuridão da psicologia profunda mas po demos tentar uma outra orientação Aquilo que deve ser chamado de consciente não precisamos discutir está fora de qualquer dúvida O mais antigo e melhor significado da palavra in consciente é o descritivo chamamos de inconsciente um processo psíquico cuja existência temos de supor porque o inferimos digamos de seus efeitos mas do qual nada sabemos Então temos com ele a mesma relação que temos com um processo psíquico em outra pessoa exceto que é justamente em nossa pessoa Para sermos ainda mais precisos modificaremos da seguinte forma o enunciado chamamos um processo de inconsciente quando temos de supor que no momento ele está ativado embora no momento nada saibamos dele Essa limitação nos faz refletir que a maioria dos processos conscientes é consciente por não muito tempo logo eles se tornam latentes mas podem facilmente se tornar conscientes de novo Poderíamos também dizer que se tornaram incon scientes se for certo que no estado de latência eles ainda são algo psíquico Até esse ponto nada teríamos verificado de novo nem teríamos conquistado o 151286 direito de introduzir o conceito de inconsciente na psicologia Mas então vem o que já pudemos observar nos atos falhos Vemonos obrigados a supor para explicar um lapso de fala que havia se formado a intenção de dizer algo Nós a percebemos com segurança devido à perturbação ocorrida na fala mas ela não se realizou era inconsciente portanto Se depois a expomos à pessoa que fala esta pode reconhecêla como uma intenção familiar então era apenas tempor ariamente inconsciente ou negála como sendo desconhecida então era duradouramente inconsciente Dessa experiência tiramos retrospectivamente o direito de também proclamar como algo inconsciente o que foi designado como latente A consideração dessas relações dinâmicas nos permite agora dis tinguir dois tipos de inconsciente um que facilmente em condições amiúde produzidas transformase em consciente e outro no qual esta mudança ocorre dificilmente só com notável esforço talvez nunca Para evitar a ambiguidade a dúvida de a qual dos dois inconscientes nos referimos se utilizamos a palavra no sentido descritivo ou no dinâmico utilizamos um expediente lícito e simples Ao inconsciente que é tão só latente e portanto tornase facilmente consciente chamamos préconsciente mantendo a designação de incon sciente para o outro Possuímos então três termos consciente préconsciente e inconsciente com os quais podemos nos haver na descrição dos fenômenos psíquicos Repetindo em termos apenas descritivos também o préconsciente é inconsciente mas não o designamos assim exceto ao falar de maneira menos rigorosa ou quando temos que defender a existência de processos incon scientes em geral na psique Vocês me concederão espero que até o momento as coisas vão indo e po demos lidar confortavelmente com elas Mas infelizmente o trabalho psicanalítico viuse obrigado a usar o termo inconsciente num terceiro sen tido e isso pode ter criado confusão Sob a impressão nova e poderosa de que um âmbito vasto e importante da psique é normalmente subtraído ao conheci mento do Eu de modo que os processos ali dentro devem ser tidos como 152286 inconscientes no exato sentido dinâmico entendemos a palavra inconsciente também num sentido sistemático ou topográfico falamos de um sistema do préconsciente e do inconsciente de um conflito do Eu com o sistema Ics to mando a palavra cada vez mais para designar uma província psíquica em vez de um atributo do psíquico A descoberta realmente incômoda de que também parcelas do Eu e do Supereu são inconscientes no sentido dinâmico tem aqui um efeito facilitador permitenos afastar uma complicação Vemos que não é lícito chamarmos o âmbito psíquico alheio ao Eu de sistema Ics pois o estado de inconsciência não é característica exclusiva dele Muito bem não mais usaremos inconsciente no sentido sistemático e daremos ao que até aqui foi designado assim um nome melhor que não mais se preste a equívocos Acompanhando o uso de Nietzsche e seguindo sugestão de Georg Grod deck passaremos a chamálo de Id Es Esse pronome impessoal parece par ticularmente adequado para exprimir a principal característica dessa província mental o fato de ser alheia ao Eu Supereu Eu e Id são os três reinos âmbi tos províncias em que decompomos o aparelho psíquico da pessoa e das re lações entre eles nos ocuparemos em seguida Mas antes farei um parêntese Suponho que estejam insatisfeitos com o fato de as três qualidades da consciência e as três províncias do aparelho psíquico não se terem combinado em três pacíficos pares e que na sua opinião isso talvez obscureça nossos resultados No entanto acho que não devemos lam entar isso admitindo para nós mesmos que não temos o direito de esperar uma arrumação tão clara Deixemme fazer uma analogia analogias nada resolvem é verdade mas podem fazer com que nos sintamos mais em casa Eu ima gino um país com paisagem variada montanhas planícies e lagos e com pop ulação mista alemães magiares e eslovacos que também exercem difer entes atividades A distribuição poderia ser assim nas montanhas habitam os alemães que são criadores de gado nas planícies os magiares que cultivam cereais e vinhas e junto aos lagos os eslovacos que apanham peixes e tecem 153286 juncos Se essa divisão fosse tão clara e simples um Woodrow Wilson se reju bilaria com ela Seria ótima também para a aula de geografia Mas provavel mente vocês acharão menos arrumação e maior mistura se percorrerem o país Alemães magiares e eslovacos vivem em toda parte nas montanhas há tam bém áreas cultivadas nas planícies também se cria gado Algumas coisas nat uralmente são como vocês esperavam pois nas montanhas não se acham peixes e na água não crescem vinhas Enfim a imagem que têm do território pode ser correta em linhas gerais nos particulares deverão tolerar as divergências À parte o novo nome não esperem que eu lhes diga muita coisa nova acerca do Id Ele é a parte obscura e inacessível de nossa personalidade o pou co que dele sabemos descobrimos no estudo do trabalho do sonho e da form ação do sintoma neurótico e a maior parte disso é de caráter negativo pode ser descrita somente em contraposição ao Eu Aproximamonos do Id com analogias chamamolo um caos um caldeirão cheio de excitações fervilhantes Nós o representamos como sendo aberto em direção ao somático na extremid ade ali acolhendo as necessidades dos instintos que nele acham expressão psíquica mas não sabemos dizer em qual substrato A partir dos instintos ele se enche de energia mas não tem organização não introduz uma vontade geral apenas o esforço de satisfazer as necessidades do instinto observando o princí pio do prazer As leis do pensamento lógico não valem para os processos do Id sobretudo o princípio da contradição não vale Impulsos opostos existem um ao lado do outro sem se cancelarem ou se diminuírem no máximo con vergem em formações de compromisso sob a dominante coação econômica de descarregar energia Nada existe no Id que possamos equiparar à negação e também constatamos surpresos uma exceção à tese filosófica de que tempo e espaço são formas necessárias de nossos atos psíquicos Nada se acha que cor responda à ideia de tempo não há reconhecimento de um transcurso temporal e o que é muito notável e aguarda consideração no pensamento filosófico não há alteração do evento psíquico pelo transcurso do tempo Desejos que nunca 154286 foram além do Id mas também impressões que pela repressão afundaram no Id são virtualmente imortais comportamse após décadas como se tivessem acabado de surgir Podem ser reconhecidos como passado desvalorizados e privados de seu investimento de energia somente quando se tornam con scientes mediante o trabalho analítico e é nisso que se baseia em medida nada pequena o efeito terapêutico do tratamento analítico Sempre tive a impressão de que tiramos pouco proveito para a nossa teor ia desse indubitável fato da imutabilidade do reprimido através do tempo Isso parece permitir um acesso aos mais profundos vislumbres Infelizmente tam pouco fiz maiores progressos nesse ponto Claro que o Id não conhece juízos de valor não conhece bem e mal não conhece moral O fator econômico ou quantitativo se preferirem in timamente ligado ao princípio do prazer governa todos os processos Investi mentos instintuais que exigem descarga isso é tudo o que há no Id acredit amos nós Parece até que a energia desses investimentos instintuais se encontra num estado diferente daquele de outras regiões psíquicas que é bem mais móvel e passível de descarga senão não ocorreriam os deslocamentos e con densações que caracterizam o Id e que não levam absolutamente em consider ação a qualidade do que é investido aquilo que no Eu chamaríamos de ideia O quanto não daríamos para compreender mais dessas coisas Vocês notam aliás que estamos em condição de indicar outros atributos para o Eu além do fato de ser consciente e reconhecem a possibilidade de que partes do Eu e do Supereu sejam inconscientes sem possuírem as mesmas características primitivas e irracionais Chegamos mais rapidamente a uma caracterização do Eu na medida em que pode ser diferenciado do Id e do Supereu examinando sua relação com a parte mais externa e superficial do aparelho psíquico que designamos como sistema PCs perceptivoconsciente Esse sistema é voltado para o mundo externo ele intermedia as percepções deste e nele surge durante seu funcionamento o fenômeno da consciência É o órgão sen sorial de todo o aparelho receptivo não apenas às excitações que vêm de fora 155286 mas também àquelas do interior da psique Quase não precisa ser justificada a concepção de que o Eu é aquela parte do Id que foi modificada pela vizinhança e a influência do mundo externo organizada para o acolhimento dos estímulos e a proteção diante deles de modo comparável ao estrato cortical que circunda um pequeno monte de substância viva A relação com o mundo externo tornouse decisiva para o Eu ele assumiu a tarefa de representálo junto ao Id para salvação do Id que sem considerar esse ingente poder exterior não es caparia à destruição no cego afã da satisfação instintual Cumprindo essa fun ção o Eu tem de observar o mundo externo registrar uma imagem fiel dele nos traços mnemônicos de suas percepções conservando afastado mediante o exame da realidade o que nesse quadro do mundo externo for acréscimo oriundo de fontes internas de excitação Por ordem do Id o Eu domina os acessos à motilidade mas entre a necessidade e o ato ele interpõe a dilação que é o trabalho do pensamento durante o qual utiliza os traços mnemônicos da experiência Assim destrona o princípio do prazer que governa irrestritamente o curso dos processos no Id e o substitui pelo princípio da realidade que pro mete mais segurança e maior sucesso Também a relação com o tempo tão difícil de descrever é proporcionada ao Eu pelo sistema perceptivo está quase fora de dúvida que o modo de operar desse sistema dá origem à ideia de tempo Mas o que diferencia muito especial mente o Eu do Id é uma tendência à síntese dos conteúdos à combinação e unificação de seus processos psíquicos que se acha inteiramente ausente no Id Quando mais adiante tratarmos dos instintos na vida psíquica espero que consigamos relacionar esta característica essencial do Id à sua fonte Somente ela produz o alto grau de organização que o Eu requer para suas maiores real izações Ele se desenvolve da percepção dos instintos até o domínio sobre eles mas este é alcançado apenas pelo fato de a representante do instinto ser en quadrada numa unidade maior ser incluída num contexto Adotando formas de expressão populares poderíamos dizer que o Eu representa na vida psíquica a razão e a prudência e o Id as paixões irrefreadas 156286 Até aqui nos deixamos impressionar pelos méritos e capacidades do Eu é tempo de considerar o reverso da medalha O Eu afinal é apenas uma parte do Id uma parte modificada adequadamente pela vizinhança do ameaçador mundo exterior Sob o aspecto dinâmico ele é fraco tomou suas energias emprestadas ao Id e não ignoramos inteiramente os métodos podese dizer os truques com os quais ele retira mais energias do Id Um desses meios é por exemplo a identificação com objetos mantidos ou abandonados Os investimentos objetais vêm das exigências instintuais do Id O Eu tem de registrálas em primeiro lugar Mas ao identificarse com o objeto ele se re comenda ao Id no lugar do objeto procura guiar para si a libido do Id Já ob servamos que o Eu no decorrer da vida acolhe dentro de si um grande número desses precipitados de antigos investimentos objetais No geral o Eu tem de realizar as intenções do Id ele cumpre sua tarefa quando descobre as circunstâncias em que tais intenções podem ser alcançadas da melhor maneira possível Podese comparar a relação do Eu com o Id àquela do cavaleiro com o cavalo O cavalo fornece a energia para a locomoção o cavaleiro tem a prer rogativa de determinar a meta de dirigir o movimento do forte animal Mas entre Eu e Id ocorre frequentemente a situação nada ideal de o cavaleiro ter de levar o animal aonde este quer mesmo ir De uma parte do Id o Eu separouse mediante resistências da repressão Mas a repressão não prossegue no Id O reprimido converge para o restante do Id De acordo com um provérbio não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo A coisa é ainda mais difícil para o pobre Eu ele serve a três senhores severos empenhandose em harmonizar suas demandas e exigências Essas de mandas sempre divergem parecem muitas vezes inconciliáveis não sur preende que o Eu fracasse tanto em sua tarefa Os três tirânicos senhores são o mundo externo o Id e o Supereu Se acompanharmos os esforços do Eu em atendêlos simultaneamente melhor dizendo em obedecerlhes simultanea mente não lamentaremos ter personificado esse Eu têlo apresentado 157286 como um ente particular Ele se sente constrangido de três lados ameaçado por três tipos de perigos aos quais em caso de apuro reage desenvolvendo angústia Por sua origem a partir das experiências do sistema perceptivo ele é destinado a representar as exigências do mundo exterior mas também quer ser o fiel servidor do Id permanecer em sintonia com ele recomendarse a ele como objeto atrair para si a sua libido Nos esforços de mediação entre o Id e a realidade muitas vezes é obrigado a revestir os mandamentos ics incon scientes do Id com suas racionalizações pcs préconscientes a disfarçar os conflitos do Id com a realidade fazendo crer com diplomática dissimulação que leva em consideração a realidade mesmo quando o Id permanece rígido e inexorável Por outro lado o rigoroso Supereu observa cada um dos seus pas sos e lhe põe à frente determinadas normas de conduta sem levar em conta as dificuldades por parte do Id e do mundo externo punindoo em caso de in fração com os tensos sentimentos de inferioridade e de culpa Desse modo impelido pelo Id constrangido pelo Supereu rechaçado pela realidade o Eu luta para levar a cabo sua tarefa econômica de estabelecer a harmonia entre as forças e influências que atuam nele e sobre ele e compreendemos por que tantas vezes não podemos suprimir a exclamação A vida não é fácil Se o Eu é obrigado a admitir sua fraqueza ele irrompe em angústia angústia realista ante o mundo externo angústia de consciência ante o Supereu angús tia neurótica ante a força das paixões do Id Gostaria de representar com um desenho as relações estruturais da person alidade psíquica que acabei de lhes expor um desenho despretensioso que aqui lhes ofereço 158286 Como veem o Supereu submerge no Id enquanto herdeiro do complexo de Édipo tem íntimas relações com este achase mais distante do sistema per ceptivo do que o Eu O Id lida com o mundo externo apenas através do Eu ao menos desse esquema Hoje é certamente difícil afirmar até que ponto o desenho é correto numa coisa certamente não é O espaço que toma o Id in consciente deveria ser incomparavelmente maior que o do Eu ou do pré consciente Peçolhes que corrijam isso mentalmente E agora para finalizar esta exposição certamente cansativa e talvez não muito esclarecedora mais uma advertência Nessa distinção da personalidade em Eu Id e Supereu vocês não devem imaginar fronteiras definidas como as 159286 traçadas artificialmente na geografia política Não podemos fazer justiça à pe culiaridade da psique mediante contornos nítidos como no desenho ou na pin tura primitiva mas sim com áreas cromáticas que se fundem umas nas outras como nos pintores modernos Depois de havermos separado temos que fazer novamente juntarse o que foi separado Não julguem demasiado severamente uma primeira tentativa de dar representação gráfica ao psíquico tão difícil de apreender É muito provável que o desenvolvimento dessas divisões esteja sujeito a grandes variações em diferentes pessoas é possível que durante a pró pria ocorrência elas se transformem e involuam temporariamente Isto parece ser verdadeiro sobretudo no caso da última e mais delicada filogeneticamente a diferenciação de Eu e Supereu Não há dúvida de que o mesmo pode ser provocado pela doença psíquica E bem podemos imaginar que certas práticas místicas tenham êxito em alterar as relações normais entre os setores da psique de modo que a percepção por exemplo seja capaz de apreender coisas nas profundezas do Eu e do Id que lhe são inacessíveis de outra forma Podese tranquilamente duvidar no entanto que essa via conduza às verdades últimas das quais se espera a salvação Mas admitimos que os esforços terapêuticos da psicanálise adotaram uma abordagem semelhante Sua intenção é realmente fortalecer o Eu tornálo mais independente do Supereu ampliar seu âmbito de percepção e melhorar sua organização de maneira que possa apropriarse de novas parcelas do Id Onde era Id há de ser Eu É uma obra cultural como o aterro do Zuydersee digamos 32 ANGÚSTIA E INSTINTOS Senhoras e senhores Não ficarão surpresos de saber que tenho novidades a lhes relatar sobre nossa concepção da angústia e dos instintos fundamentais da 160286 psique e também que nenhuma delas pretende ser a solução definitiva para os problemas que abordamos Deliberadamente uso aqui o termo concepção São questões muito difíceis as que nos são colocadas mas a dificuldade não se acha na insuficiência das observações são justamente os fenômenos mais comuns e familiares que nos apresentam esses enigmas e tampouco no caráter remoto das especulações a que elas induzem a elaboração especulativa não conta muito nesse terreno Tratase realmente de concepções isto é de in troduzir as ideias abstratas corretas cuja aplicação ao material bruto da obser vação faz surgir ordem e transparência nele Já dediquei à angústia uma conferência da série anterior a 25a Repetirei sucintamente o seu conteúdo Dissemos que a angústia é um estado afetivo ou seja uma união de determinadas sensações da série prazerdesprazer com as inervações de descarga a elas correspondentes e a sua percepção mas provavelmente também o precipitado de um certo evento significativo incor porado por hereditariedade algo comparável ao surto histérico adquirido indi vidualmente Sugerimos que o evento que deixa um traço afetivo desses é o nascimento no qual as alterações da atividade cardíaca e da respiração própri as da angústia são adequadas aos fins A primeiríssima angústia seria tóxica portanto Nós partimos da diferenciação entre angústia realista e angústia neurótica a primeira sendo uma reação que nos parece compreensível ao perigo ou seja a um dano que virá de fora e a segunda inteiramente enigmát ica como que sem finalidade Analisando a angústia realista nós a reduzimos a um estado de elevada atenção sensorial e tensão motora que chamamos de dis posição à angústia Desta se desenvolveria a reação de angústia Nela seriam possíveis dois desfechos Ou o desenvolvimento da angústia a repetição da an tiga vivência traumática limitase a um sinal e a reação restante pode adequarse à nova situação de perigo procedendo à fuga ou à defesa ou a situ ação antiga prevalece toda a reação se esgota no desenvolvimento da angústia e o estado afetivo tornase paralisante e inadequado ao presente 161286 Então nos voltamos para a angústia neurótica e dissemos que a observamos em três condições Primeiro enquanto angústia geral livremente flutuante pronta para ligarse provisoriamente a toda nova possibilidade que surge como por exemplo na típica neurose de angústia Segundo firmemente unida a determinados conteúdos ideativos nas chamadas fobias nas quais podemos reconhecer ainda uma relação com o perigo externo mas devemos julgar in teiramente desproporcional a angústia diante dele Terceiro por fim a angús tia na histeria e em outras formas de neuroses severas que acompanha sinto mas ou surge de modo independente como ataque ou como estado mais duradouro sempre sem fundamentação visível num perigo externo Fizemo nos então as perguntas seguintes Do que as pessoas têm receio na angústia neurótica E como relacionála com a angústia realista frente a perigos externos Nossas investigações não ficaram absolutamente sem frutos chegamos a al gumas conclusões significativas No tocante à expectativa angustiada a exper iência clínica nos mostrou um vínculo regular com a economia libidinal na vida sexual A causa mais comum da neurose de angústia é a excitação frus trada Uma excitação libidinal é despertada mas não satisfeita não aplicada no lugar dessa libido desviada de sua aplicação surge então a angústia Até me pareceu justificado dizer que essa libido insatisfeita transformase diretamente em angústia Tal concepção encontrou apoio em determinadas fobias bastante regulares das crianças pequenas Muitas dessas fobias são inteiramente enig máticas para nós mas outras como o medo de ficar só e o de pessoas estran has admitem uma explicação segura Tanto a solidão como o rosto estranho despertam o anseio pela mãe familiar a criança não pode dominar essa excit ação libidinal não pode mantêla em suspenso e a transforma em angústia Portanto essa angústia infantil não deve ser contada como angústia realista mas sim angústia neurótica As fobias infantis e a expectativa da angústia na neurose de angústia nos fornecem dois exemplos de uma forma como a 162286 angústia neurótica se origina pela direta transformação da libido Logo veremos um segundo mecanismo ele não se revelará muito diferente do primeiro De modo que responsabilizamos o processo da repressão pela angústia na histeria e em outras neuroses Acreditamos ser possível descrevêlo mais integ ralmente do que antes se considerarmos separadamente o destino da ideia a ser reprimida e o do montante de libido que a ela corresponde É a ideia que sofre a repressão que eventualmente é distorcida até ficar irreconhecível mas o seu montante de afeto é normalmente transformado em angústia e isso não importando de que espécie seja agressão ou amor Não faz diferença essencial então por qual motivo um montante de libido se tornou inutilizável se por de bilidade infantil do Eu como nas fobias das crianças devido a processos somáticos da vida sexual como na neurose de angústia ou pela repressão como na histeria Portanto os dois mecanismos da gênese da angústia neurót ica coincidem na verdade Durante essas investigações nossa atenção foi atraída por uma relação bastante significativa entre desenvolvimento da angústia e formação do sin toma ou seja o fato de que um pode representar e substituir o outro A enfer midade de um agorafóbico por exemplo começa com um ataque de angústia em plena rua Isto se repete a cada vez que ele sai novamente à rua Ele então desenvolve o sintoma da agorafobia que também se pode chamar de uma inib ição uma restrição no funcionamento do Eu e desse modo poupa a si mesmo o ataque de angústia Notase o oposto quando interferimos na formação de sintoma como é possível fazer nos atos obsessivos por exemplo Se impedi mos que o doente realize seu cerimonial de lavagem digamos ele entra num estado de angústia difícil de suportar do qual seu sintoma evidentemente o protegia Parece que o desenvolvimento da angústia veio primeiro e a form ação de sintoma depois como se os sintomas fossem criados para evitar a ir rupção do estado de angústia Também se harmoniza com isso que as primeir as neuroses da infância sejam fobias estados em que se percebe claramente 163286 como um desenvolvimento inicial de angústia é substituído pela formação de sintoma temse a impressão de que é a partir dessas relações que se obterá o melhor acesso a um entendimento da angústia neurótica Ao mesmo tempo conseguimos responder também à questão de o que teme a pessoa na angústia neurótica e assim estabelecemos o vínculo entre angústia neurótica e angústia realista Aquilo que se teme é evidentemente a própria libido A diferença para com a situação da angústia realista se acha em dois pontos o perigo é in terno em vez de externo e não é reconhecido de forma consciente Nas fobias podese perceber claramente como esse perigo interno é conver tido em externo ou seja angústia neurótica é transformada em aparente an gústia realista Suponhamos para simplificar algo frequentemente muito com plicado que o agorafóbico tema os sentimentos de tentação que nele são des pertados pelos encontros na rua Em sua fobia ele faz um deslocamento e en tão se angustia com uma situação externa O seu ganho com isso está evid entemente em achar que assim pode protegerse melhor Ante um perigo ex terno podemos nos salvar mediante a fuga fugir de um perigo interno é uma empresa mais difícil No final da minha conferência anterior sobre a angústia manifestei eu próprio a opinião de que esses diferentes resultados de nossa pesquisa não chegam a contradizer um ao outro mas de algum modo não se combinam A angústia como estado afetivo é a reprodução de um velho acontecimento ameaçador a angústia está a serviço da autoconservação e é o sinal de um novo perigo ela surge da libido que de algum modo se tornou inutilizável também no processo de repressão ela é substituída pela formação de sintoma é como que psiquicamente ligada por esta sentese que aqui está faltando algo que junte os pedaços num todo Senhoras e senhores A dissecção da personalidade psíquica em Supereu Eu e Id de que lhes falei na última conferência obrigounos a uma nova ori entação também no problema da angústia Com a tese de que o Eu é a única 164286 sede da angústia de que somente o Eu pode produzir e sentir angústia assumi mos uma nova sólida posição a partir da qual várias coisas tomam outro as pecto E de fato não sabemos que sentido haveria em falar de uma angústia do Id ou em atribuir ao Supereu a capacidade de angustiarse Mas saudamos como uma bemvinda correspondência o fato de os três principais ti pos de angústia a realista a neurótica e a de consciência poderem ser facil mente relacionados às três dependências do Eu a do mundo externo do Id e do Supereu Com essa nova concepção também passa a primeiro plano a fun ção da angústia como sinal anunciador de uma situação de perigo que já não nos era desconhecida perde interesse a questão de que material é feita a angús tia e são esclarecidas e simplificadas de forma surpreendente as relações entre angústia realista e angústia neurótica É digno de nota por outro lado que agora entendemos melhor os casos aparentemente complicados de geração da angústia do que aqueles considerados simples Recentemente investigamos como aparece a angústia em determinadas fo bias que incluímos na histeria de angústia e escolhemos casos em que lidamos com a típica repressão dos desejos oriundos do complexo de Édipo Segundo nossa expectativa o investimento libidinal do objeto materno é que graças à repressão se transformaria em angústia e então surgiria em expressão sin tomática ligado ao sucedâneo do pai Não é possível lhes expor detalhada mente essa investigação basta dizer que o resultado surpreendente foi o oposto de nossa expectativa Não é a repressão que cria a angústia essa é an terior a angústia faz a repressão Mas que angústia pode ser Não o medo de um perigo externo que ameaça ou seja um medo real É certo que o menino sente angústia ante uma exigência de sua libido ante o amor à mãe nesse caso é realmente portanto um caso de angústia neurótica Mas esse amor lhe aparece como um perigo interno ao qual ele tem de furtarse pela renúncia a esse objeto apenas porque provoca uma situação de perigo externa E em to dos os casos que investigamos obtemos o mesmo resultado Temos de admitir 165286 que não contávamos que o perigo instintual interno se revelasse condição e preparação para uma situação de perigo real externa Mas ainda não dissemos qual é o perigo real que a criança teme como con sequência de estar enamorada da mãe É o castigo da castração a perda do seu membro Naturalmente vocês objetarão que este não é um perigo real Nossos meninos não são castrados porque se acham apaixonados pela mãe na fase do complexo de Édipo Mas a coisa não pode ser resolvida tão facilmente Antes de tudo não se trata de a castração ser realmente levada a efeito o decisivo é que o perigo seja uma ameaça de fora e que o garoto acredite nela Ele tem al gum ensejo para isso pois frequentemente ameaçam cortar seu membro dur ante a fase fálica na época de seu primeiro onanismo e alusões a esse castigo sempre devem encontrar um reforço filogenético nele Supomos que na pré história da família humana o pai cruel e ciumento praticava realmente a cas tração nos meninos em desenvolvimento e a circuncisão um dado tão fre quente nos ritos de puberdade dos povos primitivos seria um vestígio dela bastante reconhecível Sabemos o quanto nos afastamos com isso da opinião geral mas devemos insistir em que o medo da castração é um dos mais fre quentes e poderosos móveis da repressão e assim da formação da neurose Nossa convicção adquiriu um último grau de certeza com a análise de casos em que não a castração é verdade mas a circuncisão de garotos foi realizada como terapia ou castigo para a masturbação o que não era raro na sociedade angloamericana É tentador examinarmos mais detidamente o complexo de castração neste ponto mas vamos continuar em nosso tema Naturalmente a angústia de castração não é o único motivo da repressão afinal não existe nas mulheres que têm um complexo de castração mas não podem ter angústia de castração Em seu lugar aparece no outro sexo a angústia da perda do amor evidentemente uma continuação da angústia do lactente ao sentir a falta da mãe Vocês compreendem que situação de perigo real é indicada por essa an gústia Quando a mãe está ausente ou subtraiu ao filho seu amor este já não está seguro da satisfação de suas necessidades achase provavelmente exposto 166286 a dolorosos sentimentos de tensão Não rejeitem a ideia de que esses determin antes da angústia repetem no fundo a situação da angústia de nascimento ori ginal que também significou uma separação da mãe E se acompanharem um raciocínio de Ferenczi poderão incluir nessa série também a angústia de cas tração já que a perda do membro masculino tem por consequência a impossib ilidade de uma reunião com a mãe ou com o sucedâneo dela no ato sexual Menciono de passagem que a frequente fantasia do retorno ao útero materno é o sucedâneo desse desejo de copular Ainda haveria neste ponto coisas in teressantes e conclusões surpreendentes a relatar mas não posso ultrapassar os limites de uma introdução à psicanálise quero apenas lhes chamar a atenção para como aqui a investigação psicológica adentra nos fatos biológicos Otto Rank a quem a psicanálise deve muitas belas contribuições possui também o mérito de haver enfatizado a importância do ato do nascimento e da separação da mãe No entanto todos nós achamos impossível aceitar as con clusões extremas que ele tirou desse fato para a teoria das neuroses e mesmo para a terapia analítica O núcleo de sua doutrina de que a vivência de angús tia do nascimento constitui o modelo para todas as situações de perigo posteri ores ele já havia encontrado pronto Se nos detivermos nelas poderemos dizer que de fato a toda época do desenvolvimento cabe um certo determinante da angústia isto é situação de perigo como sendo o que lhe é adequado O perigo do desamparo psíquico se ajusta ao estágio de imaturidade inicial do Eu o perigo da perda do objeto do amor à dependência dos primeiros anos da infância o perigo da castração à fase fálica e enfim a angústia ante o Super eu que ocupa um lugar especial ao período de latência No curso do desen volvimento os velhos determinantes da angústia devem ser abandonados pois as situações de perigo que lhes correspondem vão perdendo o valor com o fortalecimento do Eu Mas isso ocorre apenas de maneira bastante incompleta Muitos indivíduos não conseguem superar a angústia ante a perda do amor ja mais se tornam independentes o bastante do amor dos outros prosseguindo nesse ponto o seu comportamento infantil Normalmente o medo ante o 167286 Supereu não deve ter fim pois é indispensável nas relações sociais como an gústia da consciência e só em casos muito raros o indivíduo pode ser tornar independente da comunidade humana Algumas das velhas situações de perigo chegam a subsistir em épocas posteriores modificando a tempo seus determin antes de angústia Assim por exemplo o perigo de castração se conserva sob a máscara da sifilofobia Um adulto pode saber que a castração já não é usada como castigo para a indulgência dos apetites sexuais mas aprendeu por outro lado que tal liberdade instintual é ameaçada por graves doenças Não há dúvida de que as pessoas que chamamos neuróticas permanecem infantis na conduta ante o perigo não tendo superado determinantes antiquados da an gústia Tomemos isso como uma contribuição efetiva à caracterização da an gústia por que é assim já não é tão simples dizer Espero que não tenham perdido a visão do conjunto que ainda se lembrem que estamos discutindo as relações entre angústia e repressão Nisso apren demos duas coisas primeiro que a angústia faz a repressão e não o contrário como pensávamos e em segundo lugar que uma situação instintual temida diz respeito no fundo a uma situação de perigo externa A pergunta seguinte é como imaginamos agora o processo de uma repressão sob influência da an gústia Eu penso da seguinte forma o Eu nota que a satisfação de uma exigên cia instintual emergente vai conjurar uma das situações de perigo que são bem lembradas Logo esse investimento instintual tem de ser suprimido cance lado tornado impotente Sabemos que o Eu consegue realizar essa tarefa quando é forte e incluiu o impulso instintual em sua organização Mas o que sucede na repressão é que o impulso instintual ainda pertence ao Id e o Eu se sente fraco Então o Eu recorre a uma técnica que no fundo é idêntica à do pensamento normal O pensar é um agir experimental com pequeninos mont antes de energia semelhante aos deslocamentos de pequenas figuras num mapa antes que o general ponha em movimento as suas tropas O Eu antecipa a satisfação do impulso instintual questionável permitindolhe que reproduza as sensações de desprazer no começo da temida situação de perigo Com isso 168286 entra em ação o automatismo do princípio do prazerdesprazer que efetua a repressão do perigoso impulso instintual Alto lá vocês dirão aí já não podemos acompanhálo Têm razão devo acrescentar ainda algo para que isso lhes pareça aceitável Primeiro a admissão de que tentei traduzir na linguagem de nosso pensamento normal o que na realidade deve ser um processo não consciente ou préconsciente que se dá entre montantes de energias num substrato inimaginável Mas essa não é uma objeção forte não podemos fazer isso de outra forma Mais importante é distinguirmos claramente na repressão o que sucede no Eu e o que sucede no Id O que o Eu faz acabamos de dizer Ele usa um investimento experimental e desperta mediante o sinal da angústia o automatismo prazerdesprazer De pois são possíveis várias reações ou uma mistura delas em montantes variá veis Ou o ataque de angústia se desenvolve inteiramente e o Eu se retira por completo da excitação inconveniente ou opõe a esta em vez do investimento experimental um contrainvestimento e este se combina à energia do impulso reprimido para formar o sintoma ou é acolhido no Eu como formação reativa como fortalecimento de determinadas predisposições como alteração perman ente Quanto mais o desenvolvimento da angústia puder ser limitado a um mero sinal tanto mais o Eu despenderá em ações defensivas que equivalem a uma vinculação psíquica do reprimido tanto mais o processo também se aviz inhará de uma elaboração normal certamente sem atingila Vamos nos deter nisso um instante Vocês já imaginam sem dúvida que essa coisa de difícil definição a que chamamos caráter deve ser atribuída ao Eu Algo do que compõe esse caráter já apreendemos Sobretudo a incorporação como Super eu da inicial instância parental talvez a parte mais decisiva e importante de pois as identificações com os dois genitores da época posterior e com outras in fluentes pessoas e as mesmas identificações como precipitados de relações ob jetais abandonadas E acrescentemos como contribuições nunca ausentes na formação do caráter as formações reativas que o Eu adquire primeiramente 169286 em suas repressões e depois nas rejeições de impulsos instintuais indesejados por meios mais normais Agora vamos retroceder e nos ocupar do Id O que sucede na repressão ao combatido impulso instintual já não é tão fácil descobrir A principal questão que nosso interesse levanta é o que acontece com a energia a carga libidinal dessa excitação como é ela empregada Vocês se lembram a hipótese anterior foi de que ela justamente é transformada em angústia pela repressão Isso eu já não ouso afirmar a resposta modesta será antes a seguinte provavelmente o seu destino não é sempre o mesmo Provavelmente há uma íntima correlação que deveríamos poder conhecer entre o processo que ocorre no Eu e aquele no Id quanto ao impulso reprimido Pois desde que resolvemos que o princí pio do prazerdesprazer que é despertado pelo sinal da angústia intervém na repressão nossas expectativas devem mudar Esse princípio governa irrestrita mente os processos do Id Podemos confiar em que ele realiza profundas alter ações no impulso instintual envolvido Estamos preparados para ver que a repressão terá resultados muito diversos de alcance maior ou menor Em al guns casos o impulso instintual reprimido pode manter seu investimento libid inal e subsistir inalterado no Id ainda que sob a constante pressão do Eu Out ras vezes parece que lhe sobrevém uma destruição completa em que sua libido é permanentemente desviada para outras rotas Eu falei que assim ocorre na resolução normal do complexo de Édipo que nesse caso desejável então não é simplesmente reprimido mas destruído no Id A experiência clínica nos mostrou também que em muitos casos sucede em vez do habitual resultado de repressão uma degradação da libido uma regressão da organização da libido a um estágio anterior Naturalmente isso pode se dar apenas no Id e se ocorrer sob influência do mesmo conflito que é introduzido pelo sinal de angústia O exemplo mais notório desse tipo é o da neurose obsessiva em que regressão da libido e repressão atuam conjuntamente Senhoras e senhores Temo que esta exposição lhes pareça difícil e devem imaginar que não é exaustiva Lamento provocar seu descontentamento Mas 170286 não posso me colocar outro objetivo senão fazer com que tenham ideia da natureza de nossos resultados e das dificuldades de sua obtenção Quanto mais avançamos no estudo dos processos psíquicos tanto mais reconhecemos sua profusão e complexidade Várias fórmulas simples que inicialmente nos pare ciam apropriadas revelaramse depois insatisfatórias Não nos cansaremos de mudálas e corrigilas Na conferência sobre a teoria dos sonhos eu os levei por um terreno em que quase não houve descobertas nesses quinze anos agora que tratamos da angústia veem tudo em estado de fluxo e mudança Essas coisas novas também não foram ainda muito elaboradas talvez sua ap resentação ofereça dificuldades também por conta disso Tenham paciência logo abandonaremos o tema da angústia só não garanto que ele será resolvido a nosso contento Mas oxalá teremos feito algum progresso E nesse caminho adquirimos vários novos conhecimentos Assim o exame da angústia também nos permite acrescentar um novo traço à nossa descrição do Eu Dissemos que o Eu é fraco em relação ao Id que é seu servo fiel empenhado em executar suas ordens e cumprir suas exigências Não pensamos em retirar essa afirm ação Por outro lado esse Eu é a parte mais bem organizada do Id aquela ori entada para a realidade Não devemos exagerar na diferenciação das duas nem nos surpreender se o Eu por sua vez tiver influência nos processos do Id Penso que ele exerce tal influência ao colocar em ação por meio do sinal de angústia o quase onipotente princípio de prazerdesprazer Logo em seguida porém ele mostra novamente sua fraqueza pois pelo ato da repressão renuncia a uma parcela da sua organização tem de admitir que o impulso instintual rep rimido fique permanentemente subtraído à sua influência E agora mais uma observação sobre o problema da angústia A angústia neurótica se transformou em angústia realista em nossas mãos em angústia ante determinadas situações de perigo externas Mas não podemos ficar nisso temos de dar mais um passo que será um passo atrás no entanto Nós nos per guntamos o que é realmente perigoso e temível numa tal situação de perigo 171286 Claramente não é o dano à pessoa julgado objetivamente que não precisa ter significado psicológico mas o que ele provoca na psique Por exemplo o nas cimento nosso modelo para o estado de angústia não pode ser visto como um dano em si ainda que possa envolver o risco de danos O essencial no nasci mento como em toda situação de perigo é que ele produz na vivência psíquica um estado de tensa excitação que é sentido como desprazer e que não pode ser subjugado mediante a descarga Se chamamos esse estado no qual fracassam os esforços do princípio do prazer de momento traumático então chegamos pela sequência angústia neurótica angústia realista situação de perigo à tese simples de que a coisa temida o objeto da angústia é sempre a aparição de um momento traumático que não pode ser liquidado segundo a norma do princípio do prazer Compreendemos de imediato que sermos dotados do princípio do prazer não nos assegura contra danos objetivos mas apenas con tra um determinado dano a nossa economia psíquica Do princípio do prazer ao instinto de autoconservação há uma boa distância os propósitos dos dois estão longe de coincidir desde o início Mas vemos outra coisa mais talvez seja esta a solução que buscamos A saber que em tudo isso a questão é de quan tidades relativas Somente a grandeza da soma de excitação faz de uma im pressão um momento traumático paralisa a função do princípio do prazer dá à situação de perigo sua importância E se assim for se esses enigmas se resolv erem com um expediente tão simples por que não seria possível que tais mo mentos traumáticos ocorram na psique sem relação com as supostas situações de perigo que neles a angústia não seja despertada como sinal mas surja de novo com nova motivação A experiência clínica afirma resolutamente que de fato é assim Apenas as repressões posteriores mostram o mecanismo que descrevemos no qual a angústia é ocasionada como sinal de uma situação de perigo anterior as primeiras e originais nascem diretamente de momentos traumáticos no encontro do Eu com uma exigência libidinal excessiva elas criam novamente sua angústia mas segundo o modelo do nascimento é certo 172286 O mesmo pode valer para a geração da angústia na neurose de angústia por dano somático da função sexual Já não diremos que a própria libido é aí trans formada em angústia Mas não vejo objeção a uma dupla origem da angústia como consequência direta do momento traumático e como sinal de que ele ameaça repetirse Senhoras e senhores Agora ficarão contentes por não precisar ouvir mais nada acerca da angústia Mas nada ganharão com isso não é melhor o que vem em seguida Quero conduzilos pelo terreno da teoria da libido ou dos instin tos onde muita coisa nova também surgiu Não digo que tenhamos feito grandes progressos nele de modo que lhes valesse a pena todo o esforço de conhecêlo Não é um campo em que muito pelejamos por orientações e per spectivas vocês apenas serão testemunhas do nosso esforço Também aqui devo remontar a várias coisas que lhes disse antes A teoria dos instintos é por assim dizer nossa mitologia Os instintos são seres míticos formidáveis em sua indeterminação Em nosso trabalho não podemos ignorálos um só instante mas nunca estamos certos de vêlos com precisão Vocês sabem como o pensamento popular lida com eles As pessoas imaginam a existência de muitos e variados instintos tantos quanto necessit am um instinto de imitação um de autoafirmação um instinto lúdico um so cial e assim por diante Elas como que recorrem a eles deixam cada qual fazer seu trabalho específico e os abandonam de novo Sempre suspeitamos que por trás desses muitos pequenos instintos tomados de empréstimo se escondesse algo sério e forte do qual deveríamos nos aproximar cautelosamente Nosso primeiro passo foi bem modesto Achamos que provavelmente não seria er rado distinguir dois instintos principais espécies ou grupos de instintos de acordo com as duas grandes necessidades fome e amor Embora defendamos zelosamente a independência da psicologia em relação às demais ciências aqui nos achamos à sombra do inabalável fato biológico de que o ser vivo individu al serve a dois propósitos a autopreservação e a conservação da espécie que 173286 parecem ser independentes um do outro pelo que sabemos até agora não têm origem comum e cujos interesses frequentemente se contrariam na vida anim al Estamos fazendo na realidade psicologia biológica estudando os acom panhamentos psíquicos dos processos biológicos Como representantes dessa concepção foram introduzidos na psicanálise os instintos do Eu e os instin tos sexuais Incluímos entre os primeiros tudo relacionado à conservação afirmação engrandecimento da pessoa Aos últimos tivemos que atribuir a abundância que requerem a vida sexual infantil e a perversa Como ao invest igar as neuroses tomamos conhecimento do Eu como o poder limitador repressor e das tendências sexuais como o que é limitado reprimido acredit amos apreender com firmeza não só a diferença mas também o conflito entre os dois grandes grupos de instintos Inicialmente o objeto de nosso estudo fo ram apenas os instintos sexuais cuja energia denominamos libido Com eles tentamos clarear nossas concepções do que seja um instinto e do que deve ser atribuído a ele Nisso chegamos à teoria da libido Um instinto diferenciase de um estímulo pelo fato de originarse de fontes de estímulo no interior do corpo de operar como uma força constante e de a pessoa não poder subtrairse a ele mediante a fuga como é possível fazer com o estímulo externo Podemos diferenciar no instinto fonte objeto e meta A fonte é um estado de excitação no corpo a meta é suspensão desta excitação no trajeto da fonte à meta o instinto se torna psiquicamente operante Nós o imaginamos como um certo montante de energia que impele para determinada direção Desse impelir deriva o seu nome Trieb Falase de instintos ativos e passivos deverseia falar mais corretamente de metas instintuais ativas e passivas pois também para atingir uma meta passiva é necessário um dispên dio de atividade A meta pode ser alcançada no próprio corpo via de regra é interposto um objeto externo no qual o instinto alcança sua meta externa a in terna é sempre a mesma a mudança no corpo sentida como satisfação Não es tá claro para nós se a relação com a fonte somática empresta ao instinto uma especificidade e qual seria esta Segundo a experiência analítica é fato 174286 indubitável que impulsos de uma fonte se ligam àqueles de outras fontes e partilham seu destino e que uma satisfação instintual pode ser substituída por outra Mas confessamos que não compreendemos isso muito bem Também a relação do instinto com a meta e o objeto admite alterações os dois podem ser trocados por outros sendo que a relação com o objeto pode se afrouxar mais facilmente Denominamos sublimação um certo tipo de modificação da meta e mudança de objeto em que nossos valores sociais entram em consideração Também temos razões para distinguir instintos inibidos na meta impulsos de fontes conhecidas e com meta inequívoca mas que se detêm no caminho para a satisfação de modo que se produz um duradouro investimento objetal e uma persistente inclinação É desse tipo por exemplo a relação de ternura que se guramente procede das fontes da necessidade sexual e normalmente renuncia à satisfação desta Já veem quantas características e vicissitudes dos instintos ainda escapam à nossa compreensão cabe mencionar também uma distinção que se apresenta entre instintos sexuais e de autoconservação que teria grande importância teórica se se aplicasse ao grupo inteiro Os instintos sexuais nos chamam a atenção por sua plasticidade a capacidade de mudar suas metas pela suscetibilidade à troca na medida em que uma satisfação instintual pode ser substituída por outra e pela possibilidade de serem suspensos ou adiados de que os instintos inibidos na meta vêm de nos dar um bom exemplo Tender íamos a recusar essas características aos instintos de autoconservação deles afirmando que são inflexíveis inadiáveis imperiosos de maneira muito di versa e que têm uma relação inteiramente outra com a repressão e com a an gústia Mas logo a reflexão nos diz que esta exceção não se aplica a todos os in stintos do Eu apenas à fome e à sede e evidentemente se baseia numa peculi aridade das fontes instintuais Boa parte da impressão confusa disso vem ainda do fato de não havermos apreciado separadamente que mudanças sofrem por influência do Eu organizado os impulsos originalmente pertencentes ao Id Movemonos em solo mais firme quando investigamos de que forma a vida instintual serve à função sexual Nisto alcançamos conhecimentos decisivos 175286 que também já não são novos para vocês Não notamos a existência de um in stinto sexual que desde o início traz uma tendência para a meta da função sexual a união das duas células sexuais Vemos isto sim um grande número de instintos parciais vindos de diferentes locais e regiões do corpo que de modo independente uns dos outros buscam todos eles satisfação e encontram essa satisfação em algo que chamamos prazer de órgão Os genitais são as últi mas dessas zonas erógenas e já não podemos negar o nome de prazer sexual ao seu prazer de órgão Nem todos esses impulsos que tendem ao prazer são acol hidos na organização derradeira da função sexual Vários deles são eliminados como inúteis pela repressão ou de outro modo alguns são desviados de sua meta da maneira notável que já mencionamos e outros são mantidos em papéis secundários servem para a realização de atos introdutórios para a produção de prazer preliminar Vocês souberam que nesse prolongado desen volvimento podem se notar várias fases de organização temporária e também que as aberrações e atrofias da função sexual se explicam por esta sua história A primeira dessas fases prégenitais nós chamamos oral pois correspondendo ao modo como o lactente é alimentado a zona erógena da boca domina o que podemos chamar de atividade sexual desse período da vida Num segundo es tágio vêm à frente os impulsos sádicos e anais certamente em conjunção com o nascimento dos dentes o fortalecimento da musculatura e o controle das fun ções esfincterianas Justamente sobre essa peculiar fase de desenvolvimento acabamos de descobrir vários pormenores interessantes Em terceiro lugar vem a fase fálica em que nos dois sexos o membro viril e o que a ele cor responde na garota adquire uma importância que não mais poderá ser ig norada Reservamos a expressão fase genital para a organização sexual definit iva que se estabelece após a puberdade e na qual somente então o genital feminino tem o reconhecimento que o masculino adquiriu muito tempo antes Até agora tudo foi uma corriqueira repetição E não pensem que as coisas que não mencionei já não tenham validez Esta repetição foi necessária como ponto de partida para o relato sobre o progresso de nossos conhecimentos 176286 Podemos nos gabar de haver descoberto muitas coisas novas justamente sobre as primeiras organizações da libido e de haver apreendido mais claramente a importância do já sabido algo de que lhes darei alguns exemplos Karl Abra ham demonstrou em 1924 que se podem distinguir dois estágios na fase sádicoanal No mais antigo deles prevalecem as tendências destrutivas de aniquilação e perda no posterior aquelas de manutenção e posse amigáveis ao objeto No meio dessa fase portanto surge primeiramente a consideração pelo objeto como precursor de um futuro investimento amoroso É igual mente justificado supor essa divisão também na primeira fase a oral No primeiro subestágio a questão é apenas a incorporação oral não há qualquer ambivalência na relação com o objeto o seio materno O segundo estágio ca racterizado pelo surgimento da ação de morder pode ser designado como sádicooral ele exibe pela primeira vez os fenômenos da ambivalência que vêm a se tornar bem mais nítidos na fase seguinte a sádicoanal O valor des sas novas distinções se mostra particularmente quando buscamos em determ inadas neuroses neurose obsessiva melancolia os pontos de predis posição no desenvolvimento da libido Queiram recordar a propósito o que aprendemos sobre o vínculo entre fixação da libido predisposição e regressão Nossa atitude para com as fases da organização da libido sofreu alguma mudança Se antes enfatizamos principalmente como uma delas desaparecia antes da seguinte agora nossa atenção se dirige aos fatos que mostram o quanto de uma fase anterior permanece ao lado e por trás das configurações posteriores e adquire uma permanente representação na economia libidinal e no caráter da pessoa Ainda mais significativos tornaramse os estudos que nos ensinam como são frequentes em condições patológicas regressões a fases an teriores e que determinadas regressões são típicas de certas formas de doenças Mas não posso tratar disso neste lugar é parte de uma psicologia es pecial das neuroses 177286 Pudemos estudar as transformações dos instintos e processos similares no erotismo anal particularmente nas excitações vindas das fontes da zona eró gena anal e ficamos surpresos com a variedade de utilizações dadas a esses im pulsos Provavelmente não é fácil livrarse do menosprezo que no curso da evolução atingiu precisamente esta zona Por isso deixemos que Abraham nos recorde que o ânus corresponde embriologicamente à boca primitiva que migrou para o final do intestino Então aprendemos que com a desvalorização das próprias fezes do excremento esse interesse instintual de fonte anal passa para objetos que podem ser dados como presente E com razão pois as fezes fo ram o primeiro presente que o bebê pôde dar do qual se desprendeu por amor a quem dele cuidava Depois de modo inteiramente análogo à mudança de significado durante a evolução da linguagem esse antigo interesse em fezes se converte na apreciação de ouro e dinheiro Gold und Geld mas também con tribui para o investimento afetivo de criança e pênis As crianças que por muito tempo se apegam à teoria da cloaca estão convencidas de que o bebê nasce do intestino como um excremento a defecação é o modelo para o ato do nasci mento Mas o pênis também tem como precursor a coluna de fezes que preenche e estimula a membrana mucosa do intestino Quando a criança muito a contragosto toma conhecimento de que há seres humanos que não possuem este membro passa a ver o pênis como algo destacável do corpo em clara analogia com o excremento que foi o primeiro pedaço de matéria corpórea a que teve de renunciar Um bocado de erotismo anal é assim car reado para investimento no pênis mas o interesse nessa parte do corpo tem além da raiz eróticoanal uma raiz oral talvez mais forte ainda pois o pênis tornase também o herdeiro do bico do seio materno após o fim do aleitamento Desconhecendo essas profundas relações é impossível nos orientarmos nas fantasias nas associações influenciadas pelo inconsciente e na linguagem sin tomática dos seres humanos Fezesdinheirocriançapênis são aí tratados como equivalentes e também representados por símbolos comuns Também 178286 não esqueçam que só pude lhes dar informações incompletas Apenas acres centarei de passagem que também o interesse na vagina que desperta mais tarde é de origem eróticoanal principalmente Isso não surpreende pois a va gina mesma é na feliz expressão de Lou AndreasSalomé arrendada do reto na vida dos homossexuais que não perfizeram determinado trecho do desenvolvimento sexual ela é novamente representada por ele Nos sonhos há frequentemente um local que antes era um único espaço e que agora é dividido em dois por uma parede ou o contrário Isto sempre se refere à relação da va gina com o intestino Também podemos acompanhar muito bem como nas meninas o desejo inteiramente não feminino de possuir um pênis transforma se normalmente no desejo de um filho e depois de um homem como porta dor de um pênis e doador de um filho de modo que também aí se vê como uma porção de interesse originalmente eróticoanal obtém acolhida na posteri or organização genital Durante esses estudos das fases prégenitais da libido pudemos descobrir algumas coisas novas sobre a formação do caráter Notamos um trio de carac terísticas que aparecem juntas com alguma regularidade senso de ordem parcimônia e obstinação e concluímos da análise de pessoas assim que tais características vêm de o seu erotismo anal ser despendido e empregado de forma diversa Falamos de um caráter anal quando encontramos essa notável união e fazemos um certo contraste entre o caráter anal e o erotismo anal não modificado Descobrimos uma relação semelhante talvez ainda mais firme entre a ambição e o erotismo uretral Enxergamos uma curiosa alusão a esse nexo na lenda segundo a qual Alexandre o Grande nasceu na mesma noite em que um certo Erostrato incendiou por puro anseio de fama o decantado tem plo de Artemis em Éfeso Ao que parece os antigos não desconheciam esse nexo Vocês já sabem como o ato de urinar tem a ver com o fogo e o apagar do fogo Naturalmente esperamos que outros traços de caráter se revelem de 179286 forma semelhante precipitados ou construções reativas de certas formações libidinais prégenitais mas ainda não pudemos demonstrar isso Agora chegou o momento de eu retroceder tanto na história como no tema e retomar os problemas mais amplos da vida instintual Nossa teoria da libido teve por base inicialmente a oposição de instintos do Eu e instintos sexuais Quando mais tarde começamos a estudar mais detidamente o próprio Eu e chegamos à perspectiva do narcisismo mesmo essa distinção perdeu seu fun damento Em casos raros podese perceber que o Eu toma a si próprio por objeto comportase como se estivesse apaixonado por si mesmo Daí o termo narcisismo tirado da lenda grega Mas isso é apenas a exacerbação de um fato normal Viemos a compreender que o Eu é sempre o reservatório princip al de libido de onde partem os investimentos libidinais dos objetos e para o qual eles retornam enquanto a maior parte dessa libido permanece constante mente no Eu Portanto libido do Eu é incessantemente transformada em libido de objeto e esta em libido do Eu Mas então elas não podem ser diferenciadas conforme sua natureza não faz sentido separar a energia de um daquela da outra podemos deixar de lado a designação libido ou empregála como equivalente a energia psíquica Não mantivemos por muito tempo essa posição A ideia de uma oposição no interior da vida instintual logo achou uma outra mais aguda expressão Mas não lhes exporei como surgiu essa novidade da teoria dos instintos tam bém ela se baseia essencialmente em considerações biológicas eu a apresent arei aqui como um produto acabado Nós supomos que haja dois tipos de in stintos essencialmente diversos os sexuais no sentido mais amplo o Eros se preferirem o termo e os agressivos cuja meta é a destruição Ouvindo isso posto desta forma dificilmente vocês o aceitarão como algo novo parece uma tentativa de transfiguração teórica da banal oposição entre amor e ódio que talvez coincida com aquela outra polaridade de atração e repulsa que a física supõe no mundo inorgânico Mas é curioso que essa colocação seja mesmo 180286 percebida como novidade por muitos como uma novidade indesejável que deveria ser afastada o mais rapidamente possível Suponho que um forte ele mento afetivo prevaleça nessa rejeição Por que nós mesmos necessitamos de tanto tempo para nos decidirmos a reconhecer um instinto de agressão por que hesitamos em incorporar à teoria fatos que saltam aos olhos e são con hecidos de todos Provavelmente encontraríamos pouca resistência se quiséssemos atribuir aos animais um instinto com essa meta Mas admitilo na constituição humana parece uma blasfêmia contraria muitos pressupostos reli giosos e convenções sociais Não o ser humano tem de ser bom por natureza ou bonachão pelo menos Se ocasionalmente ele se mostra violento brutal cruel são apenas transtornos passageiros de sua vida emocional na maioria das vezes provocados talvez consequência dos regimes sociais inadequados que ele criou até agora Infelizmente o que a história ensina e que nós mesmos vivenciamos não depõe neste sentido justificando antes o veredicto de que a crença na bondade da natureza humana é uma dessas ilusões ruins das quais os homens esperam que facilite e embeleze a vida quando apenas acarreta danos na real idade Não precisamos continuar essa polêmica pois não favorecemos a hipótese de um instinto especial de agressão e destruição devido aos ensina mentos da história e da vida isto sucede com base em reflexões gerais a que somos levados pela consideração dos fenômenos do sadismo e do masoquismo Como sabem denominamos sadismo quando a satisfação sexual é ligada à condição de que o objeto sexual experimente dores maustratos e humil hações e masoquismo quando a pessoa tem a necessidade de ser ela mesma o objeto maltratado Como também sabem um tanto dessas duas tendências está incluído na relação sexual normal e elas são qualificadas de perversões quando empurram para segundo plano as outras metas sexuais e colocam seus próprios objetivos no lugar E também não lhes terá escapado que o sadismo mantém íntima relação com a masculinidade e o masoquismo com a feminilidade como se aí houvesse um oculto parentesco mas devo logo lhes dizer que por 181286 esse caminho não chegamos a avançar Ambos sadismo e masoquismo são fenômenos enigmáticos para a teoria da libido particularmente o masoquismo e é natural que o que foi a pedra de escândalo de uma teoria seja a pedra angu lar daquela que a sucede Acreditamos então que no sadismo e no masoquismo temos dois ótimos exemplos da mistura das duas espécies de instintos de Eros com a agressivid ade e levantamos a hipótese de que essa relação é modelar de que todos os impulsos que estudamos consistem de tais misturas e fusões das duas espécies de instintos Isso nas mais diversas proporções naturalmente Os instintos er óticos introduziriam a variedade de suas metas sexuais na mistura enquanto os outros admitiriam apenas atenuações e gradações de sua monocórdica tendên cia Essa hipótese nos abre a perspectiva de investigações que podem vir a ter grande importância para o entendimento dos processos patológicos Pois as misturas podem também se decompor e de tais separações dos instintos po demos esperar graves consequências para a função Mas essas concepções ainda são muito novas até agora ninguém procurou utilizálas no trabalho Vamos retornar ao problema especial que o masoquismo nos coloca Se ab straímos por um instante os seus componentes eróticos ele testemunha que ex iste uma tendência que tem por objetivo a própria destruição Se também para o instinto de destruição é verdadeiro que o Eu mas aqui nos referimos mais ao Id à pessoa inteira inclui originalmente todos os impulsos instin tuais disso resulta que o masoquismo é mais velho que o sadismo mas o sad ismo é instinto de destruição voltado para fora que desse modo adquire o caráter de agressividade Certo montante do instinto de destruição original pode ainda permanecer no interior parece que a nossa percepção se dá conta dele apenas nessas duas condições quando ele se liga a instintos eróticos no masoquismo ou quando com maior ou menor ingrediente erótico se volta contra o mundo exterior como agressividade E damos com a importân cia da possibilidade de que a agressividade talvez não ache satisfação no mundo exterior porque depara com obstáculos reais Então ela poderá 182286 retroceder elevando a medida de autodestruição vigente no interior Veremos que isso acontece realmente assim e como é importante este processo Agressividade impedida parece envolver graves danos realmente é como se tivéssemos que destruir outras coisas outras pessoas para não destruirmos a nós mesmos para nos guardar da tendência à autodestruição Sem dúvida uma triste revelação para um moralista Mas o moralista se consolará por muito tempo ainda com a natureza im provável de nossas especulações Estranho instinto esse que se dedica à destruição do seu próprio lar orgânico É verdade que os escritores falam de tais coisas mas eles são irresponsáveis têm a prerrogativa da licença poética No entanto ideias similares também não são desconhecidas na fisiologia por exemplo a de que a mucosa do estômago digere a si mesma Mas devese ad mitir que o nosso instinto de autodestruição requer uma base de apoio mais ampla Não podemos ousar uma hipótese dessa envergadura somente porque alguns pobres malucos vinculam a satisfação sexual a uma condição peculiar Um estudo aprofundado dos instintos nos dará o que necessitamos creio Os instintos não governam apenas a vida psíquica mas também a vegetativa e esses instintos orgânicos mostram uma característica que merece o nosso vivo interesse Somente mais tarde poderemos julgar se é uma característica geral dos instintos Eles se revelam como empenho de restaurar um estado anterior Podemos supor que a partir do momento em que tal estado uma vez atingido é perturbado surge um impulso Trieb para recriálo produzindo fenômenos que podemos designar de compulsão de repetição Assim a embriologia seria toda ela compulsão de repetição uma capacidade de formar novamente órgãos perdidos se estende bastante pelo reino animal e o instinto de cura ao qual juntamente com o auxílio terapêutico devemos nossas recuperações poder ia ser vestígio dessa faculdade tão bem desenvolvida nos animais inferiores As migrações de peixes na época da desova talvez os voos migratórios das aves possivelmente tudo o que denominamos manifestação instintiva nos animais ocorre sob o mandamento da compulsão de repetição que exprime a natureza 183286 conservadora dos instintos Também no âmbito psíquico não precisamos buscar suas manifestações por muito tempo Chamounos a atenção o fato de as vivências esquecidas e reprimidas da primeira infância se reproduzirem dur ante o trabalho analítico em sonhos e reações sobretudo naquelas da transfer ência embora seu redespertar vá de encontro ao interesse do princípio do prazer e a explicação achada foi que nesses casos uma compulsão de repetição se impõe até mesmo ao princípio do prazer Também fora da análise podemos observar algo assim Há pessoas que sempre repetem na vida sem correção as mesmas reações em detrimento próprio ou que parecem perseguidas por um destino implacável quando uma investigação mais precisa revela que elas mes mas preparam para si inscientemente esse destino Então atribuímos à com pulsão de repetição um caráter demoníaco Mas em que pode esse traço conservador dos instintos contribuir para o en tendimento de nossa autodestruição Qual estado anterior um instinto desses quer restaurar Bem a resposta não está longe e abre amplas perspectivas Se é verdadeiro que em tempos imemoriais e de modo inconcebível a vida se originou de matéria inanimada então segundo nossa premissa deve ter sur gido naquele momento um instinto que procura abolir a vida restaurar o es tado inorgânico Se reconhecemos nesse instinto a autodestruição da nossa hipótese podemos vêla como expressão de um instinto de morte que não pode estar ausente em nenhum processo vital Agora os instintos em que acredit amos se dividem nos dois grupos que são o dos eróticos que buscam aglom erar substância viva em unidades cada vez maiores e dos instintos de morte que contrariam esse esforço e reconduzem o elemento vivo ao estado inor gânico Da atividade conjunta e oposta dos dois procedem os fenômenos vitais a que a morte põe fim Vocês dirão talvez encolhendo os ombros Isto não é ciência natural é filosofia schopenhaueriana Mas por que senhoras e senhores um pensador ousado não teria adivinhado o que depois é confirmado pela sóbria e laboriosa pesquisa de detalhes Além do mais tudo já foi dito alguma vez e antes de 184286 Schopenhauer houve muitos que disseram coisas semelhantes E o que dize mos não é exatamente Schopenhauer Não afirmamos que a morte é o único objetivo da vida não deixamos de ver junto à morte a vida Reconhecemos dois instintos fundamentais e admitimos para cada um sua própria meta Como os dois se mesclam no processo da vida como o instinto de morte é levado a servir aos propósitos de Eros sobretudo no seu voltarse para fora como agressão são tarefas deixadas para a pesquisa futura Chegamos apenas até o ponto em que tal panorama se abre à nossa frente Se o caráter conservador é próprio de todos os instintos sem exceção se também os instintos eróticos querem restabelecer um estado anterior quando tendem à síntese do que é vivo em unidades sempre maiores também essa questão teremos que deixar sem resposta Afastamonos um pouco de nossa base Vou lhes dizer retrospectivamente qual foi o ponto de partida dessas reflexões sobre a teoria dos instintos Foi o mesmo que nos levou a revisar a relação entre o Eu e o inconsciente a im pressão oriunda do trabalho analítico de que o paciente que oferece resistên cia muitas vezes não é cônscio dessa resistência Não só o fato da resistência lhe é inconsciente mas também os motivos dela Tivemos de procurar por esse ou esses motivos e o encontramos surpreendentemente numa forte necessid ade de castigo que só pudemos incluir entre os desejos masoquistas A im portância prática desse achado não fica atrás da teórica pois esta necessidade de punição é o maior inimigo de nosso esforço terapêutico Ela é satisfeita pelo sofrimento ligado à neurose e por isso se apega à doença Parece que esse fat or a inconsciente necessidade de castigo tem participação em todo adoeci mento neurótico São muito convincentes quanto a isso os casos em que o so frimento neurótico é substituído por um outro de outra espécie Vou lhes re latar uma experiência desse tipo Certa vez consegui livrar uma mulher solteira mas já de alguma idade do complexo de sintomas que há quinze anos a condenava a uma existência dolorosa e a impedia de participar da vida Ela então se sentiu saudável e mergulhou numa atividade sôfrega para 185286 desenvolver seus consideráveis talentos e ainda obter algum reconhecimento sucesso e fruição Mas cada uma de suas tentativas findava com as pessoas lhe dando a entender ou ela mesma percebendo que estava muito velha para al cançar algo naquele terreno Após cada desenlace desses seria de esperar uma recaída na doença mas isso ela não podia mais realizar Em vez disso sempre lhe ocorriam acidentes que a punham fora de atividade e a faziam sofrer por al gum tempo Ela caía e torcia um pé ou feria um joelho ou machucava a mão fazendo algo Advertida de como podia ser grande a sua participação desses aparentes acasos ela mudou sua técnica por assim dizer Em vez de acidentes começaram a surgir ligeiras enfermidades nas mesmas ocasiões catarros angi nas inchações reumáticas até que ela se decidiu pela resignação e toda a fant asmagoria desapareceu Acreditamos que não há dúvida quanto à origem desta necessidade incon sciente de castigo Ela se comporta como parte da consciência moral como o prosseguimento de nossa consciência moral no inconsciente terá a mesma ori gem que a consciência moral ou seja corresponderá a uma porção de agressividade que foi interiorizada e assumida pelo Supereu Se os termos da expressão fossem menos incoerentes seria justificado chamála para todo efeito prático de sentimento de culpa inconsciente Quanto à teoria es tamos em dúvida se devemos supor que toda agressividade retornada do mundo exterior é ligada ao Supereu e assim dirigida contra o Eu ou que uma parte dela realiza sua muda e inquietante atividade no Eu e no Id como livre instinto de destruição O mais provável é uma divisão desse último tipo mas nada mais sabemos acerca disso Na instauração inicial do Supereu certa mente foi empregada no aparelhamento dessa instância a porção de agressividade contra os pais que a criança não podia descarregar para fora tanto devido à sua fixação amorosa como às dificuldades externas e por isso o rigor do Supereu não corresponde simplesmente à severidade da educação É bem possível que em ocasiões posteriores de repressão da agressividade o in stinto tome o mesmo caminho que lhe foi aberto naquele momento decisivo 186286 As pessoas nas quais esse inconsciente sentimento de culpa é muito forte se denunciam no tratamento analítico pela reação terapêutica negativa tão de sagradável em termos de prognóstico Quando são informadas da solução de um sintoma à qual normalmente se seguiria o desaparecimento ao menos tem porário do sintoma o que delas obtemos é pelo contrário uma intensificação momentânea dele e da doença Com frequência basta elogiálas por sua con duta na terapia dizer algumas palavras esperançosas sobre o andamento da an álise para ocasionar uma inconfundível piora no seu estado Um não analista diria que falta a vontade de cura seguindo o modo de pensar analítico vo cês verão nessa atitude uma expressão do sentimento de culpa inconsciente para o qual a doença com seus sofrimentos e entraves é justamente apropri ada Os problemas levantados pelo sentimento de culpa inconsciente suas re lações com moral pedagogia criminalidade e delinquência são atualmente o campo de trabalho preferido dos psicanalistas Nesse ponto inesperado saímos do submundo psíquico para a praça pública Não posso conduzilos adiante mas quero detêlos com um último pensamento antes de nos despedirmos por esta vez Habituamonos a dizer que nossa civilização foi edificada à custa de impulsos sexuais inibidos pela so ciedade que em parte são reprimidos é verdade mas por outro lado são util izados para outros objetivos Também admitimos apesar de todo o orgulho por nossas conquistas culturais que para nós não é fácil cumprir as exigências dessa civilização sentirmonos bem nela pois as restrições instintuais que nos são impostas constituem um pesado fardo psíquico Ora o que percebemos quanto aos instintos sexuais vale em medida igual ou talvez maior para os outros instintos os de agressão São sobretudo esses que tornam mais difícil a vida em comum dos seres humanos e ameaçam a sua continuidade a limitação da agressividade é o primeiro talvez mais duro sacrifício que a sociedade re quer do indivíduo Vimos de que maneira engenhosa é obtida essa domest icação do recalcitrante A instauração do Supereu que toma para si os peri gosos impulsos agressivos como que estabelece uma guarnição numa área 187286 inclinada à revolta Por outro lado numa consideração apenas psicológica é preciso reconhecer que o Eu não se sente bem quando é sacrificado desse modo às necessidades da sociedade quando tem de sujeitarse às tendências destrutivas da agressividade que de bom grado ele dirigiria contra os outros Isso é como um prosseguimento no âmbito psíquico do dilema devorar ou ser devorado que prevalece no mundo orgânico Felizmente os instintos agressivos nunca estão sós mas sempre amalgamados com os eróticos Nas condições da cultura criada pelos homens esses últimos têm muito a mitigar e prevenir 188286 O PRÊMIO GOETHE 1930 CARTA AO DR ALFONS PAQUET DISCURSO NA CASA DE GOETHE EM FRANKFURT TÍTULO ORIGINAL GOETHEPREIS 1930 BRIEF AN DR ALFONS PAQUET ANSPRACHE IM FRANKFURTER GOETHEHAUS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM DIE PSYCHOANALYTISCHE BEWEGUNG O MOVIMENTO PSICANALÍTICO V 2 N 5 PP 41926 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 54550 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE X PP 2916 A CARTA AO DR PAQUET FOI TAMBÉM INCLUÍDA EM BRIEFE CARTAS 18731939 FRANKFURT FISCHER 1960 P 394 CARTA AO DR ALFONS PAQUET Grundlsee 3 de agosto de 1930 Prezado dr Paquet Como até agora não fui mimado por homenagens públicas arranjeime de modo a poder passar sem elas Mas não vou negar que a atribuição do Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt me causou enorme alegria Nele há algo que cativa a imaginação e uma de suas cláusulas afasta o sentimento de humil hação que essas distinções muitas vezes implicam Agradeçolhe muito especialmente por sua carta que me comoveu e as sombrou Sem falar no gentil aprofundamento na natureza do meu trabalho jamais encontrei as veladas intenções pessoais deste percebidas com tal clareza e sintome tentado a lhe perguntar de que modo o senhor veio a conhecêlas Pelo que depreendi de sua carta a minha filha infelizmente não o verei no futuro próximo e um adiamento em minha idade é sempre uma coisa ar riscada Claro que me disponho inteiramente a receber o cavalheiro que o sen hor anuncia o dr Michel Infelizmente não posso ir à cerimônia em Frankfurt estou muito frágil para empreender uma viagem assim A plateia nada perderá com isso minha filha Anna é certamente mais agradável de se ver e ouvir do que eu Ela deverá ler algumas linhas que tratam da relação entre Goethe e a psicanálise e que defen dem os psicanalistas da acusação de ter faltado com o respeito devido ao grande homem nas tentativas de analisálo Espero que seja aceitável dar esse molde ao tema que me foi proposto Os vínculos interiores do homem e do pesquisador com Goethe caso contrário peçolhe que tenha a gentileza tam bém de me desaconselhar isso Muito cordialmente freud DISCURSO NA CASA DE GOETHE EM FRANKFURT O trabalho de minha vida teve uma única meta Observei os distúrbios mais sutis das funções psíquicas de pessoas sãs e doentes e partindo desses sinais busquei inferir ou se acharem melhor intuir como é construído o aparelho que serve a tais funções e que forças nele atuam conjuntamente ou em oposição mútua Aquilo que nós eu meus amigos e colaboradores pudemos aprender por esse caminho nos pareceu significativo para a edi ficação de uma ciência da alma que permita compreender os processos normais e os patológicos como partes do mesmo curso natural de eventos Dessa limitação a uma só tarefa sou arrancado pela surpreendente distinção que me concedem os senhores Ao evocar a figura do grande homem universal que nasceu nesta casa que passou a infância nestes aposentos tal distinção nos convida a por assim dizer justificarmonos diante dele suscita a questão de como teria ele se comportado se o seu olhar atento a toda inovação da ciência tivesse pousado sobre a psicanálise No tocante à variedade de facetas Goethe se aproxima de Leonardo o mestre renascentista que foi artista e pesquisador como ele Mas as figuras hu manas jamais se repetem também não faltam profundas diferenças entre esses dois grandes Na natureza de Leonardo o pesquisador não se harmonizava com o artista perturbavao e por fim talvez o sufocasse Na vida de Goethe 191286 as duas personalidades coexistiam bem alternandose no predomínio É plausível no caso de Leonardo relacionar essa perturbação à inibição do desenvolvimento que afastou de seu interesse tudo que é erótico e portanto a psicologia Nesse aspecto a natureza de Goethe pôde se desenvolver mais livremente Acho que ele não rejeitaria inamistosamente a psicanálise como fazem tan tos de nossos contemporâneos Achavase próximo dela em vários pontos dis cerniu muitas coisas que desde então pudemos confirmar e várias concepções que atraíram sobre nós a crítica e o escárnio são por ele defendidas com natur alidade Assim por exemplo conhecia muito bem a força incomparável dos primeiros vínculos afetivos humanos Celebrouos na dedicatória do Fausto em palavras que poderíamos repetir a cada uma de nossas análises Novamente apareceis formas hesitantes Que um dia se mostraram à minha visão nublada Devo agora procurar vos reter Como antiga lenda quase extinta Retorna o primeiro amor e com ele a amizade E explicou para si mesmo a mais forte atração amorosa que experimentou quando adulto dizendo à amada Ah em tempos idos foste minha irmã ou esposa Assim ele não nega que as imperecíveis primeiras inclinações tomam por objeto pessoas de nosso próprio círculo familiar O conteúdo da vida onírica é por ele designado com palavras de grande poder evocativo Aquilo que não sabido Ou não pensado pelos homens 192286 No labirinto do peito Vaga durante a noite Por trás desse encanto percebemos a venerável incontestavelmente correta afirmação de Aristóteles segundo a qual o sonho é a continuação da atividade psíquica no estado do sono unida ao reconhecimento do inconsciente que só a psicanálise acrescentou Apenas o enigma da deformação onírica não encontra ali solução Na Ifigênia talvez sua criação mais sublime Goethe nos oferece um co movedor exemplo de expiação de liberação do fardo da culpa por uma alma sofredora e faz com que essa catarse se realize mediante uma apaixonada ir rupção de sentimentos sob a benéfica influência de um afetuoso interesse Ele próprio tentou várias vezes ministrar auxílio psicológico por exemplo àquele infeliz que nas cartas recebe o nome de Kraft ao professor Plessing de que fala em Campanha na França e o procedimento que aplicou vai além do utilizado na confissão católica aproximandose da técnica da psicanálise em notáveis pormenores Há um exemplo de influência terapêutica descrito joc osamente por Goethe que eu gostaria de citar aqui por extenso pois talvez não seja muito conhecido embora bastante característico É de uma carta para a sra Von Stein no 1444 de 5 de setembro de 1785 Ontem à noite fiz uma mágica psicológica A sra Herder estava ainda consternada de forma hipocondríaca com tudo o que lhe su cedera de desagradável em Carlsbad Sobretudo por parte de sua com panheira de residência Eu a fiz relatar e confessar tudo delitos alheios e erros próprios as menores circunstâncias e as consequências e afinal a absolvi dandolhe a entender jocosamente que com essa fórmula da absolvição essas coisas estavam liquidadas e lançadas nas profundezas do mar Ela própria divertiuse com isso e está realmente curada 193286 Goethe sempre teve Eros em alta conta jamais tentou menosprezar seu poder acompanhou suas manifestações primitivas e até mesmo licenciosas com respeito não menor que as altamente sublimadas e segundo me parece defendeu sua unidade essencial através de todas as suas formas de expressão de maneira não menos decidida do que Platão em tempos passados Talvez seja mais que simples coincidência o fato de nas Afinidades eletivas ele aplicar à vida amorosa uma ideia do âmbito da química um vínculo de que o próprio nome psicanálise dá testemunho Estou preparado para ouvir a objeção de que nós psicanalistas desper diçamos o direito de nos colocar sob a patronagem de Goethe por lhe ter faltado com o devido respeito ao tentar empregar a análise nele mesmo ao re baixar a objeto da pesquisa analítica o grande homem Mas contesto em primeiro lugar que isso implique ou pretenda ser um rebaixamento Todos nós que reverenciamos Goethe admitimos sem maior problema o trabalho dos biógrafos que buscam recriar sua vida a partir dos informes e re gistros existentes Mas que podem nos fornecer essas biografias Nem mesmo a melhor e mais completa seria capaz de responder as duas únicas questões que parecem dignas de interesse Não esclareceria o enigma do maravilhoso dom que constitui o artista e não poderia nos ajudar a compreender melhor o valor e o efeito de suas obras No entanto não há dúvida de que tal biografia satisfaz uma forte necessidade que temos Sentimos isso muito claramente quando lacunas no legado histórico impedem a satisfação de tal necessidade como no caso de Shakespeare por exemplo É inegavelmente penoso para todos nós não saber ainda quem escreveu as comédias tragédias e sonetos de Shakespeare se foi realmente o inculto filho de um pequenoburguês de Stratford que alcançou modesta posição de ator em Londres ou na verdade um aristocrata de alto nascimento e refinada cultura desregrado nas paixões e um tanto rebaixado socialmente Edward de Vere o 17o conde de Oxford grande lorde camareiro 194286 hereditário da Inglaterra Mas como se justifica esta necessidade de conhecer as circunstâncias da vida de um homem quando suas obras se tornaram im portantes para nós Muitas vezes se diz que isso representa o anseio de nos aproximarmos também humanamente desse homem Digamos que seja é en tão a necessidade de criar relações afetivas com tais homens de acrescentálos aos pais professores modelos que já conhecemos ou cuja influência experi mentamos na expectativa de que suas personalidades sejam grandes e admirá veis como as obras que deixaram Admitamos porém que outro motivo também está em jogo A justificativa do biógrafo contém igualmente uma confissão É certo que ele não quer re baixar o herói e sim aproximálo de nós Mas isso é reduzir a distância que nos separa dele atua no sentido de um rebaixamento afinal E é inevitável que ao saber mais sobre a vida de um grande homem também nos inteiremos de ocasiões em que ele não se saiu melhor do que nós aproximouse realmente de nós Entretanto acho que podemos declarar legítimos os esforços dos autores de biografias Afinal nossa atitude ante pais e professores é ambivalente pois nossa reverência por eles esconde via de regra um componente de rebelião hostil Isso é uma fatalidade psicológica não pode ser mudado sem uma viol enta supressão da verdade e se estende a nossa relação com os grandes ho mens cuja vida queremos estudar Quando a psicanálise se põe a serviço da biografia ela naturalmente tem o direito de não ser tratada com maior severidade do que essa mesma A psic análise pode trazer esclarecimentos que não são obtidos por outras vias e dessa maneira mostrar novas conexões na obraprima de tecelão que com preende as disposições instintuais as vivências e as obras do artista Como uma das principais funções de nosso pensamento é dominar psiquicamente o material do mundo exterior creio que se deveria agradecer à psicanálise quando aplicada a um grande homem ela contribui para o entendimento de suas grandes realizações Mas confesso que no caso de Goethe ainda não 195286 avançamos muito Isso porque ele como poeta não foi apenas um grande rev elador mas também apesar da abundância de documentos autobiográficos um grande ocultador Nisso não podemos deixar de lembrar as palavras de Mefistófeles O melhor que chegares a saber Não poderás contar aos meninos Em Briefe 18731939 consta a data de 26 de julho de 1930 provavelmente equivocada pois teria sido a da carta de Paquet e o nome do local de férias onde ela foi redigida aparece como GrundlseeRebenburg Inferir no original erschließen intuir erraten os dois verbos admitem mais de um sen tido como se nota pelas versões estrangeiras deste trabalho que consultamos determinar des cubrir chiarire infer e adivinar colegir indovinare guess No mesmo parágrafo ciência da alma é como preferimos verter Seelenkunde nisso concordando com uma das versões con sultadas psicologia ciencia del alma psicologia mental science Primeiras linhas do Fausto no original Ihr naht euch wieder schwankende Gestalten Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt Versuch ich wohl euch diesmal festzuhalten Gleich einer alten halbverklungnen Sage Kommt erste Lieb und Freundschaft mit herauf Ach Du warst in abgelebten Zeiten meine Schwester oder meine Frau de um poema enviado a Charlotte von Stein em 1776 Do poema An den Mond À lua no original Was von Menschen nicht gewußt Oder nicht bedacht Durch das Labyrinth der Brust Wandelt in der Nacht também citado por Nietz sche em Genealogia da moral ii 18 Mágica Kunststück nas versões consultadas prestidigitación artificio giuoco dabilità feat Alusão a uma passagem do Fausto cena 4 Freud a cita mais extensamente na Interpretação dos sonhos cap vi seção A ao falar da complexa fábrica de pensamentos do sonho Das Beste was du wissen kannst Darfst du den Buben doch nicht sagen também da cena 4 196286 TIPOS LIBIDINAIS 1931 TÍTULO ORIGINAL ÜBER LIBIDINÖSE TYPEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE V 17 N 3 PP 3136 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 50913 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 26772 A observação nos mostra que as pessoas realizam a ideia geral do ser humano de maneiras quase infinitamente diversas Se cedermos à legítima necessidade de distinguir tipos particulares nesse conjunto já de início teremos de escolher por quais características e segundo que pontos de vista se fará essa diferen ciação Para esse propósito as qualidades físicas serão certamente tão úteis quanto as psíquicas e as distinções mais valiosas serão aquelas que prometer em uma conjunção regular de traços físicos e psíquicos É duvidoso que já agora possamos descobrir tipos que preencham tais re quisitos como certamente conseguiremos depois sobre uma base ainda não conhecida Limitandonos ao esforço de estabelecer tipos psicológicos a situ ação vigente na libido é que terá direito a servir de fundamento para a divisão É lícito pretender que essa divisão não apenas derive de nosso conhecimento ou nossas suposições sobre a libido mas que também se encontre facilmente na prática e contribua para clarificar o conjunto de nossas observações em bene fício da nossa concepção Admitimos sem hesitar que também no âmbito psíquico esses tipos libidinais não são necessariamente os únicos possíveis e que talvez se possa estabelecer toda uma série de outros tipos psicológicos a partir de outras qualidades Mas nenhum deles pode coincidir com quadros patológicos Muito ao contrário devem abranger todas as variações que con forme uma avaliação prática mantêmse no leque do normal Em suas form ações extremas podem avizinharse de quadros patológicos no entanto ajudando assim a preencher o suposto abismo entre o normal e o patológico Segundo a alocação da libido que predominar nas províncias do aparelho psíquico podese distinguir três tipos libidinais principais Não é fácil lhes dar nomes apoiandome em nossa psicologia profunda gostaria de chamálos de erótico narcisista e obsessivo O tipo erótico é fácil de caracterizar Os eróticos são pessoas cujo principal interesse a parte relativamente maior de sua libido está voltado para a vida amorosa Amar e acima de tudo ser amado é o mais importante para eles São dominados pelo medo de perder o amor e por isso têm particular dependência dos outros dos que podem lhes negar o amor Também na sua forma pura esse tipo é frequente Ocorrem variantes dele conforme a mistura com outro tipo e a quantidade de agressão existente Social e culturalmente esse tipo representa as elementares exigências instintuais do Id ao qual as out ras instâncias psíquicas tornaramse dóceis O segundo tipo ao qual dei o nome à primeira vista estranho de obsessivo caracterizase pela predominância do Supereu que sob elevada tensão se sep ara do Eu Ele é dominado pelo medo da consciência moral em lugar do medo ante a perda do amor mostra uma dependência interna digamos em vez de externa desenvolve um elevado grau de autonomia e socialmente vem a ser o autêntico veículo da cultura predominantemente conservador O terceiro tipo com razão denominado narcisista será caracterizado de modo essencialmente negativo Nele não há tensão entre Eu e Supereu com base nesse tipo dificilmente chegaríamos à noção de um Supereu não há preponderância das necessidades eróticas seu interesse maior se dirige à autopreservação ele é independente e não se deixa intimidar Seu Eu dispõe de uma larga medida de agressividade que também se manifesta na disposição para a atividade em sua vida amorosa amar vem antes de ser amado As pess oas desse tipo se impõem às outras como personalidades são especialmente aptas a servir de apoio às demais a assumir o papel de líderes e a fornecer nov os estímulos ao desenvolvimento cultural ou prejudicar as condições existentes Esses tipos puros não escaparão à suspeita de derivarem da teoria da libido Mas nos sentiremos no solo firme da experiência se nos ocuparmos dos tipos mistos que se oferecem mais prontamente à observação do que os puros Esses novos tipos o eróticoobsessivo o eróticonarcisista e o narcisistaobsessivo pare cem mesmo abarcar satisfatoriamente as estruturas psíquicas individuais tal como as conhecemos através da análise São caracteres há muito familiares os que encontramos no estudo desses tipos mistos No tipo eróticoobsessivo a pre ponderância da vida institual parece limitada pela influência do Supereu a 199286 dependência simultânea de objetos humanos recentes e de vestígios dos pais educadores e modelos alcança nesse tipo o grau mais elevado O eróticonar cisista é talvez aquele a que se deve atribuir a maior frequência Reúne opostos que podem moderarse mutuamente nele comparandoo com os dois outros tipos eróticos podemos aprender que agressão e atividade vão de par com a predominância do narcisismo Por fim o narcisistaobsessivo resulta na variante mais valiosa culturalmente na medida em que junta a capacidade de ação vig orosa à independência externa e consideração das exigências da consciência fortalecendo o Eu contra o Supereu Alguém poderia crer estar fazendo uma piada se perguntasse por que não é mencionado aqui um outro tipo misto teoricamente possível o erótico obsessivonarcisista Mas a resposta ao gracejo seria um tipo assim já não seria um tipo ele significaria a norma absoluta a harmonia ideal Nisso percebemos que o fenômeno dos tipos nasce justamente de que das três principais ap licações da libido na economia psíquica uma ou duas foram privilegiadas às expensas das outras Podese também imaginar a pergunta de qual a relação desses tipos libid inais com a patologia se alguns deles se dispõem particularmente para a neur ose e nesse caso quais tipos conduzem a quais formas A resposta será que a formulação desses tipos libidinais não lança luz nova sobre a gênese das neur oses Pelo testemunho da experiência todos esses tipos podem viver sem neur ose Os tipos puros com primado indiscutível de uma única instância psíquica parecem ter maior perspectiva de apresentarse como formações caracteroló gicas puras enquanto dos tipos mistos se pode esperar que ofereçam um solo mais favorável às precondições para a neurose Mas acho que acerca disso não devemos formar juízo sem um exame cuidadoso e particularmente dirigido Parece fácil deduzir que em caso de doença os tipos eróticos desenvolvem histeria e os obsessivos neurose obsessiva mas isso também partilha a incer teza há pouco enfatizada Os tipos narcisistas que não obstante sua inde pendência geral achamse expostos à frustração a partir do mundo exterior 200286 possuem predisposição especial para a psicose apresentando igualmente pre condições essenciais para a criminalidade Sabese que as precondições etiológicas da neurose ainda não são conheci das com certeza Os fatores que a ocasionam são frustrações e conflitos inter nos conflitos entre as três grandes instâncias psíquicas no interior da eco nomia libidinal consequentes à nossa constituição bissexual e entre os com ponentes instintuais eróticos e agressivos A psicologia das neuroses se em penha em averiguar o que torna patogênicos esses processos pertencentes ao curso normal da vida psíquica 201286 SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA 1931 TÍTULO ORIGINAL ÜBER DIE WEIBLICHE SEXUALITÄT PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE V 17 N 3 PP 31732 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 51737 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 27392 I Na fase do complexo de Édipo normal vemos a criança ligada afetivamente ao genitor do sexo oposto enquanto na relação com o de mesmo sexo predomina a hostilidade Não nos é difícil chegar a esse resultado no caso do menino A mãe foi seu primeiro objeto de amor continua a sêlo e com a intensificação dos impulsos amorosos do menino e sua maior compreensão dos laços entre o pai e a mãe o pai tem de se tornar seu rival É diferente com a menina Seu primeiro objeto foi também a mãe certamente Mas como acha ela o caminho até o pai Como quando e por que ela se desprende da mãe Há algum tempo vimos que o desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pela tarefa de abandonar a zona genital originalmente dominante o clitóris por uma nova a vagina Agora uma segunda transformação a troca do original objeto mãe pelo pai parecenos igualmente característica e significativa para o desenvolvimento da mulher Ainda não podemos perceber de que modo as duas tarefas se vinculam Sabese que muitas mulheres são fortemente ligadas ao pai de maneira nenhuma precisam ser neuróticas Em tais mulheres fiz as observações que aqui relatarei que me levaram a determinada concepção da sexualidade femin ina Dois fatos me chamaram a atenção acima de tudo O primeiro foi quando a ligação com o pai era particularmente intensa a análise mostrou que tinha havido antes uma fase de exclusiva ligação com a mãe igualmente intensa e apaixonada Excetuando a mudança de objeto a segunda fase praticamente não acrescentou nenhum novo traço à vida amorosa A relação primária com a mãe fora desenvolvida de maneira bastante rica e variada O segundo fato me ensinou que também a duração desse vínculo com a mãe fora bastante subestimado Em muitos casos ele ia até os quatro em um deles até os cinco anos de idade ou seja cobria a maior parte do primeiro florescimento sexual Então foi necessário admitir a possibilidade de que um certo número de mulheres se detém na original ligação com a mãe e jamais se volta realmente para o homem Assim a fase préedípica da mulher assume uma importância que até agora não lhe havíamos atribuído Como ela pode conter todas as fixações e repressões a que fazemos re montar o surgimento das neuroses parece necessário abandonar a universalid ade da tese de que o complexo de Édipo seria o núcleo da neurose Mas quem reluta em fazer essa correção não é obrigado a fazêla Por um lado podese dar ao complexo de Édipo um conteúdo mais amplo de modo a abranger to das as relações da criança com os dois genitores por outro lado também se podem levar em conta as novas experiências afirmando que a mulher atinge a normal situação edípica positiva somente após haver superado uma época an terior dominada pelo complexo negativo De fato durante essa fase o pai é pouco mais que um incômodo rival para a menina embora a hostilidade para com ele jamais alcance a altura típica dos meninos Há muito tempo renun ciamos à expectativa de um perfeito paralelismo entre o desenvolvimento sexual masculino e o feminino A percepção da anterior fase préedípica da garota é para nós uma sur presa semelhante à descoberta em outro campo da civilização minoico micênica por trás da grega Tudo no âmbito dessa primeira ligação com a mãe pareceume bastante difícil de apreender analiticamente bastante remoto penumbroso quase im possível de ser vivificado como se tivesse sucumbido a uma repressão particu larmente implacável Mas talvez esta impressão me viesse do fato de que as mulheres podiam se apegar na análise comigo à mesma ligação ao pai em que se haviam refugiado após a fase anterior em questão Parece de fato que an alistas mulheres como Jeanne Lamplde Groot e Helene Deutsch puderam perceber esses fatos com maior facilidade e nitidez pois tiveram o auxílio da transferência para um substituto materno adequado nas pacientes sob seu 204286 tratamento Não consegui penetrar inteiramente nenhum caso por isso me limitarei a expor os resultados mais gerais e a oferecer alguns exemplos de minhas novas percepções Uma delas é que a fase de ligação com a mãe pode ter uma relação particularmente íntima com a etiologia da histeria o que não deve surpreender se consideramos que as duas tanto a fase como a neurose estão entre as características especiais da feminilidade e além disso que nessa dependência da mãe se acha o gérmen da paranoia posterior da mulher1 Pois este parece ser o medo surpreendente mas regularmente encontrado de ser morta devorada pela mãe É plausível supor que esse medo corresponda a uma hostilidade que na criança se desenvolve em relação à mãe em con sequência das muitas restrições envolvidas na educação e no cuidado corporal e que o mecanismo da projeção seja favorecido pela pouca idade da organiza ção psíquica II Expus inicialmente os dois fatos que me chamaram a atenção pela novidade que a forte dependência da mulher em relação ao pai é apenas herdeira de uma ligação à mãe igualmente forte e que essa fase anterior teve uma duração ines peradamente longa Agora voltarei um pouco atrás para inserir essas novas conclusões no quadro do desenvolvimento sexual feminino que já con hecemos Ao fazêlo algumas repetições serão inevitáveis E nossa exposição lucrará se continuamente fizermos uma comparação com o estado de coisas no homem Em primeiro lugar é indiscutível que a bissexualidade que afirmamos ser parte da constituição humana aparece bem mais nitidamente na mulher do que no homem O homem tem apenas uma zona sexual diretora um órgão sexual enquanto a mulher tem dois a vagina que é propriamente feminina e o clitóris que é análogo ao membro masculino Acreditamos poder supor que 205286 durante muitos anos é como se a vagina não existisse talvez somente na época da puberdade ela produza sensações Ultimamente é verdade cresceu o número de observadores que sustentam haver sensações vaginais também nos primeiros anos O essencial do que sucede no âmbito da genitalidade na infân cia da mulher deve ocorrer no clitóris A vida sexual da mulher se divide nor malmente em duas fases das quais a primeira tem caráter masculino apenas a segunda é especificamente feminina No desenvolvimento feminino há então um processo de transição de uma fase para a outra que não tem análogo no homem Uma outra complicação vem do fato de que a função do viril clitóris prossegue na vida sexual posterior da mulher de maneira bastante variável e não compreendida satisfatoriamente Ignoramos naturalmente a funda mentação biológica dessas peculiaridades da mulher tampouco somos capazes de lhes atribuir algum propósito teleológico Paralelamente a essa primeira grande diferença corre uma outra no terreno da busca de objeto O primeiro objeto amoroso do homem é a mãe em con sequência dos cuidados de higiene e de alimentação que lhe dispensou e como tal continua até ser substituída por alguém de natureza semelhante ou dela de rivado Também para a mulher a mãe tem de ser o primeiro objeto as con dições primordiais da escolha de objeto são as mesmas para todas as crianças Mas no final do desenvolvimento o homem o pai deve se tornar o novo objeto de amor ou seja à mudança no sexo da mulher tem de corresponder uma mudança no sexo do objeto Neste ponto surgem como novas tarefas para a pesquisa as seguintes questões de que modo ocorre essa transform ação se se realiza completamente ou imperfeitamente e que diferentes possib ilidades se abrem no curso desse desenvolvimento Também já vimos que uma outra diferença entre os sexos diz respeito ao complexo de Édipo Nisso temos a impressão de que o que afirmamos sobre o complexo de Édipo se aplica a rigor apenas ao menino e que estamos certos em rejeitar o nome de complexo de Eletra que busca enfatizar a analogia no comportamento dos dois sexos A fatal conjunção de amor a um genitor e ódio 206286 simultâneo ao outro como rival existe apenas no garoto Nele é a descoberta da possibilidade da castração demonstrada pela visão dos genitais femininos que impõe a transformação do complexo de Édipo e leva à criação do Super eu assim dando início aos processos que visam inscrever o indivíduo na comunidade civilizada Após a interiorização da instância paterna como Super eu a tarefa a ser realizada é desligar esse último das pessoas que originalmente representou Neste singular curso de desenvolvimento justamente o interesse narcísico nos genitais na preservação do pênis é utilizado na limitação da sexualidade infantil No homem a influência do complexo da castração deixa também certo grau de menosprezo pela mulher percebida como castrada Em casos ex tremos isso dá origem a inibição na escolha do objeto e se concorrem fatores orgânicos homossexualidade exclusiva Bem diferentes são os efeitos do com plexo da castração na mulher Ela admite o fato de sua castração e com isso a superioridade do homem e sua própria inferioridade mas também se revolta contra esse desagradável estado de coisas Dessa atitude dividida decorrem três orientações de desenvolvimento A primeira leva ao afastamento da sexu alidade em geral Assustada pela comparação com os meninos a garota fica in satisfeita com seu clitóris renuncia a sua atividade fálica e com isso à sexual idade mesma assim como a boa parte de sua masculinidade em outros campos A segunda direção consiste em se apegar com teimosa autoafirmação à mas culinidade ameaçada a esperança de voltar a ter um pênis se mantém viva até uma época incrivelmente tardia é transformada em objetivo de vida e a fantasia de apesar de tudo ser um homem prossegue com frequência atuando formadoramente em longos períodos da vida Também esse complexo de masculinidade da mulher pode resultar em manifesta escolha homossexual do objeto Apenas um terceiro desenvolvimento bastante sinuoso vem a dar na definitiva configuração feminina normal que toma o pai por objeto e assim alcança a forma feminina do complexo de Édipo Na mulher portanto o com plexo de Édipo é o resultado final de um longo desenvolvimento não é 207286 destruído mas sim criado por influência da castração escapa às fortes influên cias hostis que no homem atuam de forma destruidora sobre ele e de fato com muita frequência não é superado pela mulher Por isso também são menores e menos relevantes as consequências culturais de sua desintegração Provavel mente não será errado dizer que essa diferença na relação entre o complexo de Édipo e o da castração marca indelevelmente o caráter da mulher como ser so cial2 Portanto a fase de exclusiva ligação à mãe que podemos chamar de pré edípica assume na mulher uma importância bem maior do que no homem Muitos fenômenos da vida sexual feminina que antes não compreendíamos realmente acham explicação se os referimos a esta fase Há muito notamos por exemplo que muitas mulheres escolhem o marido conforme o modelo do pai ou o põem no lugar no pai mas repetem com ele no casamento a má re lação com a mãe Ele deveria herdar a relação com o pai mas na realidade herda aquela com a mãe Não é difícil vermos aí um claro caso de regressão A relação com a mãe foi a original sobre ela construiuse a ligação ao pai e agora no casamento a relação original emerge da repressão O traslado das ligações afetivas do objeto materno para o paterno constituiu o teor principal do desenvolvimento que leva à feminilidade Se muitas mulheres nos dão a impressão de que passam a época adulta a lut ar com o marido assim como ocuparam a juventude a brigar com a mãe à luz das observações precedentes concluímos que a sua atitude hostil diante da mãe não é consequência da rivalidade do complexo de Édipo mas procede da fase anterior e apenas é reforçada e aplicada na situação edípica Há confirmação disso na investigação psicanalítica direta Nosso interesse precisa voltarse para os mecanismos que atuam no afastamento em relação ao objeto materno amado de forma tão intensa e exclusiva Estamos preparados para encontrar não um fator único mas toda uma série de fatores que operam conjuntamente para o mesmo fim 208286 Entre eles destacamse alguns que são condicionados pelas circunstâncias gerais da sexualidade infantil e que portanto valem igualmente para a vida amorosa dos garotos Em primeira linha devese mencionar o ciúme de outras pessoas de irmãos rivais entre os quais se encontra também o pai O amor da criança é desmedido requer exclusividade não se satisfaz com frações Uma segunda característica porém é o fato de esse amor ser propriamente sem meta incapaz de alcançar plena satisfação e essencialmente por isso está con denado a acabar em decepção e dar lugar a uma atitude hostil Em épocas pos teriores da vida a ausência de uma satisfação final pode favorecer um outro resultado Esse fator pode assegurar a continuação imperturbada do investi mento libidinal como nas relações amorosas inibidas na meta mas no ímpeto dos processos de desenvolvimento sucede regularmente que a libido abandone a posição insatisfatória para buscar uma nova Outro motivo bem mais específico para o afastamento em relação à mãe está no efeito do complexo da castração sobre a criatura sem pênis Algum dia a garota pequena descobre a sua inferioridade orgânica naturalmente mais cedo e mais facilmente quando tem irmãos ou há garotos ao seu redor Já vi mos as três direções que então aparecem a a que leva à cessação da vida sexu al b a da teimosa acentuação da masculinidade c os primeiros passos para a feminilidade definitiva Não é fácil precisar aqui as durações e estabelecer os cursos típicos dos eventos Já o momento da descoberta da castração é var iável e outros fatores parecem inconstantes e dependentes do acaso O estado da atividade fálica da menina entra em consideração e também se essa ativid ade é descoberta ou não e o grau de impedimento sentido após a descoberta A atividade fálica a masturbação do clitóris geralmente é encontrada de forma espontânea pela menina certamente não é acompanhada de fantasia no início A influência da higiene corporal no seu despertar se reflete na fantasia frequente em que a mãe amaseca ou babá é a sedutora Não consideramos se nas meninas a masturbação é mais rara e desde o início menos enérgica do que nos meninos possivelmente sim Também a sedução real é frequente por 209286 parte de outras crianças ou de pessoas que dela cuidam que buscam sossegála fazêla adormecer ou tornála dependente de si Quando há a sedução ela nor malmente perturba o curso natural de desenvolvimento muitas vezes deixa consequências profundas e duradouras Como vimos a proibição da masturbação tornase um ensejo para abandonála mas também um motivo para rebelarse contra a pessoa que proíbe ou seja a mãe ou o sucedâneo da mãe que depois se funde regular mente com ela A teimosa persistência na masturbação parece abrir o caminho para a masculinidade Mesmo quando a criança não consegue suprimir a mas turbação o efeito da proibição aparentemente ineficaz se mostra em seu pos terior empenho de livrarse a todo custo de uma satisfação que foi estragada para ela Ainda a escolha objetal da menina madura pode ser influenciada por esse desejo a que ela se apegou O rancor por ser impedida de exercer a ativid ade sexual desempenha um relevante papel no afastamento da mãe O mesmo motivo atuará novamente após a puberdade quando a mãe percebe seu dever de zelar pela virgindade da filha Não esquecemos naturalmente que a mãe contraria do mesmo modo a masturbação do filho e assim produz também nele um forte motivo para a rebelião Quando a garota pequena se dá conta do seu defeito ao avistar um genital masculino não é sem hesitação e relutância que ela aceita o indesejado conhe cimento Como vimos a expectativa de algum dia também ter um genital as sim é conservada obstinadamente e o desejo disso sobrevive à esperança por bastante tempo Em todos os casos a criança vê a castração inicialmente como um infortúnio individual apenas depois a estende a algumas outras crianças e por fim a certos adultos Com a percepção da natureza geral dessa caracter ística negativa há uma grande desvalorização da feminilidade e portanto tam bém da mãe É bem possível que essa descrição de como a garota pequena se comporta ante a ideia da castração e a proibição do onanismo deixe no leitor uma im pressão confusa e contraditória Isso não é culpa inteiramente do autor Na 210286 realidade uma exposição universalmente válida é quase impossível Em indi víduos diferentes encontramse as mais diferentes reações e no mesmo indiví duo coexistem atitudes opostas Tão logo se manifesta a proibição está presente o conflito que passa a acompanhar o desenvolvimento da função sexual Também dificulta especialmente a compreensão o fato de ser tão tra balhoso distinguir os processos psíquicos dessa primeira fase de outros posteri ores pelos quais aqueles são cobertos e distorcidos na memória Assim por exemplo o fato da castração será apreendido como punição pela atividade masturbatória mas sua execução será atribuída ao pai e nenhuma das duas noções pode ser primária Também o menino teme a castração por parte do pai embora também no caso dele a ameaça proceda geralmente da mãe Seja como for no final dessa primeira fase de ligação à mãe aparece como o mais forte motivo para o afastamento da mãe a recriminação de que ela não deu à menina um genital verdadeiro isto é de que a deu à luz como mulher E com surpresa ouvimos outra recriminação que remonta a algo menos distante a mãe lhe deu muito pouco leite não a amamentou por tempo suficiente Isso bem pode ocorrer nas circunstâncias culturais de hoje mas não tão frequente mente como é dito na análise Esta queixa seria antes expressão de um descon tentamento geral das crianças que nas condições culturais da monogamia são desmamadas após seis a nove meses enquanto as mães primitivas dedicam dois ou três anos exclusivamente aos filhos é como se nossas crianças sempre ficas sem insaciadas como se nunca mamassem suficientemente o seio materno Mas não estou certo de que não encontraríamos a mesma queixa na análise de crianças que foram amamentadas tão longamente como os filhos dos primit ivos Pois é grande a avidez da libido infantil Se percorremos toda a série de motivos que a análise descobre para o afastamento em relação à mãe que ela não dotou a menina do único genital verdadeiro que a nutriu de maneira insuficiente que a obrigou a dividir com outros o amor materno que jamais satisfez as expectativas de amor e por fim que inicialmente estimulou e depois proibiu sua atividade sexual eles todos não parecem ainda bastantes para 211286 justificar a hostilidade final Alguns são consequências inevitáveis da natureza da sexualidade infantil outros semelham racionalizações arranjadas posterior mente para a não compreendida mudança nos sentimentos Mas talvez a lig ação à mãe tenha mesmo de acabar justamente por ser primeira e de tão grande intensidade de modo semelhante ao que frequentemente se observa nos primeiros casamentos de mulheres jovens contraídos na mais acesa paixão Nos dois casos a atitude amorosa fracassaria pelas inevitáveis de cepções e pelo acúmulo de ensejos para a agressão Geralmente o segundo matrimônio é mais bemsucedido Não podemos chegar ao ponto de afirmar que a ambivalência dos investi mentos emocionais é uma lei psicológica de validade universal que é absoluta mente impossível ter grande amor por alguém sem que um ódio talvez igual mente grande se apresente ou viceversa Sem dúvida a pessoa normal e adulta consegue manter separadas as duas atitudes não tendo que odiar seu objeto amoroso nem que amar seu inimigo Mas isto parece ser resultado de desenvolvimentos posteriores Nas primeiras fases da vida amorosa a am bivalência é claramente a regra Em muitas pessoas esse traço arcaico é conser vado pela vida inteira é característico dos neuróticos obsessivos que amor e ódio se equilibrem nas relações objetais Também com relação aos primitivos podese dizer que a ambivalência predomina Portanto a intensa ligação da menina com sua mãe tem de ser fortemente ambivalente e secundada por out ros fatores precisamente essa ambivalência a impele ao afastamento ou seja também devido a uma característica geral da sexualidade infantil Contra essa tentativa de explicação aparece logo uma pergunta como é possível para os garotos manter incólume sua ligação à mãe que certamente não é menos forte A resposta também não se faz esperar porque são capazes de resolver sua ambivalência com a mãe alojando no pai todos os sentimentos hostis Mas não se deve dar essa resposta em primeiro lugar antes de estudar detidamente a fase préedípica dos meninos e depois é mais prudente admitir 212286 que ainda não compreendemos bem esses processos de que acabamos de to mar conhecimento III Uma outra pergunta é que solicita da mãe a menina De que tipo são suas metas sexuais no tempo da exclusiva ligação à mãe A resposta que se obtém do material analítico corresponde inteiramente a nossas expectativas As metas sexuais da menina diante da mãe são de natureza tanto ativa como passiva e são determinadas pelas fases da libido que a criança atravessa A relação entre atividade e passividade merece aqui o nosso particular interesse É fácil obser var que em todo âmbito da vida psíquica não apenas no da sexualidade uma impressão recebida passivamente pela criança suscita a tendência a uma reação ativa Ela procura fazer o mesmo que antes foi feito nela ou com ela Isso é parte do trabalho de domínio do mundo exterior que é chamada a fazer e pode até mesmo levar a que se empenhe em repetir impressões que teria motivo para evitar por seu conteúdo doloroso Também a brincadeira infantil é posta a serviço desse propósito de complementar uma vivência passiva com uma ação ativa como que anulandoa dessa maneira Quando o médico abre a boca de uma criança para observarlhe a garganta apesar de sua resistência depois que ele se vai a criança brinca de médico e repete o violento procedimento com um irmãozinho que se acha tão indefeso perante ela como ela própria se achava perante o doutor É inegável que temos aí uma rebelião contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo Essa transição de passividade para atividade não se verifica com a mesma regularidade e energia em todas as crianças em algumas ela pode não ocorrer Desse comportamento da criança podese tirar uma conclusão sobre a força relativa da masculinidade e da feminilidade que ela exibirá em sua sexualidade 213286 As primeiras vivências sexuais e de matiz sexual que a criança tem com a mãe são naturalmente de caráter passivo Ela é amamentada nutrida limpada vestida e ensinada a fazer tudo o que deve Uma parte da libido da criança continua apegada a essas experiências e desfruta as satisfações a elas relacionadas outra parte procura convertêlas em atividade No peito mater no ser amamentado é substituído por mamar ativamente Em outros aspectos a criança se contenta ou com a autonomia isto é com o êxito em realizar ela própria o que até então era feito com ela ou com a repetição ativa de suas vivências passivas ao brincar ou realmente faz da mãe o objeto ante o qual desempenha o papel de sujeito ativo Esse último comportamento que sucede no âmbito da atividade propriamente dita pareceume inacreditável por muito tempo até que a experiência refutou qualquer dúvida Raramente se ouve que uma menina queira lavar vestir ou lembrar a mãe de satisfazer as necessidades fisiológicas É certo que às vezes ela diz Agora vamos brincar que eu sou a mãe e você a filha mas geralmente realiza esses desejos ativos de forma indireta na brincadeira com uma boneca em que representa ela própria a mãe e a boneca a filha A predileção das meninas por brincar com bonecas diferentemente dos meninos costuma ser vista como sin al da feminilidade que desperta precocemente Com razão mas não se deve ig norar que é o caráter ativo da feminilidade que aí se expressa e que essa pre dileção da menina provavelmente demonstra a exclusividade da ligação à mãe com total negligência do objetopai A surpreendente atividade sexual da menina em relação à mãe se manifesta na sequência temporal em tendências orais sádicas e por fim até mesmo fálicas dirigidas à mãe É difícil fazer aqui um relato pormenorizado pois fre quentemente são obscuros impulsos instintuais que a criança não podia apreender psiquicamente na época em que ocorreram e que por isso rece beram apenas uma interpretação posterior surgindo na análise em formas de expressão que certamente não tinham originalmente Às vezes damos com eles como transferências para o posterior objetopai onde não cabem e dificultam 214286 sensivelmente a compreensão Os desejos agressivos orais e sádicos são encon trados na forma que então lhes foi imposta pela repressão como medo de ser morta pela mãe o qual por sua vez justifica o desejo de morte contra a mãe quando este se torna consciente Não é possível dizer com que frequência esse medo da mãe se baseia numa inconsciente hostilidade por parte dela que a cri ança percebe Até agora encontrei apenas em homens o medo de ser devor ado ele se refere ao pai mas provavelmente é o produto de uma transform ação da agressividade oral dirigida à mãe A criança quer devorar a mãe da qual se nutriu com relação ao pai falta esse motivo para o desejo As pacientes com forte ligação à mãe nas quais pude estudar a fase pré edípica foram concordes em dizer que quando a mãe lhes aplicava enemas e lavagens intestinais elas costumavam opor grande resistência e reagir com an gústia e gritos de raiva Isso pode ser uma conduta frequente ou mesmo reg ular nas crianças Só vim a compreender a razão dessa veemente rebeldia graças a uma observação de Ruth Mack Brunswick que se ocupava dos mes mos problemas Ela se inclinava a comparar o acesso de raiva após um enema ao orgasmo após a excitação genital E a angústia se entenderia como conver são do desejo de agressão despertado Penso que é realmente assim e que no estágio sádicoanal a intensa excitação passiva da zona intestinal é respondida com um acesso do desejo de agressão que se manifesta diretamente como raiva ou devido a sua supressão como angústia Essa reação parece extinguir se em anos posteriores Considerando os impulsos passivos da fase fálica sobressai o fato de a menina geralmente acusar a mãe de seduzila por haver tido as primeiras ou em todo caso as mais fortes sensações genitais ao receber cuidados de higiene e de limpeza por parte da mãe ou da pessoa que nisso a representava A men ina gosta dessas sensações e pede que a mãe as aumente com toques e fricções como várias vezes algumas mães me comunicaram haver observado em suas filhas de dois e três anos de idade Assim a mãe inevitavelmente inicia a cri ança na fase fálica e atribuo a isso o fato de nas fantasias de anos posteriores o 215286 pai aparecer tão regularmente como o sedutor sexual Com o afastamento em relação à mãe também a introdução na vida sexual é transferida para o pai Por fim na fase fálica também surgem intensos desejos de natureza ativa em relação à mãe A atividade sexual dessa época culmina na masturbação no clitóris durante a qual provavelmente a menina pensa na mãe mas em minhas observações não pude descobrir se ela chega a imaginar uma meta sexual e qual seria essa meta Apenas quando todos os interesses da menina recebem um novo ímpeto com a chegada de um irmãozinho é que tal meta pode ser claramente reconhecida A garota deseja ter feito essa nova criança na mãe ex atamente como o menino e também sua reação a esse acontecimento e sua conduta ante o bebê são as mesmas Isso parece absurdo é verdade mas talvez apenas por ser tão inusitado para nós O afastamento em relação à mãe é um passo altamente significativo no desenvolvimento da garota é mais que uma simples mudança de objeto Já descrevemos o que nele ocorre e os muitos motivos para ele aduzidos acres centemos que paralelamente a ele se observa uma forte diminuição dos im pulsos sexuais ativos e um aumento daqueles passivos Sem dúvida as tendên cias ativas são mais afetadas pela frustração elas se revelaram totalmente in exequíveis e portanto são mais facilmente abandonadas pela libido mas tam bém do lado das tendências passivas não faltaram frustrações Com o afasta mento diante da mãe frequentemente cessa também a masturbação clitoridi ana e com a repressão da masculinidade anterior da menina não raro é preju dicada uma boa parte de seu interesse sexual O caminho para o desenvolvi mento da feminilidade fica aberto para a menina desde que não seja limitado pelos resíduos da superada ligação préedípica com a mãe Se agora reconsideramos a parte do desenvolvimento sexual feminino que aqui foi descrita não podemos nos furtar a uma conclusão sobre a sexualidade feminina como um todo Encontramos as mesmas forças libidinais que havíamos encontrado nos meninos e pudemos nos convencer de que durante 216286 um certo tempo elas tomam os mesmos caminhos e chegam aos mesmos resultados Depois são fatores biológicos que as desviam de suas metas iniciais e con duzem pelas vias da feminilidade até mesmo tendências ativas masculinas em todo sentido Como não podemos rejeitar a ideia de que a excitação sexual se deve ao efeito de substâncias químicas determinadas é razoável esperar que no futuro a bioquímica nos apresente uma substância que seja responsável pela excitação sexual masculina e outra pela feminina Mas tal esperança não parece menos ingênua do que aquela hoje felizmente ultrapassada de distinguir no microscópio os causadores da histeria da neurose obsessiva da melancolia etc Também na química sexual as coisas devem ser um tanto mais complicadas Mas para a psicologia não faz diferença que haja uma única substância ou duas ou inúmeras A psicanálise nos diz que devemos contar com uma só li bido que no entanto dispõe de metas isto é formas de satisfação ativas e passivas Nessa oposição sobretudo na existência de impulsos libidinais com metas passivas está contido o restante do problema IV Ao examinar a literatura psicanalítica sobre o assunto chegase à convicção de que tudo o que expus aqui já se encontra lá Seria desnecessário publicar este trabalho se não sucedesse que num campo de tão difícil acesso todo relato das observações pessoais e concepções próprias pode ter seu valor Além disso abordei várias coisas com maior precisão e delimiteias com maior cuidado Em alguns dos outros ensaios a exposição é um tanto confusa porque os prob lemas do Supereu e do sentimento de culpa são discutidos simultaneamente Isso eu pude evitar e ao relatar os diferentes desfechos dessa fase de desenvol vimento também não tratei das complicações que aparecem quando a menina graças à decepção com o pai volta para a mãe que havia abandonado ou 217286 repetidamente muda de uma posição para a outra no curso da vida Mas justa mente porque meu trabalho é apenas uma das contribuições sobre o tema posso me furtar a uma apreciação minuciosa da literatura e me restringir a destacar as concordâncias mais significativas com uns e as divergências mais importantes com outros A descrição feita por Abraham das Formas como se manifesta o complexo da castração feminino Äußerungsformen des weiblichen Kastrationskom plexes Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse vii 1921 ainda não foi su perada mas gostaríamos que tivesse incluído o fator da ligação inicial exclu siva com a mãe Devo concordar com os pontos essenciais do importante tra balho de Jeanne Lamplde Groot3Nele há o reconhecimento da completa identidade entre as fases préedípicas do menino e da menina e também a afirmação demonstrada por observações da atividade sexual fálica da men ina em relação à mãe O afastamento desta é ligado à influência da castração de que a menina toma consciência que a obriga a abandonar o objeto sexual e com isso frequentemente também a masturbação Todo o desenvolvimento é resumido na fórmula de que a menina passa por uma fase de complexo da Édipo negativo antes de entrar no positivo Vejo uma insuficiência desse trabalho no fato de apresentar o afastamento da mãe como simples mudança de objeto e não considerar que ele se realiza acompanhado de evidentes sinais de hostilidade Essa hostilidade é plenamente apreciada no último trabalho de Helene Deutsch Der feminine Masochismus und seine Beziehung zur Fri gidität O masoquismo feminino e sua relação com a frigidez Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 16 1930 onde também a atividade fálica da menina e a intensidade de sua ligação à mãe são reconhecidas Deutsch tam bém afirma que o voltarse para o pai acontece pela via das tendências passivas já despertadas na relação com a mãe Num livro publicado anteriormente Psychoanalyse der weiblichen Sexualfunktionen Psicanálise das funções sexuais femininas 1925 a autora ainda não havia dispensado a aplicação do esquema 218286 do Édipo à fase préedípica e por isso interpretou a atividade fálica da menina como identificação com o pai Fenichel Zur prägenitalen Vorgeschichte des Ödipuskomplexes Pré história prégenital do complexo de Édipo Internationale Zeitschrift für Psy choanalyse v 16 1930 enfatiza corretamente a dificuldade em discernir no material levantado na análise o que é conteúdo inalterado da fase préedípica e o que é deformado regressivamente ou de outra maneira Ele não admite a atividade fálica da menina conforme Jeanne Lamplde Groot e também di verge da antecipação do complexo de Édipo empreendida por Melanie Klein Frühstadien des Ödipuskonfliktes Primeiros estágios do conflito de Édipo Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 14 1928 cujo início ela já situa no começo do segundo ano de vida Essa datação que necessariamente modifica também a concepção de todo o restante do desenvolvimento não condiz efetivamente com os resultados da análise de adultos e é em especial incompatível com meus achados acerca da longa duração do vínculo pré edípico da garota com a mãe Uma maneira de atenuar essa discrepância é pro porcionada pela observação de que nessa área não somos ainda capazes de dis tinguir entre o que é rigidamente estabelecido por leis biológicas e o que é móvel e mutável por influxo de vivências casuais Como há muito se sabe quanto ao efeito da sedução também outros fatores o momento em que nasceram os irmãos a direta observação do ato sexual a conduta atenciosa ou insensível dos pais etc podem contribuir para a aceleração e maturação do desenvolvimento sexual infantil Alguns autores tendem a reduzir a importância dos primeiros e primordiais impulsos libidinais da criança em favor de processos de desenvolvimento pos teriores de modo que numa formulação extrema àqueles apenas restaria o papel de indicar certas direções enquanto as intensidades que tomam esses caminhos são providas por regressões e formações reativas posteriores Assim por exemplo Karen Horney Flucht aus der Weiblichkeit Fuga da 219286 feminilidade Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 12 1926 acha que a inveja primária do pênis é muito superestimada por nós enquanto atribui a intensidade do empenho por masculinidade depois exibido a uma inveja do pênis secundária utilizada pela garota para defenderse dos impulsos femini nos em especial da ligação feminina ao pai Isso não corresponde a nossas im pressões Por mais seguro que seja o fato dos reforços posteriores por re gressão e formação reativa por mais difícil que talvez seja estimar a força re lativa dos componentes libidinais que ali confluem acho que não devemos ig norar que os primeiros impulsos libidinais possuem uma intensidade superior à de todos que vêm depois que bem pode ser qualificada de incomensurável Sem dúvida é correto que existe oposição entre a ligação ao pai e o complexo da masculinidade tratase da oposição geral entre atividade e passividade masculinidade e feminilidade mas isso não nos dá direito a supor que um é primário e o outro deve sua força apenas à defesa E se a defesa contra a femin ilidade se mostra tão enérgica de onde pode ela retirar sua força se não do em penho por masculinidade que teve sua primeira expressão na inveja do pênis por parte da menina e por isso merece receber tal denominação Uma objeção similar se aplica à concepção de Jones Die erste Entwicklung der weiblichen Sexualität O primeiro desenvolvimento da sexualidade feminina Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 14 1928 segundo a qual o estágio fálico da garota seria antes uma reação protetora secundária do que um verdadeiro estágio de desenvolvimento Isso não cor responde nem às condições dinâmicas nem às cronológicas Percepção tradução que no presente contexto se deu a Einsicht as versões estrangeiras consultadas a espanhola de LopezBalesteros a argentina de Etcheverry a italiana da Bor inghieri a Standard inglesa e a holandesa da Boom oferecem reconocimiento intelección cog nizione insight inzicht cf nota à p 150s 220286 Percepções Einsichten em relação ao oferecido no parágrafo anterior há duas variações nas versões consultadas que apresentam nociones intelecciones cognizioni ideas inzichten 1 No conhecido caso estudado por Ruth Mack Brunswick Die Analyse eines Eifersucht swahnes Análise de um ciúme delirante Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 14 1928 a afecção vem diretamente da fixação préedípica na irmã A expressão foi introduzida por Jung Freud já a havia dispensado em Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina 1920 2 Podese prever que os analistas com opiniões feministas assim como as mulheres analistas não estarão de acordo com essas declarações Dificilmente deixarão de objetar que tais teorias provêm do complexo de masculinidade do homem e servem para justificar teoricamente sua inata propensão a rebaixar e oprimir a mulher Mas esse tipo de argumentação psicanalítica nos lembra nesse caso a famosa faca de dois gumes de Dostoiévski cf Os irmãos Karamázov livro xii cap x Os oponentes dos que assim falam acharão compreensível por sua vez que o sexo feminino não queira admitir o que parece contrariar a tão ansiada igualdade com o homem Traslado Überschreibung nas versões estrangeiras consultadas transferencia endoso tra passo carrying over transfer O emprego de transferencia pelo tradutor espanhol pode levar a confusão com o notório conceito de transferência Übertragung o mesmo não ocorre na ver são holandesa taransfer pois overdracht é o termo reservado para o conceito Na mesma frase do objeto materno para o paterno traduz vom Mutter auf das Vaterobjekt o tradutor argen tino preferiu objetomadre e objetopadre o inglês apenas mother e father o espanhol e o italiano utilizaram adjetivos como nós e o holandês fez exatamente como o original beneficiandose da grande afinidade com o alemão Ímpeto tradução aqui dada ao termo Drang do qual o dicionário alemãoportuguês de Udo Schau Porto 1989 apresenta os seguintes sentidos necessidade pressão aperto literal e figurado ímpeto impulso versão que lhe demos em Os instintos e seus destinos de 1915 ânsia etc As versões estrangeiras consultadas trazem império esfuerzo spinta stress druk cf capítulo sobre o termo em Luiz Alberto Hanns Dicionário comentado do alemão de Freud Rio de Janeiro Imago 1997 Cabe lembrar que em alemão há uma só palavra Angst para medo e angústia 221286 Desejos Wunschregungen foi traduzida por um só termo a palavra composta cunhada por Freud que literalmente significaria impulsos de desejo como também é vertida em outras passagens desta edição As versões estrangeiras consultadas apresentam deseos mo ciones de deseo moti di desiderio wishful impulses wensimpulsen Cabe registrar como fez Strachey numa nota que os trabalhos discutidos em seguida foram publicados depois de Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos 1925 em que Freud já expunha a maioria das concepções do presente ensaio mas ao qual não faz referência aqui 3 Zur Entwicklungsgeschichte des Ödipuskomplexes der Frau A evolução do complexo de Édipo na mulher Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 13 1927 Atendendo à solicit ação da autora corrijo aqui seu nome que na Zeitschrift Revista apareceu como A Lamplde Groot Strachey observa que raramente Freud usa essa palavra sem um qualificativo na Inter pretação dos sonhos é frequente a expressão intensidade psíquica por exemplo e que ela seria um equivalente de quantidade termo bastante empregado no Esboço ou Projeto de uma psicologia de 1895 222286 A CONQUISTA DO FOGO 1932 TÍTULO ORIGINAL ZUR GEWINNUNG DES FEUERS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 18 N 1 PP 813 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 39 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 44554 Numa nota a meu ensaio O malestar na civilização mencionei apenas de passagem a conjectura que era possível formar sobre a conquista do fogo pelo homem primitivo com base no material psicanalítico A objeção de Al brecht Schaeffer e a notável referência de Erlenmeyer na comunicação an terior à proibição mongol de urinar sobre cinzas1 levamme a retomar esse tema2 Acho que minha hipótese de que a precondição para se apoderar do fogo foi a renúncia ao prazer de matiz homossexual de apagálo com o jato de urina pode ser confirmada pela interpretação do mito grego de Prometeu desde que levemos em conta as previsíveis distorções na passagem do fato para conteúdo do mito Essas distorções são do mesmo tipo e não mais graves que as que reconhecemos diariamente quando reconstruímos a partir de sonhos dos pacientes suas vivências infantis reprimidas mas de enorme significado Os mecanismos nelas utilizados são a representação por símbolos e a trans formação no contrário Não ouso explicar todos os traços do mito dessa forma além dos fatos originais eventos posteriores talvez tenham contribuído para o seu conteúdo Mas os elementos que admitem uma interpretação psicanalítica são justamente os mais insólitos e mais importantes a saber o modo como Prometeu carrega o fogo a natureza do ato sacrilégio crime fraude contra os deuses e o sentido de seu castigo O titã Prometeu um herói cultural que ainda é divino3 talvez original mente um demiurgo e criador de seres humanos leva para os mortais o fogo que tirou dos deuses escondido numa vara oca num caniço de funcho Numa interpretação de sonho compreenderíamos esse objeto como símbolo do pênis ainda que nos incomode a peculiar ênfase na sua cavidade Mas como relacionar esse caniçopênis com a preservação do fogo Parece algo impos sível até que nos lembramos do processo tão comum nos sonhos de trans formação no contrário de inversão dos laços que frequentemente esconde o sentido de um sonho O que o homem abriga em seu caniçopênis não é o fogo mas ao contrário o meio para extinguir o fogo a água do seu jato de urina Essa relação entre fogo e água se vincula a um rico e bem conhecido material analítico Em segundo lugar a aquisição do fogo é um sacrilégio ele é obtido medi ante roubo ou furto Eis um traço constante das lendas sobre a conquista do fogo ele se acha nos povos mais diversos e mais distantes não apenas no mito grego de Prometeu Nisso deve estar portanto o conteúdo essencial de uma distorcida reminiscência da humanidade Mas por que a aquisição do fogo está inseparavelmente ligada à ideia de um crime Quem é o fraudado o prejudic ado Na lenda narrada por Hesíodo há uma resposta direta pois numa outra história não diretamente relacionada ao fogo Prometeu engana Zeus e favorece os homens na preparação do sacrifício Portanto os deuses são fraudados É notório que o mito concede aos deuses a satisfação de todos os desejos a que o ser humano tem de renunciar como sabemos do incesto Diríamos em linguagem psicanalítica que a vida instintual o Id é o deus en ganado com a renúncia à extinção do fogo um desejo humano é transformado em privilégio divino na lenda Mas nela a divindade nada possui do caráter de um Supereu é ainda representante da poderosa vida instintual A transformação no contrário aparece de modo mais radical num terceiro traço da lenda na punição do portador do fogo Prometeu é acorrentado a uma rocha e diariamente um abutre come do seu fígado Nos mitos do fogo de outros povos há também um pássaro ele deve ter algum papel de relevo abstenhome de uma interpretação no momento Mas nos sentimos em terreno mais firme quando se trata de explicar por que o fígado é escolhido como o ponto do castigo Para os antigos esse órgão era a sede de todos os desejos e paixões de modo que uma punição como a de Prometeu era a mais correta para um criminoso arrastado pelos impulsos que cometera uma ofensa im pelido por maus apetites Mas o exato oposto é verdadeiro para o Portador do Fogo ele exerceu a renúncia instintual e mostrou quão benéfica e também in dispensável ela é para os propósitos da cultura E por que tal benefício cultural foi tratado na lenda como um crime merecedor de punição Ora se ela deixa 225286 transparecer através de todas as distorções que a conquista do fogo teve por premissa uma renúncia instintual então exprime abertamente o rancor que a humanidade movida pelos impulsos inevitavelmente sentiu pelo herói cultural E isso concorda com nossas percepções e expectativas Sabemos que a solicit ação à renúncia instintual e a imposição desta provocam hostilidade e agressividade que somente numa fase posterior do desenvolvimento psíquico se transformam em sentimento de culpa A opacidade da lenda de Prometeu como de outros mitos relativos ao fogo é aumentada pela circunstância de que para o homem primitivo o fogo devia ser algo semelhante à paixão amorosa um símbolo da libido diríamos O calor que o fogo irradia evoca a mesma sensação que acompanha o estado de excitação sexual e a chama lembra na forma e nos movimentos o falo em ação Não há dúvida de que para a sensibilidade mítica a chama parecia um falo é inclusive testemunha disso a lenda sobre Sérvio Túlio o rei ro mano Ao falar do devorador fogo da paixão e das chamas que lambem comparando as chamas a uma língua nós mesmos não nos afastamos muito da maneira de pensar dos nossos ancestrais E na explicação que oferecemos para a conquista do fogo já havia o pressuposto de que a tentativa de apagar o fogo com a própria urina significava para o homem primitivo uma prazerosa luta com outro falo Pela via desta aproximação simbólica outros elementos puramente fantásticos podem haver penetrado no mito e se entrelaçado com os elementos históricos Assim é difícil furtarse à ideia de que se o fígado é a sede da paixão simbolicamente significa o mesmo que o fogo e sua cotidiana devor ação e restauração constitui um pertinente retrato do comportamento dos desejos amorosos que são diariamente satisfeitos e diariamente se renovam E o pássaro que se sacia no fígado teria o significado do pênis que tampouco lhe é estranho como se pode ver em lendas sonhos expressões de linguagem e representações plásticas da Antiguidade Indo um pouco adiante temos o pás saro Fênix que ressurge de cada morte no fogo e que provavelmente 226286 significou antes o pênis revivescido após o adormecimento mais que o sol de clinando no crepúsculo e depois novamente nascendo na alvorada Podemos perguntar se é lícito atribuir à atividade mitopoética a tentativa como que por brincadeira de dar representação disfarçada a processos psíquicos com expressão corporal universalmente conhecidos mas também extremamente interessantes sem outro motivo do que o simples prazer de rep resentar Certamente não é possível dar uma resposta segura a essa questão sem haver compreendido a natureza do mito mas nesses dois casos é fácil re conhecer o mesmo conteúdo e assim uma tendência determinada Os dois mostram a restauração dos desejos libidinais após sua extinção mediante a saciedade ou seja sua indestrutibilidade e essa ênfase é inteiramente ad equada enquanto consolo se o núcleo histórico do mito trata de uma derrota da vida instintual de uma renúncia instintual tornada necessária É como a se gunda parte da compreensível reação do homem primevo magoado em sua vida instintual após a punição do criminoso a garantia de que no fundo ele em nada prejudicou Deparamos com a inversão no oposto em local inesperado num outro mi to que aparentemente tem pouca relação com o do fogo A hidra de Lerna com suas numerosas cabeças de serpente a se agitar uma delas imortal é um dragão da água como atesta seu nome Héracles herói cultural combate a cortandolhe as cabeças mas elas sempre tornam a nascer e ele só domina o monstro depois de queimar com fogo a cabeça imortal Um dragão da água vencido pelo fogo é algo que não tem sentido este aparece como em mui tos sonhos na inversão do conteúdo manifesto Então a hidra é um fogo as cabeças de serpente que se agitam são as chamas do fogo e provando sua natureza libidinal elas exibem como o fígado de Prometeu o fenômeno do renascimento da renovação após a tentativa de destruição Héracles extingue esse fogo com água A cabeça imortal é provavelmente o falo mesmo e seu aniquilamento a castração Mas Héracles é também o libertador de Prometeu pois mata o pássaro que lhe devora o fígado Não deveríamos imaginar um 227286 laço mais profundo entre os dois mitos É como se o ato de um herói fosse compensado pelo outro Prometeu havia proibido a extinção do fogo como na lei dos mongóis e Héracles a permitiu no caso do fogo ameaçador O segundo mito parece corresponder à reação de uma época posterior da cul tura ao evento da aquisição do fogo Temse a impressão de que a partir desse ponto seria possível penetrar bastante nos mistérios do mito mas a ver dade é que a sensação de certeza nos acompanha somente por um breve trecho Quanto à oposição entre fogo e água que governa todo o âmbito desses mitos além do fator histórico e do simbólicofantástico podese indicar um terceiro um dado fisiológico que o poeta Heinrich Heine descreveu nestas linhas Com o que lhe serve para urinar O homem gera seu igual O membro do homem tem duas funções cuja coexistência é motivo de ir ritação para alguns Permite o esvaziamento da bexiga e realiza o ato amoroso que apazigua o anseio da libido genital A criança ainda acredita que pode re unir as duas funções conforme sua teoria os bebês vêm ao mundo pelo fato de o homem urinar dentro da mulher Mas o adulto sabe que os dois atos são in conciliáveis na realidade tão inconciliáveis como fogo e água Quando o membro se acha no estado de excitação que o fez ser comparado a um pássaro e enquanto são experimentadas as sensações que lembram o calor do fogo o ato de urinar é impossível e inversamente quando ele é empregado para ex pelir a água do corpo todos os seus laços com a função genital parecem extin tos A oposição entre as duas funções poderia nos levar a dizer que o homem apaga seu fogo com sua própria água E o homem primevo obrigado a en tender o mundo externo com ajuda das sensações e condições de seu próprio corpo não teria deixado de perceber e utilizar as analogias que o comporta mento do fogo lhe indicava 228286 Tratase da longa nota da parte iii Der Mensch und das Feuer O homem e o fogo em Die Psychoanalytische Bewegung O Movimento Psicanalítico ano ii 1930 p 201 Notiz zur Freudschen Hypothese über die Zähmung des Feuers Nota à hipótese freudi ana sobre a domesticação do fogo Imago v 18 p 5 Esse breve texto de Erlenmeyer apareceu logo antes do presente artigo de Freud no mesmo número da revista 1 Provavelmente sobre cinzas quentes de que ainda se pode obter fogo não sobre cinzas frias 2 A objeção de Lorenz em Chaos und Ritus Imago v 17 1931 pp 433 ss parte da premissa de que a domesticação do fogo teria começado apenas quando o ser humano descobriu que era capaz de suscitálo quando quisesse por meio de alguma manipulação Mas o dr J Hárnik nos assinala uma observação do dr Richard Lasch na compilação de Georg Buschan Illustrierte Völkerkunde Etnologia ilustrada Stuttgart 1922 v I p 24 É de supor que a arte de conservar o fogo precedeu em muito aquela de produzilo uma evidência disso está no fato de que os aborígines das Andamanes semelhantes a pigmeus possuem e conser vam atualmente o fogo embora não conheçam um método próprio de gerálo 3 Pois Héracles é semidivino e Teseu inteiramente humano Arrastado pelos impulsos triebhaft adjetivo de Trieb nas versões estrangeiras consultadas instintivo movido por sus pasiones istigato dalle passioni driven by instinct Na mesma frase im pelido é tradução de unter dem Antrieb no trecho que o tradutor argentino verte mais literal mente por bajo la impulsión de malas apetencias e o inglês por at the prompting of evil desires Segundo uma versão da lenda Ocrísia escrava do rei Tarquínio o Antigo foi fecundada por uma chama em forma de falo enquanto fazia libações e assim concebeu Sérvio Túlio No original Was dem Menschen dient zum Seichen Damit schafft er Seinesgleichen 229286 MEU CONTATO COM JOSEF POPPERLYNKEUS 1932 TÍTULO ORIGINAL MEINE BERÜHRUNG MIT JOSEF POPPERLYNKEUS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ALLGEMEINE NÄHRPFLICHT VIENA 15 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 2616 Foi no inverno de 1899 que apareceu finalmente meu livro A interpretação dos sonhos prédatado para o novo século Ele era o resultado de um trabalho de quatro ou cinco anos e se originara de forma incomum Tendo me capacitado para lecionar doenças nervosas na Universidade eu procurava sustentar minha família que rapidamente crescia dando assistência médica aos chamados neuróticos bastante numerosos em nossa sociedade Mas a tarefa se revelou mais difícil do que o esperado Os métodos de tratamento habituais pouco ou nada adiantavam era preciso buscar novos caminhos E como era possível ajudar os doentes se nada se compreendia de seus males das causas de seus sofrimentos do significado de suas queixas Por isso busquei orientação e in strução com mestre Charcot em Paris com Bernheim em Nancy e uma ob servação de meu experiente amigo Josef Breuer de Viena pareceu enfim abrir novas perspectivas para a compreensão e a influência terapêutica Essas novas experiências trouxeram a certeza de que as pessoas que chamamos doentes neuróticos sofriam de distúrbios psíquicos em determ inado sentido e portanto deviam ser tratadas com meios psíquicos Nosso in teresse teve de se voltar para a psicologia Mas o que a ciência da psique então vigente nos cursos de filosofia tinha a oferecer era muito pouco e inútil para os nossos propósitos precisávamos inventar tanto os métodos como suas premissas teóricas Trabalhei então nesse sentido primeiro em colaboração com Breuer depois independentemente dele Por fim tornouse parte de minha técnica requerer que os pacientes me informassem de modo acrítico tudo o que lhes passasse pela cabeça inclusive os pensamentos que não podiam explicar e que lhes era penoso comunicar Quando seguiam minhas instruções eles me relatavam também seus son hos como se estes fossem da mesma espécie que seus outros pensamentos Era uma clara indicação para que eu desse aos sonhos o mesmo valor que às de mais produções compreensíveis Eles não eram compreensíveis porém e sim estranhos embaralhados absurdos como são mesmo os sonhos e por isso foram condenados pela ciência como meros espasmos do órgão psíquico car entes de sentido e de finalidade Se meus pacientes estavam certos e eles apen as pareciam repetir a milenária crença da humanidade não científica eu me de frontava com a tarefa de uma interpretação dos sonhos que pudesse resistir à crítica da ciência Claro que inicialmente eu não compreendia dos sonhos de meus pacientes mais do que eles mesmos Mas na medida em que apliquei a esses sonhos e es pecialmente aos meus próprios o procedimento de que já me servira ao estudar outras formações psíquicas anormais consegui responder à maioria das questões que uma interpretação dos sonhos podia lançar Havia muitas delas com o que sonhamos Por que sonhamos afinal De onde vêm todas as singulares características que distinguem o sonho do pensamento desperto E outras questões assim Algumas das respostas eram fáceis de se obter mostravam ser confirmação de pontos de vista já manifestados anteriormente enquanto outras requeriam suposições realmente novas quanto à estrutura e ao funcionamento de nosso aparelho psíquico As pessoas sonham com o que mexeu com a psique durante o dia quando se estava acordado sonham para aquietar os impulsos que ameaçam perturbar o sono para poder prosseguir com ele Mas como é possível que o sonho pareça tão estranho tão absurda mente confuso tão contrário ao teor do pensamento desperto quando se ocu pa do mesmo material Certamente ele seria apenas o sucedâneo de uma atividade mental racional e poderia ser interpretado isto é traduzido para essa atividade mas o que pediria explicação seria o fato da deformação que o tra balho do sonho realiza no material racional e compreensível A deformação onírica era o problema mais profundo e mais difícil da vida dos sonhos E para seu esclarecimento cheguei à consideração seguinte que pôs os sonhos na mesma linha de outras formações psicopatológicas revelou os como a psicose normal do ser humano por assim dizer Nossa psique este precioso instrumento mediante o qual nos afirmamos na vida não é uma unidade pacificamente fechada em si sendo antes comparável a um Estado 232286 moderno em que uma massa sequiosa de prazer e destruição tem de ser con tida pela força de uma prudente camada superior Tudo o que em nossa vida mental se agita e acha expressão em nossos pensamentos é derivado e repres entante dos vários instintos que nos são dados em nossa constituição física Mas esses instintos não são todos igualmente passíveis de norteamento e edu cação para se adequar às exigências do mundo externo e da sociedade hu mana Alguns deles mantêm seu caráter indômito original se os deixássemos à vontade certamente nos levariam à ruína Assim escarmentados que somos desenvolvemos organizações em nossa psique que se contrapõem à direta manifestação instintual em forma de inibições O que emerge das fontes das forças instintuais como desejo tem de submeterse ao exame de nossas instân cias psíquicas supremas e caso elas não o aprovem é rejeitado e impedido de influir sobre nossa motilidade ou seja de alcançar realização Com frequência é negado a esses desejos até mesmo o acesso à consciência que em geral ig nora inclusive a existência das fontes instintuais perigosas Dizemos então que para a consciência esses impulsos são reprimidos e subsistem apenas no inconsciente Se o reprimido consegue irromper em algum lugar rumo à con sciência ou à motilidade ou ambas então já não somos normais Então desen volvemos toda a série de sintomas neuróticos e psicóticos A manutenção das inibições e repressões que se tornaram necessárias impõe à nossa psique uma considerável aplicação de forças da qual ela descansa de bom grado O sono noturno parece oferecer uma boa oportunidade para isso já que envolve a sus pensão de nossas operações motoras Como a situação não parece perigosa atenuamos o rigor de nossa força policial interna Não a retiramos completa mente pois não podemos saber talvez o inconsciente não durma jamais E o relaxamento da pressão sobre ele tem seu efeito Desde o inconsciente reprim ido surgem desejos que ao menos durante o sono acham livre acesso à con sciência Se nos inteirássemos deles ficaríamos horrorizados com seu teor com sua desmesura com a mera possibilidade de que existam Mas isso rara mente ocorre e então despertamos com toda a rapidez tomados de angústia 233286 Via de regra nossa consciência não toma conhecimento do sonho tal como ele realmente se deu As forças inibidoras a censura onírica como gostamos de chamálas não ficam inteiramente despertas é verdade mas tampouco dormem inteiramente Influenciam o sonho quando ele luta por exprimirse em palavras e imagens eliminam as coisas mais chocantes e modificam outras até tornálas irreconhecíveis dissolvem nexos autênticos e introduzem falsas relações até que a honesta mas brutal fantasia por trás do sonho se torne o sonho manifesto que recordamos confuso em maior ou menor grau quase sempre estranho e incompreensível De modo que o sonho a deformação onírica é a expressão de um compromisso a evidência do conflito entre os im pulsos e os empenhos inconciliáveis de nossa vida psíquica E não es queçamos o mesmo processo o mesmo jogo de forças que nos explica o sonho da pessoa normal também nos fornece a chave para a compreensão de todos os fenômenos neuróticos e psicóticos Peço desculpas por haver falado tanto até agora acerca de mim e do meu trabalho com os problemas do sonho foi o pressuposto necessário para o que se segue Minha explicação para a deformação onírica me parecia nova em nenhum lugar eu havia encontrado algo assim Anos depois já não sei dizer quantos caíramme nas mãos as Fantasias de um realista de Josef Popper Lynkeus Uma das histórias desse livro chamavase Sonhar como estar acordado Träumen wie Wachen inevitavelmente ela despertou meu forte interesse Mostrava um homem que podia se gabar de nunca haver son hado uma coisa sem sentido Seus sonhos podiam ser fantásticos como as fábu las mas não se achavam em contradição tal com o mundo desperto que se pudesse afirmar decididamente que eram impossíveis ou absurdos em si mesmos Isto significava traduzido para meu modo de expressão que nesse homem não havia deformação onírica e descobrindose a razão de sua ausên cia também se percebia a razão para o seu surgimento Popper fez o homem ter plena compreensão das causas de sua peculiaridade Em meus pensamen tos como em meus sentimentos reinam ordem e harmonia e eles também não 234286 lutam entre si eu sou um não dividido os outros são divididos e suas duas partes sonhar e estar acordado quase sempre estão em guerra uma com a outra Ele também diz sobre a interpretação dos sonhos Certamente é uma tarefa difícil mas com alguma atenção o próprio indivíduo que sonha deveria conseguir realizála Por que geralmente não o consegue Parece existir em vocês algo oculto nos sonhos algo pessoalmente impudico um certo sigilo no seu ser que dificilmente se pode exprimir por isso é tão frequente os seus son hos não terem sentido serem até mesmo uns disparates No fundo porém a coisa não é assim nem pode ser assim porque se trata sempre da mesma pess oa esteja ela acordada ou sonhando Deixando de lado uma terminologia psicológica essa explicação para a de formação onírica era a mesma a que eu havia chegado em meus estudos sobre os sonhos A deformação era um compromisso algo insincero por natureza o resultado de um conflito entre pensamento e sentimento ou como eu havia colocado entre o que é consciente e o que é reprimido Quando esse conflito não existia não precisava ser reprimido os sonhos podiam não ser estranhos e absurdos No homem que não sonhava de forma diferente da que pensava est ando acordado Popper fez vigorar a harmonia interna que era seu objetivo como reformador social estabelecer no corpo político E se a ciência nos diz que tal homem livre de falsidade e máfé e sem quaisquer repressões não ex iste e não seria viável podemos imaginar que até onde é possível uma aprox imação a esse estado ideal ela foi realizada na pessoa mesma de Popper Assombrado pelo encontro com sua sabedoria comecei a ler todas as suas obras aquelas sobre Voltaire sobre a religião a guerra o dever de alimentar a todos etc até que a imagem do grande homem simples que foi um pensador e crítico e simultaneamente um bondoso humanitário e um reformador formouse claramente diante de meus olhos Pensei muito sobre os direitos do indivíduo que ele defendia e que de bom grado eu também advogaria se não fosse tolhido pela consideração de que nem a conduta da natureza nem as metas da sociedade humana justificam plenamente essas reivindicações Uma 235286 simpatia especial me atraía para ele pois era evidente que também ele percebia dolorosamente a amargura da vida judaica e o vazio dos ideais da cultura atual No entanto nunca o encontrei pessoalmente Ele sabia de mim através de con hecidos em comum e certa vez respondi uma carta que me enviara solicitando uma informação Mas eu não o procurava Minhas inovações em psicologia haviam afastado de mim os contemporâneos sobretudo os mais velhos entre eles com frequência ao me aproximar de um homem que eu reverenciava à distância vime como que repelido por sua falta de compreensão pelo que para mim era já o conteúdo de minha existência E Josef Popper vinha da física fora amigo de Ernst Mach eu não queria que se estragasse a feliz im pressão de nossa concordância no problema da deformação onírica Assim ocorreu que fui adiando uma visita até que foi tarde demais e pude apenas cumprimentar seu busto no parque de nossa prefeitura Afirmamos versão literal do original behaupten mas esse admite outros sentidos no con texto como os de imporse e manterse adotados nas versões espanhola e inglesa respectivamente 236286 POR QUE A GUERRA CARTA A EINSTEIN 1932 TÍTULO ORIGINAL WARUM KRIEG PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO JUNTAMENTE COM UMA CARTA DE EINSTEIN PARIS INTERNATIONALES INSTITUT FÜR GEISTIGE ZUSAMMENARBEIT VÖLKERBUND INSTITUTO INTERNACIONAL DE COOPERAÇÃO INTELECTUAL LIGA DAS NAÇÕES 1933 62 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 1327 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 27186 EM 1931 AS DUAS INSTITUIÇÕES QUE PATROCINARAM A PUBLICAÇÃO SOLICITARAM A INTELECTUAIS DE RELEVO QUE TROCASSEM CARTAS SOBRE TEMAS DO INTERESSE GERAL DOS POVOS ALBERT EINSTEIN UM DOS PRIMEIROS A SER CONTATADO ESCOLHEU O TEMA E O INTERLOCUTOR DESSA CORRESPONDÊNCIA A CARTA DE EINSTEIN QUE ABRE O VOLUME TEM APENAS TRÊS PÁGINAS SEUS PRINCIPAIS PONTOS SÃO REPRODUZIDOS NA CARTA DE FREUD Viena setembro de 1932 Caro senhor Einstein Quando soube que tinha a intenção de convidarme para uma troca de idei as sobre um tema que lhe interessa e que também lhe parece digno do interesse de outros concordei de imediato Pensava que escolheria um problema situ ado nos limites do que hoje podemos conhecer para o qual cada um de nós tanto o físico como o psicólogo criasse sua via particular de acesso de modo que os dois chegassem ao mesmo terreno a partir de lados diversos Mas o sen hor me surpreendeu ao lançar a questão de o que é possível fazer para livrar os homens da fatalidade da guerra Inicialmente fiquei assustado com a noção de minha quase diria nossa incompetência pois isso me pareceu uma tarefa prática que cabe aos estadistas Depois compreendi que não levantou a questão como cientista mas como indivíduo humanitário que responde ao es tímulo da Liga das Nações à maneira de Fridtjof Nansen o explorador do Polo quando assumiu a tarefa de socorrer os famintos e desabrigados da Grande Guerra Também refleti que não se espera que eu dê sugestões prátic as que apenas devo indicar como se apresenta numa abordagem psicológica o problema da prevenção da guerra Mas a respeito disso o senhor já expressou quase tudo em sua carta Como que tirou o vento de minhas velas mas é de bom grado que sigo em sua es teira e me atenho a confirmar o que diz na medida em que o desenvolvo se gundo meu melhor conhecimento ou conjectura O senhor começa com a relação entre direito e poder Este é sem dúvida o ponto de partida correto para a nossa investigação Posso substituir a palavra poder por aquela mais dura e mais forte que é violência Direito e viol ência são atualmente opostos para nós É fácil mostrar que aquele se desen volveu a partir desta e se remontamos aos primórdios e averiguamos como sucedeu primeiramente isto a solução do problema nos ocorre sem grande es forço Queira me desculpar no entanto se agora relato coisas sabidas e recon hecidas como se fossem novas o fio do argumento me leva a isso Em princípio portanto conflitos de interesse entre os homens se resolvem mediante o emprego da violência Assim é em todo o reino animal do qual o ser humano não tem como se excluir Mas a isto se juntam no caso dele con flitos de opinião que atingem altos graus de abstração e parecem exigir outra técnica de decisão Esta é uma complicação posterior contudo No início numa pequena horda humana a força muscular decidia quem era dono de algo ou qual vontade iria prevalecer Logo a força muscular é reforçada ou sub stituída pelo uso de instrumentos vence quem possui as melhores armas ou as emprega mais habilmente Com a introdução de armas a superioridade in telectual começa a tomar o lugar da pura força física o propósito da luta per manece o mesmo uma das partes graças aos danos que sofre ou à paralisação de suas forças é obrigada a abandonar sua reivindicação ou oposição Isso é alcançado de modo mais completo se a violência elimina duradouramente o adversário ou seja matao Há duas vantagens nisso o inimigo não pode reto mar a hostilidade e o destino que sofreu desestimula outros de seguirem seu exemplo Além disso a morte do adversário satisfaz uma inclinação instintual de que falaremos adiante À intenção de matar talvez se oponha a reflexão de que o inimigo pode ser empregado em serviços úteis quando é deixado com vida e amedrontado Então a violência se limita a subjugálo em vez de matá lo É quando se começa a poupar o inimigo mas doravante o vencedor tem de contar com a expectante sede de vingança do vencido sacrifica uma parte de sua segurança Esse é o estado original o domínio do poder maior da violência crua ou apoiada na inteligência Sabemos que esse regime foi alterado no curso do desenvolvimento que houve um caminho da violência para o direito mas qual Um único caminho creio eu que considerou o fato de que a maior força 239286 de um podia ser compensada pela união de vários fracos Lunion fait la force A violência é derrotada pela união o poder daqueles unidos passa a representar o direito em oposição à violência de um indivíduo Vemos que o direito é o poder de uma comunidade É ainda violência pronta a se voltar contra todo indivíduo que a ela se oponha trabalha com idênticos meios persegue os mesmo fins A diferença está apenas em que não é mais a violência de um só indivíduo que se impõe mas da comunidade Para que se realize essa transição da violência para o direito no entanto é preciso que uma condição psicológica seja satisfeita A união de muitos tem de ser constante duradoura Caso ela se produzisse apenas para combater um indivíduo poderoso e se desf izesse após têlo vencido nada seria alcançado Um outro que se considerasse mais forte ambicionaria de novo o domínio pela violência e o jogo não teria fim A comunidade precisa ser mantida de forma permanente precisa se or ganizar criar preceitos que previnam as temidas rebeliões estabelecer órgãos que velem pela obediência aos preceitos às leis e cuidem da execução dos atos de violência legítimos O reconhecimento de uma comunidade de in teresses produz vínculos afetivos entre os membros de um grupo unido de pessoas sentimentos comunitários que são a base de sua autêntica força Com isso creio todo o essencial está presente a superação da violência mediante a transferência do poder para uma unidade maior que é mantida por vínculos afetivos entre seus membros Tudo o mais vem a ser expansão e re petição Enquanto a comunidade consiste apenas em pequeno número de indi víduos igualmente fortes a situação é simples As leis desta associação determ inam até que ponto o indivíduo deve renunciar à liberdade pessoal de aplicar violentamente a sua força a fim de tornar possível uma coexistência segura Mas semelhante estado de repouso é concebível apenas teoricamente na real idade as coisas se complicam pelo fato de que desde o princípio a comunidade abrange elementos de poder desigual homens e mulheres pais e filhos e em consequência de guerras e conquistas vencedores e vencidos que se 240286 transformam em senhores e escravos Então o direito da comunidade se torna expressão das desiguais relações de poder em seu interior as leis são feitas por e para os que dominam reservando poucos direitos para os dominados Daí em diante há duas fontes de inquietação relativamente ao direito na comunid ade mas também de aperfeiçoamento do direito Primeiro tentativas de al guns dos senhores se colocarem acima das restrições vigentes para todos ou seja retrocederem do domínio do direito para o domínio da violência se gundo constantes esforços dos oprimidos para conquistar mais poder e ter es sas mudanças reconhecidas em lei para bem ao contrário ir do direito desigual ao direito igual para todos Essa última corrente se torna particular mente significativa quando no interior da comunidade há verdadeiros desloca mentos nas relações de poder como pode ocorrer devido a fatores históricos diversos Então o direito pode gradualmente se adequar às novas relações de poder ou o que é mais frequente a classe dominante se recusa a levar em con ta essa mudança e chegase à rebelião à guerra civil ou seja à temporária suspensão do direito e a novos ensaios violentos após os quais é instaurada uma nova ordem jurídica Também há uma fonte de alteração do direito que aparece apenas de maneira pacífica é a mudança cultural dos membros da comunidade mas pertence a um contexto que somente depois poderá ser considerado Vemos então que também no interior de uma comunidade a solução viol enta de conflitos de interesse não foi evitada Mas as necessidades e as coisas em comum que surgem naturalmente quando se convive no mesmo solo favorecem uma rápida conclusão dessas lutas e cresce a probabilidade de soluções pacíficas em tais condições Mas um olhar sobre a história da human idade nos mostra uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra ou várias outras entre unidades maiores e menores cidades províncias tribos povos reinos que quase sempre são resolvidos mediante a prova de força da guerra Tais guerras resultam no saque ou na completa sujeição na conquista de uma das partes Não podemos julgar da mesma forma todas as 241286 guerras de conquista Algumas como as dos mongóis e dos turcos causaram apenas infortúnio outras no entanto contribuíram para a transformação da violência em direito na medida em que estabeleceram unidades maiores no interior das quais se tornava impossível o uso da violência e uma nova ordem jurídica aplainava os conflitos As conquistas dos romanos deram aos países do Mediterrâneo a preciosa pax romana O afã de expansão dos reis franceses cri ou uma França próspera pacificamente unida Ainda que pareça paradoxal devemos admitir que a guerra não seria um meio inadequado para a geração da ansiada paz eterna pois é capaz de criar essas grandes unidades no interior das quais um forte poder central abole a possibilidade de outras guerras Mas não se presta para isso afinal porque os resultados da conquista normalmente não são duradouros as novas unidades tornam a se dissolver em geral devido à falta de coesão das partes unidas violentamente Além disso até agora a con quista pôde criar apenas unificações parciais embora também de grande ex tensão cujos conflitos provocaram mais ainda a solução violenta Assim a consequência de todos esses esforços guerreiros foi apenas que a humanidade trocou numerosas mesmo intermináveis pequenas guerras por raras mas tanto mais devastadoras grandes guerras Aplicando isso ao nosso tempo obtémse o mesmo resultado que o senhor alcançou por via mais curta Uma segura prevenção da guerra é possível apen as se os homens se unirem na instituição de um poder central ao qual seja transferida a decisão em todos os conflitos de interesses Claramente isso en volve duas exigências diversas que seja criada uma tal instância superior e que lhe seja dado o poderio necessário De nada valeria apenas uma dessas coisas Ora a Liga das Nações foi pensada como uma instância desse tipo mas a outra condição não foi preenchida ela não tem poderio próprio e pode têlo apenas se os membros da nova união os Estados individuais o cederem Há pouca perspectiva disso no momento O significado da instituição da Liga das Nações nos fugirá completamente se não levarmos em conta que essa é uma 242286 tentativa ousada que raramente talvez nunca em tal escala se fez na história da humanidade É a tentativa de conquistar mediante a invocação de certas atitudes ideais a autoridade isto é a influência coerciva que or dinariamente se baseia na posse da força Vimos que duas coisas mantêm uma comunidade a coação da violência e as ligações afetivas identificações é o termo técnico entre seus membros Se falta um desses fatores possivel mente o outro pode manter de pé a comunidade Naturalmente aquelas ideias têm significado apenas se dão expressão a importantes coisas em comum entre os membros Perguntase então que força elas podem ter A história ensina que de fato elas exerceram influência A ideia panhelênica por exemplo a consciência de que os gregos seriam melhores do que os bárbaros ao seu redor que se expressou intensamente nas anfictionias nos oráculos e nos jogos era forte o bastante para mitigar os costumes de guerra entre os gregos mas evid entemente não foi capaz de prevenir disputas guerreiras entre partículas do povo grego nem sequer de impedir que uma cidade ou liga de cidades se jun tasse ao inimigo persa em detrimento de um rival O forte sentimento que unia os cristãos também não evitou que durante o Renascimento pequenos e grandes Estados cristãos solicitassem a ajuda do sultão nas guerras que trav aram entre si E não existe em nosso tempo uma ideia a que possamos atribuir uma autoridade unificadora desse tipo É evidente que os ideais nacionais que hoje vigoram entre os povos têm efeito contrário Há pessoas que vaticinam que apenas a difusão geral do pensamento bolchevista porá fim às guerras mas em todo caso atualmente estamos muito longe dessa meta e talvez ela fosse alcançada apenas após terríveis guerras civis Assim parece mesmo que a tentativa de substituir o poder real pelo poder das ideias ainda se acha con denado ao fracasso É um erro de cálculo não considerar que originalmente o direito era força bruta e que ainda hoje não pode prescindir do amparo da força 243286 Agora posso comentar outra de suas afirmações O senhor se admira de como é fácil mover os homens para a guerra e supõe que haja alguma coisa neles um instinto de ódio e destruição que favorece aquele incitamento Mais uma vez concordo plenamente com o senhor Nós acreditamos na existência de semelhante instinto e nos últimos anos procuramos justamente estudar suas manifestações O senhor me permite neste ponto apresentarlhe parcialmente a teoria dos instintos a que nós chegamos após muitos tenteios e oscilações Nós supomos que os instintos humanos são de dois tipos apenas os que ten dem a conservar e unir nós os chamamos eróticos exatamente no sentido de Eros no Banquete de Platão e os que procuram destruir e matar que re unimos sob o nome de instinto de agressão ou destruição Como vê isso é apenas uma transfiguração teórica da conhecida oposição entre amor e ódio que talvez tenha um nexo primordial com a universalmente conhecida polarid ade de atração e repulsa que desempenha relevante papel em sua área de estudo Mas não nos precipitemos em introduzir valorações de bem e mal Cada um desses instintos é tão indispensável quanto o outro é da atuação con junta ou contrária de ambos que surgem os fenômenos da vida Parece que quase nunca o instinto de uma espécie pode agir isoladamente sempre se acha ligado amalgamado dizemos a um certo montante de sua contrapartida que modifica sua meta ou ocasionalmente permitelhe alcançála Assim por exemplo o instinto de autoconservação é certamente de natureza erótica mas necessita dispor da agressividade para fazer valer sua intenção Assim também o instinto do amor voltado para objetos requer um quê do instinto de domin ação para se apoderar do seu objeto A dificuldade de isolar em suas manifest ações as duas espécies de instintos é que durante muito tempo nos impediu de conhecêlas Se o senhor me acompanhar ainda um pouco mais eu lhe direi que os atos humanos também trazem uma complicação de outra espécie Raramente uma ação é obra de um único impulso instintual que em si já deve ser composto de Eros e destruição Via de regra vários motivos similarmente construídos 244286 precisam confluir para possibilitar a ação Um de seus colegas já tinha ciência disso o prof G Ch Lichtenberg que no tempo de nossos clássicos lecionava física em Göttingen mas talvez ele fosse ainda mais importante como psicó logo do que como físico Ele inventou uma rosa dos motivos quando afirm ou Os móveis que levam alguém a fazer algo poderiam ser dispostos como os 32 ventos e seus nomes arranjados de forma semelhante por exemplo pãopãoglória ou glóriaglóriapão Ou seja quando os homens são in citados à guerra neles há toda uma série de motivos a responder afirmativa mente nobres e baixos alguns abertamente declarados outros silenciados Não é o caso de enumerálos todos O prazer na agressão e na destruição é cer tamente um deles as inúmeras crueldades que vemos na história e na vida co tidiana confirmam sua existência e sua força A mescla desses impulsos destru tivos com outros eróticos e ideais facilita naturalmente sua satisfação Às vezes temos a impressão ao saber de atos cruéis acontecidos na história de que os motivos ideais só teriam servido como pretextos para os apetites destru tivos outras vezes no caso das atrocidades da Santa Inquisição por exemplo achamos que os motivos ideais se impuseram à consciência enquanto os destrutivos lhes trouxeram um reforço inconsciente As duas coisas são possíveis Receio estar abusando de seu interesse que diz respeito à prevenção da guerra não a nossas teorias Mas gostaria de me deter ainda por um momento em nosso instinto de destruição cuja popularidade está bem longe de se igualar à sua importância Especulando livremente chegamos à concepção de que esse instinto age no interior de cada ser vivo e se empenha em leválo à desintegração em fazer a vida retroceder ao estado de matéria inanimada Ele merece com toda a seriedade o nome de instinto de destruição enquanto os instintos eróticos representam os esforços de vida O instinto de morte se torna instinto de destruição ao ser dirigido com a ajuda de órgãos especiais para fora para os objetos O ser vivo como que conserva sua própria vida ao 245286 destruir vida alheia Mas uma parte do instinto de morte permanece ativa den tro do ser vivo e nós procuramos derivar toda uma série de fenômenos nor mais e patológicos dessa internalização do instinto de destruição Cometemos até a heresia de explicar a gênese de nossa consciência moral mediante esse voltarse para dentro da agressividade O senhor deve notar que de modo nen hum é insignificante que este processo ocorra em medida muito grande é pos itivamente malsão enquanto o direcionamento dessas forças instintuais para a destruição no mundo externo desafoga o ser vivo deve ter efeito benéfico Isto serviria como desculpa biológica para todos os impulsos feios e perigosos que combatemos É preciso conceder que estão mais próximos da natureza do que nossa resistência a eles para a qual também precisamos achar uma explicação Talvez o senhor tenha a impressão de que nossas teorias são uma espécie de mitologia e nem mesmo agradável nesse ponto Mas toda ciência não termina numa espécie de mitologia Parecelhe diferente na física de hoje O que retiramos para nossos fins imediatos das afirmações precedentes é que não há perspectiva de poder abolir as tendências agressivas do ser humano Dizse que em certas regiões felizes da Terra onde a natureza oferece prodigamente tudo o que os homens precisam existem povos que têm uma vida de mansidão em que são desconhecidas a coerção e a agressividade Tenho dificuldade em crer nisso gostaria de saber mais a respeito dessas cri aturas felizes Os bolchevistas também esperam fazer desaparecer a agressivid ade humana garantindo a satisfação das necessidades materiais e de resto in staurando a igualdade entre os membros da comunidade Considero isso uma ilusão Por enquanto se acham cuidadosamente armados e um importante re curso para manterem unidos os seus seguidores é o ódio a todos os demais Mas como o senhor mesmo observa não se trata de eliminar completamente as tendências agressivas humanas podese tentar desviálas a ponto de não ter em que se manifestar na guerra 246286 Partindo de nossa mitológica teoria dos instintos é fácil chegar a uma fór mula para os meios indiretos de combater a guerra Se a disposição para a guerra é uma decorrência do instinto de destruição então será natural recor rer contra ela ao antagonista desse instinto a Eros Tudo que produz laços emocionais entre as pessoas tem efeito contrário à guerra Essas ligações po dem ser de dois tipos Primeiro relações como as que se tem com um objeto amoroso embora sem objetivos sexuais A psicanálise não precisa se enver gonhar quando fala de amor pois a religião também diz Ama o próximo como a ti mesmo Sem dúvida é uma coisa mais fácil de se pedir do que de realizar O outro tipo de ligação emocional é o que se dá pela identificação Tudo que estabelece importantes coisas em comum entre as pessoas produz esses sentimentos comuns essas identificações Nelas se baseia em boa parte o edifício da sociedade humana O lamento acerca do abuso da autoridade que o senhor faz em sua carta levame a outra sugestão para combater indiretamente a inclinação à guerra Inscrevese na inata e inerradicável desigualdade dos homens o fato de eles se repartirem em líderes e dependentes Esses últimos são a grande maioria ne cessitam de uma autoridade que tome decisões por eles decisões que em geral eles acatam incondicionalmente Aqui talvez se possa acrescentar que deveria haver mais cuidado do que antes em educar uma camada superior de indivídu os de pensamento autônomo refratários à intimidação e buscadores da ver dade aos quais caberia a direção das massas subordinadas Não é preciso en fatizar que a extrapolação dos poderes do Estado e a proibição do pensamento pela Igreja não são favoráveis à criação dessa camada A condição ideal seria naturalmente uma comunidade de indivíduos que tivessem sujeitado a sua vida instintual à ditadura da razão Nada mais poderia gerar uma união tão completa e resistente entre os indivíduos mesmo com a renúncia às ligações emocionais entre eles Os outros meios de uma prevenção indireta da guerra são certamente mais exequíveis mas não prometem um rápido êxito Ninguém 247286 se dispõe a pensar em moinhos que moem tão devagar que as pessoas morreri am de fome até receber a farinha Como vê não se obtém muita coisa ao solicitar em matérias práticas e ur gentes a opinião de um teórico alheio ao mundo Melhor seria em cada caso específico empenharse em arrostar o perigo com os meios que se acham à mão Mas eu ainda gostaria de abordar uma questão que não foi levantada pelo senhor e que muito me interessa Por que nos indignamos de tal forma com a guerra o senhor eu e tantos outros por que não a aceitamos simplesmente como mais uma das penosas desgraças da vida Afinal ela parece algo próprio da natureza biologicamente fundamentado dificilmente evitável na prática Não se surpreenda com minha pergunta Para os fins de uma investigação como esta talvez seja permitido usar uma máscara de distanciamento que na realidade não se possui A resposta seria porque todo homem tem direito a sua própria vida porque a guerra aniquila vidas humanas plenas de esperança coloca o indivíduo em situações aviltantes obrigao a matar outros algo que ele não quer destrói preciosos bens materiais resultantes do trabalho humano e outras coisas mais E além disso em sua forma atual a guerra já não oferece oportunidade de satisfazer o antigo ideal heroico e no futuro graças ao aper feiçoamento dos meios de destruição uma guerra significaria a eliminação de um ou até mesmo de ambos os adversários Tudo isso é verdadeiro e parece tão indiscutível que nos admiramos apenas de que as guerras ainda não tenham sido rejeitadas mediante um acordo humano universal Alguns desses pontos podem ser discutidos sem dúvida É questionável que a comunidade não tenha nenhum direito sobre a vida do indivíduo não se podem condenar igualmente todas as espécies de guerras enquanto houver nações e reinos que estejam dis postos à destruição implacável de outros esses outros têm que se armar para a guerra Mas vamos passar rapidamente sobre isso não foi para essa discussão que o senhor me convidou Tenho outra coisa em mente acho que o motivo principal de nos indignarmos com a guerra é que não podemos deixar de fazê 248286 lo Somos pacifistas porque temos razões orgânicas para sêlo Depois nos é fá cil justificar nossa atitude com argumentos Talvez isso não seja compreendido sem uma explicação Quero dizer o seguinte Há tempos imemoriais ocorre na humanidade o processo de evolução da cultura Sei que outros preferem chamálo civilização A ele devemos o melhor daquilo que nos tornamos e uma boa parte daquilo de que sofremos Suas causas e seus começos são obscuros seu desfecho é incerto mas algumas de suas características são claras Talvez leve à extinção da espécie humana pois em mais de uma maneira prejudica a função sexual e já agora as raças in cultas e as camadas atrasadas da população se multiplicam mais rapidamente do que as bastante cultivadas Talvez se possa comparar esse processo com a domesticação de determinadas espécies animais certamente ele traz mudanças físicas ainda não há familiaridade com a ideia de que a evolução cultural seja tal processo orgânico As mudanças psíquicas que acompanham o processo cultural são evidentes e inequívocas Elas consistem no progressivo desloca mento dos objetivos instintuais e na restrição dos impulsos instintuais Sensações que eram prazerosas para nossos antepassados se tornaram indifer entes e até mesmo desagradáveis para nós existem razões orgânicas para que nossos ideais éticos e estéticos tenham mudado Duas parecem ser as mais im portantes características psicológicas da cultura o fortalecimento do intelecto que começa a dominar a vida instintual e a internalização da tendência à agressividade com todas as suas consequências vantajosas e perigosas Ora a guerra contraria de forma gritante as atitudes psíquicas que o processo cultural nos impõe e por isso temos de nos revoltar contra ela simplesmente não mais a suportamos não se trata apenas de uma rejeição intelectual e afetiva para nós pacifistas é uma intolerância constitucional como que uma idiossincrasia ampliada ao extremo Parece inclusive que as degradações estéticas inerentes à guerra não contribuem muito menos para nossa revolta do que suas crueldades 249286 E quanto tempo teremos de esperar até que os outros também se tornem pacifistas Não há como dizer mas pode não ser uma esperança utópica que a influência desses dois fatores da atitude cultural e do justificado medo das consequências de uma guerra futura venha a terminar com as guerras num tempo não muito distante Por quais meios ou rodeios não chegamos a perce ber Enquanto isso uma coisa podemos dizer tudo o que promove a evolução cultural também trabalha contra a guerra Eu o saúdo cordialmente e peçolhe que me desculpe se estas minhas con siderações o decepcionaram Seu sigm freud Tirou o vento de minhas velas versão literal da expressão alemã utilizada que significa atrapalhar as intenções Poder Macht violência Gewalt mas a palavra Gewalt também pode significar força e poder segundo o contexto Desenvolvimento Entwicklung que também pode significar evolução Impulsos é uma das versões possíveis para Strebungen substantivo atualmente não mais usado do verbo streben que significa esforçarse por aspirar a ambicionar os tradutores consultados recorreram a tendencias aspiraciones impulsi impulses Cf a afirmação de Freud na primeira parte de O futuro de uma ilusão 1925 recusome a distinguir entre cultura e civilização Kultur e Zivilisation e a nota do tradutor à p 48 250286 UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE CARTA A ROMAIN ROLLAND 1936 TÍTULO ORIGINAL BRIEF AN ROMAIN ROLLAND EINE ERINNERUNGSSTÖRUNG AUF DER AKROPOLIS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ALMANACH 1937 PP 921 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 2507 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IV PP 28393 Caro amigo Solicitado a contribuir com algum escrito para a comemoração dos seus setenta anos esforceime bastante por encontrar algo que fosse digno do sen hor em alguma medida que pudesse expressar minha admiração por seu amor à verdade pela coragem em suas crenças pela afeição e solicitude que tem pela humanidade ou que testemunhasse a gratidão pelo escritor que me propor cionou tanto prazer e elevação Mas foi em vão sou dez anos mais velho que o senhor minha capacidade de produzir se esgotou O que afinal lhe posso oferecer é a dádiva de alguém empobrecido que já conheceu dias melhores Como o senhor sabe meu trabalho científico teve por meta esclarecer fenô menos insólitos anormais patológicos da psique isto é fazêlos remontar às forças psíquicas que por trás deles atuam e mostrar os mecanismos ali em ação Procurei fazer isso primeiramente em minha própria pessoa depois em outros indivíduos e enfim numa ousada extrapolação no gênero humano como um todo Um fenômeno desse tipo que vivenciei uma geração atrás em 1904 e jamais pude compreender tornou a aparecer em minha lembrança nos últimos anos Inicialmente não soube por quê Afinal me decidi a analisar essa pequena vivência e agora lhe comunico o resultado desse estudo Nisso devo lhe pedir que dispense a certos dados de minha vida pessoal mais atenção do que eles normalmente mereceriam UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE Todos os anos naquele tempo eu costumava realizar uma viagem de férias com meu irmão mais jovem no final de agosto ou início de setembro Essa viagem durava algumas semanas e nos levava a Roma a alguma outra região da Itália ou ao litoral do Mediterrâneo Meu irmão é dez anos mais jovem do que eu ou seja tem a mesma idade que o senhor uma coincidência que somente hoje me ocorre Nesse ano ele me explicou que seus negócios não lhe permitiam uma ausência mais longa poderia ficar fora no máximo uma sem ana teríamos de encurtar nossa viagem Então decidimos viajar por Trieste até a ilha de Corfu onde passaríamos nossos poucos dias de férias Em Trieste ele visitou um seu amigo de negócios que lá vivia e eu o acompanhei O homem perguntou amavelmente sobre nossos planos e quando soube que pre tendíamos ir a Corfu desaconselhounos vivamente Que querem vocês lá por essa época do ano É tão quente que não poderão fazer nada É melhor ir em a Atenas O vapor da Lloyd parte hoje à tarde terão três dias para ver a cidade e ele os pegará no trajeto de volta Será mais agradável e valerá bem mais a pena Ao deixarmos a casa do triestino estávamos de péssimo humor Discutimos a sua sugestão achamos que era imprópria e enxergamos apenas obstáculos à sua realização e imaginamos também que não poderíamos entrar na Grécia sem passaporte Vagamos pela cidade descontentes e indecisos durante as horas que faltavam para a abertura do escritório da Lloyd Quando chegou o momento fomos para o guichê e compramos passagens para Atenas como se fosse algo natural sem nos preocupar com as supostas dificuldades sem nem mesmo comentar nossas razões para aquela decisão Esse comportamento era muito singular Depois reconhecemos que imediatamente e de bom grado havíamos aceitado a sugestão de ir para Atenas em vez de Corfu Por que en tão havíamos passado o tempo até a abertura dos guichês de mau humor sim ulando impedimentos e dificuldades Quando na tarde após a nossa chegada eu me achava na Acrópole e lançava o olhar sobre a paisagem ao redor veiome subitamente este singular pensamento Então tudo isso existiu realmente tal como nós aprendemos na escola Colocado de forma mais precisa a pessoa que fez o comentário separavase de maneira bem mais aguda do que geralmente se notava de uma 253286 outra que percebia esse comentário e ambas estavam assombradas ainda que não pela mesma coisa Uma comportavase como se fosse obrigada sob o im pacto de uma observação indubitável a crer em algo cuja realidade até então lhe parecera incerta Fazendo um leve exagero como se alguém passeando à margem do Loch Ness na Escócia subitamente deparasse com o corpo do célebre monstro lançado à terra e tivesse que admitir então ela existe de fato a serpente marinha em que não acreditávamos Mas a outra pessoa estava justi ficadamente surpresa pois não sabia que a existência real de Atenas da Acró pole e daquela paisagem era objeto de dúvida Esperava isto sim uma mani festação de enlevo e admiração Agora se poderia dizer que o pensamento estranho na Acrópole apenas en fatiza que ver algo com os próprios olhos é muito diferente de apenas ouvir ou ler sobre algo Mas isto não deixaria de ser uma singular maneira de exprimir um lugarcomum sem interesse Ou seria possível arriscar a afirmação de que quando estudante ginasial eu julguei estar convencido da realidade histórica da cidade de Atenas e seu passado mas com o pensamento tido na Acrópole me dou conta de que no inconsciente não acreditei nisso na época apenas agora adquiro uma convicção que chega ao inconsciente Tal explicação parece profunda no entanto é mais fácil oferecêla do que provála e será muito questionável teoricamente Não acho que os dois fenômenos o mau humor em Trieste e o pensamento na Acrópole estão intimamente relacion ados O primeiro é mais facilmente compreensível e pode nos ajudar na ex plicação do segundo A experiência em Trieste também é percebo apenas uma expressão de in credulidade Vamos ver Atenas Está fora de questão há muitas di ficuldades O mau humor daquele mesmo instante corresponde ao lamento de que isso esteja fora de questão Seria tão bonito Agora compreendemos do que se trata É um desses casos de too good to be true bom demais para ser ver dade que tão bem conhecemos Um caso dessa incredulidade que frequente mente surge quando somos surpreendidos por uma boa nova ao saber que 254286 ganhamos um prêmio que acertamos na loteria ou para uma garota apaixon ada a notícia de que o amado apresentouse aos seus pais como pretendente e assim por diante Constatar um fenômeno leva naturalmente a perguntar sobre a sua causa Uma incredulidade assim é evidentemente uma tentativa de rejeitar uma par cela da realidade mas há algo de estranho nisso Não nos surpreenderíamos em absoluto se essa tentativa fosse dirigida a uma parcela da realidade que ameaçasse com desprazer nosso mecanismo psíquico está digamos regulado para isso Mas por que tal incredulidade em relação a algo que pelo contrário promete um enorme prazer Uma conduta realmente paradoxal Mas me re cordo que já lidei antes com o caso de pessoas que como formulei então fra cassam no triunfo Normalmente se fracassa com a frustração a não realiza ção de uma necessidade ou desejo mas nessas pessoas dáse o contrário ad oecem até mesmo sucumbem pelo fato de lhes ter sido realizado um desejo extremamente forte Mas o contraste entre as duas situações não é tão grande como parece de início No caso paradoxal ocorre simplesmente que uma frus tração interna toma o lugar da externa O indivíduo não se permite a felicid ade a frustração interna ordena que ele se apegue à externa Mas por quê Porque esta é a resposta numa série de casos ele não pode esperar algo tão bom do destino Ou seja novamente o too good to be true a manifestação de um pessimismo do qual muitos de nós parecem abrigar uma boa porção Em outros casos assim como nas pessoas que fracassam ao triunfar há um senti mento de culpa ou de inferioridade que pode ser traduzido desta forma Não sou digno dessa felicidade não a mereço Mas esses dois motivos são no fundo o mesmo um é apenas a projeção do outro Pois como há muito se sabe o destino do qual se espera um tratamento tão ruim é uma materializa ção de nossa consciência do rigoroso Supereu dentro de nós no qual sedimentouse a instância punitiva de nossa infância Assim creio estaria explicado nosso comportamento em Trieste Não podíamos acreditar que nos era destinada a alegria de ver Atenas O fato de 255286 que a parcela de realidade que queríamos rejeitar era no início apenas uma possibilidade determinou as peculiaridades de nossa reação imediata Depois quando estávamos na Acrópole a possibilidade se tornou realidade e a mesma descrença achou uma expressão modificada mas bem mais nítida Eis o que es ta seria sem distorção Eu jamais acreditaria que me fosse dado ver Atenas com meus próprios olhos algum dia como sem dúvida sucede agora Quando me recordo o ardente anseio de viajar e ver o mundo que me domin ava no tempo do ginásio e depois e como ele demorou em ser satisfeito não me surpreende esse tardio efeito na Acrópole eu tinha 48 anos então Não per guntei a meu irmão se ele sentiu algo semelhante Havia uma certa reserva em torno do episódio já em Trieste ela impedira que trocássemos ideias Se decifrei corretamente o sentido de meu pensamento na Acrópole de que ele expressaria minha feliz surpresa por me achar naquele local então surge a questão seguinte de por que esse sentido teve uma roupagem assim deformada e deformadora no pensamento O conteúdo essencial deste foi preservado também na deformação é uma descrença Conforme o testemunho de meus sentidos eu me acho agora na Acrópole mas não consigo acreditar Essa descrença essa dúvida quanto a uma parcela da realidade é deslocada de dois modos na manifestação primeiro é remetida ao passado e em segundo lugar é deslocada de minha relação com a Acrópole à existência mesma da Acrópole Assim se produz algo que equi vale a dizer que antes havia duvidado da existência real da Acrópole algo que minha memória rejeita como sendo errado e mesmo impossível As duas distorções envolvem dois problemas independentes Podemos tentar compreender mais a fundo o processo de transformação Sem especificar no momento como cheguei a isso tomarei como ponto de partida que o fator original devia ser uma sensação de que algo incrível e irreal se podia perceber naquela situação Esta compreendia minha pessoa a Acrópole e minha per cepção dela Eu não sabia o que fazer com essa dúvida claro que não podia 256286 duvidar de minhas impressões sensoriais na Acrópole Mas me lembrei de que no passado havia duvidado de algo que tinha relação com aquele lugar e assim encontrei o expediente de situar a dúvida no passado Mas com isso ela muda o seu teor Não me lembrei simplesmente de que na juventude duvidara de al gum dia chegar a ver a Acrópole afirmei isto sim que naquele tempo não acreditara em absoluto na realidade da Acrópole Precisamente esse resultado da deformação me leva a inferir que a situação na Acrópole continha um ele mento de dúvida da realidade É certo que até agora não consegui tornar claro o processo por isso direi brevemente em conclusão que toda essa situação psíquica aparentemente confusa e difícil de ser exposta resolvese pronta mente com a suposição de que na Acrópole por um momento eu tive ou posso ter tido a seguinte sensação O que eu vejo não é real Chamase a isto sensação de estranhamento Eu procurei rechaçála e o consegui à custa de uma falsa afirmação sobre o passado Esses estranhamentos são fenômenos muito curiosos ainda pouco com preendidos Embora sejam descritos como sensações são evidentemente processos complicados ligados a certos conteúdos e vinculados a decisões re lativas a esses conteúdos Bastante frequentes em determinadas doenças psíquicas tampouco são desconhecidos na pessoa normal como as eventuais alucinações dos indivíduos sadios Mas certamente são atos falhos de estru tura anormal como os sonhos que não obstante seu regular aparecimento nas pessoas sãs consideramos modelos de distúrbio psíquico São observados em duas formas ou uma fração da realidade nos parece estranha ou uma fração do próprio Eu Nesse último caso falase de despersonalização estran hamentos e despersonalizações são intimamente relacionados Há outros fenô menos em que podemos enxergar a contrapartida positiva deles por assim dizer a chamada fausse reconnaissance o déjà vu déjà raconté ilusões em que buscamos aceitar algo como pertencente a nosso Eu assim como nos estran hamentos nos esforçamos em excluir algo de nós Uma tentativa de explicação místicoingênua e pouco psicológica pretende utilizar os fenômenos do déjà vu 257286 como prova de existências passadas de nosso Eu psíquico Da despersonalização chegase à double conscience que é mais corretamente cha mada cisão da personalidade Mas tudo isso é ainda tão obscuro tão pouco alcançado pela ciência que não me permito abordálo mais demoradamente com o senhor É suficiente para meus propósitos retomar duas características gerais dos fenômenos e estranhamento A primeira é que todos servem à finalidade da de fesa buscam manter algo longe do Eu negálo Novos elementos que podem solicitar medidas de defesa aproximamse do Eu a partir de dois lados do mundo externo real e do mundo interno de pensamentos e impulsos que emergem no Eu Essa alternativa talvez coincida com a distinção entre os es tranhamentos propriamente ditos e as despersonalizações Há um grande número de métodos mecanismos dizemos de que o nosso Eu se vale no cumprimento de suas tarefas defensivas Em minha vizinhança imediata se desenvolve no momento estudo desses mecanismos de defesa minha filha a analista de crianças está escrevendo um livro sobre esse tema O mais primit ivo e mais fundamental desses métodos a repressão serviu de ponto de partida para o nosso aprofundamento na psicopatologia Entre a repressão e o que chamamos defesa normal ante o que é penoso ou insuportável através de reconhecimento reflexão julgamento e ação apropriada há toda uma série de condutas do Eu de caráter mais ou menos claramente patológico Permitame lembrar um casolimite desse tipo de defesa O senhor conhece o famoso lamento dos mouros espanhóis Ay de mi Alhama que conta como o rei Boad bil recebe a notícia da queda de sua cidade Alhama Ele sente que essa perda significa o fim de seu reinado Mas não querendo reconhecer a verdade disso resolve tratar a notícia como non arrivée A estrofe diz Cartas le fueron venidas de que Alhama era ganada Las cartas echó en el fuego 258286 y al mensajero matara Notase facilmente que participa dessa conduta do rei a necessidade de con testar sua sensação de impotência Ao queimar as cartas e ordenar que matem o mensageiro ele busca mostrar que ainda tem o poder A outra característica geral dos estranhamentos sua dependência do pas sado do tesouro de lembranças do Eu e de anteriores vivências penosas talvez reprimidas desde então não é admitida sem objeção Mas justamente minha experiência na Acrópole que culmina num distúrbio de memória numa falsi ficação do passado nos ajuda a demonstrar essa influência Não é verdadeiro que eu tivesse duvidado da existência de Atenas nos anos do ginásio Apenas duvidei que algum dia pudesse visitar Atenas Fazer uma viagem tão longa ir tão longe pareciame além de toda possibilidade Isto se relacionava à pobreza e estreiteza de nossas condições de vida quando eu era jovem O an seio de viajar também era sem dúvida expressão do desejo de escapar àquela opressão aparentado ao impulso que leva tantos filhos adolescentes a aban donar a casa Havia muito eu percebera que boa parte do prazer de viajar con siste na realização desses velhos desejos isto é tem raiz na insatisfação com a casa e a família Quando pela primeira vez vemos o mar cruzamos o oceano experimentamos como realidades países e cidades que foram durante muito tempo inatingíveis e distantes objetos de desejo sentimonos como um herói que levou a cabo inacreditáveis façanhas Naquele momento na Acrópole eu poderia ter perguntado a meu irmão Você se lembra que em nossa infância fazíamos diariamente o mesmo caminho da rua até a escola e todo domin go íamos ao Prater ou a um dos lugares do campo que já conhecíamos bastante E agora estamos em Atenas bem na Acrópole Realmente fomos longe E se podemos comparar um evento assim pequeno com algo maior não sucedeu que Napoleão ao ser coroado imperador em Notre Dame voltouse para um de seus irmãos terá sido o mais velho José e comentou Que diria notre père nosso pai se estivesse aqui hoje 259286 Mas aqui deparamos com a solução para o pequeno problema de por que já em Trieste havíamos estragado o prazer da viagem a Atenas Deve ser que um sentimento de culpa se acha ligado à satisfação de haver ido tão longe há algo errado nisso algo proibido desde sempre Tem relação com a crítica da criança ao pai com o menosprezo que toma o lugar da superestimação infantil inicial de sua pessoa É como se o essencial no êxito fosse chegar mais longe que o pai e querer superálo ainda fosse interditado A essa motivação geral se junta em nosso caso um fator particular no próprio tema Atenas e Acrópole já se encontra uma referência à superioridade dos filhos Nosso pai foi comerciante não teve educação ginasial Atenas não podia significar muito para ele O que perturbou nossa fruição da viagem a Atenas portanto foi um impulso de piedade Agora o senhor não mais se sur preenderá com o fato de a lembrança da experiência na Acrópole me visitar tão frequentemente depois que eu próprio me tornei velho e necessitado de toler ância não mais podendo viajar Muito cordialmente seu sigm freud Janeiro de 1936 Freud trata Romain Rolland por Sie que é mais formal do que o você usado pela maioria dos brasileiros correspondendo antes ao vous francês ou ao uso menos informal que tem o você em Portugal O verbo original é eingerichtet particípio passado de einrichten que os dicionários traduzem por arranjar dispor ordenar estabelecer regular etc as versões estrangeiras consultadas usam adaptado montado programmato planned Sensação de estranhamento Entfremdungsgefühl nas versões estrangeiras consultadas sensación de extrañamiento sentimiento de enajenación sentimento di estranazione feeling of der ealization com nota cf sobre a tradução de Gefühl por sensação na nota do tradutor em 260286 Nietzsche Além do bem e do mal São Paulo Companhia das Letras 1992 tradução e notas de Paulo César de Souza nota 51 No parágrafo seguinte o termo Empfindung foi igualmente vertido por sensação Atos falhos no original Fehlleistungen nas versões consultadas disfunciones operaciones fallidas atti mancati failures in functioning Déjà raconté já contado assim como déjà vu significa já visto cf Psicopatologia da vida cotidiana 1901 cap xii seção D e Sobre a fausse reconnaissance déjà raconté durante o trabalho psicanalítico 1914 261286 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19301936 APRESENTAÇÃO DE THE MEDICAL REVIEW OF REVIEWS O dr Feigenbaum me solicitou algumas palavras para o número da Review pelo qual será responsável e aproveito a ocasião para lhe desejar pleno êxito nesse trabalho Ouço dizer frequentemente que a psicanálise é muito popular nos Estados Unidos e não encontra ali a mesma obstinada resistência que na Europa Mas minha satisfação com isso é empanada por várias circunstâncias Pareceme que a popularidade do nome da psicanálise na América não significa nem atit ude amistosa para com a causa nem difusão ou aprofundamento de seu conhe cimento Como evidência da primeira afirmação vejo o fato de que embora ajuda financeira possa ser obtida com facilidade e abundância para qualquer empreendimento científico ou pseudocientífico nossas instituições psicanalít icas jamais tiveram apoio Também não é difícil provar o segundo ponto Em bora a América possua vários analistas competentes e pelo menos uma autorid ade o dr A A Brill são escassas e pouco trazem de novo as contribuições desse vasto país para a nossa ciência Psiquiatras e neurologistas utilizam fre quentemente a psicanálise como método terapêutico mas geralmente mostram pouco interesse por seus problemas científicos e seu significado cultural Muitas vezes se encontra em médicos e autores americanos insuficiente famil iaridade com a psicanálise de modo a conhecerem apenas o nome e algumas de suas expressões o que não prejudica a segurança com que emitem julga mentos Eles também juntam a psicanálise com outros sistemas teóricos que dela podem ter se originado mas que hoje são incompatíveis com ela Ou for jam uma mistura de psicanálise com outros elementos e apresentam isso como prova de sua broadmindedness mente aberta quando apenas demonstra sua lack of judgement falta de discernimento Muitos desses males que menciono com pesar derivam certamente de uma tendência geral que existe na América de abreviar o estudo e a preparação e passar rapidamente à aplicação prática Também se dá preferência a estudar um tema como a psicanálise em exposições secundárias com frequência inferi ores e não das fontes originais Nisso a seriedade fica inevitavelmente comprometida É de esperar que trabalhos como os que o dr Feigenbaum pretende publi car em sua Review estimulem fortemente o interesse pela psicanálise na América Título original Geleitwort zu The Medical Review of Reviews v 36 n 3 Nova York março de 1930 publicado primeiramente em inglês em número especial sobre psicopatologia aos cuidados do dr Dorian Feigenbaum Traduzido de Gesammelte Werke xiv pp 5701 264286 PRÓLOGO A DEZ ANOS DO INSTITUTO PSICANALÍTICO DE BERLIM As páginas que se seguem descrevem a fundação e as realizações do Instituto Psicanalítico de Berlim que teve três importantes funções no movimento psic analítico primeiro tornar nossa terapia acessível ao grande número de pessoas que sofrem com suas neuroses tanto quanto os ricos mas não têm como custe ar seu tratamento segundo fornecer um local em que a análise seja ensinada teoricamente e a experiência dos analistas mais velhos seja transmitida a dis cípulos desejosos de aprender por fim aperfeiçoar nosso conhecimento das enfermidades neuróticas e nossa técnica terapêutica aplicandoos e testando os em novas condições Um instituto assim era indispensável mas em vão esperaríamos ajuda do Estado ou interesse da universidade em sua fundação A energia e a abnegação de um indivíduo foram decisivas nesse caso O dr Max Eitingon atual presid ente da Associação Psicanalítica Internacional criou tal instituto com seus próprios meios dez anos atrás e desde então o manteve e o dirigiu com seu es forço pessoal Este relatório sobre os primeiros dez anos do Instituto de Berlim é um tributo a seu criador e diretor uma tentativa de agradecerlhe publica mente Quem de alguma forma se acha ligado à psicanálise participará desse agradecimento Título original Geleitwort zu The Medical Review of Reviews v 36 n 3 Nova York março de 1930 publicado primeiramente em inglês em número especial sobre psicopatologia aos cuidados do dr Dorian Feigenbaum Traduzido de Gesammelte Werke xiv pp 5701 O PARECER DA FACULDADE NO PROCESSO HALSMANN O complexo de Édipo pelo que sabemos está presente na infância de todos os indivíduos sofre enormes alterações nos anos de desenvolvimento e em mui tos indivíduos é encontrado também com intensidade variável na idade adulta Suas características essenciais sua universalidade seu conteúdo seu destino foram reconhecidos muito antes da psicanálise por um pensador agudo como Diderot como demonstra uma passagem de seu famoso diálogo Le neveu de Rameau O sobrinho de Rameau Na tradução de Goethe volume 45 da Sophienausgabe eis o que lemos à pág 45 dessa obra Se o pequeno selvagem fosse abandonado a si mesmo conservasse toda a sua imbecilidade e reunisse a violência das paixões do homem de trinta anos à pouca razão da cri ança de berço torceria o pescoço de seu pai e dormiria com a mãe Se fosse objetivamente provado que Philipp Halsmann matou o pai haver ia de fato justificativa para aduzir o complexo de Édipo como motivação para um ato incompreensível de outra forma Como tal prova não foi apresentada a menção do complexo de Édipo tem efeito enganador é no mínimo supérflua O que a investigação descobriu em matéria de divergências entre pai e filho não basta para fundamentar a suposição de que havia uma má relação do filho para com o pai Ainda que fosse de outro modo é preciso dizer que daí à causação de semelhante ato há uma enorme distância Justamente devido a sua onipresença o complexo de Édipo não é adequado para uma conclusão sobre a autoria de um crime Facilmente se produziria a situação imaginada numa con hecida anedota Uma casa foi roubada Um homem que tinha consigo uma gazua foi condenado pelo crime Ao lhe perguntarem depois da sentença se tem alguma coisa a dizer ele exige ser penalizado também por adultério pois também está de posse do instrumento para isso No formidável romance Os irmãos Karamázov de Dostoiévski a situação edípica ocupa o centro do interesse O velho Karamázov é odiado pelos filhos porque os oprime sem piedade Além disso para um deles é o poderoso rival na disputa da mulher desejada Esse filho Dmitri não faz segredo da intenção de vingarse violentamente do pai É natural então que após o roubo e assas sinato do pai ele seja acusado e não obstante todos os seus protestos de in ocência seja condenado pelo ato No entanto Dmitri é inocente outro irmão cometeu o crime Na cena do julgamento desse romance é dita uma frase que se tornou célebre A psicologia é uma faca de dois gumes O parecer da faculdade de medicina de Innsbruck tende a atribuir um com plexo de Édipo efetivo a Philipp Halsmann mas se abstém de precisar o grau dessa efetividade pois sob a pressão da acusação não se acham em Phil ipp Halsmann as precondições para um esclarecimento sem reservas E quando ela se recusa a buscar a raiz do ato no complexo de Édipo no caso de autoria do crime pelo acusado também vai mais longe que o necessário em sua negação No mesmo parecer há uma contradição nada insignificante A possível influência do choque emocional sobre o distúrbio da memória quanto a impressões sobrevindas antes e durante o tempo crítico é minimizada ao ex tremo injustamente em minha opinião As suposições de um estado excep cional e de uma enfermidade psíquica são terminantemente rechaçadas mas admitese de bom grado a explicação de que ocorreu em Philipp Halsmann uma repressão após o ato Devo afirmar que seria uma raridade de primeira ordem uma súbita repressão num indivíduo adulto que não mostra indícios de neurose severa a repressão de um feito que certamente seria mais importante do que todas as discutíveis particularidades de distanciamento e decurso do tempo e que sucede num estado normal ou alterado apenas pelo cansaço físico 267286 Título original Das Fakultätsgutachten im Prozeß Halsmann publicado primeiramente em Psychoanalytische Bewegung v 3 n 1 1931 Traduzido de Gesammelte Werke xiv pp 5412 O estudante Philipp Halsmann foi acusado de parricídio e condenado pela corte de Innsbruck em 1929 Um parecer da faculdade de medicina daquela cidade solicitado pela corte apoiavase confusamente em algumas noções psicanalíticas Posteriormente o estudante foi perdoado mas não absolvido Seu defensor Josef Kupka professor de direito na universidade de Viena considerou que o veredicto ainda o prejudicava e iniciou uma campanha por sua plena reabilit ação O presente texto foi escrito por solicitação do dr Kupka A citação foi aqui traduzida do original francês não da tradução utilizada por Freud Na primeira vez em que ele citou essa frase na 21ª das Conferências introdutórias à psicanálise 191617 recorreu ao original não à versão de Goethe embora mencionasse que este havia traduzido a obra 268286 APRESENTAÇÃO DE ELEMENTI DI PSICOANALISI DE EDOARDO WEISS O autor dessas conferências o dr Edoardo Weiss meu amigo e discípulo desejou que eu fizesse acompanhar de algumas palavras de recomendação o seu trabalho Eu o faço agora com plena consciência de que tal recomendação é desnecessária A obra fala por si mesma Quem sabe apreciar a seriedade de um esforço científico quem estima a probidade do pesquisador que não busca diminuir ou negar as dificuldades quem encontra prazer na habilidade do pro fessor que em sua exposição leva luz à obscuridade e ordem ao caos não pode senão atribuir um alto valor a este livro e partilhar minha esperança de que nos círculos cultos e especializados da Itália ele venha a despertar um duradouro interesse pela jovem ciência da psicanálise Título original Geleitwort zu Elementi di psicoanalisi von Edoardo Weiss Milão Hoepli 1931 publicado como facsímile do manuscrito Traduzido de Gesammelte Werke xiv p 573 EXCERTO DE UMA CARTA A GEORG FUCHS A onda de forte compaixão que senti após a leitura de sua carta logo deparou com duas considerações uma dificuldade interior e um empecilho exterior Uma frase de seu próprio prefácio me deu a formulação mais adequada para a primeira Há pessoas que têm uma opinião tão baixa da humanidade civiliz ada de hoje que negam a existência de uma consciência mundial Creio que sou uma dessas pessoas Eu não poderia por exemplo subscrever a afirmação de que o tratamento dado aos prisioneiros é uma vergonha para a nossa civiliz ação Pelo contrário pareceme que ele condiz perfeitamente com a nossa civilização que é a expressão necessária da brutalidade e da incompreensão que vigoram na humanidade civilizada de hoje E se por um milagre houvesse a súbita convicção de que a reforma do sistema penal é a tarefa mais urgente de nossa civilização que outra coisa se verificaria senão que a so ciedade capitalista não tem agora os meios necessários para custear essa re forma A segunda dificuldade a externa tem a ver com algumas passagens de sua carta em que o senhor me exalta como reconhecido líder intelectual e in ovador cultural atribuindome o privilégio de ser escutado pelo mundo civil izado Eu bem gostaria que assim fosse caro senhor nesse caso não me furtar ia ao seu pedido Mas algo me diz que sou persona ingrata senão ingratissima para o povo alemão e tanto para os indivíduos cultos como para os incultos Confio plenamente em que o senhor não pensará que eu me sinto magoado por tais demonstrações de desapreço Há décadas não sou mais tão infantil e me dido pelo seu exemplo isso também seria ridículo Menciono essas banalidades apenas para enfatizar que não seria um advogado conveniente para um livro que busca despertar a simpatia dos leitores para uma boa causa Direi além disso que o seu livro é comovente belo sensato e bom Título original Auszug eines Briefes an Georg Fuchs publicado primeiramente como parte da introdução ao livro de Fuchs Wir Zuchthäusler Nós presos Munique Albert Lan gen 1931 Traduzido de Gesammelte Werke Nachtragsband Frankfurt Fischer 1987 pp 75960 Georg Fuchs 18681949 foi crítico literário e tradutor de Shakespeare e Calderón de la Barca entre outros Na década de 1920 foi preso por razões políticas e escreveu um relato sobre a vida na prisão Antes de publicar o livro enviou o texto para várias personalidades entre elas Freud e depois incluiu na introdução da obra trechos das cartas recebidas 271286 CARTA AO PREFEITO DA CIDADE DE PˇRÍBOR Agradeço ao senhor prefeito da cidade de PˇríborFreiberg aos organizadores desta homenagem e a todos os presentes a honra que me fazem ao assinalar minha casa natal com esta placa comemorativa lavrada por mãos de artista E isso é feito já enquanto estou vivo e meus contemporâneos ainda não se acham concordes na avaliação de meu trabalho Deixei Freiberg com a idade de três anos visiteia quando tinha dezesseis como estudante ginasial em férias hospedandome com a família Fluss e nunca mais retornei Desde então muita coisa me sucedeu realizei muitos es forços experimentei sofrimentos e também felicidade e algum sucesso tal como costumam se misturar numa vida humana Não é fácil aos 75 anos vol tar àquele tempo remoto do qual em seu rico conteúdo apenas alguns vestí gios me restam na memória mas de uma coisa posso estar seguro bem no fundo de mim ainda vive a criança feliz de Freiberg o primeiro filho de uma jovem mãe que deste ar e deste solo recebeu as primeiras impressões inextinguíveis Sejame permitido então encerrar este agradecimento com um caloroso voto de felicidade para este lugar e seus habitantes Título original Brief an den Bürgermeister der Stadt Pˇríbor lida por Anna Freud na cerimônia de descerramento da placa em 25 de outubro de 1931 Traduzida de Gesammelte Werke xiv p 561 A pequena cidade de Pˇríbor nome tcheco ou Freiberg nome alemão se localiza na região da Morávia que então pertencia ao Império AustroHúngaro e agora é parte da República Tcheca APRESENTAÇÃO DE TEORIA GERAL DAS NEUROSES SOBRE BASE PSICANALÍTICA DE HERMANN NUNBERG Este livro de Hermann Nunberg contém a mais completa e conscienciosa ex posição de uma teoria psicanalítica dos processos neuróticos que possuímos no momento Quem busca a simplificação e a rápida solução dos problemas nela envolvidos dificilmente será satisfeito por este trabalho Mas quem dá primazia ao pensamento científico e sabe ser um mérito que a especulação nunca aban done o fio condutor da experiência quem é capaz de fruir a bela diversidade dos eventos psíquicos valorizará e estudará diligentemente esta obra Título original Geleitwort zu Allgemeine Neurosenlehre auf psychoanalytischer Grundlage von Hermann Nunberg Berna e Berlim Hans Huber 1932 Traduzido de Gesammelte Werke xvi p 273 Há uma frase truncada no texto original dos GW com dois erros de impressão que foram apontados numa nota da Standard inglesa a partir da edição correta encontrada em Ges ammelte Schriften Textos completos v xii 1934 PRÓLOGO A DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE DE RICHARD STERBA 3 de julho de 1932 Prezado doutor Seu Dicionário deume a impressão de ser um valioso auxílio para os que estudam psicanálise e um belo trabalho em si mesmo A precisão e correção dos verbetes é realmente louvável A tradução dos termos em inglês e francês embora não seja indispensável realçaria o valor da obra Sei que o caminho da letra A até o final do alfabeto é bastante longo e envolverá um enorme esforço de sua parte Não o faça então a menos que se sinta interiormente impelido a fazêlo Apenas sob esta pressão de maneira nenhuma por incitação externa Cordialmente seu freud Título original Vorwort zu Handwörterbuch der Psychoanalyse von Richard Sterba Viena Internationaler Psychoanalytischer Verlag 1936 Traduzido de Gesammelte Werke Nachtrags band Frankfurt Fischer 1987 p 761 SÁNDOR FERENCZI 18731933 A experiência ensina que não custa desejar por isso prodigalizamos uns aos outros os melhores e mais caros votos sobretudo os de uma vida longa Mas precisamente os dois lados desse desejo são revelados por uma conhecida ane dota oriental O sultão encomendou seu horóscopo a dois sábios Serás feliz senhor diz o primeiro está escrito nas estrelas que verás todos os teus par entes morrerem antes de ti Esse vidente é então executado Serás feliz sen hor diz também o outro pois leio nas estrelas que sobreviverás a todos os teus parentes Esse é ricamente recompensado Os dois exprimem a realização do mesmo desejo Em janeiro de 1926 tive de escrever o obituário de nosso inesquecível amigo Karl Abraham Alguns anos antes em 1923 eu havia congratulado Sándor Ferenczi por seus cinquenta anos de vida Agora mal se passaram dez anos constato dolorosamente que sobrevivi a ele No escrito por ocasião do seu aniversário pude louvar publicamente sua versatilidade e originalidade sua riqueza de dotes mas a discrição adequada a um amigo me impediu de falar de sua personalidade afetuosa amável aberta para tudo significativo Desde quando o interesse pela jovem psicanálise o trouxe até mim nós compartilhamos muitas coisas Eu o convidei para me acompanhar numa viagem a Worcester Mass quando fui chamado a fazer conferências ali dur ante uma semana em 1909 De manhã antes do horário da conferência an dávamos no terreno diante do prédio da universidade eu lhe pedia sugestões sobre o que deveria falar naquele dia e ele me fazia um esboço que meia hora depois eu desenvolvia numa exposição improvisada Assim participou ele da gênese das Cinco lições de psicanálise Pouco depois no Congresso de Nuremberg em 1910 eu o incumbi de propor a organização dos analistas numa associação internacional tal como a havíamos imaginado conjunta mente Ela foi aceita com pequenas modificações e até hoje vigora Por vários anos seguidos passamos juntos as férias de outono na Itália e alguns dos en saios que depois entraram na literatura psicanalítica sob o meu nome ou o dele tiveram ali em nossas conversas a sua forma inicial Quando irrompeu a Grande Guerra que pôs fim a nossa liberdade de movimentação e também paralisou nossa atividade analítica ele aproveitou o intervalo para começar a análise comigo que então foi interrompida por sua convocação para o serviço mas pôde ser prosseguida mais tarde O sentimento de tranquila comunhão que em nós dois se formou após tantas vivências conjuntas também não foi perturbado quando já tarde na vida é verdade ele se ligou à excelente mulher que hoje o pranteia sendo sua viúva Há dez anos quando a Revista Internacional de Psicanálise dedicou a Fer enczi um número especial nos seus cinquenta anos ele já havia publicado a maioria dos trabalhos que converteram todos os analistas em seus discípulos Mas ainda não aparecera sua realização mais brilhante mais rica de ideias Eu estava a par disso e no final de minha contribuição o exortei a nos brindar com ela Em 1924 surgiu então seu Versuch einer Genitaltheorie Ensaio de uma teor ia da genitalidade Esse pequeno livro é antes um estudo biológico do que psicanalítico uma aplicação dos pontos de vista e percepções próprios da psic análise à biologia dos processos sexuais e até mesmo à vida orgânica em geral talvez a mais audaciosa aplicação da psicanálise que jamais se tenha feito Seu fio condutor é a ênfase na natureza conservadora dos instintos que buscam restabelecer todo estado que tenha sido abandonado devido a uma perturbação externa os símbolos são vistos como testemunhos de nexos antigos exemplos impressionantes mostram como as peculiaridades da psique conservam traços de antiquíssimas alterações da substância corporal Após ler esse trabalho acreditamos compreender numerosas particularidades da vida sexual que antes não podíamos enxergar de forma concatenada e achamonos enriquecidos por 276286 ideias que prometem profundas percepções em amplas áreas da biologia É em vão que já agora tentamos separar o que pode ser admitido como conheci mento digno de crédito e o que à maneira de uma fantasia científica procura adivinhar o conhecimento futuro Pomos de lado o livrinho com este pensamento É muita coisa de uma vez só vou reler após algum tempo Mas não apenas comigo foi assim provavelmente haverá mesmo uma bioanálise algum dia tal como Ferenczi a anuncia e ela terá de retomar o Versuch einer Genitaltheorie Após essa realização culminante aconteceu que gradualmente nosso amigo se afastou Tendo retornado de um período de trabalho na América parecia recolherse cada vez mais ao trabalho solitário ele que antes participara viva mente de tudo que sucedia nos meios analíticos A necessidade de curar e ajudar tornouse nele predominante Provavelmente ele se impôs metas inal cançáveis com os meios terapêuticos de hoje Veiolhe a convicção desde fontes afetivas inesgotáveis de que seria possível alcançar muito mais com os pacientes se lhes déssemos em medida suficiente o amor pelo qual haviam an siado quando crianças Ele quis descobrir como isso era realizável no âmbito da situação analítica e enquanto não obteve sucesso nisso mantevese à parte talvez não mais seguro da concordância de ideias com os amigos Aonde quer que o tivesse levado o caminho que encetou ele não pôde percorrêlo até o fim Pouco a pouco revelaramse nele os sinais de um grave processo destru tivo orgânico que há anos provavelmente já ensombrecia sua existência Pouco antes de completar sessenta anos de idade sucumbiu a uma anemia per niciosa É impossível imaginar que a história de nossa ciência o esqueça algum dia Maio de 1933 Publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 19 n 3 1933 Traduzido de Gesammelte Werke xvi pp 2679 277286 PRÓLOGO A EDGAR POE ESTUDO PSICANALÍTICO DE MARIE BONAPARTE Neste livro minha amiga e discípula Marie Bonaparte fez a luz da psicanálise incidir sobre a vida e a obra de um grande escritor de constituição patológica Graças a seu trabalho de interpretação compreendemos agora o quanto as ca racterísticas da obra de Poe são determinadas pela natureza particular do autor mas também notamos que essa por sua vez era o precipitado de fortes ligações afetivas e dolorosas vivências de sua primeira infância Pesquisas como essa não pretendem explicar o gênio do escritor mas mostram que mo tivações o despertaram e que material lhe foi dado pelo destino Há uma at ração especial em estudar as leis da psique humana em indivíduos extraordinários Título original Vorwort zu Edgar Poe Etude psychanalytique par Marie Bonaparte Paris Benoël et Steele 1933 teve edição alemã no ano seguinte Traduzido de Gesammelte Werke xvi p 276 A THOMAS MANN EM SEU 60o ANIVERSÁRIO Caro Thomas Mann Receba meus afetuosos parabéns por seus sessenta anos Sou um de seus mais velhos leitores e admiradores e poderia lhe desejar uma vida longa e feliz como se costuma fazer em tais circunstâncias Mas não o farei desejar é fácil e me parece um retorno ao tempo em que os homens acreditavam na má gica onipotência dos pensamentos E a experiência pessoal também me leva a pensar que é bom que um destino piedoso ponha um justo limite à duração de nossa vida Além disso não acho digno de imitação o fato de nessas ocasiões festivas a afeição sobrepujar o respeito de o homenageado ser constrangido a ouvir en quanto o cobrem de louvores como homem e o criticam e analisam como artista Não incorrerei nessa presunção Mas posso me permitir outra coisa Em nome de incontáveis contemporâneos seus posso manifestar nossa confi ança em que você nunca fará ou dirá as palavras de um escritor são ações afinal o que seja mesquinho ou covarde que mesmo em tempos e situações que tornem confuso o juízo você tomará o caminho certo e o mostrará aos outros Muito cordialmente seu freud Junho de 1935 Publicada primeiramente em Almanach 1936 Frankfurt Fischer 1935 p 18 Traduzida de Gesammelte Werke xvi p 249 também se acha em Briefe 18731939 Frankfurt Fischer 1960 pp 4189 A SUTILEZA DE UM ATO FALHO Estou arrumando o presente de aniversário de uma amiga uma pequena gema gravada que deve ser incrustada num anel Ela vai fixada no meio de um cartão no qual escrevo Vale para um anel de ouro do joalheiro L para a pedra inclusa que mostra um barco com vela e remos Mas no lugar em que aqui deixei em branco entre joalheiro L e para havia uma palavra que tive de cortar pois era descabida a palavrinha bis até em alemão Por que a escrevi então Ao reler o breve texto vejo que contém a palavra für para Vale para um anel para a pedra inclusa Isso não soa bem deve ser evitado Ocorreme que a inserção de bis no lugar de für seria uma tentativa de evitar o lapso estilístico Deve ter sido isso mas uma tentativa com meios bastante in adequados A preposição bis não cabe nesse ponto não pode substituir o indis pensável für Por que justamente bis Mas talvez a palavrinha bis não seja a preposição que exprime o limite de tempo e sim algo totalmente diferente É o bis latino pela segunda vez que passou para o francês mantendo o sentido Ne bis in idem Não repetir o mesmo procedimento dizse no direito romano Bis bis gritam os franceses quando querem a repetição de algo num espetáculo Eis então a explicação de meu disparatado engano ao escrever Ante o segundo für recebi o aviso para não repetir a mesma palavra Outra coisa no lugar de für então A casual semelhança sonora da palavra estrangeira bis na objeção ao fraseado original com a preposição alemã torna possível trocar o für por bis como se fosse um erro Mas esse ato falho não alcança seu propósito ao se realizar e sim ao ser corrigido Tenho de cortar o bis e desse modo elimino por assim dizer a repetição que me incomodava Uma variante do mecanismo de um ato falho não desprovida de interesse Fiquei satisfeito com esta solução mas nas autoanálises há sempre o perigo da interpretação incompleta Contentamonos rapidamente com uma ex plicação parcial por trás da qual a resistência mantém algo possivelmente mais importante Minha filha quando lhe falei dessa pequena análise logo achou um prosseguimento para ela Você já presenteou uma pedra assim para um anel Provavelmente é essa a repetição que você quer evitar Não gostamos de dar sempre o mesmo presente Isso me convenceu era obviamente uma crít ica à repetição do mesmo presente não da mesma palavra Esta é apenas um deslocamento para algo trivial destinada a desviar a atenção de algo mais sig nificativo uma dificuldade estética talvez no lugar de um conflito instintual É fácil prosseguir Eu buscava um motivo para não presentear a gema Ele estava na consideração de que eu já a havia dado de presente antes uma muito semelhante Por que essa objeção foi escondida e disfarçada Tinha de haver algo que receava vir à luz Logo vi claramente o que era Eu não queria me desfazer daquela gema ela me agradava muito Não apresentou grandes dificuldades o esclarecimento desse ato falho E logo surgiu também a reflexão consoladora Um arrependimento desses apenas realça o valor do presente Que presente seria se não nos pesasse um pouco nos privarmos dele De todo modo isso nos permite uma vez mais fazer uma ideia de como podem ser complicados os processos psíquicos mais despretensiosos e supostamente mais simples O sujeito se equivocou ao escre ver pôs um bis onde se pedia um für percebeu e corrigiu isso e esse pequeno erro na verdade apenas um ensaio de erro tinha muitos pressupostos e precondições dinâmicas E é claro ele não ocorreria se o material não fosse particularmente favorável 281286 Título original Die Feinheit einer Fehlleistung Publicado primeiramente em Almanach 1936 pp 1517 Traduzido de Gesammelte Werke xvi pp 379 A semelhança fonética ocorre porque o ü alemão é uma mistura de u com i como o u francês 282286 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16O EU E O ID ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO E OUTROS TEXTOS 19231925 17INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA Copyright da tradução 2010 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes xiv xv e xvi Londres Imago 1948 1940 e 1950 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fischer 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 Pássaro com cabeça de homem Egito Período Ptolomaico séc iv aC 5 14 cm Imagem de Pataikos Egito Último Período sécs viiiiv aC 3 9 cm Freud Museum Londres Preparação Célia Evandro Revisão Camila Saraiva Márcia Moura ISBN 9788580860481 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr Created by PDF to ePub
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SIGMUND FREUD O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 18 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19301936 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO 1930 NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 1933 PREFÁCIO 29 REVISÃO DA TEORIA DO SONHO 30 SONHOS E OCULTISMO 31 A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA 32 ANGÚSTIA E INSTINTOS 33 A FEMINILIDADE 34 ESCLARECIMENTOS EXPLICAÇÕES ORIENTAÇÕES 35 ACERCA DE UMA VISÃO DE MUNDO O PRÊMIO GOETHE 1930 TIPOS LIBIDINAIS 1931 SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA 1931 A CONQUISTA DO FOGO 1932 MEU CONTATO COM JOSEF POPPERLYNKEUS 1932 POR QUE A GUERRA CARTA A EINSTEIN 1932 UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE CARTA A ROMAIN ROLLAND 1936 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19301936 APRESENTAÇÃO DE THE MEDICAL REVIEW OF REVIEWS PRÓLOGO A DEZ ANOS DO INSTITUTO PSICANALÍTICO DE BERLIM O PARECER DA FACULDADE NO PROCESSO HALSMANN APRESENTAÇÃO DE ELEMENTI DI PSICOANALISI DE EDOARDO WEISS EXCERTO DE UMA CARTA A GEORG FUCHS CARTA AO PREFEITO DA CIDADE DE PˇRÍBOR APRESENTAÇÃO DE TEORIA GERAL DAS NEUROSES SOBRE BASE PSICANALÍTICA DE HERMANN NUNBERG PRÓLOGO A DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE DE RICHARD STERBA SÁNDOR FERENCZI PRÓLOGO A EDGAR POE ESTUDO PSICANALÍTICO DE MARIE BONAPARTE A THOMAS MANN EM SEU 60o ANIVERSÁRIO A SUTILEZA DE UM ATO FALHO 4286 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronológica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclarecimento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No ent anto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será composta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catá logo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtragsband Volume suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas al guns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais importantes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupa dos no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidel idade ao original sem interpretações ou interferências de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa biblio grafia sobre o tema Também informações sobre a gênese e a importância de cada obra podem ser encontradas na literatura secundária principalmente na biografia em três volumes de Ernest Jones lançada no Brasil pela Imago do Rio de Janeiro e no mencionado aparato editorial da Standard inglesa A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiuse começar por um período intermediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí pro ceder para trás e para adiante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interes sam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da pub licação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a pub licação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é 6286 fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu sig nificado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões es trangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já aparecidas em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de im por as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e per cepções da psicanálise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita Esta edição não pretende ser definitiva pelo simples motivo de que um clássico dessa natureza nunca recebe uma tradução definitiva E tendo sido planejada por alguém que se aproximou de Freud pela via da linguagem e da literatura destinase não apenas aos estudiosos e profissionais da psicanálise mas a todos aqueles que em vários continentes leem e se exprimem nessa que um grande poeta português chamou de nossa clara língua majestosa e um eminente tradutor e poeta brasileiro qualificou de portocálido brasilírico idiomaterno 7286 pcs O tradutor agradece o generoso auxílio de Caetano Veloso que durante um ano lhe permitiu se dedicar exclusivamente à tradução deste volume 8286 O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO 1930 TÍTULO ORIGINAL DAS UNBEHAGEN IN DER KULTUR PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO VIENA INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL 1930 136 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 421506 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 191270 I É difícil escapar à impressão de que em geral as pessoas usam medidas falsas de que buscam poder sucesso e riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm subestimando os autênticos valores da vida E no entanto corremos o risco num julgamento assim genérico de esquecer a variedade do mundo hu mano e de sua vida psíquica Existem homens que não deixam de ser ven erados pelos contemporâneos embora sua grandeza repouse em qualidades e realizações inteiramente alheias aos objetivos e ideais da multidão Provavel mente se há de supor que apenas uma minoria reconhece esses grandes ho mens enquanto a maioria os ignora Mas a coisa pode não ser tão simples devido à incongruência entre as ideias e os atos das pessoas e à diversidade dos seus desejos Um desses homens excepcionais se declara meu amigo em cartas que me escreveu Eu lhe enviara a pequena obra em que trato a religião como ilusão e ele respondeu que estava de acordo com o meu juízo sobre a religião mas lam entava que eu não tivesse apreciado corretamente a fonte da religiosidade Esta seria um sentimento peculiar que a ele próprio jamais abandona que ele viu confirmado por muitas pessoas e pode supor existente em milhões de outras Um sentimento que ele gostaria de denominar sensação de eternidade um sentimento de algo ilimitado sem barreiras como que oceânico Seria um fato puramente subjetivo não um artigo de fé não traz qualquer garantia de sobrevida pessoal mas seria a fonte da energia religiosa de que as diferentes Igrejas e sistemas de religião se apoderam conduzem por determinados canais e também dissipam sem dúvida Com base apenas nesse sentimento oceânico alguém poderia considerarse religioso ainda que rejeitasse toda fé e toda ilusão Tal manifestação de um amigo que reverencio e que já apreciou ele mesmo poeticamente a magia da ilusão trouxeme dificuldades de alguma monta1 Eu próprio não consigo divisar em mim esse sentimento oceânico Não é fácil trabalhar cientificamente os sentimentos Podese tentar descrever os seus sinais fisiológicos Quando isso não ocorre e receio que também o senti mento oceânico se furte a uma caracterização assim nada resta senão ater se ao conteúdo ideativo que primeiro se junta associativamente ao sentimento Se compreendi bem o meu amigo ele quer dizer o mesmo que um dramaturgo original e um tanto excêntrico ao brindar com este consolo o herói que vai se matar Para fora deste mundo não podemos cair2 Um sentimento de vincu lação indissolúvel de comunhão com todo o mundo exterior Devo dizer que para mim isso tem antes o caráter de uma percepção intelectual certamente com uma tonalidade afetiva mas tal como ela não faltaria em outros atos de pensamento de envergadura semelhante Por experiência própria não pude me convencer da natureza primária de tal sentimento Mas isso não me autoriza a questionar sua ocorrência em outros Perguntamos apenas se ela é interpretada de modo correto e se deve ser admitida como fons et origo fonte e origem de todas as necessidades religiosas Nada tenho a apresentar que possa influir decisivamente na solução desse problema A ideia de que o homem adquire noção de seu vínculo com o mundo por um sentimento imediato desde o início orientado para isso é tão estranha ajustase tão mal à trama de nossa psicologia que podemos tentar uma explicação psicanalítica isto é genética para esse sentimento A seguinte linha de pensamento se oferece Normalmente nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos de nosso Eu Este Eu nos aparece como autônomo unitário bem demarcado de tudo o mais Que esta aparência é en ganosa que o Eu na verdade se prolonga para dentro sem fronteira nítida numa entidade psíquica inconsciente a que denominamos Id à qual ele serve como uma espécie de fachada isto aprendemos somente com a pesquisa psicanalítica que ainda nos deve informar muita coisa sobre a relação entre o 11286 Eu e o Id Mas ao menos para fora o Eu parece manter limites claros e precisos Só é diferente num estado por certo extraordinário mas que não pode ser condenado como patológico No auge do enamoramento a fronteira entre Eu e objeto ameaça desaparecer Contrariando o testemunho dos sentidos o en amorado afirma que Eu e Tu são um e está preparado para agir como se assim fosse Algo que pode ser temporariamente abolido por uma função fisiológica também poderá ser transtornado por processos mórbidos A patologia nos ap resenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática ou os limites são traçados incorreta mente casos em que partes do próprio corpo e componentes da própria vida psíquica percepções pensamentos afetos nos surgem como alheios e não per tencentes ao Eu outros em que se atribui ao mundo externo o que evidente mente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele Logo também o senti mento do Eu está sujeito a transtornos e as fronteiras do Eu não são permanentes Prosseguindo na reflexão vemos que esse sentimento do Eu que tem o adulto não pode ter sido o mesmo desde o princípio Deve ter passado por uma evolução que compreensivelmente não pode ser demonstrada mas que po demos construir com certo grau de probabilidade3 O bebê lactante ainda não separa seu Eu de um mundo exterior como fonte das sensações que lhe sobre vêm Aprende a fazêlo aos poucos em resposta a estímulos diversos Deve impressionálo muito que várias das fontes de excitação em que depois recon hecerá órgãos de seu corpo possam enviarlhe sensações a qualquer momento enquanto outras entre elas a mais desejada o peito materno furtamse temporariamente a ele e são trazidas apenas por um grito requisitando ajuda É assim que ao Eu se contrapõe inicialmente um objeto como algo que se acha fora e somente através de uma ação particular é obrigado a aparecer Um outro incentivo para que o Eu se desprenda da massa de sensações para que reconheça um fora um mundo exterior é dado pelas frequentes varia das inevitáveis sensações de dor e desprazer que em sua ilimitada vigência o 12286 princípio do prazer busca eliminar e evitar Surge a tendência a isolar do Eu tudo o que pode se tornar fonte de tal desprazer a jogar isso para fora form ando um puro Eudeprazer ao qual se opõe um desconhecido ameaçador fora As fronteiras desse primitivo Eudeprazer não podem escapar à reti ficação mediante a experiência Algumas coisas a que não se gostaria de renun ciar por darem prazer não são Eu são objeto e alguns tormentos que se pre tende expulsar revelamse como inseparáveis do Eu de procedência interna Chegase ao procedimento que permite pela orientação intencional da ativid ade dos sentidos e ação muscular apropriada distinguir entre o que é interior pertencente ao Eu e o que é exterior oriundo de um mundo externo e com isto se dá o primeiro passo para a instauração do princípio da realid ade que deve dominar a evolução posterior Essa distinção serve natural mente à intenção prática de defenderse das sensações de desprazer percebidas ou das que ameaçam O fato de o Eu na defesa contra determinadas excitações desprazerosas vindas do seu interior utilizar os mesmos métodos de que se vale contra o desprazer vindo de fora tornase o ponto de partida de signific ativos distúrbios patológicos É desse modo então que o Eu se desliga do mundo externo Ou mais cor retamente no início o Eu abarca tudo depois separa de si um mundo externo Nosso atual sentimento do Eu é portanto apenas o vestígio atrofiado de um sentimento muito mais abrangente sim todoabrangente que corres pondia a uma mais íntima ligação do Eu com o mundo em torno Se é lícito supormos que esse primário sentimento do Eu foi conservado na vida psíquica de muitos homens em medida maior ou menor então ele ficaria ao lado do mais estreito e mais nitidamente limitado sentimento do Eu da época madura como uma espécie de contraparte dele e os seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o todo os mes mos com que meu amigo ilustra o sentimento oceânico Mas temos o direito de supor a sobrevivência do que é original junto ao que vem depois que se originou dele 13286 Sem dúvida Algo assim não é estranho no âmbito psíquico e tampouco em outras áreas Com relação aos animais mantemos a hipótese de que as espécies mais evoluídas procederam das mais baixas No entanto ainda hoje todas as formas simples de vida se acham presentes Os grandes sáurios se extinguiram e deram lugar aos mamíferos mas um autêntico representante daquela família o crocodilo ainda vive entre nós A analogia pode parecer remota e padece também do fato de as espécies inferiores sobreviventes não serem as verdadeir as ancestrais das mais evoluídas de hoje Em geral os elos intermediários se ex tinguiram ou são conhecidos apenas em reconstituição Já no âmbito psíquico é tão frequente a conservação do primitivo junto àquilo transformado que dele nasceu que não é preciso demonstrálo mediante exemplos Via de regra isso ocorre em consequência de uma cisão no desenvolvimento Parte de uma atit ude de um impulso instintual permaneceu inalterada enquanto outra con tinuou se desenvolvendo Com isso tocamos no problema mais geral da conservação no psíquico que quase não foi trabalhado mas é tão importante e atraente que nos é permitido lhe conceder um momento de atenção embora a ocasião não pareça justificá lo Desde que superamos o erro de achar que nosso habitual esquecimento sig nifica uma destruição do traço mnemônico tendemos à suposição contrária de que na vida psíquica nada que uma vez se formou pode acabar de que tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz em circun stâncias adequadas mediante uma regressão de largo alcance por exemplo Vamos tentar apreender o que esta suposição envolve por meio de um símile de outra área Tomemos como exemplo a evolução da Cidade Eterna4 Os his toriadores ensinam que a mais antiga Roma foi a Roma quadrata um povoa mento rodeado de cerca no monte Palatino Seguiuse então a fase do Septi montium uma federação das colônias sobre os respectivos montes depois a cidade que foi cercada pelo muro de Sérvio Túlio e ainda mais tarde após to das as transformações do tempo da república e dos primeiros césares a cidade que o imperador Aureliano encerrou com seus muros Não acompanharemos 14286 mais as mudanças sofridas pela cidade Perguntemonos agora o que um visit ante da Roma atual munido dos mais completos conhecimentos históricos e topográficos ainda encontraria desses velhos estágios Excetuando algumas brechas verá o muro de Aureliano quase intacto Em certos lugares achará trechos do muro de Sérvio trazidos à luz por escavações Se tiver suficiente in formação mais do que a presente arqueologia poderá talvez desenhar no mapa da cidade todo o traçado desse muro e o contorno da Roma quadrata Das construções que um dia ocuparam essa moldura ele achará quando muito vestígios pois elas não mais existem O melhor conhecimento da Roma repub licana lhe permitiria no máximo indicar onde se localizavam o templo e os edifícios públicos da época Nesses lugares há ruínas atualmente não das con struções mesmas porém e sim de restaurações de épocas posteriores feitas após incêndios e destruições Não é preciso dizer que esses resíduos todos da antiga Roma se acham dispersos no emaranhado de uma metrópole surgida nos últimos séculos a partir da Renascença Seguramente ainda muita coisa antiga se acha enterrada no solo da cidade ou sob as construções modernas É assim que para nós se preserva o passado em sítios históricos como Roma Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não seja uma morada humana mas uma entidade psíquica com um passado igualmente longo e rico na qual nada que veio a existir chegou a perecer na qual juntamente com a úl tima fase de desenvolvimento todas as anteriores continuam a viver Isto sig nifica que em Roma os palácios dos césares e o Septizonium de Sétimo Severo ainda se ergueriam sobre o Palatino que o Castelo de SantAngelo ainda mostraria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a invasão dos godos etc Mais ainda que no lugar do palácio Caffarelli estaria novamente sem que fosse preciso retirar essa construção o templo de Júpiter Capitolino e este não apenas em seu último aspecto tal como o viam os romanos da época imperial mas também naqueles mais antigos quando ainda apresentava formas etruscas e era ornado de antefixas de terracota Onde agora está o Coliseu poderíamos admirar também a desaparecida Domus Aurea de Nero 15286 na Piazza della Rotonda veríamos não só o atual Panteão como nos foi deix ado por Adriano mas também a construção original de Agripa e o mesmo solo suportaria a igreja de Maria Sopra Minerva e o velho templo sobre o qual ela está erguida Nisso bastaria talvez que o observador mudasse apenas a direção do olhar ou a posição para obter uma ou outra dessas visões Evidentemente não há sentido em continuar tecendo essa fantasia que leva ao inimaginável ao absurdo mesmo Quando queremos representar espacial mente o suceder histórico isso pode se dar apenas com a justaposição no es paço um mesmo espaço não admite ser preenchido duas vezes Nossa tent ativa parece uma brincadeira ociosa ela tem uma justificação apenas mostra nos como estamos longe de dominar as peculiaridades da vida psíquica por meio da representação visual Há uma objeção que devemos ainda levar em conta Pode nos ser question ado por que escolhemos justamente o passado de uma cidade para fazer a com paração com o passado psíquico Também para a vida psíquica a hipótese da conservação de tudo o que passou vale apenas na condição de que o órgão da psique tenha permanecido intacto de que seus tecidos não tenham sido afeta dos por trauma ou inflamação Mas interferências destruidoras que poder íamos equiparar a essas causas de doença não faltam na história de nenhuma cidade mesmo se ela teve um passado menos agitado que Roma mesmo se ela como Londres jamais foi devastada por um inimigo Ainda a evolução mais pacífica de uma cidade implica demolições e substituições de prédios o que em princípio a torna inadequada para essa comparação com um organismo psíquico Nós nos rendemos a esta objeção e renunciando a um formidável contraste voltamonos para um objeto de comparação que em todo caso é mais afim o corpo humano ou animal Mas também aí deparamos com a mesma dificuldade As fases anteriores do desenvolvimento não são conserva das em nenhum sentido desfazemse nas posteriores às quais forneceram o material Não se pode ver o embrião no adulto a glândula do timo que a 16286 criança possui é substituída por tecido conjuntivo após a puberdade deixando ela mesma de existir no osso largo do homem adulto podemos desenhar o contorno do osso infantil mas este desapareceu ao se estirar e adensar até at ingir sua forma final O fato é que a conservação de todos os estágios anteri ores ao lado da configuração definitiva é possível apenas no âmbito psíquico e não temos como representar visualmente esse fenômeno Talvez levemos longe demais esta suposição Talvez devêssemos nos con tentar em afirmar que o que passou pode ficar conservado na vida psíquica não tem necessariamente que ser destruído De toda maneira é possível que também na psique elementos antigos sejam apagados ou consumidos via de regra ou excepcionalmente a tal ponto que não mais possam ser reanimados e restabelecidos ou que em geral a conservação dependa de certas condições fa voráveis É possível mas nada sabemos a respeito Podemos tão só nos ater ao fato de que a conservação do passado na vida psíquica é antes a regra do que a surpreendente exceção Se estivermos assim dispostos a reconhecer que em muitos homens há um sentimento oceânico e inclinados a fazêlo remontar a uma fase primitiva do sentimento do Eu surge uma nova questão que direito tem esse sentimento de ser visto como a fonte das necessidades religiosas Para mim esse direito não é seguro Um sentimento pode ser uma fonte de energia apenas quando é ele mesmo expressão de uma forte necessidade Quanto às necessidades religiosas pareceme irrefutável a sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por ele tanto mais que este sentimento não se prolonga simplesmente desde a época infantil mas é duradouramente conservado pelo medo ante o superior poder do destino Eu não saberia indicar uma necessidade vinda da infância que seja tão forte quanto a de proteção paterna Desse modo o papel do sentimento oceânico que po deria buscar o restabelecimento do narcisismo ilimitado é excluído do primeiro plano Podemos rastrear a origem da atitude religiosa em claros 17286 contornos até o sentimento do desamparo infantil Talvez se encontre algo mais nisso mas atualmente está envolto em névoas Posso imaginar que o sentimento oceânico tenha se vinculado à religião posteriormente Este serum com o universo que é o seu conteúdo ideativo apresentasenos como uma tentativa inicial de consolação religiosa como um outro caminho para negar o perigo que o Eu percebe a ameaçálo do mundo exterior Confesso uma vez mais que me é bastante difícil trabalhar com tais grandezas quase inapreensíveis Um outro amigo ao qual um insaciável afã de saber impeliu às mais incomuns experiências terminando por transformálo num sabetudo asseguroume que nas práticas da ioga com o afastarse do mundo exterior o fixar a atenção nas funções do corpo com métodos especiais de respiração podese realmente despertar em si novas sensações e sentimen tos de universalidade que ele apreende como regressões a estados arcaicos da vida psíquica há muito tempo cobertos Enxerga neles um fundamento fisioló gico por assim dizer de muitas sabedorias da mística Nesse ponto se ofere ceriam nexos com obscuras modificações da vida psíquica como o transe e o êxtase Quanto a mim sintome levado a exclamar com o mergulhador de Schiller Alegrese Quem aí respira na luz rósea II Em O futuro de uma ilusão eu estava menos interessado nas fontes profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição e de outro lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra 18286 existência as eventuais frustrações desta Essa Providência o homem comum só pode imaginar como um pai grandiosamente elevado Apenas um ser assim é capaz de conhecer as necessidades da criatura humana de ceder a seus rogos e ser apaziguado por seu arrependimento Tudo isso é tão claramente infantil tão alheio à realidade que para alguém de atitude humanitária é doloroso pensar que a grande maioria dos mortais nunca se porá acima desta concepção de vida Ainda mais vergonhoso é constatar que um bom número de contem porâneos embora percebendo como é insustentável essa religião procuram defendêla palmo a palmo numa lamentável retirada Quase nos juntaríamos às fileiras de crentes para lembrar a advertência Não invoquem o santo nome do Senhor em vão aos filósofos que acreditam salvar o Deus da religião substituindoo por um princípio impessoal espectralmente abstrato Se alguns dos maiores espíritos de tempos passados fizeram o mesmo não se pode invocálos neste ponto Sabemos por que tinham que fazêlo Voltemos ao homem comum e à sua religião a única que deveria ter esse nome Então nos ocorrem as conhecidas palavras de um dos nossos grandes poetas e sábios ao se manifestar sobre os laços da religião com a arte e a ciên cia Elas dizem Quem tem ciência e arte tem também religião Quem essas duas não tem esse tenha religião5 Por um lado a religião é aí colocada em oposição às duas maiores realiza ções do ser humano por outro lado afirmase que ela pode representar ou substituir ambas no que toca ao valor para a vida Se quisermos privar o homem comum de sua religião tudo indica que não teremos a nosso favor a autoridade do poeta Tentaremos um caminho particular para a apreciação do seu dito A vida tal como nos coube é muito difícil para nós traz demasiadas 19286 dores decepções tarefas insolúveis Para suportála não podemos dispensar paliativos Sem construções auxiliares não é possível disse Theodor Font ane Existem três desses recursos talvez poderosas diversões que nos per mitem fazer pouco de nossa miséria gratificações substitutivas que a di minuem e substâncias inebriantes que nos tornam insensíveis a ela Algo desse gênero é imprescindível6 É para as distrações que aponta Voltaire ao terminar seu Cândido com a sugestão de cada qual cultivar seu jardim uma tal distração é também a atividade científica As gratificações substitutivas tal como a arte as oferece são ilusões face à realidade nem por isso menos eficazes psiquicamente graças ao papel que tem a fantasia na vida mental Os entorpecentes influem sobre nosso corpo mudam a sua química Não é fácil ver o lugar da religião nesta série Teremos que lançar mais longe o olhar A questão da finalidade da vida humana já foi posta inúmeras vezes Jamais encontrou resposta satisfatória e talvez não a tenha sequer Muitos dos que a puseram acrescentaram se a vida não tiver finalidade perderá qualquer valor Mas esta ameaça nada altera Parece isto sim que temos o direito de rejeitar a questão O seu pressuposto parece ser aquela humana soberba de que já con hecemos tantos exemplos Ninguém fala sobre a finalidade da vida dos ani mais a menos que ela consista em servir aos homens talvez Mas isso também não é sustentável pois com muitos animais o ser humano não sabe o que fazer exceto descrevêlos classificálos estudálos e inúmeras espécies ani mais se furtaram também a este uso ao viver e se extinguir antes que o homem as visse Novamente apenas a religião sabe responder à questão sobre a final idade da vida Dificilmente erramos ao concluir que a ideia de uma finalidade na vida existe em função do sistema religioso Então passaremos à questão menos ambiciosa o que revela a própria con duta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar É difícil não acertar a resposta eles buscam a felicidade querem se tornar e permanecer felizes Essa busca tem dois lados 20286 uma meta positiva e uma negativa quer a ausência de dor e desprazer e por outro lado a vivência de fortes prazeres No sentido mais estrito da palavra felicidade se refere apenas à segunda Correspondendo a essa divisão das metas a atividade dos homens se desdobra em duas direções segundo procure realizar uma ou outra dessas metas predominantemente ou mesmo exclusivamente Como se vê é simplesmente o programa do princípio do prazer que es tabelece a finalidade da vida Este princípio domina o desempenho do aparelho psíquico desde o começo não há dúvidas quanto a sua adequação mas seu programa está em desacordo com o mundo inteiro tanto o macrocosmo como o microcosmo É absolutamente inexequível todo o arranjo do Universo o contraria podemos dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da Criação Aquilo a que chamamos felicidade no sentido mais estrito vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem prosseguimento isto resulta apenas em um morno bemestar somos feitos de modo a poder fruir in tensamente só o contraste muito pouco o estado7 Logo nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição É bem menos difícil ex perimentar a infelicidade O sofrer nos ameaça a partir de três lados do próprio corpo que fadado ao declínio e à dissolução não pode sequer dis pensar a dor e o medo como sinais de advertência do mundo externo que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas inexoráveis destruidoras e por fim das relações com os outros seres humanos O sofrimento que se ori gina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro tendemos a considerálo um acréscimo um tanto supérfluo ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem Não é de admirar que sob a pressão destas possibilidades de sofrimento os indivíduos costumem moderar suas pretensões à felicidade assim como também o princípio do prazer se converteu no mais modesto princípio da 21286 realidade sob a influência do mundo externo se alguém se dá por feliz ao escapar à desgraça e sobreviver ao tormento se em geral a tarefa de evitar o sofrer impele para segundo plano a de conquistar o prazer A reflexão ensina que podemos tentar a solução dessa tarefa por caminhos bem diferentes todos eles foram recomendados pelas escolas de sabedoria de vida e foram trilhados pelos homens A satisfação irrestrita de todas as necessidades se apresenta como a maneira mais tentadora de conduzir a vida mas significa pôr o gozo à frente da cautela trazendo logo o seu próprio castigo Os outros métodos nos quais evitar o desprazer é a intenção predominante se diferenciam conforme a fonte de desprazer a que mais dirigem a atenção Alguns são extremos outros moderados alguns são unilaterais e outros atacam vários pontos simultanea mente O deliberado isolamento o afastamento dos demais é a salvaguarda mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas Compreendese a felicidade que se pode alcançar por essa via é a da quietude Contra o temido mundo externo o indivíduo só pode se defender por algum tipo de distanciamento querendo realizar sozinho essa tarefa É verdade que existe outro caminho melhor enquanto membro da comunidade humana e com o auxílio da técnica oriunda da ciência proceder ao ataque à natureza submetendoa à vontade humana Então se trabalha com todos para a felicid ade de todos Mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio organismo Pois todo sofrimento é apenas sensação existe somente na medida em que o sentimos e nós o senti mos em virtude de certos arranjos de nosso organismo O método mais cru mas também mais eficaz de exercer tal influência é o químico a intoxicação Não creio que alguém penetre inteiramente no seu mecanismo mas é fato que há substâncias de fora do corpo que uma vez presentes no sangue e nos tecidos produzem em nós sensações imediatas de prazer e também mudam de tal forma as condições de nossa sensibilidade que nos tornamos incapazes de acolher impulsos desprazerosos Os dois efeitos não só acontecem ao mesmo tempo como parecem intimamente ligados Mas deve 22286 haver na química de nosso corpo substâncias que realizam algo semelhante pois conhecemos ao menos um estado patológico a mania em que se produz esse comportamento análogo à embriaguez sem ter havido ingestão de estu pefaciente Além disso nossa vida psíquica normal mostra oscilações entre uma maior ou menor dificuldade em experimentar prazer paralelamente às quais há uma receptividade acentuada ou diminuída ao desprazer É muito lamentável que esse lado tóxico dos processos psíquicos tenha até agora es capado à exploração científica O serviço dos narcóticos na luta pela felicidade e no afastamento da miséria é tão valorizado como benefício que tanto indiví duos como povos lhes reservaram um sólido lugar em sua economia libidinal A eles se deve não só o ganho imediato de prazer mas também uma parcela muito desejada de independência em relação ao mundo externo Sabese que com ajuda do afastatristeza podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer momento e encontrar refúgio num mundo próprio que tenha mel hores condições de sensibilidade É notório que justamente essa característica dos entorpecentes determina também o seu perigo e nocividade Em algumas circunstâncias eles são culpados pelo desperdício de grandes quantidades de energia que poderiam ser usadas na melhoria da sorte humana Mas a complicada estrutura de nosso aparelho psíquico também admite um bom número de outras influências Do mesmo modo que a satisfação de instin tos é felicidade tornase causa de muito sofrer se o mundo exterior nos deixa à míngua recusandose a nos saciar as carências Então é possível esperar que agindo sobre esses impulsos instintuais fiquemos livres de uma parte do so frer Esse tipo de defesa contra o sofrimento já não lida com o aparelho sen sorial busca dominar as fontes internas das necessidades De modo extremo isso ocorre ao se liquidar os instintos como prega a sabedoria do Oriente e como praticam os iogues Tendose conseguido isso também qualquer outra atividade foi abandonada e a vida sacrificada e novamente se adquiriu por outro meio apenas a felicidade da quietude Seguese o mesmo caminho quando os objetivos são mais moderados ao se procurar apenas o governo dos 23286 instintos Então governam as instâncias psíquicas mais elevadas que se sub meteram ao princípio da realidade Com isso o propósito da satisfação não é absolutamente abandonado uma certa proteção contra o sofrer é alcançada pois a não satisfação dos instintos subjugados não é sentida tão dolorosamente como a dos não inibidos Em troca há uma inegável diminuição das potencial idades de fruição A sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem não domado pelo Eu é incomparavelmente mais forte do que a ob tida ao saciar um instinto domesticado O caráter irresistível dos impulsos perversos talvez o fascínio mesmo do que é proibido tem aqui uma explicação econômica Outra técnica de afastar o sofrimento recorre aos deslocamentos da libido que nosso aparelho psíquico permite através dos quais sua função ganha muito em flexibilidade A tarefa consiste em deslocar de tal forma as metas dos instintos que eles não podem ser atingidos pela frustração a partir do mundo externo A sublimação dos instintos empresta aqui sua ajuda O melhor res ultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual Então o destino não pode fazer muito contra o indivíduo A satisfação desse gênero como a alegria do artista no criar ao dar corpo a suas fantasias a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade tem uma qualidade especial que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente Agora podemos dizer apenas de modo figurado que ela nos parece mais fina e elevada mas a sua intensidade é amortecida comparada à satisfação de impulsos instintuais grosseiros e primários ela não nos abala fisicamente A fraqueza desse méto do porém está em não ser de aplicação geral no fato de poucos lhe terem acesso Ele pressupõe talentos e disposições especiais que não se acham presentes em medida eficaz Também a esses poucos ele não pode assegurar completa proteção do sofrimento não lhes proporciona um escudo impenet rável aos dardos do destino e costuma falhar quando o próprio corpo é a fonte do sofrer8 24286 Se já neste procedimento é nítida a intenção de tornarse independente do mundo exterior buscando suas satisfações em processos internos psíquicos as mesmas características surgem mais fortemente no próximo Nele o vínculo com a realidade é ainda mais frouxo a satisfação é obtida de ilusões que a pess oa reconhece como tais sem que a discrepância entre elas e a realidade lhe per turbe a fruição O âmbito de que se originam tais ilusões é aquele da vida da fantasia quando ocorreu o desenvolvimento do sentido da realidade ele foi expressamente poupado do teste da realidade e ficou destinado à satisfação de desejos dificilmente concretizáveis Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição de obras de arte que por intermédio do artista se torna acessível também aos que não são eles mesmos criadores9 Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente como fonte de prazer e con solo para a vida Mas a suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real Mais enérgico e mais radical é um outro procedimento que enxerga na realidade o único inimigo a fonte de todo sofrimento com a qual é impossível viver e com a qual portanto devemse romper todos os laços para ser feliz em algum sentido O eremita dá as costas a este mundo nada quer saber dele Mas podese fazer mais podese tentar refazêlo construir outro em seu lugar no qual os aspectos mais intoleráveis sejam eliminados e substituídos por out ros conformes aos próprios desejos O indivíduo que em desesperada revolta encetar este caminho para a felicidade normalmente nada alcançará a realid ade é forte demais para ele Tornase um louco que em geral não encontra quem o ajude na execução de seu delírio Mas dizse que cada um de nós em algum ponto age de modo semelhante ao paranoico corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade É de particular importância o caso em que grande número de pess oas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade Devemos 25286 caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade Naturalmente quem partilha o delírio jamais o percebe Não acredito que seja completa essa enumeração dos métodos pelos quais os homens se esforçam em obter a felicidade e manter à distância o sofrer e sei também que o material admite uma outra ordenação Um desses procedimen tos ainda não mencionei não que o tenha esquecido mas porque nos ocupare mos dele ainda em outro contexto E como seria possível esquecer justamente essa técnica da arte de viver Ela se distingue pela combinação muito peculiar de características diversas Claro que também procura a independência face ao destino o melhor nome a se usar e com esse propósito localiza a satis fação em processos psíquicos internos valendose aí do mencionado caráter deslocável da libido mas não se afasta do mundo exterior agarrase aos seus objetos pelo contrário e obtém felicidade de uma relação afetiva para com eles Também não se dá por satisfeita com evitar o desprazer uma meta di gamos de cansada resignação mas ignora isto e se apega ao esforço origin al apaixonado por uma realização positiva da felicidade Talvez ela realmente se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método Estou falando claro daquela orientação de vida que tem o amor como centro que espera toda satisfação do amar e ser amado Essa atitude psíquica é familiar a todos nós uma das formas de manifestação do amor o amor sexual nos proporcion ou a mais forte experiência de uma sensação de prazer avassaladora dandonos assim o modelo para nossa busca da felicidade Nada mais natural do que insi stirmos em procurála no mesmo caminho em que a encontramos primeiro O lado frágil dessa técnica de vida é patente senão a ninguém ocorreria aban donar esse caminho por outro Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofri mento do que quando amamos nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor Mas com isso não encer ramos o tema da técnica de vida baseada no valor de felicidade do amor haverá muito mais a dizer sobre isso 26286 Aqui podemos transitar para o caso interessante em que a felicidade na vida é buscada sobretudo no gozo da beleza onde quer que ela se mostre a nossos sentidos e nosso julgamento a beleza das formas e dos gestos humanos de ob jetos naturais e de paisagens de criações artísticas e mesmo científicas Essa at itude estética para com o objetivo da vida não oferece muita proteção contra a ameaça do sofrer mas compensa muitas coisas A fruição da beleza tem uma qualidade sensorial peculiar suavemente inebriante Não há utilidade evidente na beleza nem se nota uma clara necessidade cultural para ela no entanto a civilização não poderia dispensála A ciência da estética investiga as condições em que o belo é percebido sobre a natureza e origem da beleza ela nada pôde esclarecer como de hábito o insucesso é escondido numa prodigalidade de pa lavras altissonantes e pobres de sentido Infelizmente tampouco a psicanálise tem muito a dizer sobre a beleza O que parece fora de dúvida é apenas a de rivação do terreno das sensações sexuais seria um exemplo perfeito de um im pulso inibido em sua meta A beleza e a atração originalmente são carac terísticas do objeto sexual É digno de nota que os genitais mesmos cuja visão tem efeito excitador quase nunca sejam tidos como belos enquanto a qualid ade da beleza parece ligada a certas características sexuais secundárias Apesar dessa incompletude de nossa investigação arriscome a fazer algu mas observações conclusivas O programa de ser feliz que nos é imposto pelo princípio do prazer é irrealizável mas não nos é permitido ou melhor não somos capazes de abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta a obtenção de prazer ou ao negativo evitar o desprazer Em nenhum desses caminhos po demos alcançar tudo o que desejamos No sentido moderado em que é ad mitida como possível a felicidade constitui um problema da economia libidinal do indivíduo Não há aqui um conselho válido para todos cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz Fatores os mais variados atu arão para influir em sua escolha Depende de quanta satisfação real ele pode 27286 esperar do mundo exterior e de até que ponto é levado a fazerse independente dele e também afinal de quanta força ele se atribui para modificálo con forme seus desejos Já neste ponto a constituição psíquica do indivíduo à parte as circunstâncias externas será decisiva Aquele predominantemente erótico dará prioridade às relações afetivas com outras pessoas o narcisista inclinado à autossuficiência buscará as satisfações principais em seus eventos psíquicos internos o homem de ação não largará o mundo externo no qual pode testar sua força Para o segundo desses tipos a natureza de seus dons e a medida de sublimação instintual que lhe é possível determinarão onde colocará seus in teresses Toda decisão extrema terá como castigo o fato de expor o indivíduo aos perigos inerentes a uma técnica de vida adotada exclusivamente e que se revele inadequada Assim como o negociante cauteloso evita imobilizar todo o seu capital numa só coisa também a sabedoria aconselhará talvez a não esperar toda satisfação de uma única tendência O êxito jamais é seguro depende da conjunção de muitos fatores e de nenhum mais talvez que da capacidade da constituição psíquica para adaptar sua função ao meio e aproveitálo para con quistar prazer Quem possuir uma constituição libidinal particularmente desfa vorável e não tiver passado apropriadamente pela transformação e reorde nação de seus componentes libidinais imprescindível para realizações posteri ores terá problema em obter felicidade da sua situação externa ainda mais quando for colocado frente a tarefas mais difíceis A última técnica de vida que ao menos lhe promete satisfações substitutivas é a fuga para a doença neurótica que em geral ele empreende ainda jovem O indivíduo que numa id ade posterior fracassa nos esforços pela felicidade encontra ainda consolo no prazer obtido por meio da intoxicação crônica ou faz a desesperada tentativa de rebelião que é a psicose10 A religião estorva esse jogo de escolha e adaptação ao impor igualmente a todos o seu caminho para conseguir felicidade e guardarse do sofrimento Sua técnica consiste em rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a im agem do mundo real o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência 28286 A este preço pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual Mas pouco mais que isso Existem como dissemos muitos camin hos que podem levar à felicidade tal como é acessível ao ser humano mas nenhum que a ela conduza seguramente Tampouco a religião pode manter sua promessa Quando o crente se vê finalmente obrigado a falar dos inescrutá veis desígnios do Senhor está admitindo que lhe restou como última possib ilidade de consolo e fonte de prazer no sofrimento apenas a submissão incon dicional E se está disposto a isso provavelmente poderia ter se poupado o rodeio III Até agora nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou muita coisa que já não fosse conhecida E se lhe dermos prosseguimento perguntando por que é tão difícil para os homens serem felizes a perspectiva de aprender algo novo também não parece grande Já demos a resposta ao indicar as três fontes de onde vem o nosso sofrer a prepotência da natureza a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família no Estado e na sociedade No tocante às duas primeiras nosso julga mento não tem por que hesitar ele nos obriga ao reconhecimento dessas fontes do sofrer e à rendição ao inevitável Nunca dominaremos completamente a natureza e nosso organismo ele mesmo parte dessa natureza será sempre uma construção transitória limitada em adequação e desempenho Tal conheci mento não produz um efeito paralisante pelo contrário ele mostra à nossa atividade a direção que deve tomar Se não podemos abolir todo o sofrer po demos abolir parte dele e mitigar outra parte uma experiência milenar nos convenceu disso Temos outra atitude para com a terceira fonte de sofrimento a social Esta não queremos admitir não podendo compreender por que as 29286 instituições por nós mesmos criadas não trariam bemestar e proteção para to dos nós Contudo se lembrarmos como fracassamos justamente nessa parte da prevenção do sofrimento nasce a suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza indomável desta vez da nossa própria constituição psíquica Começando a nos ocupar dessa possibilidade deparamos com uma afirm ação tão espantosa que é preciso nos determos nela Ela diz que boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primit ivas A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido como quer que se defina o conceito de civilização que tudo aquilo com que nos prote gemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização Como é que tantas pessoas chegaram a partilhar esse ponto de vista de sur preendente hostilidade à civilização Acho que uma profunda duradoura in satisfação com o estado civilizacional existente preparou o solo no qual em de terminadas ocasiões históricas formouse uma condenação Acredito recon hecer a última e a penúltima dessas ocasiões não sou erudito o bastante para seguir o seu encadeamento muito longe na história da humanidade Um fator assim hostil à civilização já devia estar presente na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs Estava ligado à depreciação da vida terrena efetuada pela doutrina cristã A penúltima ocasião se deu quando no esteio das viagens de descobrimento estabelecemos contato com tribos e povos primitivos Devido à observação insuficiente e à compreensão equivocada de seus usos e costumes eles pareceram aos europeus levar uma vida simples feliz de par cas necessidades inatingível para os visitantes culturalmente superiores A ex periência posterior corrigiu vários julgamentos dessa ordem em muitos casos se atribuíra erradamente à ausência de complicadas exigências culturais uma maior facilidade no viver que realmente se devia à generosidade da natureza e à comodidade na satisfação das grandes necessidades A última ocasião nos é bem familiar surgiu ao tomarmos conhecimento do mecanismo das neuroses que ameaçam minar o pouco de felicidade que tem o homem civilizado 30286 Descobriuse que o homem se torna neurótico porque não pode suportar a me dida de privação que a sociedade lhe impõe em prol de seus ideais culturais e concluiuse então que se estas exigências fossem abolidas ou bem atenuadas isto significaria um retorno a possibilidades de felicidade Um outro fator de decepção juntase a estes Nas últimas gerações a hu manidade fez progressos extraordinários nas ciências naturais e em sua ap licação técnica consolidando o domínio sobre a natureza de um modo antes inimaginável Os pormenores desses progressos são conhecidos não é mister enumerálos Os homens estão orgulhosos dessas realizações e têm direito a isso Mas eles parecem haver notado que esta recémadquirida disposição de espaço e de tempo esta submissão das forças naturais concretização de um an seio milenar não elevou o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida não os fez se sentirem mais felizes Dessa constatação deveríamos concluir apenas que o poder sobre a natureza não é a condição única da felicidade hu mana assim como não é o único objetivo dos esforços culturais e não que os progressos da técnica não tenham valor nenhum para a economia de nossa feli cidade Podemos objetar não é um positivo ganho de prazer um inequívoco aumento na sensação de felicidade se sou capaz de ouvir a qualquer momento a voz do filho que mora a centenas de quilômetros de distância se logo após o desembarque do amigo posso saber que ele suportou bem a longa e penosa viagem Não significa nada o fato de a medicina haver conseguido reduzir ex traordinariamente a mortalidade dos bebês o perigo de infecção nas mulheres que dão à luz e prolongar consideravelmente a duração média de vida do homem civilizado E a esses benefícios que devemos à tão vilipendiada era do avanço técnico e científico podese ainda acrescentar toda uma série Mas aqui se ergue a voz da crítica pessimista lembrando que a maioria dessas satis fações segue o modelo do prazer barato que é louvado numa certa anedota Ele consiste em pôr fora da coberta uma perna despida numa noite fria de in verno e em seguida guardála novamente Não havendo estradas de ferro para vencer as distâncias o filho jamais deixaria a cidade natal não seria necessário 31286 o telefone para ouvirlhe a voz Sem os navios transatlânticos o amigo não empreenderia a viagem e eu não precisaria do telégrafo para acalmar minha inquietação por ele De que nos serve a diminuição da mortalidade infantil se justamente ela nos força a conter enormemente a procriação de sorte que afi nal não criamos mais filhos do que nos tempos anteriores ao domínio da higiene mas por outro lado dificultamos muito a nossa vida sexual no casamento e provavelmente contrariamos a benéfica seleção natural E enfim de que nos vale uma vida mais longa se ela for penosa pobre em alegrias e tão plena de dores que só poderemos saudar a morte como uma redenção Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização mas é difícil julgar se e em que medida os homens de épocas anteriores sentiramse mais felizes e que papel desempenharam nisto suas condições cul turais Sempre nos inclinaremos a apreender nossa miséria objetivamente isto é a nos transportar para tais condições com as nossas exigências e suscetibilid ades para então examinar que ocasiões nelas veríamos para experimentar feli cidade ou infelicidade Este modo de consideração que parece objetivo porque abstrai das variações da sensibilidade subjetiva é naturalmente o mais subjetivo que pode haver ao colocar a nossa própria constituição psíquica no lugar de todas as outras que não conhecemos Mas a felicidade é algo inteira mente subjetivo Por mais que nos arrepiemos ante determinadas situações a do antigo escravo nas galés do camponês na Guerra dos Trinta Anos da ví tima da Sagrada Inquisição do judeu à espera do pogrom é para nós im possível nos sentirmos na pele dessa gente intuir as mudanças que o torpor original o gradual entorpecimento a cessação de expectativas as maneiras mais finas e mais grosseiras de narcotização provocaram na suscetibilidade para sensações de prazer e desprazer Na possibilidade de dor extrema também passam a agir dispositivos psíquicos especiais de proteção Não me parece fecundo levar adiante esse aspecto do problema É hora de nos voltarmos para a essência desta civilização cujo valor para a felicidade é posto em dúvida Não vamos requerer uma fórmula que expresse 32286 tal essência em poucas palavras antes mesmo que nossa investigação nos en sine algo Bastanos então repetir11 que a palavra civilização designa a in teira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais e que servem para dois fins a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si Para maior clareza vamos reunir os traços característicos da civilização tal como se apresentam nas sociedades humanas Nisso não hesitaremos em nos deixar guiar pelo uso corrente da língua ou como também se diz pelo sentimento da língua confiando em que assim faremos justiça a intu ições que ainda se furtam à expressão em palavras abstratas O começo é fácil Vemos como culturais todas as atividades e valores que são úteis para o ser humano colocando a terra a seu serviço protegendoo da violência das forças naturais etc Sobre esse aspecto do que é cultural não parece haver dúvida Se voltamos suficientemente atrás no tempo os primeir os atos culturais foram o uso de instrumentos o domínio sobre o fogo a con strução de moradias Entre eles sobressai o domínio do fogo realização ex traordinária e sem precedente12 com os outros o homem iniciou caminhos que desde então nunca deixou de seguir e cujo estímulo primordial não é difícil imaginar Com todos os seus instrumentos ele aperfeiçoa os seus órgãos tanto motores como sensoriais ou elimina os obstáculos para o desempenho deles Os motores lhe colocam à disposição imensas energias que tal como seus músculos ele pode empregar em qualquer direção os navios e os aviões não deixam que a água e o ar lhe impeçam a movimentação Com os óculos ele corrige as falhas da lente de seu olho com o telescópio enxerga a enormes dis tâncias com o microscópio supera as fronteiras da visibilidade que foram de marcadas pela estrutura de sua retina Com a câmera fotográfica ele criou um instrumento que guarda as fugidias impressões visuais o que o disco de gramofone também faz com as igualmente transitórias impressões sonoras no fundo os dois são materializações da sua faculdade de lembrar de sua memória Com o auxílio do telefone ele ouve bem longe de distâncias que 33286 seriam tidas por inalcançáveis até mesmo em contos de fadas a escrita é na sua origem a linguagem do ausente e a casa um sucedâneo do útero materno a primeira e ainda provavelmente a mais ansiada moradia na qual ele estava seguro e sentiase bem Não apenas parece um conto de fadas é mesmo o cumprimento de todos os não da maioria dos desejos dos contos isso que o homem por meio de sua ciência e técnica realizou nesta Terra onde ele surgiu primeiramente como um fraco animal e onde cada indivíduo de sua espécie tem que novamente en trar oh inch of nature como uma desamparada criança de peito Todo esse patrimônio ele pode reivindicar como aquisição cultural Há tempos ele havia formado uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses Atribuiulhes tudo o que parecia inatingível para seus desejos ou que lhe era proibido Podese então dizer que os deuses eram ideais cul turais Agora ele aproximouse bastante desse ideal tornouse ele próprio quase um deus Claro que apenas na medida em que os ideais no julgamento geral dos homens costumam ser alcançados Não inteiramente em alguns pontos de modo algum em outros somente em parte O ser humano tornou se por assim dizer uma espécie de deus protético realmente admirável quando coloca todos os seus órgãos auxiliares mas estes não cresceram com ele e ocasionalmente lhe dão ainda muito trabalho Ele tem o direito de consolarse porém com o fato de que essa evolução não terminará justamente no ano da graça de 1930 Épocas futuras trarão novos inimagináveis pro gressos nesse âmbito da cultura aumentarão mais ainda a semelhança com Deus Mas não devemos esquecer no interesse de nossa investigação que o homem de hoje não se sente feliz com esta semelhança Portanto reconhecemos o alto nível cultural de um país quando vemos que nele se cultiva e adequadamente se providencia tudo o que serve para a explor ação da Terra pelo homem e para a proteção dele frente às forças da natureza em suma tudo o que lhe é proveitoso Em tal país os rios que ameaçam 34286 inundar as terras têm seus cursos regulados e suas águas são conduzidas por canais até os lugares que delas necessitam O solo é cuidadosamente trabal hado e plantado com a vegetação que lhe for apropriada os tesouros minerais das profundezas são extraídos com diligência e usados na fabricação dos in strumentos e aparelhos necessitados Os meios de transporte são abundantes rápidos e confiáveis os animais selvagens e perigosos se encontram extermina dos e prospera a criação daqueles domesticados Mas nós requeremos ainda outras coisas da civilização e é digno de nota que esperemos vêlas realizadas nos mesmos países Como se estivéssemos negando a exigência feita em primeiro lugar saudamos também como civilizado o fato de as pessoas se pre ocuparem com coisas que absolutamente não são úteis que antes parecem in úteis por exemplo quando numa cidade os parques necessários como áreas de lazer e reservatórios de ar possuem também canteiros de flores ou quando as janelas das casas são adornadas com vasos de flores Logo notamos que a coisa inútil que esperamos ver apreciada na civilização é a beleza Exigimos que o homem civilizado venere a beleza onde quer que ela lhe surja na natureza e que a produza em objetos na medida em que for capaz de fazêlo Isso está longe de esgotar o que reivindicamos da civilização Requeremos ainda ver sinais de limpeza e ordem Não achamos que tivesse alto nível de civilização uma cidade inglesa do tempo de Shakespeare quando lemos que diante da casa de seu pai em Stratford havia um monte de esterco nós nos indignamos e tachamos de bárbaro que é o contrário de civilizado quando vemos sujos de papéis os caminhos do Bosque de Viena A sujeira de qualquer tipo nos parece inconciliável com a civilização estendemos para o corpo humano a exigência de limpeza ouvimos espantados que a pessoa do Roi Soleil exalava um cheiro péssimo e balançamos a cabeça quando na Isola Bella mostram nos a pequenina bacia que Napoleão usava na toalete matinal Não nos sur preendemos se alguém coloca o uso do sabão como medida direta do grau de civilização O mesmo sucede com a ordem que tal como a limpeza está lig ada inteiramente à obra humana Mas enquanto não podemos esperar que 35286 predomine a limpeza na natureza a ordem pelo contrário nós copiamos dela A observação das grandes regularidades astronômicas deu ao ser humano não apenas o modelo mas os primeiros pontos de partida para a introdução da or dem na sua vida A ordem é uma espécie de compulsão de repetição que uma vez estabelecida resolve quando onde e como algo deve ser feito de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico O benefício da ordem é inegável ela permite ao ser humano o melhor aproveitamento de espaço e tempo enquanto poupa suas energias psíquicas Seria justo esperar que se im pusesse à atividade humana desde o princípio sem dificuldades e é de espantar que isto não aconteça que as pessoas manifestem um pendor natural à neg ligência irregularidade e frouxidão no trabalho e a duras penas tenham de ser educadas na imitação dos modelos celestes Beleza limpeza e ordem ocupam claramente um lugar especial entre as exigências culturais Ninguém dirá que elas são importantes para a vida como o domínio das forças naturais e outros fatores que ainda veremos mas nin guém as porá em segundo plano como coisas acessórias O fato de a civiliza ção não considerar apenas o que é útil já se mostra no exemplo da beleza que não desejamos ver excluída dos interesses da civilização A vantagem da or dem é evidente quanto à limpeza devemos considerar que é também re querida pela higiene e podemos conjecturar que esse nexo não era inteira mente desconhecido antes da época de prevenção científica das doenças Mas a utilidade não explica de todo esse empenho algo mais tem de estar em jogo Entretanto nenhum traço nos parece caracterizar melhor a civilização do que a estima e o cultivo das atividades psíquicas mais elevadas das realizações intelectuais científicas e artísticas do papel dominante que é reservado às idei as na vida das pessoas Entre essas ideias se destacam os sistemas religiosos cujo intrincado edifício procurei elucidar em outra obra ao lado deles as es peculações filosóficas e por fim o que se pode chamar de construções ideais dos homens suas concepções de uma possível perfeição dos indivíduos partic ulares do povo de toda a humanidade e as exigências que colocam a partir 36286 dessas concepções O fato de essas criações não serem independentes umas das outras mas bastante entremeadas dificulta fazer sua exposição e também averiguar sua derivação psicológica Se admitimos de maneira bem geral que o móvel de toda atividade humana é o empenho visando as duas metas conflu entes utilidade e obtenção de prazer temos que aceitar isso como válido tam bém para as manifestações culturais aqui mencionadas embora seja facilmente visível apenas na atividade científica e artística Não se pode duvidar contudo que também as outras correspondem a fortes necessidades dos homens talvez aquelas desenvolvidas apenas numa minoria Tampouco é lícito nos deixarmos enganar por julgamentos de valor sobre qualquer desses sistemas religiosos e filosóficos ou desses ideais quer sejam vistos como a realização maior do es pírito humano quer sejam deplorados como equívocos é mister reconhecer que sua existência em especial seu predomínio indica um elevado grau de civilização Restanos apreciar o último dos traços característicos da civilização que certamente não é dos menos importantes o modo como são reguladas as re lações dos homens entre si as relações sociais que dizem respeito ao indivíduo enquanto vizinho enquanto colaborador como objeto sexual de um outro como membro de uma família e de um Estado Aqui se torna bem difícil manterse livre de determinadas exigências ideais e apreender o que é mesmo cultural Talvez possamos começar afirmando que o elemento cultural se ap resentaria com a primeira tentativa de regulamentar essas relações Não hav endo essa tentativa tais relações estariam sujeitas à arbitrariedade do indiví duo isto é aquele fisicamente mais forte as determinaria conforme seus in teresses e instintos Nada mudaria caso esse mais forte encontrasse alguém ainda mais forte A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo Então o poder dessa comunidade se estabelece como Direito em oposição ao poder do indivíduo condenado como força bruta Tal substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo 37286 cultural decisivo Sua essência está em que os membros da comunidade se lim itam quanto às possibilidades de gratificação ao passo que o indivíduo não conhecia tal limite Portanto a exigência cultural seguinte é a da justiça isto é a garantia de que a ordem legal que uma vez se colocou não será violada em prol de um indivíduo Não é julgado aqui o valor ético desse direito O curso posterior da evolução cultural tende a tornar esse direito não mais a expressão da vontade de uma pequena comunidade casta camada da população tribo que novamente age como um indivíduo violento face a outros grupos talvez mais numerosos desse tipo O resultado final deve ser um direito para o qual todos ao menos todos os capazes de viver em comunidade con tribuem com sacrifício de seus instintos e que não permite de novo com a mesma exceção que ninguém se torne vítima da força bruta A liberdade individual não é um bem cultural Ela era maior antes de qualquer civilização mas geralmente era sem valor porque o indivíduo mal tinha condição de defendêla Graças à evolução cultural ela experimenta re strições e a justiça pede que ninguém escape a elas Aquilo que numa comunidade humana se faz sentir como impulso à liberdade pode ser revolta contra uma injustiça presente e assim tornarse propício a uma maior evolução cultural permanecendo compatível com a civilização Mas também pode vir dos restos da personalidade original não domada pela civilização e desse modo tornarse fundamento da hostilidade à civilização O impulso à liberdade se dirige portanto contra determinadas formas e reivindicações da civilização ou contra ela simplesmente É pouco provável que mediante al guma influência possamos levar o homem a transformar sua natureza na de uma térmite ele sempre defenderá sua exigência de liberdade individual contra a vontade do grupo Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado isto é que traga felicidade entre tais exigências individuais e aquelas do grupo culturais é um dos problemas que concernem ao seu próprio destino a questão de se este equilíbrio é 38286 alcançável mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel Ao deixar a visão comum nos indicar os traços na vida do ser humano que devem ser designados como culturais tivemos uma impressão nítida do quadro geral da civilização embora até o momento não tenhamos aprendido nada que não seja do conhecimento geral Nisso nos guardamos de apoiar o preconceito que diz que civilização equivaleria a aperfeiçoamento seria o cam inho traçado para o homem chegar à perfeição Agora se nos apresenta uma concepção que talvez nos oriente de outro modo A evolução cultural nos surge como um processo peculiar que se desenrola na humanidade no qual muita coisa quer nos parecer familiar Podemos caracterizar este processo pelas mudanças que ele efetua nas conhecidas disposições instintuais humanas cuja satisfação é afinal a tarefa econômica de nossa vida Alguns desses instin tos são absorvidos de maneira tal que em seu lugar aparece o que no indivíduo descrevemos como traço de caráter O mais notável exemplo desse fato achamos no erotismo anal da criança Seu interesse original na função excret ora nos órgãos e produtos dela transformase durante o crescimento no grupo de características que conhecemos como parcimônia sentido da ordem e limpeza que valiosas e bemvindas em si podem exacerbarse até adquirir um marcante predomínio e resultar no que chamamos caráter anal Como isto su cede não sabemos mas não há dúvidas quanto à justeza dessa compreensão13 Ora vimos que ordem e limpeza são exigências essenciais da civilização em bora sua necessidade para a vida não salte aos olhos e tampouco sua ad equação como fontes de prazer Neste ponto a semelhança entre o processo de civilização e o desenvolvimento libidinal do indivíduo tinha que fazerse evid ente para nós Outros instintos são levados a deslocar a situar em outras vias as condições de sua satisfação o que na maioria dos casos coincide com a nossa familiar sublimação das metas instintuais e em outros se diferencia dela A sublimação do instinto é um traço bastante saliente da evolução cultural ela torna possível que atividades psíquicas mais elevadas científicas artísticas 39286 ideológicas tenham papel tão significativo na vida civilizada Cedendo à primeira impressão seríamos tentados a dizer que a sublimação é o destino im posto ao instinto pela civilização É melhor refletirmos mais sobre isso porém Em terceiro lugar enfim e isto parece ser o mais importante é impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a renúncia instintual o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação supressão repressão ou o quê mais de instintos poderosos Essa frustração cultural domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens já sabemos que é a causa da hos tilidade que todas as culturas têm de combater Ela também colocará sérias exigências ao nosso trabalho científico aí teremos muito o que esclarecer Não é fácil compreender como se torna possível privar um instinto de satisfação É algo que tem seus perigos se não for compensado economicamente podemse esperar graves distúrbios Porém se quisermos saber que valor pode reivindicar nossa concepção do desenvolvimento cultural como um processo peculiar comparável à matur ação normal do indivíduo teremos de atacar um outro problema perguntandonos acerca das influências a que esta evolução cultural deve sua origem como nasceu e o que determinou seu curso IV Uma tarefa desmedida ao que parece diante dela é natural perdermos o alento Aqui está o pouco que pude entrever Após o homem primitivo descobrir que estava em suas mãos literal mente melhorar sua sorte na Terra mediante o trabalho não podia lhe ser indiferente o fato de alguém trabalhar com ele ou contra ele O outro indiví duo adquiriu a seus olhos o valor de um colaborador com o qual era útil viver Ainda antes em sua préhistória antropoide ele havia adotado o hábito de construir famílias os membros da família foram provavelmente os seus 40286 primeiros ajudantes É de supor que a formação da família relacionouse ao fato de a necessidade de satisfação genital não mais se apresentar como um hóspede que surge repentinamente e após a partida não dá notícias por muito tempo mas sim estabelecerse duradouramente como um inquilino Assim o macho teve um motivo para conservar junto a si a mulher ou de modo mais geral os objetos sexuais as fêmeas que não queriam separarse de seus fil hotes desamparados também no interesse deles tinham que ficar junto ao macho forte14 Nessa família primitiva falta ainda um traço essencial da civiliz ação a arbitrariedade do pai e chefe não tinha limites Em Totem e tabu pro curei mostrar o caminho que levou dessa família ao estágio seguinte da vida em comum os bandos de irmãos A vitória sobre o pai havia ensinado aos fil hos que uma associação pode ser mais forte que o indivíduo A cultura totêmica baseiase nas restrições que eles tiveram que impor uns aos outros a fim de preservar o novo estado de coisas Os preceitos do tabu constituíram o primeiro direito A vida humana em comum teve então um duplo funda mento a compulsão ao trabalho criada pela necessidade externa e o poder do amor que no caso do homem não dispensava o objeto sexual a mulher e no caso da mulher não dispensava o que saíra dela mesma a criança Eros e Ananke tornaramse também os pais da cultura humana O primeiro êxito cul tural consistiu em que um número grande de pessoas pôde viver em comunid ade E como os dois grandes poderes atuavam aí conjuntamente cabia esperar que a evolução posterior ocorresse de modo suave rumo a um domínio cada vez melhor do mundo externo e à ampliação do número de pessoas abrangido pela comunidade Assim não é fácil entender como essa cultura pode não tor nar felizes os que dela participam Antes de investigar de onde pode vir a perturbação o reconhecimento do amor como um fundamento da cultura nos propiciará uma digressão a fim de preencher uma lacuna deixada anteriormente Afirmamos que a descoberta de que o amor sexual genital proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação dálhe realmente o protótipo de toda felicidade deve têlo feito 41286 continuar a busca da satisfação vital no terreno das relações sexuais colocando o erotismo genital no centro da vida Prosseguimos dizendo que assim ele se torna dependente de maneira preocupante de uma parte do mundo exterior ou seja do objeto amoroso escolhido e fica exposto ao sofrimento máximo quando é por este desprezado ou o perde graças à morte ou à infidelidade Por causa disso os sábios de todas as épocas desaconselharam enfaticamente esse caminho não obstante ele jamais deixou de atrair um grande número de seres humanos Uma pequena minoria pode devido à sua constituição achar a felicidade pela via do amor mas isso requer vastas alterações psíquicas da função amorosa Tais pessoas se fazem independentes da concordância do objeto ao deslocar o peso maior de ser amado para amar elas protegemse da perda do objeto ao voltar seu amor igualmente para todos os indivíduos e não para ob jetos isolados e evitam as oscilações e decepções do amor genital afastandose da meta sexual deste transformando o instinto em um impulso inibido na meta O que produzem em si mesmas desse modo um estado de sentimento uni forme terno estável já não tem muita semelhança exterior com a vida amorosa genital tempestuosamente agitada de que no entanto deriva Nessa utilização do amor para o sentimento interior de felicidade quem mais avançou foi talvez são Francisco de Assis O que vemos como uma das téc nicas de realização do princípio do prazer foi frequentemente vinculado à reli gião com a qual pode estar ligado naquelas remotas regiões em que é negli genciada a distinção entre o Eu e os objetos e entre os próprios objetos Há uma concepção ética cujos motivos profundos ainda se farão claros para nós que enxerga nessa disposição para o amor universal aos homens e ao mundo a mais excelsa atitude a que pode chegar o ser humano De imediato queremos expor as nossas duas principais objeções Um amor que não escolhe parecenos perder uma parte do seu valor ao cometer injustiça com o objeto Além disso nem todos os humanos são dignos de amor 42286 O amor que fundou a família continua ativo na civilização tanto em seu cunho original em que não renuncia à satisfação sexual direta como em sua modificação a ternura inibida na meta Nas duas formas dá prosseguimento à função de unir um número considerável de pessoas de maneira mais intensa do que a obtida pelo interesse do trabalho em comum O desleixo com que na linguagem se usa a palavra amor tem uma justificação genética Chamase amor a relação entre homem e mulher que fundam uma família tendo por base as suas necessidades genitais mas também são amor os sentimentos posit ivos entre pais e filhos entre os irmãos numa família embora tenhamos que descrever tal relação como amor inibido em sua meta como ternura O amor inibido na meta foi na origem amor plenamente sensual e ainda o é no incon sciente humano Ambos amor plenamente sensual e amor inibido na meta vão além da família e estabelecem novas uniões com pessoas antes desconhecidas O amor genital conduz à formação de novas famílias aquele inibido na meta a amizades que culturalmente se tornam importantes pois escapam a várias limitações do amor genital a exclusividade por exemplo No curso da evolução porém o vínculo entre amor e civilização deixa de ser inequívoco Por um lado o amor se opõe aos interesses da cultura por outro lado a cul tura ameaça o amor com sensíveis restrições Essa divergência parece inevitável sua razão não percebemos de imediato Manifestase primeiramente como um conflito entre a família e a comunidade mais ampla a que pertence o indivíduo Já notamos que um dos principais em penhos da civilização consiste em juntar os homens em grandes unidades Mas a família não quer ceder o indivíduo Quanto maior for a coesão dos membros da família mais frequentemente eles tenderão a se apartar dos outros e mais dificilmente ingressarão no círculo mais amplo da vida O modo de vida em comum que é filogeneticamente mais antigo o único existente na infância defendese da superação por aquele posteriormente adquirido cultural A sep aração da família tornase para todo jovem uma tarefa na solução da qual a so ciedade com frequência o ajuda por meio de ritos de puberdade e iniciação 43286 Vemnos a impressão de que estas são dificuldades inerentes a todo desenvol vimento psíquico e mesmo orgânico no fundo Depois são as mulheres que contrariam a corrente da civilização e exercem a sua influência refreadora e retardadora elas que no início estabeleceram o fundamento da civilização através das exigências de seu amor As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual o trabalho da cultura tornouse cada vez mais assunto dos homens colocalhes tarefas sempre mais difíceis obrigaos a sublimações instintuais de que as mulheres não são muito capazes Como um indivíduo não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica tem que dar conta de suas tarefas mediante uma adequada dis tribuição da libido Aquilo que gasta para fins culturais retira na maior parte das mulheres e da vida sexual a assídua convivência com homens a sua de pendência das relações com eles o alienam inclusive de seus deveres como marido e pai Então a mulher se vê relegada a segundo plano pelas solicitações da cultura e adota uma atitude hostil frente a ela Do lado da cultura a tendência a restringir a vida sexual não é menos clara do que a de ampliar o âmbito de cultura A primeira fase cultural a do totem ismo já traz consigo a proibição da escolha incestuosa de objeto talvez a mais incisiva mutilação que a vida amorosa humana experimentou no curso do tempo Por meio de tabus leis e costumes são produzidas mais restrições que atingem tanto os homens como as mulheres As culturas não percorrem todas a mesma distância nessa via a estrutura econômica da sociedade também influi sobre a medida de liberdade sexual restante Já sabemos que nisso a cultura segue a coação da necessidade econômica pois tem de subtrair à sexualidade um elevado montante da energia psíquica que despende Nisso a cultura se comporta em relação à sexualidade como uma tribo ou uma camada da popu lação que submeteu uma outra à sua exploração O medo de uma revolta dos oprimidos leva a rigorosas medidas de precaução Nossa cultura europeia ocidental mostra um ponto alto nessa evolução Psicologicamente se justifica que ela comece por desaprovar as manifestações da vida sexual infantil pois 44286 não há perspectiva de represar os desejos sexuais dos adultos sem um trabalho preparatório na infância De modo algum se justifica porém que a sociedade civilizada tenha chegado ao ponto de também negar esses fenômenos facil mente comprováveis evidentes até A escolha de objeto do indivíduo sexual mente maduro é reduzida ao sexo oposto a maioria das satisfações extrageni tais é interditada como perversão A exigência expressa em tais proibições de uma vida sexual uniforme para todos ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos priva um número considerável deles do prazer sexual e se torna assim a fonte de grave injustiça O resultado dessas medidas restritivas poderia ser que nas pessoas normais que nisso não se acham impedidas por sua constituição todo o interesse sexual flui sem perda para os canais deixados abertos Mas o que permanece isento de pro scrição o amor genital heterossexual é ainda prejudicado pelas limitações da legitimidade e da monogamia A civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel entre um homem e uma mulher que não lhe agrada a sexualidade como fonte de prazer autônoma e que está disposta a tolerála somente como fonte até agora insubstituível de multiplicação dos seres humanos Isto é naturalmente algo extremo Sabese que demonstrou ser in exequível mesmo por breves períodos Apenas os fracos se sujeitaram a uma interferência tão ampla na sua liberdade sexual as naturezas mais fortes o fizeram apenas em troca de uma compensação da qual falaremos depois A so ciedade civilizada viuse obrigada a fechar os olhos para muitas transgressões que segundo suas normas deveria punir Mas não cabe enganarse na direção oposta e supor que tal atitude é inócua por não atingir todos os seus propósi tos A vida sexual do homem civilizado está mesmo gravemente prejudicada às vezes parece uma função que se acha em processo involutivo como nossos dentes e nossos cabelos enquanto órgãos Provavelmente é lícito supor que como fonte de sensações felizes ou seja no cumprimento de nossa finalidade de vida sua importância diminuiu sensivelmente15 Há ocasiões em que 45286 acreditamos perceber que não somente a pressão da cultura mas também algo da essência da própria função nos recusa a plena satisfação e nos impele por outros caminhos Pode ser um equívoco é difícil decidir16 V O trabalho psicanalítico nos ensinou que são justamente essas frustrações da vida sexual que os indivíduos chamados de neuróticos não suportam Eles cri am com seus sintomas gratificações substitutivas que no entanto causam so frimento ou tornamse fonte de sofrimento ao lhes criar dificuldades com o ambiente e a sociedade Este segundo fato compreendese facilmente o primeiro nos traz um novo enigma Mas a civilização ainda requer outros sac rifícios além da satisfação sexual Abordamos a dificuldade da evolução cultural como uma dificuldade geral de desenvolvimento ao fazêla remontar à inércia da libido à relutância desta em abandonar uma posição velha por uma nova Dizemos aproximadamente o mesmo ao derivar a antítese entre civilização e sexualidade do fato de que o amor sexual é uma relação entre duas pessoas na qual uma terceira é talvez supérflua ou importuna ao passo que a civilização repousa sobre vínculos entre muitas pessoas No auge de uma relação amorosa não há interesse algum pelo resto do mundo o par amoroso basta a si mesmo não precisa sequer de um filho para ser feliz Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser o propósito de transformar vários em um mas quando como é proverbial alcança isso no amor entre dois seres humanos não ad mite ir além Até aqui podemos muito bem imaginar uma comunidade cultural que con sistisse de tais indivíduos duplos que libidinalmente saciados consigo mesmos achamse ligados pelo trabalho e os interesses em comum Neste caso a civilização não precisaria retirar energia à sexualidade Esse desejável 46286 estado de coisas não existe e nunca existiu porém A realidade mostra que a civilização não se contenta com as uniões que até o momento lhe foram per mitidas que quer unir também libidinalmente os membros da comunidade que se vale de todos os meios favorece qualquer caminho para estabelecer for tes identificações entre eles e mobiliza em grau máximo libido inibida na meta para fortalecer os vínculos comunitários através de relações de amizade Para realizar esses propósitos é inevitável a limitação da vida sexual Mas não per cebemos qual necessidade impele a civilização por esse caminho e fundamenta sua oposição à sexualidade Deve se tratar de um fator de perturbação que ainda não descobrimos A pista nos pode ser fornecida por uma das chamadas exigências ideais da sociedade civilizada Ama teu próximo como a ti mesmo diz ela é con hecida universalmente sem dúvida mais velha que o cristianismo que a osten ta como sua mais gloriosa reivindicação mas decerto não é muito antiga em tempos já históricos era ainda estranha à humanidade Vamos adotar uma atit ude ingênua diante dela como se a ouvíssemos pela primeira vez Não podere mos então suprimir um sentimento de estranheza e surpresa Por que dever íamos fazer isso Em que nos ajudará Sobretudo como levar isso a cabo Como nos será possível Meu amor é algo precioso para mim algo que não posso despender irresponsavelmente Ele me impõe deveres os quais tenho que me dispor a cumprir com sacrifícios Quando amo a outrem este deve merecêlo de algum modo Não considero a vantagem que ele possa me trazer nem a possível importância dele como objeto sexual esses dois tipos de relacionamento não contam para o preceito do amor ao próximo Ele o merece se em importantes aspectos semelha tanto a mim que posso amar a mim mesmo nele ele o merece se é tão mais perfeito do que eu que posso am ar nele o meu ideal de mim eu tenho que amálo se ele é filho de meu amigo pois a dor do amigo se algo lhe acontecesse ao filho seria também minha dor eu teria de compartilhála Mas se ele me é desconhecido e não me pode atrair por nenhum valor próprio nenhuma significação que tenha adquirido em 47286 minha vida emocional dificilmente o amarei E estaria sendo injusto se o fizesse pois meu amor é estimado como um privilégio pelos meus seria in justo para com eles equiparálos a desconhecidos Mas se devo amálo com esse amor universal apenas porque também vive nesta Terra como um inseto uma minhoca uma serpente então receio que uma parte mínima de amor lhe caberá sem dúvida alguma menos do que pelo julgamento da razão estou autorizado a guardar para mim mesmo A que vem um preceito tão solene mente enunciado se o seu cumprimento não pode ser racionalmente indicado Olhando com mais vagar encontro ainda outras dificuldades Esse descon hecido não apenas não é digno de amor em geral tenho de confessar honesta mente que ele tem mais direito à minha hostilidade até ao meu ódio Ele não parece ter qualquer amor a mim não me demonstra a menor consideração Quando lhe traz vantagem não hesita em me prejudicar não se perguntando mesmo se o grau de sua vantagem corresponde à magnitude do dano que me faz Mais até ele não precisa sequer ter vantagem nisso quando pode satisfazer um prazer qualquer com isso não se incomoda em zombar de mim em me ofender me caluniar exibir seu poder e quanto mais seguro ele se sentir mais desamparado estarei eu mais seguramente é de esperar essa sua conduta para comigo Quando se comporta de maneira diferente quando sendo eu descon hecido me poupa e me considera achome disposto a retribuirlhe na mesma moeda sem qualquer preceito De fato se esse grandioso mandamento dis sesse Ama teu próximo assim como ele te ama eu nada teria a objetar Há um outro mandamento que me parece ainda mais incompreensível e me des perta uma oposição ainda mais forte Ele diz Ama teus inimigos Mas pensando bem não é justo rejeitálo como uma impertinência ainda maior No fundo é a mesma coisa17 Agora acredito ouvir de uma voz respeitável a admoestação seguinte Justamente porque o próximo não é digno de amor mas antes teu inimigo é que deves amálo como a ti mesmo Então pelo que entendo é um caso semelhante ao Credo quia absurdum Creio porque é absurdo 48286 Ora é bem provável que o próximo quando solicitado a me amar tanto quanto a si mesmo responda exatamente como eu e me repudie pelos mesmos motivos Espero que não com a mesma razão objetiva mas isso ele também pensará Há diferenças na conduta humana que a ética classifica de boas ou más não considerando que foram produzidas por condições determinadas Enquanto essas inegáveis diferenças não forem suprimidas obedecer às eleva das exigências éticas implicará danos aos propósitos da cultura por estabelecer prêmios para a maldade Não podemos deixar de lembrar um evento sucedido no parlamento francês quando se discutia a pena de morte um orador havia advogado apaixonadamente sua abolição e colhia aplausos fervorosos até que uma voz prorrompeu no recinto Que messieurs les assassins commencent Que os senhores assassinos comecem O quê de realidade por trás disso que as pessoas gostam de negar é que o ser humano não é uma criatura branda ávida de amor que no máximo pode se defender quando atacado mas sim que ele deve incluir entre seus dotes in stintuais também um forte quinhão de agressividade Em consequência disso para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão para explorar seu trabalho sem recompensálo para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade para usurpar seu patrimônio para humilhálo para infligirlhe dor para torturálo e matálo Homo homini lupus O homem é o lobo do homem quem depois de tudo o que aprendeu com a vida e a história tem coragem de discutir essa frase Via de regra essa cruel agressividade aguarda uma provocação ou se coloca a serviço de um propósito diferente que poderia ser atingido por meios mais suaves Em circunstâncias favoráveis quando as forças psíquicas que normalmente a inibem estão ausentes ela se ex pressa também de modo espontâneo e revela o ser humano como uma besta selvagem que não poupa os de sua própria espécie Quem chamar à lembrança os horrores da migração dos povos32 das invasões dos hunos dos mongóis de Gêngis Khan e Tamerlão da conquista de Jerusalém pelos piedosos 49286 cruzados e ainda as atrocidades da recente Guerra Mundial terá de se curvar humildemente à verdade dessa concepção A existência desse pendor à agressão que podemos sentir em nós mesmos e justificadamente pressupor nos demais é o fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios33 Devido a essa hostilidade primária entre os homens a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração O interesse do trabalho em comum não a manter ia paixões movidas por instintos são mais fortes que interesses ditados pela razão A civilização tem de recorrer a tudo para pôr limites aos instintos agressivos do homem para manter em xeque suas manifestações através de formações psíquicas reativas Daí portanto o uso de métodos que devem inst igar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas em sua meta daí as restrições à vida sexual e também o mandamento ideal de amar o próximo como a si mesmo que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser mais contrário à natureza humana original Com todas as suas lidas esse empenho da civilização não alcançou muito até agora Ela espera prevenir os excessos mais grosseiros da violência conferindo a si mesma o direito de praticar a violência contra os infratores mas a lei não tem como abarcar as ex pressões mais cautelosas e sutis da agressividade humana Cada um de nós vive o momento em que deixa de lado como ilusões as esperanças que na ju ventude depositava nos semelhantes e aprende o quanto a vida lhe pode ser dificultada e atormentada por sua malevolência Ao mesmo tempo seria injusto acusar a civilização de pretender excluir da atividade humana a luta e a disputa Estas são imprescindíveis não há dúvida mas oposição não significa necessar iamente inimizade é apenas mal utilizada como ocasião para ela Os comunistas acreditam haver encontrado o caminho para a redenção do mal O ser humano é inequivocamente bom bemdisposto para com o próx imo mas a instituição da propriedade privada lhe corrompeu a natureza A posse de bens privados dá poder a um indivíduo e com isso a tentação de mal tratar o próximo o despossuído deve se rebelar contra o opressor seu inimigo 50286 Se a propriedade privada for abolida todos os bens forem tornados comuns e todos os homens puderem desfrutálos desaparecerão a malevolência e a inim izade entre os homens Como todas as necessidades estarão satisfeitas nin guém terá motivo para enxergar no outro um inimigo e todos se encarregarão espontaneamente do trabalho necessário Não é de minha alçada a crítica econ ômica do sistema comunista não tenho como investigar se a abolição da pro priedade privada é pertinente e vantajosa18 Mas posso ver que o seu pres suposto psicológico é uma ilusão insustentável Suprimindo a propriedade privada subtraímos ao gosto humano pela agressão um dos seus instrumentos sem dúvida poderoso e certamente não o mais poderoso Mas nada mudamos no que toca às diferenças de poder e de influência que a agressividade usa ou abusa para os seus propósitos e tampouco na sua natureza Ela não foi criada pela propriedade reinou quase sem limites no tempo préhistórico quando aquela ainda era escassa já se manifesta na infância quando a propriedade mal abandonou sua primária forma anal constitui o sedimento de toda relação terna e amorosa entre as pessoas talvez com a exceção única daquela entre a mãe e o filho homem Se eliminamos o direito pessoal aos bens materiais sub siste o privilégio no âmbito das relações sexuais que se torna fonte do mais vivo desgosto e da mais violenta inimizade entre seres que de outro modo se acham em pé de igualdade Suprimindo também este mediante a completa lib eração da vida sexual ou seja abolindo a família célula germinal da civiliza ção fica impossível prever que novos caminhos a evolução cultural pode en cetar mas uma coisa é lícito esperar que esse indestrutível traço da natureza humana também a acompanhe por onde vá Evidentemente não é fácil para os homens renunciar à gratificação de seu pendor à agressividade não se sentem bem ao fazêlo Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor de permitir ao instinto um escape através da hostilização dos que não pertencem a ele Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade Certa vez discuti o fenômeno de justamente 51286 comunidades vizinhas e também próximas em outros aspectos andarem às turras e zombarem uma da outra como os espanhóis e os portugueses os alemães do norte e os do sul os ingleses e os escoceses etc Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento Percebese nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade através da qual é facilitada a coesão entre os mem bros da comunidade O povo judeu espalhado em toda parte conquistou desse modo louváveis méritos junto às culturas dos povos que o hospedaram Infelizmente todos os massacres de judeus durante a Idade Média não bastaram para tornar a época mais pacífica e segura para seus camaradas cristãos Depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fun damento de sua congregação a intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornouse uma consequência inevitável Os ro manos cuja organização estatal não se baseava no amor desconheciam a intol erância religiosa apesar de entre eles a religião ser assunto de Estado e o Estado ser permeado de religião Tampouco foi um acaso incompreensível que o sonho de um domínio mundial germânico evocasse o antissemitismo para seu complemento e podemos entender que a tentativa de instaurar na Rússia uma nova civilização comunista encontre seu apoio psicológico na perseguição à burguesia Só nos perguntamos preocupados o que farão os sovietes após li quidarem seus burgueses Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à sexualidade mas também ao pendor agressivo do homem compreendemos melhor por que para ele é difícil ser feliz nela De fato o homem primitivo estava em situação melhor pois não conhecia restrições ao instinto Em compensação era mínima a segurança de desfrutar essa felicidade por muito tempo O homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança Mas não esqueçamos que na família primitiva somente o chefe gozava dessa liberdade instintual os outros viviam em submissão escrava Logo a oposição entre uma minoria gozando as vantagens da cultura e uma maioria destituída dessas vantagens foi levada ao 52286 extremo naquela época primeira da civilização Informandonos mais cuida dosamente acerca dos primitivos que ainda hoje vivem aprendemos que não se pode invejálos a liberdade em sua vida instintual esta é sujeita a limitações de outra espécie mas talvez de maior rigor que as daquela do civilizado moderno Se justificadamente objetamos em nosso estado atual de civilização que ele não preenche nossos requisitos de um sistema de viver que faça feliz que ad mite muito sofrimento que se poderia provavelmente evitar se de modo im placavelmente crítico buscamos expor as raízes de sua imperfeição sem dúvida exercemos o nosso mero direito não nos mostramos inimigos da cul tura É lícito esperar que pouco a pouco lhe introduziremos mudanças que sat isfaçam melhor as nossas necessidades e escapem a essa crítica Mas talvez nos familiarizemos igualmente com a ideia de que há dificuldades inerentes à cul tura que não cederão a tentativas de reforma Além das tarefas de restrição in stintual para as quais estamos preparados surgenos o perigo de um estado que podemos denominar a miséria psicológica da massa Tal perigo ameaça sobretudo quando a ligação social é estabelecida principalmente pela identi ficação dos membros entre si e as individualidades que podem liderar não ad quirem a importância que lhes deveria caber na formação da massa19 O estado de civilização na América de hoje daria uma boa oportunidade para o estudo desse dano cultural que tememos Mas eu fujo à tentação de entrar numa crítica à civilização da América não quero despertar a impressão de pretender eu mesmo servirme de métodos americanos VI Nenhum outro trabalho me deu a sensação como este de expor algo con hecido de gastar papel e tinta e fazer trabalhar o tipógrafo para falar de coisas evidentes De modo que se parecer que o reconhecimento de um instinto de 53286 agressão especial autônomo significa uma mudança na teoria psicanalítica dos instintos de bom grado me ponho a discutir isso Veremos que não é bem assim que se trata apenas de captar mais nitida mente uma alteração há muito efetuada e de lhe tirar as consequências De to das as partes que gradualmente se desenvolveram na teoria psicanalítica a teoria dos instintos foi a que tateou mais penosamente o seu caminho E no en tanto era tão indispensável ao conjunto que alguma coisa teve que ser posta em seu lugar No completo desnorteio inicial uma frase do poetafilósofo Schiller segundo a qual a fome e o amor sustentam a máquina do mundo forneceume o ponto de partida A fome poderia representar os instintos que querem manter o ser individual enquanto o amor procura pelos objetos sua função principal favorecida de toda maneira pela natureza é a conservação da espécie Assim primeiramente se defrontaram instintos do Eu e instintos obje tais Para designar a energia destes exclusivamente para ela introduzi o nome de libido com isso a oposição se dava entre os instintos do Eu e os instintos libidinais do amor no sentido lato dirigidos para o objeto É certo que um desses instintos objetais o sádico sobressaía pelo fato de sua meta não ser nada amorosa e em vários pontos ele claramente se juntava aos instintos do Eu não podia esconder sua estreita afinidade com instintos de dominação sem propósito libidinal mas essas discrepâncias foram superadas O sadismo fazia claramente parte da vida sexual o jogo da crueldade podia suceder ao da ternura A neurose aparecia como o desfecho de uma luta entre o interesse da autopreservação e as exigências da libido uma luta que o Eu vencera mas ao custo de severo sofrimento e renúncia Todo analista admitirá que ainda hoje isso não parece um erro há muito constatado Mas uma mudança tornouse imprescindível quando nossa pesquisa avançou do que é reprimido para o que reprime dos instintos objetais para o Eu Foi decisiva neste ponto a introdução do conceito de narcisismo isto é a compreensão de que o próprio Eu se acha investido de libido constitui mesmo o reduto original dela e em certa medida permanece como o seu 54286 quartelgeneral Essa libido narcísica voltase para os objetos tornase então libido objetal e pode transformarse novamente em libido narcísica O con ceito de narcisismo tornou possível apreender analiticamente a neurose traumática assim como a psicose e muitas afecções vizinhas a esta A inter pretação das neuroses de transferência como tentativa de o Eu defenderse da sexualidade não precisou ser abandonada mas o conceito de libido ficou ameaçado Como também os instintos do Eu eram libidinais por um momento pareceu inevitável fazer coincidirem libido e energia instintual tal como CG Jung pretendeu anteriormente Mas me restava uma quase que certeza ainda a ser fundamentada segundo a qual os instintos não podiam ser todos da mesma espécie O passo seguinte foi dado em Além do princípio do prazer 1920 quando tive a ideia da compulsão de repetição e do caráter conservador da vida instintual Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos concluí que deveria haver além do instinto para conservar a sub stância vivente e juntála em unidades cada vez maiores20 um outro a ele con trário que busca dissolver essas unidades e conduzilas ao estado primordial inorgânico Ou seja ao lado de Eros um instinto de morte Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta ou antagônica dos dois Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte As manifestações de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas era de supor que o instinto de morte trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo para a dissolução deste mas isso não constituía prova é claro Levavanos mais longe a ideia de que uma parte do instinto se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão e destruição Assim o próprio instinto seria obri gado ao serviço de Eros na medida em que o vivente destruiria outras coisas animadas e inanimadas em vez de si próprio Inversamente a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição aliás sempre ex istente Ao mesmo tempo a partir desse exemplo podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente talvez nunca surgem isoladas uma 55286 da outra mas se fundem em proporções diferentes e muito variadas tornando se irreconhecíveis para nosso julgamento No sadismo há muito conhecido como instinto parcial da sexualidade teríamos uma fusão assim particular mente forte entre o impulso ao amor e o instinto de destruição e na sua con traparte o masoquismo uma ligação da destrutividade dirigida para dentro com a sexualidade o que faz visível e notável a tendência normalmente imperceptível A suposição de um instinto de morte ou de destruição encontrou resistência até mesmo nos círculos psicanalíticos Sei que é frequente a inclinação de at ribuir a uma bipolaridade original do próprio amor tudo o que nele é encon trado de perigoso e hostil No começo expus apenas tentativamente essas con cepções mas com o tempo elas ganharam tal ascendência sobre mim que já não posso pensar de outro modo Acho que teoricamente são muito mais pro veitosas que quaisquer outras pois produzem aquela simplificação sem neg ligência ou violentação dos fatos que buscamos no trabalho científico Recon heço que no sadismo e no masoquismo sempre vimos as manifestações forte mente mescladas com o erotismo do instinto de destruição voltado para fora e para dentro mas já não entendo que pudéssemos ignorar a onipresença da agressividade e destrutividade não erótica deixando de lhe conceder o devido lugar na interpretação da vida A ânsia de destruição voltada para dentro se subtrai geralmente à percepção é verdade quando não é tingida erotica mente Recordo a minha própria atitude defensiva quando a ideia do instinto de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica e quanto tempo durou até que eu me tornasse receptivo a ela O fato de outros haverem mostrado e ainda mostrarem a mesma rejeição não me surpreende Pois as cri anças não gostam de ouvir quando se fala da tendência inata do ser humano para o mal para a agressão a destruição para a crueldade portanto Deus as criou à imagem de sua própria perfeição ninguém quer ser lembrado o quanto é difícil conciliar a irrefutável existência do mal apesar das assever ações da Christian Science com sua onipotência e infinita bondade O 56286 Diabo seria o melhor expediente para desculpar Deus teria a mesma função econômica de descarga que têm os judeus no mundo do ideal ariano Mas mesmo assim podese pedir a Deus satisfações pela existência do Diabo tal como pela do mal que ele personifica Tendo em vista essas dificuldades é aconselhável que cada um se incline bastante nas ocasiões devidas ante a natureza profundamente moral do ser humano ajuda a ser benquisto e a ter muita coisa perdoada21 O nome libido pode mais uma vez ser aplicado às expressões de força de Eros para diferençálas da energia do instinto de morte22 Devemos admitir que nos é bem mais difícil apreender este último que com ele atinamos em certa medida apenas como resíduo por trás de Eros e que ele furtase a nós quando não é revelado pela fusão com Eros É no sadismo em que ele modi fica a seu favor a meta erótica mas não deixa de satisfazer plenamente o ím peto sexual que atingimos a mais clara compreensão de sua natureza e de sua relação com Eros Mas também ali onde surge sem propósito sexual ainda na mais cega fúria destruidora é impossível não reconhecer que sua satisfação es tá ligada a um prazer narcísico extraordinariamente elevado pois mostra ao Eu a realização de seus antigos desejos de onipotência Domado e moderado como que inibido em sua meta o instinto de destruição deve dirigido para os objetos proporcionar ao Eu a satisfação das suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza Como a hipótese dele está baseada essencialmente em razões teóricas é preciso admitir que também não se acha inteiramente a salvo de objeções teóricas Mas é assim que as coisas se nos apresentam no es tado atual de nossa compreensão a pesquisa e a reflexão futuras trarão certa mente a luz decisiva Portanto em tudo o que segue me atenho ao ponto de vista de que o pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser hu mano e retorno ao que afirmei antes que a civilização tem aí o seu mais po deroso obstáculo No curso desta investigação impôssenos a ideia de que a cultura é um processo especial que se desenrola na humanidade e nós 57286 continuamos sob o influxo dessa ideia Acrescentemos que é um processo a serviço de Eros que pretende juntar indivíduos isolados famílias depois etni as povos e nações numa grande unidade a da humanidade Por que isso teria de ocorrer não sabemos é simplesmente a obra de Eros Essas multidões hu manas devem ser ligadas libidinalmente entre si a necessidade apenas as vant agens do trabalho em comum não as manterão juntas Mas a esse programa da cultura se opõe o instinto natural de agressão dos seres humanos a hostilidade de um contra todos e de todos contra um Esse instinto de agressão é o de rivado e representante maior do instinto de morte que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo Agora acredito o sentido da evolução cultural já não é obscuro para nós Ela nos apresenta a luta entre Eros e morte instinto de vida e instinto de destruição tal como se desenrola na espécie humana Essa luta é o conteúdo essencial da vida e por isso a evolução cultural pode ser designada brevemente como a luta vital da espécie hu mana23 E é esse combate de gigantes que nossas babás querem amortecer com a canção de ninar falando do céu VII Por que nossos parentes os animais não exibem uma luta cultural semelhante Não sabemos Provavelmente alguns entre eles as abelhas formigas térmitas esforçaramse durante milênios até encontrar as instituições estatais a divisão de funções a limitação imposta aos indivíduos que hoje admiramos neles É característico de nosso estado presente sentirmos que em nenhuma destas so ciedades animais em nenhum dos papéis aí destinados ao indivíduo estaríamos contentes Em outras espécies animais podese ter chegado a um equilíbrio momentâneo entre as influências do meio e os instintos que nelas lutam entre si e desse modo a uma parada no desenvolvimento No homem primitivo pode ser que um novo avanço da libido tenha ocasionado uma renovada 58286 oposição do instinto de destruição Há muitas questões a serem feitas aqui para as quais ainda não há respostas Uma outra pergunta nos está mais próxima De que meio se vale a cultura para inibir tornar inofensiva talvez eliminar a agressividade que a defronta Alguns desses métodos já conhecemos mas não o que parece ser mais import ante Podemos estudálo na evolução do indivíduo O que sucede nele que torna inofensivo o seu gosto em agredir Algo bastante notável que não ter íamos adivinhado e que no entanto se acha próximo A agressividade é intro jetada internalizada mas é propriamente mandada de volta para o lugar de onde veio ou seja é dirigida contra o próprio Eu Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Supereu e que como consciência dispõese a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostar ia de satisfazer em outros indivíduos À tensão entre o rigoroso Supereu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa ela se manifesta como ne cessidade de punição A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo ao enfraquecêlo desarmálo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior como por uma guarnição numa cidade conquistada Quanto à origem do sentimento de culpa o psicanalista pensa diferente mente dos outros psicólogos mas também para ele não é fácil prestar contas sobre isso Primeiro ao se perguntar como alguém adquire sentimento de culpa obtémse uma resposta que não admite discussão a pessoa se sente culpada pecadora dizem os devotos quando fez algo que é reconhecido como mau Em seguida vemos como essa resposta é pouca Após alguma hesitação talvez se acrescente que mesmo quem não fez esse mal e apenas re conhece em si o propósito de fazêlo pode se considerar culpado e então se le vantará a questão de por que nisso o propósito é equiparado à execução Os dois casos porém pressupõem que já se reconheceu o mal como algo repreensível cuja execução deve ser evitada Como se chega a essa decisão É lícito rejeitar uma capacidade original por assim dizer natural para 59286 distinguir entre o bem e o mal Com frequência o mal não é em absoluto uma coisa nociva ou perigosa para o Eu mas pelo contrário algo que ele deseja e que lhe dá prazer Aí se mostra então a influência alheia ela determina o que será tido por bom ou mau Como o próprio sentir não teria levado o ser hu mano pelo mesmo caminho ele deve ter um motivo para se submeter a essa in fluência externa Podemos enxergálo no desamparo e na dependência dos outros e a melhor designação para ele seria medo da perda do amor Se perde o amor do outro do qual é dependente deixa também de ser protegido contra perigos diversos sobretudo expõese ao perigo de que esse alguém tão poder oso lhe demonstre a superioridade em forma de castigo Portanto inicialmente o mal é aquilo devido ao qual alguém é ameaçado com a perda do amor por medo dessa perda é preciso evitálo Também por causa disso não importa se já fizemos o mal ou se ainda o faremos em ambos os casos o perigo só aparece quando a autoridade descobre a coisa e ela se comportaria do mesmo modo nos dois Chamamos a esse estado má consciência mas na realidade ele não merece esse nome pois nesse estágio a consciência de culpa não passa clara mente de medo da perda do amor medo social Na criança pequena não pode ser outra coisa mas em muitos adultos também não há diferença exceto que o lugar do pai ou de ambos os pais é tomado pela grande sociedade hu mana Daí eles habitualmente se permitirem realizar o mal que lhes for agradável se tiverem certeza de que a autoridade não saberá ou nada poderá fazer contra eles seu medo é apenas o de serem descobertos24 É com esse es tado que a sociedade de hoje deve geralmente contar Uma grande mudança ocorre apenas quando a autoridade é internalizada pelo estabelecimento de um Supereu Com isso os fenômenos da consciência Gewissen chegam a um novo estágio no fundo só então se deveria falar de consciência e sentimento de culpa25 Neste ponto desaparece o medo de ser descoberto e também se desfaz por completo a diferença entre fazer o mal e desejar o mal pois ante o Supereu nada se pode esconder nem os 60286 pensamentos A seriedade real da situação já passou é verdade pois a nova autoridade o Supereu não tem motivo segundo cremos para maltratar o Eu ao qual está intimamente ligado Mas a influência da gênese que faz continuar a viver o passado e superado manifestase no fato de que no fundo a coisa per manece como era no início O Supereu atormenta o Eu pecador com as mes mas sensações de angústia e fica à espreita de oportunidades para fazêlo ser punido pelo mundo exterior Neste segundo estágio de desenvolvimento a consciência mostra uma pe culiaridade que não havia no primeiro e que já não é fácil de explicar Quanto mais virtuoso o indivíduo mais severa e desconfiadamente ela se comporta de maneira que precisamente os que atingem maior santidade se recriminam da mais triste pecaminosidade Nisso a virtude perde algo da recompensa que lhe foi prometida o Eu dócil e abstinente não goza da confiança de seu mentor esforçase em vão ao que parece para conquistála Agora se poderá objetar que essas são dificuldades artificialmente compostas que a consciência mais rigorosa e vigilante é justamente o traço característico do ser moral e quando os santos se dizem pecadores não é sem razão que o fazem em vista das tentações para satisfazer o instinto a que se acham expostos em medida es pecialmente elevada pois é sabido que a frustração contínua só faz crescer em as tentações ao passo que elas diminuem ao menos temporariamente com a satisfação ocasional Um outro fato do âmbito da ética tão rico em problemas é que o infortúnio ou seja a frustração a partir de fora promove bastante o poder da consciência no Supereu Enquanto as coisas vão bem para a pessoa também a sua consciência é branda e permite ao Eu muitas coisas quando uma infelicidade a atinge ela se examina reconhece sua pecaminosidade eleva as reivindicações da consciência impõese privações e castiga a si mesma com penitências26 Povos inteiros se comportaram e continuam se comportando as sim Mas isso se explica facilmente pelo original estágio infantil da consciência que portanto não é abandonado após a introjeção no Supereu mas subsiste junto e por trás dela O destino é visto como substituto da instância parental 61286 quando uma pessoa tem infortúnio significa que não mais é amada por esse poder supremo e ameaçada por essa perda de amor inclinase novamente ante a representação dos pais no Supereu que no momento da fortuna tendia a negligenciar Isso é particularmente claro quando em sentido estritamente religioso vemos no destino somente a expressão da vontade divina O povo de Israel se considerava o favorito de Deus e quando o grande Pai fez cair um infortúnio após o outro em cima deste seu povo ele não perdeu a confiança nessa relação nem duvidou do poder e da justiça de Deus mas produziu os profetas que lhe repreenderam a pecaminosidade e a partir de sua consciência de culpa forjou os preceitos tão severos de sua religião sacerdotal É notável como o primitivo se conduz diferentemente Se foi vítima do infortúnio não atribui a si a culpa mas sim ao fetiche que evidentemente não cumpriu suas obrigações e bate nele em vez de castigar a si mesmo Conhecemos então duas origens para o sentimento de culpa o medo da autoridade e depois o medo ante o Supereu O primeiro nos obriga a renun ciar a satisfações instintuais o segundo nos leva também ao castigo dado que não se pode ocultar ao Supereu a continuação dos desejos proibidos Vimos igualmente como é possível entender a severidade do Supereu os reclamos da consciência Ela simplesmente dá continuidade ao rigor da autoridade externa a que sucedeu e que em parte substitui Agora percebemos que relação há entre a renúncia ao instinto e o sentimento de culpa Originalmente a renúncia ao in stinto é resultado do medo à autoridade externa renunciase a satisfações para não perder o seu amor Tendo feito essa renúncia estamos quites com ela por assim dizer não deveria restar sentimento de culpa É diferente no caso do medo ante o Supereu Aí a renúncia instintual não ajuda o bastante pois o desejo persiste e não pode ser escondido do Supereu Apesar da renúncia efetuada produzse um sentimento de culpa portanto e essa é uma grande desvantagem econômica na instituição do Supereu ou como se pode dizer na formação da consciência A renúncia instintual já não tem efeito completa mente liberador a abstenção virtuosa já não é recompensada com a certeza do 62286 amor um infortúnio que ameaça a partir de fora perda do amor e castigo da autoridade externa é trocado por uma permanente infelicidade interna a tensão da consciência de culpa Essas relações são tão complicadas e ao mesmo tempo tão importantes que eu gostaria de abordálas a partir de outro lado ainda correndo o risco da re petição Então a sequência temporal seria primeiro renúncia instintual devido ao medo à agressão da autoridade externa pois a isso equivale o medo ante a perda do amor o amor protegendo dessa agressão punitiva depois es tabelecimento da autoridade interna renúncia instintual devido ao medo a ela medo da consciência No segundo caso equiparação de ato mau e má intenção e daí consciência de culpa necessidade de castigo A agressividade da con sciência conserva a da autoridade Até aqui parece estar tudo claro mas onde cabe a influência reforçadora do infortúnio da renúncia imposta a partir de fora sobre a consciência o extraordinário rigor da consciência nas pessoas melhores e mais obedientes Já explicamos as duas peculiaridades da consciên cia mas provavelmente ficou a impressão de que tais explicações não chegam ao fundo de que deixam um resto inexplicado E aqui surge afinal uma ideia inteiramente própria da psicanálise e alheia ao pensamento habitual das pess oas Ela é de gênero tal que nos faz compreender como o objeto de estudo tinha de nos parecer tão confuso e opaco Pois ela diz que no início a consciên cia mais corretamente o medo que depois se torna consciência é causa da renúncia instintual mas depois se inverte a relação Toda renúncia instintual tornase uma fonte dinâmica da consciência toda nova renúncia aumenta o rigor e a intolerância desta e se pudéssemos harmonizar isso melhor com o que sabemos da história da origem da consciência seríamos tentados a defend er a tese paradoxal de que a consciência é resultado da renúncia instintual ou de que esta a nós imposta do exterior cria a consciência que então exige mais renúncia instintual Na verdade a contradição entre essa frase e a gênese da consciência aqui oferecida não é tão grande e divisamos um meio de reduzila ainda mais A 63286 fim de facilitar a exposição vamos tomar o exemplo do instinto de agressão e supor que nestas relações se trata sempre da renúncia à agressão Isto será nat uralmente apenas uma suposição temporária O efeito da renúncia instintual sobre a consciência se dá de maneira tal que toda parcela de agressividade que não satisfazemos é acolhida pelo Supereu e aumenta a agressividade deste contra o Eu Isso não condiz com o fato de que a agressividade original da consciência é prosseguimento do rigor da autoridade externa ou seja nada tem a ver com a renúncia Fazemos desaparecer essa incoerência no entanto se supomos uma derivação diferente para essa primeira dotação agressiva do Supereu Um considerável montante de agressividade deve ter se desen volvido na criança contra a autoridade que lhe impede as primeiras e também mais significativas satisfações quaisquer que sejam as privações instintuais re queridas Ela é obrigada a renunciar à satisfação dessa agressividade vingativa Encontra saída para essa difícil situação econômica recorrendo a mecanismos conhecidos ao acolher dentro de si por identificação essa autoridade inatacável que então se torna Supereu e entra em posse de toda a agressivid ade que a criança gostaria de exercer contra ela O Eu da criança tem de se contentar com o triste papel da autoridade assim degradada o pai A situ ação se inverte como é frequente suceder Se eu fosse o pai e você o filho eu trataria você mal A relação entre Supereu e Eu é o retorno deformado pelo desejo de relações reais entre o Eu ainda não dividido e um objeto externo Também isso é típico A diferença essencial porém está em que a severidade original do Supereu não é ou não é tanto a que experimentamos de sua parte ou atribuímos a ele mas representa nossa própria agressividade para com ele Se isso estiver correto podese mesmo afirmar que a consciência surgiu inicialmente pela supressão de uma agressão e que depois se fortalece por novas supressões desse tipo Qual das duas concepções está certa A primeira que geneticamente nos parecia inatacável ou a mais nova que arredonda a teoria de maneira opor tuna Claramente e também pelo testemunho da observação direta ambas se 64286 justificam não se contradizem e até mesmo concordam num ponto pois a vingativa agressão da criança é também determinada pela medida de agressão punitiva que espera do pai A experiência ensina no entanto que de modo al gum a severidade do Supereu desenvolvido pela criança reflete a severidade do tratamento que recebeu27 Surge independente dela uma criança educada brandamente pode ter uma consciência bastante severa Mas seria incorreto ex agerar essa independência Não é difícil nos convencermos de que o rigor da educação também influi grandemente na formação do Supereu infantil Ocorre que fatores constitucionais herdados e influências do meio real atuam conjuntamente na formação do Supereu e gênese da consciência e isso não é nada estranho mas a condição etiológica geral de todos esses processos28 Podese também dizer que quando a criança reage às primeiras grandes renúncias instintuais com agressividade em demasia e correspondente rigor do Supereu segue um modelo filogenético e vai além da reação presentemente justificada pois o pai da préhistória era certamente terrível e capaz de extrema agressividade As diferenças entre as duas concepções sobre a origem da con sciência diminuem ainda mais portanto se passamos do desenvolvimento in dividual para o filogenético Por outro lado surge aqui uma nova e signific ativa diferença nesses dois processos Não podemos afastar a hipótese de que o sentimento de culpa da humanidade vem do complexo de Édipo e foi ad quirido quando do assassínio do pai pelo bando de irmãos Ali a agressão não foi suprimida mas levada a efeito a mesma agressão cuja supressão deve ser fonte de sentimento de culpa na criança Agora eu não me surpreenderia se um leitor exclamasse irritado Então não importa se alguém mata o pai ou não de toda forma se tem sentimento de culpa Aí podemos nos permitir algumas dúvidas Ou é errado que o sentimento de culpa deriva de agressões suprimi das ou toda a história do assassínio do pai é um romance e os homens primit ivos não matavam seus pais com mais frequência do que os de hoje Além do mais se isso não for um romance mas história plausível teremos um caso em que sucede o que todos esperam ou seja alguém sentirse culpado por ter 65286 realmente feito algo que não se justifica E para esse caso que aliás ocorre to dos os dias a psicanálise nos deve ainda uma explicação Isso é verdadeiro e deve ser reparado Também não é um segredo especial Quando se tem sentimento de culpa após haver infringido algo e por têlo feito esse sentimento deveria antes ser denominado arrependimento Referese apenas a um ato e naturalmente pressupõe que uma consciência a disposição de sentirse culpado já existia antes do ato Tal arrependimento não pode portanto ajudarnos a encontrar a origem da consciência e do sentimento de culpa O que sucede nesses casos cotidianos é habitualmente que uma ne cessidade instintual adquiriu força para satisfazerse não obstante a consciên cia também limitada em sua força e que em virtude do natural debilitamento da necessidade pela sua satisfação é restaurado o anterior equilíbrio de poder Então a psicanálise está certa ao excluir desta discussão o caso do sentimento de culpa por arrependimento por mais frequente que ele seja e por maior que seja a sua importância prática Mas se o sentimento de culpa humano remonta ao assassinato do pai primit ivo esse foi mesmo um caso de arrependimento e não valeria para aquele tempo o pressuposto de consciência e sentimento de culpa anteriores ao ato De onde vinha o arrependimento nesse caso Certamente ele deve nos aclarar o segredo do sentimento de culpa pondo um fim a nossas dificuldades E penso que o faz Esse arrependimento era resultado da primordial ambivalên cia afetiva perante o pai os filhos o odiavam mas também o amavam Depois que o ódio se satisfez com a agressão veio à frente o amor no arrependimento pelo ato e instituiu o Supereu por identificação com o pai deulhe o poder do pai como que por castigo pelo ato de agressão contra ele cometido criou as restrições que deveriam impedir uma repetição do ato E como o pendor agressivo contra o pai se repetiu nas gerações seguintes também o sentimento de culpa persistiu e fortaleceuse de novo com cada agressão suprimida e transferida para o Supereu Creio que agora apreendemos duas coisas muito 66286 claramente a participação do amor na gênese da consciência e a fatídica inevit abilidade do sentimento de culpa Não é decisivo realmente haver matado o pai ou deixado de fazêlo em ambos os casos temos de nos sentir culpados pois o sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalência da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos enquanto essa comunidade assume apenas a forma da família ele tem de se manifestar no complexo de Édipo instituir a consciência criar o primeiro sentimento de culpa Ao se procurar uma ampliação dessa comunidade o mesmo conflito prossegue em formas dependentes do passado é fortalecido e resulta numa in tensificação do sentimento de culpa Como a cultura obedece a um impulso er ótico interno que a faz unir os homens em uma massa intimamente ligada só pode alcançar esse fim mediante um fortalecimento cada vez maior do senti mento de culpa O que teve início com o pai se completa na massa Se a cultura é o curso de desenvolvimento necessário da família à humanidade então está inextricavelmente ligado a ela como consequência do inato conflito ambi valente da eterna disputa entre amor e busca da morte o acréscimo do sen timento de culpa talvez a um ponto que o indivíduo ache difícil tolerar Lem bramos da comovente denúncia contra os poderes celestiais feita pelo grande poeta Vocês nos trazem à existência Deixando que o pobre se torne culpado Depois o abandonam ao sofrimento Pois toda culpa na terra se paga29 E bem podemos dar um suspiro ao perceber que a alguns indivíduos é dado retirar sem maior esforço do torvelinho dos próprios sentimentos os conhecimentos mais profundos aos quais temos de chegar em meio a tortur ante incerteza e incansável tatear 67286 VIII Chegando ao fim desse caminho o autor precisa desculparse com o leitor por não lhe ter sido um guia mais hábil por não lhe haver poupado trechos monótonos e digressões penosas Não há dúvida de que é possível fazer mel hor Tentarei em seguida compensar em parte esses defeitos Em primeiro lugar imagino que os leitores tenham a impressão de que a discussão sobre o sentimento de culpa excedeu as balizas deste ensaio apropriandose de muito espaço e impelindo para a margem o conteúdo rest ante com o qual nem sempre se vincula de modo íntimo Isso pode haver pre judicado a arquitetura do trabalho mas corresponde bem ao propósito de situ ar o sentimento de culpa como o problema mais importante da evolução cul tural e de mostrar que o preço do progresso cultural é a perda de felicidade pelo acréscimo do sentimento de culpa30 O que ainda parecer estranho nesta frase que é o resultado final de nossa investigação pode provavelmente re montar à relação especial até agora não compreendida entre o sentimento de culpa e nossa consciência Bewußtsein Nos casos comuns de arrependimento que consideramos normais ele é bastante perceptível para a consciência es tamos inclusive acostumados a falar de consciência de culpa Schuldbewußtsein em vez de sentimento de culpa O estudo das neuroses às quais devemos as mais valiosas indicações para o entendimento do normal revela situações contraditórias Em uma dessas afecções a neurose obsessiva o sentimento de culpa se impõe de modo ostensivo à consciência dominando o quadro patológico e a vida dos doentes mal deixando que algo mais apareça Na maioria dos outros casos e formas de neurose porém ele permanece total mente inconsciente sem por isso manifestar efeitos menores Os doentes não acreditam em nós quando lhes atribuímos um sentimento de culpa 68286 inconsciente para que nos compreendam em alguma medida nós lhes falam os de uma inconsciente necessidade de castigo na qual se expressa o senti mento de culpa Mas a relação com uma forma particular de neurose não deve ser superestimada também na neurose obsessiva há tipos de doentes que não percebem o seu sentimento de culpa ou que o sentem como um doloroso mal estar uma espécie de angústia apenas quando se veem impedidos de executar determinadas ações Deveria ser possível compreender finalmente essas coisas ainda não somos capazes disso Talvez seja aqui bemvinda a observação de que o sentimento de culpa nada é no fundo senão uma variedade topográfica da angústia e em suas fases posteriores coincide inteiramente com o medo ao Supereu Na relação com a consciência a angústia exibe as mesmas ex traordinárias variações De algum modo a angústia se acha por trás de todo sintoma mas ora reivindica ruidosamente para si a consciência inteira ora se oculta de modo tão perfeito que nos vemos obrigados a falar de angústia in consciente ou se quisermos ter uma mais limpa consciência Gewissen psicológica já que a angústia é em princípio uma sensação de possibilidade de angústia E por isso é fácil conceber que também a consciência de culpa produzida pela cultura não seja reconhecida como tal permaneça inconsciente ou venha à luz como um malestar uma insatisfação para a qual se busca out ras motivações Pelo menos as religiões não desconheceram jamais o papel do sentimento de culpa na cultura Elas pretendem algo que não considerei em outro lugar31 redimir a humanidade desse sentimento de culpa a que chamam pecado A partir do modo como se atinge essa redenção no cristian ismo com a morte sacrificial de um indivíduo que toma a si a culpa comum a todos inferimos qual poderia ter sido a primeira ocasião em que se adquiriu essa culpa original com a qual também a cultura teve início32 Pode não ser de muita importância mas provavelmente não será supérfluo esclarecermos o sentido de vocábulos como Supereu consciência Gewissen sentimento de culpa necessidade de castigo e 69286 arrependimento que usamos talvez frequentemente de maneira frouxa e intercambiável Todos dizem respeito à mesma coisa mas designam diferentes aspectos dela O Supereu é uma instância explorada por nós a consciência uma das funções que a ele atribuímos a de vigiar os atos e intenções do Eu e de julgar exercendo uma atividade censória O sentimento de culpa a dureza do Supereu é então o mesmo que a severidade da consciência é a percepção que tem o Eu de ser vigiado assim a apreciação da tensão entre os seus es forços e as exigências do Supereu e o medo ante essa instância crítica subja cente à relação inteira a necessidade de castigo é uma expressão instintual do Eu que por influência do Supereu sádico tornouse masoquista ou seja emprega uma parte do instinto para destruição interna nele presente para formar uma ligação erótica com o Supereu Não se deve falar de consciência moral antes de demonstrar a existência de um Supereu quanto à consciência de culpa é preciso admitir que se apresenta antes do Supereu ou seja tam bém antes da consciência moral É então a expressão imediata do medo à autoridade externa o reconhecimento da tensão entre o Eu e esta última o de rivado direto do conflito entre a necessidade do amor dela e o ímpeto de satis fação instintual cuja inibição gera a tendência à agressão A superposição des sas duas camadas do sentimento de culpa uma vindo do medo à autoridade externa outra do medo à interna tornou mais difícil enxergarmos a trama da consciência moral Arrependimento é um nome geral para a reação do Eu num caso de sentimento de culpa contém pouco transformado o material de sensações da angústia que atua por trás é ele mesmo um castigo e pode incluir a necessidade de castigo também ele pode ser mais velho que a consciência moral Não fará nenhum mal passarmos em revista as contradições que por um momento nos confundiram em nossa investigação O sentimento de culpa de via ser em determinado ponto consequência de agressões não realizadas mas em outra ocasião e justamente no seu início histórico o parricídio consequên cia de uma agressão levada a cabo Achamos também a saída para essa 70286 dificuldade O estabelecimento da autoridade interna do Supereu mudou radicalmente a situação Antes o sentimento de culpa coincidia com o arre pendimento nisso observamos que se deve reservar a designação de arre pendimento para a reação após efetivamente haver sido realizada a agressão Depois a diferença entre agressão intencionada e realizada perdeu sua força devido à onisciência do Supereu o sentimento de culpa podia ser gerado tanto por uma violência realmente consumada como todos sabem quanto por uma apenas intencionada como verificou a psicanálise O con flito entre os dois instintos primordiais oriundo da ambivalência produz o mesmo efeito com ou sem mudança na situação psicológica Somos tentados a buscar aí a solução para o enigma da relação variável que o sentimento de culpa mantém com a consciência O sentimento de culpa por arrependimento em virtude da má ação teria de ser sempre consciente aquele por percepção do mau impulso poderia permanecer inconsciente Não é tão simples porém a neurose obsessiva contradiz enfaticamente isso A segunda contradição era que a energia agressiva da qual imaginamos dotado o Supereu apenas dá con tinuidade e mantém para a vida psíquica segundo uma concepção a energia punitiva da autoridade externa enquanto para outra concepção seria antes a nossa própria agressividade que não tendo alcançado aplicação é dirigida contra essa autoridade inibidora A primeira visão parecia adequarse melhor à história a segunda à teoria do sentimento de culpa Uma reflexão mais de morada apagou quase em demasia a oposição aparentemente inconciliável restou de essencial e comum a ambas que se trata de uma agressão deslocada para dentro A observação clínica por sua vez permite distinguir realmente duas fontes para a agressividade atribuída ao Supereu das quais uma ou outra exerce o efeito maior num caso particular mas que em geral atuam conjuntamente Este é o lugar creio para defender seriamente uma concepção que antes sugeri como suposição provisória Na mais recente literatura psicanalítica há 71286 uma predileção pela teoria segundo a qual toda espécie de frustração toda sat isfação instintual contrariada tem ou pode ter por consequência uma elevação do sentimento de culpa33 Acho que reduziremos bastante as dificuldades teóricas se deixarmos isso valer apenas para os instintos agressivos e não se achará muita coisa que vá de encontro a essa hipótese Pois como explicar dinâmica e economicamente que no lugar de uma exigência erótica não cumprida surja um acréscimo do sentimento de culpa Isso parece possível apenas por um rodeio que o impedimento da satisfação erótica desperte um quê de pendor agressivo contra a pessoa que atrapalha a satisfação e que essa agressividade mesma tem de ser suprimida Mas então é somente a agressivid ade que se transforma em sentimento de culpa ao ser suprimida e transmitida para o Supereu Estou convencido de que poderemos expor muitos processos de modo mais simples e transparente se limitarmos aos instintos agressivos o achado da psicanálise relativo à derivação do sentimento de culpa O exame do material clínico não fornece resposta inequívoca neste ponto pois conforme nosso pressuposto as duas espécies de instintos quase nunca aparecem puras isoladas uma da outra mas a apreciação de casos extremos provavelmente apontará na direção que espero Fico tentado a extrair uma primeira vantagem dessa concepção mais rigorosa aplicandoa ao processo de repressão Os sin tomas das neuroses são como vimos essencialmente satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados No curso do trabalho psicanalítico apren demos para nossa surpresa que talvez toda neurose esconda um quê de senti mento de culpa inconsciente que por sua vez fortalece os sintomas ao usálos como castigo Agora é plausível formular a seguinte proposição quando uma tendência instintual sucumbe à repressão seus elementos libidinais se trans formam em sintomas seus componentes agressivos em sentimento de culpa Ainda que seja apenas aproximadamente correta esta frase merece o nosso interesse 72286 Alguns leitores deste trabalho podem achar que ouviram demasiadas vezes a fórmula da luta entre Eros e instinto de morte Ela caracterizaria o processo cultural que se desenrola na humanidade mas referese também ao desenvol vimento do indivíduo e desvendaria além do mais o próprio segredo da vida orgânica Parece indispensável pesquisar as relações que existem entre os três processos A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que o processo cultural da humanidade e o desenvolvimento do indivíduo são tam bém processos vitais e portanto participam da característica mais ampla da vida Por outro lado justamente por isso a constatação desse traço geral não contribui em nada para a diferenciação entre eles enquanto certas condições particulares não vêm delimitálo Só podemos nos tranquilizar então afirm ando que o processo cultural é a modificação que o processo vital experimenta sob influência de uma tarefa colocada por Eros e instigada por Ananke a real necessidade e que essa tarefa consiste na união de indivíduos separados em uma comunidade ligada libidinalmente Mas se olharmos a relação entre o processo cultural da humanidade e o processo de desenvolvimento ou edu cação do indivíduo sem muito hesitar decidiremos que ambos são de natureza muito parecida se não forem o mesmo processo realizado em objetos difer entes Naturalmente o processo cultural do gênero humano é uma abstração de ordem mais alta que o desenvolvimento do indivíduo e portanto mais difícil de apreender vivamente tampouco a busca de analogias deve ser exagerada compulsivamente Mas tendo em vista a semelhança dos fins num caso a integração de um indivíduo num grupo humano no outro a criação de uma unidade coletiva a partir de muitos indivíduos não pode nos surpreender a similaridade dos meios empregados e dos fenômenos advindos Em virtude da sua extraordinária importância não cabe silenciar por mais tempo a respeito de um traço diferenciador dos dois processos No processo de desenvolvimento do indivíduo conservase a principal meta do programa do princípio do prazer achar a satisfação da felicidade e a integração ou adaptação a uma comunidade aparece como uma condição inevitável que se deve cumprir para 73286 alcançar a meta de felicidade Se pudéssemos fazêlo sem esta condição seria talvez melhor Em outros termos o desenvolvimento individual nos aparece como um produto da interferência de duas tendências a aspiração à felicidade que habitualmente chamamos de egoísta e a aspiração à união com outros na comunidade que denominamos altruísta As duas designações não vão muito além da superfície No desenvolvimento individual como foi dito a ên fase cai geralmente na aspiração egoísta ou à felicidade a outra que pode ser chamada cultural contentase via de regra com o papel restritivo É difer ente no processo cultural Nele o principal é de longe a meta de criar uma unidade a partir dos indivíduos humanos a meta da felicidade ainda existe mas é impelida para segundo plano quase parece que a criação de uma grande comunidade humana teria êxito maior se não fosse preciso preocuparse com a felicidade do indivíduo O processo de desenvolvimento individual pode então ter traços especiais que não se repetem no processo cultural humano é apenas na medida em que o primeiro desses processos tem por meta a incorporação na comunidade que ele necessariamente coincide com o segundo Assim como um planeta circula em volta do seu astro central além de rodar em torno do seu próprio eixo também um ser humano participa do curso evol utivo da humanidade enquanto segue o seu caminho de vida Para nossos ol hos obtusos no entanto o jogo de forças do céu parece fixado numa ordem imutável na vida orgânica vemos ainda como as forças lutam entre si e os res ultados do conflito mudam constantemente Assim também as duas tendências a de felicidade individual e a de união com outros seres têm de lutar uma com a outra no interior de cada indivíduo assim os dois processos de evolução in dividual e cultural precisam defrontarse e disputar um ao outro o terreno Mas essa luta entre indivíduo e sociedade não deriva da oposição provavel mente inconciliável entre os dois instintos primevos Eros e Morte significa uma desavença na casa da libido comparável à briga pela distribuição da libido entre o Eu e os objetos e admite um equilíbrio final no indivíduo oxalá 74286 também no futuro da civilização apesar de atualmente dificultarlhe tanto a vida A analogia entre o processo cultural e o desenvolvimento do indivíduo pode ser ampliada num aspecto importante Pois é lícito afirmar que também a comunidade forma um Supereu sob cuja influência procede a evolução cul tural Pode ser uma tarefa atraente para um conhecedor das culturas humanas perseguir em detalhes essa analogia Eu me limitarei a destacar alguns pontos notáveis O Supereu de uma época cultural tem origem semelhante ao de um indivíduo baseiase na impressão que grandes personalidadeslíderes deix aram homens de avassaladora energia espiritual ou nos quais uma das tendên cias humanas achou a expressão mais forte e mais pura e por isso também com frequência a mais unilateral Em muitos casos a analogia vai ainda mais longe na medida em que essas pessoas frequentemente talvez sempre foram durante a vida zombadas maltratadas e mesmo cruelmente eliminadas pelas outras tal como também o pai primevo ascendeu a divindade apenas muito depois de sua morte violenta O mais impressionante exemplo dessa conjunção do destino é justamente a pessoa de Jesus Cristo se porventura não pertence ao reino do mito que a chamou à vida em obscura memória daquele evento primevo Um outro ponto de concordância é que o Supereu da cul tura exatamente como o do indivíduo institui severas exigências ideais cujo não cumprimento é punido mediante angústia de consciência E aqui se produz mesmo o caso curioso de os processos psíquicos em questão serem para nós mais familiares e mais acessíveis à consciência quando vistos no grupo do que podem sêlo no indivíduo Neste apenas as agressões do Supereu no caso de tensão fazemse audíveis como recriminações enquanto as exigências mes mas com frequência ficam inconscientes no segundo plano Se as trazemos para o conhecimento consciente revelase que coincidem com os preceitos do Supereu cultural prevalecente Nesse ponto os dois processos o da evolução cultural da massa e o do indivíduo estão colados um ao outro por assim dizer Daí que não poucas manifestações e características do Supereu podem ser 75286 mais facilmente notadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo O Supereu da cultura desenvolveu seus ideais e elevou suas exigências Entre as últimas as que concernem às relações dos seres humanos entre si são designadas por ética Em todos os tempos as pessoas deram enorme valor a essa ética como se dela esperassem realizações de particular importância De fato a ética se dedica ao ponto facilmente reconhecido como o mais frágil de toda cultura Ela há de ser vista então como tentativa terapêutica como es forço de atingir por um mandamento do Supereu o que antes não se atingiu com outro labor cultural Já sabemos que aqui se coloca o problema de como afastar o maior obstáculo à cultura o pendor constitucional dos homens para a agressão mútua e por isso mesmo nos interessamos especialmente por aquele que é provavelmente o mais jovem dos mandamentos do Supereu cultural o que diz Ama teu próximo como a ti mesmo A investigação e a terapia das neuroses nos levam a sustentar duas objeções contra o Supereu individual Pela severidade dos seus mandamentos e proibições ele se preocupa muito pouco com a felicidade do Eu não levando devidamente em conta as resistên cias ao cumprimento deles a força instintual do Id e as dificuldades do ambi ente real Daí que movidos pela intenção terapêutica frequentemente somos obrigados a combater o Supereu e nos empenhamos em fazer baixarem suas exigências Recriminações idênticas podem ser feitas às reivindicações éticas do Supereu cultural Também este não se preocupa suficientemente com os fatos da constituição psíquica do ser humano emite uma ordem e não se per gunta se é humanamente possível cumprila Supõe isto sim que para o Eu do ser humano é possível psicologicamente tudo aquilo de que o incumbem que o Eu tem domínio irrestrito sobre o seu Id Isto é um erro e também nos cha mados homens normais o controle sobre o Id não pode ir além de certos lim ites Exigindo mais produzimos no indivíduo rebelião ou neurose ou o tor namos infeliz O mandamento Ama teu próximo como a ti mesmo é a mais forte defesa contra a agressividade humana e um belo exemplo do 76286 procedimento antipsicológico do Supereu cultural O mandamento é in exequível uma tão formidável inflação do amor só pode lhe diminuir o valor não eliminar a necessidade A civilização negligencia tudo isso recorda apenas que quanto mais difícil o cumprimento do preceito mais meritório vem a ser ele Mas quem segue tal preceito na civilização atual põese em desvantagem diante daquele que o ignora Que poderoso obstáculo à cultura deve ser a agressividade se a defesa contra ela pode tornar tão infeliz quanto ela mesma A chamada ética natural nada tem a oferecer aqui salvo a satisfação narcísica de o indivíduo poder se considerar melhor do que os outros A ética que se apoia na religião introduz aqui suas promessas de um alémtúmulo melhor Acho que enquanto a virtude não compensar já nesta vida a ética pregará em vão Pareceme também fora de dúvida que uma real mudança nas relações das pessoas com a propriedade será de maior valia neste ponto que qualquer mandamento ético mas entre os socialistas esta compreensão é turvada por um novo desconhecimento idealista da natureza humana e assim tornada sem val or para a aplicação A linha de abordagem que procura estudar nos fenômenos da evolução cul tural o papel de um Supereu me parece prometer ainda outros esclarecimentos Apressome a concluir Mas de uma questão não posso me es quivar Se a evolução cultural tem tamanha similitude com a do indivíduo e trabalha com os mesmos recursos não seria justificado o diagnóstico de que muitas culturas ou épocas culturais ou possivelmente toda a humanidade tornaramse neuróticas por influência dos esforços culturais A dis secação analítica dessas neuroses poderia ser acompanhada de sugestões terapêuticas que reivindicariam muito interesse prático Não posso dizer que uma tentativa dessas de transferência da psicanálise para a comunidade cultur al não teria sentido ou estaria condenada à esterilidade Mas teríamos de ser muito prudentes e não esquecer que se trata apenas de analogias e que não apenas com seres humanos também com conceitos é perigoso retirálos da 77286 esfera em que surgiram e evoluíram O diagnóstico das neuroses da comunid ade também encontra uma dificuldade especial Na neurose individual nos serve de referência imediata o contraste que distingue o enfermo de seu ambi ente tido como normal Tal pano de fundo não existe para um grupo igual mente afetado teria que ser arranjado de outra forma E no que diz respeito à aplicação terapêutica da compreensão de que adiantaria a mais pertinente an álise da neurose social se ninguém possui a autoridade para impor ao grupo a terapia Apesar de todas essas dificuldades podese esperar que um dia al guém ouse empreender semelhante patologia das comunidades culturais Está longe de mim pelos motivos mais diversos fazer uma avaliação da cultura humana Esforceime para manter distância do preconceito entusiasta segundo o qual nossa civilização é o que temos ou podemos ter de mais pre cioso e sua trilha nos levará necessariamente a alturas de insuspeitada per feição Posso ao menos escutar sem indignação o crítico que acha que tendo em conta os fins do empenho cultural e os meios de que se utiliza deveríamos chegar à conclusão de que o empenho todo não vale a pena e o resultado pode ser tão só uma condição intolerável para o indivíduo Facilita a minha impar cialidade o fato de saber muito pouco sobre tudo isso de saber apenas uma coisa com certeza que os juízos de valor dos homens são inevitavelmente gov ernados por seus desejos de felicidade e que portanto são uma tentativa de escorar suas ilusões com argumentos Eu entenderia muito bem quem desta casse o caráter forçoso da cultura humana e dissesse por exemplo que a in clinação a limitar a vida sexual ou a impor o ideal humanitário à custa da seleção natural é uma direção evolutiva que não pode ser desviada nem evitada ante a qual é melhor curvarse como se fosse uma necessidade da natureza Conheço também a objeção a isso a de que tendências tidas por in superáveis foram frequentemente na história da humanidade postas de lado e substituídas por outras Assim me falta o ânimo de apresentarme aos semel hantes como um profeta e me curvo à sua recriminação de que não sou capaz 78286 de lhes oferecer consolo pois no fundo é isso o que exigem todos tanto os mais veementes revolucionários como os mais piedosos crentes de forma igualmente apaixonada A meu ver a questão decisiva para a espécie humana é saber se e em que medida a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição Precis amente quanto a isso a época de hoje merecerá talvez um interesse especial Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o úl timo homem Eles sabem disso daí em boa parte o seu atual desassossego sua infelicidade seu medo Cabe agora esperar que a outra das duas potências celestiais o eterno Eros empreenda um esforço para afirmarse na luta contra o adversário igualmente imortal Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace 1 Liluli 1923 1919 Desde a publicação dos livros La vie de Ramakrishna e La vie de Vivekananda 1930 não preciso mais esconder que o amigo de que falo no texto é Romain Rolland Nota acrescentada em 1931 2 Christian Dietrich Grabbe Hannibal Ja aus der Welt werden wir nicht fallen Wir sind ein mal darin Sim para fora do mundo não cairemos Simplesmente estamos nele Tradução literal do verbo konstruieren aqui empregado no sentido figurado de traçar es boçar conceber o substantivo correspondente aparece no título de um dos últimos textos de Freud Konstruktionen in der Analyse 1937 e na citação que ele faz do romancista Theodor Fontane algumas páginas adiante Das versões estrangeiras consultadas três adotam essa mesma solução a argentina a italiana e a Standard inglesa enquanto duas preferem recon struir a espanhola de Rey Ardid Biblioteca Nueva e a inglesa de Joan Riviere no vol 54 de Great Books of the Western World e a francesa de Odier traz reconstituer As notas chamadas por asterisco e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As notas do autor são sempre numeradas 79286 3 Ver os numerosos trabalhos sobre desenvolvimento do Eu e sentimento do Eu desde Entwicklungsstufen des Wirklichkeitssinnes Estágios no desenvolvimento do sentido da realidade 1913 de Ferenczi até as contribuições de Paul Federn em 1926 1927 e depois 4 Segundo The Cambridge ancient history v vii 1928 The founding of Rome por Hugh Last Es freue sich Wer da atmet im rosigen Licht Schiller Der Taucher O mergulhador 5 Wer Wissenschaft und Kunst besitzt hat auch Religion Wer jene beiden nicht besitzt der habe Religion Goethe Zahmen Xenien ix Gedichte aus dem Nachlass No original Es geht nicht ohne Hilfskontruktionen a frase se acha no mais célebre romance de Fontane cujo título é o nome da protagonista Effi Briest 1895 6 Em Die Fromme Helene Wilhelm Busch diz a mesma coisa de maneira mais chã Wer Sorgen hat hat auch Likör Quem tem pesares tem também licores Zweckdienlichkeit no original tratase de uma substantivação do adjetivo zweckdienlich que significa útil ou adequado dienlich a um determinado fim Zweck Nas versões estrangeiras consultadas encontramos adecuación y eficiencia carácter acorde a fines efficacia utilité effi ciency efficacy Além daquelas normalmente utilizadas as duas em espanhol a italiana e a Standard inglesa dispusemos de uma antiga versão francesa Malaise dans la civilisation Par is puf 1971 trad Ch e J Odier e da pioneira tradução inglesa de Joan Riviere Civilization and its discontents de 1930 reproduzida em Great books of the Western world vol 54 Chicago Encyclopaedia Britannica 1952 7 Goethe chega a advertir Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos Mas isso pode ser um exagero Freud utiliza entre aspas uma expressão coloquial para a bebida alcoólica Sorgenbrecher lit eralmente quebrador de preocupações Nessa frase os termos Triebregung aqui vertido por impulso instintual e Trieb aqui traduzido por instinto são claramente usados como sinônimos 80286 8 Não havendo uma disposição especial que prescreva imperiosamente a direção dos interesses vitais de alguém o trabalho acessível a todos pode ocupar o lugar que lhe é proposto pelo sá bio conselho de Voltaire Não é possível nos limites de um panorama sucinto examinar satis fatoriamente a importância do trabalho para a economia libidinal Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à realidade como a ênfase no trabalho que no mínimo a insere de modo seguro numa porção da realidade na comunidade humana A possibilidade que oferece de deslocar para o trabalho e os relacionamentos humanos a ele lig ados uma forte medida de componentes libidinais narcísicos agressivos e mesmo eróticos emprestalhe um valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a afirmação e justificação da existência na sociedade A atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente isto é quando permite tornar úteis através da sublimação pen dores existentes impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados E no en tanto o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade As pessoas não se lançam a ele como a outras possibilidades de gratificação A imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade e graves problemas sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho 9 Cf Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico 1911 e a 23a das Conferências introdutórias à psicanálise 1917 10 Sinto que devo apontar ao menos uma das lacunas da exposição acima Uma consideração das possibilidades humanas de felicidade deveria levar em conta a relação do narcisismo com a libido objetal Necessitamos saber o que significa para a economia libidinal depender essencial mente de si mesma 11 Ver O futuro de uma ilusão 1927 No original Kultur termo que consta no título deste ensaio Em alemão também existe Zivilisation mas seria um simplismo verter automaticamente os dois termos por cultura e civilização em português pois o campo semântico ou conjunto de sentidos de cada um deles não é idêntico nas duas línguas e pode variar até mesmo no interior de uma delas de acordo com a época Assim em determinado período consideravase Kultur algo interior pro fundo germânico numa concepção devedora do romantismo alemão diferentemente de Zivilisation que seria algo externo superficial francês Talvez seja a essa oposição que Freud se refere ao afirmar em O futuro de uma ilusão que se recusa a distinguir entre Kultur e 81286 Zivilisation Para chegar aos sentidos de um termo é preciso verificar os contextos em que é usado o significado se depreende do uso Neste texto Kultur é empregado muitas vezes para designar o que chamamos de civilização ou seja uma cultura onde há enorme desen volvimento das instituições técnicas e artes e algumas vezes para designar cultura num sen tido mais antropológico digamos sendo que em várias ocasiões os termos são intercambiáveis Portanto o leitor também encontrará cultura no texto Nas versões estrangeiras consultadas os tradutores recorreram geralmente a civilização para verter o título com exceção do sempre literal argentino que preferiu cultura e do italiano que dispõe do singular vocábulo civiltà que não é exatamente civilizzazione nem cultura Já o adjetivo kulturell é aqui normal mente vertido por cultural e a solução encontrada para Kulturmensch foi homem civiliz ado Acrescentemos que a tradução do título deste ensaio foi objeto de um pequeno debate em 1930 quando ia ser publicada a versão inglesa de Joan Riviere O problema era achar um equi valente para Unbehagen pois não havia dúvidas quanto a civilization para Kultur Pensouse em unease malaise discontent desgosto insatisfação Freud sugeriu Mans dis comfort in civilization mas finalmente foi adotada a solução da tradutora Civilization and its discontents título que permanece até hoje cf Peter Gay Freud a life for our time Nova York Norton 1988 p 552n ed brasileira Freud uma vida para o nosso tempo São Paulo Compan hia das Letras 1989 trad Denise Bottmanns No original innere Einsichten nas traduções consultadas intuiciones profundas intelecciones internas intimi convincimenti intuitions profondes inner attitudes inner discernments Não util izamos o adjetivo internas ou interiores porque seria redundante junto a intuições a versão que aqui demos a Einsichten 12 Algum material psicanalítico incompleto de interpretação não inteiramente segura permite ao menos uma conjectura que parece fantástica acerca da origem dessa proeza humana É como se o homem primitivo estivesse habituado ao se deparar com o fogo a satisfazer nele um prazer infantil apagandoo com seu jato de urina Segundo as lendas que possuímos não há dúvida quanto à concepção fálica original da flama que se ergue para o alto em labareda Apagar o fogo urinando algo a que também recorrem depois os gigantes Gulliver em Lili put e Gargântua de Rabelais era então como que um ato sexual com um homem uma fruição da potência masculina numa disputa homossexual Quem primeiro renunciou a este prazer poupando o fogo pôde leválo consigo e colocálo a seu serviço Ao amortecer o fogo de sua própria excitação sexual havia domado a força natural do fogo Essa grande conquista cultural seria então o prêmio por uma renúncia instintual Além disso é como se a mulher 82286 fosse designada a guardiã do fogo aprisionado no lar pois a sua construção anatômica lhe proíbe ceder à tentação desse prazer É também digna de nota a regularidade com que a exper iência analítica atesta a relação entre fogo ambição e erotismo uretral Literalmente ó polegada da natureza A expressão de sotaque shakespeareano não se acha em Shakespeare de acordo com Strachey mas no romance de um contemporâneo do po eta George Wilkins Freud a teria lido numa citação do crítico dinamarquês Georg Brandes Rei Sol isto é Luís xiv É interessante notar que a palavra alemã aqui vertida por móvel é Triebfeder que tem o conhecido Trieb entre seus componentes e que quando se refere a um mecanismo relógio por exemplo é traduzida por mola Nas versões consultadas achamos resorte nas duas em espanhol molla ressort the force behind motive force Vorgang no original Cabe lembrar que o termo alemão admite os significados de processo e de evento Algumas linhas acima foi naturalmente vertido por processo o termo Prozess de sentido inequívoco 13 Ver Caráter e erotismo anal 1908 e numerosas contribuições de Ernest Jones e outros 14 A periodicidade orgânica do processo sexual foi mantida mas o seu efeito na excitação psíquica reverteu no oposto Essa mudança está ligada antes de tudo à retração dos estímulos olfativos através dos quais o processo de menstruação atuava sobre a psique masculina O seu papel foi assumido por excitações visuais que contrastando com os estímulos olfativos inter mitentes podiam ter um efeito permanente O tabu da menstruação deriva dessa repressão or gânica como defesa contra uma fase de desenvolvimento superada todas as outras mo tivações são provavelmente secundárias cf C D Daly Hindumythologie und Kastration skomplex Imago v 13 1927 Este processo se repete em outro nível quando os deuses de uma era cultural ultrapassada se tornam demônios Mas a retração dos estímulos olfativos parece consequência do afastamento do ser humano da terra da decisão de andar ereto que fez os genitais até então escondidos ficarem visíveis e necessitados de proteção despertando assim o pudor No começo do decisivo processo de civilização estaria portanto a adoção da postura ereta pelo homem O encadeamento parte daí através da depreciação dos estímulos olfativos e do isolamento da menstruação até a preponderância dos estímulos visuais a visibilidade que obtêm os órgãos genitais chegando à continuidade da excitação sexual à fundação da família e com isso ao limiar da cultura humana Esta é apenas uma especulação teórica mas de 83286 importância suficiente para justificar uma averiguação exata do modo de vida dos animais próximos ao homem Também é inequívoca a presença de um fator social no esforço cultural pela limpeza que acha uma justificação posterior em considerações higiênicas mas já se manifestava antes delas O impulso à limpeza vem do afã para eliminar os excrementos que se tornaram desagradáveis à percepção sensorial Sabemos que é diferente com os bebês Os excrementos não despertam neles aversão parecemlhes valiosos uma parte que se desprendeu do seu próprio corpo Nisso a educação intervém com particular energia apressando o estágio seguinte do desenvol vimento que deve tornar os excrementos sem valor repugnantes nojentos e condenáveis Tal inversão de valor não seria possível caso essas substâncias expelidas do corpo não fossem con denadas por seus fortes odores a partilhar o destino reservado aos estímulos olfativos depois que o ser humano adotou a postura ereta Portanto o erotismo anal sucumbe primeiramente à repressão orgânica que abriu o caminho para a cultura O fator social que cuida da posteri or transformação do erotismo anal mostrase no fato de que não obstante todos os progressos evolutivos do ser humano dificilmente ele acha repulsivo o cheiro de suas próprias fezes apenas o daquelas de outras pessoas Quem é sujo isto é quem não esconde os próprios excre mentos ofende o outro não demonstra respeito por ele o que também é confirmado pelos mais fortes e mais usuais xingamentos Pois seria incompreensível o fato de o homem utilizar o nome do seu mais fiel amigo no reino animal como termo de insulto se o cachorro não provo casse o desprezo por duas características ser um animal de olfato que não tem horror aos ex crementos e não se envergonhar de suas funções sexuais O adjetivo aqui empregado no original é ökonomisch diferente daquele usado pouco antes e traduzido da mesma forma wirtschaftlich Este tem apenas o sentido comum da palavra em português enquanto o primeiro pode também adquirir em Freud o significado técnico de algo referente à economia psíquica como por exemplo no título O problema econômico do masoquismo de 1924 não é o que ocorre no presente contexto porém 15 Entre as obras do sensível escritor inglês John Galsworthy que atualmente goza do recon hecimento geral há um conto que logo apreciei intitulado The appletree A macieira Ele mostra convincentemente como na vida do homem civilizado de hoje não há mais lugar para o amor simples e natural entre duas criaturas 16 Eis algumas observações em apoio da conjectura acima Também o homem é um animal de inequívoca disposição bissexual O indivíduo corresponde à fusão de duas metades simétricas 84286 das quais uma é puramente masculina e a outra puramente feminina na opinião de vários pesquisadores É igualmente possível que cada metade fosse originalmente hermafrodita A sexualidade é um fato biológico que embora de significação extraordinária para a vida psíquica é psicologicamente difícil de apreender Estamos habituados a dizer que cada pessoa mostra impulsos instintuais necessidades características tanto masculinas como femininas a natureza do masculino ou feminino porém pode ser indicada pela anatomia mas não pela psicologia Para esta a oposição dos sexos empalidece ante aquela entre atividade e passivid ade na qual identificamos precipitadamente a atividade com a masculinidade e a passividade com a feminilidade o que de maneira nenhuma se confirma invariavelmente no reino animal Muita coisa ainda não é clara na teoria da bissexualidade e na psicanálise só podemos ver como um contratempo o fato de não se ter ainda achado conexão entre ela e a teoria dos instintos Como quer que seja se tomamos como verdadeiro que na sua vida sexual o indivíduo quer sat isfazer tanto os desejos masculinos como os femininos estamos preparados para a possibilidade de que essas exigências não sejam cumpridas pelo mesmo objeto e que interfiram umas com as outras quando não se consegue mantêlas separadas e conduzir cada impulso por uma trilha especial apropriada para ele Outra dificuldade vem de que frequentemente se junta à relação erótica além dos seus próprios componentes sádicos um quê de inclinação direta à agressão O objeto amoroso nem sempre vai encarar essas complicações com o entendimento e a tolerân cia da camponesa que reclamou de que seu marido não mais a amava porque há uma semana não a espancava A conjectura que nos leva mais fundo porém é a que retoma as observações feitas na nota 14 p 61 de que com a postura ereta do homem e a depreciação do sentido do olfato não apen as o erotismo anal mas também toda a sexualidade ameaçou tornarse vítima da repressão or gânica de modo que desde então a função sexual é acompanhada de uma repugnância inex plicável de outra forma que impede uma satisfação plena e impele para longe da meta sexual rumo a sublimações e deslocamentos da libido Sei que Bleuler certa vez em Der Sexual widerstand A resistência sexual Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen v 5 1913 chamou a atenção para a existência de uma atitude assim de rejeição primária da vida sexual Todos os neuróticos e muitos além deles chocamse com o fato de que Inter urinas et faeces nascimur Nascemos entre fezes e urina Também os genitais produzem fortes sensações olfativas que para muitas pessoas são intoleráveis e lhes estragam as relações sexuais Assim teríamos que a mais profunda raiz da repressão sexual que acom panha a cultura é a defesa orgânica da nova forma de vida adquirida com a postura ereta con tra a anterior existência animal um resultado da investigação científica que de maneira notável 85286 coincide com preconceitos banais frequentemente expressos Todavia por enquanto estas são apenas possibilidades incertas não consolidadas pela ciência Tampouco devemos esquecer que apesar da inegável depreciação dos estímulos olfativos mesmo na Europa existem povos que valorizam como estimulantes da sexualidade os odores genitais que nos repugnam e não querem renunciar a eles Ver as informações folclóricas obtidas no questionário de Iwan Bloch Über den Geruchssinn in der vita sexualis Sobre o sentido do olfato na vita sexual is em diversos volumes da Anthroprophytea de Friedrich S Krauss 17 Um grande escritor pode se permitir expressar de modo brincalhão pelo menos ver dades psicológicas severamente contidas É assim que Heinrich Heine confessa Tenho a mais pacífica disposição Meus desejos são uma modesta cabana com teto de palha mas uma boa cama boa comida leite e manteiga bem frescos flores diante da janela em frente à porta algu mas belas árvores e se o bom Deus quiser me tornar inteiramente feliz me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos serem enforcados nessas árvores De coração tocado eu lhes perdoarei em sua morte todo o mal que na vida me fizeram pois devemos perdoar nossos inimigos mas não antes de serem executados Heine Gedanken und Einfälle Migração dos povos Völkerwanderung como os alemães designam o que os não alemães denominam invasões dos bárbaros e obriga a civilização a seus grandes dispêndios und die Kultur zu ihrem Aufwand nötigt damos aqui uma tradução literal da palavra Aufwand Strachey também usa expenditure mas acrescenta of energy entre colchetes Etcheverry faz o mesmo e a versão italiana diz un grande dispendio di energia Algumas traduções anteriores apresentam variações uma dela equivocada despliegue de preceptos Rey Ardid tant defforts Odier high demands Riviere 18 Quem na sua juventude viveu as desgraças da pobreza e experimentou a indiferença e ar rogância dos abastados deveria estar a salvo da suspeita de não ter compreensão e boa vontade para com os esforços de combater a desigualdade material entre os homens e tudo o que dela deriva No entanto se esta luta invocar a igualdade entre os homens como exigência abstrata de justiça é fácil objetar que a natureza dotando os indivíduos de aptidões físicas e talentos in telectuais bastante desiguais introduziu injustiças contra as quais não há remédio Em O tabu da virgindade 1918 a terceira das Contribuições à psicologia do amor 19 Ver Psicologia das massas e análise do Eu 1921 86286 20 A oposição que aí surge entre a incansável tendência expansiva de Eros e a natureza em geral conservadora dos instintos é algo que chama a atenção e que pode vir a ser ponto de partida para outras indagações No original Denn die Kindlein Sie hören es nicht gerne Segundo Strachey tratase de uma citação do poema Die Ballade vom vertriebenen und heimgekehrten Grafen Balada do conde banido que retornou de Goethe citação inexplícita pois Freud não usa aspas Strachey acrescentouas na edição inglesa 21 Bastante convincente é a identificação do princípio mau com o instinto de destruição no Mefistófeles de Goethe Denn alles was entsteht Ist wert daß es zu Grunde geht So ist denn alles was Ihr Sünde Zerstörung kurz das Böse nennt Mein eigentliches Element tudo o que vem a ser É digno só de perecer Por isso tudo a que chamais Pecado destruição o mal Meu elemento é integral O próprio Diabo não designa o que é sagrado o bom como seu adversário mas a energia da natureza em procriar em multiplicar a vida Eros portanto Der Luft dem Wasser wie der Erden Entwinden tausend Keime sich Im Trocknen Feuchten Warmen Kalten Hättich mir nicht die Flamme vorbehalten Ich hätte nichts Aparts für mich Da terra da água e mais dos ares Brotam os germes aos milhares No seco frio úmido quente Se não me fosse a chama reservada Pra mim não restaria nada Fausto Primeira Parte cena 3 trad Jenny Klabin Segall São Paulo Nacional sd 22 Nossa atual concepção pode ser expressa de modo aproximado dizendo que em toda mani festação instintual há libido mas nem tudo nela é libido 23 Provavelmente especificando tal como teve de se configurar a partir de um determinado acontecimento ainda a ser descoberto 87286 Referência a um verso de Heinrich Heine em Deutschland Ein Wintermärchen Alemanha Um conto de inverno 1844 Caput i Gewissen no original Recordemos que a palavra portuguesa pode significar duas coisas a percepção que o indivíduo tem de seus atos e sentimentos e a capacidade de fazer distinções morais em alemão se usa Bewußtsein no primeiro caso e Gewissen no segundo É possível re correr a uma paráfrase consciência moral para verter Gewissen No original Angst que designa tanto medo como angústia O leitor deve ter isso presente ao deparar com um desses dois termos em traduções do alemão 24 Recordemos o célebre mandarim de Rousseau Cf Considerações atuais sobre a guerra e a morte 1916 25 Todo espírito lúcido compreenderá e levará em conta que nessa breve exposição é separado nitidamente o que na realidade sucede em transições graduais e que não se trata apenas da ex istência de um Supereu mas de sua relativa força e esfera de influência Tudo o que até agora se disse sobre consciência Gewissen e culpa é de conhecimento geral e praticamente incontestado 26 Esse reforço da moral através do infortúnio é tratado por Mark Twain num delicioso conto The first melon I ever stole O primeiro melão que roubei na vida Por acaso esse primeiro melão não está maduro Assisti ao próprio Mark Twain lendo em público esse conto Depois de anunciar o título ele parou e perguntou a si mesmo como se estivesse em dúvida Was it the first Com isso já dizia tudo O primeiro não foi o único 27 Como foi corretamente destacado por Melanie Klein e outros autores estes ingleses 28 Os dois tipos principais de métodos patogênicos de educação a severidade e a tolerância ex cessivas foram pertinentemente avaliados por Franz Alexander em Psychoanalyse der Gesamtpersönlichkeit Psicanálise da personalidade total 1927 retomando o estudo de Aich horn sobre a juventude abandonada O pai brando e indulgente além da conta favorece na criança a formação de um Supereu demasiado rigoroso porque sob a impressão do amor que recebe esse filho não terá outra alternativa para a sua agressividade que não voltála para den tro Quanto ao abandonado o que foi educado sem amor nele não há tensão entre Eu e Super eu toda a sua agressividade pode se dirigir para fora Então abstraindo um fator constitucional que se supõe existir podese dizer que a consciência severa tem origem na atuação conjunta de 88286 duas influências vitais a frustração do instinto que desencadeia a agressividade e a experiên cia do amor que volta essa agressividade para dentro e a transfere para o Supereu 29 Goethe Canções do harpista em Wilhelm Meister no original Ihr führt ins Leben uns hinein Ihr lasst den Armen schuldig werden Dann überlässt Ihr ihn der Pein Denn jede Schuld rächt sich auf Erden Não há espaço de uma linha vazia entre esse parágrafo e o anterior na edição alemã utilizada Gesammelte Werke Mas considerando que faz sentido um espaço nesse ponto e que ele se acha numa edição alemã mais recente Studienausgabe resolvemos incorporálo aqui e em alguns outros lugares 30 Assim a consciência nos torna a todos covardes Hamlet ato iii cena 1 O fato de ocultar ao jovem o papel que a sexualidade terá em sua vida não é a única recriminação que se deve fazer à educação atual Ela também peca em não preparálo para a agressividade de que ele certamente será objeto Ao soltar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão in correta a educação age como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos Tornase aí evidente um certo abuso das exigências éticas A severidade destas não prejudicaria muito caso a educação dissesse Assim deveriam ser os ho mens para serem felizes e tornarem os outros felizes mas é preciso ter em conta que eles não são assim Em vez disso fazem o jovem acreditar que todos os demais cumprem as pre scrições éticas que são virtuosos Nisso é fundamentada a exigência de que ele também o seja 31 Refirome a O futuro de uma ilusão 1927 32 Totem e tabu 1912 33 Particularmente em Ernest Jones Susan Isaacs Melanie Klein mas também segundo en tendo em Reik e Alexander Na Standard inglesa há um pequeno erro nessa última oração however much that civiliz ation may oppress the life of the individual today lêse ali se xxi p 141 Mas o pronome usado por Freud nesse trecho er diz respeito a der Kampf a luta não a die Kultur a civil ização como entendeu Strachey 89286 NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 1933 TÍTULO ORIGINAL NEUE FOLGE DER VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIE PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO VIENA INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL 1933 255 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XV PP 1197 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE I PP 447608 PREFÁCIO As Conferências introdutórias à psicanálise foram proferidas nos semestres de in verno de 191516 e 191617 numa sala da Clínica Psiquiátrica de Viena para uma plateia de ouvintes de todas as Faculdades A primeira metade das confer ências foi improvisada e redigida imediatamente depois as da segunda metade foram esboçadas no verão durante uma estação de férias em Salzburgo e pro feridas fielmente no inverno seguinte Naquele tempo eu ainda possuía o dom de uma memória fonográfica À diferença daquelas estas novas conferências não foram jamais proferidas Nesse meiotempo a idade me havia dispensado da obrigação de evidenciar mediante conferências que eu pertencia ainda que perifericamente à universidade e uma operação cirúrgica havia me inutilizado como orador Portanto é somente por um artifício da imaginação que eu me coloco nova mente num auditório nas exposições que se seguem Isso pode me ajudar a não perder de vista o leitor ao aprofundar o assunto Estas novas conferências não pretendem de maneira nenhuma tomar o lugar das anteriores Elas não constituem algo independente que possa esperar ter um círculo próprio de leitores sendo antes continuações e complementos que na relação com as anteriores dividemse em três grupos Num primeiro grupo estão novas abordagens de temas que já foram tratados quinze anos at rás mas que devido ao aprofundamento de nossas descobertas e à mudança em nossas concepções exigem agora uma apresentação diversa são revisões críticas portanto Os outros dois grupos contêm as ampliações propriamente ditas tratando de coisas que na época das primeiras conferências ou não exis tiam na psicanálise ou estavam muito pouco presentes para merecer todo um título de capítulo Não há como evitar nem por que lamentar que algu mas das novas conferências reúnam características desses e daquele grupo A dependência destas novas conferências para com as primeiras também se manifesta no fato de continuarem sua numeração A primeira deste volume é chamada de 29a Como as anteriores pouco oferecem de novo ao analista profissional dirigindose ao grande número de pessoas cultas às quais atribuí mos um interesse benévolo ainda que reservado pelas peculiaridades e as conquistas da jovem ciência Mas também nisso a intenção que me guiou foi nada sacrificar a uma aparência de simplicidade completude e unidade não ocultar problemas não negar a existência de lacunas e incertezas Em nenhum outro campo de trabalho científico alguém poderia se gabar de propósitos as sim tão sóbrios e modestos Em toda parte são tidos como evidentes o público não espera outra coisa Nenhum leitor de uma obra de astronomia se sentirá decepcionado nem desdenhará a ciência se lhe forem mostrados os limites em que nosso conhecimento do universo se desfaz em névoas Apenas com a psicologia é diferente nela a constitucional inaptidão humana para a busca científica se revela em plena medida Parece que da psicologia não se exige progresso no saber mas alguma outra satisfação todo problema não resolvido toda incerteza confessa é transformada em recriminação a ela Quem ama a ciência da vida psíquica terá de aceitar também essas durezas viena verão de 1932 freud 29 REVISÃO DA TEORIA DO SONHO Senhoras e senhores Após um intervalo de mais de quinze anos chameios novamente para verificarmos o que esse período trouxe de coisas novas talvez também melhores na psicanálise então é justo e razoável de mais de um ponto de vista que voltemos nossa atenção primeiramente para a teoria dos 92286 sonhos Ela tem lugar especial na história da psicanálise designa um ponto de virada com ela a psicanálise fez a passagem de procedimento psicoterapêutico a psicologia da profundidade Desde então a teoria do sonho é o que há de mais característico e próprio na jovem ciência algo para o qual não existe con trapartida no restante de nosso saber um pedaço de terra nova subtraído à crença popular e ao misticismo A estranheza das afirmações que ela teve de fazer conferiulhe a função de um xibolete cujo emprego decidia quem se tor nava um seguidor da psicanálise e quem não conseguia apreendêla Para mim mesmo ela foi um amparo seguro naqueles tempos difíceis em que os fatos desconhecidos da neurose costumavam nublar meu inexperiente juízo Sempre que eu começava a ter dúvidas sobre a validez dos meus hesitantes conheci mentos quando tinha sucesso em transformar um sonho confuso e sem nexo num claro e inteligível processo psíquico daquele que sonhou renovavase minha confiança de estar na trilha certa Logo para nós há um interesse especial em acompanhar no caso da teoria dos sonhos as mudanças que a psicanálise sofreu nesse intervalo por um lado e os progressos havidos em sua compreensão e avaliação pelos contem porâneos por outro lado Já lhes digo que ficarão decepcionados nos dois aspectos Vamos folhear a coleção da Internationale Zeitschrift für ärztliche Psycho analyse Revista Internacional de Psicanálise Médica em que desde 1913 são reunidos os trabalhos de ponta em nossa área de estudo Nos primeiros volumes vocês acharão uma rubrica permanente intitulada Sobre a inter pretação dos sonhos com substanciais contribuições a diferentes temas da teoria dos sonhos Quanto mais progredirem porém mais raras se tornam es sas contribuições e afinal desaparece a rubrica permanente Os analistas se comportam como se nada mais tivessem a dizer sobre a teoria dos sonhos como se ela estivesse concluída Mas se vocês perguntarem o que foi aceito da interpretação dos sonhos por aqueles de fora os muitos psiquiatras e 93286 psicoterapeutas que esquentam seu guisado em nosso fogo sem muita gratidão por nossa hospitalidade aliás as chamadas pessoas instruídas que costumam assimilar as descobertas mais palpáveis da ciência os literatos e o grande público então a resposta é pouco satisfatória Algumas fórmulas se tor naram conhecidas entre elas umas que jamais defendemos como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual mas coisas importantes como a funda mental distinção entre conteúdo onírico manifesto e pensamentos oníricos lat entes a percepção de que os sonhos angustiantes não contrariam a função de satisfazer desejos do sonho a impossibilidade de interpretar um sonho quando não temos as devidas associações daquele que sonha mas sobretudo o recon hecimento de que o essencial no sonho é o processo do trabalho do sonho tudo isso parece ainda tão alheio à consciência geral como trinta anos atrás Posso afirmar isso porque durante esse tempo recebi um bom número de cartas cujos remetentes contavam seus sonhos para interpretação ou pediam informações sobre a natureza do sonho que diziam haver lido a Interpretação dos sonhos e no entanto em cada sentença revelavam sua incompreensão de nossa teoria Isso não nos impedirá de mais uma vez apresentar sinteticamente o que sabemos sobre os sonhos Vocês se lembram que da vez anterior util izamos várias conferências para mostrar como viemos a compreender esse fenômeno psíquico até então inexplicado Digamos que alguém um paciente em análise por exemplo nos relata um de seus sonhos Nós supomos que desse modo ele faz uma das comu nicações que se comprometeu a fazer iniciando um tratamento psicanalítico Uma comunicação com meios inadequados é certo pois o sonho não é uma expressão social um meio de entendimento Não compreendemos o que ele quer dizer e ele próprio não sabe o que é Então temos que tomar rapidamente uma decisão ou o sonho como nos asseguram os médicos que não são psican alistas é um indício de que a pessoa dormiu mal de que nem todas as partes do seu cérebro descansaram igualmente de que alguns pontos quiseram continuar 94286 trabalhando sob a influência de estímulos desconhecidos e só puderam fazêlo de modo bastante incompleto Se assim for será correto não nos ocuparmos mais do produto psiquicamente sem valor da perturbação noturna pois o que tal pesquisa traria de útil para nossos propósitos Ou então perce bemos que desde o início já decidimos de outra forma Fizemos o pressuposto adotamos o postulado bem arbitrariamente devese admitir de que tam bém esse sonho incompreensível teria de ser um ato psíquico inteiramente válido de sentido e valor plenos que podemos usar como qualquer outra comunicação na análise Somente o resultado da tentativa pode mostrar se es tamos certos Se conseguirmos transformar o sonho numa expressão valiosa desse tipo teremos a perspectiva de aprender algo novo de obter comu nicações de um tipo que para nós de outra forma continuaria inacessível Agora surgem as dificuldades de nossa tarefa e os enigmas de nosso tema Como fazemos para transformar o sonho numa comunicação normal e como explicamos que uma parte das manifestações do paciente tenha assumido essa forma incompreensível para ele e para nós Como veem senhoras e senhores desta vez eu não tomo o caminho de uma exposição genética mas sim dogmática O primeiro passo é estabelecer nossa nova atitude ante o problema do sonho introduzindo dois novos conceitos dois novos nomes Ao que se denominou sonho chamamos de texto do sonho ou sonho manifesto e àquilo que buscamos conjecturamos por trás do sonho por assim dizer de pensamentos oníricos latentes Então podemos enunciar nossas duas tarefas da seguinte forma temos que transformar o sonho manifesto no sonho latente e indicar como na psique do sonhador esse último tornouse aquele A primeira parte é uma tarefa prática cabe à interpretação do sonho necessita de uma técnica a segunda é teórica deve esclarecer o processo suposto do trabalho onírico e pode ser somente uma teoria As duas tanto a téc nica da interpretação dos sonhos como a teoria do trabalho do sonho têm de ser criadas 95286 Com qual parte devemos começar Com a técnica da interpretação dos sonhos creio terá maior efeito e lhes fará uma impressão mais viva Então o paciente relatou um sonho e devemos interpretálo Ouvimos calmamente sem ativar nossa reflexão Que fazer em seguida Resolver nos ocupar o mínimo possível do que acabamos de ouvir do sonho manifesto Sem dúvida este sonho manifesto exibe todo tipo de característica que não é total mente indiferente para nós Pode ser coerente polidamente composto feito uma criação poética ou incompreensivelmente confuso quase como um delírio pode ter elementos absurdos ou gracejos e conclusões aparentemente espirituosas pode parecer claro e bem definido para quem sonha ou turvo e borrado suas imagens terão a plena força sensorial das percepções ou serão vagas como uma névoa indistinta as mais diversas características podem se achar no mesmo sonho distribuídas em lugares diferentes o sonho pode en fim apresentar um tom emocional indiferente ou ser acompanhado das sensações mais alegres ou mais dolorosas não pensem que desdenhamos essa infinita diversidade do sonho manifesto depois retornaremos a ela e en contraremos muita coisa útil para a interpretação mas agora vamos ignorála e tomar a via principal que leva à interpretação Ou seja pedimos ao sonhador que também se liberte da impressão do sonho manifesto que tire sua atenção do conjunto e a dirija para os elementos do conteúdo do sonho e nos comu nique o que lhe ocorre a respeito de cada um desses elementos um após o outro que associações lhe vêm quando os examina separadamente Uma técnica singular não é verdade Não é o modo tradicional de lidar com uma comunicação ou manifestação Certamente vocês já adivinham que por trás desse procedimento se escondem premissas que ainda não foram expli citadas Mas continuemos Em que ordem fazemos o paciente abordar as difer entes partes de seu sonho Há vários caminhos possíveis Podemos simples mente seguir a ordem cronológica tal como ela se deu no relato do sonho Este é digamos o método mais rigoroso clássico Ou podemos orientar o 96286 sonhador para buscar primeiro os restos diurnos do sonho pois a experiência nos ensina que quase todo sonho inclui um resíduo de lembrança ou uma alusão a um evento frequentemente a vários do dia anterior ao sonho e quando seguimos tais ligações muitas vezes damos com a passagem do mundo onírico aparentemente remoto para o mundo real do paciente Ou lhe dizemos para iniciar com os elementos do conteúdo do sonho que mais o impressionam pela nitidez e intensidade Sabemos que lhe será bastante fácil ter associações a partir deles Não faz diferença por qual dessas duas formas nos aproximamos das associações buscadas Então obtemos as associações Elas nos trazem as coisas mais diversas lem branças do dia anterior o dia do sonho e de épocas passadas reflexões dis cussões com prós e contras perguntas confissões Algumas delas jorram do paciente por assim dizer e antes de algumas outras ele para um momento A maioria mostra uma clara relação com um elemento do sonho o que não sur preende já que procedem desses elementos Mas também acontece de o paciente introduzilas com as seguintes palavras Isso parece não ter nada a ver com o sonho falo porque me ocorre Ouvindo todas essas coisas que lhe ocorrem logo notamos que elas têm mais em comum com o teor do sonho do que simplesmente o ponto de partida Lançam uma luz surpreendente sobre todas as partes do sonho preenchem as lacunas entre elas tornam compreensíveis as suas peculiares justaposições Por fim tornase clara a relação entre elas e o conteúdo do sonho Este aparece como um excerto abreviado das associações produzido segundo regras ainda não desvendadas seus elementos sendo como os representantes eleitos de uma multidão Não há dúvida de que conseguimos mediante nossa técnica algo que é substituído pelo sonho e no qual se acha o valor psíquico do sonho mas não mais exibe as estranhas peculiaridades do sonho sua bizarria sua confusão Mas que não haja malentendido As associações relativas ao sonho ainda não são os pensamentos oníricos latentes Estes se acham contidos nas 97286 associações como numa águamãe mas não inteiramente contidos As asso ciações por um lado dão muito mais do que precisamos para formular os pensamentos oníricos latentes a saber todos os desenvolvimentos as transições ligações que o intelecto do paciente teve de produzir no caminho da aproximação aos pensamentos oníricos Por outro lado a associação muitas vezes para antes dos pensamentos oníricos propriamente só chega perto deles toca neles apenas em alusões Nesse ponto nós interferimos completamos as insinuações tiramos inevitáveis conclusões explicitamos aquilo que o paciente apenas roçou com as associações Pode parecer que fazemos nosso engenho e nosso arbítrio jogarem com o material que o sonhador coloca à nossa dis posição e que dele aproveitamos para ler em suas manifestações aquilo que nelas não se acha escrito E também não é fácil mostrar a legitimidade de nosso procedimento numa exposição abstrata Mas façam vocês mesmos a análise de um sonho ou estudem um exemplo bem relatado na literatura psicanalítica e se convencerão da força comprobatória desse trabalho de interpretação Se na interpretação de sonhos nós dependemos em geral e em primeira linha das associações do sonhador em relação a determinados elementos do conteúdo do sonho nós agimos com inteira independência sobretudo porque temos de fazêlo porque normalmente faltam as associações no caso deles Logo notamos que isso ocorre sempre com os mesmos conteúdos Eles não são numerosos e a experiência acumulada nos ensinou que devem ser vistos e in terpretados como símbolos de algo mais À diferença dos outros elementos do sonho pode lhes ser atribuído um significado fixo que não precisa ser inequí voco porém e cuja extensão é determinada por regras especiais com que não estamos habituados Como sabemos traduzir esses símbolos e o sonhador não embora os tenha usado ele próprio pode acontecer que o sentido de um sonho venha a ser claro para nós assim que ouvimos o seu texto antes de qualquer esforço de interpretação enquanto para o próprio sonhador ele permanece um enigma Mas a respeito do simbolismo de nosso conhecimento dele e dos 98286 problemas que nos oferece eu já disse tanta coisa nas conferências anteriores que não há necessidade de me repetir agora Então este é nosso método de interpretação de sonhos A pergunta seguinte inteiramente justificada é podemse interpretar todos os sonhos com ele E a resposta é não todos não mas tantos que estamos seguros da utilidade e justificação do método Mas por que não todos Essa resposta nos ensinará algo importante que já nos introduz nas condições psíquicas da form ação do sonho porque o trabalho da formação do sonho se realiza contra uma resistência que varia de grandezas insignificantes até o insuperável ao menos para nossos meios atuais As manifestações dessa resistência não podem ser ignoradas no decorrer do trabalho Em alguns lugares as associações se fazem sem hesitação e já a primeira ou segunda coisa que ocorre ao paciente traz a explicação Em outros ele para e vacila antes de apresentar uma asso ciação e é frequente ouvirmos uma longa série de coisas que lhe ocorrem até obter algo de útil para a compreensão do sonho Quanto mais longa e tortuosa a cadeia de associações tanto mais forte é a resistência é a nossa funda mentada opinião Também no esquecimento de sonhos advertimos a mesma influência Muitas vezes sucede que o paciente apesar de todo o esforço não mais consegue se lembrar de um sonho Mas depois que com algum trabalho analítico eliminamos uma dificuldade que vinha atrapalhando sua relação com a análise o sonho esquecido reaparece de repente Duas outras observações também cabem aqui Com muita frequência sucede faltar inicialmente uma parte do sonho que depois é acrescentada como complemento Isso deve ser visto como uma tentativa de esquecer essa parte A experiência mostra que justamente ela é a mais significativa supomos que havia uma maior resistência à sua comunicação do que à das outras partes Além disso notamos que às vezes o sonhador busca impedir o esquecimento dos sonhos registrandoos por escrito logo depois de acordar Podemos lhe dizer que isso é inútil pois a resistência à qual ele subtraiu a conservação do texto do sonho deslocase para a associação e torna inacessível à interpretação o sonho manifesto Nessas 99286 circunstâncias não devemos nos admirar de que um incremento da resistência suprima as associações e faça malograr a interpretação Disso tudo tiramos a conclusão de que a resistência que notamos no tra balho de interpretação também deve participar da gênese do sonho Podemos inclusive distinguir entre sonhos que se originaram sob uma pequena ou sob uma elevada pressão da resistência Mas também essa pressão varia de lugar para lugar no interior do mesmo sonho ela é responsável pelas lacunas ob scuridades e confusões que podem interromper a continuidade do mais belo sonho Mas o que está criando resistência e contra o quê Ora a resistência é para nós o mais seguro indício de conflito É preciso haver uma força que quer ex pressar algo e uma outra que busca impedir essa expressão O que então se produz como sonho manifesto pode reunir todas as decisões em que se con densou esta luta entre as duas tendências Num local uma das forças pode ter conseguido impor o que queria dizer em outros a instância oposta logrou ex tinguir inteiramente a comunicação pretendida ou substituíla por algo que não exibe traço dela Os casos mais frequentes e mais característicos da form ação de sonho são aqueles em que o conflito resultou num compromisso de modo que a instância comunicadora pôde dizer o que queria mas não como queria e sim de forma atenuada distorcida irreconhecível Portanto se o sonho não reproduz fielmente o pensamento onírico se é necessário um tra balho de interpretação para cobrir o hiato entre os dois isto é consequência da instância opositora inibidora e limitadora que inferimos de nossa percepção da resistência ao interpretar sonhos Enquanto estudamos o sonho como fenô meno isolado independente das formações psíquicas a ele aparentadas demos a essa instância o nome de censor do sonho Há muito vocês sabem que esta censura não é uma instituição peculiar à vida onírica que o conflito entre duas instâncias psíquicas que denominamos imprecisamente de reprimido inconsciente e o consciente governa nossa vida psíquica em geral e que a resistência à interpretação do sonho o 100286 indício da censura do sonho não é senão a resistência da repressão mediante a qual as duas instâncias se separam Também sabem que o conflito entre elas produz em determinadas condições outras formações psíquicas que tal como o sonho são o resultado de compromissos e não me solicitarão que repita agora tudo o que se acha na introdução à teoria das neuroses a fim de lhes ex por o que sabemos sobre as condições de tal formação de compromissos Vocês entenderam que o sonho é um produto patológico o primeiro membro da série que compreende o sintoma histérico a obsessão o delírio mas que se distingue dos demais por sua fugacidade e por originarse em circunstâncias que são parte da vida normal Pois tenhamos presente que a vida onírica como já disse Aristóteles é o modo como trabalha nossa psique durante o estado de sono Este cria um alheamento do mundo externo real e com isso gerase a condição para o desenvolvimento de uma psicose O mais cuidadoso estudo das psicoses sérias não nos revelará nenhum traço que seja mais característico dessa condição patológica Mas na psicose o afastamento da realidade é provo cado de duas maneiras ou quando o reprimidoinconsciente se torna demasi ado forte de modo que se sobrepõe ao consciente ligado à realidade ou porque a realidade se tornou tão insuportavelmente dolorosa que o Eu ameaçado jogase nos braços dos instintos inconscientes em desesperada re volta A inócua psicose do sonho é o resultado de um consciente e intencional recolhimento ante o mundo externo e desaparece quando são retomadas as re lações com ele Durante o isolamento do sonhador produzse também uma mudança na distribuição de sua energia psíquica uma parte do dispêndio em repressão habitualmente usada para subjugar o inconsciente pode ser poupada dado que se este emprega sua relativa liberação para fins de ativid ade encontra fechado o caminho para a motilidade e livre apenas aquele para a inofensiva satisfação alucinatória Então pode se formar um sonho mas o fato da censura do sonho mostra que também durante o sono mantevese sufi ciente resistência de repressão 101286 Aqui se abre para nós um caminho para responder a pergunta de se o sonho tem uma função se lhe é confiada uma tarefa útil O sossego livre de estímu los que o estado de sono pretende estabelecer é ameaçado de três lados de maneira mais casual por estímulos externos durante o sono e por interesses di urnos que não puderam ser interrompidos e de maneira inevitável pelos insa ciados impulsos instintuais reprimidos que espreitam por uma oportunidade de expressão Devido à diminuição noturna das repressões haveria o perigo de o repouso do sono ser perturbado toda vez que a incitação interna ou externa alcançasse uma ligação com uma das fontes instintuais inconscientes O pro cesso do sonho faz o produto de tal colaboração desembocar numa inocente vivência alucinatória e garante assim a continuidade do sono Não contraria essa função o fato de o sonho acordar momentaneamente o sonhador acom panhado de angústia é antes um sinal de que o guardião vê a situação como perigosa demais e já não acredita poder dominála Não é raro ouvirmos então ainda dormindo a observação tranquilizadora que busca evitar o despertar É só um sonho Isto senhoras e senhores é o que queria lhes dizer sobre a interpretação dos sonhos cuja tarefa é conduzir do sonho manifesto aos pensamentos oníri cos latentes Tendose alcançado isto geralmente acaba o interesse pelo sonho na análise prática Juntase às demais a comunicação recebida em forma de sonho e continuase a análise Mas ainda queremos nos deter no sonho temos interesse em estudar o processo pelo qual os pensamentos oníricos latentes transformaramse no sonho manifesto Nós o chamamos trabalho do sonho Vocês se lembram que nas palestras anteriores eu o descrevi com algum de talhe de modo que hoje posso me limitar a um sucinto resumo Portanto o processo do trabalho do sonho é algo inteiramente novo e sin gular semelhante ao qual nada se conhecia antes Ele nos deu nosso primeiro vislumbre dos processos que ocorrem no sistema inconsciente e nos mostrou que são inteiramente diferentes daquilo que conhecemos de nosso pensar 102286 consciente que para esse último devem parecer inauditos e defeituosos A im portância desse achado foi depois realçada pela descoberta de que na formação dos sintomas neuróticos atuam os mesmos mecanismos não ousamos dizer processos de pensamento que transformaram os pensamentos oníricos latentes no sonho manifesto No que se segue não poderei evitar uma forma esquemática de exposição Vamos supor que num determinado caso enxergamos todos os pensamentos latentes carregados de afeto em maior ou menor grau que substituíram o sonho manifesto depois de realizada a interpretação Chamanos a atenção uma diferença entre eles diferença esta que nos levará longe Quase todos esses pensamentos oníricos são aceitos ou reconhecidos pelo sonhador ele ad mite que pensou aquilo em tal ocasião ou em outra ou que poderia ter pensado aquilo Apenas um pensamento ele se recusa a aceitar é desconhecido para ele talvez até repugnante possivelmente o afastará de si com apaixonada veemência Então se torna claro para nós que os demais pensamentos são frag mentos de um pensar consciente ou melhor préconsciente Eles poderiam ter sido pensados também na vida diurna e provavelmente se formaram dur ante o dia Mas esse pensamento negado ou melhor esse impulso é filho da noite pertence ao inconsciente do sonhador por isso é por ele negado e re jeitado Teve de esperar pelo relaxamento noturno da repressão para chegar a algum tipo de expressão De todo modo essa expressão é atenuada distorcida camuflada sem o trabalho da interpretação não a teríamos encontrado Esse impulso inconsciente deve à ligação com os outros pensamentos oníricos ir repreensíveis a oportunidade de penetrar em discreto disfarce a barreira da censura por outro lado os pensamentos oníricos préconscientes devem a essa mesma ligação o poder de ocupar a vida psíquica também durante o sono Pois já não temos dúvida este impulso inconsciente é o verdadeiro criador do sonho ele fornece a energia psíquica para a sua formação Como qualquer outro impulso instintual ele pode buscar somente a própria satisfação e nossa experiência em interpretar sonhos nos mostra também que este é o sentido da 103286 atividade de sonhar Em todo sonho um desejo instintual deve ser apresentado como realizado O isolamento noturno da vida psíquica diante da realidade a regressão a mecanismos primitivos que assim é possibilitada permitem que a desejada satisfação instintual seja vivida alucinatoriamente como presente Devido à mesma regressão ideias são convertidas em representações visuais nos sonhos os pensamentos oníricos latentes são dramatizados e ilustrados Dessa porção do trabalho onírico obtemos informação sobre algumas das características mais distintas e peculiares do sonho Repetirei o curso de event os da formação do sonho A introdução o desejo de dormir o intencional al heamento do mundo exterior Duas consequências dele para o aparelho psíquico primeiro a possibilidade de que modos de trabalho mais antigos e primitivos surjam neste a regressão segundo a diminuição da resistência de repressão que pesa sobre o inconsciente Como consequência desse último fator dáse a possibilidade da formação do sonho que é aproveitada pelos en sejos os estímulos internos e externos que se tornaram ativos O sonho que se origina desse modo já é uma formação de compromisso Ele tem uma dupla função é por um lado conforme ao Eu pois serve ao desejo de dormir lid ando com os estímulos que perturbam o sono por outro lado permite a um impulso instintual reprimido a satisfação possível nessas circunstâncias na forma de uma realização alucinada do desejo Mas todo o processo da form ação do sonho admitido pelo Eu que dorme é sujeito à condição da censura exercida pelo resto da repressão conservada De maneira mais simples eu não consigo expor o processo ele não é mais simples Agora posso continuar com a descrição do trabalho do sonho Vamos voltar aos pensamentos oníricos latentes Seu mais forte elemento é o impulso instintual reprimido que neles conquistou expressão apoiandose na presença de estímulos casuais e em transferência para os resíduos diurnos ainda que uma expressão atenuada e camuflada Como todo impulso instintual também pressiona pela satisfação através da ação mas o caminho para a motil idade lhe é bloqueado pelos dispositivos fisiológicos do estado de sono ele é 104286 obrigado a tomar a direção regressiva para a percepção e a contentarse com uma satisfação alucinatória Os pensamentos oníricos latentes são convertidos numa série de imagens sensoriais e cenas visuais Por essa via lhes sucede o que nos aparece como algo tão novo e estranho Todos os recursos linguísticos com que são expressas as mais sutis relações de pensamento as conjunções e preposições as mudanças de declinação e conjugação desaparecem porque faltam os meios de representálos Como numa linguagem primitiva sem gramática apenas o material bruto do pensamento é expresso as coisas ab stratas são remetidas às coisas concretas que a elas subjazem O que resta pode facilmente parecer desconexo O fato de na representação de determinados ob jetos e eventos serem empregados em larga medida símbolos que se tornaram estranhos para o pensamento consciente corresponde tanto à regressão arcaica no aparelho psíquico como às exigências da censura Mas outras modificações feitas nos elementos dos pensamentos oníricos vão muito além disso Aqueles que permitem que se faça algum ponto de contato entre eles são condensados em novas unidades Na transposição de pensamentos em imagens são inequivocamente preferidos aqueles que admitem tal reunião ou condensação como se atuasse uma força que submetesse o material a uma compressão ou concentração Devido à condensação um elemento do sonho manifesto pode corresponder a numerosos elementos nos pensamentos oníri cos latentes e de modo inverso um elemento dos pensamentos oníricos pode ser representado por várias imagens no sonho Ainda mais notável é o outro processo o deslocamento ou transferência de acento que no pensamento consciente figura apenas como erro de raciocínio ou recurso humorístico As diferentes ideias nos pensamentos oníricos não têm de fato o mesmo valor são investidas de montantes de afeto variados e correspondentemente são julgadas como sendo mais ou menos importantes e dignas de interesse No trabalho do sonho essas ideias são separadas dos afetos que lhes dizem respeito e os afetos são tratados por si podem ser deslocados para outra coisa podem ser conservados sofrer mudanças ou nem aparecer 105286 no sonho A importância das ideias despojadas de afeto retorna nos sonhos como intensidade sensorial das imagens oníricas mas notamos que o acento passa de elementos significativos para aqueles indiferentes de modo que nos sonhos aparece em primeiro plano como coisa principal o que nos pensamen tos oníricos tem papel apenas secundário e inversamente o essencial dos pensamentos oníricos encontra somente uma representação passageira e pouco nítida Nenhuma outra parte do trabalho do sonho contribui tanto para tornar o sonho estranho e incompreensível para o sonhador O deslocamento é o principal recurso da deformação onírica a que os pensamentos oníricos têm de submeterse por injunção da censura Após essas influências nos pensamentos oníricos o sonho está quase pronto Há ainda um fator meio inconstante a chamada elaboração secun dária depois que o sonho emerge ante a consciência como objeto de per cepção Então nós lidamos com ele como estamos habituados a tratar os con teúdos de nossa percepção buscamos preencher lacunas introduzir nexos com frequência incorrendo em graves malentendidos Mas essa atividade como que racionalizadora que no melhor dos casos provê o sonho de uma fachada lisa que não pode se adequar a seu verdadeiro conteúdo também pode ser omitida ou expressarse num grau muito modesto e então o sonho exibe claramente suas fissuras e rachas Por outro lado não se deve esquecer que o trabalho do sonho também não ocorre sempre com a mesma energia com frequência limitase a determinadas porções dos pensamentos oníricos enquanto outras podem surgir inalteradas no sonho Então se tem a impressão de haver realizado no sonho as operações intelectuais mais sutis e complicadas de ter especulado feito piadas tomado decisões resolvido problemas quando tudo isso é produto de nossa atividade espiritual normal podendo ter sucedido tanto no dia anterior ao sonho como durante a noite nada tendo a ver com o trabalho do sonho e nada mostrando que seja característico do sonho Tam bém não é supérfluo enfatizar o contraste que existe nos pensamentos oníricos 106286 mesmos entre o impulso instintual inconsciente e os resíduos diurnos En quanto esses demonstram toda a multiplicidade de nossos atos psíquicos aquele que se torna o verdadeiro motor da formação do sonho termina regu larmente numa realização de desejo Tudo isso eu poderia ter lhes dito quinze anos atrás aliás creio que cheguei a lhes dizer isso naquele tempo Agora vamos resumir o que houve de mudanças e descobertas nesse intervalo Já lhes disse que receio que achem que é muito pouco e não compreendam por que lhes faço escutar duas vezes e exponho duas vezes a mesma coisa Mas passaramse quinze anos e eu espero dessa forma restabelecer mais facilmente o contato com vocês E também são coisas tão elementares de tão decisiva importância para o entendimento da psicanálise que bem podem ser ouvidas mais uma vez e saber que permanecem idênticas após quinze anos é interessante em si mesmo Naturalmente vocês encontram na bibliografia desse período um grande número de confirmações e de pormenores dos quais pretendo lhes dar apenas amostras Ao mesmo tempo posso abordar algumas coisas que já eram con hecidas antes Referemse sobretudo ao simbolismo e aos outros modos de representação no sonho Saibam que há pouco tempo os professores de medi cina de uma universidade americana se recusaram a atribuir à psicanálise o caráter de ciência com o argumento de que ela não admite provas experi mentais Poderiam ter levantado a mesma objeção à astronomia pois é ex tremamente difícil fazer experiências com os corpos celestes Nela é preciso re correr à observação De todo modo alguns pesquisadores vienenses começaram a confirmar experimentalmente o nosso simbolismo onírico Um certo dr Schrötter descobriu já em 1912 que dando a pessoas profundamente hipnotizadas a instrução de sonhar com experiências sexuais no sonho dali resultante o tema sexual aparece substituído por símbolos que conhecemos Por exemplo uma mulher é instruída a sonhar que tem relação sexual com 107286 uma amiga Em seu sonho a amiga aparece com uma maleta na qual há uma etiqueta que diz Apenas para mulheres Ainda mais impressionantes são os experimentos de Betlheim e Hartmann 1924 que trabalharam com doentes que tinham o chamado distúrbio de Korsakoff Eles lhes contaram histórias de grosseiro conteúdo sexual e observaram as deformações que surgiam quando os pacientes eram solicitados a reproduzilas Novamente se eviden ciaram os símbolos para os órgãos sexuais e o intercurso sexual que nos são fa miliares entre eles o da escada do qual os autores dizem acertadamente que jamais seria obtido num desejo consciente de deformação Numa série de experiências muito interessantes Herbert Silberer mostrou que é possível surpreender o trabalho do sonho in flagranti por assim dizer no ato de transpor pensamentos abstratos em imagens Quando ele num estado de fadiga e sonolência insistia em fazer trabalho intelectual com frequência o pensamento lhe escapava e no seu lugar surgia uma visão que claramente era um substituto dele Eis um exemplo simples Estou pensando diz Silberer na minha in tenção de melhorar um trecho irregular num ensaio Visão Vejome aplain ando um pedaço de madeira Com frequência sucedia nesses experimentos que o conteúdo da visão não vinha a ser o pensamento à espera de elaboração mas o sentimento subjetivo do experimentador durante o esforço o estado em vez do objeto algo que Silberer chamou de fenômeno funcional Um ex emplo lhes mostrará o que quero dizer O autor se empenhou em comparar as opiniões de dois filósofos sobre determinado problema Em sua sonolência no entanto uma delas sempre lhe fugia e por fim lhe ocorreu a visão de que ele solicitava uma informação a um secretário rabugento que curvado sobre uma escrivaninha a princípio não atentava para ele e depois o olhava de má vont ade As condições mesmas do experimento devem explicar por que a visão as sim obtida constituía frequentemente um resultado da autoobservação 108286 Continuemos com os símbolos Havia alguns que acreditávamos recon hecer mas nos incomodava não saber dizer de que modo aquele símbolo chegara a ter aquela significação Nesses casos confirmações vindas de outra parte da linguística folclore mitologia ritual eram particularmente bemvin das Um exemplo desse tipo era o símbolo do manto ou casaco Mantel Dizíamos que no sonho de uma mulher o manto significava um homem Es pero que fiquem impressionados ao ouvir o que Theodor Reik nos relatou em 1920 Na antiga cerimônia nupcial dos beduínos o noivo cobre a noiva com um manto especial denominado aba dizendo as seguintes palavras De agora em diante ninguém te cobrirá exceto eu conforme Robert Eisler Weltenmantel und Himmelszelt Coberta do mundo e tenda do céu Munique 2 vols 1910 Encontramos também vários outros símbolos novos dos quais quero lhes dar pelo menos dois exemplos Segundo Abraham 1922 a aranha no sonho é um símbolo da mãe mas da mãe fálica da qual se tem medo de forma que o temor da aranha exprime o pavor do incesto com a mãe e o horror dos genitais femininos Talvez vocês saibam que uma criação mitológica a cabeça da Medusa referese ao mesmo tema do pavor da castração O outro símbolo de que gostaria de falar é aquele da ponte Ferenczi o esclareceu em 192122 Ele significa originalmente o membro masculino que liga o pai e a mãe no intercurso sexual mas depois desenvolve outros significados oriundos daquele Na medida em que se deve ao membro masculino o fato de se ter vindo ao mundo a partir do líquido amniótico a ponte se torna a passagem do Além o nãohaveraindanascido o útero materno para o Aquém a vida e como o ser humano também imagina a morte como retorno ao útero ao líquido a ponte adquire também o significado de transposição para a morte e enfim afastandose mais ainda do sentido inicial vem a designar passagem mudança de estado Harmonizase com isso o fato de uma mulher que não su perou o desejo de ser homem sonhar frequentemente com pontes que são muito curtas para alcançar a outra margem 109286 No conteúdo manifesto dos sonhos aparecem com frequência imagens e situações que lembram conhecidos temas de contos de fadas lendas e mitos A interpretação desses sonhos lança alguma luz sobre os interesses originais que geraram esses temas mas não podemos esquecer naturalmente a mudança de sentido que esse material sofreu ao longo dos tempos Nosso trabalho de inter pretação desvela por assim dizer a matériaprima que muitas vezes pode ser chamada de sexual no mais amplo sentido mas que encontra o mais variado emprego em elaborações posteriores Tais derivações costumam nos render a ira dos pesquisadores de orientação não psicanalítica como se quiséssemos negar ou menosprezar tudo o que em desenvolvimentos posteriores foi edi ficado sobre aquilo No entanto tais percepções são instrutivas e interess antes O mesmo vale para a derivação de certos temas das artes plásticas quando por exemplo M J Eisler em 1919 seguindo indicações nos sonhos de seus pacientes interpreta psicanaliticamente o jovem que brinca com o menino no Hermes de Praxíteles Por fim não posso deixar de mencionar a frequência com que temas mitológicos precisamente acham explicação através da interpretação de sonhos Assim por exemplo a lenda do labirinto pode ser vista como representação de um nascimento anal os caminhos intrincados sendo os intestinos e o fio de Ariadne o cordão umbilical Os modos de representação usados no trabalho do sonho um material fas cinante e quase inesgotável foram ficando cada vez mais conhecidos mediante o estudo aprofundado Eu lhes darei algumas amostras deles Por exemplo o sonho representa a relação de frequência com a multiplicação do mesmo Es cutem o peculiar sonho de uma menina Ela entra numa sala grande e acha ali sentada numa cadeira uma pessoa o que é repetido seis sete oito vezes mas é sempre o seu pai a pessoa Isto é fácil de compreender quando descobrimos por determinadas circunstâncias da interpretação que aquele espaço é útero materno Então o sonho passa a equivaler à fantasia bem nossa conhecida da garota que já na vida intrauterina teria se encontrado com o pai quando ele 110286 durante a gravidez da mãe visitavalhe o útero O fato de algo no sonho estar invertido de a entrada do pai ser deslocada para ela não deve confundir vo cês isso tem aliás uma significação particular A multiplicação da pessoa do pai só pode expressar que o evento em questão ocorreu várias vezes Na real idade devemos admitir que o sonho não ousa muito quando exprime frequên cia mediante acumulação Ele apenas retomou a significação primordial da pa lavra que hoje designa para nós uma repetição no tempo mas que procede do ajuntamento no espaço Sempre que possível o trabalho do sonho converte relações temporais em espaciais e as apresenta assim Vejase num sonho uma cena entre pessoas que aparecem bem pequenas e distantes como se as vísse mos pelo lado errado de um binóculo Tanto a pequenez como a distância es pacial significam aqui o mesmo a distância no tempo devese entender que a cena é de um passado distante Talvez se recordem além disso que em palestras anteriores já lhes disse e mostrei com exemplos que havíamos aprendido a usar traços formais na interpretação também ou seja a transformálos em conteúdo dos pensamentos oníricos latentes Ora vocês sabem que todos os sonhos de uma noite fazem parte do mesmo contexto Mas faz diferença se os sonhos aparecem ao sonhador como um continuum ou se ele os divide em várias partes e quantas são estas O número dessas partes corres ponde muitas vezes a igual número de pontos centrais distintos da formação de pensamentos nos pensamentos oníricos latentes ou de correntes que lutam entre si na psique do sonhador das quais cada uma tem expressão dominante mas nunca exclusiva em determinada parte do sonho Um breve sonho pre liminar e um longo sonho principal frequentemente têm entre si a relação que há entre premissa e realização de que vocês encontram um exemplo nítido nas primeiras conferências Um sonho designado pelo sonhador como de al guma forma interpolado corresponde realmente a uma cláusula secundária nos pensamentos oníricos Num estudo sobre pares de sonhos de 1925 Franz Alexander mostrou que não é raro dois sonhos de uma mesma noite 111286 partilharem de tal modo o cumprimento da tarefa do sonho que tomados em conjunto eles constituem a realização do desejo em duas etapas algo que nen hum deles consegue por si Digamos que o desejo do sonho tenha por con teúdo um ato ilícito em relação a determinada pessoa Nesse caso a pessoa surge claramente no primeiro sonho mas o ato é apenas insinuado No se gundo sonho é diferente o ato é claramente mencionado mas a pessoa é tor nada irreconhecível ou trocada por uma outra qualquer Isso realmente dá uma impressão de astúcia Outra relação semelhante entre as duas partes de um par de sonhos é aquela em que um deles apresenta o castigo e o outro a realização pecaminosa do desejo Seria como dizer quando você assume o castigo pode se permitir o proibido Não posso detêlos por mais tempo nessas pequenas descobertas nem nas discussões que dizem respeito ao uso da interpretação dos sonhos no trabalho psicanalítico Imagino que estejam impacientes para saber das mudanças havi das nas concepções fundamentais sobre a natureza e o significado dos sonhos Já os avisei que justamente quanto a isso não há muito a relatar O ponto mais controverso de toda a teoria era talvez a afirmação de que todos os sonhos são realizações de desejos A inevitável sempre recorrente objeção levantada pelos leigos de que existem tantos sonhos angustiados já foi respondida de forma cabal como acredito poder dizer nas conferências anteriores Com a di visão em sonhos de desejo de angústia e de castigo mantivemos intacta a nossa teoria Também os sonhos de castigo são realizações de desejos mas não os dese jos dos impulsos instintuais e sim os da instância crítica censora e punitiva na psique Se nos achamos diante de um puro sonho de castigo uma simples op eração mental nos permite restaurar o sonho de desejo do qual o sonho de cas tigo é a resposta e que mediante esse repúdio foi substituído como sonho manifesto Vocês sabem que o estudo do sonho foi o que primeiro nos levou à compreensão das neuroses Também acharão natural que nosso conhecimento 112286 das neuroses tenha influído em nossa concepção dos sonhos Como verão fomos obrigados a supor na psique uma instância especial crítica e proibidora que chamamos de Supereu Ao enxergar também a censura onírica como obra dessa instância fomos levados a considerar mais atentamente o papel do Supereu na formação do sonho Contra a teoria do sonho como realização de desejo apareceram apenas duas dificuldades sérias cuja discussão pode levar longe mas ainda não teve conclusão satisfatória A primeira se dá pelo fato de pessoas que experiment aram um choque um severo trauma psíquico como sucedeu frequentemente na guerra e também se encontra na base da histeria traumática serem regular mente reconduzidas à situação traumática pelo sonho Isso não deveria ocor rer segundo nossas hipóteses sobre a função do sonho Que desejo seria satis feito por esse retorno à experiência traumática tão dolorosa Difícil dizer O segundo fato encontramos quase diariamente no trabalho analítico ele não im plica uma objeção forte como o primeiro Como sabem uma das tarefas da psicanálise é levantar o véu de amnésia que esconde os primeiros anos da in fância e levar à recordação consciente as manifestações da vida sexual infantil que eles contêm Ora essas primeiras vivências sexuais da criança estão liga das a penosas impressões de angústia proibição desapontamento e castigo Compreendese que tenham sido reprimidas mas não que tenham tão amplo acesso à vida onírica que proporcionem o modelo para tantas fantasias oníricas que os sonhos sejam plenos de reproduções dessas cenas infantis e de alusões a elas Sua natureza desprazerosa e a tendência de o trabalho do sonho realizar desejos parecem dificilmente conciliáveis Mas talvez exageremos a di ficuldade nesse caso Pois às mesmas vivências infantis se acham ligados todos os desejos instintuais perenes insatisfeitos que por toda a vida fornecem a en ergia para a formação dos sonhos dos quais bem podemos esperar que tam bém empurrem para cima em seu poderoso ímpeto o material dos eventos sentidos como penosos Por outro lado na maneira como esse material é re produzido se mostra inconfundivelmente o esforço do trabalho do sonho que 113286 busca negar o desprazer mediante a deformação transformar desapontamento em realização Nas neuroses traumáticas é diferente nelas os sonhos termin am via de regra com desenvolvimento de angústia Acho que não devemos nos esquivar de admitir que nesse caso a função do sonho fracassa Não invo carei o ditado de que a exceção confirma a regra sua sabedoria me parece duvidosa Mas a exceção pode não abolir a regra Se isolamos do conjunto uma atividade psíquica como o sonho para fins de estudo possibilitamos encontrar as leis que lhe são próprias Se novamente a inserimos no todo devemos estar preparados para descobrir que esses resultados são obscurecidos ou prejudica dos pela colisão com outras forças Nós dizemos que o sonho é uma realização de desejo se quiserem considerar essas últimas objeções poderão dizer que o sonho é tentativa de realização de desejo Ninguém que seja capaz de penetrar a dinâmica psíquica entenderá outra coisa Em determinadas circunstâncias o sonho leva a cabo sua intenção de modo bastante imperfeito ou tem de abandonála inteiramente A fixação inconsciente num trauma talvez seja o maior desses impedimentos à função do sonho Enquanto o sonhador é obri gado a sonhar pois o afrouxamento noturno da repressão faz com que a pressão para cima da fixação traumática se torne ativa fracassa a função do seu trabalho do sonho que quer transformar os traços mnemônicos do evento traumático numa realização de desejo Nessas circunstâncias ocorre de a pess oa ficar insone renunciar ao sono por temer o malogro da função do sonho A neurose traumática nos mostra aqui um caso extremo mas é preciso recon hecer também o caráter traumático das vivências infantis e não devemos es tranhar que também surjam transtornos menores da operação do sonho em outras circunstâncias 30 SONHOS E OCULTISMO 114286 Senhoras e senhores Hoje tomaremos um caminho estreito mas que pode nos conduzir a um vasto panorama O anúncio de que falarei sobre a relação entre os sonhos e o ocultismo difi cilmente os surpreenderá Pois o sonho já foi tido frequentemente como a porta para o mundo do misticismo e ainda hoje é para muita gente um fenô meno oculto Também nós que dele fizemos um objeto de investigação científica não contestamos que haja um ou vários fios que o ligam às coisas ocultas Misticismo ocultismo o que se entende por essas palavras Não esperem de minha parte nenhuma tentativa de circunscrever com definições esses domínios mal delineados De maneira bem geral e indefinida todos nós sabemos do que se trata É uma espécie de além do mundo claro e gover nado por leis inexoráveis para nós edificado pela ciência O ocultismo afirma a existência de mais coisas entre a terra e o céu do que sonha a nossa filosofia escolar Bem não vamos nos apegar à estreiteza da escola estamos dispostos a crer no que vem a ser digno de crédito para nós Vamos proceder assim como fazemos com qualquer outro material da ciên cia primeiro verificar se tais acontecimentos são efetivamente comprovados e depois mas só depois que sua realidade não der margem a dúvidas procurarmos a explicação para eles Mas não se pode negar que já essa decisão nos é dificultada por fatores intelectuais históricos e psicológicos É diferente de quando nos aplicamos a outras investigações Vejamos primeiro a dificuldade intelectual Permitamme dar alguns exem plos concretos e toscos Digamos que o problema seja o da constituição do in terior da Terra Como é notório não há conhecimentos seguros sobre isso Supomos que consista de metais pesados em estado de incandescência Então aparece alguém afirmando que o interior da Terra é água saturada de ácido carbônico ou seja uma espécie de soda Diremos sem dúvida que isso é muito improvável contraria todas as nossas expectativas não considera pon tos básicos de nosso conhecimento que nos levaram à hipótese dos metais No entanto não é inconcebível se alguém nos apontar um caminho para testar a 115286 hipótese da soda nós o seguiremos sem resistência Mas então surge outra pessoa que afirma seriamente que o âmago da Terra se compõe de marme lada A isso reagiremos de outra forma Diremos a nós mesmos que a marme lada não ocorre na natureza é um produto da cozinha humana além disso a existência desse material implica a presença de árvores frutíferas e de seus frutos e não vemos como levar plantas e culinária humana para o interior da Terra O resultado dessas objeções intelectuais será uma mudança na direção do nosso interesse em vez de nos pormos a investigar se realmente o âmago da Terra consiste de marmelada iremos nos perguntar que indivíduo é esse que pode chegar a tal ideia e no máximo lhe perguntaremos de onde tirou isso O infeliz criador da teoria da marmelada se sentirá ofendido e nos acusará de lhe negarmos uma apreciação objetiva de sua afirmação devido a um preconceito supostamente científico Mas isso não o ajudará Notamos que os juízos pre concebidos nem sempre são condenáveis que às vezes são justificados servindo para nos poupar trabalho inútil São simplesmente conclusões por analogia com outros juízos esses bem fundamentados Bom número de afirmações de natureza ocultista tem em nós um efeito semelhante ao da hipótese da marmelada de maneira que nos cremos autoriza dos a rejeitálas de antemão sem maior exame Mas isso não é tão simples Uma comparação como a que fiz não prova nada prova o que provam as com parações É discutível que ela seja adequada e vêse que a atitude de rejeição depreciativa já influiu em sua escolha Juízos preconcebidos são algumas vezes apropriados e justificados mas outras vezes são errôneos e prejudiciais e nunca se sabe quando são uma coisa ou outra A história das ciências é pródiga em casos que advertem contra uma condenação precipitada Por muito tempo considerouse uma hipótese absurda que as pedras atualmente chama das meteoritos tivessem alcançado a Terra a partir do espaço ou que rochas das montanhas que contêm restos de moluscos tivessem um dia constituído o leito do mar Aliás também não foi muito diferente com a psicanálise quando ela apareceu com a inferência do inconsciente Por isso nós psicanalistas 116286 temos razão especial para sermos cautelosos em recorrer a motivos intelectuais na rejeição de novas colocações e devemos admitir que eles não nos fazem su perar a aversão a dúvida e a incerteza O segundo fator denominei psicológico Refirome à tendência geral das pessoas à credulidade e à crença em milagres Desde o começo quando a vida nos toma em sua severa disciplina há em nós uma resistência à inexorabilidade e monotonia das leis do pensamento e às exigências do exame de realidade A razão tornase a inimiga que nos priva de tantas possibilidades de prazer Descobrimos o prazer existente em nos furtarmos ainda que momentanea mente a ela e nos entregarmos às seduções do absurdo O escolar se diverte com trocadilhos após um congresso científico o especialista faz troça de sua atividade e mesmo o homem grave saboreia uma brincadeira Uma hostilid ade mais séria a razão e ciência a força maior que tem o homem aguarda sua oportunidade apressase em dar ao curandeiro ou milagreiro a preferên cia em lugar do médico estudado acolhe as afirmações do ocultismo na medida em que seus pretensos fatos são tomados como infrações de regras e leis faz adormecer a crítica falseia as percepções obtém confirmações e anuências que não se justificam Quem leva em conta esse pendor humano tem todo motivo para negar valor a muitas comunicações da literatura ocultista O terceiro senão eu denominei histórico querendo assim indicar que no mundo do ocultismo nada sucede de realmente novo que nele ressurgem to dos os sinais prodígios profecias e aparições de outros tempos que nos são relatados em velhos livros e que acreditávamos ter liquidado há muito tempo como rebentos de uma imaginação desenfreada ou de um engano deliberado como produtos de uma época em que ainda era grande a insciência humana e o espírito científico ainda engatinhava Se aceitamos como verdadeiro o que se gundo as informações dos ocultistas ainda hoje ocorre temos que admitir também a credibilidade dos relatos antigos E nos damos conta de que os livros sagrados e as tradições dos povos estão plenos dessas histórias maravilhosas e que as religiões baseiam sua pretensão de credibilidade justamente nesses 117286 acontecimentos extraordinários e maravilhosos neles enxergando as provas da atuação de forças sobrehumanas Então se torna difícil evitar a suspeita de que o interesse no ocultismo é na verdade religioso de que um dos motivos ocul tos do movimento ocultista é socorrer a religião ameaçada pelo progresso do pensamento científico E o reconhecimento de tal motivo faz aumentar nossa desconfiança e também a relutância em adentrar a investigação dos supostos fenômenos ocultos Mas por fim essa relutância deve ser superada Tratase de uma questão factual de se o que os ocultistas relatam é verdadeiro ou não Isso deve poder ser resolvido mediante a observação No fundo temos de ser gratos aos ocultistas Os relatos prodigiosos de épocas antigas escapam ao nosso exame Se dizemos que não podem ser provados temos que admitir que não podem ser rigorosamente refutados Mas quanto ao que sucede no presente a que po demos estar presentes deve ser possível para nós obter um juízo mais seguro Se chegamos à convicção de que tais prodígios não ocorrem hoje não tememos a objeção de que poderiam ter sucedido em épocas passadas Nesse caso outras explicações são mais plausíveis Então deixamos de lado nossos senões e estamos dispostos a participar da observação dos fenômenos ocultos Infelizmente logo deparamos com circunstâncias muito desfavoráveis ao nosso honesto propósito As observações de que nosso julgamento deve de pender são feitas em condições que tornam incertas as percepções de nossos sentidos que embotam nossa atenção na escuridão ou em precária luz ver melha após longos períodos de vã expectativa Dizemnos que já nossa pos tura incrédula ou seja crítica pode impedir o surgimento dos fenômenos aguardados A situação que assim se produz é uma verdadeira caricatura das circunstâncias em que costumamos fazer investigações científicas As obser vações são realizadas nos chamados médiuns pessoas às quais se atribuem faculdades sensitivas especiais mas que não se distinguem por eminentes qualidades do espírito ou do caráter nem são tomados por uma grande ideia ou um sério propósito como os antigos milagreiros Pelo contrário mesmo os 118286 que acreditam em seus poderes secretos não os veem como particularmente confiáveis a maioria deles já foi desmascarada como embusteira e é de esperar que o restante tenha o mesmo destino O que fazem dá a impressão de traves suras infantis ou truques de prestidigitação Jamais nas sessões com esses médiuns revelouse alguma coisa útil como uma nova fonte de energia por exemplo É certo que tampouco esperamos da mágica do prestidigitador que faz sair pombos da cartola vazia alguma melhoria para a criação de pombos Posso colocarme facilmente no lugar de alguém que desejando satisfazer os requisitos da objetividade participa de sessões de ocultismo mas após algum tempo se cansa e aborrecido com o que dele esperam retorna a seus precon ceitos anteriores insciente como antes Podese objetar a essa pessoa que este não é o procedimento correto não é lícito prescrever aos fenômenos que se quer estudar como devem ser e em que condições devem surgir Caberia isto sim perseverar e valorizar as medidas de precaução e de fiscalização com que ultimamente se busca precaverse da inconfiabilidade dos médiuns Mas infel izmente essa técnica protetora moderna põe fim ao fácil acesso às observações ocultistas O estudo do ocultismo tornase uma profissão especial difícil uma atividade que a pessoa não pode exercer juntamente com seus outros in teresses E enquanto os pesquisadores nela envolvidos não chegam a con clusões ficamos entregues à dúvida e às nossas próprias suposições Entre essas suposições a mais provável seria a de que no ocultismo há um núcleo real de fatos ainda não reconhecidos em torno do qual o engano e a fantasia teceram um invólucro de difícil penetração Mas como podemos simplesmente nos aproximar desse núcleo em que lugar atacar o problema Creio que neste ponto nos vem em auxílio o sonho sugerindo que de toda essa confusão retiremos o tema da telepatia Como sabem chamamos telepatia o fato suposto de um evento que ocorre num determinado instante chegar simultaneamente à consciência de uma pess oa distante sem que as vias de comunicação familiares tenham algum papel nisso Pressupõese tacitamente que esse evento diga respeito a uma pessoa 119286 na qual a outra receptora da notícia tem um forte interesse emocional Por exemplo a pessoa A sofre um acidente ou morre e a pessoa B a ela intima mente ligada mãe filha ou amada toma conhecimento disso no mesmo in stante enxergando um rosto ou escutando algo nesse último caso portanto como se tivesse sido informada por telefone embora não fosse o caso foi como uma contrapartida psíquica da telegrafia sem fio Não preciso lhes lem brar como são improváveis tais acontecimentos E a maioria desses relatos pode ser rejeitada com bons motivos há alguns em que isso não é tão fácil Permitamme agora para os fins da minha comunicação que deixe de lado a palavra suposto e prossiga como se acreditasse na realidade objetiva do fenômeno telepático Mas tenham em mente que esse não é o caso que não me ative a nenhuma convicção Na verdade tenho pouco a lhes comunicar apenas um fato bem modesto E limitarei ainda mais sua expectativa dizendolhes que o sonho no fundo tem pouco a ver com a telepatia Nem a telepatia lança uma nova luz sobre a natureza do sonho nem o sonho dá testemunho direto da realidade da tele patia O fenômeno telepático também não se acha ligado ao sonho pode ocor rer também durante a vigília A única razão para discutir o vínculo entre sonho e telepatia está em que o estado onírico parece particularmente adequado para a recepção da mensagem telepática Temos um sonho dito telepático e nos convencemos na sua análise de que a notícia telepática teve o mesmo papel que um outro resíduo diurno e como este foi mudada pelo trabalho do sonho e posta a serviço de sua tendência Na análise desse sonho telepático sucede então algo que me parece in teressante o suficiente para apesar de sua trivialidade servirme como ponto de partida para esta conferência Em 1922 quando fiz a primeira comunicação sobre esse tema dispunha de apenas uma observação Desde então fiz várias semelhantes mas conservarei o primeiro exemplo pois é o de mais fácil ap resentação e com ele os levarei de imediato in medias res ao assunto 120286 Um homem obviamente inteligente nada inclinado ao ocultismo em suas próprias palavras escreveme a respeito de um sonho que lhe parece notável Adianta que sua filha casada que mora longe dele espera o primeiro filho para meados de dezembro Esta filha lhe é muito cara e ele sabe que tam bém ela lhe tem muito apego Na noite de 16 para 17 de novembro ele sonha que sua mulher teve gêmeos Há outras particularidades que aqui posso omitir que também não acharam todas elas explicação A mulher que no sonho tornouse mãe de gêmeos é sua segunda esposa a madrasta da filha Ele não deseja ter filhos com essa mulher que ele não considera capaz de criar sensata mente uma criança e na época do sonho além disso havia muito não tinha re lações sexuais com ela O que o faz escrever a mim não é uma dúvida na teoria do sonho que seria justificada pelo conteúdo onírico manifesto pois por que a mulher tem filhos no sonho em total contradição com os desejos dele Nem há razão para o temor de que esse evento indesejado se realize como informa ele O que o levou a me relatar o sonho foi a circunstância de que na manhã de 18 de novembro ele recebeu por telegrama a notícia de que a filha tivera gêmeos O telegrama fora entregue no dia anterior e o nascimento se dera na noite de 16 para 17 aproximadamente na mesma hora em que ele sonhou com sua mulher parindo gêmeos Esse homem me pergunta se acho puramente cas ual a correspondência entre sonho e fato Ele não ousa chamar o sonho de telepático pois a diferença entre o conteúdo onírico e o fato se acha justamente no que lhe parece essencial a pessoa da parturiente Mas um de seus comentários dá a entender que ele não se espantaria com um autêntico sonho telepático A filha diz ele certamente pensou muito nele durante o parto Estou certo senhoras e senhores de que já podem explicar este sonho e também compreendem por que lhes relatei ele Eis um homem insatisfeito com a segunda mulher que gostaria de ter uma esposa como a filha do primeiro casamento Para o inconsciente claro esse como desaparece Chegalhe durante a noite a mensagem telepática de que a filha teve gêmeos O trabalho 121286 do sonho se apodera dessa notícia faz sobre ela atuar o desejo inconsciente de que a filha tome o lugar da segunda mulher e assim se produz o estranho sonho manifesto que esconde o desejo e distorce a mensagem Temos que ad mitir então que somente a interpretação nos mostrou que este é um sonho telepático a psicanálise revelou um fato telepático que de outra forma não conheceríamos Mas não se deixem enganar Apesar de tudo a interpretação do sonho nada afirmou sobre a verdade objetiva do evento telepático Ele pode ser algo apar ente explicável de outra maneira É possível que os pensamentos latentes do sonho fossem estes Hoje é o dia em que haveria o parto se minha filha se equivocou por um mês como creio E seu aspecto quando a vi pela última vez era de quem teria gêmeos Minha falecida mulher gostava tanto de cri anças como não teria se alegrado com os gêmeos Insiro esse último ele mento com base em associações ainda não mencionadas do homem que son hou Nesse caso o estímulo para o sonho teriam sido conjecturas bem funda mentadas do sonhador não uma mensagem telepática o resultado seria o mesmo Vocês veem que também essa interpretação nada nos disse sobre a questão de podermos atribuir ou não realidade objetiva à telepatia Isso se re solveria apenas mediante uma investigação aprofundada de todas as circun stâncias do evento algo que infelizmente não foi possível nesse caso nem nos outros casos de que tenho notícia Claro que a hipótese da telepatia fornece a explicação mais simples mas isso não adianta muito A explicação mais simples nem sempre é a correta frequentemente a verdade não é simples e antes de nos decidirmos por uma hipótese de tamanho alcance devemos obser var todas as precauções Podemos agora deixar o tema sonho e telepatia nada mais tenho a lhes dizer sobre ele Mas reparem que não foi o sonho que pareceu nos ensinar algo sobre a telepatia mas sim a interpretação do sonho a elaboração psicanalítica Assim de agora em diante podemos não mais abordar o sonho e verificar 122286 nossa expectativa de que a aplicação da psicanálise lance alguma luz sobre out ros fatos denominados ocultos Há por exemplo o fenômeno da indução ou transmissão de pensamento que é bastante próximo da telepatia podendo mesmo sem muito exagero ser identificado com ela Ele diz que eventos psíquicos de uma pessoa ideias estados emocionais impulsos da vontade podem transmitirse para outra pessoa através do espaço sem recorrer às notórias vias de comunicação por palavras e sinais Vocês percebem como ser ia curioso e que importância prática talvez tivesse se algo assim realmente ocorresse Aliás causa estranheza que justamente esse fenômeno seja o menos falado nos antigos relatos de prodígios Durante o tratamento psicanalítico de pacientes veiome a impressão de que as atividades dos videntes profissionais escondem uma boa oportunidade para fazer observações inatacáveis sobre transmissão de pensamento Eles são pessoas irrelevantes ou mesmo de menor valor que se dedicam a práticas di versas como pôr as cartas ler caligrafias e linhas das mãos fazer cálculos as trológicos e que nisso preveem o futuro de seus clientes após terem se mostrado familiarizadas com algumas de suas vicissitudes presentes e passadas Geralmente os seus visitantes se mostram satisfeitos com o trabalho e não se aborrecem quando as profecias não se cumprem Deparei com vários desses casos pude estudálos analiticamente e dentro em pouco lhes relatarei o mais curioso desses exemplos É pena que a força comprobatória dessas comu nicações seja prejudicada pelas várias omissões que me são impostas pelo de ver da discrição médica Mas evitei distorções a todo custo Ouçam então a história de uma de minhas pacientes que teve uma experiência desse tipo com um vidente Ela era a mais velha de uma série de irmãos cresceu fortemente ligada ao pai casouse jovem encontrou plena satisfação no casamento Apenas uma coisa faltava para sua felicidade permanecera sem filhos não podendo situar inteiramente o seu amado esposo no lugar do pai Quando após anos de 123286 decepção ela quis submeterse a uma operação ginecológica o marido lhe revelou que era ele o culpado ele é que devido a uma doença anterior ao casamento tornarase incapaz de procriar Ela recebeu mal essa desilusão tornouse neurótica angustiavase visivelmente com a tentação de traílo A fim de animála o marido a levou consigo numa viagem de negócios a Paris Ali se achavam numa tarde no vestíbulo do hotel quando ela notou certo re buliço entre os funcionários Ao perguntar o que havia soube que Monsieur le professeur o senhor professor tinha chegado e estava atendendo numa saleta próxima Ela manifestou o desejo de também ver como era uma consulta O marido se opôs mas num instante em que ele não olhava ela penetrou na saleta e achouse diante do vidente Ela tinha 27 anos de idade parecia mais jovem e havia tirado o anel de matrimônio Monsieur le professeur fez com que ela colocasse a mão num vaso repleto de cinzas estudou cuidadosamente a im pressão deixada e em seguida faloulhe coisas diversas sobre as lutas que ela tinha pela frente finalizando com a consoladora garantia de que ela ainda se casaria e aos 32 anos teria dois filhos Quando me contou essa história ela tinha 42 anos estava seriamente enferma e sem nenhuma perspectiva mais de ter filhos Portanto a profecia não se cumpriu mas a mulher não falava dela com nenhum traço de amargura e sim com inegável satisfação como se lhe re cordasse uma vivência feliz Era fácil perceber que ela não tinha a menor ideia do que os dois números da profecia podiam significar ou se significavam algo Vocês dirão que essa é uma história tola e incompreensível e perguntarão por que a relatei Eu teria a mesma opinião se este é o ponto capital a análise não nos possibilitasse uma interpretação da profecia que convence justamente por explicar os pormenores Pois os dois números têm lugar relev ante na vida da mãe da paciente A mãe casouse tarde após os trinta anos e na família comentavase que ela tivera êxito em recuperar o tempo perdido Os dois primeiros filhos nossa paciente em primeiro lugar nasceram no mesmo 124286 ano com o menor intervalo possível e aos 32 anos ela já tinha dois filhos O que Monsieur le professeur disse à minha paciente foi portanto Consolese você ainda é jovem Ainda terá o mesmo destino de sua mãe que também teve de esperar bastante você terá dois filhos com 32 anos de idade Mas ter o mesmo destino da mãe colocarse na posição dela tomar o lugar da mãe junto ao pai era o maior desejo de sua juventude e a não realização desse desejo é que a fazia adoecer A previsão lhe prometia que ele ainda se realizaria como poderia ela não ter simpatia pelo profeta Mas vocês acham possível que Mon sieur le professeur tivesse informações íntimas da história familiar de uma cli ente ocasional Impossível De onde vinha então o conhecimento que lhe per mitiu expressar o mais forte e mais secreto desejo da mulher ao incluir os dois números em sua profecia Vejo apenas duas possibilidades de explicação Ou a história tal como me foi contada não é verdadeira ocorreu de outra forma ou devese admitir que a transmissão de pensamento existe como fenômeno real Podemos também supor sem dúvida que após um intervalo de quinze anos ela tenha introduzido os dois números naquela lembrança a partir do in consciente Não há esteio para essa conjectura mas não posso descartála e imagino que vocês estarão dispostos a acreditar antes num tal expediente do que na realidade da transmissão de pensamentos Caso se decidam por essa úl tima não esqueçam que apenas a análise criou o fato oculto descobriuo quando estava deformado a ponto de ser irreconhecível Se não houvesse outro caso como o de minha paciente poderíamos dar de ombros e seguir adiante Ninguém vai basear numa observação isolada uma crença que implica uma virada tão decisiva Mas acreditem quando lhes asse guro que este não é o único caso de que tenho notícia Juntei toda uma coleção dessas profecias e em todas elas me veio a impressão de que o vidente apenas exprimira os pensamentos e em especial os desejos secretos dos clientes de modo que era justificado analisar tais profecias como se fossem produções 125286 subjetivas fantasias ou sonhos das pessoas em questão Claro que os casos não são todos igualmente comprobatórios nem é igualmente possível excluir ex plicações mais racionais em todos eles mas resta no conjunto um bom saldo de probabilidade em favor da transmissão de pensamentos A relevância do tema justificaria que eu lhes apresentasse todos os meus casos mas não posso fazêlo pela amplitude que teria a exposição e a inevitável quebra da discrição devida Tentarei apaziguar minha consciência na medida do possível oferecendolhes alguns exemplos mais Um dia sou procurado por um homem jovem e muito inteligente um estudante que tem pela frente os exames finais do doutorado mas que não se acha em condição de prestálos pois se lamenta de haver perdido todo in teresse toda capacidade de concentração e mesmo a faculdade de memória or ganizada A história pregressa desse estado de quase paralisia logo se revelou ele adoeceu após um grande ato de autossuperação Tem uma irmã à qual se ligava por um amor intenso mas sempre contido tal como ela a ele Que pena que não podemos casar diziam frequentemente um ao outro Um homem respeitável apaixonouse por essa irmã ela respondeu à afeição mas os pais não admitiram a união Nesse apuro o casal dirigiuse ao irmão que não lhes negou ajuda Ele intermediou a correspondência entre os dois e com sua influência obteve enfim o consentimento dos pais Mas na época do noivado sucedeu algo cuja significação é fácil adivinhar Ele empreendeu uma difícil excursão às montanhas com o futuro cunhado estavam sem guia per deram o caminho e arriscaram não retornar sãos e salvos Logo após o casamento da irmã ele ficou naquele estado de exaustão mental Por influência da psicanálise ele recobrou a aptidão para o trabalho e me deixou para fazer seus exames mas voltou por um breve período no outono do mesmo ano após realizálos com sucesso Então me contou uma experiên cia singular que tivera no verão Na cidade onde ficava sua universidade havia uma vidente de numerosa clientela Até os príncipes da casa governante a 126286 consultavam antes de uma iniciativa importante O modo como ela trabalhava era simples Pedia a data de nascimento de determinada pessoa não solicitava nenhuma informação mais sobre ela nem mesmo o nome pesquisava em obras de astrologia fazia demorados cálculos e por fim enunciava uma profe cia sobre a pessoa em questão Meu paciente decidiu valerse de suas artes ocultas com relação ao cunhado Ele a visitou e deulhe a data exigida Após realizar os cálculos ela previu Essa pessoa vai morrer de intoxicação por os tras ou caranguejo em julho ou agosto desse ano E meu paciente concluiu seu relato com estas palavras Foi formidável Desde o início eu ouvira a contragosto Após essa exclamação ousei per guntar O que lhe parece tão formidável nessa previsão Estamos no fim do outono seu cunhado não morreu ou você já teria me dado essa notícia Port anto a profecia não se realizou Isto certamente não disse ele mas o curioso é o seguinte Meu cunhado é um apaixonado apreciador de ostras e caranguejos e no verão passado antes da consulta na vidente contraiu uma intoxicação por ostras que quase o matou Que podia eu dizer Pude apenas me irritar com o fato de aquele homem tão instruído que vinha de uma análise bemsucedida não perceber claramente o nexo De minha parte em vez de acreditar que por meio da astrologia se pode calcular a incidência de uma intoxicação por ostras ou caranguejo prefiro supor que meu paciente ainda não havia superado o ódio ao rival cuja repressão o fizera adoecer e que a astróloga simplesmente exprimiu a sua própria expectativa um gosto assim não se perde e um dia ele vai perecer disso Confesso não saber de outra ex plicação para esse caso exceto talvez que o paciente tenha se permitido uma brincadeira comigo Mas nem então nem depois ele deu motivo para essa sus peita e parecia falar sério Outro caso Um homem jovem de elevada posição social tem um relacio namento com uma mulher mundana caracterizado por uma singular com pulsão De vez em quando ele a irrita com palavras de escárnio e menosprezo 127286 até ela ficar desesperada Tendoa levado a esse ponto ele fica aliviado reconciliase com ela e lhe dá um presente Mas agora ele quer livrarse dela a compulsão tornouse algo inquietante ele nota que sua própria reputação é afetada por esse relacionamento quer ter uma esposa fundar uma família Como não se desliga dessa mulher por sua própria força ele recorre à psic análise Após tal cena de xingamento já durante a análise ele obtém que ela escreva algo num cartão e o leva a um grafólogo Este lhe faz o seguinte comentário Essa caligrafia é a de uma pessoa em desespero extremo que cer tamente se matará nos próximos dias Isso não ocorre a mulher continua viva mas a análise consegue afrouxar seu vínculo ele a deixa e se volta para uma moça da qual tem a expectativa de que será uma boa esposa Pouco depois há um sonho que pode ser interpretado apenas como expressão de dúvida in cipiente no valor da moça Também dela obtém uma amostra da caligrafia que apresenta à mesma autoridade a sentença que ouve sobre essa letra confirma suas apreensões Então ele abandona o propósito de tornála sua esposa Para julgar as afirmações do grafólogo sobretudo a primeira devemos saber algo da história íntima desse homem Quando mais jovem ele havia em conformidade com sua natureza passional se enamorado loucamente de uma mulher jovem mas mais velha do que ele Rejeitado por ela fez uma tentativa de suicídio de cuja seriedade não podemos duvidar Escapou à morte por um triz e somente após demorados cuidados se recuperou Mas esse ato insano causou profunda impressão na mulher que amava e ela lhe concedeu seus favores ele se tornou seu amante ficaram ligados secretamente e ele se portava como um cavalheiro em relação a ela Após mais de vinte anos os dois tendo envelhecido ela naturalmente mais que ele surgiu nele a necessid ade de afastarse dela ficar livre levar uma vida própria e até estabelecer casa e família E juntamente com esse fastio avivouse nele a necessidade há muito reprimida de vingarse da amada Se antes ele quisera se matar porque ela o havia desprezado agora ele queria a satisfação de vêla buscar a morte porque 128286 ele a deixava Mas seu amor era ainda forte demais para que esse desejo se tor nasse consciente e tampouco era ele capaz de lhe fazer mal o bastante para impelila à morte Nesse estado de espírito ele tomou a mundana como uma espécie de bode expiatório a fim de satisfazer in corpore vili sua sede de vingança permitindose fazer nela as torturas que ele esperava teriam nela o resultado que ele desejava para a amada O fato de que a vingança dizia re speito a essa última revelavase pela circunstância de que ele a tornou sua con fidente e conselheira quanto à relação em vez de dela esconder a deserção A coitada que há muito decaíra da posição de quem dá para a de quem recebe favores provavelmente sofria mais com suas confidências do que a mundana com sua brutalidade A compulsão de que ele se queixava em relação a essa pessoa substituta e que o impeliu à análise naturalmente fora transferida da antiga amada para ela era dela que ele queria se livrar mas não podia Não sou um conhecedor da grafologia e não tenho em alta consideração a arte de adivinhar o caráter a partir da escrita tampouco creio na possibilidade de pre dizer dessa maneira o futuro de alguém Mas vocês podem ver que não im portando o valor que se dê à grafologia é inegável que o especialista ao dizer que o dono da caligrafia mostrada se mataria nos próximos dias apenas trouxe novamente à luz um forte desejo oculto da pessoa que o consultava Algo semelhante aconteceu depois no caso da segunda opinião mas aí não se tratava de um desejo inconsciente e sim da dúvida e preocupação incipientes do consulente que acharam clara expressão pelo grafólogo De resto meu pa ciente conseguiu com a ajuda da análise encontrar um objeto amoroso fora do círculo de encantamento em que estava preso Senhoras e senhores Acabaram de ver o que a interpretação dos sonhos e a psicanálise podem esclarecer em relação ao ocultismo Viram exemplos em que mediante sua aplicação são mostrados fatos ocultos que de outro modo permaneceriam desconhecidos A questão que certamente lhes interessa mais 129286 se podemos acreditar na realidade objetiva desses achados a psicanálise não é capaz de responder diretamente mas o material revelado com o seu auxílio faz pelo menos uma impressão favorável a uma resposta afirmativa Mas seu interesse não vai ficar nisso Vocês quererão saber que conclusões poderão ser tiradas do material bem mais rico de que a psicanálise não parti cipa E não poderei acompanhálos nisso já não é o meu âmbito A única coisa que posso ainda fazer é relatar observações que têm com a psicanálise a relação única de terem sido feitas durante o tratamento analítico e talvez tornadas possíveis pela influência deste Vou lhes comunicar um exemplo desses aquele que me deixou a mais forte impressão e serei meticuloso pedirei sua atenção para uma série de detalhes e ainda terei de suprimir várias coisas que aument ariam bastante o poder persuasivo da observação É um exemplo no qual o fato vem claramente à luz e não necessita ser desenvolvido pela análise Em sua dis cussão não poderemos dispensar a análise porém Mas já lhes adianto que tam bém esse caso de aparente transmissão de pensamentos na situação analítica não se acha imune a toda objeção não permite uma incondicional posição em favor da realidade dos fenômenos ocultos Então escutem Um dia no outono de 1919 pelas 10h45 o dr David Forsyth recémchegado de Londres faz com que me entreguem seu cartão enquanto me ocupo de um paciente Meu distinto colega da London University certamente não verá como indiscrição o fato de eu revelar com isso que por alguns meses ele se iniciou comigo nas artes da técnica psicanalít ica Eu só tenho tempo para saudálo e marcar um encontro para depois O dr Forsyth merece o meu particular interesse é o primeiro estrangeiro que me procura após o isolamento dos anos de guerra e isso deve inaugurar uma épo ca melhor Logo em seguida às 11 horas chega um de meus pacientes um homem espirituoso e agradável de quarenta a cinquenta anos de idade que começou a análise algum tempo atrás devido a dificuldades com as mulheres Terapeuticamente seu caso não prometia sucesso Há muito lhe propus cessar 130286 o tratamento mas ele desejou que continuasse obviamente por sentirse à vontade numa suave transferência paterna para comigo O dinheiro não im portava então pois havia muito pouco em circulação As horas que eu passava com ele também eram estímulo e distração para mim e desse modo ignorando as estritas regras da atividade médica o trabalho analítico foi sendo conduzido até um prazo estipulado Nesse dia P voltou a suas tentativas de estabelecer laços amorosos com mulheres referindose novamente à garota pobre bonita e interessante com a qual ele poderia ter sucesso se o fato de ela ser virgem não lhe desencorajasse qualquer empenho sério Já falara dela em várias ocasiões e pela primeira vez contou que ela que naturalmente não faz ideia dos motivos reais do seu im pedimento costuma chamálo de sr Vorsicht Esta informação me surpreende o cartão do dr Forsyth está em minha mão eu o mostro a ele Este o fato Já sei que lhes parecerá irrelevante mas escutem um pouco mais há mais coisas por trás dele Quando jovem P viveu alguns anos na Inglaterra e conservou um in teresse permanente na literatura inglesa Possui uma rica biblioteca de livros ingleses e costuma trazerme livros A ele devo o conhecimento de autores como Bennett e Galsworthy dos quais havia lido muito pouco Um dia me emprestou um romance de Galsworthy intitulado The man of property que se desenvolve no seio de uma família Forsyte inventada pelo escritor O próprio Galsworthy foi evidentemente cativado por essa criação pois em outros volumes retornou a membros dessa família e afinal reuniu sob o título The Forsyte saga todas as obras a ela relacionadas Poucos dias antes do evento que relato P me trouxe um novo livro dessa série O nome Forsyte com as carac terísticas que o autor quis nele personificar também surgia nas minhas conver sas com P tornouse parte da linguagem secreta que se forma entre duas pess oas que se veem regularmente Ora esse nome dos romances pouco difere daquele do meu visitante Forsyth para ouvidos alemães quase não se diferen cia e o vocábulo inglês que pronunciamos da mesma forma seria foresight 131286 traduzido por Voraussicht previsão ou Vorsicht precaução Portanto P havia realmente extraído de suas relações pessoais o mesmo nome de que eu então me ocupava devido a um acontecimento por ele ignorado A coisa já fica melhor não é verdade Mas acho que obteremos uma im pressão mais forte desse fenômeno singular e até um vislumbre das condições do seu surgimento se esclarecermos analiticamente duas outras associações que P apresentou na mesma sessão Primeira num dia da semana anterior eu havia esperado o sr P em vão às 11 horas e depois havia saído para visitar o dr Anton von Freund em sua pensão Fiquei surpreso ao descobrir que o sr P morava num outro andar da casa onde se achava a pensão Referindome a isso falei depois a P que eu por assim dizer lhe fizera uma visita em sua casa mas estou certo de que não lhe disse o nome da pessoa que visitei na pensão E logo depois de mencionar o sr Vorsicht ele me pergunta se a mulher de sobrenome FreudOttorego que ensina inglês na Volksuniversität Universidade Popular seria por acaso minha filha E pela primeira vez em nossa longa relação distorce meu nome da mesma forma que funcionários públicos autoridades e tipógrafos costum am fazer diz Freund em vez de Freud Segunda no final da mesma sessão ele relata um sonho do qual acordou an gustiado um verdadeiro pesadelo Alptraum diz Acrescenta que há não muito tempo esqueceu a palavra inglesa para isso e quando alguém lhe per guntou respondeu que pesadelo se diz a mares nest em inglês Claro que isso é absurdo diz ele a mares nest significa algo inacreditável uma lorota a tradução de Alptraum é nightmare O único elemento em comum nesta asso ciação e na anterior parece ser inglês mas a mim ela não deixa de lembrar um pequeno incidente ocorrido um mês antes P estava sentado em meu con sultório quando inesperadamente surgiu outro visitante querido de Londres o dr Ernest Jones após uma demorada separação Eu lhe fiz sinal para que se di rigisse a outro aposento enquanto eu terminava com P Mas este o reconheceu 132286 imediatamente por uma foto na parede da sala de espera e inclusive mani festou o desejo de lhe ser apresentado Jones é autor de uma monografia sobre o pesadelo nightmare Eu não sabia se P a conhecia ele evitava ler livros de psicanálise Agora quero investigar com vocês que entendimento analítico podemos al cançar do conjunto das associações de P e suas motivações Ele tinha a mesma atitude que eu em relação ao nome Forsyte ou Forsyth para ele significava a mesma coisa e eu inclusive lhe devia o conhecimento desse nome O fato curioso é que ele o trouxe para a análise repentinamente tão logo o nome tornouse significativo para mim através de um novo acontecimento a chegada do médico de Londres Talvez não menos interessante que o fato mesmo é o modo como o nome surgiu na sessão de análise O paciente não disse por exemplo Agora me vem o nome Forsyte dos romances que o sr conhece mas sim sem nenhuma relação consciente com essa fonte entremeouo com suas próprias vivências e o trouxe à luz a partir delas o que poderia ter sucedido havia muito tempo e não sucedera até aquele momento E então disse Eu também sou um Forsyth a garota me chama assim Não é difícil perceber a mescla de solicitação ciumenta e melancólica depreciação de si que se exprime nesse comentário Não haverá erro em completálo da seguinte forma Fico aborrecido de seus pensamentos se ocuparem tanto do recémchegado Volte a mim eu também sou um Forsyth embora apenas um homem de Vorsicht prudência como diz a garota E o curso de seus pensamentos retrocede pelo fio associativo do elemento inglês a duas opor tunidades anteriores que puderam despertar o mesmo ciúme Há alguns dias o sr fez uma visita a minha casa infelizmente não a mim mas a um sr von Freund Esse pensamento o faz alterar o nome Freud para Freund amigo A mulher de nome FreudOttorego do programa de cursos serve aqui por forne cer a associação manifesta como professora de inglês Enfim vem a lembrança de uma outra visita algumas semanas antes um visitante do qual ele também não podia se sentir à altura pois o dr Jones foi capaz de escrever um ensaio 133286 sobre o pesadelo enquanto ele apenas produziu sonhos desse tipo Também a menção de seu erro quanto ao sentido de a mares nest cabe nesse contexto pois pode apenas querer dizer Não sou um verdadeiro inglês assim como não sou um verdadeiro Forsyth Não posso descrever seus ciúmes nem como inadequados nem como in compreensíveis Ele estava ciente de que sua análise e portanto nossa relação terminaria quando pacientes e discípulos estrangeiros retornassem a Viena e assim aconteceu realmente pouco depois Mas o que realizamos até então foi uma porção de trabalho analítico o esclarecimento de três associações que ele trouxe na mesma sessão alimentadas do mesmo tema e isso não tem muito a ver com a questão de se tais associações podem ou não se produzir sem trans missão de pensamento Essa questão aparece em cada uma das três associações decompondose assim em três questões diversas Podia P saber que o dr For syth estava fazendo sua primeira visita Podia saber qual era o nome da pessoa que visitei no seu prédio Sabia que o dr Jones escreveu uma monografia sobre o pesadelo Ou foi apenas o meu conhecimento dessas coisas que se rev elou em suas associações A resposta a essas três perguntas determinará se minha observação permite uma conclusão favorável à transmissão de pensamentos Deixemos a primeira de lado por um instante as duas outras são mais fáceis de lidar O caso da visita à pensão faz uma impressão muito con fiável à primeira vista Estou certo de não haver falado nenhum nome numa menção rápida e brincalhona à visita em seu prédio Acho bastante improvável que P tenha se informado na pensão sobre o nome da pessoa acredito isto sim que a existência desta permaneceu desconhecida para ele Mas o valor de evidência desse caso é comprometido por uma casualidade O homem que eu visitei na pensão não apenas se chamava Freund mas era para nós todos um verdadeiro Freund amigo Era o dr Anton von Freund cuja doação havia tornado possível a nossa editora Sua morte prematura e a do nosso Karl Abra ham alguns anos depois foram os maiores infortúnios a atingir o desenvolvi mento da psicanálise Então eu posso ter dito ao sr P Visitei no seu prédio 134286 um Freund e com essa possibilidade desaparece o interesse ocultista em sua segunda associação Também a impressão causada pela terceira associação se esvanece rapida mente Podia P saber que Jones publicou uma monografia sobre o pesadelo uma vez que não lia jamais a literatura psicanalítica Sim podia saber Ele pos suía livros de nossa editora podia ter visto nas sobrecapas os títulos das novas publicações anunciadas Isso não pode ser provado mas tampouco re futado Por esse caminho não chegaremos a decisão nenhuma portanto La mento que minha observação sofra do mesmo defeito de tantas outras Foi re gistrada tarde demais e discutida num momento em que eu já não via o sr P e não podia mais questionálo Voltemos então ao primeiro caso que mesmo isolado torna sustentável aparentemente o fato da transmissão de pensamento Podia P saber que o dr Forsyth estivera ali quinze minutos antes Podia saber de sua existência ou de sua presença em Viena Não se deve ceder à inclinação de negar redonda mente as duas questões Vejo um caminho que leva a uma resposta afirmativa parcial Eu posso ter informado ao sr P que esperava um médico inglês para ser treinado na análise a primeira pomba após o dilúvio Isso pode ter sido no verão de 1919 o dr Forsyth havia se entendido comigo por carta meses antes de sua vinda Posso até haver mencionado o seu nome embora isto seja im provável Em vista da outra significação que o nome tinha para nós dois sua menção traria uma conversa que teria ficado em minha memória No entanto pode ser que isso tenha acontecido e eu o tenha esquecido completamente de pois de modo que o sr von Vorsicht de cautela na sessão de análise pôde me impressionar como algo prodigioso Quando o indivíduo se considera um cético é bom duvidar às vezes do seu próprio ceticismo Talvez se ache tam bém em mim a secreta inclinação pelos prodígios que tanto favorece a criação de eventos ocultistas 135286 Tendo afastado uma das possibilidades de prodígio deparamos com outra a mais difícil delas Supondo que o sr P soubesse que havia um dr Forsyth e que este era esperado em Viena no outono como explicar que se tornasse re ceptivo em relação a ele justamente no dia de sua chegada e após sua primeira visita Podese dizer que isso foi acaso isto é deixálo sem explicação mas eu discuti as duas outras associações de P justamente para excluir o acaso para lhes mostrar que ele realmente sentia ciúmes de pessoas que me visitam e que eu visito ou para não descuidar da possibilidade extrema podese aventar a hipótese de que P teria notado uma agitação especial em mim da qual nada sei de fato e dela tirado sua conclusão Ou o sr P que afinal chegou apenas quinze minutos após o inglês o teria encontrado no pequeno trecho do caminho que era comum aos dois o teria reconhecido na sua aparência ca racteristicamente inglesa e pensado Ah este é o dr Forsyth que porá fim à minha análise com sua chegada E provavelmente está vindo do professor agora Não posso ir mais adiante com essas conjecturas racionais Haverá novamente um non liquet não está provado mas devo confessar que minha sensação é de que também aí a balança se inclina a favor da transmissão de pensamentos Aliás não sou o único a vivenciar tais acontecimentos ocultos na situação analítica Helene Deutsch deu a conhecer observações similares em 1926 estudando como seriam determinadas pelas relações de transferência entre pacientes e analistas Estou convencido de que vocês não se acham muito satisfeitos com minha posição ante esse problema a de não se convencer inteiramente e no entanto estar disposto a ser convencido Talvez digam Eis novamente o caso de um homem que toda a sua vida trabalhou honestamente como cientista e na velhice tornouse estúpido religioso ingênuo Sei que alguns grandes nomes se incluem nessa categoria mas não devem me colocar nela Pelo menos reli gioso não me tornei e tampouco ingênuo espero Apenas ocorre que quando alguém passou a vida encurvado a fim de evitar um choque doloroso com os 136286 fatos conserva também na velhice o dorso arqueado a curvarse ante novas realidades Certamente vocês prefeririam que eu me ativesse a um moderado teísmo e fosse implacável na rejeição a todo ocultismo Mas sou incapaz de granjear benevolência devo sugerir que pensem mais amigavelmente sobre a possibilidade objetiva da transmissão de pensamentos e portanto da telepatia Não esqueçam que somente abordo aqui esses problemas na medida em po demos nos avizinhar deles a partir da psicanálise Quando eles surgiram primeiramente no meu horizonte há mais de dez anos também senti o medo de uma ameaça à nossa visão de mundo científica que caso parcelas do ocult ismo se mostrassem verdadeiras teria de ceder lugar ao espiritismo ou ao mist icismo Hoje penso diferente acho que não damos testemunho de grande con fiança na ciência se não a cremos capaz de acolher e elaborar o que se revelar válido nas afirmações ocultistas E particularmente quanto à transmissão de pensamentos ela parece inclusive favorecer a extensão do modo de pensar científico mecanicista segundo os adversários às coisas espirituais de tão difícil apreensão O processo telepático deve consistir em que um ato men tal de uma pessoa provoca o mesmo ato mental em outra pessoa O que há entre os dois atos mentais pode facilmente ser um processo físico no qual o psíquico se converte numa ponta e que na outra ponta se converte novamente no psíquico Seria clara então a analogia com outras conversões como no falar e ouvir ao telefone E imaginem se pudéssemos nos apoderar do equival ente físico do ato psíquico Pareceme que com a inserção do inconsciente entre o físico e o até então denominado psíquico a psicanálise nos preparou para a hipótese de eventos como a telepatia Se nos habituamos à ideia da tele patia podemos fazer muita coisa com ela claro que só na imaginação por enquanto Como é notório não sabemos como surge a vontade geral nas grandes sociedades de insetos Possivelmente isso ocorre pela via de uma transferência psíquica direta desse tipo Somos levados à conjectura de que esta seria a via de entendimento original arcaica entre os seres individuais que no curso da evolução filogenética é sobrepujada pelo método superior da 137286 comunicação com ajuda de sinais captados pelos órgãos dos sentidos Mas o método mais antigo poderia permanecer no fundo e ainda prevalecer em de terminadas condições por exemplo em multidões apaixonadamente agitadas Tudo isso é ainda incerto e pleno de enigmas não resolvidos mas não é motivo para nos assustarmos Se houver telepatia como processo real podese conjecturar não obstante sua difícil demonstração que seja um fenômeno bem frequente Estaria de acordo com nossa expectativa se pudéssemos mostrála justamente na vida psíquica da criança Com relação a isso lembramos a frequente angústia que têm as crianças de que os pais conhecem todos os seus pensamentos sem que elas os tenham comunicado a plena contrapartida e talvez a fonte da crença dos adultos na onisciência divina Uma pesquisadora digna de crédito Dorothy Burlingham comunicou recentemente num ensaio intitulado A an álise infantil e a mãe observações que se confirmadas porão fim às dúvidas restantes sobre a realidade da transmissão de pensamentos Ela recorreu à situ ação agora já não rara em que mãe e filho se acham simultaneamente em an álise e relatou eventos curiosos como este que segue Um dia na sessão a mãe falou de uma moeda de ouro que teve determinado papel numa das cenas de sua infância Logo depois ao chegar em casa seu filho de dez anos de idade vai ao seu quarto e lhe dá uma moeda de ouro que ela deve guardar para ele A mãe lhe pergunta surpresa onde a arranjou O menino a ganhou no aniver sário mas este aconteceu meses atrás e não há por que ele lembrarse da moeda justamente agora A mãe informa a analista do garoto sobre a coin cidência e lhe pede que investigue junto a ele o motivo daquele ato Mas a an álise do garoto nada esclarece o ato penetrou em sua vida naquele dia como um corpo estranho Algumas semanas depois a mãe está sentada na escrivan inha para registrar o acontecido como lhe solicitaram vem o garoto pedindo de volta a moeda de ouro para levar e mostrar na sessão de análise Nova mente sua análise não consegue achar a motivação para esse desejo E com isso retornamos à psicanálise da qual partimos 138286 31 A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA Senhoras e senhores Sei que conhecem a importância que tem o ponto de partida em suas próprias relações sejam elas com pessoas ou com coisas Foi assim também com a psicanálise fez diferença para o desenvolvimento que teve e a recepção que encontrou que ela tivesse começado seu trabalho com o sintoma aquilo que na psique é mais alheio ao Eu O sintoma vem do reprim ido é como que o representante dele ante o Eu mas o reprimido é para o Eu terra estrangeira terra estrangeira interior assim como a realidade permitamme a expressão insólita é terra estrangeira exterior Partindo do sintoma o caminho nos levou ao inconsciente à vida instintual à sexualidade foi a época em que a psicanálise teve de ouvir as engenhosas objeções de que o homem não é apenas um ser sexual de que também conhece impulsos mais nobres mais elevados Poderiam ter acrescentado que exaltado pela consciên cia desses sublimes impulsos ele frequentemente se arroga o direito de pensar absurdos e negligenciar fatos Vocês sabem mais coisas desde o início sustentamos que o ser humano ad oece graças ao conflito entre as exigências da vida instintual e a resistência que nele se estabelece contra elas e em nenhum instante esquecemos essa instância que resiste rechaça reprime que imaginamos dotada de suas forças particu lares os instintos do Eu e que coincide justamente com o Eu da psicologia popular No entanto dado o laborioso progresso do trabalho científico tam bém a psicanálise não pôde estudar simultaneamente todos os campos e manifestarse de uma só vez sobre todos os problemas Por fim avançamos de modo a poder afastar nossa atenção do reprimido e voltála para o repressor e achamonos diante desse Eu que parecia ser tão evidente com a segura 139286 expectativa de também ali achar coisas para as quais não podíamos estar pre parados mas não foi fácil encontrar o acesso inicial a ele É a respeito disso que hoje pretendo lhes falar Mas devo manifestar a suspeita de que esta minha exposição da psicologia do Eu lhes produzirá um efeito diverso daquele da introdução ao mundo psíquico subterrâneo que a precedeu Não sei dizer com segurança por que isso deve ser assim Primeiramente pensei que achariam que antes lhes relatei sobretudo fatos embora estranhos e peculiares enquanto agora ouvirão prin cipalmente concepções ou seja especulações Mas não é isso refletindo mel hor devo dizer que o montante de elaboração intelectual do material concreto em nossa psicologia do Eu não é maior que na psicologia da neurose Tive de rejeitar outras motivações possíveis para minha ideia inicial agora creio que isso está relacionado de algum modo à natureza do material mesmo e à nossa falta de costume em lidar com ele De toda forma não me surpreenderei se vo cês se mostrarem ainda mais reservados e cautelosos do que antes A situação em que nos achamos no início de nossa pesquisa deve nos indi car ela mesma o caminho Queremos fazer do Eu o nosso próprio Eu o objeto de nossa pesquisa Mas podese fazer isso Afinal o Eu é o sujeito por excelên cia como pode tornarse objeto Ora não há dúvida de que isso é possível O Eu pode tomar a si mesmo por objeto tratar a si mesmo como a outros objetos observarse criticarse e fazer sabe Deus mais o que consigo mesmo Nisso uma parte do Eu contrapõese ao resto Portanto o Eu é divisível ele se divide durante várias de suas funções ao menos provisoriamente Suas partes podem unirse novamente depois Isso não é propriamente novidade talvez seja uma ênfase pouco habitual em coisas geralmente conhecidas Por outro lado achamonos familiarizados com a noção de que a patologia na me dida em que aumenta e torna mais grosseiro pode chamar a atenção para con dições normais que de outra maneira não perceberíamos Ali onde ela nos mostra uma ruptura ou uma fenda pode haver normalmente uma articulação 140286 Se lançamos um cristal ao chão ele se quebra mas não arbitrariamente ele se parte conforme suas linhas de separação em fragmentos cuja delimitação em bora invisível é predeterminada pela estrutura do cristal Os doentes mentais são estruturas assim fendidas e despedaçadas Também não podemos lhes negar um tanto do temor reverencial que os povos antigos demonstravam para com os loucos Eles deram as costas à realidade externa mas justamente por causa disso sabem mais da realidade interna psíquica e podem nos revelar coisas que de outro modo nos seriam inacessíveis A respeito de um grupo desses doentes afirmamos que sofrem de delírio de ser observado Queixamse de ser importunados incessantemente até nos atos mais íntimos pela obser vação da parte de poderes desconhecidos provavelmente pessoas e têm alu cinações em que ouvem tais pessoas enunciarem o resultado de sua obser vação Agora ele vai dizer isso agora ele se veste para sair etc Tal obser vação não é o mesmo que uma perseguição mas não está longe disso pres supõe que as pessoas desconfiam deles que esperam flagrálos em ações proi bidas pelas quais devem ser castigados Como seria se esses loucos tivessem razão se em todos nós houvesse uma tal instância no Eu observadora e punit iva que neles apenas tivesse se separado agudamente do Eu e sido deslocada erradamente para a realidade externa Não sei se com vocês sucede o mesmo que comigo Desde que sob a forte impressão desse quadro clínico tive a ideia de que a separação de uma instân cia observadora do resto do Eu poderia ser um traço regular da estrutura do Eu essa ideia não me abandonou mais e fui impelido a investigar as demais ca racterísticas e relações dessa instância assim segregada O passo seguinte logo foi dado O teor do delírio de ser observado já leva a crer que a observação é apenas um preparativo para o julgamento e a punição e assim nos aperce bemos de que uma outra função dessa instância deve ser aquilo que chamamos de nossa consciência Não parece haver em nós algo mais que separamos regularmente do nosso Eu e a ele contrapomos tão facilmente como a nossa consciência Sinto uma inclinação para fazer algo que promete me dar prazer 141286 mas não o faço argumentando que minha consciência não o permite Ou deixo que a enorme expectativa de prazer me leve a fazer algo contra o qual a voz da consciência levanta objeção e depois do ato minha consciência me pune com dolorosas recriminações levandome a sentir arrependimento pelo ato Eu po deria simplesmente dizer que a instância especial que começo a distinguir no Eu é a consciência mas é mais prudente conservar essa instância como algo in dependente e supor que a consciência seja uma de suas funções e a autoobser vação indispensável como pressuposto para a atividade judicativa da con sciência seja outra E como é próprio do reconhecimento de uma existência distinta dar à coisa um nome próprio passarei a designar essa instância do Eu como o Supereu Nesse momento estou preparado para ouvilos perguntar ironicamente se nossa psicologia do Eu resumese apenas a tomar literalmente e tornar mais grosseiras as abstrações comuns a transformálas de conceitos em coisas algo com que não se ganharia muito E respondo que na psicologia do Eu é difícil evitar o que é geralmente conhecido tratase antes de concepções e arru mações novas que de novas descobertas Logo não lhes peço que abandonem sua atitude crítica mas que aguardem os desenvolvimentos seguintes Os fatos da patologia dão a nossos esforços um pano de fundo que vocês buscariam em vão na psicologia popular Prossigo então Mal nos familiarizamos com a ideia de um tal Supereu que goza de certa autonomia persegue seus próprios ob jetivos e possui energia independente do Eu chamanos a atenção um quadro patológico que ilustra muito bem a severidade a crueldade mesmo dessa in stância e as suas cambiantes relações com o Eu Refirome ao estado de melan colia mais precisamente ao surto de melancolia do qual também vocês já ouviram falar ainda que não sejam psiquiatras Nesse transtorno de cujas cau sas e mecanismo sabemos muito pouco a característica mais saliente é a maneira como o Supereu a consciência moral vocês podem dizer trata o Eu Enquanto em épocas sadias o melancólico pode ser mais ou menos severo consigo mesmo como qualquer pessoa no surto melancólico o Super 142286 eu tornase rigoroso demais xinga humilha e maltrata o pobre Eu ameaçao com os mais duros castigos recriminao por atos passados que na época não foram levados a sério como se durante todo o intervalo houvesse juntado acusações e esperasse apenas seu fortalecimento atual para apresentálas e com base nelas fazer a condenação O Supereu aplica o mais rigoroso critério moral ao Eu abandonado à sua mercê representa mesmo as exigências da mor alidade e logo notamos que o nosso sentimento de culpa é expressão da tensão entre Eu e Supereu É uma notável experiência ver como um fenômeno per iódico a moralidade supostamente dada por Deus e profundamente arraigada em nós Pois sucede que após alguns meses todo aquele alvoroço moral desa parece a crítica do Supereu silencia o Eu é reabilitado e goza novamente de todos os direitos até o próximo surto E em certas formas da doença ocorre o oposto nos intervalos o Eu se acha num estado de venturosa embriaguez tri unfante como se o Supereu tivesse perdido toda a força ou se fundido com o Eu e este Eu liberado maníaco permitese realmente a franca satisfação de to dos os seus apetites Eventos pródigos em enigmas não resolvidos Sem dúvida vocês esperarão mais do que uma simples ilustração se lhes digo que aprendemos muitas coisas sobre a gênese da consciência Apoiando se numa conhecida frase de Kant que justapõe a consciência moral dentro de nós e o céu estrelado um homem religioso poderia ser tentado a venerar essas duas coisas como as obrasprimas da Criação As estrelas são magníficas sem dúvida mas quanto à consciência moral Deus fez uma obra desigual e des cuidada pois a maioria dos homens a tem numa medida bastante modesta ou até insuficiente para que seja mencionada Não desconhecemos o quê de ver dade psicológica existente na afirmação de que a consciência moral é de ori gem divina mas isso requer interpretação Se a consciência é algo dentro de nós não o é desde o início Nisso forma um verdadeiro contraste com a vida sexual que desde o começo da vida está presente não é acrescentada depois Mas o bebê é notoriamente amoral não tem inibições internas para seus im pulsos que buscam o prazer O papel que o Supereu virá a assumir é 143286 desempenhado primeiramente por um poder externo pela autoridade parental A influência dos pais governa a criança concedendolhe provas de amor e ameaças de castigo que atestam a perda do amor e são temidos por si mesmos Essa angústia realista é precursora da posterior angústia moral enquanto ela vigora não precisamos falar de Supereu e de consciência moral Apenas mais tarde se cria a situação secundária que nos dispomos demasiado prontamente a ver como normal em que o obstáculo externo é internalizado em que o Supereu toma o lugar da instância parental e então observa dirige e ameaça o Eu exatamente como os pais faziam com a criança Mas o Supereu que dessa forma assume o poder a função e até os méto dos da instância parental é não apenas sucessor mas também legítimo her deiro desta Ele se origina diretamente dela logo veremos por qual processo Primeiro devemos lidar com uma discrepância entre os dois O Supereu parece ter tomado unilateralmente apenas a dureza e severidade dos pais sua função punitiva e proibidora mas sua amorosa solicitude não tem continuação Se os pais exerceram de fato um regime severo acreditamos ser compreensível que também na criança se desenvolva um Supereu severo mas a experiência mostra contrariando nossa expectativa que o Supereu pode adquirir a mesma implacável dureza quando a educação foi branda e bondosa evitando ao máx imo os castigos e ameaças Retornaremos a essa contradição quando abordar mos as transformações do instinto durante a formação do Supereu Sobre a mudança da instância parental em Supereu não sei lhes dizer tanto quanto gostaria em parte porque esse processo é tão complicado que sua ex posição não cabe nos limites de uma introdução tal como aqui lhes ofereço e por outro lado porque não cremos nós mesmos havêlo compreendido inteira mente Queiram satisfazerse portanto com o seguinte esboço A base deste processo é o que se chama de identificação isto é o assemelhamento de um Eu a outro em que o primeiro Eu se comporta como o outro em determinados aspectos imitao de certo modo o assimila A identificação já foi comparada não sem razão à incorporação oral canibalesca da outra pessoa É uma forma 144286 muito importante de ligação com outro alguém provavelmente a mais primor dial não é a mesma que a escolha de objeto Podese exprimir assim a difer ença quando o menino se identifica com o pai ele quer ser como o pai quando o faz objeto de sua escolha ele quer têlo possuílo no primeiro caso seu Eu é modificado segundo o modelo do pai no segundo isto não é necessário Iden tificação e escolha de objeto são em larga medida independentes uma da outra mas é possível alguém se identificar com a mesma pessoa que tomou por objeto sexual mudar seu Eu segundo ela Dizse que a influência exercida no Eu pelo objeto sexual é particularmente frequente nas mulheres e algo carac terístico da feminilidade Na primeira série de conferências devo ter lhes falado sobre aquela que é de longe a mais instrutiva relação entre identificação e escolha de objeto É facilmente observada tanto em crianças como em adultos em pessoas normais e pessoas doentes Quando alguém perdeu ou teve de abandonar um objeto com frequência compensa isso identificandose com ele instaurandoo novamente dentro de seu Eu de modo que a escolha de objeto como que regride à identificação nesse caso Eu próprio não estou satisfeito com essas observações sobre a identificação mas bastará que vocês me concedam que a instauração do Supereu pode ser vista como um caso bemsucedido de identificação com a instância parental O fato decisivo para essa concepção é que essa nova criação de uma instância su perior no Eu se acha intimamente ligada ao destino do complexo de Édipo de modo que o Supereu aparece como herdeiro dessa ligação afetiva tão import ante na infância Entendemos que com a cessação do complexo de Édipo a cri ança teve de renunciar aos intensos investimentos de objeto que fez nos pais e como compensação por essa perda de objeto são bastante fortalecidas as identi ficações com os pais que provavelmente existiam há muito no seu Eu Tais identificações enquanto precipitados de investimentos objetais abandonados repetirseão depois frequentemente na vida da criança mas está inteiramente de acordo com o valor afetivo desse primeiro exemplo de tal transformação que o seu resultado venha a ter uma posição especial no Eu O 145286 aprofundamento da investigação nos ensina também que o Supereu é preju dicado na força e no desenvolvimento quando a superação do complexo de Édipo não é inteiramente conseguida No curso do desenvolvimento o Super eu acolhe também as influências das pessoas que tomaram o lugar dos pais ou seja de educadores mestres modelos ideais Em geral ele distanciase cres centemente dos pais originais tornandose mais impessoal por assim dizer Não esqueçamos também que a criança estima diferentemente os pais con forme as diferentes épocas de sua vida No tempo em que o complexo de Édipo dá lugar ao Supereu eles são algo formidável depois perdem muito Então ocorrem também identificações elas inclusive contribuem grandemente para a formação do caráter mas então afetam apenas o Eu já não influem no Supereu que foi determinado pelas primeiras imagos parentais Espero que já percebam que nossa postulação de um Supereu descreve de fato uma relação estrutural não personifica simplesmente uma abstração como a da consciência moral Temos ainda a mencionar uma importante função que atribuímos a este Supereu Ele é também o portador do ideal do Eu pelo qual o Eu se mede o qual busca igualar e cuja demanda por uma perfeição cada vez maior ele se empenha em satisfazer Sem dúvida esse ideal do Eu é o precipit ado da velha ideia que a criança tinha dos pais a expressão da admiração de quem os considerava perfeitos Sei que ouviram falar muito do sentimento de inferioridade que caracteriz aria justamente os neuróticos Ele aparece principalmente nas chamadas belas letras Um autor que utiliza a expressão complexo de inferioridade acred ita desse modo satisfazer todas as exigências da psicanálise e elevar sua ex posição a um mais alto nível psicológico Na realidade tal expressão quase não se usa na psicanálise Não significa para nós algo que seja simples muito menos elementar Relacionálo à autopercepção de eventuais atrofias de ór gãos como gosta de fazer a escola que chamam de psicologia individual parecenos um equívoco estreito O sentimento de inferioridade tem fortes 146286 raízes eróticas A criança sentese inferior ao notar que não é amada e assim também o adulto O único órgão realmente considerado inferior é o pênis at rofiado o clitóris da garota A parte principal do sentimento de inferioridade no entanto vem da relação do Eu com seu Supereu é tal como o sentimento de culpa expressão da tensão entre os dois Sentimento de inferioridade e sen timento de culpa são dificilmente separáveis Talvez seja pertinente ver no primeiro a complementação erótica do sentimento de inferioridade moral Na psicanálise demos pouca atenção a esse problema da delimitação dos dois conceitos Justamente porque o complexo de inferioridade tornouse tão popular permitome entretêlos com uma breve digressão neste ponto Um person agem histórico de nosso tempo que ainda vive agora retirado tem um defeito num dos seus membros consequência de uma lesão sofrida no nascimento Um conhecido autor contemporâneo que se dedicou a biografias de pessoas eminentes também abordou a vida desse homem a que me refiro Pode ser difícil ao escrever uma biografia suprimir a necessidade de aprofundamento psicológico Por isso este nosso autor se aventurou a basear toda a evolução do caráter do herói no sentimento de inferioridade que o defeito físico despertava Nisso ele ignorou um fato pequeno mas não insignificante Geralmente ocorre que uma mãe a quem o destino deu um filho doente ou de algum modo defi ciente procure compensálo por essa injusta desvantagem com amor em abundância No caso de que falamos a orgulhosa mãe agiu de outra forma ela subtraiu ao filho seu amor por conta daquele defeito Quando o filho se trans formou num homem poderoso seus atos demonstraram inequivocamente que não perdoava a mãe Ao considerarem a importância do amor materno para a vida psíquica de uma criança vocês deverão corrigir mentalmente a teoria de inferioridade do biógrafo Voltemos agora ao Supereu Atribuímos a ele a autoobservação a con sciência moral e a função de ideal Do que dissemos sobre sua gênese resulta 147286 que ele tem como pressupostos um fato biológico importantíssimo e um fato psicológico pleno de consequências a longa dependência que a criança tem dos pais e o complexo de Édipo ambos intimamente relacionados Para nós o Supereu é o representante de todo limite moral o advogado do anseio por perfeição em suma aquilo que pudemos apreender psicologicamente do as pecto dito elevado da vida humana Como ele próprio remonta à influência dos pais educadores etc sua importância ficará mais clara se nos voltarmos para essas fontes Via de regra os pais e autoridades análogas seguem na edu cação da criança os preceitos do seu próprio Supereu Não importando como o seu Eu tenha se arranjado com seu Supereu na educação da criança eles são rigorosos e exigentes Esqueceram as dificuldades de sua própria infância es tão satisfeitos de poder identificarse totalmente com os próprios pais que a seu tempo lhes impuseram essas duras restrições De modo que o Supereu da criança é construído não segundo o modelo dos pais mas do Supereu dos pais preenchese com o mesmo conteúdo tornase veículo da tradição de to dos os constantes valores que assim se propagaram de geração a geração Vocês já percebem que importante ajuda a consideração do Supereu pode fornecer para o entendimento da conduta social humana por exemplo a questão da delinquência e talvez também que sugestões práticas dela res ultam para a educação Provavelmente as concepções históricas chamadas de materialistas pecam por subestimar esse fator Elas o põem de lado com a ob servação de que as ideologias dos homens nada mais são que produto e su perestrutura de suas relações econômicas atuais Isso é verdade mas muito provavelmente não é toda a verdade A humanidade nunca vive inteiramente no presente o passado a tradição da raça e do povo prossegue vivendo nas ideologias do Supereu apenas muito lentamente cede às influências do presente às novas mudanças e na medida em que atua através do Supereu desempenha um grande papel na vida humana independentemente das con dições econômicas 148286 Em 1921 busquei aplicar a distinção entre Eu e Supereu ao estudo da psico logia das massas Cheguei a uma fórmula assim uma massa psicológica é uma junção de indivíduos que introduziram a mesma pessoa em seu Supereu e com base nesse elemento em comum identificaramse uns com os outros em seu Eu Naturalmente ela vale apenas para massas que têm um líder Se tivéssemos mais aplicações desse tipo a hipótese do Supereu perderia o quê de estranheza que ainda tem para nós e nos livraríamos totalmente do em baraço que nos sobrevém quando acostumados à atmosfera do mundo subterrâneo movemonos nas camadas mais superficiais mais elevadas do aparelho psíquico Obviamente não acreditamos que ao diferenciar o Super eu falamos a última palavra sobre a psicologia do Eu Tratase isto sim de um primeiro passo mas neste caso não apenas o começo é difícil Agora nos aguarda uma outra tarefa na extremidade oposta do Eu por as sim dizer Ele nos é apresentado por uma observação feita no trabalho analítico uma observação bem antiga na verdade Como não raro acontece foi necessário muito tempo até nos resolvermos a apreciála Como sabem toda a teoria psicanalítica se acha realmente construída sobre a percepção da resistência que o paciente oferece em nossa tentativa de tornarlhe consciente o seu inconsciente O sinal objetivo da resistência é suas ideias espontâneas não aparecerem ou se afastarem muito do tema tratado Ele também pode re conhecer subjetivamente a resistência no fato de ter sentimentos dolorosos ao se avizinhar do tema Mas esse último sinal pode estar ausente Então dizemos ao paciente que deduzimos da sua conduta que ele agora está em resistência e ele responde que nada sabe que nota apenas que as ideias espontâneas se tor nam mais difíceis Revelase que estávamos certos mas sua resistência também era inconsciente tão inconsciente quanto o elemento reprimido em cuja re moção trabalhávamos Há muito deveria ter sido lançada esta pergunta de que parte da sua psique vem uma tal resistência inconsciente O iniciante na 149286 psicanálise tem a resposta à mão é justamente a resistência do inconsciente Uma resposta ambígua sem utilidade Se com isso ele quer dizer que a res istência vem do reprimido temos de replicar certamente não Ao reprimido devemos atribuir antes um forte impulso para cima um ímpeto para chegar à consciência A resistência pode apenas ser expressão do Eu que a seu tempo efetuou a repressão e agora quer mantêla Esta sempre foi nossa concepção Desde que supomos uma instância especial no Eu que representa as exigências limitadoras e afastadoras o Supereu podemos dizer que a repressão é obra desse Supereu que a realiza ele próprio ou encarrega o Eu de fazêla Se então ocorre que a repressão não se torna consciente para o paciente na análise isto significa que o Supereu e o Eu trabalham inconscientemente em situações muito importantes ou o que seria mais significativo ainda que partes de am bos do Eu e do Supereu são inconscientes Nos dois casos temos de consid erar a desagradável percepção de que Super Eu e consciente de um lado e reprimido e inconsciente do outro lado de maneira nenhuma coincidem Senhoras e senhores Necessito fazer uma pausa para respirar que também para vocês será um alívio e desculparme antes de prosseguir Ofereçolhes complementos a uma introdução à psicanálise que iniciei quinze anos atrás e tenho de agir como se também vocês nesse meiotempo tivessem se ocupado apenas de psicanálise Sei que é uma pretensão indevida mas não tenho escolha Isto se relaciona ao fato de ser muito difícil dar uma visão da psicanál ise para quem não é psicanalista Acreditem não gostamos de dar a impressão de ser uma sociedade secreta e praticar uma ciência oculta Mas tivemos de perceber e proclamar como nossa convicção que ninguém tem o direito de in tervir numa discussão da psicanálise se não adquiriu determinadas experiên cias que apenas mediante a própria análise podem ser adquiridas Quando proferi minhas conferências quinze anos atrás busquei pouparlhes certos 150286 trechos especulativos de nossa teoria mas justamente a eles é que se ligam as novidades de que falarei hoje Retornando ao nosso tema Ante a dúvida se o Eu e o Supereu são eles próprios inconscientes ou se apenas produzem efeitos inconscientes decidimo nos com boas razões pela primeira possibilidade Sim grandes porções do Eu e do Supereu podem permanecer inconscientes são normalmente incon scientes Ou seja a pessoa nada sabe de seus conteúdos e é preciso despender algum esforço para tornála consciente deles É fato que Eu e consciente rep rimido e inconsciente não coincidem Sentimos necessidade de revisar pro fundamente nossa atitude ante o problema conscienteinconsciente Primeiro nos inclinamos a diminuir o valor do critério de ser consciente já que ele mostrou não ser confiável Mas aí estaríamos sendo injustos Ele é como a vida não vale muito mas é o que temos Sem a luz da característica de ser con sciente estaríamos perdidos na escuridão da psicologia profunda mas po demos tentar uma outra orientação Aquilo que deve ser chamado de consciente não precisamos discutir está fora de qualquer dúvida O mais antigo e melhor significado da palavra in consciente é o descritivo chamamos de inconsciente um processo psíquico cuja existência temos de supor porque o inferimos digamos de seus efeitos mas do qual nada sabemos Então temos com ele a mesma relação que temos com um processo psíquico em outra pessoa exceto que é justamente em nossa pessoa Para sermos ainda mais precisos modificaremos da seguinte forma o enunciado chamamos um processo de inconsciente quando temos de supor que no momento ele está ativado embora no momento nada saibamos dele Essa limitação nos faz refletir que a maioria dos processos conscientes é consciente por não muito tempo logo eles se tornam latentes mas podem facilmente se tornar conscientes de novo Poderíamos também dizer que se tornaram incon scientes se for certo que no estado de latência eles ainda são algo psíquico Até esse ponto nada teríamos verificado de novo nem teríamos conquistado o 151286 direito de introduzir o conceito de inconsciente na psicologia Mas então vem o que já pudemos observar nos atos falhos Vemonos obrigados a supor para explicar um lapso de fala que havia se formado a intenção de dizer algo Nós a percebemos com segurança devido à perturbação ocorrida na fala mas ela não se realizou era inconsciente portanto Se depois a expomos à pessoa que fala esta pode reconhecêla como uma intenção familiar então era apenas tempor ariamente inconsciente ou negála como sendo desconhecida então era duradouramente inconsciente Dessa experiência tiramos retrospectivamente o direito de também proclamar como algo inconsciente o que foi designado como latente A consideração dessas relações dinâmicas nos permite agora dis tinguir dois tipos de inconsciente um que facilmente em condições amiúde produzidas transformase em consciente e outro no qual esta mudança ocorre dificilmente só com notável esforço talvez nunca Para evitar a ambiguidade a dúvida de a qual dos dois inconscientes nos referimos se utilizamos a palavra no sentido descritivo ou no dinâmico utilizamos um expediente lícito e simples Ao inconsciente que é tão só latente e portanto tornase facilmente consciente chamamos préconsciente mantendo a designação de incon sciente para o outro Possuímos então três termos consciente préconsciente e inconsciente com os quais podemos nos haver na descrição dos fenômenos psíquicos Repetindo em termos apenas descritivos também o préconsciente é inconsciente mas não o designamos assim exceto ao falar de maneira menos rigorosa ou quando temos que defender a existência de processos incon scientes em geral na psique Vocês me concederão espero que até o momento as coisas vão indo e po demos lidar confortavelmente com elas Mas infelizmente o trabalho psicanalítico viuse obrigado a usar o termo inconsciente num terceiro sen tido e isso pode ter criado confusão Sob a impressão nova e poderosa de que um âmbito vasto e importante da psique é normalmente subtraído ao conheci mento do Eu de modo que os processos ali dentro devem ser tidos como 152286 inconscientes no exato sentido dinâmico entendemos a palavra inconsciente também num sentido sistemático ou topográfico falamos de um sistema do préconsciente e do inconsciente de um conflito do Eu com o sistema Ics to mando a palavra cada vez mais para designar uma província psíquica em vez de um atributo do psíquico A descoberta realmente incômoda de que também parcelas do Eu e do Supereu são inconscientes no sentido dinâmico tem aqui um efeito facilitador permitenos afastar uma complicação Vemos que não é lícito chamarmos o âmbito psíquico alheio ao Eu de sistema Ics pois o estado de inconsciência não é característica exclusiva dele Muito bem não mais usaremos inconsciente no sentido sistemático e daremos ao que até aqui foi designado assim um nome melhor que não mais se preste a equívocos Acompanhando o uso de Nietzsche e seguindo sugestão de Georg Grod deck passaremos a chamálo de Id Es Esse pronome impessoal parece par ticularmente adequado para exprimir a principal característica dessa província mental o fato de ser alheia ao Eu Supereu Eu e Id são os três reinos âmbi tos províncias em que decompomos o aparelho psíquico da pessoa e das re lações entre eles nos ocuparemos em seguida Mas antes farei um parêntese Suponho que estejam insatisfeitos com o fato de as três qualidades da consciência e as três províncias do aparelho psíquico não se terem combinado em três pacíficos pares e que na sua opinião isso talvez obscureça nossos resultados No entanto acho que não devemos lam entar isso admitindo para nós mesmos que não temos o direito de esperar uma arrumação tão clara Deixemme fazer uma analogia analogias nada resolvem é verdade mas podem fazer com que nos sintamos mais em casa Eu ima gino um país com paisagem variada montanhas planícies e lagos e com pop ulação mista alemães magiares e eslovacos que também exercem difer entes atividades A distribuição poderia ser assim nas montanhas habitam os alemães que são criadores de gado nas planícies os magiares que cultivam cereais e vinhas e junto aos lagos os eslovacos que apanham peixes e tecem 153286 juncos Se essa divisão fosse tão clara e simples um Woodrow Wilson se reju bilaria com ela Seria ótima também para a aula de geografia Mas provavel mente vocês acharão menos arrumação e maior mistura se percorrerem o país Alemães magiares e eslovacos vivem em toda parte nas montanhas há tam bém áreas cultivadas nas planícies também se cria gado Algumas coisas nat uralmente são como vocês esperavam pois nas montanhas não se acham peixes e na água não crescem vinhas Enfim a imagem que têm do território pode ser correta em linhas gerais nos particulares deverão tolerar as divergências À parte o novo nome não esperem que eu lhes diga muita coisa nova acerca do Id Ele é a parte obscura e inacessível de nossa personalidade o pou co que dele sabemos descobrimos no estudo do trabalho do sonho e da form ação do sintoma neurótico e a maior parte disso é de caráter negativo pode ser descrita somente em contraposição ao Eu Aproximamonos do Id com analogias chamamolo um caos um caldeirão cheio de excitações fervilhantes Nós o representamos como sendo aberto em direção ao somático na extremid ade ali acolhendo as necessidades dos instintos que nele acham expressão psíquica mas não sabemos dizer em qual substrato A partir dos instintos ele se enche de energia mas não tem organização não introduz uma vontade geral apenas o esforço de satisfazer as necessidades do instinto observando o princí pio do prazer As leis do pensamento lógico não valem para os processos do Id sobretudo o princípio da contradição não vale Impulsos opostos existem um ao lado do outro sem se cancelarem ou se diminuírem no máximo con vergem em formações de compromisso sob a dominante coação econômica de descarregar energia Nada existe no Id que possamos equiparar à negação e também constatamos surpresos uma exceção à tese filosófica de que tempo e espaço são formas necessárias de nossos atos psíquicos Nada se acha que cor responda à ideia de tempo não há reconhecimento de um transcurso temporal e o que é muito notável e aguarda consideração no pensamento filosófico não há alteração do evento psíquico pelo transcurso do tempo Desejos que nunca 154286 foram além do Id mas também impressões que pela repressão afundaram no Id são virtualmente imortais comportamse após décadas como se tivessem acabado de surgir Podem ser reconhecidos como passado desvalorizados e privados de seu investimento de energia somente quando se tornam con scientes mediante o trabalho analítico e é nisso que se baseia em medida nada pequena o efeito terapêutico do tratamento analítico Sempre tive a impressão de que tiramos pouco proveito para a nossa teor ia desse indubitável fato da imutabilidade do reprimido através do tempo Isso parece permitir um acesso aos mais profundos vislumbres Infelizmente tam pouco fiz maiores progressos nesse ponto Claro que o Id não conhece juízos de valor não conhece bem e mal não conhece moral O fator econômico ou quantitativo se preferirem in timamente ligado ao princípio do prazer governa todos os processos Investi mentos instintuais que exigem descarga isso é tudo o que há no Id acredit amos nós Parece até que a energia desses investimentos instintuais se encontra num estado diferente daquele de outras regiões psíquicas que é bem mais móvel e passível de descarga senão não ocorreriam os deslocamentos e con densações que caracterizam o Id e que não levam absolutamente em consider ação a qualidade do que é investido aquilo que no Eu chamaríamos de ideia O quanto não daríamos para compreender mais dessas coisas Vocês notam aliás que estamos em condição de indicar outros atributos para o Eu além do fato de ser consciente e reconhecem a possibilidade de que partes do Eu e do Supereu sejam inconscientes sem possuírem as mesmas características primitivas e irracionais Chegamos mais rapidamente a uma caracterização do Eu na medida em que pode ser diferenciado do Id e do Supereu examinando sua relação com a parte mais externa e superficial do aparelho psíquico que designamos como sistema PCs perceptivoconsciente Esse sistema é voltado para o mundo externo ele intermedia as percepções deste e nele surge durante seu funcionamento o fenômeno da consciência É o órgão sen sorial de todo o aparelho receptivo não apenas às excitações que vêm de fora 155286 mas também àquelas do interior da psique Quase não precisa ser justificada a concepção de que o Eu é aquela parte do Id que foi modificada pela vizinhança e a influência do mundo externo organizada para o acolhimento dos estímulos e a proteção diante deles de modo comparável ao estrato cortical que circunda um pequeno monte de substância viva A relação com o mundo externo tornouse decisiva para o Eu ele assumiu a tarefa de representálo junto ao Id para salvação do Id que sem considerar esse ingente poder exterior não es caparia à destruição no cego afã da satisfação instintual Cumprindo essa fun ção o Eu tem de observar o mundo externo registrar uma imagem fiel dele nos traços mnemônicos de suas percepções conservando afastado mediante o exame da realidade o que nesse quadro do mundo externo for acréscimo oriundo de fontes internas de excitação Por ordem do Id o Eu domina os acessos à motilidade mas entre a necessidade e o ato ele interpõe a dilação que é o trabalho do pensamento durante o qual utiliza os traços mnemônicos da experiência Assim destrona o princípio do prazer que governa irrestritamente o curso dos processos no Id e o substitui pelo princípio da realidade que pro mete mais segurança e maior sucesso Também a relação com o tempo tão difícil de descrever é proporcionada ao Eu pelo sistema perceptivo está quase fora de dúvida que o modo de operar desse sistema dá origem à ideia de tempo Mas o que diferencia muito especial mente o Eu do Id é uma tendência à síntese dos conteúdos à combinação e unificação de seus processos psíquicos que se acha inteiramente ausente no Id Quando mais adiante tratarmos dos instintos na vida psíquica espero que consigamos relacionar esta característica essencial do Id à sua fonte Somente ela produz o alto grau de organização que o Eu requer para suas maiores real izações Ele se desenvolve da percepção dos instintos até o domínio sobre eles mas este é alcançado apenas pelo fato de a representante do instinto ser en quadrada numa unidade maior ser incluída num contexto Adotando formas de expressão populares poderíamos dizer que o Eu representa na vida psíquica a razão e a prudência e o Id as paixões irrefreadas 156286 Até aqui nos deixamos impressionar pelos méritos e capacidades do Eu é tempo de considerar o reverso da medalha O Eu afinal é apenas uma parte do Id uma parte modificada adequadamente pela vizinhança do ameaçador mundo exterior Sob o aspecto dinâmico ele é fraco tomou suas energias emprestadas ao Id e não ignoramos inteiramente os métodos podese dizer os truques com os quais ele retira mais energias do Id Um desses meios é por exemplo a identificação com objetos mantidos ou abandonados Os investimentos objetais vêm das exigências instintuais do Id O Eu tem de registrálas em primeiro lugar Mas ao identificarse com o objeto ele se re comenda ao Id no lugar do objeto procura guiar para si a libido do Id Já ob servamos que o Eu no decorrer da vida acolhe dentro de si um grande número desses precipitados de antigos investimentos objetais No geral o Eu tem de realizar as intenções do Id ele cumpre sua tarefa quando descobre as circunstâncias em que tais intenções podem ser alcançadas da melhor maneira possível Podese comparar a relação do Eu com o Id àquela do cavaleiro com o cavalo O cavalo fornece a energia para a locomoção o cavaleiro tem a prer rogativa de determinar a meta de dirigir o movimento do forte animal Mas entre Eu e Id ocorre frequentemente a situação nada ideal de o cavaleiro ter de levar o animal aonde este quer mesmo ir De uma parte do Id o Eu separouse mediante resistências da repressão Mas a repressão não prossegue no Id O reprimido converge para o restante do Id De acordo com um provérbio não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo A coisa é ainda mais difícil para o pobre Eu ele serve a três senhores severos empenhandose em harmonizar suas demandas e exigências Essas de mandas sempre divergem parecem muitas vezes inconciliáveis não sur preende que o Eu fracasse tanto em sua tarefa Os três tirânicos senhores são o mundo externo o Id e o Supereu Se acompanharmos os esforços do Eu em atendêlos simultaneamente melhor dizendo em obedecerlhes simultanea mente não lamentaremos ter personificado esse Eu têlo apresentado 157286 como um ente particular Ele se sente constrangido de três lados ameaçado por três tipos de perigos aos quais em caso de apuro reage desenvolvendo angústia Por sua origem a partir das experiências do sistema perceptivo ele é destinado a representar as exigências do mundo exterior mas também quer ser o fiel servidor do Id permanecer em sintonia com ele recomendarse a ele como objeto atrair para si a sua libido Nos esforços de mediação entre o Id e a realidade muitas vezes é obrigado a revestir os mandamentos ics incon scientes do Id com suas racionalizações pcs préconscientes a disfarçar os conflitos do Id com a realidade fazendo crer com diplomática dissimulação que leva em consideração a realidade mesmo quando o Id permanece rígido e inexorável Por outro lado o rigoroso Supereu observa cada um dos seus pas sos e lhe põe à frente determinadas normas de conduta sem levar em conta as dificuldades por parte do Id e do mundo externo punindoo em caso de in fração com os tensos sentimentos de inferioridade e de culpa Desse modo impelido pelo Id constrangido pelo Supereu rechaçado pela realidade o Eu luta para levar a cabo sua tarefa econômica de estabelecer a harmonia entre as forças e influências que atuam nele e sobre ele e compreendemos por que tantas vezes não podemos suprimir a exclamação A vida não é fácil Se o Eu é obrigado a admitir sua fraqueza ele irrompe em angústia angústia realista ante o mundo externo angústia de consciência ante o Supereu angús tia neurótica ante a força das paixões do Id Gostaria de representar com um desenho as relações estruturais da person alidade psíquica que acabei de lhes expor um desenho despretensioso que aqui lhes ofereço 158286 Como veem o Supereu submerge no Id enquanto herdeiro do complexo de Édipo tem íntimas relações com este achase mais distante do sistema per ceptivo do que o Eu O Id lida com o mundo externo apenas através do Eu ao menos desse esquema Hoje é certamente difícil afirmar até que ponto o desenho é correto numa coisa certamente não é O espaço que toma o Id in consciente deveria ser incomparavelmente maior que o do Eu ou do pré consciente Peçolhes que corrijam isso mentalmente E agora para finalizar esta exposição certamente cansativa e talvez não muito esclarecedora mais uma advertência Nessa distinção da personalidade em Eu Id e Supereu vocês não devem imaginar fronteiras definidas como as 159286 traçadas artificialmente na geografia política Não podemos fazer justiça à pe culiaridade da psique mediante contornos nítidos como no desenho ou na pin tura primitiva mas sim com áreas cromáticas que se fundem umas nas outras como nos pintores modernos Depois de havermos separado temos que fazer novamente juntarse o que foi separado Não julguem demasiado severamente uma primeira tentativa de dar representação gráfica ao psíquico tão difícil de apreender É muito provável que o desenvolvimento dessas divisões esteja sujeito a grandes variações em diferentes pessoas é possível que durante a pró pria ocorrência elas se transformem e involuam temporariamente Isto parece ser verdadeiro sobretudo no caso da última e mais delicada filogeneticamente a diferenciação de Eu e Supereu Não há dúvida de que o mesmo pode ser provocado pela doença psíquica E bem podemos imaginar que certas práticas místicas tenham êxito em alterar as relações normais entre os setores da psique de modo que a percepção por exemplo seja capaz de apreender coisas nas profundezas do Eu e do Id que lhe são inacessíveis de outra forma Podese tranquilamente duvidar no entanto que essa via conduza às verdades últimas das quais se espera a salvação Mas admitimos que os esforços terapêuticos da psicanálise adotaram uma abordagem semelhante Sua intenção é realmente fortalecer o Eu tornálo mais independente do Supereu ampliar seu âmbito de percepção e melhorar sua organização de maneira que possa apropriarse de novas parcelas do Id Onde era Id há de ser Eu É uma obra cultural como o aterro do Zuydersee digamos 32 ANGÚSTIA E INSTINTOS Senhoras e senhores Não ficarão surpresos de saber que tenho novidades a lhes relatar sobre nossa concepção da angústia e dos instintos fundamentais da 160286 psique e também que nenhuma delas pretende ser a solução definitiva para os problemas que abordamos Deliberadamente uso aqui o termo concepção São questões muito difíceis as que nos são colocadas mas a dificuldade não se acha na insuficiência das observações são justamente os fenômenos mais comuns e familiares que nos apresentam esses enigmas e tampouco no caráter remoto das especulações a que elas induzem a elaboração especulativa não conta muito nesse terreno Tratase realmente de concepções isto é de in troduzir as ideias abstratas corretas cuja aplicação ao material bruto da obser vação faz surgir ordem e transparência nele Já dediquei à angústia uma conferência da série anterior a 25a Repetirei sucintamente o seu conteúdo Dissemos que a angústia é um estado afetivo ou seja uma união de determinadas sensações da série prazerdesprazer com as inervações de descarga a elas correspondentes e a sua percepção mas provavelmente também o precipitado de um certo evento significativo incor porado por hereditariedade algo comparável ao surto histérico adquirido indi vidualmente Sugerimos que o evento que deixa um traço afetivo desses é o nascimento no qual as alterações da atividade cardíaca e da respiração própri as da angústia são adequadas aos fins A primeiríssima angústia seria tóxica portanto Nós partimos da diferenciação entre angústia realista e angústia neurótica a primeira sendo uma reação que nos parece compreensível ao perigo ou seja a um dano que virá de fora e a segunda inteiramente enigmát ica como que sem finalidade Analisando a angústia realista nós a reduzimos a um estado de elevada atenção sensorial e tensão motora que chamamos de dis posição à angústia Desta se desenvolveria a reação de angústia Nela seriam possíveis dois desfechos Ou o desenvolvimento da angústia a repetição da an tiga vivência traumática limitase a um sinal e a reação restante pode adequarse à nova situação de perigo procedendo à fuga ou à defesa ou a situ ação antiga prevalece toda a reação se esgota no desenvolvimento da angústia e o estado afetivo tornase paralisante e inadequado ao presente 161286 Então nos voltamos para a angústia neurótica e dissemos que a observamos em três condições Primeiro enquanto angústia geral livremente flutuante pronta para ligarse provisoriamente a toda nova possibilidade que surge como por exemplo na típica neurose de angústia Segundo firmemente unida a determinados conteúdos ideativos nas chamadas fobias nas quais podemos reconhecer ainda uma relação com o perigo externo mas devemos julgar in teiramente desproporcional a angústia diante dele Terceiro por fim a angús tia na histeria e em outras formas de neuroses severas que acompanha sinto mas ou surge de modo independente como ataque ou como estado mais duradouro sempre sem fundamentação visível num perigo externo Fizemo nos então as perguntas seguintes Do que as pessoas têm receio na angústia neurótica E como relacionála com a angústia realista frente a perigos externos Nossas investigações não ficaram absolutamente sem frutos chegamos a al gumas conclusões significativas No tocante à expectativa angustiada a exper iência clínica nos mostrou um vínculo regular com a economia libidinal na vida sexual A causa mais comum da neurose de angústia é a excitação frus trada Uma excitação libidinal é despertada mas não satisfeita não aplicada no lugar dessa libido desviada de sua aplicação surge então a angústia Até me pareceu justificado dizer que essa libido insatisfeita transformase diretamente em angústia Tal concepção encontrou apoio em determinadas fobias bastante regulares das crianças pequenas Muitas dessas fobias são inteiramente enig máticas para nós mas outras como o medo de ficar só e o de pessoas estran has admitem uma explicação segura Tanto a solidão como o rosto estranho despertam o anseio pela mãe familiar a criança não pode dominar essa excit ação libidinal não pode mantêla em suspenso e a transforma em angústia Portanto essa angústia infantil não deve ser contada como angústia realista mas sim angústia neurótica As fobias infantis e a expectativa da angústia na neurose de angústia nos fornecem dois exemplos de uma forma como a 162286 angústia neurótica se origina pela direta transformação da libido Logo veremos um segundo mecanismo ele não se revelará muito diferente do primeiro De modo que responsabilizamos o processo da repressão pela angústia na histeria e em outras neuroses Acreditamos ser possível descrevêlo mais integ ralmente do que antes se considerarmos separadamente o destino da ideia a ser reprimida e o do montante de libido que a ela corresponde É a ideia que sofre a repressão que eventualmente é distorcida até ficar irreconhecível mas o seu montante de afeto é normalmente transformado em angústia e isso não importando de que espécie seja agressão ou amor Não faz diferença essencial então por qual motivo um montante de libido se tornou inutilizável se por de bilidade infantil do Eu como nas fobias das crianças devido a processos somáticos da vida sexual como na neurose de angústia ou pela repressão como na histeria Portanto os dois mecanismos da gênese da angústia neurót ica coincidem na verdade Durante essas investigações nossa atenção foi atraída por uma relação bastante significativa entre desenvolvimento da angústia e formação do sin toma ou seja o fato de que um pode representar e substituir o outro A enfer midade de um agorafóbico por exemplo começa com um ataque de angústia em plena rua Isto se repete a cada vez que ele sai novamente à rua Ele então desenvolve o sintoma da agorafobia que também se pode chamar de uma inib ição uma restrição no funcionamento do Eu e desse modo poupa a si mesmo o ataque de angústia Notase o oposto quando interferimos na formação de sintoma como é possível fazer nos atos obsessivos por exemplo Se impedi mos que o doente realize seu cerimonial de lavagem digamos ele entra num estado de angústia difícil de suportar do qual seu sintoma evidentemente o protegia Parece que o desenvolvimento da angústia veio primeiro e a form ação de sintoma depois como se os sintomas fossem criados para evitar a ir rupção do estado de angústia Também se harmoniza com isso que as primeir as neuroses da infância sejam fobias estados em que se percebe claramente 163286 como um desenvolvimento inicial de angústia é substituído pela formação de sintoma temse a impressão de que é a partir dessas relações que se obterá o melhor acesso a um entendimento da angústia neurótica Ao mesmo tempo conseguimos responder também à questão de o que teme a pessoa na angústia neurótica e assim estabelecemos o vínculo entre angústia neurótica e angústia realista Aquilo que se teme é evidentemente a própria libido A diferença para com a situação da angústia realista se acha em dois pontos o perigo é in terno em vez de externo e não é reconhecido de forma consciente Nas fobias podese perceber claramente como esse perigo interno é conver tido em externo ou seja angústia neurótica é transformada em aparente an gústia realista Suponhamos para simplificar algo frequentemente muito com plicado que o agorafóbico tema os sentimentos de tentação que nele são des pertados pelos encontros na rua Em sua fobia ele faz um deslocamento e en tão se angustia com uma situação externa O seu ganho com isso está evid entemente em achar que assim pode protegerse melhor Ante um perigo ex terno podemos nos salvar mediante a fuga fugir de um perigo interno é uma empresa mais difícil No final da minha conferência anterior sobre a angústia manifestei eu próprio a opinião de que esses diferentes resultados de nossa pesquisa não chegam a contradizer um ao outro mas de algum modo não se combinam A angústia como estado afetivo é a reprodução de um velho acontecimento ameaçador a angústia está a serviço da autoconservação e é o sinal de um novo perigo ela surge da libido que de algum modo se tornou inutilizável também no processo de repressão ela é substituída pela formação de sintoma é como que psiquicamente ligada por esta sentese que aqui está faltando algo que junte os pedaços num todo Senhoras e senhores A dissecção da personalidade psíquica em Supereu Eu e Id de que lhes falei na última conferência obrigounos a uma nova ori entação também no problema da angústia Com a tese de que o Eu é a única 164286 sede da angústia de que somente o Eu pode produzir e sentir angústia assumi mos uma nova sólida posição a partir da qual várias coisas tomam outro as pecto E de fato não sabemos que sentido haveria em falar de uma angústia do Id ou em atribuir ao Supereu a capacidade de angustiarse Mas saudamos como uma bemvinda correspondência o fato de os três principais ti pos de angústia a realista a neurótica e a de consciência poderem ser facil mente relacionados às três dependências do Eu a do mundo externo do Id e do Supereu Com essa nova concepção também passa a primeiro plano a fun ção da angústia como sinal anunciador de uma situação de perigo que já não nos era desconhecida perde interesse a questão de que material é feita a angús tia e são esclarecidas e simplificadas de forma surpreendente as relações entre angústia realista e angústia neurótica É digno de nota por outro lado que agora entendemos melhor os casos aparentemente complicados de geração da angústia do que aqueles considerados simples Recentemente investigamos como aparece a angústia em determinadas fo bias que incluímos na histeria de angústia e escolhemos casos em que lidamos com a típica repressão dos desejos oriundos do complexo de Édipo Segundo nossa expectativa o investimento libidinal do objeto materno é que graças à repressão se transformaria em angústia e então surgiria em expressão sin tomática ligado ao sucedâneo do pai Não é possível lhes expor detalhada mente essa investigação basta dizer que o resultado surpreendente foi o oposto de nossa expectativa Não é a repressão que cria a angústia essa é an terior a angústia faz a repressão Mas que angústia pode ser Não o medo de um perigo externo que ameaça ou seja um medo real É certo que o menino sente angústia ante uma exigência de sua libido ante o amor à mãe nesse caso é realmente portanto um caso de angústia neurótica Mas esse amor lhe aparece como um perigo interno ao qual ele tem de furtarse pela renúncia a esse objeto apenas porque provoca uma situação de perigo externa E em to dos os casos que investigamos obtemos o mesmo resultado Temos de admitir 165286 que não contávamos que o perigo instintual interno se revelasse condição e preparação para uma situação de perigo real externa Mas ainda não dissemos qual é o perigo real que a criança teme como con sequência de estar enamorada da mãe É o castigo da castração a perda do seu membro Naturalmente vocês objetarão que este não é um perigo real Nossos meninos não são castrados porque se acham apaixonados pela mãe na fase do complexo de Édipo Mas a coisa não pode ser resolvida tão facilmente Antes de tudo não se trata de a castração ser realmente levada a efeito o decisivo é que o perigo seja uma ameaça de fora e que o garoto acredite nela Ele tem al gum ensejo para isso pois frequentemente ameaçam cortar seu membro dur ante a fase fálica na época de seu primeiro onanismo e alusões a esse castigo sempre devem encontrar um reforço filogenético nele Supomos que na pré história da família humana o pai cruel e ciumento praticava realmente a cas tração nos meninos em desenvolvimento e a circuncisão um dado tão fre quente nos ritos de puberdade dos povos primitivos seria um vestígio dela bastante reconhecível Sabemos o quanto nos afastamos com isso da opinião geral mas devemos insistir em que o medo da castração é um dos mais fre quentes e poderosos móveis da repressão e assim da formação da neurose Nossa convicção adquiriu um último grau de certeza com a análise de casos em que não a castração é verdade mas a circuncisão de garotos foi realizada como terapia ou castigo para a masturbação o que não era raro na sociedade angloamericana É tentador examinarmos mais detidamente o complexo de castração neste ponto mas vamos continuar em nosso tema Naturalmente a angústia de castração não é o único motivo da repressão afinal não existe nas mulheres que têm um complexo de castração mas não podem ter angústia de castração Em seu lugar aparece no outro sexo a angústia da perda do amor evidentemente uma continuação da angústia do lactente ao sentir a falta da mãe Vocês compreendem que situação de perigo real é indicada por essa an gústia Quando a mãe está ausente ou subtraiu ao filho seu amor este já não está seguro da satisfação de suas necessidades achase provavelmente exposto 166286 a dolorosos sentimentos de tensão Não rejeitem a ideia de que esses determin antes da angústia repetem no fundo a situação da angústia de nascimento ori ginal que também significou uma separação da mãe E se acompanharem um raciocínio de Ferenczi poderão incluir nessa série também a angústia de cas tração já que a perda do membro masculino tem por consequência a impossib ilidade de uma reunião com a mãe ou com o sucedâneo dela no ato sexual Menciono de passagem que a frequente fantasia do retorno ao útero materno é o sucedâneo desse desejo de copular Ainda haveria neste ponto coisas in teressantes e conclusões surpreendentes a relatar mas não posso ultrapassar os limites de uma introdução à psicanálise quero apenas lhes chamar a atenção para como aqui a investigação psicológica adentra nos fatos biológicos Otto Rank a quem a psicanálise deve muitas belas contribuições possui também o mérito de haver enfatizado a importância do ato do nascimento e da separação da mãe No entanto todos nós achamos impossível aceitar as con clusões extremas que ele tirou desse fato para a teoria das neuroses e mesmo para a terapia analítica O núcleo de sua doutrina de que a vivência de angús tia do nascimento constitui o modelo para todas as situações de perigo posteri ores ele já havia encontrado pronto Se nos detivermos nelas poderemos dizer que de fato a toda época do desenvolvimento cabe um certo determinante da angústia isto é situação de perigo como sendo o que lhe é adequado O perigo do desamparo psíquico se ajusta ao estágio de imaturidade inicial do Eu o perigo da perda do objeto do amor à dependência dos primeiros anos da infância o perigo da castração à fase fálica e enfim a angústia ante o Super eu que ocupa um lugar especial ao período de latência No curso do desen volvimento os velhos determinantes da angústia devem ser abandonados pois as situações de perigo que lhes correspondem vão perdendo o valor com o fortalecimento do Eu Mas isso ocorre apenas de maneira bastante incompleta Muitos indivíduos não conseguem superar a angústia ante a perda do amor ja mais se tornam independentes o bastante do amor dos outros prosseguindo nesse ponto o seu comportamento infantil Normalmente o medo ante o 167286 Supereu não deve ter fim pois é indispensável nas relações sociais como an gústia da consciência e só em casos muito raros o indivíduo pode ser tornar independente da comunidade humana Algumas das velhas situações de perigo chegam a subsistir em épocas posteriores modificando a tempo seus determin antes de angústia Assim por exemplo o perigo de castração se conserva sob a máscara da sifilofobia Um adulto pode saber que a castração já não é usada como castigo para a indulgência dos apetites sexuais mas aprendeu por outro lado que tal liberdade instintual é ameaçada por graves doenças Não há dúvida de que as pessoas que chamamos neuróticas permanecem infantis na conduta ante o perigo não tendo superado determinantes antiquados da an gústia Tomemos isso como uma contribuição efetiva à caracterização da an gústia por que é assim já não é tão simples dizer Espero que não tenham perdido a visão do conjunto que ainda se lembrem que estamos discutindo as relações entre angústia e repressão Nisso apren demos duas coisas primeiro que a angústia faz a repressão e não o contrário como pensávamos e em segundo lugar que uma situação instintual temida diz respeito no fundo a uma situação de perigo externa A pergunta seguinte é como imaginamos agora o processo de uma repressão sob influência da an gústia Eu penso da seguinte forma o Eu nota que a satisfação de uma exigên cia instintual emergente vai conjurar uma das situações de perigo que são bem lembradas Logo esse investimento instintual tem de ser suprimido cance lado tornado impotente Sabemos que o Eu consegue realizar essa tarefa quando é forte e incluiu o impulso instintual em sua organização Mas o que sucede na repressão é que o impulso instintual ainda pertence ao Id e o Eu se sente fraco Então o Eu recorre a uma técnica que no fundo é idêntica à do pensamento normal O pensar é um agir experimental com pequeninos mont antes de energia semelhante aos deslocamentos de pequenas figuras num mapa antes que o general ponha em movimento as suas tropas O Eu antecipa a satisfação do impulso instintual questionável permitindolhe que reproduza as sensações de desprazer no começo da temida situação de perigo Com isso 168286 entra em ação o automatismo do princípio do prazerdesprazer que efetua a repressão do perigoso impulso instintual Alto lá vocês dirão aí já não podemos acompanhálo Têm razão devo acrescentar ainda algo para que isso lhes pareça aceitável Primeiro a admissão de que tentei traduzir na linguagem de nosso pensamento normal o que na realidade deve ser um processo não consciente ou préconsciente que se dá entre montantes de energias num substrato inimaginável Mas essa não é uma objeção forte não podemos fazer isso de outra forma Mais importante é distinguirmos claramente na repressão o que sucede no Eu e o que sucede no Id O que o Eu faz acabamos de dizer Ele usa um investimento experimental e desperta mediante o sinal da angústia o automatismo prazerdesprazer De pois são possíveis várias reações ou uma mistura delas em montantes variá veis Ou o ataque de angústia se desenvolve inteiramente e o Eu se retira por completo da excitação inconveniente ou opõe a esta em vez do investimento experimental um contrainvestimento e este se combina à energia do impulso reprimido para formar o sintoma ou é acolhido no Eu como formação reativa como fortalecimento de determinadas predisposições como alteração perman ente Quanto mais o desenvolvimento da angústia puder ser limitado a um mero sinal tanto mais o Eu despenderá em ações defensivas que equivalem a uma vinculação psíquica do reprimido tanto mais o processo também se aviz inhará de uma elaboração normal certamente sem atingila Vamos nos deter nisso um instante Vocês já imaginam sem dúvida que essa coisa de difícil definição a que chamamos caráter deve ser atribuída ao Eu Algo do que compõe esse caráter já apreendemos Sobretudo a incorporação como Super eu da inicial instância parental talvez a parte mais decisiva e importante de pois as identificações com os dois genitores da época posterior e com outras in fluentes pessoas e as mesmas identificações como precipitados de relações ob jetais abandonadas E acrescentemos como contribuições nunca ausentes na formação do caráter as formações reativas que o Eu adquire primeiramente 169286 em suas repressões e depois nas rejeições de impulsos instintuais indesejados por meios mais normais Agora vamos retroceder e nos ocupar do Id O que sucede na repressão ao combatido impulso instintual já não é tão fácil descobrir A principal questão que nosso interesse levanta é o que acontece com a energia a carga libidinal dessa excitação como é ela empregada Vocês se lembram a hipótese anterior foi de que ela justamente é transformada em angústia pela repressão Isso eu já não ouso afirmar a resposta modesta será antes a seguinte provavelmente o seu destino não é sempre o mesmo Provavelmente há uma íntima correlação que deveríamos poder conhecer entre o processo que ocorre no Eu e aquele no Id quanto ao impulso reprimido Pois desde que resolvemos que o princí pio do prazerdesprazer que é despertado pelo sinal da angústia intervém na repressão nossas expectativas devem mudar Esse princípio governa irrestrita mente os processos do Id Podemos confiar em que ele realiza profundas alter ações no impulso instintual envolvido Estamos preparados para ver que a repressão terá resultados muito diversos de alcance maior ou menor Em al guns casos o impulso instintual reprimido pode manter seu investimento libid inal e subsistir inalterado no Id ainda que sob a constante pressão do Eu Out ras vezes parece que lhe sobrevém uma destruição completa em que sua libido é permanentemente desviada para outras rotas Eu falei que assim ocorre na resolução normal do complexo de Édipo que nesse caso desejável então não é simplesmente reprimido mas destruído no Id A experiência clínica nos mostrou também que em muitos casos sucede em vez do habitual resultado de repressão uma degradação da libido uma regressão da organização da libido a um estágio anterior Naturalmente isso pode se dar apenas no Id e se ocorrer sob influência do mesmo conflito que é introduzido pelo sinal de angústia O exemplo mais notório desse tipo é o da neurose obsessiva em que regressão da libido e repressão atuam conjuntamente Senhoras e senhores Temo que esta exposição lhes pareça difícil e devem imaginar que não é exaustiva Lamento provocar seu descontentamento Mas 170286 não posso me colocar outro objetivo senão fazer com que tenham ideia da natureza de nossos resultados e das dificuldades de sua obtenção Quanto mais avançamos no estudo dos processos psíquicos tanto mais reconhecemos sua profusão e complexidade Várias fórmulas simples que inicialmente nos pare ciam apropriadas revelaramse depois insatisfatórias Não nos cansaremos de mudálas e corrigilas Na conferência sobre a teoria dos sonhos eu os levei por um terreno em que quase não houve descobertas nesses quinze anos agora que tratamos da angústia veem tudo em estado de fluxo e mudança Essas coisas novas também não foram ainda muito elaboradas talvez sua ap resentação ofereça dificuldades também por conta disso Tenham paciência logo abandonaremos o tema da angústia só não garanto que ele será resolvido a nosso contento Mas oxalá teremos feito algum progresso E nesse caminho adquirimos vários novos conhecimentos Assim o exame da angústia também nos permite acrescentar um novo traço à nossa descrição do Eu Dissemos que o Eu é fraco em relação ao Id que é seu servo fiel empenhado em executar suas ordens e cumprir suas exigências Não pensamos em retirar essa afirm ação Por outro lado esse Eu é a parte mais bem organizada do Id aquela ori entada para a realidade Não devemos exagerar na diferenciação das duas nem nos surpreender se o Eu por sua vez tiver influência nos processos do Id Penso que ele exerce tal influência ao colocar em ação por meio do sinal de angústia o quase onipotente princípio de prazerdesprazer Logo em seguida porém ele mostra novamente sua fraqueza pois pelo ato da repressão renuncia a uma parcela da sua organização tem de admitir que o impulso instintual rep rimido fique permanentemente subtraído à sua influência E agora mais uma observação sobre o problema da angústia A angústia neurótica se transformou em angústia realista em nossas mãos em angústia ante determinadas situações de perigo externas Mas não podemos ficar nisso temos de dar mais um passo que será um passo atrás no entanto Nós nos per guntamos o que é realmente perigoso e temível numa tal situação de perigo 171286 Claramente não é o dano à pessoa julgado objetivamente que não precisa ter significado psicológico mas o que ele provoca na psique Por exemplo o nas cimento nosso modelo para o estado de angústia não pode ser visto como um dano em si ainda que possa envolver o risco de danos O essencial no nasci mento como em toda situação de perigo é que ele produz na vivência psíquica um estado de tensa excitação que é sentido como desprazer e que não pode ser subjugado mediante a descarga Se chamamos esse estado no qual fracassam os esforços do princípio do prazer de momento traumático então chegamos pela sequência angústia neurótica angústia realista situação de perigo à tese simples de que a coisa temida o objeto da angústia é sempre a aparição de um momento traumático que não pode ser liquidado segundo a norma do princípio do prazer Compreendemos de imediato que sermos dotados do princípio do prazer não nos assegura contra danos objetivos mas apenas con tra um determinado dano a nossa economia psíquica Do princípio do prazer ao instinto de autoconservação há uma boa distância os propósitos dos dois estão longe de coincidir desde o início Mas vemos outra coisa mais talvez seja esta a solução que buscamos A saber que em tudo isso a questão é de quan tidades relativas Somente a grandeza da soma de excitação faz de uma im pressão um momento traumático paralisa a função do princípio do prazer dá à situação de perigo sua importância E se assim for se esses enigmas se resolv erem com um expediente tão simples por que não seria possível que tais mo mentos traumáticos ocorram na psique sem relação com as supostas situações de perigo que neles a angústia não seja despertada como sinal mas surja de novo com nova motivação A experiência clínica afirma resolutamente que de fato é assim Apenas as repressões posteriores mostram o mecanismo que descrevemos no qual a angústia é ocasionada como sinal de uma situação de perigo anterior as primeiras e originais nascem diretamente de momentos traumáticos no encontro do Eu com uma exigência libidinal excessiva elas criam novamente sua angústia mas segundo o modelo do nascimento é certo 172286 O mesmo pode valer para a geração da angústia na neurose de angústia por dano somático da função sexual Já não diremos que a própria libido é aí trans formada em angústia Mas não vejo objeção a uma dupla origem da angústia como consequência direta do momento traumático e como sinal de que ele ameaça repetirse Senhoras e senhores Agora ficarão contentes por não precisar ouvir mais nada acerca da angústia Mas nada ganharão com isso não é melhor o que vem em seguida Quero conduzilos pelo terreno da teoria da libido ou dos instin tos onde muita coisa nova também surgiu Não digo que tenhamos feito grandes progressos nele de modo que lhes valesse a pena todo o esforço de conhecêlo Não é um campo em que muito pelejamos por orientações e per spectivas vocês apenas serão testemunhas do nosso esforço Também aqui devo remontar a várias coisas que lhes disse antes A teoria dos instintos é por assim dizer nossa mitologia Os instintos são seres míticos formidáveis em sua indeterminação Em nosso trabalho não podemos ignorálos um só instante mas nunca estamos certos de vêlos com precisão Vocês sabem como o pensamento popular lida com eles As pessoas imaginam a existência de muitos e variados instintos tantos quanto necessit am um instinto de imitação um de autoafirmação um instinto lúdico um so cial e assim por diante Elas como que recorrem a eles deixam cada qual fazer seu trabalho específico e os abandonam de novo Sempre suspeitamos que por trás desses muitos pequenos instintos tomados de empréstimo se escondesse algo sério e forte do qual deveríamos nos aproximar cautelosamente Nosso primeiro passo foi bem modesto Achamos que provavelmente não seria er rado distinguir dois instintos principais espécies ou grupos de instintos de acordo com as duas grandes necessidades fome e amor Embora defendamos zelosamente a independência da psicologia em relação às demais ciências aqui nos achamos à sombra do inabalável fato biológico de que o ser vivo individu al serve a dois propósitos a autopreservação e a conservação da espécie que 173286 parecem ser independentes um do outro pelo que sabemos até agora não têm origem comum e cujos interesses frequentemente se contrariam na vida anim al Estamos fazendo na realidade psicologia biológica estudando os acom panhamentos psíquicos dos processos biológicos Como representantes dessa concepção foram introduzidos na psicanálise os instintos do Eu e os instin tos sexuais Incluímos entre os primeiros tudo relacionado à conservação afirmação engrandecimento da pessoa Aos últimos tivemos que atribuir a abundância que requerem a vida sexual infantil e a perversa Como ao invest igar as neuroses tomamos conhecimento do Eu como o poder limitador repressor e das tendências sexuais como o que é limitado reprimido acredit amos apreender com firmeza não só a diferença mas também o conflito entre os dois grandes grupos de instintos Inicialmente o objeto de nosso estudo fo ram apenas os instintos sexuais cuja energia denominamos libido Com eles tentamos clarear nossas concepções do que seja um instinto e do que deve ser atribuído a ele Nisso chegamos à teoria da libido Um instinto diferenciase de um estímulo pelo fato de originarse de fontes de estímulo no interior do corpo de operar como uma força constante e de a pessoa não poder subtrairse a ele mediante a fuga como é possível fazer com o estímulo externo Podemos diferenciar no instinto fonte objeto e meta A fonte é um estado de excitação no corpo a meta é suspensão desta excitação no trajeto da fonte à meta o instinto se torna psiquicamente operante Nós o imaginamos como um certo montante de energia que impele para determinada direção Desse impelir deriva o seu nome Trieb Falase de instintos ativos e passivos deverseia falar mais corretamente de metas instintuais ativas e passivas pois também para atingir uma meta passiva é necessário um dispên dio de atividade A meta pode ser alcançada no próprio corpo via de regra é interposto um objeto externo no qual o instinto alcança sua meta externa a in terna é sempre a mesma a mudança no corpo sentida como satisfação Não es tá claro para nós se a relação com a fonte somática empresta ao instinto uma especificidade e qual seria esta Segundo a experiência analítica é fato 174286 indubitável que impulsos de uma fonte se ligam àqueles de outras fontes e partilham seu destino e que uma satisfação instintual pode ser substituída por outra Mas confessamos que não compreendemos isso muito bem Também a relação do instinto com a meta e o objeto admite alterações os dois podem ser trocados por outros sendo que a relação com o objeto pode se afrouxar mais facilmente Denominamos sublimação um certo tipo de modificação da meta e mudança de objeto em que nossos valores sociais entram em consideração Também temos razões para distinguir instintos inibidos na meta impulsos de fontes conhecidas e com meta inequívoca mas que se detêm no caminho para a satisfação de modo que se produz um duradouro investimento objetal e uma persistente inclinação É desse tipo por exemplo a relação de ternura que se guramente procede das fontes da necessidade sexual e normalmente renuncia à satisfação desta Já veem quantas características e vicissitudes dos instintos ainda escapam à nossa compreensão cabe mencionar também uma distinção que se apresenta entre instintos sexuais e de autoconservação que teria grande importância teórica se se aplicasse ao grupo inteiro Os instintos sexuais nos chamam a atenção por sua plasticidade a capacidade de mudar suas metas pela suscetibilidade à troca na medida em que uma satisfação instintual pode ser substituída por outra e pela possibilidade de serem suspensos ou adiados de que os instintos inibidos na meta vêm de nos dar um bom exemplo Tender íamos a recusar essas características aos instintos de autoconservação deles afirmando que são inflexíveis inadiáveis imperiosos de maneira muito di versa e que têm uma relação inteiramente outra com a repressão e com a an gústia Mas logo a reflexão nos diz que esta exceção não se aplica a todos os in stintos do Eu apenas à fome e à sede e evidentemente se baseia numa peculi aridade das fontes instintuais Boa parte da impressão confusa disso vem ainda do fato de não havermos apreciado separadamente que mudanças sofrem por influência do Eu organizado os impulsos originalmente pertencentes ao Id Movemonos em solo mais firme quando investigamos de que forma a vida instintual serve à função sexual Nisto alcançamos conhecimentos decisivos 175286 que também já não são novos para vocês Não notamos a existência de um in stinto sexual que desde o início traz uma tendência para a meta da função sexual a união das duas células sexuais Vemos isto sim um grande número de instintos parciais vindos de diferentes locais e regiões do corpo que de modo independente uns dos outros buscam todos eles satisfação e encontram essa satisfação em algo que chamamos prazer de órgão Os genitais são as últi mas dessas zonas erógenas e já não podemos negar o nome de prazer sexual ao seu prazer de órgão Nem todos esses impulsos que tendem ao prazer são acol hidos na organização derradeira da função sexual Vários deles são eliminados como inúteis pela repressão ou de outro modo alguns são desviados de sua meta da maneira notável que já mencionamos e outros são mantidos em papéis secundários servem para a realização de atos introdutórios para a produção de prazer preliminar Vocês souberam que nesse prolongado desen volvimento podem se notar várias fases de organização temporária e também que as aberrações e atrofias da função sexual se explicam por esta sua história A primeira dessas fases prégenitais nós chamamos oral pois correspondendo ao modo como o lactente é alimentado a zona erógena da boca domina o que podemos chamar de atividade sexual desse período da vida Num segundo es tágio vêm à frente os impulsos sádicos e anais certamente em conjunção com o nascimento dos dentes o fortalecimento da musculatura e o controle das fun ções esfincterianas Justamente sobre essa peculiar fase de desenvolvimento acabamos de descobrir vários pormenores interessantes Em terceiro lugar vem a fase fálica em que nos dois sexos o membro viril e o que a ele cor responde na garota adquire uma importância que não mais poderá ser ig norada Reservamos a expressão fase genital para a organização sexual definit iva que se estabelece após a puberdade e na qual somente então o genital feminino tem o reconhecimento que o masculino adquiriu muito tempo antes Até agora tudo foi uma corriqueira repetição E não pensem que as coisas que não mencionei já não tenham validez Esta repetição foi necessária como ponto de partida para o relato sobre o progresso de nossos conhecimentos 176286 Podemos nos gabar de haver descoberto muitas coisas novas justamente sobre as primeiras organizações da libido e de haver apreendido mais claramente a importância do já sabido algo de que lhes darei alguns exemplos Karl Abra ham demonstrou em 1924 que se podem distinguir dois estágios na fase sádicoanal No mais antigo deles prevalecem as tendências destrutivas de aniquilação e perda no posterior aquelas de manutenção e posse amigáveis ao objeto No meio dessa fase portanto surge primeiramente a consideração pelo objeto como precursor de um futuro investimento amoroso É igual mente justificado supor essa divisão também na primeira fase a oral No primeiro subestágio a questão é apenas a incorporação oral não há qualquer ambivalência na relação com o objeto o seio materno O segundo estágio ca racterizado pelo surgimento da ação de morder pode ser designado como sádicooral ele exibe pela primeira vez os fenômenos da ambivalência que vêm a se tornar bem mais nítidos na fase seguinte a sádicoanal O valor des sas novas distinções se mostra particularmente quando buscamos em determ inadas neuroses neurose obsessiva melancolia os pontos de predis posição no desenvolvimento da libido Queiram recordar a propósito o que aprendemos sobre o vínculo entre fixação da libido predisposição e regressão Nossa atitude para com as fases da organização da libido sofreu alguma mudança Se antes enfatizamos principalmente como uma delas desaparecia antes da seguinte agora nossa atenção se dirige aos fatos que mostram o quanto de uma fase anterior permanece ao lado e por trás das configurações posteriores e adquire uma permanente representação na economia libidinal e no caráter da pessoa Ainda mais significativos tornaramse os estudos que nos ensinam como são frequentes em condições patológicas regressões a fases an teriores e que determinadas regressões são típicas de certas formas de doenças Mas não posso tratar disso neste lugar é parte de uma psicologia es pecial das neuroses 177286 Pudemos estudar as transformações dos instintos e processos similares no erotismo anal particularmente nas excitações vindas das fontes da zona eró gena anal e ficamos surpresos com a variedade de utilizações dadas a esses im pulsos Provavelmente não é fácil livrarse do menosprezo que no curso da evolução atingiu precisamente esta zona Por isso deixemos que Abraham nos recorde que o ânus corresponde embriologicamente à boca primitiva que migrou para o final do intestino Então aprendemos que com a desvalorização das próprias fezes do excremento esse interesse instintual de fonte anal passa para objetos que podem ser dados como presente E com razão pois as fezes fo ram o primeiro presente que o bebê pôde dar do qual se desprendeu por amor a quem dele cuidava Depois de modo inteiramente análogo à mudança de significado durante a evolução da linguagem esse antigo interesse em fezes se converte na apreciação de ouro e dinheiro Gold und Geld mas também con tribui para o investimento afetivo de criança e pênis As crianças que por muito tempo se apegam à teoria da cloaca estão convencidas de que o bebê nasce do intestino como um excremento a defecação é o modelo para o ato do nasci mento Mas o pênis também tem como precursor a coluna de fezes que preenche e estimula a membrana mucosa do intestino Quando a criança muito a contragosto toma conhecimento de que há seres humanos que não possuem este membro passa a ver o pênis como algo destacável do corpo em clara analogia com o excremento que foi o primeiro pedaço de matéria corpórea a que teve de renunciar Um bocado de erotismo anal é assim car reado para investimento no pênis mas o interesse nessa parte do corpo tem além da raiz eróticoanal uma raiz oral talvez mais forte ainda pois o pênis tornase também o herdeiro do bico do seio materno após o fim do aleitamento Desconhecendo essas profundas relações é impossível nos orientarmos nas fantasias nas associações influenciadas pelo inconsciente e na linguagem sin tomática dos seres humanos Fezesdinheirocriançapênis são aí tratados como equivalentes e também representados por símbolos comuns Também 178286 não esqueçam que só pude lhes dar informações incompletas Apenas acres centarei de passagem que também o interesse na vagina que desperta mais tarde é de origem eróticoanal principalmente Isso não surpreende pois a va gina mesma é na feliz expressão de Lou AndreasSalomé arrendada do reto na vida dos homossexuais que não perfizeram determinado trecho do desenvolvimento sexual ela é novamente representada por ele Nos sonhos há frequentemente um local que antes era um único espaço e que agora é dividido em dois por uma parede ou o contrário Isto sempre se refere à relação da va gina com o intestino Também podemos acompanhar muito bem como nas meninas o desejo inteiramente não feminino de possuir um pênis transforma se normalmente no desejo de um filho e depois de um homem como porta dor de um pênis e doador de um filho de modo que também aí se vê como uma porção de interesse originalmente eróticoanal obtém acolhida na posteri or organização genital Durante esses estudos das fases prégenitais da libido pudemos descobrir algumas coisas novas sobre a formação do caráter Notamos um trio de carac terísticas que aparecem juntas com alguma regularidade senso de ordem parcimônia e obstinação e concluímos da análise de pessoas assim que tais características vêm de o seu erotismo anal ser despendido e empregado de forma diversa Falamos de um caráter anal quando encontramos essa notável união e fazemos um certo contraste entre o caráter anal e o erotismo anal não modificado Descobrimos uma relação semelhante talvez ainda mais firme entre a ambição e o erotismo uretral Enxergamos uma curiosa alusão a esse nexo na lenda segundo a qual Alexandre o Grande nasceu na mesma noite em que um certo Erostrato incendiou por puro anseio de fama o decantado tem plo de Artemis em Éfeso Ao que parece os antigos não desconheciam esse nexo Vocês já sabem como o ato de urinar tem a ver com o fogo e o apagar do fogo Naturalmente esperamos que outros traços de caráter se revelem de 179286 forma semelhante precipitados ou construções reativas de certas formações libidinais prégenitais mas ainda não pudemos demonstrar isso Agora chegou o momento de eu retroceder tanto na história como no tema e retomar os problemas mais amplos da vida instintual Nossa teoria da libido teve por base inicialmente a oposição de instintos do Eu e instintos sexuais Quando mais tarde começamos a estudar mais detidamente o próprio Eu e chegamos à perspectiva do narcisismo mesmo essa distinção perdeu seu fun damento Em casos raros podese perceber que o Eu toma a si próprio por objeto comportase como se estivesse apaixonado por si mesmo Daí o termo narcisismo tirado da lenda grega Mas isso é apenas a exacerbação de um fato normal Viemos a compreender que o Eu é sempre o reservatório princip al de libido de onde partem os investimentos libidinais dos objetos e para o qual eles retornam enquanto a maior parte dessa libido permanece constante mente no Eu Portanto libido do Eu é incessantemente transformada em libido de objeto e esta em libido do Eu Mas então elas não podem ser diferenciadas conforme sua natureza não faz sentido separar a energia de um daquela da outra podemos deixar de lado a designação libido ou empregála como equivalente a energia psíquica Não mantivemos por muito tempo essa posição A ideia de uma oposição no interior da vida instintual logo achou uma outra mais aguda expressão Mas não lhes exporei como surgiu essa novidade da teoria dos instintos tam bém ela se baseia essencialmente em considerações biológicas eu a apresent arei aqui como um produto acabado Nós supomos que haja dois tipos de in stintos essencialmente diversos os sexuais no sentido mais amplo o Eros se preferirem o termo e os agressivos cuja meta é a destruição Ouvindo isso posto desta forma dificilmente vocês o aceitarão como algo novo parece uma tentativa de transfiguração teórica da banal oposição entre amor e ódio que talvez coincida com aquela outra polaridade de atração e repulsa que a física supõe no mundo inorgânico Mas é curioso que essa colocação seja mesmo 180286 percebida como novidade por muitos como uma novidade indesejável que deveria ser afastada o mais rapidamente possível Suponho que um forte ele mento afetivo prevaleça nessa rejeição Por que nós mesmos necessitamos de tanto tempo para nos decidirmos a reconhecer um instinto de agressão por que hesitamos em incorporar à teoria fatos que saltam aos olhos e são con hecidos de todos Provavelmente encontraríamos pouca resistência se quiséssemos atribuir aos animais um instinto com essa meta Mas admitilo na constituição humana parece uma blasfêmia contraria muitos pressupostos reli giosos e convenções sociais Não o ser humano tem de ser bom por natureza ou bonachão pelo menos Se ocasionalmente ele se mostra violento brutal cruel são apenas transtornos passageiros de sua vida emocional na maioria das vezes provocados talvez consequência dos regimes sociais inadequados que ele criou até agora Infelizmente o que a história ensina e que nós mesmos vivenciamos não depõe neste sentido justificando antes o veredicto de que a crença na bondade da natureza humana é uma dessas ilusões ruins das quais os homens esperam que facilite e embeleze a vida quando apenas acarreta danos na real idade Não precisamos continuar essa polêmica pois não favorecemos a hipótese de um instinto especial de agressão e destruição devido aos ensina mentos da história e da vida isto sucede com base em reflexões gerais a que somos levados pela consideração dos fenômenos do sadismo e do masoquismo Como sabem denominamos sadismo quando a satisfação sexual é ligada à condição de que o objeto sexual experimente dores maustratos e humil hações e masoquismo quando a pessoa tem a necessidade de ser ela mesma o objeto maltratado Como também sabem um tanto dessas duas tendências está incluído na relação sexual normal e elas são qualificadas de perversões quando empurram para segundo plano as outras metas sexuais e colocam seus próprios objetivos no lugar E também não lhes terá escapado que o sadismo mantém íntima relação com a masculinidade e o masoquismo com a feminilidade como se aí houvesse um oculto parentesco mas devo logo lhes dizer que por 181286 esse caminho não chegamos a avançar Ambos sadismo e masoquismo são fenômenos enigmáticos para a teoria da libido particularmente o masoquismo e é natural que o que foi a pedra de escândalo de uma teoria seja a pedra angu lar daquela que a sucede Acreditamos então que no sadismo e no masoquismo temos dois ótimos exemplos da mistura das duas espécies de instintos de Eros com a agressivid ade e levantamos a hipótese de que essa relação é modelar de que todos os impulsos que estudamos consistem de tais misturas e fusões das duas espécies de instintos Isso nas mais diversas proporções naturalmente Os instintos er óticos introduziriam a variedade de suas metas sexuais na mistura enquanto os outros admitiriam apenas atenuações e gradações de sua monocórdica tendên cia Essa hipótese nos abre a perspectiva de investigações que podem vir a ter grande importância para o entendimento dos processos patológicos Pois as misturas podem também se decompor e de tais separações dos instintos po demos esperar graves consequências para a função Mas essas concepções ainda são muito novas até agora ninguém procurou utilizálas no trabalho Vamos retornar ao problema especial que o masoquismo nos coloca Se ab straímos por um instante os seus componentes eróticos ele testemunha que ex iste uma tendência que tem por objetivo a própria destruição Se também para o instinto de destruição é verdadeiro que o Eu mas aqui nos referimos mais ao Id à pessoa inteira inclui originalmente todos os impulsos instin tuais disso resulta que o masoquismo é mais velho que o sadismo mas o sad ismo é instinto de destruição voltado para fora que desse modo adquire o caráter de agressividade Certo montante do instinto de destruição original pode ainda permanecer no interior parece que a nossa percepção se dá conta dele apenas nessas duas condições quando ele se liga a instintos eróticos no masoquismo ou quando com maior ou menor ingrediente erótico se volta contra o mundo exterior como agressividade E damos com a importân cia da possibilidade de que a agressividade talvez não ache satisfação no mundo exterior porque depara com obstáculos reais Então ela poderá 182286 retroceder elevando a medida de autodestruição vigente no interior Veremos que isso acontece realmente assim e como é importante este processo Agressividade impedida parece envolver graves danos realmente é como se tivéssemos que destruir outras coisas outras pessoas para não destruirmos a nós mesmos para nos guardar da tendência à autodestruição Sem dúvida uma triste revelação para um moralista Mas o moralista se consolará por muito tempo ainda com a natureza im provável de nossas especulações Estranho instinto esse que se dedica à destruição do seu próprio lar orgânico É verdade que os escritores falam de tais coisas mas eles são irresponsáveis têm a prerrogativa da licença poética No entanto ideias similares também não são desconhecidas na fisiologia por exemplo a de que a mucosa do estômago digere a si mesma Mas devese ad mitir que o nosso instinto de autodestruição requer uma base de apoio mais ampla Não podemos ousar uma hipótese dessa envergadura somente porque alguns pobres malucos vinculam a satisfação sexual a uma condição peculiar Um estudo aprofundado dos instintos nos dará o que necessitamos creio Os instintos não governam apenas a vida psíquica mas também a vegetativa e esses instintos orgânicos mostram uma característica que merece o nosso vivo interesse Somente mais tarde poderemos julgar se é uma característica geral dos instintos Eles se revelam como empenho de restaurar um estado anterior Podemos supor que a partir do momento em que tal estado uma vez atingido é perturbado surge um impulso Trieb para recriálo produzindo fenômenos que podemos designar de compulsão de repetição Assim a embriologia seria toda ela compulsão de repetição uma capacidade de formar novamente órgãos perdidos se estende bastante pelo reino animal e o instinto de cura ao qual juntamente com o auxílio terapêutico devemos nossas recuperações poder ia ser vestígio dessa faculdade tão bem desenvolvida nos animais inferiores As migrações de peixes na época da desova talvez os voos migratórios das aves possivelmente tudo o que denominamos manifestação instintiva nos animais ocorre sob o mandamento da compulsão de repetição que exprime a natureza 183286 conservadora dos instintos Também no âmbito psíquico não precisamos buscar suas manifestações por muito tempo Chamounos a atenção o fato de as vivências esquecidas e reprimidas da primeira infância se reproduzirem dur ante o trabalho analítico em sonhos e reações sobretudo naquelas da transfer ência embora seu redespertar vá de encontro ao interesse do princípio do prazer e a explicação achada foi que nesses casos uma compulsão de repetição se impõe até mesmo ao princípio do prazer Também fora da análise podemos observar algo assim Há pessoas que sempre repetem na vida sem correção as mesmas reações em detrimento próprio ou que parecem perseguidas por um destino implacável quando uma investigação mais precisa revela que elas mes mas preparam para si inscientemente esse destino Então atribuímos à com pulsão de repetição um caráter demoníaco Mas em que pode esse traço conservador dos instintos contribuir para o en tendimento de nossa autodestruição Qual estado anterior um instinto desses quer restaurar Bem a resposta não está longe e abre amplas perspectivas Se é verdadeiro que em tempos imemoriais e de modo inconcebível a vida se originou de matéria inanimada então segundo nossa premissa deve ter sur gido naquele momento um instinto que procura abolir a vida restaurar o es tado inorgânico Se reconhecemos nesse instinto a autodestruição da nossa hipótese podemos vêla como expressão de um instinto de morte que não pode estar ausente em nenhum processo vital Agora os instintos em que acredit amos se dividem nos dois grupos que são o dos eróticos que buscam aglom erar substância viva em unidades cada vez maiores e dos instintos de morte que contrariam esse esforço e reconduzem o elemento vivo ao estado inor gânico Da atividade conjunta e oposta dos dois procedem os fenômenos vitais a que a morte põe fim Vocês dirão talvez encolhendo os ombros Isto não é ciência natural é filosofia schopenhaueriana Mas por que senhoras e senhores um pensador ousado não teria adivinhado o que depois é confirmado pela sóbria e laboriosa pesquisa de detalhes Além do mais tudo já foi dito alguma vez e antes de 184286 Schopenhauer houve muitos que disseram coisas semelhantes E o que dize mos não é exatamente Schopenhauer Não afirmamos que a morte é o único objetivo da vida não deixamos de ver junto à morte a vida Reconhecemos dois instintos fundamentais e admitimos para cada um sua própria meta Como os dois se mesclam no processo da vida como o instinto de morte é levado a servir aos propósitos de Eros sobretudo no seu voltarse para fora como agressão são tarefas deixadas para a pesquisa futura Chegamos apenas até o ponto em que tal panorama se abre à nossa frente Se o caráter conservador é próprio de todos os instintos sem exceção se também os instintos eróticos querem restabelecer um estado anterior quando tendem à síntese do que é vivo em unidades sempre maiores também essa questão teremos que deixar sem resposta Afastamonos um pouco de nossa base Vou lhes dizer retrospectivamente qual foi o ponto de partida dessas reflexões sobre a teoria dos instintos Foi o mesmo que nos levou a revisar a relação entre o Eu e o inconsciente a im pressão oriunda do trabalho analítico de que o paciente que oferece resistên cia muitas vezes não é cônscio dessa resistência Não só o fato da resistência lhe é inconsciente mas também os motivos dela Tivemos de procurar por esse ou esses motivos e o encontramos surpreendentemente numa forte necessid ade de castigo que só pudemos incluir entre os desejos masoquistas A im portância prática desse achado não fica atrás da teórica pois esta necessidade de punição é o maior inimigo de nosso esforço terapêutico Ela é satisfeita pelo sofrimento ligado à neurose e por isso se apega à doença Parece que esse fat or a inconsciente necessidade de castigo tem participação em todo adoeci mento neurótico São muito convincentes quanto a isso os casos em que o so frimento neurótico é substituído por um outro de outra espécie Vou lhes re latar uma experiência desse tipo Certa vez consegui livrar uma mulher solteira mas já de alguma idade do complexo de sintomas que há quinze anos a condenava a uma existência dolorosa e a impedia de participar da vida Ela então se sentiu saudável e mergulhou numa atividade sôfrega para 185286 desenvolver seus consideráveis talentos e ainda obter algum reconhecimento sucesso e fruição Mas cada uma de suas tentativas findava com as pessoas lhe dando a entender ou ela mesma percebendo que estava muito velha para al cançar algo naquele terreno Após cada desenlace desses seria de esperar uma recaída na doença mas isso ela não podia mais realizar Em vez disso sempre lhe ocorriam acidentes que a punham fora de atividade e a faziam sofrer por al gum tempo Ela caía e torcia um pé ou feria um joelho ou machucava a mão fazendo algo Advertida de como podia ser grande a sua participação desses aparentes acasos ela mudou sua técnica por assim dizer Em vez de acidentes começaram a surgir ligeiras enfermidades nas mesmas ocasiões catarros angi nas inchações reumáticas até que ela se decidiu pela resignação e toda a fant asmagoria desapareceu Acreditamos que não há dúvida quanto à origem desta necessidade incon sciente de castigo Ela se comporta como parte da consciência moral como o prosseguimento de nossa consciência moral no inconsciente terá a mesma ori gem que a consciência moral ou seja corresponderá a uma porção de agressividade que foi interiorizada e assumida pelo Supereu Se os termos da expressão fossem menos incoerentes seria justificado chamála para todo efeito prático de sentimento de culpa inconsciente Quanto à teoria es tamos em dúvida se devemos supor que toda agressividade retornada do mundo exterior é ligada ao Supereu e assim dirigida contra o Eu ou que uma parte dela realiza sua muda e inquietante atividade no Eu e no Id como livre instinto de destruição O mais provável é uma divisão desse último tipo mas nada mais sabemos acerca disso Na instauração inicial do Supereu certa mente foi empregada no aparelhamento dessa instância a porção de agressividade contra os pais que a criança não podia descarregar para fora tanto devido à sua fixação amorosa como às dificuldades externas e por isso o rigor do Supereu não corresponde simplesmente à severidade da educação É bem possível que em ocasiões posteriores de repressão da agressividade o in stinto tome o mesmo caminho que lhe foi aberto naquele momento decisivo 186286 As pessoas nas quais esse inconsciente sentimento de culpa é muito forte se denunciam no tratamento analítico pela reação terapêutica negativa tão de sagradável em termos de prognóstico Quando são informadas da solução de um sintoma à qual normalmente se seguiria o desaparecimento ao menos tem porário do sintoma o que delas obtemos é pelo contrário uma intensificação momentânea dele e da doença Com frequência basta elogiálas por sua con duta na terapia dizer algumas palavras esperançosas sobre o andamento da an álise para ocasionar uma inconfundível piora no seu estado Um não analista diria que falta a vontade de cura seguindo o modo de pensar analítico vo cês verão nessa atitude uma expressão do sentimento de culpa inconsciente para o qual a doença com seus sofrimentos e entraves é justamente apropri ada Os problemas levantados pelo sentimento de culpa inconsciente suas re lações com moral pedagogia criminalidade e delinquência são atualmente o campo de trabalho preferido dos psicanalistas Nesse ponto inesperado saímos do submundo psíquico para a praça pública Não posso conduzilos adiante mas quero detêlos com um último pensamento antes de nos despedirmos por esta vez Habituamonos a dizer que nossa civilização foi edificada à custa de impulsos sexuais inibidos pela so ciedade que em parte são reprimidos é verdade mas por outro lado são util izados para outros objetivos Também admitimos apesar de todo o orgulho por nossas conquistas culturais que para nós não é fácil cumprir as exigências dessa civilização sentirmonos bem nela pois as restrições instintuais que nos são impostas constituem um pesado fardo psíquico Ora o que percebemos quanto aos instintos sexuais vale em medida igual ou talvez maior para os outros instintos os de agressão São sobretudo esses que tornam mais difícil a vida em comum dos seres humanos e ameaçam a sua continuidade a limitação da agressividade é o primeiro talvez mais duro sacrifício que a sociedade re quer do indivíduo Vimos de que maneira engenhosa é obtida essa domest icação do recalcitrante A instauração do Supereu que toma para si os peri gosos impulsos agressivos como que estabelece uma guarnição numa área 187286 inclinada à revolta Por outro lado numa consideração apenas psicológica é preciso reconhecer que o Eu não se sente bem quando é sacrificado desse modo às necessidades da sociedade quando tem de sujeitarse às tendências destrutivas da agressividade que de bom grado ele dirigiria contra os outros Isso é como um prosseguimento no âmbito psíquico do dilema devorar ou ser devorado que prevalece no mundo orgânico Felizmente os instintos agressivos nunca estão sós mas sempre amalgamados com os eróticos Nas condições da cultura criada pelos homens esses últimos têm muito a mitigar e prevenir 188286 O PRÊMIO GOETHE 1930 CARTA AO DR ALFONS PAQUET DISCURSO NA CASA DE GOETHE EM FRANKFURT TÍTULO ORIGINAL GOETHEPREIS 1930 BRIEF AN DR ALFONS PAQUET ANSPRACHE IM FRANKFURTER GOETHEHAUS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM DIE PSYCHOANALYTISCHE BEWEGUNG O MOVIMENTO PSICANALÍTICO V 2 N 5 PP 41926 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 54550 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE X PP 2916 A CARTA AO DR PAQUET FOI TAMBÉM INCLUÍDA EM BRIEFE CARTAS 18731939 FRANKFURT FISCHER 1960 P 394 CARTA AO DR ALFONS PAQUET Grundlsee 3 de agosto de 1930 Prezado dr Paquet Como até agora não fui mimado por homenagens públicas arranjeime de modo a poder passar sem elas Mas não vou negar que a atribuição do Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt me causou enorme alegria Nele há algo que cativa a imaginação e uma de suas cláusulas afasta o sentimento de humil hação que essas distinções muitas vezes implicam Agradeçolhe muito especialmente por sua carta que me comoveu e as sombrou Sem falar no gentil aprofundamento na natureza do meu trabalho jamais encontrei as veladas intenções pessoais deste percebidas com tal clareza e sintome tentado a lhe perguntar de que modo o senhor veio a conhecêlas Pelo que depreendi de sua carta a minha filha infelizmente não o verei no futuro próximo e um adiamento em minha idade é sempre uma coisa ar riscada Claro que me disponho inteiramente a receber o cavalheiro que o sen hor anuncia o dr Michel Infelizmente não posso ir à cerimônia em Frankfurt estou muito frágil para empreender uma viagem assim A plateia nada perderá com isso minha filha Anna é certamente mais agradável de se ver e ouvir do que eu Ela deverá ler algumas linhas que tratam da relação entre Goethe e a psicanálise e que defen dem os psicanalistas da acusação de ter faltado com o respeito devido ao grande homem nas tentativas de analisálo Espero que seja aceitável dar esse molde ao tema que me foi proposto Os vínculos interiores do homem e do pesquisador com Goethe caso contrário peçolhe que tenha a gentileza tam bém de me desaconselhar isso Muito cordialmente freud DISCURSO NA CASA DE GOETHE EM FRANKFURT O trabalho de minha vida teve uma única meta Observei os distúrbios mais sutis das funções psíquicas de pessoas sãs e doentes e partindo desses sinais busquei inferir ou se acharem melhor intuir como é construído o aparelho que serve a tais funções e que forças nele atuam conjuntamente ou em oposição mútua Aquilo que nós eu meus amigos e colaboradores pudemos aprender por esse caminho nos pareceu significativo para a edi ficação de uma ciência da alma que permita compreender os processos normais e os patológicos como partes do mesmo curso natural de eventos Dessa limitação a uma só tarefa sou arrancado pela surpreendente distinção que me concedem os senhores Ao evocar a figura do grande homem universal que nasceu nesta casa que passou a infância nestes aposentos tal distinção nos convida a por assim dizer justificarmonos diante dele suscita a questão de como teria ele se comportado se o seu olhar atento a toda inovação da ciência tivesse pousado sobre a psicanálise No tocante à variedade de facetas Goethe se aproxima de Leonardo o mestre renascentista que foi artista e pesquisador como ele Mas as figuras hu manas jamais se repetem também não faltam profundas diferenças entre esses dois grandes Na natureza de Leonardo o pesquisador não se harmonizava com o artista perturbavao e por fim talvez o sufocasse Na vida de Goethe 191286 as duas personalidades coexistiam bem alternandose no predomínio É plausível no caso de Leonardo relacionar essa perturbação à inibição do desenvolvimento que afastou de seu interesse tudo que é erótico e portanto a psicologia Nesse aspecto a natureza de Goethe pôde se desenvolver mais livremente Acho que ele não rejeitaria inamistosamente a psicanálise como fazem tan tos de nossos contemporâneos Achavase próximo dela em vários pontos dis cerniu muitas coisas que desde então pudemos confirmar e várias concepções que atraíram sobre nós a crítica e o escárnio são por ele defendidas com natur alidade Assim por exemplo conhecia muito bem a força incomparável dos primeiros vínculos afetivos humanos Celebrouos na dedicatória do Fausto em palavras que poderíamos repetir a cada uma de nossas análises Novamente apareceis formas hesitantes Que um dia se mostraram à minha visão nublada Devo agora procurar vos reter Como antiga lenda quase extinta Retorna o primeiro amor e com ele a amizade E explicou para si mesmo a mais forte atração amorosa que experimentou quando adulto dizendo à amada Ah em tempos idos foste minha irmã ou esposa Assim ele não nega que as imperecíveis primeiras inclinações tomam por objeto pessoas de nosso próprio círculo familiar O conteúdo da vida onírica é por ele designado com palavras de grande poder evocativo Aquilo que não sabido Ou não pensado pelos homens 192286 No labirinto do peito Vaga durante a noite Por trás desse encanto percebemos a venerável incontestavelmente correta afirmação de Aristóteles segundo a qual o sonho é a continuação da atividade psíquica no estado do sono unida ao reconhecimento do inconsciente que só a psicanálise acrescentou Apenas o enigma da deformação onírica não encontra ali solução Na Ifigênia talvez sua criação mais sublime Goethe nos oferece um co movedor exemplo de expiação de liberação do fardo da culpa por uma alma sofredora e faz com que essa catarse se realize mediante uma apaixonada ir rupção de sentimentos sob a benéfica influência de um afetuoso interesse Ele próprio tentou várias vezes ministrar auxílio psicológico por exemplo àquele infeliz que nas cartas recebe o nome de Kraft ao professor Plessing de que fala em Campanha na França e o procedimento que aplicou vai além do utilizado na confissão católica aproximandose da técnica da psicanálise em notáveis pormenores Há um exemplo de influência terapêutica descrito joc osamente por Goethe que eu gostaria de citar aqui por extenso pois talvez não seja muito conhecido embora bastante característico É de uma carta para a sra Von Stein no 1444 de 5 de setembro de 1785 Ontem à noite fiz uma mágica psicológica A sra Herder estava ainda consternada de forma hipocondríaca com tudo o que lhe su cedera de desagradável em Carlsbad Sobretudo por parte de sua com panheira de residência Eu a fiz relatar e confessar tudo delitos alheios e erros próprios as menores circunstâncias e as consequências e afinal a absolvi dandolhe a entender jocosamente que com essa fórmula da absolvição essas coisas estavam liquidadas e lançadas nas profundezas do mar Ela própria divertiuse com isso e está realmente curada 193286 Goethe sempre teve Eros em alta conta jamais tentou menosprezar seu poder acompanhou suas manifestações primitivas e até mesmo licenciosas com respeito não menor que as altamente sublimadas e segundo me parece defendeu sua unidade essencial através de todas as suas formas de expressão de maneira não menos decidida do que Platão em tempos passados Talvez seja mais que simples coincidência o fato de nas Afinidades eletivas ele aplicar à vida amorosa uma ideia do âmbito da química um vínculo de que o próprio nome psicanálise dá testemunho Estou preparado para ouvir a objeção de que nós psicanalistas desper diçamos o direito de nos colocar sob a patronagem de Goethe por lhe ter faltado com o devido respeito ao tentar empregar a análise nele mesmo ao re baixar a objeto da pesquisa analítica o grande homem Mas contesto em primeiro lugar que isso implique ou pretenda ser um rebaixamento Todos nós que reverenciamos Goethe admitimos sem maior problema o trabalho dos biógrafos que buscam recriar sua vida a partir dos informes e re gistros existentes Mas que podem nos fornecer essas biografias Nem mesmo a melhor e mais completa seria capaz de responder as duas únicas questões que parecem dignas de interesse Não esclareceria o enigma do maravilhoso dom que constitui o artista e não poderia nos ajudar a compreender melhor o valor e o efeito de suas obras No entanto não há dúvida de que tal biografia satisfaz uma forte necessidade que temos Sentimos isso muito claramente quando lacunas no legado histórico impedem a satisfação de tal necessidade como no caso de Shakespeare por exemplo É inegavelmente penoso para todos nós não saber ainda quem escreveu as comédias tragédias e sonetos de Shakespeare se foi realmente o inculto filho de um pequenoburguês de Stratford que alcançou modesta posição de ator em Londres ou na verdade um aristocrata de alto nascimento e refinada cultura desregrado nas paixões e um tanto rebaixado socialmente Edward de Vere o 17o conde de Oxford grande lorde camareiro 194286 hereditário da Inglaterra Mas como se justifica esta necessidade de conhecer as circunstâncias da vida de um homem quando suas obras se tornaram im portantes para nós Muitas vezes se diz que isso representa o anseio de nos aproximarmos também humanamente desse homem Digamos que seja é en tão a necessidade de criar relações afetivas com tais homens de acrescentálos aos pais professores modelos que já conhecemos ou cuja influência experi mentamos na expectativa de que suas personalidades sejam grandes e admirá veis como as obras que deixaram Admitamos porém que outro motivo também está em jogo A justificativa do biógrafo contém igualmente uma confissão É certo que ele não quer re baixar o herói e sim aproximálo de nós Mas isso é reduzir a distância que nos separa dele atua no sentido de um rebaixamento afinal E é inevitável que ao saber mais sobre a vida de um grande homem também nos inteiremos de ocasiões em que ele não se saiu melhor do que nós aproximouse realmente de nós Entretanto acho que podemos declarar legítimos os esforços dos autores de biografias Afinal nossa atitude ante pais e professores é ambivalente pois nossa reverência por eles esconde via de regra um componente de rebelião hostil Isso é uma fatalidade psicológica não pode ser mudado sem uma viol enta supressão da verdade e se estende a nossa relação com os grandes ho mens cuja vida queremos estudar Quando a psicanálise se põe a serviço da biografia ela naturalmente tem o direito de não ser tratada com maior severidade do que essa mesma A psic análise pode trazer esclarecimentos que não são obtidos por outras vias e dessa maneira mostrar novas conexões na obraprima de tecelão que com preende as disposições instintuais as vivências e as obras do artista Como uma das principais funções de nosso pensamento é dominar psiquicamente o material do mundo exterior creio que se deveria agradecer à psicanálise quando aplicada a um grande homem ela contribui para o entendimento de suas grandes realizações Mas confesso que no caso de Goethe ainda não 195286 avançamos muito Isso porque ele como poeta não foi apenas um grande rev elador mas também apesar da abundância de documentos autobiográficos um grande ocultador Nisso não podemos deixar de lembrar as palavras de Mefistófeles O melhor que chegares a saber Não poderás contar aos meninos Em Briefe 18731939 consta a data de 26 de julho de 1930 provavelmente equivocada pois teria sido a da carta de Paquet e o nome do local de férias onde ela foi redigida aparece como GrundlseeRebenburg Inferir no original erschließen intuir erraten os dois verbos admitem mais de um sen tido como se nota pelas versões estrangeiras deste trabalho que consultamos determinar des cubrir chiarire infer e adivinar colegir indovinare guess No mesmo parágrafo ciência da alma é como preferimos verter Seelenkunde nisso concordando com uma das versões con sultadas psicologia ciencia del alma psicologia mental science Primeiras linhas do Fausto no original Ihr naht euch wieder schwankende Gestalten Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt Versuch ich wohl euch diesmal festzuhalten Gleich einer alten halbverklungnen Sage Kommt erste Lieb und Freundschaft mit herauf Ach Du warst in abgelebten Zeiten meine Schwester oder meine Frau de um poema enviado a Charlotte von Stein em 1776 Do poema An den Mond À lua no original Was von Menschen nicht gewußt Oder nicht bedacht Durch das Labyrinth der Brust Wandelt in der Nacht também citado por Nietz sche em Genealogia da moral ii 18 Mágica Kunststück nas versões consultadas prestidigitación artificio giuoco dabilità feat Alusão a uma passagem do Fausto cena 4 Freud a cita mais extensamente na Interpretação dos sonhos cap vi seção A ao falar da complexa fábrica de pensamentos do sonho Das Beste was du wissen kannst Darfst du den Buben doch nicht sagen também da cena 4 196286 TIPOS LIBIDINAIS 1931 TÍTULO ORIGINAL ÜBER LIBIDINÖSE TYPEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE V 17 N 3 PP 3136 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 50913 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 26772 A observação nos mostra que as pessoas realizam a ideia geral do ser humano de maneiras quase infinitamente diversas Se cedermos à legítima necessidade de distinguir tipos particulares nesse conjunto já de início teremos de escolher por quais características e segundo que pontos de vista se fará essa diferen ciação Para esse propósito as qualidades físicas serão certamente tão úteis quanto as psíquicas e as distinções mais valiosas serão aquelas que prometer em uma conjunção regular de traços físicos e psíquicos É duvidoso que já agora possamos descobrir tipos que preencham tais re quisitos como certamente conseguiremos depois sobre uma base ainda não conhecida Limitandonos ao esforço de estabelecer tipos psicológicos a situ ação vigente na libido é que terá direito a servir de fundamento para a divisão É lícito pretender que essa divisão não apenas derive de nosso conhecimento ou nossas suposições sobre a libido mas que também se encontre facilmente na prática e contribua para clarificar o conjunto de nossas observações em bene fício da nossa concepção Admitimos sem hesitar que também no âmbito psíquico esses tipos libidinais não são necessariamente os únicos possíveis e que talvez se possa estabelecer toda uma série de outros tipos psicológicos a partir de outras qualidades Mas nenhum deles pode coincidir com quadros patológicos Muito ao contrário devem abranger todas as variações que con forme uma avaliação prática mantêmse no leque do normal Em suas form ações extremas podem avizinharse de quadros patológicos no entanto ajudando assim a preencher o suposto abismo entre o normal e o patológico Segundo a alocação da libido que predominar nas províncias do aparelho psíquico podese distinguir três tipos libidinais principais Não é fácil lhes dar nomes apoiandome em nossa psicologia profunda gostaria de chamálos de erótico narcisista e obsessivo O tipo erótico é fácil de caracterizar Os eróticos são pessoas cujo principal interesse a parte relativamente maior de sua libido está voltado para a vida amorosa Amar e acima de tudo ser amado é o mais importante para eles São dominados pelo medo de perder o amor e por isso têm particular dependência dos outros dos que podem lhes negar o amor Também na sua forma pura esse tipo é frequente Ocorrem variantes dele conforme a mistura com outro tipo e a quantidade de agressão existente Social e culturalmente esse tipo representa as elementares exigências instintuais do Id ao qual as out ras instâncias psíquicas tornaramse dóceis O segundo tipo ao qual dei o nome à primeira vista estranho de obsessivo caracterizase pela predominância do Supereu que sob elevada tensão se sep ara do Eu Ele é dominado pelo medo da consciência moral em lugar do medo ante a perda do amor mostra uma dependência interna digamos em vez de externa desenvolve um elevado grau de autonomia e socialmente vem a ser o autêntico veículo da cultura predominantemente conservador O terceiro tipo com razão denominado narcisista será caracterizado de modo essencialmente negativo Nele não há tensão entre Eu e Supereu com base nesse tipo dificilmente chegaríamos à noção de um Supereu não há preponderância das necessidades eróticas seu interesse maior se dirige à autopreservação ele é independente e não se deixa intimidar Seu Eu dispõe de uma larga medida de agressividade que também se manifesta na disposição para a atividade em sua vida amorosa amar vem antes de ser amado As pess oas desse tipo se impõem às outras como personalidades são especialmente aptas a servir de apoio às demais a assumir o papel de líderes e a fornecer nov os estímulos ao desenvolvimento cultural ou prejudicar as condições existentes Esses tipos puros não escaparão à suspeita de derivarem da teoria da libido Mas nos sentiremos no solo firme da experiência se nos ocuparmos dos tipos mistos que se oferecem mais prontamente à observação do que os puros Esses novos tipos o eróticoobsessivo o eróticonarcisista e o narcisistaobsessivo pare cem mesmo abarcar satisfatoriamente as estruturas psíquicas individuais tal como as conhecemos através da análise São caracteres há muito familiares os que encontramos no estudo desses tipos mistos No tipo eróticoobsessivo a pre ponderância da vida institual parece limitada pela influência do Supereu a 199286 dependência simultânea de objetos humanos recentes e de vestígios dos pais educadores e modelos alcança nesse tipo o grau mais elevado O eróticonar cisista é talvez aquele a que se deve atribuir a maior frequência Reúne opostos que podem moderarse mutuamente nele comparandoo com os dois outros tipos eróticos podemos aprender que agressão e atividade vão de par com a predominância do narcisismo Por fim o narcisistaobsessivo resulta na variante mais valiosa culturalmente na medida em que junta a capacidade de ação vig orosa à independência externa e consideração das exigências da consciência fortalecendo o Eu contra o Supereu Alguém poderia crer estar fazendo uma piada se perguntasse por que não é mencionado aqui um outro tipo misto teoricamente possível o erótico obsessivonarcisista Mas a resposta ao gracejo seria um tipo assim já não seria um tipo ele significaria a norma absoluta a harmonia ideal Nisso percebemos que o fenômeno dos tipos nasce justamente de que das três principais ap licações da libido na economia psíquica uma ou duas foram privilegiadas às expensas das outras Podese também imaginar a pergunta de qual a relação desses tipos libid inais com a patologia se alguns deles se dispõem particularmente para a neur ose e nesse caso quais tipos conduzem a quais formas A resposta será que a formulação desses tipos libidinais não lança luz nova sobre a gênese das neur oses Pelo testemunho da experiência todos esses tipos podem viver sem neur ose Os tipos puros com primado indiscutível de uma única instância psíquica parecem ter maior perspectiva de apresentarse como formações caracteroló gicas puras enquanto dos tipos mistos se pode esperar que ofereçam um solo mais favorável às precondições para a neurose Mas acho que acerca disso não devemos formar juízo sem um exame cuidadoso e particularmente dirigido Parece fácil deduzir que em caso de doença os tipos eróticos desenvolvem histeria e os obsessivos neurose obsessiva mas isso também partilha a incer teza há pouco enfatizada Os tipos narcisistas que não obstante sua inde pendência geral achamse expostos à frustração a partir do mundo exterior 200286 possuem predisposição especial para a psicose apresentando igualmente pre condições essenciais para a criminalidade Sabese que as precondições etiológicas da neurose ainda não são conheci das com certeza Os fatores que a ocasionam são frustrações e conflitos inter nos conflitos entre as três grandes instâncias psíquicas no interior da eco nomia libidinal consequentes à nossa constituição bissexual e entre os com ponentes instintuais eróticos e agressivos A psicologia das neuroses se em penha em averiguar o que torna patogênicos esses processos pertencentes ao curso normal da vida psíquica 201286 SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA 1931 TÍTULO ORIGINAL ÜBER DIE WEIBLICHE SEXUALITÄT PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE V 17 N 3 PP 31732 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIV PP 51737 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V PP 27392 I Na fase do complexo de Édipo normal vemos a criança ligada afetivamente ao genitor do sexo oposto enquanto na relação com o de mesmo sexo predomina a hostilidade Não nos é difícil chegar a esse resultado no caso do menino A mãe foi seu primeiro objeto de amor continua a sêlo e com a intensificação dos impulsos amorosos do menino e sua maior compreensão dos laços entre o pai e a mãe o pai tem de se tornar seu rival É diferente com a menina Seu primeiro objeto foi também a mãe certamente Mas como acha ela o caminho até o pai Como quando e por que ela se desprende da mãe Há algum tempo vimos que o desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pela tarefa de abandonar a zona genital originalmente dominante o clitóris por uma nova a vagina Agora uma segunda transformação a troca do original objeto mãe pelo pai parecenos igualmente característica e significativa para o desenvolvimento da mulher Ainda não podemos perceber de que modo as duas tarefas se vinculam Sabese que muitas mulheres são fortemente ligadas ao pai de maneira nenhuma precisam ser neuróticas Em tais mulheres fiz as observações que aqui relatarei que me levaram a determinada concepção da sexualidade femin ina Dois fatos me chamaram a atenção acima de tudo O primeiro foi quando a ligação com o pai era particularmente intensa a análise mostrou que tinha havido antes uma fase de exclusiva ligação com a mãe igualmente intensa e apaixonada Excetuando a mudança de objeto a segunda fase praticamente não acrescentou nenhum novo traço à vida amorosa A relação primária com a mãe fora desenvolvida de maneira bastante rica e variada O segundo fato me ensinou que também a duração desse vínculo com a mãe fora bastante subestimado Em muitos casos ele ia até os quatro em um deles até os cinco anos de idade ou seja cobria a maior parte do primeiro florescimento sexual Então foi necessário admitir a possibilidade de que um certo número de mulheres se detém na original ligação com a mãe e jamais se volta realmente para o homem Assim a fase préedípica da mulher assume uma importância que até agora não lhe havíamos atribuído Como ela pode conter todas as fixações e repressões a que fazemos re montar o surgimento das neuroses parece necessário abandonar a universalid ade da tese de que o complexo de Édipo seria o núcleo da neurose Mas quem reluta em fazer essa correção não é obrigado a fazêla Por um lado podese dar ao complexo de Édipo um conteúdo mais amplo de modo a abranger to das as relações da criança com os dois genitores por outro lado também se podem levar em conta as novas experiências afirmando que a mulher atinge a normal situação edípica positiva somente após haver superado uma época an terior dominada pelo complexo negativo De fato durante essa fase o pai é pouco mais que um incômodo rival para a menina embora a hostilidade para com ele jamais alcance a altura típica dos meninos Há muito tempo renun ciamos à expectativa de um perfeito paralelismo entre o desenvolvimento sexual masculino e o feminino A percepção da anterior fase préedípica da garota é para nós uma sur presa semelhante à descoberta em outro campo da civilização minoico micênica por trás da grega Tudo no âmbito dessa primeira ligação com a mãe pareceume bastante difícil de apreender analiticamente bastante remoto penumbroso quase im possível de ser vivificado como se tivesse sucumbido a uma repressão particu larmente implacável Mas talvez esta impressão me viesse do fato de que as mulheres podiam se apegar na análise comigo à mesma ligação ao pai em que se haviam refugiado após a fase anterior em questão Parece de fato que an alistas mulheres como Jeanne Lamplde Groot e Helene Deutsch puderam perceber esses fatos com maior facilidade e nitidez pois tiveram o auxílio da transferência para um substituto materno adequado nas pacientes sob seu 204286 tratamento Não consegui penetrar inteiramente nenhum caso por isso me limitarei a expor os resultados mais gerais e a oferecer alguns exemplos de minhas novas percepções Uma delas é que a fase de ligação com a mãe pode ter uma relação particularmente íntima com a etiologia da histeria o que não deve surpreender se consideramos que as duas tanto a fase como a neurose estão entre as características especiais da feminilidade e além disso que nessa dependência da mãe se acha o gérmen da paranoia posterior da mulher1 Pois este parece ser o medo surpreendente mas regularmente encontrado de ser morta devorada pela mãe É plausível supor que esse medo corresponda a uma hostilidade que na criança se desenvolve em relação à mãe em con sequência das muitas restrições envolvidas na educação e no cuidado corporal e que o mecanismo da projeção seja favorecido pela pouca idade da organiza ção psíquica II Expus inicialmente os dois fatos que me chamaram a atenção pela novidade que a forte dependência da mulher em relação ao pai é apenas herdeira de uma ligação à mãe igualmente forte e que essa fase anterior teve uma duração ines peradamente longa Agora voltarei um pouco atrás para inserir essas novas conclusões no quadro do desenvolvimento sexual feminino que já con hecemos Ao fazêlo algumas repetições serão inevitáveis E nossa exposição lucrará se continuamente fizermos uma comparação com o estado de coisas no homem Em primeiro lugar é indiscutível que a bissexualidade que afirmamos ser parte da constituição humana aparece bem mais nitidamente na mulher do que no homem O homem tem apenas uma zona sexual diretora um órgão sexual enquanto a mulher tem dois a vagina que é propriamente feminina e o clitóris que é análogo ao membro masculino Acreditamos poder supor que 205286 durante muitos anos é como se a vagina não existisse talvez somente na época da puberdade ela produza sensações Ultimamente é verdade cresceu o número de observadores que sustentam haver sensações vaginais também nos primeiros anos O essencial do que sucede no âmbito da genitalidade na infân cia da mulher deve ocorrer no clitóris A vida sexual da mulher se divide nor malmente em duas fases das quais a primeira tem caráter masculino apenas a segunda é especificamente feminina No desenvolvimento feminino há então um processo de transição de uma fase para a outra que não tem análogo no homem Uma outra complicação vem do fato de que a função do viril clitóris prossegue na vida sexual posterior da mulher de maneira bastante variável e não compreendida satisfatoriamente Ignoramos naturalmente a funda mentação biológica dessas peculiaridades da mulher tampouco somos capazes de lhes atribuir algum propósito teleológico Paralelamente a essa primeira grande diferença corre uma outra no terreno da busca de objeto O primeiro objeto amoroso do homem é a mãe em con sequência dos cuidados de higiene e de alimentação que lhe dispensou e como tal continua até ser substituída por alguém de natureza semelhante ou dela de rivado Também para a mulher a mãe tem de ser o primeiro objeto as con dições primordiais da escolha de objeto são as mesmas para todas as crianças Mas no final do desenvolvimento o homem o pai deve se tornar o novo objeto de amor ou seja à mudança no sexo da mulher tem de corresponder uma mudança no sexo do objeto Neste ponto surgem como novas tarefas para a pesquisa as seguintes questões de que modo ocorre essa transform ação se se realiza completamente ou imperfeitamente e que diferentes possib ilidades se abrem no curso desse desenvolvimento Também já vimos que uma outra diferença entre os sexos diz respeito ao complexo de Édipo Nisso temos a impressão de que o que afirmamos sobre o complexo de Édipo se aplica a rigor apenas ao menino e que estamos certos em rejeitar o nome de complexo de Eletra que busca enfatizar a analogia no comportamento dos dois sexos A fatal conjunção de amor a um genitor e ódio 206286 simultâneo ao outro como rival existe apenas no garoto Nele é a descoberta da possibilidade da castração demonstrada pela visão dos genitais femininos que impõe a transformação do complexo de Édipo e leva à criação do Super eu assim dando início aos processos que visam inscrever o indivíduo na comunidade civilizada Após a interiorização da instância paterna como Super eu a tarefa a ser realizada é desligar esse último das pessoas que originalmente representou Neste singular curso de desenvolvimento justamente o interesse narcísico nos genitais na preservação do pênis é utilizado na limitação da sexualidade infantil No homem a influência do complexo da castração deixa também certo grau de menosprezo pela mulher percebida como castrada Em casos ex tremos isso dá origem a inibição na escolha do objeto e se concorrem fatores orgânicos homossexualidade exclusiva Bem diferentes são os efeitos do com plexo da castração na mulher Ela admite o fato de sua castração e com isso a superioridade do homem e sua própria inferioridade mas também se revolta contra esse desagradável estado de coisas Dessa atitude dividida decorrem três orientações de desenvolvimento A primeira leva ao afastamento da sexu alidade em geral Assustada pela comparação com os meninos a garota fica in satisfeita com seu clitóris renuncia a sua atividade fálica e com isso à sexual idade mesma assim como a boa parte de sua masculinidade em outros campos A segunda direção consiste em se apegar com teimosa autoafirmação à mas culinidade ameaçada a esperança de voltar a ter um pênis se mantém viva até uma época incrivelmente tardia é transformada em objetivo de vida e a fantasia de apesar de tudo ser um homem prossegue com frequência atuando formadoramente em longos períodos da vida Também esse complexo de masculinidade da mulher pode resultar em manifesta escolha homossexual do objeto Apenas um terceiro desenvolvimento bastante sinuoso vem a dar na definitiva configuração feminina normal que toma o pai por objeto e assim alcança a forma feminina do complexo de Édipo Na mulher portanto o com plexo de Édipo é o resultado final de um longo desenvolvimento não é 207286 destruído mas sim criado por influência da castração escapa às fortes influên cias hostis que no homem atuam de forma destruidora sobre ele e de fato com muita frequência não é superado pela mulher Por isso também são menores e menos relevantes as consequências culturais de sua desintegração Provavel mente não será errado dizer que essa diferença na relação entre o complexo de Édipo e o da castração marca indelevelmente o caráter da mulher como ser so cial2 Portanto a fase de exclusiva ligação à mãe que podemos chamar de pré edípica assume na mulher uma importância bem maior do que no homem Muitos fenômenos da vida sexual feminina que antes não compreendíamos realmente acham explicação se os referimos a esta fase Há muito notamos por exemplo que muitas mulheres escolhem o marido conforme o modelo do pai ou o põem no lugar no pai mas repetem com ele no casamento a má re lação com a mãe Ele deveria herdar a relação com o pai mas na realidade herda aquela com a mãe Não é difícil vermos aí um claro caso de regressão A relação com a mãe foi a original sobre ela construiuse a ligação ao pai e agora no casamento a relação original emerge da repressão O traslado das ligações afetivas do objeto materno para o paterno constituiu o teor principal do desenvolvimento que leva à feminilidade Se muitas mulheres nos dão a impressão de que passam a época adulta a lut ar com o marido assim como ocuparam a juventude a brigar com a mãe à luz das observações precedentes concluímos que a sua atitude hostil diante da mãe não é consequência da rivalidade do complexo de Édipo mas procede da fase anterior e apenas é reforçada e aplicada na situação edípica Há confirmação disso na investigação psicanalítica direta Nosso interesse precisa voltarse para os mecanismos que atuam no afastamento em relação ao objeto materno amado de forma tão intensa e exclusiva Estamos preparados para encontrar não um fator único mas toda uma série de fatores que operam conjuntamente para o mesmo fim 208286 Entre eles destacamse alguns que são condicionados pelas circunstâncias gerais da sexualidade infantil e que portanto valem igualmente para a vida amorosa dos garotos Em primeira linha devese mencionar o ciúme de outras pessoas de irmãos rivais entre os quais se encontra também o pai O amor da criança é desmedido requer exclusividade não se satisfaz com frações Uma segunda característica porém é o fato de esse amor ser propriamente sem meta incapaz de alcançar plena satisfação e essencialmente por isso está con denado a acabar em decepção e dar lugar a uma atitude hostil Em épocas pos teriores da vida a ausência de uma satisfação final pode favorecer um outro resultado Esse fator pode assegurar a continuação imperturbada do investi mento libidinal como nas relações amorosas inibidas na meta mas no ímpeto dos processos de desenvolvimento sucede regularmente que a libido abandone a posição insatisfatória para buscar uma nova Outro motivo bem mais específico para o afastamento em relação à mãe está no efeito do complexo da castração sobre a criatura sem pênis Algum dia a garota pequena descobre a sua inferioridade orgânica naturalmente mais cedo e mais facilmente quando tem irmãos ou há garotos ao seu redor Já vi mos as três direções que então aparecem a a que leva à cessação da vida sexu al b a da teimosa acentuação da masculinidade c os primeiros passos para a feminilidade definitiva Não é fácil precisar aqui as durações e estabelecer os cursos típicos dos eventos Já o momento da descoberta da castração é var iável e outros fatores parecem inconstantes e dependentes do acaso O estado da atividade fálica da menina entra em consideração e também se essa ativid ade é descoberta ou não e o grau de impedimento sentido após a descoberta A atividade fálica a masturbação do clitóris geralmente é encontrada de forma espontânea pela menina certamente não é acompanhada de fantasia no início A influência da higiene corporal no seu despertar se reflete na fantasia frequente em que a mãe amaseca ou babá é a sedutora Não consideramos se nas meninas a masturbação é mais rara e desde o início menos enérgica do que nos meninos possivelmente sim Também a sedução real é frequente por 209286 parte de outras crianças ou de pessoas que dela cuidam que buscam sossegála fazêla adormecer ou tornála dependente de si Quando há a sedução ela nor malmente perturba o curso natural de desenvolvimento muitas vezes deixa consequências profundas e duradouras Como vimos a proibição da masturbação tornase um ensejo para abandonála mas também um motivo para rebelarse contra a pessoa que proíbe ou seja a mãe ou o sucedâneo da mãe que depois se funde regular mente com ela A teimosa persistência na masturbação parece abrir o caminho para a masculinidade Mesmo quando a criança não consegue suprimir a mas turbação o efeito da proibição aparentemente ineficaz se mostra em seu pos terior empenho de livrarse a todo custo de uma satisfação que foi estragada para ela Ainda a escolha objetal da menina madura pode ser influenciada por esse desejo a que ela se apegou O rancor por ser impedida de exercer a ativid ade sexual desempenha um relevante papel no afastamento da mãe O mesmo motivo atuará novamente após a puberdade quando a mãe percebe seu dever de zelar pela virgindade da filha Não esquecemos naturalmente que a mãe contraria do mesmo modo a masturbação do filho e assim produz também nele um forte motivo para a rebelião Quando a garota pequena se dá conta do seu defeito ao avistar um genital masculino não é sem hesitação e relutância que ela aceita o indesejado conhe cimento Como vimos a expectativa de algum dia também ter um genital as sim é conservada obstinadamente e o desejo disso sobrevive à esperança por bastante tempo Em todos os casos a criança vê a castração inicialmente como um infortúnio individual apenas depois a estende a algumas outras crianças e por fim a certos adultos Com a percepção da natureza geral dessa caracter ística negativa há uma grande desvalorização da feminilidade e portanto tam bém da mãe É bem possível que essa descrição de como a garota pequena se comporta ante a ideia da castração e a proibição do onanismo deixe no leitor uma im pressão confusa e contraditória Isso não é culpa inteiramente do autor Na 210286 realidade uma exposição universalmente válida é quase impossível Em indi víduos diferentes encontramse as mais diferentes reações e no mesmo indiví duo coexistem atitudes opostas Tão logo se manifesta a proibição está presente o conflito que passa a acompanhar o desenvolvimento da função sexual Também dificulta especialmente a compreensão o fato de ser tão tra balhoso distinguir os processos psíquicos dessa primeira fase de outros posteri ores pelos quais aqueles são cobertos e distorcidos na memória Assim por exemplo o fato da castração será apreendido como punição pela atividade masturbatória mas sua execução será atribuída ao pai e nenhuma das duas noções pode ser primária Também o menino teme a castração por parte do pai embora também no caso dele a ameaça proceda geralmente da mãe Seja como for no final dessa primeira fase de ligação à mãe aparece como o mais forte motivo para o afastamento da mãe a recriminação de que ela não deu à menina um genital verdadeiro isto é de que a deu à luz como mulher E com surpresa ouvimos outra recriminação que remonta a algo menos distante a mãe lhe deu muito pouco leite não a amamentou por tempo suficiente Isso bem pode ocorrer nas circunstâncias culturais de hoje mas não tão frequente mente como é dito na análise Esta queixa seria antes expressão de um descon tentamento geral das crianças que nas condições culturais da monogamia são desmamadas após seis a nove meses enquanto as mães primitivas dedicam dois ou três anos exclusivamente aos filhos é como se nossas crianças sempre ficas sem insaciadas como se nunca mamassem suficientemente o seio materno Mas não estou certo de que não encontraríamos a mesma queixa na análise de crianças que foram amamentadas tão longamente como os filhos dos primit ivos Pois é grande a avidez da libido infantil Se percorremos toda a série de motivos que a análise descobre para o afastamento em relação à mãe que ela não dotou a menina do único genital verdadeiro que a nutriu de maneira insuficiente que a obrigou a dividir com outros o amor materno que jamais satisfez as expectativas de amor e por fim que inicialmente estimulou e depois proibiu sua atividade sexual eles todos não parecem ainda bastantes para 211286 justificar a hostilidade final Alguns são consequências inevitáveis da natureza da sexualidade infantil outros semelham racionalizações arranjadas posterior mente para a não compreendida mudança nos sentimentos Mas talvez a lig ação à mãe tenha mesmo de acabar justamente por ser primeira e de tão grande intensidade de modo semelhante ao que frequentemente se observa nos primeiros casamentos de mulheres jovens contraídos na mais acesa paixão Nos dois casos a atitude amorosa fracassaria pelas inevitáveis de cepções e pelo acúmulo de ensejos para a agressão Geralmente o segundo matrimônio é mais bemsucedido Não podemos chegar ao ponto de afirmar que a ambivalência dos investi mentos emocionais é uma lei psicológica de validade universal que é absoluta mente impossível ter grande amor por alguém sem que um ódio talvez igual mente grande se apresente ou viceversa Sem dúvida a pessoa normal e adulta consegue manter separadas as duas atitudes não tendo que odiar seu objeto amoroso nem que amar seu inimigo Mas isto parece ser resultado de desenvolvimentos posteriores Nas primeiras fases da vida amorosa a am bivalência é claramente a regra Em muitas pessoas esse traço arcaico é conser vado pela vida inteira é característico dos neuróticos obsessivos que amor e ódio se equilibrem nas relações objetais Também com relação aos primitivos podese dizer que a ambivalência predomina Portanto a intensa ligação da menina com sua mãe tem de ser fortemente ambivalente e secundada por out ros fatores precisamente essa ambivalência a impele ao afastamento ou seja também devido a uma característica geral da sexualidade infantil Contra essa tentativa de explicação aparece logo uma pergunta como é possível para os garotos manter incólume sua ligação à mãe que certamente não é menos forte A resposta também não se faz esperar porque são capazes de resolver sua ambivalência com a mãe alojando no pai todos os sentimentos hostis Mas não se deve dar essa resposta em primeiro lugar antes de estudar detidamente a fase préedípica dos meninos e depois é mais prudente admitir 212286 que ainda não compreendemos bem esses processos de que acabamos de to mar conhecimento III Uma outra pergunta é que solicita da mãe a menina De que tipo são suas metas sexuais no tempo da exclusiva ligação à mãe A resposta que se obtém do material analítico corresponde inteiramente a nossas expectativas As metas sexuais da menina diante da mãe são de natureza tanto ativa como passiva e são determinadas pelas fases da libido que a criança atravessa A relação entre atividade e passividade merece aqui o nosso particular interesse É fácil obser var que em todo âmbito da vida psíquica não apenas no da sexualidade uma impressão recebida passivamente pela criança suscita a tendência a uma reação ativa Ela procura fazer o mesmo que antes foi feito nela ou com ela Isso é parte do trabalho de domínio do mundo exterior que é chamada a fazer e pode até mesmo levar a que se empenhe em repetir impressões que teria motivo para evitar por seu conteúdo doloroso Também a brincadeira infantil é posta a serviço desse propósito de complementar uma vivência passiva com uma ação ativa como que anulandoa dessa maneira Quando o médico abre a boca de uma criança para observarlhe a garganta apesar de sua resistência depois que ele se vai a criança brinca de médico e repete o violento procedimento com um irmãozinho que se acha tão indefeso perante ela como ela própria se achava perante o doutor É inegável que temos aí uma rebelião contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo Essa transição de passividade para atividade não se verifica com a mesma regularidade e energia em todas as crianças em algumas ela pode não ocorrer Desse comportamento da criança podese tirar uma conclusão sobre a força relativa da masculinidade e da feminilidade que ela exibirá em sua sexualidade 213286 As primeiras vivências sexuais e de matiz sexual que a criança tem com a mãe são naturalmente de caráter passivo Ela é amamentada nutrida limpada vestida e ensinada a fazer tudo o que deve Uma parte da libido da criança continua apegada a essas experiências e desfruta as satisfações a elas relacionadas outra parte procura convertêlas em atividade No peito mater no ser amamentado é substituído por mamar ativamente Em outros aspectos a criança se contenta ou com a autonomia isto é com o êxito em realizar ela própria o que até então era feito com ela ou com a repetição ativa de suas vivências passivas ao brincar ou realmente faz da mãe o objeto ante o qual desempenha o papel de sujeito ativo Esse último comportamento que sucede no âmbito da atividade propriamente dita pareceume inacreditável por muito tempo até que a experiência refutou qualquer dúvida Raramente se ouve que uma menina queira lavar vestir ou lembrar a mãe de satisfazer as necessidades fisiológicas É certo que às vezes ela diz Agora vamos brincar que eu sou a mãe e você a filha mas geralmente realiza esses desejos ativos de forma indireta na brincadeira com uma boneca em que representa ela própria a mãe e a boneca a filha A predileção das meninas por brincar com bonecas diferentemente dos meninos costuma ser vista como sin al da feminilidade que desperta precocemente Com razão mas não se deve ig norar que é o caráter ativo da feminilidade que aí se expressa e que essa pre dileção da menina provavelmente demonstra a exclusividade da ligação à mãe com total negligência do objetopai A surpreendente atividade sexual da menina em relação à mãe se manifesta na sequência temporal em tendências orais sádicas e por fim até mesmo fálicas dirigidas à mãe É difícil fazer aqui um relato pormenorizado pois fre quentemente são obscuros impulsos instintuais que a criança não podia apreender psiquicamente na época em que ocorreram e que por isso rece beram apenas uma interpretação posterior surgindo na análise em formas de expressão que certamente não tinham originalmente Às vezes damos com eles como transferências para o posterior objetopai onde não cabem e dificultam 214286 sensivelmente a compreensão Os desejos agressivos orais e sádicos são encon trados na forma que então lhes foi imposta pela repressão como medo de ser morta pela mãe o qual por sua vez justifica o desejo de morte contra a mãe quando este se torna consciente Não é possível dizer com que frequência esse medo da mãe se baseia numa inconsciente hostilidade por parte dela que a cri ança percebe Até agora encontrei apenas em homens o medo de ser devor ado ele se refere ao pai mas provavelmente é o produto de uma transform ação da agressividade oral dirigida à mãe A criança quer devorar a mãe da qual se nutriu com relação ao pai falta esse motivo para o desejo As pacientes com forte ligação à mãe nas quais pude estudar a fase pré edípica foram concordes em dizer que quando a mãe lhes aplicava enemas e lavagens intestinais elas costumavam opor grande resistência e reagir com an gústia e gritos de raiva Isso pode ser uma conduta frequente ou mesmo reg ular nas crianças Só vim a compreender a razão dessa veemente rebeldia graças a uma observação de Ruth Mack Brunswick que se ocupava dos mes mos problemas Ela se inclinava a comparar o acesso de raiva após um enema ao orgasmo após a excitação genital E a angústia se entenderia como conver são do desejo de agressão despertado Penso que é realmente assim e que no estágio sádicoanal a intensa excitação passiva da zona intestinal é respondida com um acesso do desejo de agressão que se manifesta diretamente como raiva ou devido a sua supressão como angústia Essa reação parece extinguir se em anos posteriores Considerando os impulsos passivos da fase fálica sobressai o fato de a menina geralmente acusar a mãe de seduzila por haver tido as primeiras ou em todo caso as mais fortes sensações genitais ao receber cuidados de higiene e de limpeza por parte da mãe ou da pessoa que nisso a representava A men ina gosta dessas sensações e pede que a mãe as aumente com toques e fricções como várias vezes algumas mães me comunicaram haver observado em suas filhas de dois e três anos de idade Assim a mãe inevitavelmente inicia a cri ança na fase fálica e atribuo a isso o fato de nas fantasias de anos posteriores o 215286 pai aparecer tão regularmente como o sedutor sexual Com o afastamento em relação à mãe também a introdução na vida sexual é transferida para o pai Por fim na fase fálica também surgem intensos desejos de natureza ativa em relação à mãe A atividade sexual dessa época culmina na masturbação no clitóris durante a qual provavelmente a menina pensa na mãe mas em minhas observações não pude descobrir se ela chega a imaginar uma meta sexual e qual seria essa meta Apenas quando todos os interesses da menina recebem um novo ímpeto com a chegada de um irmãozinho é que tal meta pode ser claramente reconhecida A garota deseja ter feito essa nova criança na mãe ex atamente como o menino e também sua reação a esse acontecimento e sua conduta ante o bebê são as mesmas Isso parece absurdo é verdade mas talvez apenas por ser tão inusitado para nós O afastamento em relação à mãe é um passo altamente significativo no desenvolvimento da garota é mais que uma simples mudança de objeto Já descrevemos o que nele ocorre e os muitos motivos para ele aduzidos acres centemos que paralelamente a ele se observa uma forte diminuição dos im pulsos sexuais ativos e um aumento daqueles passivos Sem dúvida as tendên cias ativas são mais afetadas pela frustração elas se revelaram totalmente in exequíveis e portanto são mais facilmente abandonadas pela libido mas tam bém do lado das tendências passivas não faltaram frustrações Com o afasta mento diante da mãe frequentemente cessa também a masturbação clitoridi ana e com a repressão da masculinidade anterior da menina não raro é preju dicada uma boa parte de seu interesse sexual O caminho para o desenvolvi mento da feminilidade fica aberto para a menina desde que não seja limitado pelos resíduos da superada ligação préedípica com a mãe Se agora reconsideramos a parte do desenvolvimento sexual feminino que aqui foi descrita não podemos nos furtar a uma conclusão sobre a sexualidade feminina como um todo Encontramos as mesmas forças libidinais que havíamos encontrado nos meninos e pudemos nos convencer de que durante 216286 um certo tempo elas tomam os mesmos caminhos e chegam aos mesmos resultados Depois são fatores biológicos que as desviam de suas metas iniciais e con duzem pelas vias da feminilidade até mesmo tendências ativas masculinas em todo sentido Como não podemos rejeitar a ideia de que a excitação sexual se deve ao efeito de substâncias químicas determinadas é razoável esperar que no futuro a bioquímica nos apresente uma substância que seja responsável pela excitação sexual masculina e outra pela feminina Mas tal esperança não parece menos ingênua do que aquela hoje felizmente ultrapassada de distinguir no microscópio os causadores da histeria da neurose obsessiva da melancolia etc Também na química sexual as coisas devem ser um tanto mais complicadas Mas para a psicologia não faz diferença que haja uma única substância ou duas ou inúmeras A psicanálise nos diz que devemos contar com uma só li bido que no entanto dispõe de metas isto é formas de satisfação ativas e passivas Nessa oposição sobretudo na existência de impulsos libidinais com metas passivas está contido o restante do problema IV Ao examinar a literatura psicanalítica sobre o assunto chegase à convicção de que tudo o que expus aqui já se encontra lá Seria desnecessário publicar este trabalho se não sucedesse que num campo de tão difícil acesso todo relato das observações pessoais e concepções próprias pode ter seu valor Além disso abordei várias coisas com maior precisão e delimiteias com maior cuidado Em alguns dos outros ensaios a exposição é um tanto confusa porque os prob lemas do Supereu e do sentimento de culpa são discutidos simultaneamente Isso eu pude evitar e ao relatar os diferentes desfechos dessa fase de desenvol vimento também não tratei das complicações que aparecem quando a menina graças à decepção com o pai volta para a mãe que havia abandonado ou 217286 repetidamente muda de uma posição para a outra no curso da vida Mas justa mente porque meu trabalho é apenas uma das contribuições sobre o tema posso me furtar a uma apreciação minuciosa da literatura e me restringir a destacar as concordâncias mais significativas com uns e as divergências mais importantes com outros A descrição feita por Abraham das Formas como se manifesta o complexo da castração feminino Äußerungsformen des weiblichen Kastrationskom plexes Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse vii 1921 ainda não foi su perada mas gostaríamos que tivesse incluído o fator da ligação inicial exclu siva com a mãe Devo concordar com os pontos essenciais do importante tra balho de Jeanne Lamplde Groot3Nele há o reconhecimento da completa identidade entre as fases préedípicas do menino e da menina e também a afirmação demonstrada por observações da atividade sexual fálica da men ina em relação à mãe O afastamento desta é ligado à influência da castração de que a menina toma consciência que a obriga a abandonar o objeto sexual e com isso frequentemente também a masturbação Todo o desenvolvimento é resumido na fórmula de que a menina passa por uma fase de complexo da Édipo negativo antes de entrar no positivo Vejo uma insuficiência desse trabalho no fato de apresentar o afastamento da mãe como simples mudança de objeto e não considerar que ele se realiza acompanhado de evidentes sinais de hostilidade Essa hostilidade é plenamente apreciada no último trabalho de Helene Deutsch Der feminine Masochismus und seine Beziehung zur Fri gidität O masoquismo feminino e sua relação com a frigidez Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 16 1930 onde também a atividade fálica da menina e a intensidade de sua ligação à mãe são reconhecidas Deutsch tam bém afirma que o voltarse para o pai acontece pela via das tendências passivas já despertadas na relação com a mãe Num livro publicado anteriormente Psychoanalyse der weiblichen Sexualfunktionen Psicanálise das funções sexuais femininas 1925 a autora ainda não havia dispensado a aplicação do esquema 218286 do Édipo à fase préedípica e por isso interpretou a atividade fálica da menina como identificação com o pai Fenichel Zur prägenitalen Vorgeschichte des Ödipuskomplexes Pré história prégenital do complexo de Édipo Internationale Zeitschrift für Psy choanalyse v 16 1930 enfatiza corretamente a dificuldade em discernir no material levantado na análise o que é conteúdo inalterado da fase préedípica e o que é deformado regressivamente ou de outra maneira Ele não admite a atividade fálica da menina conforme Jeanne Lamplde Groot e também di verge da antecipação do complexo de Édipo empreendida por Melanie Klein Frühstadien des Ödipuskonfliktes Primeiros estágios do conflito de Édipo Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 14 1928 cujo início ela já situa no começo do segundo ano de vida Essa datação que necessariamente modifica também a concepção de todo o restante do desenvolvimento não condiz efetivamente com os resultados da análise de adultos e é em especial incompatível com meus achados acerca da longa duração do vínculo pré edípico da garota com a mãe Uma maneira de atenuar essa discrepância é pro porcionada pela observação de que nessa área não somos ainda capazes de dis tinguir entre o que é rigidamente estabelecido por leis biológicas e o que é móvel e mutável por influxo de vivências casuais Como há muito se sabe quanto ao efeito da sedução também outros fatores o momento em que nasceram os irmãos a direta observação do ato sexual a conduta atenciosa ou insensível dos pais etc podem contribuir para a aceleração e maturação do desenvolvimento sexual infantil Alguns autores tendem a reduzir a importância dos primeiros e primordiais impulsos libidinais da criança em favor de processos de desenvolvimento pos teriores de modo que numa formulação extrema àqueles apenas restaria o papel de indicar certas direções enquanto as intensidades que tomam esses caminhos são providas por regressões e formações reativas posteriores Assim por exemplo Karen Horney Flucht aus der Weiblichkeit Fuga da 219286 feminilidade Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 12 1926 acha que a inveja primária do pênis é muito superestimada por nós enquanto atribui a intensidade do empenho por masculinidade depois exibido a uma inveja do pênis secundária utilizada pela garota para defenderse dos impulsos femini nos em especial da ligação feminina ao pai Isso não corresponde a nossas im pressões Por mais seguro que seja o fato dos reforços posteriores por re gressão e formação reativa por mais difícil que talvez seja estimar a força re lativa dos componentes libidinais que ali confluem acho que não devemos ig norar que os primeiros impulsos libidinais possuem uma intensidade superior à de todos que vêm depois que bem pode ser qualificada de incomensurável Sem dúvida é correto que existe oposição entre a ligação ao pai e o complexo da masculinidade tratase da oposição geral entre atividade e passividade masculinidade e feminilidade mas isso não nos dá direito a supor que um é primário e o outro deve sua força apenas à defesa E se a defesa contra a femin ilidade se mostra tão enérgica de onde pode ela retirar sua força se não do em penho por masculinidade que teve sua primeira expressão na inveja do pênis por parte da menina e por isso merece receber tal denominação Uma objeção similar se aplica à concepção de Jones Die erste Entwicklung der weiblichen Sexualität O primeiro desenvolvimento da sexualidade feminina Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 14 1928 segundo a qual o estágio fálico da garota seria antes uma reação protetora secundária do que um verdadeiro estágio de desenvolvimento Isso não cor responde nem às condições dinâmicas nem às cronológicas Percepção tradução que no presente contexto se deu a Einsicht as versões estrangeiras consultadas a espanhola de LopezBalesteros a argentina de Etcheverry a italiana da Bor inghieri a Standard inglesa e a holandesa da Boom oferecem reconocimiento intelección cog nizione insight inzicht cf nota à p 150s 220286 Percepções Einsichten em relação ao oferecido no parágrafo anterior há duas variações nas versões consultadas que apresentam nociones intelecciones cognizioni ideas inzichten 1 No conhecido caso estudado por Ruth Mack Brunswick Die Analyse eines Eifersucht swahnes Análise de um ciúme delirante Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 14 1928 a afecção vem diretamente da fixação préedípica na irmã A expressão foi introduzida por Jung Freud já a havia dispensado em Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina 1920 2 Podese prever que os analistas com opiniões feministas assim como as mulheres analistas não estarão de acordo com essas declarações Dificilmente deixarão de objetar que tais teorias provêm do complexo de masculinidade do homem e servem para justificar teoricamente sua inata propensão a rebaixar e oprimir a mulher Mas esse tipo de argumentação psicanalítica nos lembra nesse caso a famosa faca de dois gumes de Dostoiévski cf Os irmãos Karamázov livro xii cap x Os oponentes dos que assim falam acharão compreensível por sua vez que o sexo feminino não queira admitir o que parece contrariar a tão ansiada igualdade com o homem Traslado Überschreibung nas versões estrangeiras consultadas transferencia endoso tra passo carrying over transfer O emprego de transferencia pelo tradutor espanhol pode levar a confusão com o notório conceito de transferência Übertragung o mesmo não ocorre na ver são holandesa taransfer pois overdracht é o termo reservado para o conceito Na mesma frase do objeto materno para o paterno traduz vom Mutter auf das Vaterobjekt o tradutor argen tino preferiu objetomadre e objetopadre o inglês apenas mother e father o espanhol e o italiano utilizaram adjetivos como nós e o holandês fez exatamente como o original beneficiandose da grande afinidade com o alemão Ímpeto tradução aqui dada ao termo Drang do qual o dicionário alemãoportuguês de Udo Schau Porto 1989 apresenta os seguintes sentidos necessidade pressão aperto literal e figurado ímpeto impulso versão que lhe demos em Os instintos e seus destinos de 1915 ânsia etc As versões estrangeiras consultadas trazem império esfuerzo spinta stress druk cf capítulo sobre o termo em Luiz Alberto Hanns Dicionário comentado do alemão de Freud Rio de Janeiro Imago 1997 Cabe lembrar que em alemão há uma só palavra Angst para medo e angústia 221286 Desejos Wunschregungen foi traduzida por um só termo a palavra composta cunhada por Freud que literalmente significaria impulsos de desejo como também é vertida em outras passagens desta edição As versões estrangeiras consultadas apresentam deseos mo ciones de deseo moti di desiderio wishful impulses wensimpulsen Cabe registrar como fez Strachey numa nota que os trabalhos discutidos em seguida foram publicados depois de Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos 1925 em que Freud já expunha a maioria das concepções do presente ensaio mas ao qual não faz referência aqui 3 Zur Entwicklungsgeschichte des Ödipuskomplexes der Frau A evolução do complexo de Édipo na mulher Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 13 1927 Atendendo à solicit ação da autora corrijo aqui seu nome que na Zeitschrift Revista apareceu como A Lamplde Groot Strachey observa que raramente Freud usa essa palavra sem um qualificativo na Inter pretação dos sonhos é frequente a expressão intensidade psíquica por exemplo e que ela seria um equivalente de quantidade termo bastante empregado no Esboço ou Projeto de uma psicologia de 1895 222286 A CONQUISTA DO FOGO 1932 TÍTULO ORIGINAL ZUR GEWINNUNG DES FEUERS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 18 N 1 PP 813 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 39 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 44554 Numa nota a meu ensaio O malestar na civilização mencionei apenas de passagem a conjectura que era possível formar sobre a conquista do fogo pelo homem primitivo com base no material psicanalítico A objeção de Al brecht Schaeffer e a notável referência de Erlenmeyer na comunicação an terior à proibição mongol de urinar sobre cinzas1 levamme a retomar esse tema2 Acho que minha hipótese de que a precondição para se apoderar do fogo foi a renúncia ao prazer de matiz homossexual de apagálo com o jato de urina pode ser confirmada pela interpretação do mito grego de Prometeu desde que levemos em conta as previsíveis distorções na passagem do fato para conteúdo do mito Essas distorções são do mesmo tipo e não mais graves que as que reconhecemos diariamente quando reconstruímos a partir de sonhos dos pacientes suas vivências infantis reprimidas mas de enorme significado Os mecanismos nelas utilizados são a representação por símbolos e a trans formação no contrário Não ouso explicar todos os traços do mito dessa forma além dos fatos originais eventos posteriores talvez tenham contribuído para o seu conteúdo Mas os elementos que admitem uma interpretação psicanalítica são justamente os mais insólitos e mais importantes a saber o modo como Prometeu carrega o fogo a natureza do ato sacrilégio crime fraude contra os deuses e o sentido de seu castigo O titã Prometeu um herói cultural que ainda é divino3 talvez original mente um demiurgo e criador de seres humanos leva para os mortais o fogo que tirou dos deuses escondido numa vara oca num caniço de funcho Numa interpretação de sonho compreenderíamos esse objeto como símbolo do pênis ainda que nos incomode a peculiar ênfase na sua cavidade Mas como relacionar esse caniçopênis com a preservação do fogo Parece algo impos sível até que nos lembramos do processo tão comum nos sonhos de trans formação no contrário de inversão dos laços que frequentemente esconde o sentido de um sonho O que o homem abriga em seu caniçopênis não é o fogo mas ao contrário o meio para extinguir o fogo a água do seu jato de urina Essa relação entre fogo e água se vincula a um rico e bem conhecido material analítico Em segundo lugar a aquisição do fogo é um sacrilégio ele é obtido medi ante roubo ou furto Eis um traço constante das lendas sobre a conquista do fogo ele se acha nos povos mais diversos e mais distantes não apenas no mito grego de Prometeu Nisso deve estar portanto o conteúdo essencial de uma distorcida reminiscência da humanidade Mas por que a aquisição do fogo está inseparavelmente ligada à ideia de um crime Quem é o fraudado o prejudic ado Na lenda narrada por Hesíodo há uma resposta direta pois numa outra história não diretamente relacionada ao fogo Prometeu engana Zeus e favorece os homens na preparação do sacrifício Portanto os deuses são fraudados É notório que o mito concede aos deuses a satisfação de todos os desejos a que o ser humano tem de renunciar como sabemos do incesto Diríamos em linguagem psicanalítica que a vida instintual o Id é o deus en ganado com a renúncia à extinção do fogo um desejo humano é transformado em privilégio divino na lenda Mas nela a divindade nada possui do caráter de um Supereu é ainda representante da poderosa vida instintual A transformação no contrário aparece de modo mais radical num terceiro traço da lenda na punição do portador do fogo Prometeu é acorrentado a uma rocha e diariamente um abutre come do seu fígado Nos mitos do fogo de outros povos há também um pássaro ele deve ter algum papel de relevo abstenhome de uma interpretação no momento Mas nos sentimos em terreno mais firme quando se trata de explicar por que o fígado é escolhido como o ponto do castigo Para os antigos esse órgão era a sede de todos os desejos e paixões de modo que uma punição como a de Prometeu era a mais correta para um criminoso arrastado pelos impulsos que cometera uma ofensa im pelido por maus apetites Mas o exato oposto é verdadeiro para o Portador do Fogo ele exerceu a renúncia instintual e mostrou quão benéfica e também in dispensável ela é para os propósitos da cultura E por que tal benefício cultural foi tratado na lenda como um crime merecedor de punição Ora se ela deixa 225286 transparecer através de todas as distorções que a conquista do fogo teve por premissa uma renúncia instintual então exprime abertamente o rancor que a humanidade movida pelos impulsos inevitavelmente sentiu pelo herói cultural E isso concorda com nossas percepções e expectativas Sabemos que a solicit ação à renúncia instintual e a imposição desta provocam hostilidade e agressividade que somente numa fase posterior do desenvolvimento psíquico se transformam em sentimento de culpa A opacidade da lenda de Prometeu como de outros mitos relativos ao fogo é aumentada pela circunstância de que para o homem primitivo o fogo devia ser algo semelhante à paixão amorosa um símbolo da libido diríamos O calor que o fogo irradia evoca a mesma sensação que acompanha o estado de excitação sexual e a chama lembra na forma e nos movimentos o falo em ação Não há dúvida de que para a sensibilidade mítica a chama parecia um falo é inclusive testemunha disso a lenda sobre Sérvio Túlio o rei ro mano Ao falar do devorador fogo da paixão e das chamas que lambem comparando as chamas a uma língua nós mesmos não nos afastamos muito da maneira de pensar dos nossos ancestrais E na explicação que oferecemos para a conquista do fogo já havia o pressuposto de que a tentativa de apagar o fogo com a própria urina significava para o homem primitivo uma prazerosa luta com outro falo Pela via desta aproximação simbólica outros elementos puramente fantásticos podem haver penetrado no mito e se entrelaçado com os elementos históricos Assim é difícil furtarse à ideia de que se o fígado é a sede da paixão simbolicamente significa o mesmo que o fogo e sua cotidiana devor ação e restauração constitui um pertinente retrato do comportamento dos desejos amorosos que são diariamente satisfeitos e diariamente se renovam E o pássaro que se sacia no fígado teria o significado do pênis que tampouco lhe é estranho como se pode ver em lendas sonhos expressões de linguagem e representações plásticas da Antiguidade Indo um pouco adiante temos o pás saro Fênix que ressurge de cada morte no fogo e que provavelmente 226286 significou antes o pênis revivescido após o adormecimento mais que o sol de clinando no crepúsculo e depois novamente nascendo na alvorada Podemos perguntar se é lícito atribuir à atividade mitopoética a tentativa como que por brincadeira de dar representação disfarçada a processos psíquicos com expressão corporal universalmente conhecidos mas também extremamente interessantes sem outro motivo do que o simples prazer de rep resentar Certamente não é possível dar uma resposta segura a essa questão sem haver compreendido a natureza do mito mas nesses dois casos é fácil re conhecer o mesmo conteúdo e assim uma tendência determinada Os dois mostram a restauração dos desejos libidinais após sua extinção mediante a saciedade ou seja sua indestrutibilidade e essa ênfase é inteiramente ad equada enquanto consolo se o núcleo histórico do mito trata de uma derrota da vida instintual de uma renúncia instintual tornada necessária É como a se gunda parte da compreensível reação do homem primevo magoado em sua vida instintual após a punição do criminoso a garantia de que no fundo ele em nada prejudicou Deparamos com a inversão no oposto em local inesperado num outro mi to que aparentemente tem pouca relação com o do fogo A hidra de Lerna com suas numerosas cabeças de serpente a se agitar uma delas imortal é um dragão da água como atesta seu nome Héracles herói cultural combate a cortandolhe as cabeças mas elas sempre tornam a nascer e ele só domina o monstro depois de queimar com fogo a cabeça imortal Um dragão da água vencido pelo fogo é algo que não tem sentido este aparece como em mui tos sonhos na inversão do conteúdo manifesto Então a hidra é um fogo as cabeças de serpente que se agitam são as chamas do fogo e provando sua natureza libidinal elas exibem como o fígado de Prometeu o fenômeno do renascimento da renovação após a tentativa de destruição Héracles extingue esse fogo com água A cabeça imortal é provavelmente o falo mesmo e seu aniquilamento a castração Mas Héracles é também o libertador de Prometeu pois mata o pássaro que lhe devora o fígado Não deveríamos imaginar um 227286 laço mais profundo entre os dois mitos É como se o ato de um herói fosse compensado pelo outro Prometeu havia proibido a extinção do fogo como na lei dos mongóis e Héracles a permitiu no caso do fogo ameaçador O segundo mito parece corresponder à reação de uma época posterior da cul tura ao evento da aquisição do fogo Temse a impressão de que a partir desse ponto seria possível penetrar bastante nos mistérios do mito mas a ver dade é que a sensação de certeza nos acompanha somente por um breve trecho Quanto à oposição entre fogo e água que governa todo o âmbito desses mitos além do fator histórico e do simbólicofantástico podese indicar um terceiro um dado fisiológico que o poeta Heinrich Heine descreveu nestas linhas Com o que lhe serve para urinar O homem gera seu igual O membro do homem tem duas funções cuja coexistência é motivo de ir ritação para alguns Permite o esvaziamento da bexiga e realiza o ato amoroso que apazigua o anseio da libido genital A criança ainda acredita que pode re unir as duas funções conforme sua teoria os bebês vêm ao mundo pelo fato de o homem urinar dentro da mulher Mas o adulto sabe que os dois atos são in conciliáveis na realidade tão inconciliáveis como fogo e água Quando o membro se acha no estado de excitação que o fez ser comparado a um pássaro e enquanto são experimentadas as sensações que lembram o calor do fogo o ato de urinar é impossível e inversamente quando ele é empregado para ex pelir a água do corpo todos os seus laços com a função genital parecem extin tos A oposição entre as duas funções poderia nos levar a dizer que o homem apaga seu fogo com sua própria água E o homem primevo obrigado a en tender o mundo externo com ajuda das sensações e condições de seu próprio corpo não teria deixado de perceber e utilizar as analogias que o comporta mento do fogo lhe indicava 228286 Tratase da longa nota da parte iii Der Mensch und das Feuer O homem e o fogo em Die Psychoanalytische Bewegung O Movimento Psicanalítico ano ii 1930 p 201 Notiz zur Freudschen Hypothese über die Zähmung des Feuers Nota à hipótese freudi ana sobre a domesticação do fogo Imago v 18 p 5 Esse breve texto de Erlenmeyer apareceu logo antes do presente artigo de Freud no mesmo número da revista 1 Provavelmente sobre cinzas quentes de que ainda se pode obter fogo não sobre cinzas frias 2 A objeção de Lorenz em Chaos und Ritus Imago v 17 1931 pp 433 ss parte da premissa de que a domesticação do fogo teria começado apenas quando o ser humano descobriu que era capaz de suscitálo quando quisesse por meio de alguma manipulação Mas o dr J Hárnik nos assinala uma observação do dr Richard Lasch na compilação de Georg Buschan Illustrierte Völkerkunde Etnologia ilustrada Stuttgart 1922 v I p 24 É de supor que a arte de conservar o fogo precedeu em muito aquela de produzilo uma evidência disso está no fato de que os aborígines das Andamanes semelhantes a pigmeus possuem e conser vam atualmente o fogo embora não conheçam um método próprio de gerálo 3 Pois Héracles é semidivino e Teseu inteiramente humano Arrastado pelos impulsos triebhaft adjetivo de Trieb nas versões estrangeiras consultadas instintivo movido por sus pasiones istigato dalle passioni driven by instinct Na mesma frase im pelido é tradução de unter dem Antrieb no trecho que o tradutor argentino verte mais literal mente por bajo la impulsión de malas apetencias e o inglês por at the prompting of evil desires Segundo uma versão da lenda Ocrísia escrava do rei Tarquínio o Antigo foi fecundada por uma chama em forma de falo enquanto fazia libações e assim concebeu Sérvio Túlio No original Was dem Menschen dient zum Seichen Damit schafft er Seinesgleichen 229286 MEU CONTATO COM JOSEF POPPERLYNKEUS 1932 TÍTULO ORIGINAL MEINE BERÜHRUNG MIT JOSEF POPPERLYNKEUS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ALLGEMEINE NÄHRPFLICHT VIENA 15 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 2616 Foi no inverno de 1899 que apareceu finalmente meu livro A interpretação dos sonhos prédatado para o novo século Ele era o resultado de um trabalho de quatro ou cinco anos e se originara de forma incomum Tendo me capacitado para lecionar doenças nervosas na Universidade eu procurava sustentar minha família que rapidamente crescia dando assistência médica aos chamados neuróticos bastante numerosos em nossa sociedade Mas a tarefa se revelou mais difícil do que o esperado Os métodos de tratamento habituais pouco ou nada adiantavam era preciso buscar novos caminhos E como era possível ajudar os doentes se nada se compreendia de seus males das causas de seus sofrimentos do significado de suas queixas Por isso busquei orientação e in strução com mestre Charcot em Paris com Bernheim em Nancy e uma ob servação de meu experiente amigo Josef Breuer de Viena pareceu enfim abrir novas perspectivas para a compreensão e a influência terapêutica Essas novas experiências trouxeram a certeza de que as pessoas que chamamos doentes neuróticos sofriam de distúrbios psíquicos em determ inado sentido e portanto deviam ser tratadas com meios psíquicos Nosso in teresse teve de se voltar para a psicologia Mas o que a ciência da psique então vigente nos cursos de filosofia tinha a oferecer era muito pouco e inútil para os nossos propósitos precisávamos inventar tanto os métodos como suas premissas teóricas Trabalhei então nesse sentido primeiro em colaboração com Breuer depois independentemente dele Por fim tornouse parte de minha técnica requerer que os pacientes me informassem de modo acrítico tudo o que lhes passasse pela cabeça inclusive os pensamentos que não podiam explicar e que lhes era penoso comunicar Quando seguiam minhas instruções eles me relatavam também seus son hos como se estes fossem da mesma espécie que seus outros pensamentos Era uma clara indicação para que eu desse aos sonhos o mesmo valor que às de mais produções compreensíveis Eles não eram compreensíveis porém e sim estranhos embaralhados absurdos como são mesmo os sonhos e por isso foram condenados pela ciência como meros espasmos do órgão psíquico car entes de sentido e de finalidade Se meus pacientes estavam certos e eles apen as pareciam repetir a milenária crença da humanidade não científica eu me de frontava com a tarefa de uma interpretação dos sonhos que pudesse resistir à crítica da ciência Claro que inicialmente eu não compreendia dos sonhos de meus pacientes mais do que eles mesmos Mas na medida em que apliquei a esses sonhos e es pecialmente aos meus próprios o procedimento de que já me servira ao estudar outras formações psíquicas anormais consegui responder à maioria das questões que uma interpretação dos sonhos podia lançar Havia muitas delas com o que sonhamos Por que sonhamos afinal De onde vêm todas as singulares características que distinguem o sonho do pensamento desperto E outras questões assim Algumas das respostas eram fáceis de se obter mostravam ser confirmação de pontos de vista já manifestados anteriormente enquanto outras requeriam suposições realmente novas quanto à estrutura e ao funcionamento de nosso aparelho psíquico As pessoas sonham com o que mexeu com a psique durante o dia quando se estava acordado sonham para aquietar os impulsos que ameaçam perturbar o sono para poder prosseguir com ele Mas como é possível que o sonho pareça tão estranho tão absurda mente confuso tão contrário ao teor do pensamento desperto quando se ocu pa do mesmo material Certamente ele seria apenas o sucedâneo de uma atividade mental racional e poderia ser interpretado isto é traduzido para essa atividade mas o que pediria explicação seria o fato da deformação que o tra balho do sonho realiza no material racional e compreensível A deformação onírica era o problema mais profundo e mais difícil da vida dos sonhos E para seu esclarecimento cheguei à consideração seguinte que pôs os sonhos na mesma linha de outras formações psicopatológicas revelou os como a psicose normal do ser humano por assim dizer Nossa psique este precioso instrumento mediante o qual nos afirmamos na vida não é uma unidade pacificamente fechada em si sendo antes comparável a um Estado 232286 moderno em que uma massa sequiosa de prazer e destruição tem de ser con tida pela força de uma prudente camada superior Tudo o que em nossa vida mental se agita e acha expressão em nossos pensamentos é derivado e repres entante dos vários instintos que nos são dados em nossa constituição física Mas esses instintos não são todos igualmente passíveis de norteamento e edu cação para se adequar às exigências do mundo externo e da sociedade hu mana Alguns deles mantêm seu caráter indômito original se os deixássemos à vontade certamente nos levariam à ruína Assim escarmentados que somos desenvolvemos organizações em nossa psique que se contrapõem à direta manifestação instintual em forma de inibições O que emerge das fontes das forças instintuais como desejo tem de submeterse ao exame de nossas instân cias psíquicas supremas e caso elas não o aprovem é rejeitado e impedido de influir sobre nossa motilidade ou seja de alcançar realização Com frequência é negado a esses desejos até mesmo o acesso à consciência que em geral ig nora inclusive a existência das fontes instintuais perigosas Dizemos então que para a consciência esses impulsos são reprimidos e subsistem apenas no inconsciente Se o reprimido consegue irromper em algum lugar rumo à con sciência ou à motilidade ou ambas então já não somos normais Então desen volvemos toda a série de sintomas neuróticos e psicóticos A manutenção das inibições e repressões que se tornaram necessárias impõe à nossa psique uma considerável aplicação de forças da qual ela descansa de bom grado O sono noturno parece oferecer uma boa oportunidade para isso já que envolve a sus pensão de nossas operações motoras Como a situação não parece perigosa atenuamos o rigor de nossa força policial interna Não a retiramos completa mente pois não podemos saber talvez o inconsciente não durma jamais E o relaxamento da pressão sobre ele tem seu efeito Desde o inconsciente reprim ido surgem desejos que ao menos durante o sono acham livre acesso à con sciência Se nos inteirássemos deles ficaríamos horrorizados com seu teor com sua desmesura com a mera possibilidade de que existam Mas isso rara mente ocorre e então despertamos com toda a rapidez tomados de angústia 233286 Via de regra nossa consciência não toma conhecimento do sonho tal como ele realmente se deu As forças inibidoras a censura onírica como gostamos de chamálas não ficam inteiramente despertas é verdade mas tampouco dormem inteiramente Influenciam o sonho quando ele luta por exprimirse em palavras e imagens eliminam as coisas mais chocantes e modificam outras até tornálas irreconhecíveis dissolvem nexos autênticos e introduzem falsas relações até que a honesta mas brutal fantasia por trás do sonho se torne o sonho manifesto que recordamos confuso em maior ou menor grau quase sempre estranho e incompreensível De modo que o sonho a deformação onírica é a expressão de um compromisso a evidência do conflito entre os im pulsos e os empenhos inconciliáveis de nossa vida psíquica E não es queçamos o mesmo processo o mesmo jogo de forças que nos explica o sonho da pessoa normal também nos fornece a chave para a compreensão de todos os fenômenos neuróticos e psicóticos Peço desculpas por haver falado tanto até agora acerca de mim e do meu trabalho com os problemas do sonho foi o pressuposto necessário para o que se segue Minha explicação para a deformação onírica me parecia nova em nenhum lugar eu havia encontrado algo assim Anos depois já não sei dizer quantos caíramme nas mãos as Fantasias de um realista de Josef Popper Lynkeus Uma das histórias desse livro chamavase Sonhar como estar acordado Träumen wie Wachen inevitavelmente ela despertou meu forte interesse Mostrava um homem que podia se gabar de nunca haver son hado uma coisa sem sentido Seus sonhos podiam ser fantásticos como as fábu las mas não se achavam em contradição tal com o mundo desperto que se pudesse afirmar decididamente que eram impossíveis ou absurdos em si mesmos Isto significava traduzido para meu modo de expressão que nesse homem não havia deformação onírica e descobrindose a razão de sua ausên cia também se percebia a razão para o seu surgimento Popper fez o homem ter plena compreensão das causas de sua peculiaridade Em meus pensamen tos como em meus sentimentos reinam ordem e harmonia e eles também não 234286 lutam entre si eu sou um não dividido os outros são divididos e suas duas partes sonhar e estar acordado quase sempre estão em guerra uma com a outra Ele também diz sobre a interpretação dos sonhos Certamente é uma tarefa difícil mas com alguma atenção o próprio indivíduo que sonha deveria conseguir realizála Por que geralmente não o consegue Parece existir em vocês algo oculto nos sonhos algo pessoalmente impudico um certo sigilo no seu ser que dificilmente se pode exprimir por isso é tão frequente os seus son hos não terem sentido serem até mesmo uns disparates No fundo porém a coisa não é assim nem pode ser assim porque se trata sempre da mesma pess oa esteja ela acordada ou sonhando Deixando de lado uma terminologia psicológica essa explicação para a de formação onírica era a mesma a que eu havia chegado em meus estudos sobre os sonhos A deformação era um compromisso algo insincero por natureza o resultado de um conflito entre pensamento e sentimento ou como eu havia colocado entre o que é consciente e o que é reprimido Quando esse conflito não existia não precisava ser reprimido os sonhos podiam não ser estranhos e absurdos No homem que não sonhava de forma diferente da que pensava est ando acordado Popper fez vigorar a harmonia interna que era seu objetivo como reformador social estabelecer no corpo político E se a ciência nos diz que tal homem livre de falsidade e máfé e sem quaisquer repressões não ex iste e não seria viável podemos imaginar que até onde é possível uma aprox imação a esse estado ideal ela foi realizada na pessoa mesma de Popper Assombrado pelo encontro com sua sabedoria comecei a ler todas as suas obras aquelas sobre Voltaire sobre a religião a guerra o dever de alimentar a todos etc até que a imagem do grande homem simples que foi um pensador e crítico e simultaneamente um bondoso humanitário e um reformador formouse claramente diante de meus olhos Pensei muito sobre os direitos do indivíduo que ele defendia e que de bom grado eu também advogaria se não fosse tolhido pela consideração de que nem a conduta da natureza nem as metas da sociedade humana justificam plenamente essas reivindicações Uma 235286 simpatia especial me atraía para ele pois era evidente que também ele percebia dolorosamente a amargura da vida judaica e o vazio dos ideais da cultura atual No entanto nunca o encontrei pessoalmente Ele sabia de mim através de con hecidos em comum e certa vez respondi uma carta que me enviara solicitando uma informação Mas eu não o procurava Minhas inovações em psicologia haviam afastado de mim os contemporâneos sobretudo os mais velhos entre eles com frequência ao me aproximar de um homem que eu reverenciava à distância vime como que repelido por sua falta de compreensão pelo que para mim era já o conteúdo de minha existência E Josef Popper vinha da física fora amigo de Ernst Mach eu não queria que se estragasse a feliz im pressão de nossa concordância no problema da deformação onírica Assim ocorreu que fui adiando uma visita até que foi tarde demais e pude apenas cumprimentar seu busto no parque de nossa prefeitura Afirmamos versão literal do original behaupten mas esse admite outros sentidos no con texto como os de imporse e manterse adotados nas versões espanhola e inglesa respectivamente 236286 POR QUE A GUERRA CARTA A EINSTEIN 1932 TÍTULO ORIGINAL WARUM KRIEG PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO JUNTAMENTE COM UMA CARTA DE EINSTEIN PARIS INTERNATIONALES INSTITUT FÜR GEISTIGE ZUSAMMENARBEIT VÖLKERBUND INSTITUTO INTERNACIONAL DE COOPERAÇÃO INTELECTUAL LIGA DAS NAÇÕES 1933 62 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 1327 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 27186 EM 1931 AS DUAS INSTITUIÇÕES QUE PATROCINARAM A PUBLICAÇÃO SOLICITARAM A INTELECTUAIS DE RELEVO QUE TROCASSEM CARTAS SOBRE TEMAS DO INTERESSE GERAL DOS POVOS ALBERT EINSTEIN UM DOS PRIMEIROS A SER CONTATADO ESCOLHEU O TEMA E O INTERLOCUTOR DESSA CORRESPONDÊNCIA A CARTA DE EINSTEIN QUE ABRE O VOLUME TEM APENAS TRÊS PÁGINAS SEUS PRINCIPAIS PONTOS SÃO REPRODUZIDOS NA CARTA DE FREUD Viena setembro de 1932 Caro senhor Einstein Quando soube que tinha a intenção de convidarme para uma troca de idei as sobre um tema que lhe interessa e que também lhe parece digno do interesse de outros concordei de imediato Pensava que escolheria um problema situ ado nos limites do que hoje podemos conhecer para o qual cada um de nós tanto o físico como o psicólogo criasse sua via particular de acesso de modo que os dois chegassem ao mesmo terreno a partir de lados diversos Mas o sen hor me surpreendeu ao lançar a questão de o que é possível fazer para livrar os homens da fatalidade da guerra Inicialmente fiquei assustado com a noção de minha quase diria nossa incompetência pois isso me pareceu uma tarefa prática que cabe aos estadistas Depois compreendi que não levantou a questão como cientista mas como indivíduo humanitário que responde ao es tímulo da Liga das Nações à maneira de Fridtjof Nansen o explorador do Polo quando assumiu a tarefa de socorrer os famintos e desabrigados da Grande Guerra Também refleti que não se espera que eu dê sugestões prátic as que apenas devo indicar como se apresenta numa abordagem psicológica o problema da prevenção da guerra Mas a respeito disso o senhor já expressou quase tudo em sua carta Como que tirou o vento de minhas velas mas é de bom grado que sigo em sua es teira e me atenho a confirmar o que diz na medida em que o desenvolvo se gundo meu melhor conhecimento ou conjectura O senhor começa com a relação entre direito e poder Este é sem dúvida o ponto de partida correto para a nossa investigação Posso substituir a palavra poder por aquela mais dura e mais forte que é violência Direito e viol ência são atualmente opostos para nós É fácil mostrar que aquele se desen volveu a partir desta e se remontamos aos primórdios e averiguamos como sucedeu primeiramente isto a solução do problema nos ocorre sem grande es forço Queira me desculpar no entanto se agora relato coisas sabidas e recon hecidas como se fossem novas o fio do argumento me leva a isso Em princípio portanto conflitos de interesse entre os homens se resolvem mediante o emprego da violência Assim é em todo o reino animal do qual o ser humano não tem como se excluir Mas a isto se juntam no caso dele con flitos de opinião que atingem altos graus de abstração e parecem exigir outra técnica de decisão Esta é uma complicação posterior contudo No início numa pequena horda humana a força muscular decidia quem era dono de algo ou qual vontade iria prevalecer Logo a força muscular é reforçada ou sub stituída pelo uso de instrumentos vence quem possui as melhores armas ou as emprega mais habilmente Com a introdução de armas a superioridade in telectual começa a tomar o lugar da pura força física o propósito da luta per manece o mesmo uma das partes graças aos danos que sofre ou à paralisação de suas forças é obrigada a abandonar sua reivindicação ou oposição Isso é alcançado de modo mais completo se a violência elimina duradouramente o adversário ou seja matao Há duas vantagens nisso o inimigo não pode reto mar a hostilidade e o destino que sofreu desestimula outros de seguirem seu exemplo Além disso a morte do adversário satisfaz uma inclinação instintual de que falaremos adiante À intenção de matar talvez se oponha a reflexão de que o inimigo pode ser empregado em serviços úteis quando é deixado com vida e amedrontado Então a violência se limita a subjugálo em vez de matá lo É quando se começa a poupar o inimigo mas doravante o vencedor tem de contar com a expectante sede de vingança do vencido sacrifica uma parte de sua segurança Esse é o estado original o domínio do poder maior da violência crua ou apoiada na inteligência Sabemos que esse regime foi alterado no curso do desenvolvimento que houve um caminho da violência para o direito mas qual Um único caminho creio eu que considerou o fato de que a maior força 239286 de um podia ser compensada pela união de vários fracos Lunion fait la force A violência é derrotada pela união o poder daqueles unidos passa a representar o direito em oposição à violência de um indivíduo Vemos que o direito é o poder de uma comunidade É ainda violência pronta a se voltar contra todo indivíduo que a ela se oponha trabalha com idênticos meios persegue os mesmo fins A diferença está apenas em que não é mais a violência de um só indivíduo que se impõe mas da comunidade Para que se realize essa transição da violência para o direito no entanto é preciso que uma condição psicológica seja satisfeita A união de muitos tem de ser constante duradoura Caso ela se produzisse apenas para combater um indivíduo poderoso e se desf izesse após têlo vencido nada seria alcançado Um outro que se considerasse mais forte ambicionaria de novo o domínio pela violência e o jogo não teria fim A comunidade precisa ser mantida de forma permanente precisa se or ganizar criar preceitos que previnam as temidas rebeliões estabelecer órgãos que velem pela obediência aos preceitos às leis e cuidem da execução dos atos de violência legítimos O reconhecimento de uma comunidade de in teresses produz vínculos afetivos entre os membros de um grupo unido de pessoas sentimentos comunitários que são a base de sua autêntica força Com isso creio todo o essencial está presente a superação da violência mediante a transferência do poder para uma unidade maior que é mantida por vínculos afetivos entre seus membros Tudo o mais vem a ser expansão e re petição Enquanto a comunidade consiste apenas em pequeno número de indi víduos igualmente fortes a situação é simples As leis desta associação determ inam até que ponto o indivíduo deve renunciar à liberdade pessoal de aplicar violentamente a sua força a fim de tornar possível uma coexistência segura Mas semelhante estado de repouso é concebível apenas teoricamente na real idade as coisas se complicam pelo fato de que desde o princípio a comunidade abrange elementos de poder desigual homens e mulheres pais e filhos e em consequência de guerras e conquistas vencedores e vencidos que se 240286 transformam em senhores e escravos Então o direito da comunidade se torna expressão das desiguais relações de poder em seu interior as leis são feitas por e para os que dominam reservando poucos direitos para os dominados Daí em diante há duas fontes de inquietação relativamente ao direito na comunid ade mas também de aperfeiçoamento do direito Primeiro tentativas de al guns dos senhores se colocarem acima das restrições vigentes para todos ou seja retrocederem do domínio do direito para o domínio da violência se gundo constantes esforços dos oprimidos para conquistar mais poder e ter es sas mudanças reconhecidas em lei para bem ao contrário ir do direito desigual ao direito igual para todos Essa última corrente se torna particular mente significativa quando no interior da comunidade há verdadeiros desloca mentos nas relações de poder como pode ocorrer devido a fatores históricos diversos Então o direito pode gradualmente se adequar às novas relações de poder ou o que é mais frequente a classe dominante se recusa a levar em con ta essa mudança e chegase à rebelião à guerra civil ou seja à temporária suspensão do direito e a novos ensaios violentos após os quais é instaurada uma nova ordem jurídica Também há uma fonte de alteração do direito que aparece apenas de maneira pacífica é a mudança cultural dos membros da comunidade mas pertence a um contexto que somente depois poderá ser considerado Vemos então que também no interior de uma comunidade a solução viol enta de conflitos de interesse não foi evitada Mas as necessidades e as coisas em comum que surgem naturalmente quando se convive no mesmo solo favorecem uma rápida conclusão dessas lutas e cresce a probabilidade de soluções pacíficas em tais condições Mas um olhar sobre a história da human idade nos mostra uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra ou várias outras entre unidades maiores e menores cidades províncias tribos povos reinos que quase sempre são resolvidos mediante a prova de força da guerra Tais guerras resultam no saque ou na completa sujeição na conquista de uma das partes Não podemos julgar da mesma forma todas as 241286 guerras de conquista Algumas como as dos mongóis e dos turcos causaram apenas infortúnio outras no entanto contribuíram para a transformação da violência em direito na medida em que estabeleceram unidades maiores no interior das quais se tornava impossível o uso da violência e uma nova ordem jurídica aplainava os conflitos As conquistas dos romanos deram aos países do Mediterrâneo a preciosa pax romana O afã de expansão dos reis franceses cri ou uma França próspera pacificamente unida Ainda que pareça paradoxal devemos admitir que a guerra não seria um meio inadequado para a geração da ansiada paz eterna pois é capaz de criar essas grandes unidades no interior das quais um forte poder central abole a possibilidade de outras guerras Mas não se presta para isso afinal porque os resultados da conquista normalmente não são duradouros as novas unidades tornam a se dissolver em geral devido à falta de coesão das partes unidas violentamente Além disso até agora a con quista pôde criar apenas unificações parciais embora também de grande ex tensão cujos conflitos provocaram mais ainda a solução violenta Assim a consequência de todos esses esforços guerreiros foi apenas que a humanidade trocou numerosas mesmo intermináveis pequenas guerras por raras mas tanto mais devastadoras grandes guerras Aplicando isso ao nosso tempo obtémse o mesmo resultado que o senhor alcançou por via mais curta Uma segura prevenção da guerra é possível apen as se os homens se unirem na instituição de um poder central ao qual seja transferida a decisão em todos os conflitos de interesses Claramente isso en volve duas exigências diversas que seja criada uma tal instância superior e que lhe seja dado o poderio necessário De nada valeria apenas uma dessas coisas Ora a Liga das Nações foi pensada como uma instância desse tipo mas a outra condição não foi preenchida ela não tem poderio próprio e pode têlo apenas se os membros da nova união os Estados individuais o cederem Há pouca perspectiva disso no momento O significado da instituição da Liga das Nações nos fugirá completamente se não levarmos em conta que essa é uma 242286 tentativa ousada que raramente talvez nunca em tal escala se fez na história da humanidade É a tentativa de conquistar mediante a invocação de certas atitudes ideais a autoridade isto é a influência coerciva que or dinariamente se baseia na posse da força Vimos que duas coisas mantêm uma comunidade a coação da violência e as ligações afetivas identificações é o termo técnico entre seus membros Se falta um desses fatores possivel mente o outro pode manter de pé a comunidade Naturalmente aquelas ideias têm significado apenas se dão expressão a importantes coisas em comum entre os membros Perguntase então que força elas podem ter A história ensina que de fato elas exerceram influência A ideia panhelênica por exemplo a consciência de que os gregos seriam melhores do que os bárbaros ao seu redor que se expressou intensamente nas anfictionias nos oráculos e nos jogos era forte o bastante para mitigar os costumes de guerra entre os gregos mas evid entemente não foi capaz de prevenir disputas guerreiras entre partículas do povo grego nem sequer de impedir que uma cidade ou liga de cidades se jun tasse ao inimigo persa em detrimento de um rival O forte sentimento que unia os cristãos também não evitou que durante o Renascimento pequenos e grandes Estados cristãos solicitassem a ajuda do sultão nas guerras que trav aram entre si E não existe em nosso tempo uma ideia a que possamos atribuir uma autoridade unificadora desse tipo É evidente que os ideais nacionais que hoje vigoram entre os povos têm efeito contrário Há pessoas que vaticinam que apenas a difusão geral do pensamento bolchevista porá fim às guerras mas em todo caso atualmente estamos muito longe dessa meta e talvez ela fosse alcançada apenas após terríveis guerras civis Assim parece mesmo que a tentativa de substituir o poder real pelo poder das ideias ainda se acha con denado ao fracasso É um erro de cálculo não considerar que originalmente o direito era força bruta e que ainda hoje não pode prescindir do amparo da força 243286 Agora posso comentar outra de suas afirmações O senhor se admira de como é fácil mover os homens para a guerra e supõe que haja alguma coisa neles um instinto de ódio e destruição que favorece aquele incitamento Mais uma vez concordo plenamente com o senhor Nós acreditamos na existência de semelhante instinto e nos últimos anos procuramos justamente estudar suas manifestações O senhor me permite neste ponto apresentarlhe parcialmente a teoria dos instintos a que nós chegamos após muitos tenteios e oscilações Nós supomos que os instintos humanos são de dois tipos apenas os que ten dem a conservar e unir nós os chamamos eróticos exatamente no sentido de Eros no Banquete de Platão e os que procuram destruir e matar que re unimos sob o nome de instinto de agressão ou destruição Como vê isso é apenas uma transfiguração teórica da conhecida oposição entre amor e ódio que talvez tenha um nexo primordial com a universalmente conhecida polarid ade de atração e repulsa que desempenha relevante papel em sua área de estudo Mas não nos precipitemos em introduzir valorações de bem e mal Cada um desses instintos é tão indispensável quanto o outro é da atuação con junta ou contrária de ambos que surgem os fenômenos da vida Parece que quase nunca o instinto de uma espécie pode agir isoladamente sempre se acha ligado amalgamado dizemos a um certo montante de sua contrapartida que modifica sua meta ou ocasionalmente permitelhe alcançála Assim por exemplo o instinto de autoconservação é certamente de natureza erótica mas necessita dispor da agressividade para fazer valer sua intenção Assim também o instinto do amor voltado para objetos requer um quê do instinto de domin ação para se apoderar do seu objeto A dificuldade de isolar em suas manifest ações as duas espécies de instintos é que durante muito tempo nos impediu de conhecêlas Se o senhor me acompanhar ainda um pouco mais eu lhe direi que os atos humanos também trazem uma complicação de outra espécie Raramente uma ação é obra de um único impulso instintual que em si já deve ser composto de Eros e destruição Via de regra vários motivos similarmente construídos 244286 precisam confluir para possibilitar a ação Um de seus colegas já tinha ciência disso o prof G Ch Lichtenberg que no tempo de nossos clássicos lecionava física em Göttingen mas talvez ele fosse ainda mais importante como psicó logo do que como físico Ele inventou uma rosa dos motivos quando afirm ou Os móveis que levam alguém a fazer algo poderiam ser dispostos como os 32 ventos e seus nomes arranjados de forma semelhante por exemplo pãopãoglória ou glóriaglóriapão Ou seja quando os homens são in citados à guerra neles há toda uma série de motivos a responder afirmativa mente nobres e baixos alguns abertamente declarados outros silenciados Não é o caso de enumerálos todos O prazer na agressão e na destruição é cer tamente um deles as inúmeras crueldades que vemos na história e na vida co tidiana confirmam sua existência e sua força A mescla desses impulsos destru tivos com outros eróticos e ideais facilita naturalmente sua satisfação Às vezes temos a impressão ao saber de atos cruéis acontecidos na história de que os motivos ideais só teriam servido como pretextos para os apetites destru tivos outras vezes no caso das atrocidades da Santa Inquisição por exemplo achamos que os motivos ideais se impuseram à consciência enquanto os destrutivos lhes trouxeram um reforço inconsciente As duas coisas são possíveis Receio estar abusando de seu interesse que diz respeito à prevenção da guerra não a nossas teorias Mas gostaria de me deter ainda por um momento em nosso instinto de destruição cuja popularidade está bem longe de se igualar à sua importância Especulando livremente chegamos à concepção de que esse instinto age no interior de cada ser vivo e se empenha em leválo à desintegração em fazer a vida retroceder ao estado de matéria inanimada Ele merece com toda a seriedade o nome de instinto de destruição enquanto os instintos eróticos representam os esforços de vida O instinto de morte se torna instinto de destruição ao ser dirigido com a ajuda de órgãos especiais para fora para os objetos O ser vivo como que conserva sua própria vida ao 245286 destruir vida alheia Mas uma parte do instinto de morte permanece ativa den tro do ser vivo e nós procuramos derivar toda uma série de fenômenos nor mais e patológicos dessa internalização do instinto de destruição Cometemos até a heresia de explicar a gênese de nossa consciência moral mediante esse voltarse para dentro da agressividade O senhor deve notar que de modo nen hum é insignificante que este processo ocorra em medida muito grande é pos itivamente malsão enquanto o direcionamento dessas forças instintuais para a destruição no mundo externo desafoga o ser vivo deve ter efeito benéfico Isto serviria como desculpa biológica para todos os impulsos feios e perigosos que combatemos É preciso conceder que estão mais próximos da natureza do que nossa resistência a eles para a qual também precisamos achar uma explicação Talvez o senhor tenha a impressão de que nossas teorias são uma espécie de mitologia e nem mesmo agradável nesse ponto Mas toda ciência não termina numa espécie de mitologia Parecelhe diferente na física de hoje O que retiramos para nossos fins imediatos das afirmações precedentes é que não há perspectiva de poder abolir as tendências agressivas do ser humano Dizse que em certas regiões felizes da Terra onde a natureza oferece prodigamente tudo o que os homens precisam existem povos que têm uma vida de mansidão em que são desconhecidas a coerção e a agressividade Tenho dificuldade em crer nisso gostaria de saber mais a respeito dessas cri aturas felizes Os bolchevistas também esperam fazer desaparecer a agressivid ade humana garantindo a satisfação das necessidades materiais e de resto in staurando a igualdade entre os membros da comunidade Considero isso uma ilusão Por enquanto se acham cuidadosamente armados e um importante re curso para manterem unidos os seus seguidores é o ódio a todos os demais Mas como o senhor mesmo observa não se trata de eliminar completamente as tendências agressivas humanas podese tentar desviálas a ponto de não ter em que se manifestar na guerra 246286 Partindo de nossa mitológica teoria dos instintos é fácil chegar a uma fór mula para os meios indiretos de combater a guerra Se a disposição para a guerra é uma decorrência do instinto de destruição então será natural recor rer contra ela ao antagonista desse instinto a Eros Tudo que produz laços emocionais entre as pessoas tem efeito contrário à guerra Essas ligações po dem ser de dois tipos Primeiro relações como as que se tem com um objeto amoroso embora sem objetivos sexuais A psicanálise não precisa se enver gonhar quando fala de amor pois a religião também diz Ama o próximo como a ti mesmo Sem dúvida é uma coisa mais fácil de se pedir do que de realizar O outro tipo de ligação emocional é o que se dá pela identificação Tudo que estabelece importantes coisas em comum entre as pessoas produz esses sentimentos comuns essas identificações Nelas se baseia em boa parte o edifício da sociedade humana O lamento acerca do abuso da autoridade que o senhor faz em sua carta levame a outra sugestão para combater indiretamente a inclinação à guerra Inscrevese na inata e inerradicável desigualdade dos homens o fato de eles se repartirem em líderes e dependentes Esses últimos são a grande maioria ne cessitam de uma autoridade que tome decisões por eles decisões que em geral eles acatam incondicionalmente Aqui talvez se possa acrescentar que deveria haver mais cuidado do que antes em educar uma camada superior de indivídu os de pensamento autônomo refratários à intimidação e buscadores da ver dade aos quais caberia a direção das massas subordinadas Não é preciso en fatizar que a extrapolação dos poderes do Estado e a proibição do pensamento pela Igreja não são favoráveis à criação dessa camada A condição ideal seria naturalmente uma comunidade de indivíduos que tivessem sujeitado a sua vida instintual à ditadura da razão Nada mais poderia gerar uma união tão completa e resistente entre os indivíduos mesmo com a renúncia às ligações emocionais entre eles Os outros meios de uma prevenção indireta da guerra são certamente mais exequíveis mas não prometem um rápido êxito Ninguém 247286 se dispõe a pensar em moinhos que moem tão devagar que as pessoas morreri am de fome até receber a farinha Como vê não se obtém muita coisa ao solicitar em matérias práticas e ur gentes a opinião de um teórico alheio ao mundo Melhor seria em cada caso específico empenharse em arrostar o perigo com os meios que se acham à mão Mas eu ainda gostaria de abordar uma questão que não foi levantada pelo senhor e que muito me interessa Por que nos indignamos de tal forma com a guerra o senhor eu e tantos outros por que não a aceitamos simplesmente como mais uma das penosas desgraças da vida Afinal ela parece algo próprio da natureza biologicamente fundamentado dificilmente evitável na prática Não se surpreenda com minha pergunta Para os fins de uma investigação como esta talvez seja permitido usar uma máscara de distanciamento que na realidade não se possui A resposta seria porque todo homem tem direito a sua própria vida porque a guerra aniquila vidas humanas plenas de esperança coloca o indivíduo em situações aviltantes obrigao a matar outros algo que ele não quer destrói preciosos bens materiais resultantes do trabalho humano e outras coisas mais E além disso em sua forma atual a guerra já não oferece oportunidade de satisfazer o antigo ideal heroico e no futuro graças ao aper feiçoamento dos meios de destruição uma guerra significaria a eliminação de um ou até mesmo de ambos os adversários Tudo isso é verdadeiro e parece tão indiscutível que nos admiramos apenas de que as guerras ainda não tenham sido rejeitadas mediante um acordo humano universal Alguns desses pontos podem ser discutidos sem dúvida É questionável que a comunidade não tenha nenhum direito sobre a vida do indivíduo não se podem condenar igualmente todas as espécies de guerras enquanto houver nações e reinos que estejam dis postos à destruição implacável de outros esses outros têm que se armar para a guerra Mas vamos passar rapidamente sobre isso não foi para essa discussão que o senhor me convidou Tenho outra coisa em mente acho que o motivo principal de nos indignarmos com a guerra é que não podemos deixar de fazê 248286 lo Somos pacifistas porque temos razões orgânicas para sêlo Depois nos é fá cil justificar nossa atitude com argumentos Talvez isso não seja compreendido sem uma explicação Quero dizer o seguinte Há tempos imemoriais ocorre na humanidade o processo de evolução da cultura Sei que outros preferem chamálo civilização A ele devemos o melhor daquilo que nos tornamos e uma boa parte daquilo de que sofremos Suas causas e seus começos são obscuros seu desfecho é incerto mas algumas de suas características são claras Talvez leve à extinção da espécie humana pois em mais de uma maneira prejudica a função sexual e já agora as raças in cultas e as camadas atrasadas da população se multiplicam mais rapidamente do que as bastante cultivadas Talvez se possa comparar esse processo com a domesticação de determinadas espécies animais certamente ele traz mudanças físicas ainda não há familiaridade com a ideia de que a evolução cultural seja tal processo orgânico As mudanças psíquicas que acompanham o processo cultural são evidentes e inequívocas Elas consistem no progressivo desloca mento dos objetivos instintuais e na restrição dos impulsos instintuais Sensações que eram prazerosas para nossos antepassados se tornaram indifer entes e até mesmo desagradáveis para nós existem razões orgânicas para que nossos ideais éticos e estéticos tenham mudado Duas parecem ser as mais im portantes características psicológicas da cultura o fortalecimento do intelecto que começa a dominar a vida instintual e a internalização da tendência à agressividade com todas as suas consequências vantajosas e perigosas Ora a guerra contraria de forma gritante as atitudes psíquicas que o processo cultural nos impõe e por isso temos de nos revoltar contra ela simplesmente não mais a suportamos não se trata apenas de uma rejeição intelectual e afetiva para nós pacifistas é uma intolerância constitucional como que uma idiossincrasia ampliada ao extremo Parece inclusive que as degradações estéticas inerentes à guerra não contribuem muito menos para nossa revolta do que suas crueldades 249286 E quanto tempo teremos de esperar até que os outros também se tornem pacifistas Não há como dizer mas pode não ser uma esperança utópica que a influência desses dois fatores da atitude cultural e do justificado medo das consequências de uma guerra futura venha a terminar com as guerras num tempo não muito distante Por quais meios ou rodeios não chegamos a perce ber Enquanto isso uma coisa podemos dizer tudo o que promove a evolução cultural também trabalha contra a guerra Eu o saúdo cordialmente e peçolhe que me desculpe se estas minhas con siderações o decepcionaram Seu sigm freud Tirou o vento de minhas velas versão literal da expressão alemã utilizada que significa atrapalhar as intenções Poder Macht violência Gewalt mas a palavra Gewalt também pode significar força e poder segundo o contexto Desenvolvimento Entwicklung que também pode significar evolução Impulsos é uma das versões possíveis para Strebungen substantivo atualmente não mais usado do verbo streben que significa esforçarse por aspirar a ambicionar os tradutores consultados recorreram a tendencias aspiraciones impulsi impulses Cf a afirmação de Freud na primeira parte de O futuro de uma ilusão 1925 recusome a distinguir entre cultura e civilização Kultur e Zivilisation e a nota do tradutor à p 48 250286 UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE CARTA A ROMAIN ROLLAND 1936 TÍTULO ORIGINAL BRIEF AN ROMAIN ROLLAND EINE ERINNERUNGSSTÖRUNG AUF DER AKROPOLIS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ALMANACH 1937 PP 921 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XVI PP 2507 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IV PP 28393 Caro amigo Solicitado a contribuir com algum escrito para a comemoração dos seus setenta anos esforceime bastante por encontrar algo que fosse digno do sen hor em alguma medida que pudesse expressar minha admiração por seu amor à verdade pela coragem em suas crenças pela afeição e solicitude que tem pela humanidade ou que testemunhasse a gratidão pelo escritor que me propor cionou tanto prazer e elevação Mas foi em vão sou dez anos mais velho que o senhor minha capacidade de produzir se esgotou O que afinal lhe posso oferecer é a dádiva de alguém empobrecido que já conheceu dias melhores Como o senhor sabe meu trabalho científico teve por meta esclarecer fenô menos insólitos anormais patológicos da psique isto é fazêlos remontar às forças psíquicas que por trás deles atuam e mostrar os mecanismos ali em ação Procurei fazer isso primeiramente em minha própria pessoa depois em outros indivíduos e enfim numa ousada extrapolação no gênero humano como um todo Um fenômeno desse tipo que vivenciei uma geração atrás em 1904 e jamais pude compreender tornou a aparecer em minha lembrança nos últimos anos Inicialmente não soube por quê Afinal me decidi a analisar essa pequena vivência e agora lhe comunico o resultado desse estudo Nisso devo lhe pedir que dispense a certos dados de minha vida pessoal mais atenção do que eles normalmente mereceriam UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE Todos os anos naquele tempo eu costumava realizar uma viagem de férias com meu irmão mais jovem no final de agosto ou início de setembro Essa viagem durava algumas semanas e nos levava a Roma a alguma outra região da Itália ou ao litoral do Mediterrâneo Meu irmão é dez anos mais jovem do que eu ou seja tem a mesma idade que o senhor uma coincidência que somente hoje me ocorre Nesse ano ele me explicou que seus negócios não lhe permitiam uma ausência mais longa poderia ficar fora no máximo uma sem ana teríamos de encurtar nossa viagem Então decidimos viajar por Trieste até a ilha de Corfu onde passaríamos nossos poucos dias de férias Em Trieste ele visitou um seu amigo de negócios que lá vivia e eu o acompanhei O homem perguntou amavelmente sobre nossos planos e quando soube que pre tendíamos ir a Corfu desaconselhounos vivamente Que querem vocês lá por essa época do ano É tão quente que não poderão fazer nada É melhor ir em a Atenas O vapor da Lloyd parte hoje à tarde terão três dias para ver a cidade e ele os pegará no trajeto de volta Será mais agradável e valerá bem mais a pena Ao deixarmos a casa do triestino estávamos de péssimo humor Discutimos a sua sugestão achamos que era imprópria e enxergamos apenas obstáculos à sua realização e imaginamos também que não poderíamos entrar na Grécia sem passaporte Vagamos pela cidade descontentes e indecisos durante as horas que faltavam para a abertura do escritório da Lloyd Quando chegou o momento fomos para o guichê e compramos passagens para Atenas como se fosse algo natural sem nos preocupar com as supostas dificuldades sem nem mesmo comentar nossas razões para aquela decisão Esse comportamento era muito singular Depois reconhecemos que imediatamente e de bom grado havíamos aceitado a sugestão de ir para Atenas em vez de Corfu Por que en tão havíamos passado o tempo até a abertura dos guichês de mau humor sim ulando impedimentos e dificuldades Quando na tarde após a nossa chegada eu me achava na Acrópole e lançava o olhar sobre a paisagem ao redor veiome subitamente este singular pensamento Então tudo isso existiu realmente tal como nós aprendemos na escola Colocado de forma mais precisa a pessoa que fez o comentário separavase de maneira bem mais aguda do que geralmente se notava de uma 253286 outra que percebia esse comentário e ambas estavam assombradas ainda que não pela mesma coisa Uma comportavase como se fosse obrigada sob o im pacto de uma observação indubitável a crer em algo cuja realidade até então lhe parecera incerta Fazendo um leve exagero como se alguém passeando à margem do Loch Ness na Escócia subitamente deparasse com o corpo do célebre monstro lançado à terra e tivesse que admitir então ela existe de fato a serpente marinha em que não acreditávamos Mas a outra pessoa estava justi ficadamente surpresa pois não sabia que a existência real de Atenas da Acró pole e daquela paisagem era objeto de dúvida Esperava isto sim uma mani festação de enlevo e admiração Agora se poderia dizer que o pensamento estranho na Acrópole apenas en fatiza que ver algo com os próprios olhos é muito diferente de apenas ouvir ou ler sobre algo Mas isto não deixaria de ser uma singular maneira de exprimir um lugarcomum sem interesse Ou seria possível arriscar a afirmação de que quando estudante ginasial eu julguei estar convencido da realidade histórica da cidade de Atenas e seu passado mas com o pensamento tido na Acrópole me dou conta de que no inconsciente não acreditei nisso na época apenas agora adquiro uma convicção que chega ao inconsciente Tal explicação parece profunda no entanto é mais fácil oferecêla do que provála e será muito questionável teoricamente Não acho que os dois fenômenos o mau humor em Trieste e o pensamento na Acrópole estão intimamente relacion ados O primeiro é mais facilmente compreensível e pode nos ajudar na ex plicação do segundo A experiência em Trieste também é percebo apenas uma expressão de in credulidade Vamos ver Atenas Está fora de questão há muitas di ficuldades O mau humor daquele mesmo instante corresponde ao lamento de que isso esteja fora de questão Seria tão bonito Agora compreendemos do que se trata É um desses casos de too good to be true bom demais para ser ver dade que tão bem conhecemos Um caso dessa incredulidade que frequente mente surge quando somos surpreendidos por uma boa nova ao saber que 254286 ganhamos um prêmio que acertamos na loteria ou para uma garota apaixon ada a notícia de que o amado apresentouse aos seus pais como pretendente e assim por diante Constatar um fenômeno leva naturalmente a perguntar sobre a sua causa Uma incredulidade assim é evidentemente uma tentativa de rejeitar uma par cela da realidade mas há algo de estranho nisso Não nos surpreenderíamos em absoluto se essa tentativa fosse dirigida a uma parcela da realidade que ameaçasse com desprazer nosso mecanismo psíquico está digamos regulado para isso Mas por que tal incredulidade em relação a algo que pelo contrário promete um enorme prazer Uma conduta realmente paradoxal Mas me re cordo que já lidei antes com o caso de pessoas que como formulei então fra cassam no triunfo Normalmente se fracassa com a frustração a não realiza ção de uma necessidade ou desejo mas nessas pessoas dáse o contrário ad oecem até mesmo sucumbem pelo fato de lhes ter sido realizado um desejo extremamente forte Mas o contraste entre as duas situações não é tão grande como parece de início No caso paradoxal ocorre simplesmente que uma frus tração interna toma o lugar da externa O indivíduo não se permite a felicid ade a frustração interna ordena que ele se apegue à externa Mas por quê Porque esta é a resposta numa série de casos ele não pode esperar algo tão bom do destino Ou seja novamente o too good to be true a manifestação de um pessimismo do qual muitos de nós parecem abrigar uma boa porção Em outros casos assim como nas pessoas que fracassam ao triunfar há um senti mento de culpa ou de inferioridade que pode ser traduzido desta forma Não sou digno dessa felicidade não a mereço Mas esses dois motivos são no fundo o mesmo um é apenas a projeção do outro Pois como há muito se sabe o destino do qual se espera um tratamento tão ruim é uma materializa ção de nossa consciência do rigoroso Supereu dentro de nós no qual sedimentouse a instância punitiva de nossa infância Assim creio estaria explicado nosso comportamento em Trieste Não podíamos acreditar que nos era destinada a alegria de ver Atenas O fato de 255286 que a parcela de realidade que queríamos rejeitar era no início apenas uma possibilidade determinou as peculiaridades de nossa reação imediata Depois quando estávamos na Acrópole a possibilidade se tornou realidade e a mesma descrença achou uma expressão modificada mas bem mais nítida Eis o que es ta seria sem distorção Eu jamais acreditaria que me fosse dado ver Atenas com meus próprios olhos algum dia como sem dúvida sucede agora Quando me recordo o ardente anseio de viajar e ver o mundo que me domin ava no tempo do ginásio e depois e como ele demorou em ser satisfeito não me surpreende esse tardio efeito na Acrópole eu tinha 48 anos então Não per guntei a meu irmão se ele sentiu algo semelhante Havia uma certa reserva em torno do episódio já em Trieste ela impedira que trocássemos ideias Se decifrei corretamente o sentido de meu pensamento na Acrópole de que ele expressaria minha feliz surpresa por me achar naquele local então surge a questão seguinte de por que esse sentido teve uma roupagem assim deformada e deformadora no pensamento O conteúdo essencial deste foi preservado também na deformação é uma descrença Conforme o testemunho de meus sentidos eu me acho agora na Acrópole mas não consigo acreditar Essa descrença essa dúvida quanto a uma parcela da realidade é deslocada de dois modos na manifestação primeiro é remetida ao passado e em segundo lugar é deslocada de minha relação com a Acrópole à existência mesma da Acrópole Assim se produz algo que equi vale a dizer que antes havia duvidado da existência real da Acrópole algo que minha memória rejeita como sendo errado e mesmo impossível As duas distorções envolvem dois problemas independentes Podemos tentar compreender mais a fundo o processo de transformação Sem especificar no momento como cheguei a isso tomarei como ponto de partida que o fator original devia ser uma sensação de que algo incrível e irreal se podia perceber naquela situação Esta compreendia minha pessoa a Acrópole e minha per cepção dela Eu não sabia o que fazer com essa dúvida claro que não podia 256286 duvidar de minhas impressões sensoriais na Acrópole Mas me lembrei de que no passado havia duvidado de algo que tinha relação com aquele lugar e assim encontrei o expediente de situar a dúvida no passado Mas com isso ela muda o seu teor Não me lembrei simplesmente de que na juventude duvidara de al gum dia chegar a ver a Acrópole afirmei isto sim que naquele tempo não acreditara em absoluto na realidade da Acrópole Precisamente esse resultado da deformação me leva a inferir que a situação na Acrópole continha um ele mento de dúvida da realidade É certo que até agora não consegui tornar claro o processo por isso direi brevemente em conclusão que toda essa situação psíquica aparentemente confusa e difícil de ser exposta resolvese pronta mente com a suposição de que na Acrópole por um momento eu tive ou posso ter tido a seguinte sensação O que eu vejo não é real Chamase a isto sensação de estranhamento Eu procurei rechaçála e o consegui à custa de uma falsa afirmação sobre o passado Esses estranhamentos são fenômenos muito curiosos ainda pouco com preendidos Embora sejam descritos como sensações são evidentemente processos complicados ligados a certos conteúdos e vinculados a decisões re lativas a esses conteúdos Bastante frequentes em determinadas doenças psíquicas tampouco são desconhecidos na pessoa normal como as eventuais alucinações dos indivíduos sadios Mas certamente são atos falhos de estru tura anormal como os sonhos que não obstante seu regular aparecimento nas pessoas sãs consideramos modelos de distúrbio psíquico São observados em duas formas ou uma fração da realidade nos parece estranha ou uma fração do próprio Eu Nesse último caso falase de despersonalização estran hamentos e despersonalizações são intimamente relacionados Há outros fenô menos em que podemos enxergar a contrapartida positiva deles por assim dizer a chamada fausse reconnaissance o déjà vu déjà raconté ilusões em que buscamos aceitar algo como pertencente a nosso Eu assim como nos estran hamentos nos esforçamos em excluir algo de nós Uma tentativa de explicação místicoingênua e pouco psicológica pretende utilizar os fenômenos do déjà vu 257286 como prova de existências passadas de nosso Eu psíquico Da despersonalização chegase à double conscience que é mais corretamente cha mada cisão da personalidade Mas tudo isso é ainda tão obscuro tão pouco alcançado pela ciência que não me permito abordálo mais demoradamente com o senhor É suficiente para meus propósitos retomar duas características gerais dos fenômenos e estranhamento A primeira é que todos servem à finalidade da de fesa buscam manter algo longe do Eu negálo Novos elementos que podem solicitar medidas de defesa aproximamse do Eu a partir de dois lados do mundo externo real e do mundo interno de pensamentos e impulsos que emergem no Eu Essa alternativa talvez coincida com a distinção entre os es tranhamentos propriamente ditos e as despersonalizações Há um grande número de métodos mecanismos dizemos de que o nosso Eu se vale no cumprimento de suas tarefas defensivas Em minha vizinhança imediata se desenvolve no momento estudo desses mecanismos de defesa minha filha a analista de crianças está escrevendo um livro sobre esse tema O mais primit ivo e mais fundamental desses métodos a repressão serviu de ponto de partida para o nosso aprofundamento na psicopatologia Entre a repressão e o que chamamos defesa normal ante o que é penoso ou insuportável através de reconhecimento reflexão julgamento e ação apropriada há toda uma série de condutas do Eu de caráter mais ou menos claramente patológico Permitame lembrar um casolimite desse tipo de defesa O senhor conhece o famoso lamento dos mouros espanhóis Ay de mi Alhama que conta como o rei Boad bil recebe a notícia da queda de sua cidade Alhama Ele sente que essa perda significa o fim de seu reinado Mas não querendo reconhecer a verdade disso resolve tratar a notícia como non arrivée A estrofe diz Cartas le fueron venidas de que Alhama era ganada Las cartas echó en el fuego 258286 y al mensajero matara Notase facilmente que participa dessa conduta do rei a necessidade de con testar sua sensação de impotência Ao queimar as cartas e ordenar que matem o mensageiro ele busca mostrar que ainda tem o poder A outra característica geral dos estranhamentos sua dependência do pas sado do tesouro de lembranças do Eu e de anteriores vivências penosas talvez reprimidas desde então não é admitida sem objeção Mas justamente minha experiência na Acrópole que culmina num distúrbio de memória numa falsi ficação do passado nos ajuda a demonstrar essa influência Não é verdadeiro que eu tivesse duvidado da existência de Atenas nos anos do ginásio Apenas duvidei que algum dia pudesse visitar Atenas Fazer uma viagem tão longa ir tão longe pareciame além de toda possibilidade Isto se relacionava à pobreza e estreiteza de nossas condições de vida quando eu era jovem O an seio de viajar também era sem dúvida expressão do desejo de escapar àquela opressão aparentado ao impulso que leva tantos filhos adolescentes a aban donar a casa Havia muito eu percebera que boa parte do prazer de viajar con siste na realização desses velhos desejos isto é tem raiz na insatisfação com a casa e a família Quando pela primeira vez vemos o mar cruzamos o oceano experimentamos como realidades países e cidades que foram durante muito tempo inatingíveis e distantes objetos de desejo sentimonos como um herói que levou a cabo inacreditáveis façanhas Naquele momento na Acrópole eu poderia ter perguntado a meu irmão Você se lembra que em nossa infância fazíamos diariamente o mesmo caminho da rua até a escola e todo domin go íamos ao Prater ou a um dos lugares do campo que já conhecíamos bastante E agora estamos em Atenas bem na Acrópole Realmente fomos longe E se podemos comparar um evento assim pequeno com algo maior não sucedeu que Napoleão ao ser coroado imperador em Notre Dame voltouse para um de seus irmãos terá sido o mais velho José e comentou Que diria notre père nosso pai se estivesse aqui hoje 259286 Mas aqui deparamos com a solução para o pequeno problema de por que já em Trieste havíamos estragado o prazer da viagem a Atenas Deve ser que um sentimento de culpa se acha ligado à satisfação de haver ido tão longe há algo errado nisso algo proibido desde sempre Tem relação com a crítica da criança ao pai com o menosprezo que toma o lugar da superestimação infantil inicial de sua pessoa É como se o essencial no êxito fosse chegar mais longe que o pai e querer superálo ainda fosse interditado A essa motivação geral se junta em nosso caso um fator particular no próprio tema Atenas e Acrópole já se encontra uma referência à superioridade dos filhos Nosso pai foi comerciante não teve educação ginasial Atenas não podia significar muito para ele O que perturbou nossa fruição da viagem a Atenas portanto foi um impulso de piedade Agora o senhor não mais se sur preenderá com o fato de a lembrança da experiência na Acrópole me visitar tão frequentemente depois que eu próprio me tornei velho e necessitado de toler ância não mais podendo viajar Muito cordialmente seu sigm freud Janeiro de 1936 Freud trata Romain Rolland por Sie que é mais formal do que o você usado pela maioria dos brasileiros correspondendo antes ao vous francês ou ao uso menos informal que tem o você em Portugal O verbo original é eingerichtet particípio passado de einrichten que os dicionários traduzem por arranjar dispor ordenar estabelecer regular etc as versões estrangeiras consultadas usam adaptado montado programmato planned Sensação de estranhamento Entfremdungsgefühl nas versões estrangeiras consultadas sensación de extrañamiento sentimiento de enajenación sentimento di estranazione feeling of der ealization com nota cf sobre a tradução de Gefühl por sensação na nota do tradutor em 260286 Nietzsche Além do bem e do mal São Paulo Companhia das Letras 1992 tradução e notas de Paulo César de Souza nota 51 No parágrafo seguinte o termo Empfindung foi igualmente vertido por sensação Atos falhos no original Fehlleistungen nas versões consultadas disfunciones operaciones fallidas atti mancati failures in functioning Déjà raconté já contado assim como déjà vu significa já visto cf Psicopatologia da vida cotidiana 1901 cap xii seção D e Sobre a fausse reconnaissance déjà raconté durante o trabalho psicanalítico 1914 261286 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19301936 APRESENTAÇÃO DE THE MEDICAL REVIEW OF REVIEWS O dr Feigenbaum me solicitou algumas palavras para o número da Review pelo qual será responsável e aproveito a ocasião para lhe desejar pleno êxito nesse trabalho Ouço dizer frequentemente que a psicanálise é muito popular nos Estados Unidos e não encontra ali a mesma obstinada resistência que na Europa Mas minha satisfação com isso é empanada por várias circunstâncias Pareceme que a popularidade do nome da psicanálise na América não significa nem atit ude amistosa para com a causa nem difusão ou aprofundamento de seu conhe cimento Como evidência da primeira afirmação vejo o fato de que embora ajuda financeira possa ser obtida com facilidade e abundância para qualquer empreendimento científico ou pseudocientífico nossas instituições psicanalít icas jamais tiveram apoio Também não é difícil provar o segundo ponto Em bora a América possua vários analistas competentes e pelo menos uma autorid ade o dr A A Brill são escassas e pouco trazem de novo as contribuições desse vasto país para a nossa ciência Psiquiatras e neurologistas utilizam fre quentemente a psicanálise como método terapêutico mas geralmente mostram pouco interesse por seus problemas científicos e seu significado cultural Muitas vezes se encontra em médicos e autores americanos insuficiente famil iaridade com a psicanálise de modo a conhecerem apenas o nome e algumas de suas expressões o que não prejudica a segurança com que emitem julga mentos Eles também juntam a psicanálise com outros sistemas teóricos que dela podem ter se originado mas que hoje são incompatíveis com ela Ou for jam uma mistura de psicanálise com outros elementos e apresentam isso como prova de sua broadmindedness mente aberta quando apenas demonstra sua lack of judgement falta de discernimento Muitos desses males que menciono com pesar derivam certamente de uma tendência geral que existe na América de abreviar o estudo e a preparação e passar rapidamente à aplicação prática Também se dá preferência a estudar um tema como a psicanálise em exposições secundárias com frequência inferi ores e não das fontes originais Nisso a seriedade fica inevitavelmente comprometida É de esperar que trabalhos como os que o dr Feigenbaum pretende publi car em sua Review estimulem fortemente o interesse pela psicanálise na América Título original Geleitwort zu The Medical Review of Reviews v 36 n 3 Nova York março de 1930 publicado primeiramente em inglês em número especial sobre psicopatologia aos cuidados do dr Dorian Feigenbaum Traduzido de Gesammelte Werke xiv pp 5701 264286 PRÓLOGO A DEZ ANOS DO INSTITUTO PSICANALÍTICO DE BERLIM As páginas que se seguem descrevem a fundação e as realizações do Instituto Psicanalítico de Berlim que teve três importantes funções no movimento psic analítico primeiro tornar nossa terapia acessível ao grande número de pessoas que sofrem com suas neuroses tanto quanto os ricos mas não têm como custe ar seu tratamento segundo fornecer um local em que a análise seja ensinada teoricamente e a experiência dos analistas mais velhos seja transmitida a dis cípulos desejosos de aprender por fim aperfeiçoar nosso conhecimento das enfermidades neuróticas e nossa técnica terapêutica aplicandoos e testando os em novas condições Um instituto assim era indispensável mas em vão esperaríamos ajuda do Estado ou interesse da universidade em sua fundação A energia e a abnegação de um indivíduo foram decisivas nesse caso O dr Max Eitingon atual presid ente da Associação Psicanalítica Internacional criou tal instituto com seus próprios meios dez anos atrás e desde então o manteve e o dirigiu com seu es forço pessoal Este relatório sobre os primeiros dez anos do Instituto de Berlim é um tributo a seu criador e diretor uma tentativa de agradecerlhe publica mente Quem de alguma forma se acha ligado à psicanálise participará desse agradecimento Título original Geleitwort zu The Medical Review of Reviews v 36 n 3 Nova York março de 1930 publicado primeiramente em inglês em número especial sobre psicopatologia aos cuidados do dr Dorian Feigenbaum Traduzido de Gesammelte Werke xiv pp 5701 O PARECER DA FACULDADE NO PROCESSO HALSMANN O complexo de Édipo pelo que sabemos está presente na infância de todos os indivíduos sofre enormes alterações nos anos de desenvolvimento e em mui tos indivíduos é encontrado também com intensidade variável na idade adulta Suas características essenciais sua universalidade seu conteúdo seu destino foram reconhecidos muito antes da psicanálise por um pensador agudo como Diderot como demonstra uma passagem de seu famoso diálogo Le neveu de Rameau O sobrinho de Rameau Na tradução de Goethe volume 45 da Sophienausgabe eis o que lemos à pág 45 dessa obra Se o pequeno selvagem fosse abandonado a si mesmo conservasse toda a sua imbecilidade e reunisse a violência das paixões do homem de trinta anos à pouca razão da cri ança de berço torceria o pescoço de seu pai e dormiria com a mãe Se fosse objetivamente provado que Philipp Halsmann matou o pai haver ia de fato justificativa para aduzir o complexo de Édipo como motivação para um ato incompreensível de outra forma Como tal prova não foi apresentada a menção do complexo de Édipo tem efeito enganador é no mínimo supérflua O que a investigação descobriu em matéria de divergências entre pai e filho não basta para fundamentar a suposição de que havia uma má relação do filho para com o pai Ainda que fosse de outro modo é preciso dizer que daí à causação de semelhante ato há uma enorme distância Justamente devido a sua onipresença o complexo de Édipo não é adequado para uma conclusão sobre a autoria de um crime Facilmente se produziria a situação imaginada numa con hecida anedota Uma casa foi roubada Um homem que tinha consigo uma gazua foi condenado pelo crime Ao lhe perguntarem depois da sentença se tem alguma coisa a dizer ele exige ser penalizado também por adultério pois também está de posse do instrumento para isso No formidável romance Os irmãos Karamázov de Dostoiévski a situação edípica ocupa o centro do interesse O velho Karamázov é odiado pelos filhos porque os oprime sem piedade Além disso para um deles é o poderoso rival na disputa da mulher desejada Esse filho Dmitri não faz segredo da intenção de vingarse violentamente do pai É natural então que após o roubo e assas sinato do pai ele seja acusado e não obstante todos os seus protestos de in ocência seja condenado pelo ato No entanto Dmitri é inocente outro irmão cometeu o crime Na cena do julgamento desse romance é dita uma frase que se tornou célebre A psicologia é uma faca de dois gumes O parecer da faculdade de medicina de Innsbruck tende a atribuir um com plexo de Édipo efetivo a Philipp Halsmann mas se abstém de precisar o grau dessa efetividade pois sob a pressão da acusação não se acham em Phil ipp Halsmann as precondições para um esclarecimento sem reservas E quando ela se recusa a buscar a raiz do ato no complexo de Édipo no caso de autoria do crime pelo acusado também vai mais longe que o necessário em sua negação No mesmo parecer há uma contradição nada insignificante A possível influência do choque emocional sobre o distúrbio da memória quanto a impressões sobrevindas antes e durante o tempo crítico é minimizada ao ex tremo injustamente em minha opinião As suposições de um estado excep cional e de uma enfermidade psíquica são terminantemente rechaçadas mas admitese de bom grado a explicação de que ocorreu em Philipp Halsmann uma repressão após o ato Devo afirmar que seria uma raridade de primeira ordem uma súbita repressão num indivíduo adulto que não mostra indícios de neurose severa a repressão de um feito que certamente seria mais importante do que todas as discutíveis particularidades de distanciamento e decurso do tempo e que sucede num estado normal ou alterado apenas pelo cansaço físico 267286 Título original Das Fakultätsgutachten im Prozeß Halsmann publicado primeiramente em Psychoanalytische Bewegung v 3 n 1 1931 Traduzido de Gesammelte Werke xiv pp 5412 O estudante Philipp Halsmann foi acusado de parricídio e condenado pela corte de Innsbruck em 1929 Um parecer da faculdade de medicina daquela cidade solicitado pela corte apoiavase confusamente em algumas noções psicanalíticas Posteriormente o estudante foi perdoado mas não absolvido Seu defensor Josef Kupka professor de direito na universidade de Viena considerou que o veredicto ainda o prejudicava e iniciou uma campanha por sua plena reabilit ação O presente texto foi escrito por solicitação do dr Kupka A citação foi aqui traduzida do original francês não da tradução utilizada por Freud Na primeira vez em que ele citou essa frase na 21ª das Conferências introdutórias à psicanálise 191617 recorreu ao original não à versão de Goethe embora mencionasse que este havia traduzido a obra 268286 APRESENTAÇÃO DE ELEMENTI DI PSICOANALISI DE EDOARDO WEISS O autor dessas conferências o dr Edoardo Weiss meu amigo e discípulo desejou que eu fizesse acompanhar de algumas palavras de recomendação o seu trabalho Eu o faço agora com plena consciência de que tal recomendação é desnecessária A obra fala por si mesma Quem sabe apreciar a seriedade de um esforço científico quem estima a probidade do pesquisador que não busca diminuir ou negar as dificuldades quem encontra prazer na habilidade do pro fessor que em sua exposição leva luz à obscuridade e ordem ao caos não pode senão atribuir um alto valor a este livro e partilhar minha esperança de que nos círculos cultos e especializados da Itália ele venha a despertar um duradouro interesse pela jovem ciência da psicanálise Título original Geleitwort zu Elementi di psicoanalisi von Edoardo Weiss Milão Hoepli 1931 publicado como facsímile do manuscrito Traduzido de Gesammelte Werke xiv p 573 EXCERTO DE UMA CARTA A GEORG FUCHS A onda de forte compaixão que senti após a leitura de sua carta logo deparou com duas considerações uma dificuldade interior e um empecilho exterior Uma frase de seu próprio prefácio me deu a formulação mais adequada para a primeira Há pessoas que têm uma opinião tão baixa da humanidade civiliz ada de hoje que negam a existência de uma consciência mundial Creio que sou uma dessas pessoas Eu não poderia por exemplo subscrever a afirmação de que o tratamento dado aos prisioneiros é uma vergonha para a nossa civiliz ação Pelo contrário pareceme que ele condiz perfeitamente com a nossa civilização que é a expressão necessária da brutalidade e da incompreensão que vigoram na humanidade civilizada de hoje E se por um milagre houvesse a súbita convicção de que a reforma do sistema penal é a tarefa mais urgente de nossa civilização que outra coisa se verificaria senão que a so ciedade capitalista não tem agora os meios necessários para custear essa re forma A segunda dificuldade a externa tem a ver com algumas passagens de sua carta em que o senhor me exalta como reconhecido líder intelectual e in ovador cultural atribuindome o privilégio de ser escutado pelo mundo civil izado Eu bem gostaria que assim fosse caro senhor nesse caso não me furtar ia ao seu pedido Mas algo me diz que sou persona ingrata senão ingratissima para o povo alemão e tanto para os indivíduos cultos como para os incultos Confio plenamente em que o senhor não pensará que eu me sinto magoado por tais demonstrações de desapreço Há décadas não sou mais tão infantil e me dido pelo seu exemplo isso também seria ridículo Menciono essas banalidades apenas para enfatizar que não seria um advogado conveniente para um livro que busca despertar a simpatia dos leitores para uma boa causa Direi além disso que o seu livro é comovente belo sensato e bom Título original Auszug eines Briefes an Georg Fuchs publicado primeiramente como parte da introdução ao livro de Fuchs Wir Zuchthäusler Nós presos Munique Albert Lan gen 1931 Traduzido de Gesammelte Werke Nachtragsband Frankfurt Fischer 1987 pp 75960 Georg Fuchs 18681949 foi crítico literário e tradutor de Shakespeare e Calderón de la Barca entre outros Na década de 1920 foi preso por razões políticas e escreveu um relato sobre a vida na prisão Antes de publicar o livro enviou o texto para várias personalidades entre elas Freud e depois incluiu na introdução da obra trechos das cartas recebidas 271286 CARTA AO PREFEITO DA CIDADE DE PˇRÍBOR Agradeço ao senhor prefeito da cidade de PˇríborFreiberg aos organizadores desta homenagem e a todos os presentes a honra que me fazem ao assinalar minha casa natal com esta placa comemorativa lavrada por mãos de artista E isso é feito já enquanto estou vivo e meus contemporâneos ainda não se acham concordes na avaliação de meu trabalho Deixei Freiberg com a idade de três anos visiteia quando tinha dezesseis como estudante ginasial em férias hospedandome com a família Fluss e nunca mais retornei Desde então muita coisa me sucedeu realizei muitos es forços experimentei sofrimentos e também felicidade e algum sucesso tal como costumam se misturar numa vida humana Não é fácil aos 75 anos vol tar àquele tempo remoto do qual em seu rico conteúdo apenas alguns vestí gios me restam na memória mas de uma coisa posso estar seguro bem no fundo de mim ainda vive a criança feliz de Freiberg o primeiro filho de uma jovem mãe que deste ar e deste solo recebeu as primeiras impressões inextinguíveis Sejame permitido então encerrar este agradecimento com um caloroso voto de felicidade para este lugar e seus habitantes Título original Brief an den Bürgermeister der Stadt Pˇríbor lida por Anna Freud na cerimônia de descerramento da placa em 25 de outubro de 1931 Traduzida de Gesammelte Werke xiv p 561 A pequena cidade de Pˇríbor nome tcheco ou Freiberg nome alemão se localiza na região da Morávia que então pertencia ao Império AustroHúngaro e agora é parte da República Tcheca APRESENTAÇÃO DE TEORIA GERAL DAS NEUROSES SOBRE BASE PSICANALÍTICA DE HERMANN NUNBERG Este livro de Hermann Nunberg contém a mais completa e conscienciosa ex posição de uma teoria psicanalítica dos processos neuróticos que possuímos no momento Quem busca a simplificação e a rápida solução dos problemas nela envolvidos dificilmente será satisfeito por este trabalho Mas quem dá primazia ao pensamento científico e sabe ser um mérito que a especulação nunca aban done o fio condutor da experiência quem é capaz de fruir a bela diversidade dos eventos psíquicos valorizará e estudará diligentemente esta obra Título original Geleitwort zu Allgemeine Neurosenlehre auf psychoanalytischer Grundlage von Hermann Nunberg Berna e Berlim Hans Huber 1932 Traduzido de Gesammelte Werke xvi p 273 Há uma frase truncada no texto original dos GW com dois erros de impressão que foram apontados numa nota da Standard inglesa a partir da edição correta encontrada em Ges ammelte Schriften Textos completos v xii 1934 PRÓLOGO A DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE DE RICHARD STERBA 3 de julho de 1932 Prezado doutor Seu Dicionário deume a impressão de ser um valioso auxílio para os que estudam psicanálise e um belo trabalho em si mesmo A precisão e correção dos verbetes é realmente louvável A tradução dos termos em inglês e francês embora não seja indispensável realçaria o valor da obra Sei que o caminho da letra A até o final do alfabeto é bastante longo e envolverá um enorme esforço de sua parte Não o faça então a menos que se sinta interiormente impelido a fazêlo Apenas sob esta pressão de maneira nenhuma por incitação externa Cordialmente seu freud Título original Vorwort zu Handwörterbuch der Psychoanalyse von Richard Sterba Viena Internationaler Psychoanalytischer Verlag 1936 Traduzido de Gesammelte Werke Nachtrags band Frankfurt Fischer 1987 p 761 SÁNDOR FERENCZI 18731933 A experiência ensina que não custa desejar por isso prodigalizamos uns aos outros os melhores e mais caros votos sobretudo os de uma vida longa Mas precisamente os dois lados desse desejo são revelados por uma conhecida ane dota oriental O sultão encomendou seu horóscopo a dois sábios Serás feliz senhor diz o primeiro está escrito nas estrelas que verás todos os teus par entes morrerem antes de ti Esse vidente é então executado Serás feliz sen hor diz também o outro pois leio nas estrelas que sobreviverás a todos os teus parentes Esse é ricamente recompensado Os dois exprimem a realização do mesmo desejo Em janeiro de 1926 tive de escrever o obituário de nosso inesquecível amigo Karl Abraham Alguns anos antes em 1923 eu havia congratulado Sándor Ferenczi por seus cinquenta anos de vida Agora mal se passaram dez anos constato dolorosamente que sobrevivi a ele No escrito por ocasião do seu aniversário pude louvar publicamente sua versatilidade e originalidade sua riqueza de dotes mas a discrição adequada a um amigo me impediu de falar de sua personalidade afetuosa amável aberta para tudo significativo Desde quando o interesse pela jovem psicanálise o trouxe até mim nós compartilhamos muitas coisas Eu o convidei para me acompanhar numa viagem a Worcester Mass quando fui chamado a fazer conferências ali dur ante uma semana em 1909 De manhã antes do horário da conferência an dávamos no terreno diante do prédio da universidade eu lhe pedia sugestões sobre o que deveria falar naquele dia e ele me fazia um esboço que meia hora depois eu desenvolvia numa exposição improvisada Assim participou ele da gênese das Cinco lições de psicanálise Pouco depois no Congresso de Nuremberg em 1910 eu o incumbi de propor a organização dos analistas numa associação internacional tal como a havíamos imaginado conjunta mente Ela foi aceita com pequenas modificações e até hoje vigora Por vários anos seguidos passamos juntos as férias de outono na Itália e alguns dos en saios que depois entraram na literatura psicanalítica sob o meu nome ou o dele tiveram ali em nossas conversas a sua forma inicial Quando irrompeu a Grande Guerra que pôs fim a nossa liberdade de movimentação e também paralisou nossa atividade analítica ele aproveitou o intervalo para começar a análise comigo que então foi interrompida por sua convocação para o serviço mas pôde ser prosseguida mais tarde O sentimento de tranquila comunhão que em nós dois se formou após tantas vivências conjuntas também não foi perturbado quando já tarde na vida é verdade ele se ligou à excelente mulher que hoje o pranteia sendo sua viúva Há dez anos quando a Revista Internacional de Psicanálise dedicou a Fer enczi um número especial nos seus cinquenta anos ele já havia publicado a maioria dos trabalhos que converteram todos os analistas em seus discípulos Mas ainda não aparecera sua realização mais brilhante mais rica de ideias Eu estava a par disso e no final de minha contribuição o exortei a nos brindar com ela Em 1924 surgiu então seu Versuch einer Genitaltheorie Ensaio de uma teor ia da genitalidade Esse pequeno livro é antes um estudo biológico do que psicanalítico uma aplicação dos pontos de vista e percepções próprios da psic análise à biologia dos processos sexuais e até mesmo à vida orgânica em geral talvez a mais audaciosa aplicação da psicanálise que jamais se tenha feito Seu fio condutor é a ênfase na natureza conservadora dos instintos que buscam restabelecer todo estado que tenha sido abandonado devido a uma perturbação externa os símbolos são vistos como testemunhos de nexos antigos exemplos impressionantes mostram como as peculiaridades da psique conservam traços de antiquíssimas alterações da substância corporal Após ler esse trabalho acreditamos compreender numerosas particularidades da vida sexual que antes não podíamos enxergar de forma concatenada e achamonos enriquecidos por 276286 ideias que prometem profundas percepções em amplas áreas da biologia É em vão que já agora tentamos separar o que pode ser admitido como conheci mento digno de crédito e o que à maneira de uma fantasia científica procura adivinhar o conhecimento futuro Pomos de lado o livrinho com este pensamento É muita coisa de uma vez só vou reler após algum tempo Mas não apenas comigo foi assim provavelmente haverá mesmo uma bioanálise algum dia tal como Ferenczi a anuncia e ela terá de retomar o Versuch einer Genitaltheorie Após essa realização culminante aconteceu que gradualmente nosso amigo se afastou Tendo retornado de um período de trabalho na América parecia recolherse cada vez mais ao trabalho solitário ele que antes participara viva mente de tudo que sucedia nos meios analíticos A necessidade de curar e ajudar tornouse nele predominante Provavelmente ele se impôs metas inal cançáveis com os meios terapêuticos de hoje Veiolhe a convicção desde fontes afetivas inesgotáveis de que seria possível alcançar muito mais com os pacientes se lhes déssemos em medida suficiente o amor pelo qual haviam an siado quando crianças Ele quis descobrir como isso era realizável no âmbito da situação analítica e enquanto não obteve sucesso nisso mantevese à parte talvez não mais seguro da concordância de ideias com os amigos Aonde quer que o tivesse levado o caminho que encetou ele não pôde percorrêlo até o fim Pouco a pouco revelaramse nele os sinais de um grave processo destru tivo orgânico que há anos provavelmente já ensombrecia sua existência Pouco antes de completar sessenta anos de idade sucumbiu a uma anemia per niciosa É impossível imaginar que a história de nossa ciência o esqueça algum dia Maio de 1933 Publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 19 n 3 1933 Traduzido de Gesammelte Werke xvi pp 2679 277286 PRÓLOGO A EDGAR POE ESTUDO PSICANALÍTICO DE MARIE BONAPARTE Neste livro minha amiga e discípula Marie Bonaparte fez a luz da psicanálise incidir sobre a vida e a obra de um grande escritor de constituição patológica Graças a seu trabalho de interpretação compreendemos agora o quanto as ca racterísticas da obra de Poe são determinadas pela natureza particular do autor mas também notamos que essa por sua vez era o precipitado de fortes ligações afetivas e dolorosas vivências de sua primeira infância Pesquisas como essa não pretendem explicar o gênio do escritor mas mostram que mo tivações o despertaram e que material lhe foi dado pelo destino Há uma at ração especial em estudar as leis da psique humana em indivíduos extraordinários Título original Vorwort zu Edgar Poe Etude psychanalytique par Marie Bonaparte Paris Benoël et Steele 1933 teve edição alemã no ano seguinte Traduzido de Gesammelte Werke xvi p 276 A THOMAS MANN EM SEU 60o ANIVERSÁRIO Caro Thomas Mann Receba meus afetuosos parabéns por seus sessenta anos Sou um de seus mais velhos leitores e admiradores e poderia lhe desejar uma vida longa e feliz como se costuma fazer em tais circunstâncias Mas não o farei desejar é fácil e me parece um retorno ao tempo em que os homens acreditavam na má gica onipotência dos pensamentos E a experiência pessoal também me leva a pensar que é bom que um destino piedoso ponha um justo limite à duração de nossa vida Além disso não acho digno de imitação o fato de nessas ocasiões festivas a afeição sobrepujar o respeito de o homenageado ser constrangido a ouvir en quanto o cobrem de louvores como homem e o criticam e analisam como artista Não incorrerei nessa presunção Mas posso me permitir outra coisa Em nome de incontáveis contemporâneos seus posso manifestar nossa confi ança em que você nunca fará ou dirá as palavras de um escritor são ações afinal o que seja mesquinho ou covarde que mesmo em tempos e situações que tornem confuso o juízo você tomará o caminho certo e o mostrará aos outros Muito cordialmente seu freud Junho de 1935 Publicada primeiramente em Almanach 1936 Frankfurt Fischer 1935 p 18 Traduzida de Gesammelte Werke xvi p 249 também se acha em Briefe 18731939 Frankfurt Fischer 1960 pp 4189 A SUTILEZA DE UM ATO FALHO Estou arrumando o presente de aniversário de uma amiga uma pequena gema gravada que deve ser incrustada num anel Ela vai fixada no meio de um cartão no qual escrevo Vale para um anel de ouro do joalheiro L para a pedra inclusa que mostra um barco com vela e remos Mas no lugar em que aqui deixei em branco entre joalheiro L e para havia uma palavra que tive de cortar pois era descabida a palavrinha bis até em alemão Por que a escrevi então Ao reler o breve texto vejo que contém a palavra für para Vale para um anel para a pedra inclusa Isso não soa bem deve ser evitado Ocorreme que a inserção de bis no lugar de für seria uma tentativa de evitar o lapso estilístico Deve ter sido isso mas uma tentativa com meios bastante in adequados A preposição bis não cabe nesse ponto não pode substituir o indis pensável für Por que justamente bis Mas talvez a palavrinha bis não seja a preposição que exprime o limite de tempo e sim algo totalmente diferente É o bis latino pela segunda vez que passou para o francês mantendo o sentido Ne bis in idem Não repetir o mesmo procedimento dizse no direito romano Bis bis gritam os franceses quando querem a repetição de algo num espetáculo Eis então a explicação de meu disparatado engano ao escrever Ante o segundo für recebi o aviso para não repetir a mesma palavra Outra coisa no lugar de für então A casual semelhança sonora da palavra estrangeira bis na objeção ao fraseado original com a preposição alemã torna possível trocar o für por bis como se fosse um erro Mas esse ato falho não alcança seu propósito ao se realizar e sim ao ser corrigido Tenho de cortar o bis e desse modo elimino por assim dizer a repetição que me incomodava Uma variante do mecanismo de um ato falho não desprovida de interesse Fiquei satisfeito com esta solução mas nas autoanálises há sempre o perigo da interpretação incompleta Contentamonos rapidamente com uma ex plicação parcial por trás da qual a resistência mantém algo possivelmente mais importante Minha filha quando lhe falei dessa pequena análise logo achou um prosseguimento para ela Você já presenteou uma pedra assim para um anel Provavelmente é essa a repetição que você quer evitar Não gostamos de dar sempre o mesmo presente Isso me convenceu era obviamente uma crít ica à repetição do mesmo presente não da mesma palavra Esta é apenas um deslocamento para algo trivial destinada a desviar a atenção de algo mais sig nificativo uma dificuldade estética talvez no lugar de um conflito instintual É fácil prosseguir Eu buscava um motivo para não presentear a gema Ele estava na consideração de que eu já a havia dado de presente antes uma muito semelhante Por que essa objeção foi escondida e disfarçada Tinha de haver algo que receava vir à luz Logo vi claramente o que era Eu não queria me desfazer daquela gema ela me agradava muito Não apresentou grandes dificuldades o esclarecimento desse ato falho E logo surgiu também a reflexão consoladora Um arrependimento desses apenas realça o valor do presente Que presente seria se não nos pesasse um pouco nos privarmos dele De todo modo isso nos permite uma vez mais fazer uma ideia de como podem ser complicados os processos psíquicos mais despretensiosos e supostamente mais simples O sujeito se equivocou ao escre ver pôs um bis onde se pedia um für percebeu e corrigiu isso e esse pequeno erro na verdade apenas um ensaio de erro tinha muitos pressupostos e precondições dinâmicas E é claro ele não ocorreria se o material não fosse particularmente favorável 281286 Título original Die Feinheit einer Fehlleistung Publicado primeiramente em Almanach 1936 pp 1517 Traduzido de Gesammelte Werke xvi pp 379 A semelhança fonética ocorre porque o ü alemão é uma mistura de u com i como o u francês 282286 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16O EU E O ID ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO E OUTROS TEXTOS 19231925 17INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA Copyright da tradução 2010 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes xiv xv e xvi Londres Imago 1948 1940 e 1950 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fischer 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 Pássaro com cabeça de homem Egito Período Ptolomaico séc iv aC 5 14 cm Imagem de Pataikos Egito Último Período sécs viiiiv aC 3 9 cm Freud Museum Londres Preparação Célia Evandro Revisão Camila Saraiva Márcia Moura ISBN 9788580860481 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr Created by PDF to ePub