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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 15 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 15 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU 1921 I INTRODUÇÃO II A ALMA COLETIVA SEGUNDO LE BON III OUTRAS ABORDAGENS DA VIDA ANÍMICA COLETIVA IV SUGESTÃO E LIBIDO V DUAS MASSAS ARTIFICIAIS IGREJA E EXÉRCITO VI OUTRAS TAREFAS E DIREÇÕES DE TRABALHO VII A IDENTIFICAÇÃO VIII ENAMORAMENTO E HIPNOSE IX O INSTINTO GREGÁRIO X A MASSA E A HORDA PRIMEVA XI UM GRAU NO INTERIOR DO EU XII COMPLEMENTOS SOBRE A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE HOMOSSEXUALIDADE FEMININA 1920 PSICANÁLISE E TELEPATIA 1941 1921 SONHO E TELEPATIA 1922 SOBRE ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO CIÚME NA PARANOIA E NA HOMOSSEXUALIDADE 1922 UMA NEUROSE DO SÉCULO XVII ENVOLVENDO O DEMÔNIO 1923 PREFÁCIO I A HISTÓRIA DO PINTOR CHRISTOPH HAITZMANN II O MOTIVO DO PACTO COM O DEMÔNIO III O DEMÔNIO COMO SUCEDÂNEO DO PAI IV OS DOIS PACTOS V O CURSO POSTERIOR DA NEUROSE PSICANÁLISE E TEORIA DA LIBIDO 1923 I PSICANÁLISE II TEORIA DA LIBIDO PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19201922 CONTRIBUIÇÃO À PRÉHISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA A ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS DE UMA GAROTA DE QUATRO ANOS O DR ANTON VON FREUND PREFÁCIO A ADDRESSES ON PSYCHOANALYSIS DE JAMES J PUTNAM APRESENTAÇÃO DE THE PSYCHOLOGY OF DAYDREAMS DE J VARENDONCK PREFÁCIO A LA MÉTHODE PSYCHANALYTIQUE DE RAYMOND DE SAUSSURE ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O INCONSCIENTE A CABEÇA DA MEDUSA 4300 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronológica em que apareceram origin almente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclareci mento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psic analíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No ent anto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão in cluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será com posta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de ín dices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catálogo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtrags band Volume suplementar inúmeros textos menores ou inédi tos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas alguns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais import antes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais cur tos são agrupados no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivel mente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máx imo de fidelidade ao original sem interpretações ou interferên cias de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa bibliografia sobre o tema Tam bém informações sobre a gênese e a importância de cada obra podem ser encontradas na literatura secundária principalmente na biografia em três volumes de Ernest Jones lançada no Brasil pela Imago do Rio de Janeiro e no mencionado aparato editori al da Standard inglesa A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso impli caria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiu se começar por um período intermediário e de pleno 6300 desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí proceder para trás e para diante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interessam tão somente a alguns especialis tas Entre parênteses se acha o ano da publicação original hav endo transcorrido mais de um ano entre a redação e a pub licação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior di ficuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu significado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduz idos os equivalentes achados em algumas versões estrangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já apareci das em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pre tensão de impor as escolhas aqui feitas como se fossem abso lutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos 7300 diferentes conforme suas diferentes abordagens e percepções da psicanálise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita Esta edição não pretende ser definitiva pelo simples motivo de que um clássico dessa natureza nunca recebe uma tradução definitiva E tendo sido planejada por alguém que se aproximou de Freud pela via da linguagem e da literatura destinase não apenas aos estudiosos e profissionais da psicanálise mas a todos aqueles que em vários continentes leem e se exprimem nessa que um grande poeta português chamou de nossa clara língua majestosa e um eminente tradutor e poeta brasileiro qualificou de portocálido brasilírico idiomaterno pcs 8300 PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU 1921 TÍTULO ORIGINAL MASSENPSYCHOLOGIE UND ICHANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO LEIPZIG VIENA E ZURIQUE INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL 1921 140 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII PP 71161 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IX PP 61134 I INTRODUÇÃO A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas que à primeira vista pode parecer muito significativa perde boa parte de sua agudeza se a examinamos mais detida mente É certo que a psicologia individual se dirige ao ser hu mano particular investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais mas ela rara mente apenas em condições excepcionais pode abstrair das re lações deste ser particular com os outros indivíduos Na vida psíquica do ser individual o Outro é via de regra considerado en quanto modelo objeto auxiliador e adversário e portanto a psicologia individual é também desde o início psicologia social num sentido ampliado mas inteiramente justificado As relações do indivíduo com seus pais e irmãos com o objeto de seu amor com seu professor e seu médico isto é todas as re lações que até agora foram objeto privilegiado da pesquisa psic analítica podem reivindicar ser apreciadas como fenômenos sociais colocandose em oposição a outros processos que de nominamos narcísicos nos quais a satisfação dos instintos es capa à influência de outras pessoas ou a elas renuncia A oposição entre atos psíquicos sociais e narcísicos Bleuler diria talvez autísticos situase inteiramente portanto no domínio da psicologia individual e não se presta para distinguila de uma psicologia social ou de massas Nas mencionadas relações com os pais e irmãos com a amada o amigo o professor e o médico o indivíduo sempre so fre a influência de apenas uma pessoa ou um número mínimo delas cada uma das quais adquiriu para ele significação ex traordinária Quando se fala de psicologia social ou de massas existe o hábito de abstrair dessas relações e isolar como objeto de investigação a influência que um grande número de pessoas exerce simultaneamente sobre o indivíduo pessoas às quais ele se acha ligado de algum modo mas em muitos aspectos elas lhe podem ser estranhas Portanto a psicologia de massas trata o ser individual como membro de uma tribo um povo uma casta uma classe uma instituição ou como parte de uma aglomeração que se organiza como massa em determinado momento para um certo fim Após essa ruptura de um laço natural o passo seguinte é considerar os fenômenos que surgem nessas condições especi ais como manifestações de um instinto especial irredutível a outra coisa o instinto social herd instinct group mind in stinto de rebanho mente do grupo que não chega a se mani festar em outras situações Mas podemos levantar a objeção de que é difícil conceder ao fator numérico um significado tão grande em que somente ele seria capaz de despertar na vida psíquica humana um instinto novo normalmente inativo Nossa expectativa é então desviada para duas outras possibilidades a de que o instinto social pode não ser primário e indivisível e de que os primórdios da sua formação podem ser encontrados num círculo mais estreito como o da família A psicologia de massas embora se ache apenas no início compreende uma vasta gama de problemas e coloca para o pesquisador incontáveis tarefas que ainda não foram sequer diferenciadas A mera classificação dos vários modos de form ação das massas e a descrição dos fenômenos psíquicos por elas manifestados requerem um enorme trabalho de observação e ex posição e já deram origem a uma opulenta literatura Quem comparar este pequenino livro e a grande extensão da psicologia de massas poderá supor de imediato que aqui serão tratados 11300 apenas alguns pontos de toda a matéria E de fato serão poucas as questões que interessam particularmente à investigação psic analítica das profundezas II A ALMA COLETIVA SEGUNDO LE BON Em vez de dar primeiramente uma definição parecenos mais adequado começar com uma referência ao campo dos fenômenos e dele retirar alguns fatos especialmente notáveis e característi cos dos quais poderá partir a investigação Conseguiremos as duas coisas se recorrermos ao livro justamente famoso de Le Bon Psicologia das massas1 Precisemos mais uma vez a questão Se a psicologia que pro cura as disposições os impulsos instintuais os motivos as in tenções do indivíduo nas suas ações e nas relações com os mais próximos tivesse cumprido cabalmente a sua tarefa e tornado transparentes todos esses nexos depararia subitamente com um problema novo não resolvido Teria de explicar o fato sur preendente de que esse indivíduo que se tornara compreensível para ela em determinada condição pensa sente e age de modo completamente distinto do esperado e esta condição é seu alin hamento numa multidão que adquiriu a característica de uma massa psicológica O que é então uma massa de que maneira adquire ela a capacidade de influir tão decisivamente na vida psíquica do indivíduo e em que consiste a modificação psíquica que ela impõe ao indivíduo Responder a essas três perguntas é tarefa de uma psicologia teórica das massas A melhor maneira de abordálas sem 12300 dúvida é iniciar pela terceira delas A observação da reação al terada do indivíduo é que fornece o material à psicologia das massas toda tentativa de explicação deve ser precedida pela descrição daquilo a ser explicado Agora passo a palavra a Le Bon Ele diz p 13 O fato mais singular numa massa psicológica é o seguinte quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem sejam semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida suas ocu pações seu caráter ou sua inteligência o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva Esta alma os faz sentir pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria pensaria e agiria isoladamente Certas ideias certos sentimen tos aparecem ou se transformam em atos apenas nos indiví duos em massa A massa psicológica é um ser provisório composto de elementos heterogêneos que por um instante se soldaram exatamente como as células de um organismo formam com a sua reunião um ser novo que manifesta carac terísticas bem diferentes daquelas possuídas por cada uma das células p 11 Tomando a liberdade de intercalar comentários nossos à ex posição de Le Bon observemos aqui o seguinte Se os indivíduos da massa estão ligados numa unidade tem de haver algo que os une entre si e este meio de ligação poderia ser justamente o que é característico da massa Mas Le Bon não dá resposta a essa questão ele passa a lidar com a modificação do indivíduo na massa e a descreve em termos que harmonizam bastante com os pressupostos básicos de nossa psicologia profunda 13300 P 14 Constatase facilmente o quanto o indivíduo na massa difere do indivíduo isolado mas as causas de tal diferença são menos fáceis de descobrir Para chegar a vislumbrálas é preciso recordar primeira mente esta observação da psicologia moderna que não é apenas na vida orgânica mas também no funcionamento da inteligência que os fenômenos inconscientes têm papel pre ponderante A vida consciente do espírito não representa senão uma pequenina parte comparada à sua vida incon sciente O analista mais sutil o observador mais penetrante chega a descobrir apenas um número pequeno dos móveis in conscientes que o conduzem Nossos atos conscientes de rivam de um substrato inconsciente formado sobretudo de in fluências hereditárias Este substrato encerra os inúmeros resíduos ancestrais que constituem a alma da raça Por trás das causas confessas de nossos atos há sem dúvida causas secretas que não confessamos mas por trás dessas causas secretas há outras bem mais secretas ainda pois nós mesmos as ignoramos A maioria de nossos atos cotidianos é res ultado de móveis ocultos que nos escapam pp 112 Na massa acredita Le Bon as aquisições próprias dos indiví duos se desvanecem e com isso desaparece sua particularidade O inconsciente próprio da raça ressalta o heterogêneo submerge no homogêneo Diríamos que a superestrutura psíquica que se desenvolveu de modo tão diverso nos indivíduos é desmontada debilitada e o fundamento inconsciente comum a todos é posto a nu tornase operante Dessa maneira se produziria um caráter mediano dos indiví duos da massa Mas conforme Le Bon eles mostram também 14300 características novas que não possuíam antes e ele busca a razão para isso em três fatores diferentes P 15 O primeiro é que o indivíduo na massa adquire pelo simples fato do número um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos que estando só ele manter ia sob controle E cederá com tanto mais facilidade a eles porque sendo a massa anônima e por conseguinte irrespon sável desaparece por completo o sentimento de responsabil idade que sempre retém os indivíduos Não precisamos em nosso ponto de vista atribuir muito valor à emergência de novas características Bastanos dizer que na massa o indivíduo está sujeito a condições que lhe permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes As características aparentemente novas que ele então apresenta são justamente as manifestações desse inconsciente no qual se acha contido em predisposição tudo de mau da alma humana Não é difícil compreendermos o esvaecer da consciência ou do sentimento de responsabilidade nestas circunstâncias Há muito afirmamos que o cerne da chamada consciência moral consiste no medo social2 P 16 Uma segunda causa o contágio mental intervém igualmente para determinar a manifestação de características es peciais nas massas e a sua orientação O contágio é um fenô meno fácil de constatar mas inexplicável que é preciso relacion ar aos fenômenos de ordem hipnótica que adiante estudaremos Numa massa todo sentimento todo ato é contagioso e isso a ponto de o indivíduo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo Eis uma aptidão contrária à sua natureza 15300 de que o homem só se torna capaz enquanto parte de uma massa p 13 Sobre esta última frase vamos fundamentar mais adiante uma importante conjectura P 16 Uma terceira causa de longe a mais importante de termina nos indivíduos da massa características especiais às vezes bastante contrárias às do indivíduo isolado Refirome à sugestionabilidade de que o contágio mencionado acima é apenas um efeito Para compreender esse fenômeno é preciso ter em mente algumas descobertas recentes da fisiologia Sabemos hoje que um indivíduo pode ser posto num estado tal que tendo per dido sua personalidade consciente ele obedece a todas as sug estões do operador que a fez perdêla e comete os atos mais contrários a seu caráter e a seu costume Ora observações at entas parecem provar que o indivíduo mergulhado há algum tempo no seio de uma massa ativa logo cai em consequên cia de eflúvios que dela emanam ou por outra causa ainda ig norada num estado particular aproximandose muito do estado de fascinação do hipnotizado nas mãos do hipnotiz ador A personalidade consciente se foi a vontade e o dis cernimento sumiram Sentimentos e pensamentos são então orientados no sentido determinado pelo hipnotizador Tal é aproximadamente o estado de um indivíduo que participa de uma massa Ele não é mais consciente de seus atos Nele como no hipnotizado enquanto certas faculdades são destruídas outras podem ser levadas a um estado de ex altação extrema A influência de uma sugestão o levará com irresistível impetuosidade à realização de certos atos 16300 Impetuosidade ainda mais irresistível nas massas que no sujeito hipnotizado pois a sugestão sendo a mesma para to dos os indivíduos exacerbase pela reciprocidade pp 134 P 17 Portanto evanescimento da personalidade con sciente predominância da personalidade inconsciente ori entação por via de sugestão e de contágio dos sentimentos e das ideias num mesmo sentido tendência a transformar ime diatamente em atos as ideias sugeridas tais são as principais características do indivíduo na massa Ele não é mais ele mesmo mas um autômato cuja vontade se tornou impotente para guiálo p 14 Reproduzi estas passagens minuciosamente a fim de reforçar que Le Bon realmente designa o estado do indivíduo na massa como hipnótico não se limita apenas a comparálo com este Não pretendemos contradizêlo mas somente destacar que as duas últimas causas da modificação do indivíduo na massa o contágio e a maior sugestionabilidade evidentemente não são do mesmo tipo pois o contágio deve ser também uma manifestação da sugestionabilidade Também os efeitos de ambos os fatores não nos parecem claramente separados no texto de Le Bon Talvez interpretemos da melhor maneira sua afirmação se rela cionarmos o contágio ao efeito que os membros isolados da massa exercem uns sobre os outros enquanto as manifestações de sugestão da massa equiparadas aos fenômenos de influência hipnótica remetem a outra fonte A qual porém Deve nos tocar como uma sensível deficiência o fato de um dos principais ele mentos dessa comparação isto é a pessoa que substitui o hipnotizador para a massa não ser mencionado por Le Bon De qualquer modo ele distingue esta influência fascinadora deixada 17300 na penumbra e o efeito contagioso dos indivíduos entre si que vem a fortalecer a sugestão original Eis ainda uma consideração importante para julgar o indiví duo da massa P 17 Portanto pelo simples fato de pertencer a uma massa o homem desce vários degraus na escala na civiliza ção Isolado ele era talvez um indivíduo cultivado na massa é um instintivo e em consequência um bárbaro Tem a espon taneidade a violência a ferocidade e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos p 14 Ele então se detém es pecialmente na diminuição da capacidade intelectual experi mentada pelo indivíduo que se dissolve na massa3 Deixemos agora o indivíduo e nos voltemos para a descrição da alma da massa tal como Le Bon a delineia Nela não há traço algum que um psicanalista não consiga derivar e situar O próprio Le Bon nos mostra o caminho ao apontar a coincidência com a vida anímica dos povos primitivos e das crianças p 19 A massa é impulsiva volúvel e excitável É guiada quase ex clusivamente pelo inconsciente4 Os impulsos a que obedece po dem ser conforme as circunstâncias nobres ou cruéis heroicos ou covardes mas de todo modo são tão imperiosos que nenhum interesse pessoal nem mesmo o da autopreservação se faz valer p 20 Nada nela é premeditado Embora deseje as coisas apaix onadamente nunca o faz por muito tempo é incapaz de uma vontade persistente Não tolera qualquer demora entre o seu desejo e a realização dele Tem o sentimento da onipotência a noção do impossível desaparece para o indivíduo na massa5 A massa é extraordinariamente influenciável e crédula é ac rítica o improvável não existe para ela Pensa em imagens que evocam umas às outras associativamente como no indivíduo em 18300 estado de livre devaneio e que não têm sua coincidência com a realidade medida por uma instância razoável Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados Ela não con hece dúvida nem incerteza6 Ela vai prontamente a extremos a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível um germe de antipatia se torna um ódio selvagem p 327 Inclinada a todos os extremos a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos Quem quiser influir sobre ela não necessita medir logicamente os argumentos deve pintar com as imagens mais fortes exagerar e sempre repetir a mesma coisa Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso e tem consciência da sua enorme força ela é ao mesmo tempo intolerante e crente na autoridade Ela respeita a força e deixase influenciar apenas moderadamente pela bondade que para ela é uma espécie de fraqueza O que ela exige de seus her óis é fortaleza até mesmo violência Quer ser dominada e oprim ida quer temer os seus senhores No fundo inteiramente conser vadora tem profunda aversão a todos os progressos e inovações e ilimitada reverência pela tradição p 37 Para julgar corretamente a moralidade das massas devese levar em consideração que ao se reunirem os indivíduos numa massa todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis brutais destrutivos que dormitam no ser hu mano como vestígios dos primórdios do tempo são despertados para a livre satisfação instintiva Mas as massas são também capazes sob influência da sugestão de elevadas provas de renúncia desinteresse devoção a um ideal Enquanto a 19300 vantagem pessoal no indivíduo isolado é quase que o único móvel de ação nas massas ela raramente predomina Podese falar de uma moralização do indivíduo pela massa p 39 En quanto a capacidade intelectual da massa está bem abaixo daquela do indivíduo sua conduta ética tanto pode ultrapassar esse nível como descer bem abaixo dele Alguns outros traços na caracterização de Le Bon lançam uma clara luz sobre a validez de identificar a alma da massa com a dos povos primitivos Nas massas as ideias opostas podem co existir e suportar umas às outras sem que resulte um conflito de sua contradição lógica O mesmo sucede porém na vida anímica inconsciente dos indivíduos das crianças e dos neuróticos como há muito demonstrou a psicanálise8 Além disso a massa está sujeita ao poder verdadeiramente mágico das palavras que podem provocar as mais terríveis tor mentas na sua alma e também apaziguálas p 74 A razão e os argumentos não sabem lutar contra certas palavras e certas fór mulas Proferidas com solenidade diante da massa imediata mente os rostos se tornam respeitosos e as cabeças se inclinam Muitos as consideram forças da natureza poderes sobrenat urais p 75 Quanto a isso basta lembrar o tabu dos nomes entre os primitivos as forças mágicas que para eles estão ligadas a nomes e palavras9 E por fim as massas nunca tiveram a sede da verdade Requerem ilusões às quais não podem renunciar Nelas o irreal tem primazia sobre o real o que não é verdadeiro as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro Elas têm a visível tendência de não fazer distinção entre os dois p 47 20300 Já mostramos que essa predominância da vida da fantasia e da ilusão sustentada pelo desejo não realizado é algo determin ante na psicologia das neuroses Descobrimos que o que vale para os neuróticos não é a realidade objetiva comum mas a real idade psíquica Um sintoma histérico se baseia na fantasia em vez de na repetição da vivência real a consciência de culpa da neurose obsessiva no fato de uma má intenção que jamais se realizou Como no sonho e na hipnose na atividade anímica da massa a prova da realidade recua ante a força dos desejos in vestidos de afeto O que Le Bon afirma sobre os líderes das massas é menos completo e não deixa transparecer tão claramente as possíveis leis em jogo Ele acredita que quando seres vivos se reúnem em determinado número seja um rebanho de animais ou um grupamento de homens instintivamente se colocam sob a autor idade de um chefe p 86 A massa é um rebanho dócil que não pode jamais viver sem um senhor Ela tem tamanha sede de obediência que instintivamente se submete a qualquer um que se apresente como seu senhor Assim as necessidades da massa a tornam receptiva ao líder mas este precisa corresponder a ela com suas características pessoais Ele próprio tem de estar fascinado por uma forte crença numa ideia para despertar crença na massa ele tem de possuir uma vontade forte imponente que a massa sem vontade vai aceitar Le Bon discute então os diferentes tipos de líder e os meios pelos quais atuam sobre a massa No conjunto entende que os líderes adquirem importância pelas ideias de que eles mesmos são fanáticos 21300 A estas ideias assim como aos líderes atribui igualmente um poder misterioso irresistível que ele chama de prestígio O prestígio é uma espécie de domínio que uma pessoa uma obra ou uma ideia exerce sobre nós Paralisa toda a nossa capacidade crítica e nos enche de espanto e respeito Provocaria um senti mento semelhante ao do fascínio na hipnose p 9676 Ele distingue o prestígio adquirido ou artificial e o pessoal O primeiro é dado às pessoas pelo nome a riqueza a reputação e conferido às concepções obras de arte etc pela tradição Como em todos os casos ele remonta ao passado pouco ajudará na compreensão dessa misteriosa influência O prestígio pessoal ex iste em poucas pessoas que através dele se tornam líderes e faz com que todos a elas obedeçam como sob o efeito de um en canto magnético Mas todo prestígio depende também do su cesso e é perdido com o fracasso p 103 As considerações de Le Bon sobre o papel do líder e a im portância do prestígio não nos parecem se harmonizar com a sua brilhante descrição da alma coletiva III OUTRAS ABORDAGENS DA VIDA ANÍMICA COLETIVA Servimonos da descrição de Le Bon como uma introdução por ela concordar tão bem com a nossa própria psicologia ao colocar a ênfase na vida psíquica inconsciente Mas agora temos de acrescentar que na verdade nenhuma das afirmações desse autor traz algo de novo Tudo o que ele diz de desfavorável e 22300 depreciativo sobre as manifestações da alma coletiva já foi dito antes com a mesma nitidez e hostilidade é repetido em termos semelhantes por pensadores estadistas e poetas desde que ex iste literatura10 As duas teses que contêm os mais importantes pontos de vista de Le Bon a da inibição coletiva da capacidade intelectual e a da elevação da afetividade na massa haviam sido formuladas pouco antes por Sighele11 No fundo só restam como próprias de Le Bon as duas noções do inconsciente e da com paração com a vida anímica dos primitivos também essas aventadas antes dele Mais ainda a exposição e apreciação da alma coletiva tal como feita por Le Bon e outros também não deixou de ser con testada Não há dúvida de que todos os fenômenos descritos da alma coletiva foram corretamente observados mas podese re conhecer outras manifestações da formação de massas atuando em sentido contrário e que devem conduzir a uma bem mais alta avaliação da alma coletiva Também Le Bon estava disposto a admitir que a moralidade da massa em algumas circunstâncias pode ser mais elevada que a dos indivíduos que a compõem e que apenas as coletividades são capazes do mais alto desinteresse e devoção Raramente o interesse pessoal é um móvel poderoso nas massas enquanto constitui o móvel quase exclusivo do indivíduo isolado p 38 Outros apontam para o fato de que apenas a sociedade prescreve para o indivíduo as normas da moralidade enquanto via de re gra o indivíduo permanece de algum modo aquém dessas altas exigências ou que em estados de exceção produzse numa comunidade o fenômeno do entusiasmo que torna possíveis as mais grandiosas realizações da massa 23300 No tocante à realização intelectual continua verdadeiro que as grandes decisões do trabalho do pensamento as descobertas e soluções de enorme consequência são possíveis apenas para o indivíduo que trabalha na solidão Mas também a alma coletiva é capaz de geniais criações do espírito como a própria língua demonstra acima de tudo e também o canto popular o folclore etc E continua em aberto além disso o quanto o pensador ou poeta individual deve aos estímulos da massa em que vive se ele é mais que o consumador de um trabalho anímico no qual os outros colaboraram simultaneamente Em vista dessas perfeitas contradições parece que o trabalho da psicologia de massas deverá trazer pouco ou nenhum res ultado Mas não é difícil encontrar uma saída mais esperançosa Provavelmente foram reunidas sob a denominação de massas formações muito diversas que requerem diferenciação As afirmativas de Sighele Le Bon e outros dizem respeito a massas efêmeras que se juntam rapidamente com indivíduos hetero gêneos por interesse passageiro É inegável que as característic as das massas revolucionárias principalmente na grande Re volução Francesa influenciaram as suas descrições As inform ações contraditórias se originam da consideração das massas ou associações estáveis em que os seres humanos passam toda a sua vida e que tomam corpo nas instituições da sociedade As massas do primeiro tipo são como que superpostas a estas como as ondas curtas porém altas sobre os imensos vagalhões McDougall que em seu livro The group mind12 parte da mesma contradição mencionada vê a solução para ela no fator da organização No caso mais simples diz ele a massa group não possui organização ou algo digno desse nome Ele designa uma massa desse tipo como multidão crowd Mas concede 24300 que uma multidão de pessoas não se reúne tão facilmente sem que nela se forme ao menos um esboço de organização e que precisamente nessas massas simples podemse reconhecer com maior facilidade fatos fundamentais da psicologia coletiva p 22 A condição para que se forme uma massa a partir dos mem bros casualmente juntados de uma multidão é que esses indiví duos tenham algo em comum um interesse partilhado num ob jeto uma orientação afetiva semelhante em determinada situ ação e eu acrescentaria em consequência um certo grau de ca pacidade de influenciar uns aos outros Some degree of recip rocal influence between the members of the group p 23 Quanto mais fortes essas coisas em comum this mental homo geneity mais facilmente se forma a partir dos indivíduos uma massa psicológica e mais evidentes são as manifestações de uma alma coletiva O mais notável e também mais importante fenô meno da formação da massa é o aumento de afetividade provo cado no indivíduo exaltation or intensification of emotion p 24 Podese dizer segundo McDougall que dificilmente os afetos dos homens se elevam em outras condições à altura que atingem numa massa e é mesmo uma sensação prazerosa para seus membros entregarse tão abertamente às suas paixões e fundirse na massa perdendo o sentimento da delimitação indi vidual O fato de os indivíduos serem arrastados dessa forma é explicado por McDougall a partir do que chama de principle of direct induction of emotion by way of the primitive sympathetic response princípio de indução direta da emoção por meio da resposta simpática primitiva p 25 ou seja pelo nosso já con hecido contágio de sentimentos É fato que os sinais percebidos de um estado afetivo são apropriados para despertar 25300 automaticamente o mesmo afeto naquele que percebe Esta coação automática tornase tanto mais forte quanto maior for o número de pessoas em que pode ser notado simultaneamente o mesmo afeto Então a crítica do indivíduo silencia e ele se deixa levar por esse afeto Mas nisso ele aumenta a excitação dos out ros que agiram sobre ele e assim a carga afetiva dos indivíduos se eleva por indução recíproca Inconfundivelmente é algo como uma coerção que aí atua obrigando a fazer como os outros a permanecer de acordo com a maioria Os impulsos emotivos mais simples e grosseiros têm maior perspectiva de alastrarse desse modo numa massa p 39 Esse mecanismo de intensificação do afeto é favorecido por al gumas outras influências que se originam da massa Ela produz no indivíduo uma impressão de poder ilimitado e perigo in domável Por um momento ela se colocou no lugar de toda a so ciedade humana a portadora da autoridade cujos castigos a pessoa teme e em nome da qual se impôs tantas inibições É claramente perigoso estar em oposição à massa sentese mais segurança ao seguir o exemplo que aparece ao redor até mesmo uivando com os lobos eventualmente Em obediência à nova autoridade podese pôr a consciência anterior fora de ação e renderse à atração do ganho prazeroso que certamente se obtém ao suprimir as inibições Não chega a ser notável portanto ver o indivíduo da massa fazer ou aprovar coisas que evitaria em con dições normais de vida e podemos mesmo esperar desse modo afastar um pouco da penumbra que costuma cobrir o enigmático termo sugestão A tese da inibição coletiva da inteligência na massa também não é contrariada por McDougall p 41 Ele diz que as 26300 inteligências menores abaixam ao seu nível as maiores Estas são inibidas em sua atividade porque o aumento da afetividade cria condições desfavoráveis para o correto trabalho mental e além disso porque os indivíduos são intimidados pela massa e o seu trabalho de pensamento não é livre e porque em todo indivíduo é depreciada a consciência da responsabilidade pelo que faz O parecer final de McDougall sobre a conduta psíquica de uma massa simples desorganizada não é mais benévolo que o de Le Bon Uma massa desse tipo é p 45 totalmente excitável impulsiva apaixonada instável inconsequente indecisa e no entanto inclinada a ações extremas suscetível apenas às paixões mais grosseiras e sentimentos mais singelos extraordinaria mente sugestionável ligeira nas considerações veemente nos juízos receptiva somente para as conclusões e os argumentos mais simples e imperfeitos fácil de dirigir e intimidar sem con sciência de si sem autoestima e senso de responsabilidade mas disposta a deixarse arrastar pela consciência de sua força e cometer malefícios que poderíamos esperar somente de um poder absoluto e irresponsável Ela se comporta então como uma criança maleducada ou como um selvagem passional e desas sistido numa situação que lhe é estranha nos piores casos ela semelha mais um bando de bichos selvagens do que seres hu manos Como McDougall opõe o comportamento de massas bastante organizadas a este aqui descrito estaremos particular mente curiosos em saber em que consiste essa organização e por quais fatores se estabelece O autor conta cinco principal condi tions para a elevação da vida anímica da massa a um nível superior 27300 A primeira condição básica é um certo grau de continuidade na sua existência Essa continuidade pode ser material ou form al material quando as mesmas pessoas permanecem longo tempo na massa formal quando há certas posições desenvolvi das no interior da massa que vão sendo destinadas às pessoas que se sucedem A segunda condição que no indivíduo da massa tenha se for mado uma determinada concepção da natureza função realiza ções e reivindicações da massa de maneira que dela resulte um vínculo afetivo com a massa em seu conjunto A terceira que a massa se coloque em relação com outras semelhantes mas em muitos pontos diferentes para que haja al guma rivalidade entre elas A quarta que a massa tenha tradições costumes e dis posições especialmente no que se refere à relação dos membros entre si A quinta que na massa exista uma divisão que se manifesta na especialização e diferenciação da atividade que cabe ao indivíduo Segundo McDougall a satisfação dessas condições compensa as desvantagens psíquicas da formação da massa A proteção contra o rebaixamento coletivo da capacidade intelectual con siste em retirar da massa a solução das tarefas intelectuais e entregála a seus indivíduos Acreditamos que seria mais correto descrever de outro modo a condição designada por McDougall como organização da massa Tratase de prover a massa daquelas mesmas qualidades que eram características do indivíduo e que nele foram extintas pela formação da massa Pois o indivíduo tinha fora da massa primitiva sua continuidade sua consciência de si seus hábitos 28300 e tradições seu trabalho e colocação particular e mantinhase apartado de outros com quem rivalizava Ele havia perdido esta especificidade por algum tempo devido ao ingresso na massa não organizada Reconhecendose como objetivo dotar a massa dos atributos do indivíduo lembraremos de uma valiosa obser vação de W Trotter13 que vê na tendência à formação da massa um prolongamento biológico da multicelularidade dos organis mos superiores14 IV SUGESTÃO E LIBIDO Partimos do fato fundamental de que o indivíduo no interior de uma massa experimenta por influência dela uma mudança fre quentemente profunda de sua atividade anímica Sua afetividade é extraordinariamente intensificada sua capacidade intelectual claramente diminuída ambos os processos apontando não há dúvida para um nivelamento com os outros indivíduos da massa resultado que só pode ser atingido pela supressão das inibições instintivas próprias de cada indivíduo e pela renúncia às peculiares configurações de suas tendências Vimos que esses efeitos com frequência indesejados são impedidos ao menos em parte por uma superior organização das massas mas o fato fundamental da psicologia de massas as duas teses da intensi ficação do afeto e da inibição do pensamento não é contrariado por isso Nosso interesse agora se dirige para a busca de uma ex plicação psicológica para essa transformação anímica do indiví duo na massa 29300 Fatores racionais como a já mencionada intimidação do indi víduo isto é a ação de seu instinto de autopreservação evid entemente não chegam a dar conta dos fenômenos observados O que além disso nos oferecem como explicação em sociologia e psicologia da massa é sempre o mesmo embora sob nomes diferentes a mágica palavra sugestão Tarde a denomina imit ação15 mas devemos dar razão a um autor que nos previne que a imitação se inclui no conceito de sugestão é justamente uma consequência dela16 Em Le Bon tudo o que há de estranho nos fenômenos sociais é reduzido a dois fatores a mútua sugestão dos indivíduos e o prestígio do líder Mas o prestígio por sua vez exteriorizase apenas no efeito de provocar sugestão Em McDougall pudemos ter por um momento a impressão de que seu princípio da indução primária de afeto permitia dispensar a hipótese da sugestão Refletindo mais detidamente porém pu demos compreender que este princípio nada mais expressa que a conhecida tese sobre imitação ou contágio apenas com uma decidida ênfase no fator afetivo Sem dúvida existe em nós a tendência de incorrer no mesmo afeto ao perceber sinais de um estado afetivo em outra pessoa mas não acontece de resistirmos a ela com êxito rechaçando o afeto e reagindo de maneira total mente contrária Por que então cedemos normalmente a esse contágio estando na massa De novo será preciso dizer que é a influência sugestiva da massa que nos leva a obedecer a esta tendência à imitação que induz em nós o afeto Mas fora isso também não escapamos à sugestão em McDougall assim como os outros ele diz que as massas se destacam por uma sugestion abilidade particular 30300 Isso nos predispõe para o enunciado de que a sugestão mais corretamente a sugestionabilidade seria justamente um fenô meno primordial irredutível um dado fundamental na vida an ímica dos seres humanos É o que achava também Bernheim cu jas artes espantosas eu presenciei em 1889 Mas também me re cordo de haver sentido na época uma surda hostilidade a essa tirania da sugestão Quando gritavam a um doente que não se mostrava dócil O que está fazendo Vous vous contresugges tionez eu achava aquilo uma evidente injustiça e uma violên cia Ele tinha direito a contrassugestões certamente se tentavam sujeitálo com sugestões Depois minha resistência tomou a direção de uma revolta contra o fato de a sugestão que tudo ex plicava se furtar ela mesma à explicação Eu repetia com refer ência a ela a velha adivinhação17 Cristóvão carregou Cristo Cristo carregou o mundo inteiro Diga então onde Cristóvão Apoiou o pé Christophorus Christum sed Christus sustulit orbem Constiterit pedibus dic ubi Christophorus Abordando novamente o enigma da sugestão após um afasta mento de trinta anos vejo que nada mudou com uma única exceção que atesta precisamente a influência da psicanálise Constato que é feito um esforço especial para formular correta mente o conceito de sugestão isto é fixar convencionalmente o uso do nome18 e isso não é supérfluo pois a palavra está sendo cada vez mais utilizada com significação frouxa e logo estará 31300 designando uma influência qualquer como em inglês em que to suggest suggestion corresponde ao nosso nahelegen in sinuar sugerir nosso Anregung incitação estímulo Mas sobre a natureza da sugestão isto é sobre as condições em que se produzem influências sem fundamento lógico não houve es clarecimento Eu não me furtaria ao trabalho de apoiar esta afirmação com uma análise da literatura dos últimos trinta anos mas não o faço porque sei que está sendo preparada uma pesquisa minuciosa que se colocou precisamente essa tarefa Em vez disso farei a tentativa de aplicar no esclarecimento da psicologia da massa o conceito de libido que nos prestou bons serviços no estudo das psiconeuroses Libido é uma expressão proveniente da teoria da afetivid ade Assim denominamos a energia tomada como grandeza quantitativa embora atualmente não mensurável desses in stintos relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido pela palavra amor O que constitui o âmago do que chamamos amor é naturalmente o que em geral se designa como amor e é cantado pelos poetas o amor entre os sexos para fins de união sexual Mas não separamos disso o que partilha igualmente o nome de amor de um lado o amor a si mesmo do outro o amor aos pais e aos filhos a amizade e o amor aos seres humanos em geral e também a dedicação a objetos concretos e a ideias ab stratas Nossa justificativa é que a investigação psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências seriam expressão dos mes mos impulsos instintuais que nas relações entre os sexos impelem à união sexual e que em outras circunstâncias são afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançála mas sempre conservam bastante da sua natureza original o suficiente 32300 para manter sua identidade reconhecível abnegação busca de aproximação Por isso acreditamos que na palavra amor com suas múlti plas acepções a língua fez uma síntese perfeitamente justificada e o melhor que temos a fazer é tomála também como base para nossas discussões e exposições científicas Com esta decisão a psicanálise desencadeou uma tormenta de indignação como se fosse culpada de uma inovação escabrosa E no entanto ela nada fez de original ao conceber o amor desta forma ampliada Em sua origem função e relação com o amor sexual o Eros do filósofo Platão coincide perfeitamente com a força amorosa a li bido da psicanálise como Nachmansohn e Pfister mostraram em detalhe19 e quando o apóstolo Paulo na famosa carta aos Corín tios louva o amor acima de tudo20 sem dúvida o compreende no mesmo sentido ampliado o que demonstra que os homens nem sempre levam a sério seus grandes pensadores mesmo quando dizem admirálos muito Na psicanálise esses instintos amorosos são chamados a po tiori de preferência e devido à sua origem de instintos sexuais A maioria das pessoas educadas sentiuse ofendida com essa denominação e vingouse lançando à psicanálise a acusação de pansexualismo Quem toma a sexualidade por algo vergonhoso e humilhante para a natureza humana tem inteira liberdade para usar expressões mais nobres como Eros e erotismo Eu próprio poderia têlo feito desde o início poupandome de muita hostilidade Mas não quis fazêlo porque prefiro evitar con cessões à pusilanimidade Nunca se sabe aonde conduz esse caminho primeiro cedemos nas palavras e depois pouco a pou co também na coisa Não consigo ver nenhum mérito em ter vergonha da sexualidade a palavra grega Eros que deveria 33300 minorar o insulto é tão somente a tradução da palavra alemã amor Liebe e afinal quem pode esperar não precisa fazer concessões Então experimentaremos a hipótese de que as relações de amor ou expresso de modo mais neutro os laços de senti mento constituem também a essência da alma coletiva Recor demos que os autores não fazem menção destes laços O que cor responderia a eles está evidentemente oculto por trás da tela do biombo da sugestão Para começar apoiaremos nossa expect ativa em duas reflexões sumárias Primeiro que evidentemente a massa se mantém unida graças a algum poder Mas a que poder deveríamos atribuir este feito senão a Eros que mantém unido tudo o que há no mundo Segundo que temos a impressão se o indivíduo abandona sua peculiaridade na massa e permite que os outros o sugestionem que ele o faz porque existe nele uma ne cessidade de estar de acordo e não em oposição a eles talvez en tão por amor a eles V DUAS MASSAS ARTIFICIAIS IGREJA E EXÉRCITO Lembremos que segundo a morfologia das massas podemse dis tinguir espécies bem diferentes de massas e direções opostas na sua formação Existem massas bastante passageiras e outras bem duradouras massas homogêneas que se compõem de indivíduos do mesmo tipo e não homogêneas naturais e artificiais isto é que requerem também uma coação externa para se manter mas sas primitivas e diferenciadas altamente organizadas Mas por 34300 razões que no momento não se apresentam gostaríamos de dar valor especial a uma distinção que os especialistas não têm considerado refirome àquela entre massas com líder e sem líder E contrariamente à prática habitual nossa pesquisa não deve escolher uma formação relativamente simples como ponto de partida mas iniciar com massas bastante organizadas duradouras e artificiais Os exemplos mais interessantes de tais formações são a Igreja a comunidade dos crentes e as forças ar madas o Exército Igreja e Exército são massas artificiais isto é uma certa coação externa é empregada para evitar21 sua dissolução e im pedir mudanças na sua estrutura Normalmente não se pergunta a alguém ou não lhe é dada a escolha se deseja ou não ingressar numa massa desse tipo a tentativa de desligamento é desestimu lada ou severamente punida ou está sujeita a condições bem de terminadas Está longe de nosso interesse atual indagar por que estas associações requerem salvaguardas tão especiais Somos atraídos pela circunstância de que nestas massas altamente or ganizadas que daquela maneira se protegem da dissolução po dem ser reconhecidos certos fatos que em outros casos se acham bem mais ocultos Na Igreja podemos com vantagem tomar a Igreja católica como modelo prevalece tal como no Exército por mais difer entes que sejam de resto a mesma simulação ilusão de que há um chefe supremo na Igreja católica Cristo num Exército o general que ama com o mesmo amor todos os indivíduos da massa Tudo depende dessa ilusão se ela fosse abandonada imediatamente se dissolveriam tanto a Igreja como o Exército na medida em que a coerção externa o permitisse Esse amor a todos é formulado expressamente por Cristo O que fizestes a 35300 um desses meus pequenos irmãos a mim o fizestes Mateus 25 40 Ele se relaciona com os indivíduos da massa crente como um bondoso irmão mais velho é um substituto paterno para eles Todas as exigências feitas aos indivíduos derivam desse amor de Cristo Há um traço democrático na Igreja justamente porque diante de Cristo são todos iguais todos partilham igualmente o seu amor Não é sem profunda razão que se evoca a semelhança entre a comunidade cristã e uma família e que os crentes se de nominam irmãos em Cristo isto é irmãos pelo amor que Cristo lhes tem Não há dúvida de que a ligação de cada indivíduo a Cristo é também a causa da ligação deles entre si Algo parecido vale para o Exército o general é o pai que ama igualmente todos os seus soldados e por isso eles são camaradas entre si O Exér cito se diferencia estruturalmente da Igreja pelo fato de consistir num escalonamento desse tipo Cada capitão é como que o gen eral e o pai de sua companhia cada suboficial de sua unidade Uma hierarquia semelhante formouse também na Igreja mas nela não tem o mesmo papel econômico porque é de supor que Cristo tenha mais saber e mais cuidado em relação aos indivídu os do que pode ter um general humano A esta concepção da estrutura libidinal do Exército se ob jetará com razão que nela não há lugar para as ideias de pátria de glória nacional e outras assim tão importantes para a coesão do Exército A resposta é que esse é um outro caso menos simples de ligação de massa e como mostram os exemplos de grandes comandantes César Wallenstein Napoleão tais ideias não são indispensáveis para a existência de um Exército Mais adiante abordaremos brevemente a possível substituição do líder por uma ideia condutora e as relações entre os dois A 36300 negligência desse fator libidinal no Exército mesmo quando não é o único operante parece não apenas uma falha teórica mas também um perigo prático O militarismo prussiano que era tão pouco psicológico quanto a ciência alemã possivelmente teve que aprender isso na Grande Guerra mundial As neuroses de guerra que desagregaram o Exército alemão foram reconheci das em grande parte como um protesto do indivíduo contra o papel a ele imposto no Exército e segundo as comunicações de E Simmel22 é lícito afirmar que o tratamento sem amor que o homem comum recebia dos superiores estava entre os maiores motivos da doença Havendo melhor apreciação dessa exigência libidinal provavelmente as fantásticas promessas dos Catorze Pontos do presidente americano não teriam encontrado ouvidos tão crédulos e aquele magnífico instrumento não se teria quebrado nas mãos dos estrategistas alemães Notemos que nessas duas massas artificiais cada indivíduo se acha ligado libidinalmente ao líder Cristo general por um lado e aos outros indivíduos da massa por outro lado Como es sas duas ligações se comportam entre si se são da mesma es pécie e mesmo valor e como podem ser descritas psicologica mente isso devemos deixar para uma investigação posterior Mas já nos atrevemos a reprovar ligeiramente os demais autores por não terem apreciado suficientemente a importância do líder na psicologia da massa enquanto a nossa escolha deste primeiro objeto de investigação nos colocou em posição mais favorável Quer nos parecer que nos achamos no caminho correto que pode esclarecer o principal fenômeno da psicologia das massas a ausência de liberdade do indivíduo na massa Se ocorre para cada indivíduo uma tão pródiga ligação afetiva em duas 37300 direções não será difícil derivar dessa situação aquilo que se constatou ou seja a mudança e limitação de sua personalidade Um outro indício de que a essência da massa reside nas lig ações libidinais nela existentes nos é proporcionado pelo fenô meno do pânico que pode ser mais bem estudado nas massas militares O pânico surge quando uma massa desse tipo se desin tegra É caracterizado pelo fato de as ordens do superior não ser em mais ouvidas e cada um cuidar apenas de si sem consider ação pelos demais As ligações mútuas cessaram e uma angústia enorme e sem sentido é liberada Naturalmente aqui também se insinua a objeção de que seria o contrário a angústia cresceu de tal forma que pôde superar todas as considerações e ligações McDougall chegou mesmo p 24 a utilizar o pânico o não milit ar porém como exemplo típico da intensificação de afeto por contágio primary induction por ele enfatizada Mas esse modo de explicação racional falha completamente aqui O que se deve explicar é por que a angústia se tornou tão grande Não se pode culpar a magnitude do perigo pois o mesmo Exército que agora sucumbe ao pânico talvez tenha enfrentado perigos igualmente grandes e até maiores e é quase da essência do pânico não guardar relação com o perigo real às vezes irrompendo nas ocasiões mais triviais Se o indivíduo tomado de angústia pân ica passa a cuidar apenas de si mesmo demonstra haver com preendido que cessaram as ligações afetivas que até então minoravam para ele o perigo Agora que se defronta sozinho com ele pode certamente estimálo mais Sucede então que o medo pânico pressupõe o afrouxamento da estrutura libidinal da massa e a ele reage de modo justificado e não o contrário que as 38300 ligações libidinais da massa sejam destruídas pelo medo do perigo Estas observações não contradizem de modo algum a afirm ação de que a angústia da massa cresceria desmedidamente por indução contágio A concepção de McDougall é pertinente no caso de o perigo ser realmente grande e não existirem ligações afetivas fortes na massa condições que se realizam por exem plo quando irrompe um incêndio num teatro ou local de diver sões O caso mais instrutivo e útil para nossos fins é o mencion ado acima em que um corpo de Exército sucumbe ao pânico embora o perigo não ultrapasse a medida habitual muitas vezes tolerada Não se pode esperar que o uso da palavra pânico es teja fixado de maneira clara e inequívoca Às vezes ela designa qualquer medo coletivo outras vezes também o medo de um in divíduo quando excede qualquer medida e com frequência parece reservada para o caso em que a irrupção do medo não é justificada pela ocasião Se tomarmos pânico no sentido de medo coletivo poderemos estabelecer uma analogia de vasto al cance O medo do indivíduo é provocado pela magnitude do perigo ou pela interrupção de laços afetivos investimentos libid inais este último caso é o da angústia neurótica23 De igual maneira o pânico nasce pela intensificação do perigo que afeta a todos ou pela cessação dos laços afetivos que mantêm a massa coesa e este caso é análogo ao medo neurótico Cf a propósito o ensaio rico de ideias e um tanto fantasioso de Béla v Felszeghy Panik und Pankomplex Pânico e complexo de Pan Imago v 6 1920 Se acompanhando McDougall descrevemos o pânico como uma das mais nítidas produções da group mind chegamos ao 39300 paradoxo de que essa alma coletiva suprime a si mesma numa de suas manifestações mais notórias Não é possível duvidar que o pânico signifique a desintegração da massa ele acarreta o fim de todas as considerações que os indivíduos da massa demonstram uns pelos outros A ocasião típica para um acesso de pânico se assemelha muito à descrição feita por Nestroy em sua paródia do drama de Hebbel sobre Judite e Holoferne Nela um soldado grita O general perdeu a cabeça e com isso todos os assírios se põem a fugir A perda do líder em qualquer sentido a confusão que daí resulta faz irromper o pânico ante um perigo que permanece com a ligação ao líder desaparecem também via de regra as ligações recíprocas dos indivíduos da massa A massa se pulver iza como uma lágrima batávica de que quebramos a ponta A desintegração de uma massa religiosa não é tão fácil de ob servar Há pouco me veio às mãos um romance inglês de pro cedência católica recomendado pelo bispo de Londres e intitu lado When it was dark Quando ficou escuro que ilustra de maneira hábil e a meu ver pertinente esta possibilidade e as suas consequências O romance narra no tempo presente como uma conjuração de inimigos de Cristo e da fé cristã consegue fazer que se encontre em Jerusalém um sepulcro com uma in scrição em que José de Arimateia confessa que por razões de piedade retirou secretamente o corpo de Cristo de sua sepultura no terceiro dia depois do enterro e o sepultou ali Com isso é in validada a ressurreição de Cristo e sua natureza divina e a con sequência dessa descoberta arqueológica é uma convulsão da cultura europeia e um aumento extraordinário de todos os crimes e atos de violência que diminuem apenas quando o com plô dos falsários é revelado 40300 O que vem à tona nessa imaginária desintegração de uma massa religiosa não é medo para o qual não há ensejo mas im pulsos implacáveis e hostis contra as outras pessoas que devido ao amor comum a Cristo não se haviam manifestado até então24 Mas mesmo durante o reinado de Cristo se acham fora dessa lig ação os indivíduos que não pertencem à comunidade de fé que não o amam e que ele não ama por isso uma religião mesmo que se denomine a religião do amor tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela No fundo toda reli gião é uma religião de amor para aqueles que a abraçam e tende à crueldade e à intolerância para com os não seguidores Por mais difícil que seja pessoalmente não se deve recriminar os fiéis com muita severidade por isso para os infiéis e indiferentes as coisas são psicologicamente bem mais fáceis neste ponto Se agora essa intolerância não se mostra tão violenta e cruel como no passado não será lícito concluir que houve uma suavização dos costumes humanos A causa deve ser buscada isto sim no inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e das lig ações libidinais que deles dependem Se outra ligação de massa toma o lugar da religiosa como a socialista parece estar fazendo ocorre a mesma intolerância com os de fora que havia na época das lutas religiosas e se as diferenças de concepções científicas viessem a ter algum dia importância igual para as massas o mesmo resultado se repetiria também com essa motivação VI OUTRAS TAREFAS 41300 E DIREÇÕES DE TRABALHO Até agora investigamos duas massas artificiais e verificamos que elas são dominadas por dois tipos de laços afetivos dos quais aquele com o líder parece ser ao menos no caso delas mais determinante que o outro o dos indivíduos da massa entre si Mas ainda resta muito a investigar e a descrever na morfolo gia das massas Teríamos que partir da constatação de que um simples grupamento não constitui ainda uma massa enquanto aqueles laços não se estabeleceram nele mas também admitir que em qualquer grupamento surge com facilidade a tendência para a formação de uma massa psicológica Deveríamos dar atenção às massas de tipos diversos mais ou menos estáveis que se formam espontaneamente e estudar as condições de sua gênese e de sua decomposição O que deveria nos ocupar acima de tudo é a diferença entre massas que têm um líder e massas sem líder Verificar se as massas com líder são as mais primordi ais e mais completas se nas outras ele não pode ser substituído por uma ideia uma abstração estado para o qual as massas reli giosas com seu chefe intangível constituem já uma transição se uma tendência comum um desejo partilhável por grande número de pessoas não pode fornecer tal substituto Essa ab stração poderia por sua vez encarnarse mais ou menos perfeit amente na pessoa de um líder secundário digamos e da relação entre ideia e líder resultariam interessantes variedades O líder ou a ideia condutora poderia tornarse negativo por assim dizer o ódio a uma pessoa ou instituição determinada poderia ter 42300 efeito unificador e provocar ligações afetivas semelhantes à de pendência positiva Caberia perguntar também se o líder é real mente indispensável para a essência da massa e outras coisas mais Mas todas essas questões algumas das quais podem ter sido tratadas nos livros de psicologia das massas não chegarão a des viar nosso interesse dos problemas psicológicos fundamentais que nos oferece a estrutura de uma massa Somos solicitados em primeiro lugar por uma consideração que nos promete demon strar pela via mais curta que são ligações libidinais que carac terizam a massa Tenhamos presente o modo como os seres humanos em geral se comportam afetivamente uns com os outros Conforme a célebre alegoria de Schopenhauer sobre os porcosespinhos que sentem frio nenhum deles aguenta uma aproximação muito ín tima do outro25 Conforme o testemunho da psicanálise quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas mat rimônio amizade o vínculo entre pais e filhos26 contém um sedimento de afetos de aversão e hostilidade que apenas devido à repressão não é percebido Isso é mais transparente nas quere las entre sócios de uma firma por exemplo ou nas queixas de um subordinado contra o seu superior O mesmo ocorre quando as pessoas se juntam em unidades maiores Toda vez que duas famílias se unem por casamento cada uma delas se acha melhor ou mais nobre que a outra Havendo duas cidades vizinhas cada uma se torna a maldosa concorrente da outra cada pequenino cantão olha com desdém para o outro Etnias bastante aparenta das se repelem o alemão do sul não tolera o alemão do norte o inglês diz cobras e lagartos do escocês o espanhol despreza o 43300 português Já não nos surpreende que diferenças maiores resul tem numa aversão difícil de superar como a do gaulês pelo germano do ariano pelo semita do branco pelo homem de cor Quando a hostilidade se dirige para pessoas normalmente amadas chamamos isso de ambivalência afetiva e explicamos o fato de maneira certamente racional em demasia pelas muitas ocasiões para conflitos de interesses que surgem precisamente nas relações íntimas Nas antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos podemos recon hecer a expressão de um amor a si próprio um narcisismo que se empenha na afirmação de si e se comporta como se a ocorrência de um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificálos Não sabemos por que uma suscetibilidade tão grande envolveria justamente esses detalhes de diferenciação mas é inegável que nesse comportamento dos indivíduos se manifesta uma pron tidão para o ódio uma agressividade cuja procedência é descon hecida e à qual se pode atribuir um caráter elementar27 Mas toda essa intolerância desaparece temporariamente ou de maneira duradoura por meio da formação da massa e dentro da massa Enquanto perdura a formação de massa ou até onde se estende os indivíduos se conduzem como se fossem homo gêneos suportam a especificidade do outro igualamse a ele e não sentem repulsa por ele Segundo nossas concepções teóricas tal limitação do narcisismo pode ser produzida apenas por um fator pela ligação libidinal a outras pessoas O amor a si encon tra limite apenas no amor ao outro amor aos objetos28 Aqui se perguntará se a comunidade de interesses por si e sem qualquer contribuição libidinal não leva necessariamente à tolerância do outro e à consideração por ele A esta objeção se responderá que 44300 dessa maneira não chega a se realizar uma limitação permanente do narcisismo pois essa tolerância não perdura mais que a vant agem imediata que se tira da colaboração do outro Mas o valor prático dessa disputa é menor do que se poderia pensar pois a experiência mostrou que em casos de colaboração se es tabelecem regularmente ligações libidinais entre os camaradas que prolongam e fixam a relação entre eles indo além do mera mente vantajoso Nas relações sociais entre os homens ocorre o mesmo que a investigação psicanalítica descobriu no curso de desenvolvimento da libido individual A libido se apoia na satis fação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que nela participam Tal como no indivíduo também no desenvolvimento da humanidade inteira é o amor que atua como fator cultural no sentido de uma mudança do egoísmo em altruísmo E tanto o amor sexual à mul her com todas as obrigações que implica de respeitar o que é caro à mulher como o amor aos outros homens dessexualizado sublimadamente homossexual vinculado ao trabalho em comum Portanto se na massa aparecem restrições ao amorpróprio narcisista inexistentes fora dela isso indica forçosamente que a essência da formação de massa consiste em ligações libidinais de nova espécie entre os membros da massa Neste ponto o nosso interesse nos leva a perguntar de maneira premente de que espécie são estas ligações no interior da massa A teoria psicanalítica das neuroses ocupouse quase exclusivamente até agora da ligação que estabelecem com seus objetos os instintos amorosos que ainda perseguem fins sexuais diretos Na massa evidentemente esses fins sexuais estão fora de questão Estamos lidando com instintos amorosos que se 45300 acham desviados de suas metas originais sem por isso atuarem com menos energia Já notamos no quadro do habitual investi mento sexual de objeto fenômenos que correspondem a um des vio do instinto em relação a seus fins sexuais Nós os descreve mos como graus de enamoramento e reconhecemos que en volvem certa diminuição do Eu A esses fenômenos do enamora mento vamos dedicar agora uma maior atenção na funda mentada esperança de neles encontrar condições que possam ser transferidas para as ligações existentes nas massas Além disso queremos saber se esse tipo de investimento de objeto tal como o conhecemos na vida sexual representa a única maneira de lig ação afetiva a uma outra pessoa ou se devemos tomar em con sideração outros mecanismos assim Aprendemos com a psic análise de fato que há outros mecanismos de ligação afetiva as chamadas identificações processos insuficientemente con hecidos de difícil descrição cuja investigação nos afastará por um momento do tema da psicologia da massa VII A IDENTIFICAÇÃO A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga mani festação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa Ela desem penha um determinado papel na préhistória do complexo de Édipo O garoto revela um interesse especial por seu pai gostaria de crescer e ser como ele tomar o lugar dele em todas as situ ações Digamos tranquilamente ele toma o pai como seu ideal Essa conduta nada tem a ver com uma atitude passiva ou femin ina diante do pai ou dos homens em geral é tipicamente 46300 masculina Mas harmonizase bem com o complexo de Édipo e ajuda a preparar o terreno para este Simultaneamente a essa identificação com o pai talvez até antes o menino começou a empreender um verdadeiro investi mento objetal na mãe do tipo por apoio Ele mostra então duas ligações psicologicamente diferenciadas com a mãe um in vestimento objetal direto com o pai uma identificação que o toma por modelo As duas coexistem por um tempo sem influ enciar ou perturbar uma à outra Com o incessante progresso na unificação da vida psíquica terminam por se encontrar e desta confluência surge o complexo de Édipo normal O menino per cebe que o pai é um obstáculo entre ele e a mãe sua identi ficação com o pai adquire então uma tonalidade hostil e tornase idêntica ao desejo de substituir o pai também junto à mãe Pois desde o início a identificação é ambivalente pode tornarse tanto expressão de ternura como desejo de eliminação Comportase como um derivado da primeira fase a fase oral da organização da libido na qual o indivíduo incorporou comendo o objeto desejado e estimado e assim o aniquilou enquanto objeto É sa bido que o canibal permanece nesse ponto tem uma afeição de voradora por seus inimigos e não devora aqueles de quem não pode gostar de algum modo29 Depois se perde facilmente de vista o destino dessa identi ficação com o pai Pode então ocorrer que o complexo de Édipo sofra uma inversão que o pai numa postura feminina seja to mado como objeto do qual os instintos diretamente sexuais es peram sua satisfação e assim a identificação com o pai se torna precursora da ligação objetal ao pai O mesmo vale com as sub stituições pertinentes para a filha pequena 47300 É fácil exprimir numa fórmula a diferença entre essa identi ficação com o pai e a escolha do pai como objeto No primeiro caso o pai é aquilo que se gostaria de ser no segundo o que se gostaria de ter Depende portanto de que a ligação recaia no sujeito ou no objeto do Eu O primeiro tipo então já é possível antes de qualquer escolha de objeto Bem mais difícil é fazer uma apresentação metapsicológica nítida dessa diferença Percebese apenas que a identificação se empenha em configurar o próprio Eu à semelhança daquele tomado por modelo É de um contexto mais complicado que extraímos a identi ficação numa formação neurótica de sintomas Supondo que a garota pequena na qual nos deteremos agora desenvolva o mesmo sintoma de sofrimento que sua mãe a mesma tosse ator mentadora por exemplo Isso pode suceder por caminhos diver sos Ou a identificação é a mesma do complexo de Édipo que significa um desejo hostil de tomar o lugar da mãe e o sintoma expressa o amor objetal ao pai ela realiza a substituição da mãe sob a influência da consciência da culpa Você quis ser a mãe e agora o é pelo menos no sofrimento Este então é o mecanismo completo da formação neurótica de sintomas Ou por outro lado o sintoma é o mesmo da pessoa amada como Dora no Fragmento de análise de um caso de histeria que imita a tosse do pai então só podemos descrever a situação dizendo que a identificação tomou o lugar da escolha de objeto e a escolha de objeto regrediu à identificação Ouvimos que a identificação é a mais antiga e original forma de ligação afetiva nas circunstân cias da formação de sintomas ou seja da repressão e do pre domínio dos mecanismos do inconsciente sucede com frequên cia que a escolha de objeto se torne novamente identificação ou seja que o Eu adote características do objeto É digno de nota 48300 que nessas identificações o Eu às vezes copie a pessoa não amada outras vezes a amada Também nos chama a atenção que nos dois casos a identificação seja parcial altamente limitada tomando apenas um traço da pessoaobjeto Há um terceiro caso de formação de sintomas muito fre quente e significativo em que a identificação desconsidera total mente a relação objetal com a pessoa copiada Se por exemplo uma das garotas de um pensionato recebe carta de alguém que ama secretamente uma carta que lhe desperta o ciúme e à qual ela reage com um ataque histérico algumas de suas amigas que souberem do que se trata pegarão esse ataque como dizemos por via da infecção psíquica O mecanismo é aquele da identi ficação baseada em querer ou poder colocarse na mesma situ ação As outras também gostariam de ter um amor secreto e sob o influxo da consciência de culpa também aceitam o sofrimento que ele envolve Seria incorreto afirmar que se apropriam do sin toma por compaixão Pelo contrário a compaixão surge somente a partir da identificação e a prova disso é que tal infecção ou im itação acontece também em circunstâncias nas quais se supõe uma simpatia preexistente ainda menor do que é habitual entre amigas de um pensionato Um Eu percebeu no outro uma analo gia significativa em certo ponto em nosso exemplo na mesma disposição afetiva constróise uma identificação nesse ponto e sob influência da situação patogênica essa identificação se des loca para o sintoma que o Eu produziu A identificação através do sintoma vem a ser desse modo o indício de um local de coin cidência dos dois Eus que deve permanecer reprimido O que aprendemos dessas três fontes pode ser resumido as sim primeiro a identificação é a mais primordial forma de lig ação afetiva a um objeto segundo por via regressiva ela se torna 49300 o substituto para uma ligação objetal libidinosa como que at ravés da introjeção do objeto no Eu terceiro ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais Quanto mais significativo esse algo em comum mais bemsucedida deverá ser essa identi ficação parcial correspondendo assim ao início de uma nova ligação Já suspeitamos que a ligação recíproca dos indivíduos da massa é da natureza dessa identificação através de algo afetivo importante em comum e podemos conjecturar que esse algo em comum esteja no tipo de ligação com o líder Uma outra suspeita nos dirá que estamos muito longe de haver esgotado o problema da identificação que nos achamos frente ao processo que a psicologia chama de empatia que participa enormemente na compreensão daquilo que em outras pessoas é alheio ao nosso Eu Mas nos limitaremos aqui às consequências afetivas imedi atas da identificação também deixando de lado a sua importân cia para a nossa vida intelectual A pesquisa psicanalítica que ocasionalmente já atacou os di fíceis problemas das psicoses pôde nos mostrar a identificação também em alguns outros casos não acessíveis de imediato à nossa compreensão Tratarei de dois desses casos mais detalha damente como material para nossas reflexões posteriores A gênese da homossexualidade masculina é em grande parte dos casos a seguinte O jovem esteve fixado de modo excepcion almente longo e intenso em sua mãe no sentido do complexo de Édipo Mas por fim após a puberdade chega o tempo de trocar a mãe por um outro objeto sexual Então repentinamente algo su cede ele não abandona sua mãe mas se identifica com ela transformase nela e procura objetos que possam substituir o seu 50300 Eu que ele possa amar e cuidar assim como havia aprendido com a mãe Este é um processo frequente que pode ser confirm ado à vontade e que naturalmente independe de qualquer suposição acerca do motor orgânico instintual e dos motivos dessa repentina mudança O que salta aos olhos nessa identi ficação é a sua amplitude ela muda o Eu num ponto extrema mente importante no caráter sexual segundo o modelo do que até então fora o objeto Nisto se renuncia ao próprio objeto se inteiramente ou apenas no sentido de que é preservado no in consciente é algo que escapa à presente discussão A identi ficação com o objeto renunciado ou perdido como substituição para o mesmo a introjeção desse objeto no Eu isto já não con stitui de fato uma novidade para nós Um processo desses pode ser observado ocasionalmente nas crianças pequenas Há pouco foi publicada na Revista Internacional de Psicanálise uma ob servação assim em que uma criança infeliz com a perda de seu gato declarou simplesmente que era o gato e consequentemente passou a andar de quatro não quis mais sentarse à mesa para comer etc30 Outro exemplo dessa introjeção do objeto nos é dado pela an álise da melancolia afecção que tem entre suas causas mais notáveis a perda real ou afetiva do objeto amado Uma caracter ística maior de casos assim está na cruel autodepreciação do Eu unida a uma implacável autocrítica e amargas recriminações a si próprio As análises revelaram que essa avaliação e esses re proches se aplicam ao objeto no fundo representando a vingança do Eu frente a ele A sombra do objeto caiu sobre o Eu afirmei em outro lugar31 A introjeção do objeto aqui é incon fundivelmente clara 51300 Mas essas melancolias nos mostram ainda algo mais que pode ser importante para nossas considerações posteriores Elas nos mostram o Eu dividido decomposto em dois pedaços um dos quais se enfurece com o outro Esse outro pedaço é aquele transformado pela introjeção e que contém o objeto perdido Tampouco o pedaço que se conduz tão cruelmente nos é descon hecido Ele contém a consciência moral uma instância crítica do Eu que também em épocas normais se contrapôs criticamente a este mas nunca de maneira tão inexorável e tão injusta Já em ocasiões anteriores Narcisismo Luto e melancolia fomos levados à suposição de que em nosso Eu se desenvolve uma in stância que pode se separar do resto do Eu e entrar em conflito com ele Nós a chamamos de ideal do Eu e lhe atribuímos fun ções como autoobservação consciência moral censura do sonho e principal influência na repressão Dissemos que é a her deira do narcisismo original em que o Eu infantil bastava a si mesmo Gradualmente ela acolhe das influências do meio as exigências que este coloca ao Eu as quais o Eu nem sempre é capaz de cumprir de modo que o indivíduo quando não pode estar satisfeito com seu Eu em si poderia encontrar satisfação no ideal do Eu que se diferenciou do Eu Constatamos além disso que no delírio de observação se torna patente a decomposição dessa instância desvelando sua origem nas influências das autoridades sobretudo dos pais32 Mas não deixamos de acres centar que a medida da distância entre esse ideal do Eu e o Eu real varia bastante de um indivíduo para outro e que em muitos essa diferenciação no interior do Eu não é maior do que na criança 52300 Antes de podermos utilizar esse material para compreender a organização libidinal da massa temos de considerar algumas outras relações mútuas entre o objeto e o Eu33 VIII ENAMORAMENTO E HIPNOSE Mesmo em seus caprichos a linguagem corrente é fiel a alguma realidade Ela dá o nome de amor a relações afetivas bem di versas que também nós sintetizamos teoricamente como amor mas logo põe em dúvida que esse amor seja o verdadeiro certo e autêntico indicando assim toda uma escala de possibilidades dentro do fenômeno do amor Não será difícil fazermos a mesma descoberta em nossa observação Numa série de casos o enamoramento não é outra coisa que investimento de objeto por parte dos instintos sexuais para satis fação sexual direta o qual se extingue quando esta é alcançada isto é o que chamam de amor comum sensual Mas como sabemos a situação libidinal raramente permanece tão simples A certeza de que a necessidade que acabou de ser extinta retorn ará deve ter sido a razão imediata para dirigir ao objeto sexual um investimento duradouro para amálo também nos inter valos sem desejo O singular desenvolvimento da vida amorosa do ser humano vem juntar a isso um outro fator Na primeira fase geralmente concluída aos cinco anos de idade a criança achou num dos pais o primeiro objeto de amor no qual se haviam reunido todos os seus instintos sexuais que demandavam satisfação A repressão que depois sobreveio impôs a renúncia da maioria dessas metas 53300 sexuais infantis e acarretou uma profunda mudança na relação com os pais A criança continuou ligada aos pais mas com in stintos que é necessário descrever como inibidos em sua meta Os sentimentos que ela tem doravante por essas pessoas amadas são designados como ternos Sabese que as tendências sen suais anteriores são preservadas com maior ou menor intensid ade no inconsciente de modo que em certo sentido a inteira cor rente original continua a existir34 Sabemos que com a puberdade se introduzem novas fortes tendências à satisfação das metas sexuais diretas Em casos des favoráveis elas permanecem separadas como corrente sensual das duradouras orientações ternas de sentimento À nossa frente aparece então um quadro com dois aspectos ambos prazerosamente idealizados por certas tendências literárias O homem se entusiasma sentimentalmente por mulheres que muito admira mas que não o estimulam para o comércio amor oso e é potente com outras mulheres que não ama que meno spreza ou mesmo despreza35 Com mais frequência no entanto o adolescente consegue um determinado grau de síntese entre o amor não sensual celestial e aquele sensual terrestre e sua re lação com o objeto sexual é caracterizada pela cooperação entre instintos não inibidos e instintos inibidos em sua meta A inten sidade do enamoramento em contraste ao puro desejo sensual pode ser medida segundo a contribuição dos instintos de ternura inibidos em sua meta É no quadro desse enamoramento que desde o início nos saltou à vista o fenômeno da superestimação sexual o fato de o objeto amado gozar de uma certa isenção de crítica de todos os seus atributos serem mais valorizados que os de pessoas não amadas ou que numa época em que ele mesmo não era amado 54300 Havendo repressão ou recuo mais ou menos efetivo das tendên cias sensuais produzse a ilusão de que o objeto é também amado sensualmente em virtude de seus méritos espirituais quando pelo contrário apenas a satisfação sensual lhe pode ter emprestado esses méritos O que aí falseia o juízo é o pendor à idealização Com isso nós vemos facilitada a orientação percebemos que o objeto é tratado como o próprio Eu que então no enamoramento uma medida maior de libido narcísica transborda para o objeto Em não pou cas formas da escolha amorosa tornase mesmo evidente que o objeto serve para substituir um ideal não alcançado do próprio Eu Ele é amado pelas perfeições a que o indivíduo aspirou para o próprio Eu e que através desse rodeio procura obter para sat isfação de seu narcisismo Se a superestimação sexual e o enamoramento crescem ainda mais a interpretação do quadro fica também mais nítida As tendências que impelem à satisfação sexual direta podem ser in teiramente empurradas para segundo plano como sucede regu larmente por exemplo com o entusiasmo amoroso de um jovem o Eu se torna cada vez menos exigente mais modesto e o objeto cada vez mais sublime mais precioso chega enfim a to mar posse do inteiro amorpróprio do Eu de modo que o auto ssacrifício deste é uma consequência natural O objeto consumiu o Eu por assim dizer Traços de humildade de restrição do nar cisismo e de selfinjury estão presentes em todo caso de enamor amento em caso extremo são apenas aumentados e devido ao recuo das reivindicações sensuais predominam exclusivamente Isso ocorre com bastante facilidade no amor infeliz irreal izável pois a cada satisfação sexual a superestimação sexual ex perimenta uma redução Simultaneamente a essa entrega do 55300 Eu ao objeto que já não se diferencia da entrega sublimada a uma ideia abstrata deixam de operar completamente as funções conferidas ao ideal do Eu Cala a crítica exercida por essa instân cia tudo o que o objeto faz e pede é justo e irrepreensível A con sciência não se aplica a nada que acontece a favor do objeto na cegueira do amor o indivíduo pode se tornar sem remorsos um criminoso Toda a situação pode ser resumida cabalmente numa fórmula O objeto se colocou no lugar do ideal do Eu Agora é fácil descrever a diferença entre a identificação e o en amoramento em suas mais desenvolvidas formas chamadas de fascínio e servidão enamorada No primeiro caso o Eu se en riqueceu com os atributos do objeto introjetouo na expressão de Ferenczi no segundo ele está empobrecido entregouse ao objeto colocouo no lugar de seu mais importante componente A uma reflexão mais atenta porém notamos que essa exposição simula opostos que não existem De um ponto de vista econ ômico não se trata de enriquecimento ou empobrecimento é possível descrever o enamoramento extremo como se o Eu intro jetasse o objeto Uma outra distinção talvez considere melhor o essencial No caso da identificação o objeto foi perdido ou renunciouse a ele então é novamente instaurado no Eu e este se altera parcialmente conforme o modelo do objeto perdido No outro caso o objeto foi conservado e como tal é sobreinvestido por parte e à custa do Eu Mas também aqui surge uma di ficuldade Então é algo estabelecido que a identificação pres supõe a renúncia do investimento objetal que não pode haver identificação conservandose o objeto Antes que comecemos a discutir essa delicada pergunta talvez já percebamos que a es sência da questão se acha numa outra alternativa a saber que o objeto seja colocado no lugar do Eu ou do ideal do Eu 56300 Do enamoramento à hipnose o passo evidentemente não é grande As concordâncias entre os dois são óbvias A mesma hu milde sujeição mesma docilidade e ausência de crítica ante o hipnotizador como diante do objeto amado O mesmo solapa mento da iniciativa própria não há dúvida o hipnotizador assu miu o lugar do ideal do Eu Tudo na hipnose é ainda mais claro e intenso de modo que seria mais adequado elucidar o enamora mento pela hipnose do que o contrário O hipnotizador é o único objeto nenhum outro recebe atenção além dele O fato de o Eu vivenciar sonhadoramente o que ele afirma e solicita nos lembra que descuidamos de incluir entre as funções do ideal do Eu também o exercício da prova da realidade36 Não admira que o Eu tome por real uma percepção quando essa realidade tem o aval da instância psíquica normalmente encarregada do teste da realidade A total ausência de impulsos com metas sexuais não inibidas contribui ademais para a extrema pureza dos fenô menos A relação hipnótica é uma irrestrita entrega enamorada em que se acha excluída a satisfação sexual enquanto no enam oramento esta é empurrada temporariamente para trás e fica em segundo plano como possível meta futura Por outro lado podese também dizer que a relação hipnótica é se for permitida a expressão uma formação de massa a dois A hipnose não é um bom objeto de comparação para a formação de massa por ser na verdade idêntica a esta Da com plicada textura da massa ela nos isola um elemento a relação do indivíduo da massa com o líder Devido a essa limitação do número a hipnose se distingue da formação de massa tal como se separa do enamoramento por descartar os impulsos sexuais diretos Nisso ocupa uma posição intermediária entre os dois 57300 É interessante ver que justamente os impulsos sexuais ini bidos na meta conseguem criar laços tão duradouros entre as pessoas Mas isso se entende com facilidade a partir do fato de não serem capazes de plena satisfação enquanto os impulsos sexuais não inibidos experimentam uma extraordinária redução mediante a descarga toda vez que atingem sua meta O amor sensual está fadado a se extinguir com a satisfação para poder durar é preciso que esteja mesclado desde o início com compon entes puramente afetuosos ou seja inibidos em sua meta ou que experimente tal transformação A hipnose resolveria sem dificuldades o enigma da constitu ição libidinal de uma massa se ela mesma não contivesse traços que fogem ao esclarecimento racional até aqui adotado en quanto estado de enamoramento que exclui os impulsos sexuais diretos Nela ainda há muito a se reconhecer como não com preendido como místico Ela tem um elemento adicional de paralisia que vem da relação entre alguém muito poderoso e um impotente e desamparado algo que remeteria à hipnose por ter ror que há entre os animais São transparentes a maneira como é produzida e sua relação com o sono e o fato enigmático de algu mas pessoas se prestarem para ela enquanto outras a rejeitam inteiramente aponta para um fator ainda desconhecido que nela se verifica e que talvez possibilite somente ele a pureza das atit udes libidinais nela encontradas É também digno de nota que frequentemente a consciência moral se mostre refratária mesmo quando de resto há docilidade completa à sugestão Mas isso talvez se deva ao fato de que na hipnose como geralmente é praticada pode ser mantido o conhecimento de que se trata apenas de um jogo de uma reprodução falsa de outra situação bem mais importante para a vida 58300 Após essas discussões estamos preparados para oferecer uma fórmula relativa à constituição libidinal de uma massa Pelo menos de uma massa tal como vimos até aqui isto é que tem um líder e não pôde adquirir secundariamente através de exces siva organização as características de um indivíduo Uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e em con sequência identificaramse uns com os outros em seu Eu Essa condição admite uma representação gráfica IX O INSTINTO GREGÁRIO Por pouco tempo gozaremos da ilusão de haver solucionado o enigma da massa com essa fórmula Logo seremos incomodados pela advertência de que no essencial apenas remetemos tudo ao enigma da hipnose em que muita coisa resta a esclarecer E agora uma outra objeção nos mostra o caminho a seguir É lícito dizer que as fartas ligações afetivas que vemos na massa bastam inteiramente para explicar uma de suas 59300 características a falta de autonomia e de iniciativa de cada indi víduo a similitude entre a sua reação e a de todos os demais seu rebaixamento a indivíduo de massa por assim dizer Mas se a olharmos como um todo a massa revela mais do que isso o en fraquecimento da aptidão intelectual a desinibição da afetivid ade a incapacidade de moderação e adiamento a tendência a ul trapassar todas as barreiras na expressão de sentimentos e a descarregálos inteiramente na ação esses e outros traços semelhantes que Le Bon descreveu de modo tão convincente fornecem um quadro inequívoco de regressão da atividade aním ica a um estágio anterior que não nos surpreendemos de encon trar nos selvagens e nas crianças Tal regressão é encontrada particularmente nas massas comuns enquanto naquelas alta mente organizadas artificiais pode ser em larga medida difi cultada como vimos Temos assim a impressão de um estado em que o impulso afetivo e o ato intelectual pessoal do indivíduo são muito fracos para imporse por si tendo que esperar fortalecimento através da repetição uniforme por parte dos outros Somos lembrados de como esses fenômenos de dependência fazem parte da constitu ição normal da sociedade humana de quão pouca originalidade e coragem pessoal nela se encontram do quanto cada indivíduo é governado pelas atitudes de uma alma da massa que se mani festam como particularidades raciais preconceitos de classe opinião pública etc A influência da sugestão tornase um enigma ainda maior quando concedemos que é exercida não só pelo líder mas também por cada indivíduo um sobre o outro e nos recriminamos por haver destacado de maneira unilateral a re lação com o líder menosprezando indevidamente o fator da sug estão mútua 60300 De tal maneira chamados à modéstia estaremos inclinados a ouvir uma outra voz que nos prometa elucidação a partir de fun damentos mais simples Encontroa no inteligente livro de W Trotter sobre o instinto gregário no qual lamento apenas não haver escapado de todo às antipatias desencadeadas pela última grande guerra37 Trotter faz derivar os fenômenos anímicos observados na massa de um instinto gregário gregariousness inato no ser hu mano e em outras espécies animais Biologicamente esse gregar ismo é uma analogia e como que um prosseguimento da multice lularidade em termos da teoria da libido mais uma expressão da tendência de todos os seres vivos procedente da libido a juntarse em unidades cada vez mais abrangentes O indivíduo sentese incompleto incomplete quando está só O medo da cri ança pequena já seria expressão desse instinto gregário Contra dizer o rebanho equivale a separarse dele e por isso é evitado angustiosamente Mas o rebanho rejeita tudo o que é novo inus itado O instinto de rebanho seria algo primário que não pode ser decomposto which cannot be split up Trotter oferece a lista dos Triebe ou Instinkte por ele acei tos como primários o de autoconservação o de alimentação o sexual e o gregário Este último fica frequentemente em oposição aos outros Consciência de culpa e sentimento do dever seriam as características de um gregarious animal Também do instinto gregário procedem segundo Trotter as forças repressoras que a psicanálise revelou no Eu e da mesma forma consequente mente as resistências com que depara o médico na terapia psic analítica A linguagem deveria sua importância ao fato de prestarse ao entendimento mútuo dentro do rebanho nela se 61300 basearia em grande parte a identificação dos indivíduos uns com os outros Assim como Le Bon se interessou predominantemente pelas típicas formações efêmeras de massa e McDougall pelas asso ciações estáveis Trotter colocou no âmago de seu interesse os grupamentos mais universais em que vive o ser humano esse ζϖον πολιτικόν animal político e indicou seus fundamentos psicológicos Mas para Trotter não é preciso derivar de alguma coisa o instinto gregário que ele designa como primário e não suscetível de decomposição Ele nota que Boris Sidis deriva o in stinto gregário da sugestionabilidade algo que felizmente é supérfluo para ele tratase de uma explicação conforme um modelo conhecido insatisfatório e a tese inversa de que a sug estionabilidade seria um derivado do instinto gregário me parece bem mais esclarecedora Mas podese objetar à exposição de Trotter mais ainda que às outras que ela não leva suficientemente em conta o papel do líder numa massa enquanto nós tendemos ao juízo contrário de que a natureza da massa é incompreensível se negligenciamos o líder O instinto gregário não deixa lugar para o líder este se acrescenta casualmente ao rebanho e ligado a isso temos que nenhum caminho leva desse instinto à necessidade de um deus falta o pastor para o rebanho Além disso a exposição de Trotter pode ser minada psicologicamente isto é podemos ver como no mínimo provável que o instinto gregário não seja indecom ponível não seja primário no mesmo sentido que o instinto de autoconservação e o instinto sexual Naturalmente não é fácil traçar a ontogênese do instinto gregário A angústia da criança pequena ao ser deixada só que Trotter já reivindica como expressão do instinto sugere antes 62300 outra interpretação Ela está relacionada à mãe depois a outras pessoas familiares e é expressão de um anelo insatisfeito com o qual a criança ainda não sabe fazer outra coisa senão transform ar em angústia38 A angústia da criança pequena sozinha não é atenuada tampouco ao avistar outro indivíduo qualquer do re banho mas sim ao contrário despertada pela aproximação de tal estranho Por muito tempo então nada se percebe de um instinto gregário ou sentimento de massa na criança Isto se forma apenas em casas com mais de uma criança a partir da re lação delas com os pais como reação à inveja inicial com que a criança mais velha recebe a menor Sem dúvida a mais velha gostaria de ciumentamente reprimir a que veio depois de conservála distante dos pais e privála de todos os direitos mas em vista do fato de que também esta criança como todas as que seguem é amada pelos pais da mesma maneira e devido à impossibilidade de manter sua atitude hostil sem prejudicarse é obrigada a identificarse com as outras crianças e assim se forma no bando de crianças um sentimento de massa ou de comunidade que depois continua a desenvolverse na escola A primeira exigência dessa formação reativa é aquela por justiça tratamento igual para todos É sabido como essa reivindicação se expressa de modo nítido e inexorável na escola Quando não se pode ser o favorito então nenhum dos outros deve ser favore cido Poderíamos julgar improvável essa transformação e sub stituição do ciúme por um sentimento de massa no lar e na escola se o mesmo processo não fosse observado depois em out ras circunstâncias Lembremos o bando de mulheres e garotas que num entusiasmo amorososentimental cercam o cantor ou o pianista após uma apresentação Seria antes de esperar que cada uma delas tivesse ciúmes da outra mas devido ao seu 63300 número e à impossibilidade a ele relacionada de alcançar a meta de seu amor elas renunciam a esta e em vez de arrancar os cabelos umas às outras atuam como uma massa unida hom enageiam o festejado em ações conjuntas e ficariam alegres em partilhar seus cachos de cabelo Originalmente rivais puderam identificarse uma com a outra mediante o amor igual pelo mesmo objeto Quando uma situação instintual é capaz de ter várias saídas como geralmente acontece não surpreende que aquela resultante implique a possibilidade de certo grau de satis fação enquanto outra em si mais óbvia não se realiza porque as circunstâncias reais a impedem de alcançar essa meta O que depois aparece na sociedade como espírito comunitário esprit de corps não desmente sua procedência da inveja origin al Ninguém deve querer sobressair cada qual deve ser e ter o mesmo Justiça social quer dizer que o indivíduo nega a si mesmo muitas coisas para que também os outros tenham de re nunciar a elas ou o que é o mesmo não possam pretendêlas Tal exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do sen timento do dever De modo inesperado ela se revela no medo dos sifilíticos de infectarem outras pessoas que a psicanálise nos en sinou a compreender A angústia desses coitados corresponde à sua violenta luta contra o desejo inconsciente de propagar sua infecção entre os demais pois por que deveriam eles apenas ser em infectados e excluídos de tanta coisa e os outros não Tam bém a bela anedota da sentença de Salomão tem o mesmo núcleo Se o filho de uma das mulheres morreu o filho da outra também não deve viver Por esse desejo é reconhecida aquela que o perdeu O sentimento social repousa portanto na inversão de um sentimento hostil em um laço de tom positivo da natureza de 64300 uma identificação Até onde podemos enxergar hoje esse curso de eventos tal inversão parece ocorrer sob influência de um laço afetuoso comum a uma pessoa que está fora da massa Nós mes mos não consideramos exaustiva essa análise da identificação mas para nosso atual propósito basta que retornemos a um único traço a exigência de que a igualdade seja levada a efeito consist entemente Já vimos ao abordar as duas massas artificiais a Igreja e o Exército que o seu pressuposto é que todos sejam amados igualmente por uma pessoa o líder Mas não es queçamos que a exigência de igualdade vale apenas para os indi víduos não para o líder Os indivíduos todos devem ser iguais entre si mas todos querem ser dominados por um só Muitos iguais que podem identificarse uns com os outros e um único superior a todos eles esta é a situação que se acha realizada numa massa capaz de subsistir Ousemos então corrigir o enun ciado de Trotter segundo o qual o homem é um animal de re banho dizendo que ele é antes um animal de horda membro in dividual de uma horda conduzida por um chefe X A MASSA E A HORDA PRIMEVA Em 1912 adotei uma conjectura de Charles Darwin segundo a qual a forma primeva da sociedade humana foi a de uma horda governada irrestritamente por um macho forte Procurei mostrar que as fortunas dessa horda deixaram traços indeléveis na história da linhagem humana em especial que o desenvolvi mento do totemismo o qual traz em si os começos da religião da moralidade e da organização social está ligado ao violento 65300 assassínio do chefe e à transformação da horda paterna em uma comunidade de irmãos39 Sem dúvida esta é somente uma hipótese como tantas outras com que os especialistas buscam iluminar a escuridão da préhistória uma just so story chamoua espirituosamente um amável crítico inglês mas creio ser recomendável tal hipótese caso se revele apta a produzir coerência e compreensão em novos âmbitos As massas humanas exibem novamente a familiar imagem do indivíduo superforte em meio a um bando de companheiros iguais também contida em nossa representação da horda primeva A psicologia dessa massa tal como a conhecemos das descrições até aqui mencionadas a atrofia da personalidade in dividual consciente a orientação de pensamentos e sentimentos nas mesmas direções o predomínio da afetividade e da psique inconsciente a tendência à imediata execução dos propósitos que surgem tudo isso corresponde a um estado de regressão a uma atividade anímica primitiva como a que nos inclinamos a atribuir à horda primeva40 A massa nos parece desse modo uma revivescência da horda primeva Assim como o homem primevo se acha virtualmente conservado em cada indivíduo assim também pode ser restabelecida a horda primeva a partir de um ajuntamento hu mano qualquer na medida em que os homens são habitual mente governados pela formação de massa reconhecemos nesta a continuação da horda primeva Temos de concluir que a psico logia da massa é a mais velha psicologia humana aquilo que negligenciando todos os vestígios da massa isolamos como psicologia individual emergiu somente depois aos poucos e como que parcialmente ainda a partir da velha psicologia da 66300 massa Mais adiante ousaremos indicar o ponto de partida desse desenvolvimento Outra reflexão nos mostra em que ponto essa afirmação re quer uma emenda A psicologia individual deve ser isto sim tão velha quanto a psicologia da massa pois desde o início houve dois tipos de psicologia a dos indivíduos da massa e a do pai chefe ou líder Os indivíduos da massa eram tão ligados como hoje mas o pai da horda primeva era livre Seus atos intelectuais eram fortes e independentes mesmo no isolamento sua vontade não carecia do reforço dos demais Supomos consequentemente que seu Eu tinha poucos laços libidinais ele não amava ninguém exceto a si mesmo ou amava outros apenas enquanto satis faziam as necessidades dele Seu Eu não dava nenhuma sobra para os objetos No princípio da história humana ele era o superhomem que Nietzsche aguardava apenas para o futuro Ainda hoje os indiví duos da massa carecem da ilusão de serem amados igualmente e justamente pelo líder mas este não precisa amar ninguém mais élhe facultado ser de natureza senhorial absolutamente nar cisista mas seguro de si e independente Sabemos que o amor refreia o narcisismo e poderíamos demonstrar que em virtude disso tornouse fator de cultura O pai primordial da horda não era ainda imortal como veio a se tornar pela divinização Ao morrer tinha que ser substituído seu lugar era provavelmente ocupado por um filho jovem que até então fora indivíduo da massa como os outros Logo deve haver a possibilidade de transformar a psicologia da massa em psicologia individual devese achar uma condição em que uma transformação tal ocorra facilmente assim como é possível para as abelhas fazer de uma larva uma rainha e não uma operária 67300 em caso de necessidade Podemos imaginar apenas o seguinte O pai primordial havia impedido os seus filhos de satisfazerem seus impulsos sexuais diretos obrigouos à abstinência e por conseguinte ao estabelecimento de laços afetivos com ele e entre si que podiam resultar dos impulsos de meta sexual inibida Ele os compeliu por assim dizer à psicologia da massa Seus ciúmes sexuais e sua intolerância vieram a ser em última análise as causas da psicologia da massa41 Para o seu sucessor também se abriu a possibilidade da satis fação sexual e desse modo a saída das condições da psicologia da massa A fixação da libido na mulher a possibilidade da satis fação sem adiamento e acumulação pôs fim à importância dos impulsos sexuais de meta inibida e fez o narcisismo crescer em igual medida Depois num apêndice voltaremos a esta relação entre o amor e a formação do caráter Destaquemos ainda como particularmente instrutivo o nexo entre a constituição da horda primeva e a instituição através da qual não considerando os meios coercivos uma massa artifi cial se mantém unida No Exército e na Igreja vimos que é a ilusão de que o líder ama a todos de modo igual e justo Mas isto é a remodelação idealista do estado de coisas da horda primeva em que todos os filhos se sabiam igualmente perseguidos pelo pai e igualmente o temiam A forma seguinte da sociedade hu mana o clã totêmico já tem por pressuposto essa modificação sobre a qual se erigiram todas as obrigações sociais A indes trutível força da família enquanto formação de grupo natural reside em que nela pode se verificar realmente essa premissa in dispensável do amor igual do pai Ainda esperamos mais porém desse ato de fazer remontar a massa à horda primeva Ele deve nos aproximar também do que 68300 é ainda incompreendido e misterioso na formação da massa que se esconde nos termosenigma de hipnose e sugestão E eu acho que ele é capaz também disso Recordemos que a hipnose tem algo de positivamente inquietante mas a característica do inquietante remete a algo antigo e familiar que sucumbiu à repressão42 Pensemos em como a hipnose é iniciada O hipnot izador afirma estar de posse de um poder misterioso que rouba ao sujeito a vontade própria ou o que é o mesmo o sujeito acredita isso dele Tal poder misterioso ainda popularmente chamado de magnetismo animal deve ser o mesmo que os primitivos veem como fonte do tabu o mesmo que emana de reis e chefes e que torna perigoso aproximarse deles mana Esse poder o hipnotizador pretende possuir e como o manifesta en tão Exortando a pessoa a olhar para ele nos olhos tipicamente ele hipnotiza pelo olhar Mas precisamente a vista do chefe é perigosa e insuportável para o primitivo como depois a da divindade para o mortal Ainda Moisés tem de atuar como inter mediário entre seu povo e Jeová já que o povo não suportaria a visão de Deus e quando ele retorna da presença de Deus seu rosto brilha uma parte do mana transferiuse para ele como sucede com o intermediário nos povos primitivos43 É certo que a hipnose pode ser induzida por outros meios algo enganador e que motivou teorias fisiológicas precárias por exemplo fixando os olhos num objeto brilhante ou escutando um ruído monótono Na realidade estes procedimentos servem apenas para desviar e prender a atenção consciente A situação é igual àquela em que o hipnotizador dissesse Agora se ocupe ex clusivamente da minha pessoa o resto do mundo não tem qualquer interesse Sem dúvida seria tecnicamente inadequado o hipnotizador falar tal coisa o sujeito seria arrancado de sua 69300 atitude inconsciente e estimulado à contradição consciente Mas enquanto o hipnotizador evita dirigir o pensar consciente do sujeito para suas intenções e a pessoacobaia cai numa atividade em que o mundo lhe parece desinteressante ocorre que de fato ela inconscientemente concentra toda a atenção no hipnotizador entregandose à atitude do rapport da transferência para com ele Assim os métodos indiretos de hipnotização de modo semelhante a várias técnicas do humor têm o efeito de impedir certas distribuições da energia psíquica que perturbariam o curso do processo inconsciente e afinal levam ao mesmo objet ivo que as influências diretas por meio do olhar fixo e do toque44 Ferenczi descobriu corretamente que ao dar a ordem para dormir como faz frequentemente ao iniciar a hipnose o hipnot izador se coloca no lugar dos pais Ele acreditou poder distinguir duas espécies de hipnose uma lisonjeira e apaziguadora que at ribuiu ao modelo materno e uma ameaçadora que derivou do pai45 A ordem de dormir na hipnose não significa outra coisa senão o convite a retirar todo o interesse do mundo e concentrá lo na pessoa do hipnotizador e assim é compreendida também pelo sujeito pois nesta subtração do interesse do mundo externo se acha a característica psicológica do sono e se baseia a afinid ade entre o sono e o estado hipnótico Com suas medidas o hipnotizador desperta no sujeito uma porção da herança arcaica deste a qual também se harmonizou com os pais e na relação com o pai experimentou uma re vivescência individual a ideia de uma personalidade muito po tente e perigosa ante a qual só se podia ter uma atitude passiva masoquista à qual a vontade tinha que se render parecendo uma arriscada empresa estar a sós com ela cairlhe sob os ol hos Apenas assim aproximadamente nos é dado imaginar a 70300 relação de um indivíduo da horda primeva com o pai primordial Como sabemos de outras reações o indivíduo conservou um grau variável de aptidão pessoal para a revivescência de tais situ ações antigas Mas algum conhecimento de que a hipnose é apenas um jogo uma mentirosa renovação daquelas antigas im pressões pode persistir e cuidar para que haja resistência diante de consequências muito graves da suspensão hipnótica da vontade O caráter inquietante e compulsivo da formação da massa evidenciado em seus fenômenos de sugestão pode então ser re montado com justiça à sua origem a partir da horda primeva O líder da massa continua a ser o temido pai primordial a massa quer ainda ser dominada com força irrestrita tem ânsia extrema de autoridade ou nas palavras de Le Bon sede de submissão O pai primevo é o ideal da massa que domina o Eu no lugar do ideal do Eu A hipnose tem direito a ser descrita como uma massa a dois para a sugestão resta a definição de ser um con vencimento que não se baseia na percepção e no trabalho do pensamento mas na ligação erótica46 XI UM GRAU NO INTERIOR DO EU Se tendo presentes as descrições mutuamente complementares da psicologia das massas lançamos um olhar sobre a vida dos in divíduos de hoje perdemos talvez a coragem para uma exposição abrangente diante das complicações que surgem Cada indiví duo é um componente de muitos grupos tem múltiplos laços por identificação e construiu seu ideal do Eu segundo os mais 71300 diversos modelos Assim cada indivíduo participa da alma de muitos grupos daquela de sua raça classe comunidade de fé nacionalidade etc e pode também erguerse além disso at ingindo um quê de independência e originalidade Com seus efeitos uniformes e constantes tais formações grupais duradour as estáveis oferecemse menos à observação do que os grupos rapidamente formados transitórios a partir dos quais Le Bon fez seu brilhante esboço de caracterização psicológica da alma dos grupos e nesses grupos ruidosos efêmeros como que super postos aos outros sucede justamente o prodígio de que o que re conhecemos como aquisição individual desaparece sem deixar traços embora apenas temporariamente Percebemos tal prodígio como significando que o indivíduo renuncia ao seu ideal do Eu e o troca pelo ideal da massa corpor ificado no líder Devemos acrescentar a título de emenda que esse fenômeno não tem a mesma grandeza em todos os casos Em muitos indivíduos a separação entre Eu e ideal do Eu não progrediu bastante os dois ainda coincidem facilmente o Eu conserva amiúde a anterior autocomplacência narcísica A escolha do líder é bem facilitada por esta circunstância Com fre quência ele necessita apenas possuir de modo particularmente puro e marcante os atributos típicos desses indivíduos e dar a impressão de enorme força e liberdade libidinal então vai ao seu encontro a necessidade de um forte chefe supremo dotandoo de um poder tal que ele normalmente não poderia reivindicar Os outros cujo ideal de Eu de outro modo não se teria corporific ado sem correções na sua pessoa veemse então arrebatados sugestivamente isto é por identificação Reconhecemos que a nossa contribuição para o esclareci mento da estrutura libidinal de um grupo remonta à 72300 diferenciação entre Eu e ideal do Eu e ao duplo tipo de ligação por ela possibilitada identificação e colocação do objeto no lugar do ideal do Eu A hipótese desse grau diferenciador no Eu como primeiro passo de uma análise do Eu tem que se justificar gradualmente nos mais diversos âmbitos da psicologia No meu trabalho Introdução ao narcisismo47 reuni o material patológi co que no momento podia ser usado em apoio a essa distinção Mas é lícito esperar que a sua importância se revele bem maior quando houver mais aprofundamento na psicologia das psicoses Reparemos que o Eu entra na relação de um objeto com o ideal de Eu que a partir dele se desenvolveu e que possivelmente to das as influências mútuas entre o objeto externo e o Eu como um todo com que deparamos no estudo das neuroses chegam a se repetir nesse novo palco dentro do Eu Examinarei aqui apenas uma das possíveis consequências desse ponto de vista continuando a discussão de um problema que tive que deixar irresolvido em outro lugar48 Cada uma das distinções psíquicas que viemos a conhecer representa uma nova complicação da função psíquica aumenta a sua instabilidade e pode se tornar o ponto de partida para uma falha da função um adoecimento Assim com o ato de nascer passamos do nar cisismo absolutamente autossuficiente à percepção de um mundo exterior variável e ao começo da busca de objetos e a isso se liga o fato de não suportarmos duradouramente o novo es tado de periodicamente o revogarmos voltando no sono ao es tado anterior de ausência de estímulos e evitação de objetos É verdade que aí seguimos um aceno do mundo exterior que com a alternância regular de dia e noite nos subtrai temporariamente a maior parte dos estímulos que sobre nós atuam Já o segundo exemplo mais significativo para a patologia não está sujeito a 73300 restrição desse tipo No curso de nosso desenvolvimento efetuamos uma separação em nossa existência psíquica entre um Eu coerente e uma parte reprimida inconsciente deixada fora dele e sabemos que a estabilidade dessa nova conquista está sujeita a constantes abalos No sonho e na neurose essa parte ex cluída bate às portas guardadas pelas resistências exigindo ad missão e durante a vigília e em condições de saúde recorremos a artifícios especiais para acolher temporariamente em nosso Eu o reprimido contornando as resistências e obtendo algum prazer As piadas e os atos de humor e em parte a própria comicidade podem ser vistos a essa luz Qualquer conhecedor da psicologia das neuroses recordará exemplos similares de menor alcance mas passemos à aplicação que gostaria de propor É concebível que também a separação do ideal do Eu frente ao Eu não seja suportada de maneira duradoura e tenha que se des fazer temporariamente Com todas as renúncias e limitações im postas ao Eu o periódico desrespeito das proibições constitui re gra como demonstra aliás a instituição das festas que original mente nada mais são do que excessos oferecidos pela lei de vendo a esta liberação a sua natureza alegre49 As Saturnais dos romanos e o nosso moderno Carnaval coincidem neste traço es sencial com as festas dos povos primitivos que costumam ter minar em desregramentos de todo tipo incluindo transgressões dos mandamentos mais sagrados em época normal Mas o ideal do Eu compreende a soma de todas as restrições a que o Eu deve obedecer e por isso o recolhimento do ideal tem de ser uma grande festa para o Eu que pode então voltar a sentirse con tente consigo50 Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no Eu coin cide com o ideal do Eu Também o sentimento de culpa e o 74300 sentimento de inferioridade pode ser entendido como expressão da tensão entre Eu e ideal Sabese que existem pessoas cuja disposição geral de humor oscila periodicamente de um abatimento excessivo a uma el evada sensação de bemestar passando por um estado inter mediário Tais oscilações aparecem com amplitudes bem diver sas desde aquelas que mal se notam até as extremas que na forma de melancolia e de mania interferem muito dol orosamente ou perturbadoramente na vida do sujeito Em casos típicos dessa má disposição cíclica causas exteriores não pare cem ter papel decisivo quanto a motivos interiores nesses doentes não se encontra algo mais ou algo diferente dos outros Por isso nos acostumamos a ver esses casos como não psicogêni cos Depois trataremos de outros casos bem semelhantes de má disposição cíclica que no entanto podem facilmente remontar a traumas psíquicos O fundamento de tais oscilações espontâneas do humor é desconhecido portanto faltanos a compreensão do mecanismo pelo qual a melancolia é trocada pela mania Estes então po deriam ser os doentes para os quais valeria a nossa conjectura de que o seu ideal do Eu é temporariamente dissolvido no Eu após têlo governado com rigor especial Para evitar a pouca clareza retenhamos o que segue Partindo de nossa análise do Eu não é de duvidar que na pessoa maníaca o Eu e o ideal do Eu se tenham juntado de modo que o indiví duo numa disposição de triunfo e de felicidade consigo não per turbada por qualquer autocrítica pode fruir a ausência de inib ições considerações e reproches a si mesmo Não é tão evidente mas bastante provável que a miséria do melancólico seja ex pressão de uma aguda desavença entre as duas instâncias do Eu 75300 na qual o ideal desmesuradamente sensível manifesta sua con denação do Eu de modo implacável em delírios de pequenez e no autorrebaixamento Resta saber se a causa dessas relações al teradas entre Eu e ideal do Eu deve ser buscada nas rebeliões periódicas contra a nova instituição postuladas acima ou se out ras condições devem ser responsáveis por elas A mudança para mania não é um traço indispensável no quadro clínico da depressão melancólica Há melancolias simples que sucedem apenas uma vez ou que se repetem period icamente que nunca sofrem esse destino Por outro lado há melancolias em que um fato causador tem claramente um papel etiológico São aquelas que sobrevêm após a perda de um objeto amado seja por morte deste ou devido a circunstâncias que forçaram a retirada de libido do objeto Tal melancolia psicogên ica pode resultar em mania e este ciclo repetirse muitas vezes assim como no caso de uma que parece espontânea As con dições não são muito transparentes portanto ainda mais porque até agora somente alguns casos e formas de melancolia foram submetidos à investigação psicanalítica51 Até agora compreen demos apenas os casos em que o objeto foi abandonado porque se mostrara indigno do amor Então ele é novamente instaurado no Eu através da identificação e severamente julgado pelo ideal do Eu As recriminações e agressões dirigidas ao objeto vêm a se manifestar como autorrecriminações melancólicas52 Também a uma melancolia desse tipo pode se seguir a trans formação em mania de modo que tal possibilidade representa um traço independente das demais características do quadro clínico Porém não vejo dificuldade em atribuir ao fator da rebelião periódica do Eu contra o ideal do Eu participação nos dois tipos 76300 de melancolia tanto a psicogênica como a espontânea Nesta podemos supor que o ideal do Eu tende a exercer uma particular severidade que então leva automaticamente à sua suspensão temporária Naquela o Eu seria estimulado a rebelarse devido ao mau tratamento que sofre por parte do seu ideal no caso da identificação com um objeto rejeitado XII COMPLEMENTOS No curso dessa investigação que chegou provisoriamente ao fim abriramse para nós várias trilhas secundárias que inicialmente evitamos mas que nos prometiam alguns esclarecimentos Vamos agora retomar certos pontos que ficaram para trás A A distinção entre identificação do Eu com um objeto e substituição do ideal do Eu por um objeto tem uma interessante ilustração nos dois grandes grupos artificiais estudados no início o Exército e a Igreja cristã É evidente que o soldado toma por ideal seu superior o líder do Exército na verdade enquanto se identifica com os seus iguais e deriva dessa comunidade do Eu as obrigações de auxílio mútuo e partilha de bens que a camaradagem traz consigo Mas ele se torna ridículo quando quer se identificar com o general O caçador de Wallensteins Lager zomba do sargento por isso O modo como ele pigarreia e escarra Isso vocês imitam com perfeição É diferente na Igreja católica Cada cristão ama a Cristo como seu ideal e sentese ligado aos outros cristãos pela identificação 77300 A Igreja pede mais dele porém Ele deve identificarse com Cristo e amar os outros cristãos tal como Cristo os amou Logo nos dois pontos a Igreja requer que a posição libidinal dada pelo grupo seja completada A identificação deve ser acrescentada ali onde houve a escolha de objeto e o amor ao objeto onde existe identificação Esse algo mais ultrapassa claramente a constitu ição do grupo É possível ser um bom cristão estando porém longe da ideia de se pôr no lugar de Cristo de como ele abraçar amorosamente a todos os homens Sendo um frágil mortal o in divíduo não tem que se atribuir a largueza de alma e a fortaleza amorosa do Salvador Mas é provável que esse novo desenvolvi mento da distribuição da libido no grupo seja o fator em que o cristianismo baseia sua pretensão de haver atingido uma mais alta moralidade B Afirmamos que seria possível indicar na evolução psíquica da humanidade o ponto em que também para o indivíduo se efetuou o progresso da psicologia das massas para a psicologia individual53 Para isso temos que voltar brevemente ao mito científico do pai da horda primordial Ele foi posteriormente elevado a criador do mundo e com justiça pois havia gerado todos os filhos que compunham o primeiro grupo Ele era o ideal de cada um deles venerado e temido ao mesmo tempo algo que viria a resultar na noção de tabu Esses filhos se juntaram numa ocasião e o matar am e despedaçaram Nenhum dos membros vencedores pôde se colocar no seu lugar ou quando um deles o fez renovaramse as lutas até perceberem que todos tinham que renunciar à herança do pai Então formaram a comunidade totêmica de irmãos todos 78300 com direitos iguais e unidos pelas proibições do totem destin adas a preservar e expiar a memória do assassínio Mas continu ou a insatisfação com o que haviam alcançado e tornouse a fonte de novos desenvolvimentos Pouco a pouco os irmãos coli gados foram reproduzindo o velho estado num novo nível o macho tornouse outra vez chefe de uma família e quebrou os privilégios do governo de mulheres que se havia instituído no período sem pai Para compensar isso ele pode ter reconhecido então as divindades maternas cujos sacerdotes foram castrados para segurança da mãe conforme o exemplo que o pai havia dado à horda primordial mas a nova família era apenas uma sombra da antiga os pais eram muitos e cada qual restringido pelos direitos dos demais Por esse tempo a privação nostálgica pode ter levado um indi víduo a desligarse do grupo e assumir o papel do pai Quem realizou isso foi o primeiro poeta épico o avanço ocorreu em sua fantasia O poeta transmentiu a realidade no sentido de seu anseio Ele inventou o mito heroico Herói era aquele que soz inho havia matado o pai que no mito ainda aparecia como mon stro totêmico Assim como o pai fora o primeiro ideal do garoto agora o poeta criava o primeiro ideal do Eu no herói que sub stituiria o pai A ligação com o herói foi provavelmente fornecida pelo filho mais jovem o favorito da mãe o qual ela protegera do ciúme do pai e que na época da horda primordial se tornara o sucessor do pai Na mentirosa transfiguração do tempo primit ivo a mulher que fora o prêmio e chamariz para o assassinato tornouse provavelmente a sedutora e instigadora do malfeito O herói pretende haver realizado sozinho o feito mas apenas a horda como um todo se arriscaria a tanto Segundo a obser vação de Rank porém os contos de fadas preservaram nítidos 79300 traços do fato negado Pois neles ocorre frequentemente que o herói tendo uma difícil tarefa a resolver em geral um filho jovem não raro um que se fez de tolo isto é inofensivo frente ao substituto do pai só pode fazêlo com ajuda de uma hoste de pequenos animais formigas abelhas Estes seriam os irmãos da horda primordial tal como no simbolismo dos sonhos insetos e vermes significam irmãos em geral pejorativamente como cri anças pequenas Além disso podese facilmente reconhecer em cada tarefa dos mitos e contos um sucedâneo do feito heroico Portanto o mito é o passo com que o indivíduo emerge da psicologia da massa O primeiro mito foi certamente o psicológi co o mito do herói o mito explicador da natureza deve ter sur gido bem depois O poeta que deu este passo e com isso libertouse do grupo na imaginação sabe conforme outra obser vação de Rank achar o caminho de volta para ele na realidade Pois ele vai e conta a esse grupo os feitos de seu herói por ele in ventados No fundo esse herói não é outro senão ele próprio Assim ele desce até à realidade e eleva seus ouvintes até à ima ginação Mas os ouvintes entendem o poeta eles são capazes de identificarse com o herói a partir da mesma relação nostálgica com o pai primevo54 A mentira do mito heroico culmina na divinização do herói Talvez o herói divinizado tenha sido anterior ao deuspai o pre cursor da volta do pai primordial como divindade A série de deuses seria então cronologicamente deusamãe herói deuspai Mas apenas com a elevação do pai primordial que nunca fora esquecido a divindade adquiriu os traços que ainda hoje vemos nela55 C Neste ensaio falamos muito de instintos sexuais diretos e inibidos em sua meta e esperamos que tal distinção não venha a 80300 deparar com grande resistência Mas uma discussão detalhada a respeito disso poderá ser bemvinda mesmo se apenas repetir o que em boa parte já foi dito em outros lugares O primeiro e também melhor exemplo de instintos sexuais inibidos em sua meta nós encontramos no desenvolvimento sexual da criança Todos os sentimentos que a criança tem por seus pais e aqueles que dela cuidam se prolongam livremente nos desejos que exprimem os impulsos sexuais da criança Ela requer dessas pessoas amadas todos os mimos que conhece quer olhar tocar e beijálas tem curiosidade de ver seus genitais e es tar presente quando perfazem suas íntimas excreções promete casar com a mãe ou babá pouco importando o que entenda por isso propõese ter um filho com o pai etc A observação direta assim como o posterior aclaramento analítico dos restos infantis não deixam dúvidas acerca da imediata confluência de sentimen tos de ternura e ciúme e de intenções sexuais e nos mostram de que maneira fundamental a criança torna a pessoa amada o ob jeto de todos os seus empenhos sexuais ainda não propriamente centrados Cf os Três ensaios Esta primeira configuração amorosa da criança que tipica mente se subordina ao complexo de Édipo a partir do começo do período de latência sucumbe como é sabido a uma onda de repressão O que dela sobra se nos apresenta como um laço afet ivo puramente terno dirigido às mesmas pessoas mas que não mais se deve qualificar de sexual A psicanálise que aclara as profundezas da vida anímica não encontra dificuldade em mostrar que também os laços sexuais dos primórdios da infância continuam a existir reprimidos e inconscientes porém Ela nos dá coragem para dizer que onde quer que deparemos com um sentimento terno ele constitui o sucessor de um laço objetal 81300 inteiramente sensual com a pessoa em questão ou seu modelo sua imago É verdade que sem uma investigação especial ela não pode nos revelar se num determinado caso essa corrente an terior plenamente sexual ainda subsiste reprimida ou se já está exaurida Colocando isso de modo mais agudo não há dúvida de que ela ainda está presente como forma e possibilidade e de que a todo momento pode ser investida ativada por meio de regressão perguntase apenas e nem sempre é possível respon der que investimento e eficácia ela ainda possui no presente Nesse ponto é preciso atentar igualmente para duas fontes de erro a Cila da subestimação do inconsciente reprimido e a Caribdes da inclinação a medir o normal inteiramente com o metro do patológico Para uma psicologia que não quer ou não pode penetrar a pro fundeza do que é reprimido os laços afetivos ternos se ap resentam de toda forma como expressão de impulsos que não visam o sexual embora procedam de impulsos que para isso ten diam56 É justificado dizermos que foram desviados dessas metas sexuais embora haja alguma dificuldade em descrever esse des vio de metas conforme as exigências da metapsicologia Além disso tais instintos inibidos em sua meta ainda conservam algu mas das metas sexuais originárias também o terno devoto tam bém o amigo ou admirador busca a proximidade física e a visão da pessoa amada apenas no sentido paulino Se quisermos poderemos reconhecer nesse desvio da meta um início de sub limação dos instintos sexuais ou então situar mais adiante a fronteira desta Os instintos sexuais inibidos na meta têm uma grande vantagem funcional diante dos não inibidos Já que não são capazes de uma satisfação realmente completa prestamse 82300 em especial para criar ligações duradouras enquanto os direta mente sexuais perdem cada vez sua energia com a satisfação e têm que esperar serem renovados por mais um acúmulo da li bido sexual de modo que nesse meiotempo o objeto pode ser trocado Os instintos inibidos são capazes de qualquer grau de mistura com os não inibidos podem voltar a transformarse neles uma vez que se originaram deles Sabese como é fácil que desejos eróticos se desenvolvam a partir de relações afetivas de natureza amigável fundadas na admiração e no reconhecimento o Embrassezmoi pour lamour du Grec de Molière entre professor e aluna artista e ouvinte encantada sobretudo no caso de mulheres Na verdade o surgimento de tais ligações afetivas de início não intencionais fornece uma via bastante frequentada para a escolha do objeto sexual Em Die Frömmigkeit des Grafen von Zinzendorf A piedade do conde Von Zinzendorf Pfister deu um exemplo muito nítido e certamente não raro de como uma intensa ligação religiosa pode reverter em fervorosa excit ação sexual Por outro lado é também comum a transformação de impulsos sexuais diretos por si mesmo efêmeros em ligação duradoura e apenas terna e a consolidação de um casamento que resultou da paixão amorosa depende em boa parte deste processo Naturalmente não será surpresa ouvirmos que os impulsos sexuais inibidos na meta surgem daqueles diretamente sexuais quando obstáculos íntimos ou externos impedem o alcance das metas sexuais A repressão durante o período de latência é um desses obstáculos interiores ou melhor interiorizados Supusemos que o pai da horda primeva com sua intolerância sexual obrigava todos os filhos à abstinência e assim os impelia a relações inibidas na meta enquanto para si mesmo reservava o 83300 livre gozo sexual permanecendo sem ligações Todas as ligações em que se baseia o grupo são da natureza dos instintos inibidos em sua meta Mas com isso nos aproximamos da discussão de um novo tema que trata da relação dos instintos diretamente sexuais com a formação de grupos D As duas últimas observações já nos terão preparado para a constatação de que os impulsos sexuais diretos são desfavoráveis à formação de grupos É certo que também na evolução da família houve amor sexual em relações de massa o casamento grupal mas à medida que o amor sexual tornouse mais signi ficativo para o Eu quanto mais se desenvolveu o enamoramento mais cresceu a exigência de que ele se limitasse a duas pessoas una cum uno tal como é prescrita pela natureza da meta gen ital As tendências poligâmicas foram solicitadas a contentarse com a sucessão de diferentes objetos Procurando estar sós as duas pessoas que se juntam para fins de satisfação sexual manifestamse contra o instinto gregário o sentimento de massa Quanto mais apaixonadas mais inteira mente se bastam A rejeição da influência do grupo se exterioriza como sentimento de vergonha Os mais veementes afetos de ciúmes são convocados para impedir que a escolha do objeto sexual seja prejudicada por uma ligação com o grupo Somente quando o elemento terno ou seja pessoal da relação amorosa recua inteiramente diante do sensual é que se torna possível o ato amoroso de um casal na presença de outros ou atos sexuais simultâneos no interior de um grupo como na or gia Mas nisso houve uma regressão a um estado anterior das re lações entre os sexos no qual o enamoramento ainda não desempenhava qualquer papel os objetos sexuais eram 84300 considerados do mesmo valor mais ou menos no sentido da frase maliciosa de Bernard Shaw segundo a qual estar apaixon ado é exagerar enormemente a diferença entre uma mulher e outra Há indícios bastantes de que o enamoramento só apareceu tarde nas relações de sexo entre o homem e a mulher de modo que também a oposição entre amor sexual e ligação ao grupo se desenvolveu tardiamente Tal hipótese talvez pareça incom patível com o nosso mito da família primordial Pois o bando de irmãos deve ter sido levado ao parricídio pelo amor às mães e irmãs e é difícil não imaginar esse amor senão como indiviso primitivo ou seja como íntima união de ternura e sensualidade Refletindo um pouco mais porém esta objeção se transmuta em corroboração Pois uma das reações ao parricídio era a institu ição da exogamia totêmica a proibição de todo laço sexual com as mulheres da família ternamente amadas desde a infância Isso representou a cunha que dividiu os afetos do homem em sensuais e ternos divisão que ainda hoje persiste57 Em virtude dessa exogamia as necessidades sensuais dos homens tiveram de contentarse com mulheres desconhecidas e não amadas Nos grandes grupos artificiais Igreja e Exército não há lugar para a mulher como objeto sexual A relação amorosa entre homem e mulher fica excluída dessas organizações Também quando se formam grupos compostos tanto de homens como de mulheres a diferença sexual não tem qualquer importância Difi cilmente haverá sentido em perguntar se a libido que mantém os grupos é de natureza homossexual ou heterossexual já que ela não se diferencia conforme os sexos e desconsidera particular mente as metas da organização genital da libido 85300 Mesmo para a pessoa que em outros aspectos foi absorvida no grupo os impulsos sexuais diretos conservam um quê de ativid ade individual Quando se tornam muito intensos desintegram qualquer formação grupal A Igreja católica teve bons motivos para recomendar a seus crentes que não se casassem e para im por o celibato a seus padres mas frequentemente também eles foram impelidos a deixar a Igreja por se apaixonarem De modo semelhante o amor à mulher irrompe através de ligações grupais de raça particularidades nacionais e ordem social de classes e promove assim realizações culturalmente import antes Parece seguro que o amor homossexual é bem mais com patível com laços de grupo mesmo quando aparece como im pulso sexual não inibido algo notável cujo esclarecimento po deria levar longe A investigação psicanalítica das psiconeuroses nos ensinou que os seus sintomas devem ser derivados de impulsos sexuais diretos que foram reprimidos mas permanecem ativos Podese completar esta fórmula acrescentando ou daqueles inibidos na meta nos quais a inibição não foi completamente bemsucedida ou abriu espaço para um retorno à meta sexual reprimida Isso condiz com o fato de a neurose tornar associal aquele que atinge de retirálo das habituais formações de grupo Podese dizer que a neurose age sobre o grupo com o mesmo efeito desintegrador que o enamoramento Por outro lado se pode ver que quando há um poderoso ímpeto à formação de grupo as neuroses podem re cuar e ao menos por algum tempo desaparecer Foram feitas tentativas justificadas de usar terapeuticamente esse antagon ismo entre neurose e formação de grupo E mesmo os que não lamentam o fim das ilusões religiosas no mundo civilizado de ho je reconhecerão que enquanto estavam em vigor elas ofereciam 86300 a mais forte proteção contra o perigo das neuroses Também não é difícil perceber em todas as ligações a seitas e comunidades místicoreligiosas ou místicofilosóficas a expressão de curas equívocas de neuroses diversas Isso tudo está relacionado à oposição entre os impulsos sexuais diretos e os inibidos em sua meta Abandonado a si mesmo o neurótico é forçado a substituir as grandes formações de grupos das quais está excluído por suas formações de sintomas Ele cria para si o seu próprio mundo de fantasia sua religião seu sistema delirante e assim repete as in stituições da humanidade numa deformação que claramente evidencia a contribuição poderosa dos impulsos sexuais dire tos58 E Para concluir eis uma apreciação comparativa do ponto de vista da teoria da libido dos estados de que nos ocupamos o en amoramento a hipnose a formação de grupos e a neurose O enamoramento se baseia na existência simultânea de im pulsos sexuais diretos e inibidos em sua meta sendo que o ob jeto atrai para si uma parte da libido narcísica do Eu Nele só há lugar para o Eu e o objeto A hipnose partilha com o enamoramento o fato de restringir se a essas duas pessoas mas baseiase completamente em im pulsos sexuais inibidos na meta e põe o objeto no lugar do ideal do Eu O grupo multiplica este processo coincide com a hipnose na natureza dos instintos que o mantêm e na substituição do ideal do Eu pelo objeto mas junta a isso a identificação com outros in divíduos que originalmente foi tornada possível talvez pela mesma relação com o objeto 87300 Ambos os estados hipnose e grupo são precipitações hered itárias oriundas da filogênese da libido humana a hipnose como disposição o grupo também como vestígio direto A substituição dos impulsos sexuais diretos pelos inibidos promove em ambos a separação de Eu e ideal do Eu da qual no enamoramento já ex iste um começo A neurose se exclui desta série Também ela se baseia numa peculiaridade da evolução da libido humana o duplo início da função sexual direta com o intervalo do período de latência59 Nessa medida ela partilha com a hipnose e a formação do grupo o caráter de uma regressão que falta no enamoramento Ela surge toda vez que a progressão de impulsos sexuais diretos a inibidos não tem êxito completo e representa um conflito entre os instintos acolhidos no Eu que perfizeram tal evolução e partes dos mesmos instintos que desde o inconsciente reprim ido assim como outros instintos completamente reprimidos procuram obter satisfação direta Em termos de conteúdo ela é muito rica pois abarca todas as relações possíveis entre Eu e ob jeto tanto aquelas em que o objeto é mantido como outras nas quais ele é abandonado ou instaurado no próprio Eu mas igual mente as relações conflituosas entre o Eu e seu ideal do Eu Como se perceberá ao longo da leitura deste trabalho Freud usa o termo massa Masse em sentidos diversos que corresponderiam a multidão aglomeração agrupamento grupo etc As notas chamadas por asterisco e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As notas do autor são sempre numeradas 1Traduzido pelo dr Rudolf Eisler 2a edição 1912 88300 A tradução das extensas citações de Le Bon foi feita do original francês La psychologie des foules Paris puf 1971 1895 reproduzido em notas na edição francesa das Œuvres complètes de Freud dirigida por Laplanche Bour guignon e Cotet v xvi Paris puf 1991 As pequenas divergências da tradução alemã utilizada por Freud serão apontadas em notas A primeira delas está no fim do primeiro período onde a versão alemã diz uma alma coletiva eine Kollektivseele e não uma espécie de alma coletiva Quanto à localização das citações as páginas da edição alemã de Le Bon estão entre parênteses e geral mente no início tal como são indicadas por Freud e as do original francês aqui utilizado entre colchetes No texto alemão está conscientes o que é claramente um erro consider ando o contexto e uma nota dos editores na edição alemã utilizada Gesam melte Werke xiii p 78 informa que o original francês diz inconscients No texto da Studienausgabe v ix p 68 uma nota remete igualmente à men cionada nota em GW Segundo nota da edição francesa a frase anterior constante da edição de 1906 de La psychologie des foules foi encurtada por Le Bon nas edições pos teriores passando a Por trás das causas confessas de nossos atos encontramse causas secretas ignoradas por todos É interessante observar que o texto francês de Le Bon traz instincts nesse ponto vertido por Triebe na tradução citada por Freud mas a nova edição francesa modifica o original utilizando pulsions Durante décadas enquanto viveu Freud acompanhou traduções de suas obras para o inglês o francês o italiano e o espanhol nas quais se empregava instinto pata verter Trieb e nunca fez objeções ao termo embora notando sua insuficiência A nova tradução francesa não apenas desconsidera esse fato como chega ao ponto de corrigir um autor francês que escreveu no final do século xix seu livro é de 1895 para adequálo à posição teórica que determina ser errado traduzir Trieb por outro termo que não pulsão 89300 2 Há uma certa diferença entre a visão de Le Bon e a nossa em virtude de o seu conceito de inconsciente não coincidir inteiramente com aquele admitido na psicanálise O inconsciente de Le Bon contém antes de tudo os traços mais profundos da alma da raça que realmente está fora de consideração para a psicanálise individual Não deixamos de perceber que o âmago do Eu o Id Es como depois o denominei a que pertence a herança arcaica da alma humana é inconsciente mas também distinguimos o reprimido incon sciente que resultou de uma parte dessa herança Este conceito do reprimido não se acha em Le Bon Foule é o termo que consta no original francês Segundo nota da edição francesa a tradução alemã de 1912 diz Masse mas Freud a substituiu por Menge multidão Neste ponto a tradução utilizada por Freud inclui as palavras mittels man nigfacher Prozeduren mediante procedimentos vários Impetuosidade é versão literal do termo usado no original francês de Le Bon impétuosité É digno de nota que na tradução alemã citada por Freud se ache Trieb nesse ponto em mais uma evidência da polissemia desse termo Na frase seguinte a mesma palavra francesa foi vertida em alemão por Ungestüm ímpeto impetuosidade arrebatamento Na versão citada por Freud O indivíduo não é mais ele mesmo tornouse um autômato sem vontade 3 Vejase o dístico de Schiller de Sprüche Jeder sieht man ihn einzeln ist leidlich klug und verständlig Sind sie in corpore gleich wird euch ein Dummkopf daraus Cada um olhado separadamente é passavelmente arguto e sensato Se es tão in corpore logo se revelarão uns asnos 4 Inconsciente é usado por Le Bon corretamente no sentido descritivo quando não significa apenas o reprimido 5 Cf Totem e tabu iii Animismo magia e onipotência dos pensamentos 90300 6 Na interpretação dos sonhos aos quais devemos o nosso melhor conheci mento da vida anímica inconsciente seguimos a regra técnica de não consid erar a dúvida e a incerteza na narrativa onírica e tratar cada elemento do sonho manifesto como igualmente seguro Atribuímos dúvidas e incertezas à intervenção da censura a que está sujeito o trabalho do sonho e supomos que os pensamentos oníricos primários não conhecem dúvida e incerteza como realização crítica Naturalmente elas podem enquanto conteúdos e como tudo o mais aparecer nos resíduos diurnos que conduzem ao sonho Ver A interpretação dos sonhos 7a ed 1922 p 386 GW iiiii pp 5201 cap vii parte A 5a e 6a páginas 7 A mesma intensificação extrema e desmedida de todos os impulsos afetivos é própria também da afetividade da criança e comparece igualmente na vida onírica na qual graças ao isolamento dos impulsos afetivos singulares que vigora no inconsciente um leve aborrecimento diurno se expressa como desejo homicida contra a pessoa culpada ou uma breve tentação qualquer se torna o ponto de partida para um ato criminoso representado no sonho Acerca desse fato o dr Hanns Sachs fez a bela observação O que o sonho nos revelou de sua relação com o presente a realidade procuremos descobrilo também na consciência e então não deveremos nos surpreender se o monstro que vimos sob a lente de aumento da psicanálise nos aparecer como um pequenino infusório A interpretação dos sonhos 7a ed 1922 p 457 GW ii iii p 626 última página do livro Instinkte no original Tendo adotado instinto para verter Trieb indicamos as ocasiões em que Freud utiliza Instinkt ou em que preferimos impulso 8 No bebê por exemplo durante muito tempo coexistem atitudes emocionais ambivalentes para com as pessoas que lhe são mais próximas sem que uma delas perturbe a expressão da que lhe é oposta Havendo afinal um conflito entre ambas frequentemente ele é resolvido com a troca do objeto pela cri ança que desloca um dos impulsos ambivalentes para um objeto substituto Também a história do desenvolvimento de uma neurose no adulto pode ensin ar que um impulso reprimido persiste com frequência por bastante tempo 91300 em fantasias inconscientes ou mesmo conscientes cujo conteúdo natural mente vai bem de encontro a uma tendência dominante sem que desta oposição resulte uma intervenção do Eu contra aquilo por ele rejeitado A fantasia é tolerada por um bom período até que subitamente em geral devido a um acréscimo do seu investimento afetivo produzse o conflito entre ela e o Eu com todas as suas consequências Na progressiva evolução da criança para adulto chegase a uma integ ração cada vez mais ampla de sua personalidade a uma síntese dos vários im pulsos instintuais e tendênciascommetas Zielstrebungen que nela cres ceram independentes uns dos outros Há muito conhecemos o processo aná logo no âmbito da vida sexual enquanto síntese de todos os instintos sexuais numa organização genital definitiva Três ensaios de uma teoria da sexualid ade 1905 terceiro ensaio O fato de a unificação do Eu estar sujeita às mes mas perturbações que a da libido é mostrado por muitos exemplos con hecidos como o dos cientistas que continuam crendo na Bíblia e outros as sim Acréscimo de 1923 As diversas possibilidades de uma posterior de sagregação do Eu constituem um capítulo especial da psicopatologia 9 Ver Totem e tabu 1913 No original Führer do verbo führen conduzir guiar dirigir o substantivo que como se sabe era a designação de Hitler na Alemanha nazista pode ser traduzido por qualquer uma destas palavras conforme o contexto guia chefe líder dirigente cicerone condutor piloto caudilho comandante etc 10 Cf o texto e a bibliografia em B Kraskovic jun Die Psychologie der Kollektivitäten traduzido do croata por Siegmund von Posavec Vukovar 1915 11 Ver Walter Moede Die Massen und Sozialpsychologie im kritischen Überblick A psicologia social e de massas num panorama crítico Zeitschrift für pädagogische Psychologie und experimentelle Pädagogik xvi 1915 12 Cambridge 1920 13 Instincts of the herd in peace and war Londres 1916 92300 14 Acrescentada em 1923 Contrariamente a uma crítica de Hans Kelsen a este trabalho Der Begriff des Staaes und die Sozialpsychologie em Imago viii2 1922 de resto bem compreensiva e perspicaz não posso admitir que prover a alma coletiva de organização signifique hipostasiála isto é atribuirlhe independência dos processos psíquicos do indivíduo 15 Gabriel Tarde Les lois de limitation Paris 1890 16 Brugeilles Lessence du phénomène social La suggestion Revue Philo sophique xxv 1913 17 Konrad Richter Der deutsche St Christoph Acta Germanica v 1 Berlim 1896 Christoph trug ChristumChristus trug die ganze WeltSag wo hat ChristophDamals hin den Fuβ gestellt A adivinhação é citada por Freud em alemão e em latim 18 Assim faz McDougall no Journal of Neurology and Psychopathology v 1 n 1 maio de 1920 A note on suggestion 19 Nachmansohn Freuds Libidotheorie verglichen mit der Eroslehre Platos A teoria da libido de Freud comparada com a teoria do Eros de Platão Inter nationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 3 1915 Pfister Plato als Vorläufer der Psychoanalyse Platão como precursor da psicanálise idem v 7 1921 20 Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos se não tiver amor serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine e versículos que seguem 1 Coríntios 13 Por amor a eles é tradução literal da expressão idiomática ihnen zuliebe por eles for their sake em inglês que Freud utiliza aqui entre parênteses sublinhando a existência da palavra amor na expressão 93300 21 Os atributos estável e artificial parecem coincidir ou ao menos relacionarse intimamente nas massas 22 Kriegsneurosen und Psychisches Trauma Neuroses de guerra e Trauma psíquico Munique 1918 Cabe lembrar que o termo alemão Angst pode significar tanto medo como angústia 23 Ver as Conferências introdutórias n 25 1917 Bologneser Fläschchen literalmente garrafinha de Bolonha no original Tudo indica se tratar da lágrima batávica gota de vidro em fusão que toma uma forma semelhante à da lágrima quando lançada em água fria e que se desintegra quando sua ponta é quebrada Segundo informação de James Strachey esse livro era assinado por Guy Thorne pseudônimo de C Ranger Gull e foi bastante lido na época de sua publicação em 1903 24 Comparese a explicação de fenômenos similares após a ruína da autorid ade pátria em P Federn Die vaterlose Gesellschaft A sociedade sem pai Vi ena 1919 25 Num dia frio de inverno um grupo de porcosespinhos se aconchegou bastante para se esquentarem mutuamente e não morrerem de frio Contudo logo sentiram os espinhos uns dos outros o que os fez novamente se afastar em E quando a necessidade de aquecimento os aproximava de novo repetia se o segundo mal de modo que eram impelidos de um sofrimento para o outro até acharem uma distância média que lhes permitisse suportar o fato da melhor maneira Parerga und Paralipomena parte ii xxxi Gleichnisse und Parabeln Alegorias e parábolas 26 Com a única exceção talvez da relação entre a mãe e o filho que sendo baseada no narcisismo não é perturbada por uma rivalidade posterior e é re forçada por um esboço de escolha do objeto sexual 94300 27 Num trabalho recentemente publicado Além do princípio do prazer 1920 procurei relacionar a polaridade amor e ódio com a hipotética oposição entre instintos de vida e de morte caracterizando os instintos sexuais como os mais puros representantes dos primeiros os instintos de vida 28 Ver Introdução ao narcisismo 1914 Nesse ponto há um erro na Standard inglesa já notado por vários estu diosos que consiste em traduzir o advérbio vorher antes por later depois Na mesma frase por apoio é nossa versão para Anlehnungs que Strachey traduz recorrendo ao grego antigo por anaclítico 29 Ver os Três ensaios de uma teoria da sexualidade e Abraham Unter suchungen über die früheste prägenitale Entwicklungsstufe der Libido Inter nationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 4 1916 e também dele Klinische Beiträge zur Psychoanalyse Internationale Psychoanalytische Bibliothek v 10 1921 Freud usa o termo Vorbild composto de Bild imagem e da preposição vor diante de O sentido de ele usar aspas está em chamar a atenção do leit or alemão para o que essa palavra corriqueira normalmente traduzida por modelo pode significar no contexto do seu raciocínio Em português as as pas se justificam apenas se imaginarmos a relação entre modelo e configur ar tomando este como sinônimo de modelar mas o original alemão de configurar é gestalten dar forma que tem Gestalt como substantivo 30 Markuszewicz Beitrag zum autistischen Denken bei Kinder Contribuição acerca do pensamento autista nas crianças Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 6 1920 31 Luto e melancolia Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre iv Folge 1918 1917 32 Introdução ao narcisismo parte iii 1914 95300 33 Bem sabemos que com tais exemplos retirados da patologia não esgotamos a natureza da identificação e assim deixamos intocada uma parte do enigma da formação das massas Uma análise psicológica bem mais profunda e abrangente se faria necessária neste ponto Há um caminho que da identi ficação através da imitação leva à empatia isto é à compreensão do mecan ismo pelo qual se torna possível para nós tomar uma posição ante uma outra vida psíquica Também há muito a ser explicado quanto às manifestações de uma identificação existente Uma consequência desta entre outras está em que o indivíduo limita a agressividade frente à pessoa com a qual se identi ficou poupa esta e lhe dá ajuda O estudo de identificações assim como as que alicerçam a comunidade do clã por exemplo levou Robertson Smith à surpreendente descoberta de que se baseiam no reconhecimento de uma sub stância comum Kinship and marriage 1885 e por isso podem ser criadas também por uma refeição realizada em comum Este elemento permite ligar tal identificação à história primeva da família humana como eu a construí em Totem e tabu 34 Ver os Três ensaios segundo ensaio parte 6 35 Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa Sammlung 4 Folge 1918 1912 36 Ver Complemento metapsicológico à teoria do sonho 1917 Entretanto é admissível alguma dúvida quanto à justeza dessa atribuição que requer uma discussão mais demorada 37 W Trotter op cit Deixamos os termos originais de Freud já que seria redundante usar instin tos nos dois casos Strachey que como se sabe também traduz Triebe por instincts suprime os parênteses e seu conteúdo 38 Ver sobre a angústia as Conferências introdutórias à psicanálise n 25 Freud faz aqui um jogo de palavras mudando apenas uma letra Herdentier animal de rebanho e Hordentier animal de horda 96300 39 Totem e tabu 19123 em Imago Algumas concordâncias entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos publicado em forma de livro em 1913 40 O que descrevemos em nossa caracterização geral do ser humano deve valer particularmente para a horda primordial A vontade do indivíduo era fraca de mais ele não se arriscava a agir Não se produziam impulsos que não fossem coletivos havia apenas uma vontade comum nenhuma singular Uma ideia não ousava converterse em ato de vontade quando não se sentia fortalecida pela percepção de sua difusão geral Essa fraqueza da ideia tem sua explicação na força da ligação afetiva comum a todos mas a similaridade das condições de vida e a ausência de qualquer propriedade privada concorrem ainda para a uniformidade dos atos psíquicos entre os indivíduos Tampouco as ne cessidades excrementícias excluem a atividade comum como se observa nas crianças e nos soldados A única grande exceção constitui o ato sexual em que um terceiro é de todo modo supérfluo e em caso extremo condenado a uma penosa expectativa Quanto à reação da necessidade sexual de satisfação gen ital frente ao gregarismo ver adiante 41 Talvez seja lícito supor também que os filhos expulsos separados do pai avançaram da identificação entre si para o amor objetal homossexual ad quirindo assim a liberdade para matar o pai As palavras entre travessões foram omitidas na Standard inglesa 42 O inquietante Imago v 1919 43 Ver Totem e tabu e as fontes ali citadas Processo inconsciente unbewußter Vorgang no original Strachey pref ere no presente contexto events in the unconscious evento é também uma tradução plausível para Vorgang geralmente traduzido por processo 44 A situação em que a pessoa está inconscientemente voltada para o hipnotiz ador enquanto conscientemente se ocupa de percepções uniformes e desin teressantes tem uma contrapartida nos eventos da terapia psicanalítica algo 97300 que merece ser mencionado aqui Em toda análise acontece ao menos uma vez o paciente afirmar teimosamente que nada lhe ocorre Suas associações livres cessam e fracassam os estímulos para pôlas em movimento Pressionandoo obtemos enfim a admissão de que ele pensa na vista a partir da janela do con sultório no papel de parede à sua frente ou na lâmpada de gás que pende do teto Então sabemos de imediato que ele se entregou à transferência que é so licitado por pensamentos ainda inconscientes que se referem ao médico e vemos acabar a interrupção dos pensamentos espontâneos assim que lhe é dada tal explicação 45 Ferenczi Introjeção e transferência Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen i 1909 46 Pareceme digno de registro que as discussões deste capítulo nos levaram a abandonar a concepção de Bernheim sobre a hipnose e voltar àquela ingênua mais antiga Segundo Bernheim todos os fenômenos hipnóticos derivam do fator da sugestão que não é passível de maior esclarecimento Nós concluímos que a sugestão é parte do estado hipnótico o qual tem seu fundamento numa disposição inconscientemente mantida oriunda da história primordial da família humana 47 Jahrbuch der Psychoanalyse iv 1914 Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre 4 Folge 1914 48 Luto e melancolia Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 4 19168 Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre 4 Folge 1917 49 Totem e tabu 1913 50 Segundo Trotter a repressão deriva do instinto gregário É mais uma tradução em outra forma de dizer do que uma contradição quando afirmei na Introdução ao narcisismo que para o Eu a formação do ideal seria a con dição para a repressão 98300 51 Cf Abraham Ansätze zur psychoanalytischen Erforschung und Behand lung des manischdepressiven Irreseins 1912 em Klinische Beiträge zur Psychoanalyse 1921 52 Mais precisamente elas se escondem por trás das recriminações dirigidas ao próprio Eu emprestamlhes a firmeza tenacidade e peremptoriedade que caracterizam as autorrecriminações dos melancólicos Wie er räuspert und wie er spuckt Das habt ihr ihm glücklich abgeguckt Schiller O acampamento de Wallenstein cena 6 53 O que se segue foi influenciado por uma troca de ideias com Otto Rank Ver Die Don JuanGestalt Imago viii 1922 depois publicado em forma de livro 1924 Transmentiu a realidade log die Wirklichkeit um usouse aqui um neolo gismo para verter uma pequena inovação de Freud que soa natural em alemão ele juntou o prefixo um que indica transformação no caso ao verbo lügen que significa mentir as versões estrangeiras consultadas recor reram a transformó la realidad presentó la realidad bajo una luz mentirosa contraffece la realtà disguised the truth with lies 54 Cf Hanns Sachs Gemeinsame TagträumeDevaneios em comum Inter nationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 6 1920 depois publicado também em livro ImagoBücher v 3 55 Nessa exposição abreviada deixamos de trazer para alicerçar a construção qualquer material das sagas mitos contos história dos costumes etc 56 Os afetos hostis têm organização um pouco mais complicada sem dúvida Literalmente Beijeme senhor por amor ao grego James Strachey re produz em nota a passagem de Molière citada de cor e um tanto imprecis amente por Freud Quoi monsieur sait du grec Ah permettez de grâce Que pour lamour du grec monsieur on vous embrasse Quê O senhor 99300 sabe grego Ah Então permita por favor que por amor ao grego o senhor ganhe um beijo Les femmes savantes As mulheres sábias iii 5 57 Ver Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa 1912 58 Ver Totem e tabu final da parte ii O tabu e a ambivalência 1913 59 Ver Três ensaios 5a ed 1922 p 96 4a página do Resumo 100300 SOBRE A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE HOMOSSEXUALIDADE FEMININA 1920 TÍTULO ORIGINAL ÜBER DIE PSYCHOGENESE EINES FALLES VON WEIBLICHER HOMOSEXUALITÄT PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE V 6 N 1 PP 124 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 271302 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 25581 I A homossexualidade feminina sem dúvida tão frequente quanto a masculina embora menos ruidosa tem sido não apenas ig norada pelas leis mas também negligenciada pela pesquisa psic analítica A comunicação de um simples caso não muito agudo no qual foi possível conhecer a gênese e história psíquica de forma quase sem lacunas e com plena segurança pode então reivindicar alguma atenção Se a exposição traz apenas o con torno geral dos eventos e o que descobrimos a partir do caso si lenciando todos os detalhes característicos em que se baseia a in terpretação tal limitação se explica facilmente pela discrição médica exigida por se tratar de um caso recente Uma bela e inteligente garota de dezoito anos pertencente a uma família de elevada posição social provoca desgosto e in quietação em seus pais pelo carinho com que persegue uma dama da sociedade aproximadamente dez anos mais velha Os pais afirmam que essa dama apesar do seu nome distinto não passa de uma cocota Seria notório que ela vive com uma amiga casada com a qual tem relações íntimas ao mesmo tempo cul tivando frouxos laços amorosos com certo número de homens A garota não discute essa má reputação mas não deixa que ela in terfira em sua adoração embora não lhe falte senso de decoro e de propriedade Não há proibição ou vigilância que a impeça de usufruir cada uma das raras ocasiões de estar junto à amada de manterse a par de todos os seus hábitos de esperála durante horas em frente à sua casa ou em paradas do bonde de enviar lhe buquês de flores etc É evidente que nela esse único interesse absorveu todos os demais Não se preocupa em continuar os estudos não dá valor ao trato social e aos entretenimentos juvenis e conserva relação apenas com algumas amigas que lhe podem servir de confidentes ou ajudantes Os pais não sabem até que ponto chegaram as coisas entre sua filha e essa dama duvidosa se já foram ultrapassados os limites de um entusiasmo carinhoso Nela não notaram interesse por rapazes nem gosto por suas homenagens por outro lado veem claramente que a atual inclinação por uma mulher apenas prossegue em grau mais intenso o que nos últimos anos ela evidenciava por outras figuras femininas e que já despertava suspeita e rudeza no pai Havia dois aspectos em sua conduta aparentemente opostos que irritavam sobremaneira seus pais O fato de não ter es crúpulo em aparecer abertamente em ruas movimentadas com sua malafamada amiga não atentando assim para a sua própria reputação e também de não desdenhar nenhum meio de en gano nenhum subterfúgio ou mentira para possibilitar e ocultar suas entrevistas com ela Demasiada franqueza de um lado e completa dissimulação do outro Um dia sucedeu o que nas cir cunstâncias era mesmo inevitável que o pai encontrou a filha na rua em companhia da dama sobre a qual já tinha informações Passou por elas com olhar furioso que nada de bom pressagiava Imediatamente a garota correu e jogouse por sobre a mureta da linha de trem suburbano que passava próximo Essa tentativa de suicídio indubitavelmente séria custoulhe um longo período de cama mas felizmente não trouxe lesões duradouras Após seu restabelecimento a situação ficou mais favorável do que nunca aos seus desejos Os pais não mais ousavam se opor tão decidida mente a eles e a dama que até então recebera friamente sua corte sentiuse tocada por uma tão nítida prova de séria paixão e começou a tratála mais amavelmente 103300 Uns seis meses após o acidente os pais se dirigiram ao médico e lhe confiaram a tarefa de trazer sua filha de volta à normalid ade Provavelmente a tentativa de suicídio lhes mostrara que as medidas de disciplina domésticas não eram capazes de lidar com a perturbação evidente Mas convém tratar separadamente as at itudes do pai e da mãe O pai era um homem sério respeitável no fundo bastante afetuoso algo distanciado dos filhos pelo rigor que adotara Seu comportamento para com a única filha era muito influenciado por considerações pela esposa mãe da ga rota Quando tomou conhecimento das inclinações homos sexuais da filha enfureceuse e quis reprimilas com ameaças Talvez hesitasse então entre concepções diversas e igualmente dolorosas não sabendo se deveria vêla como uma criatura vi ciosa uma degenerada ou uma doente mental Mesmo depois do acidente não chegou à elevada resignação que um de nossos colegas médicos exprimiu por ocasião de um deslize análogo em sua família com as seguintes palavras É uma infelicidade como outra qualquer A homossexualidade de sua filha tinha algo que lhe despertava grande amargura Ele estava resolvido a combatê la por todos os meios O menosprezo à psicanálise bastante di fundido em Viena não impediu que se voltasse para ela em busca de auxílio Se esse recurso falhasse mantinha em reserva o antídoto mais poderoso um súbito matrimônio deveria estimu lar os instintos naturais da garota e sufocar suas tendências antinaturais A atitude da mãe da menina não era tão transparente Era uma mulher de aparência ainda jovem que obviamente não queria renunciar à pretensão de ela mesma agradar com a sua beleza Estava claro que não via de forma tão trágica o entusi asmo da filha e de modo algum se indignava como o pai Até 104300 mesmo gozara da confiança da filha por um certo tempo no tocante ao amor desta por aquela dama Sua oposição a ele pare cia determinada essencialmente pela prejudicial franqueza com que a filha manifestava seus sentimentos perante todos Ela mesma fora neurótica por vários anos desfrutava de grande soli citude por parte do marido e tratava os filhos de maneira bastante desigual era realmente dura com a filha e afetuosa em demasia com os três meninos dos quais o mais jovem era tem porão não tinha três anos de idade Não foi fácil saber mais sobre seu caráter pois por motivos que somente depois serão compreensíveis ao falar da mãe a paciente mantinha uma re serva que não se verificava no caso do pai O médico que se encarregasse do tratamento analítico da ga rota tinha razões para não se sentir à vontade Ele não encon trava a situação requerida pela análise a única na qual ela pode experimentar sua eficácia Como se sabe na sua forma ideal esta situação ocorre quando um indivíduo normalmente senhor de si sofre de um conflito interior que não é capaz de resolver soz inho e então vai ao psicanalista externa a sua queixa e solicita ajuda O médico trabalha de mãos dadas com uma parte da per sonalidade morbidamente desunida contra a outra parte do con flito Situações diferentes desta são desfavoráveis para a psic análise em maior ou menor grau acrescentando novas di ficuldades internas àquelas já existentes Situações como a do proprietário que encomenda ao arquiteto uma mansão conforme seu gosto e suas necessidades ou a do patrocinador devoto que solicita ao pintor um quadro de tema sagrado num canto do qual se veja ele próprio em adoração não são realmente com patíveis com as exigências da psicanálise Sempre ocorre que um marido procure o médico com a seguinte instrução Minha 105300 mulher está nervosa por isso relacionase mal comigo devolva lhe a saúde para que o nosso casamento volte a ser feliz Mas frequentemente se verifica que tal solicitação é irrealizável isto é que o médico não pode produzir o resultado em vista do qual o homem queria o tratamento Logo que a mulher se livra de suas inibições neuróticas resolve acabar o matrimônio que se mantinha apenas com a premissa de sua neurose Sucede tam bém que um casal de pais deseje que se cure o filho nervoso e desobediente Para eles um filho saudável é aquele que não lhes cria problemas e que pode lhes dar alegrias O médico talvez ob tenha a cura desse filho mas após o restabelecimento ele toma seu próprio caminho com maior decisão e os pais ficam mais in satisfeitos do que antes Em suma não é algo indiferente que uma pessoa busque a análise por iniciativa própria ou que outros a conduzam a ela que a pessoa mesma deseje a sua mudança ou apenas os parentes que a amam ou dos quais se espera tal amor Outros fatores desfavoráveis eram que a garota não estava doente não sofria de nada em si mesma não se queixava do seu estado e que a tarefa proposta não consistia em resolver um conflito neurótico mas converter em outra uma variante da organização sexual genital Esse trabalho eliminar a inversão genital ou homossexualidade nunca me pareceu fácil Constatei isto sim que apenas em circunstâncias muito favoráveis ele é bemsucedido e mesmo então o êxito consistiu essencialmente em liberar à pessoa restrita à homossexualidade o caminho ob struído até então para o sexo oposto ou seja restaurar a sua plena função bissexual Ela podia então resolver se queria largar o outro caminho condenado pela sociedade e em alguns casos foi o que fez É preciso dizer que também a sexualidade normal baseiase numa restrição da escolha de objeto e de modo geral 106300 a empresa de transformar em heterossexual um homossexual plenamente desenvolvido não é mais promissora do que a con trária com a diferença de que esta por boas razões práticas nunca é tentada No tratamento da homossexualidade que aliás assume formas bem diversas não são realmente significativos os êxitos da terapia psicanalítica Via de regra o homossexual não con segue abandonar seu objeto de prazer não é possível convencê lo de que caso mudasse reencontraria no outro objeto o prazer a que renuncia Quando chega a iniciar tratamento geralmente são motivos externos que o movem a isso as desvantagens e os perigos de sua escolha de objeto e tais componentes do instinto de autoconservação revelamse muito fracos na luta contra as tendências sexuais Logo descobrimos seu plano secreto de ob ter com o retumbante fracasso dessa tentativa o sentimento tranquilo de haver feito o possível contra a sua natureza especial e poder então entregarse a ela com boa consciência Quando a tentativa de cura é motivada pela consideração a pais e parentes amados o caso é um tanto diferente Então realmente há tendências libidinais que podem desenvolver energias contrárias à escolha homossexual de objeto mas a sua força raramente basta Apenas quando a fixação no objeto de mesmo sexo ainda não se tornou forte o bastante ou quando se acham considerá veis rudimentos e vestígios da escolha heterossexual de objeto ou seja numa organização ainda oscilante ou nitidamente bissexual podese fazer um prognóstico mais favorável para a terapia psicanalítica Por essas razões evitei dar aos pais alguma esperança de que seu desejo se realizaria Apenas me declarei disposto a estudar cuidadosamente a garota por algumas semanas ou meses para 107300 poder manifestarme sobre a perspectiva de eficácia mediante o prosseguimento da análise Em bom número de casos a análise se divide em duas fases claramente demarcadas Na primeira o médico adquire o necessário conhecimento do paciente familiarizao com os pressupostos e postulados da análise e desenvolve perante ele a construção da gênese do seu sofri mento construção que lhe parece autorizada pelo material fornecido na análise Numa segunda fase o paciente se apropria ele mesmo do material à sua frente elaborao recordase do que é capaz de recordar daquilo que nele foi supostamente reprim ido e procura repetir o restante como se o vivesse novamente Nisso pode corroborar complementar e retificar as colocações do médico Apenas durante esse trabalho experimenta ele com a superação das resistências a transformação interna que se busca e adquire as convicções que o tornam independente da autoridade do médico Nem sempre essas duas fases distinguem se de modo claro no curso do tratamento analítico isso pode ocorrer apenas quando a resistência obedece a determinadas condições Quando é esse o caso podemos fazer uma com paração com as duas partes de uma viagem A primeira com preende todos os preparativos necessários atualmente tão com plicados e de realização tão difícil até que recebemos o bilhete pisamos na plataforma e tomamos assento no vagão Então temos o direito e a possibilidade de viajar à terra distante mas com todos esses preparativos ainda não estamos lá não nos aproximamos nem um quilômetro do objetivo Para isso temos que perfazer o trajeto uma estação após a outra e essa parte da viagem bem pode ser comparada à segunda fase A análise de minha paciente transcorreu segundo esse es quema mas não prosseguiu além do começo da segunda fase No 108300 entanto uma constelação especial da resistência permitiu al cançar plena confirmação de minhas construções e um conheci mento satisfatório em linhas gerais do desenvolvimento da sua inversão Antes de expor os resultados dessa análise todavia devo abordar alguns pontos em que já toquei ou que já se im puseram ao interesse do leitor O prognóstico me parecia depender em boa parte de até onde a garota havia chegado a satisfazer sua paixão Nisso era fa vorável a informação que tive durante a análise Com nenhum dos objetos de seu entusiasmo ela fruíra mais que alguns beijos e abraços a sua castidade genital se nos permitem a expressão permanecera intacta Mesmo a dama de duvidosa fama que lhe despertara os sentimentos mais recentes e mais fortes mostrara se reservada para com ela não lhe concedendo favor maior que a permissão de beijar sua mão Provavelmente a garota fez da carência uma virtude ao enfatizar sempre a pureza do seu amor e sua aversão física ao ato sexual Mas talvez não estivesse in teiramente errada ao louvar em sua sublime amada o fato de sendo de origem nobre e tendo sido levada à posição atual por condições familiares adversas conservar em tudo bastante dig nidade Pois essa dama sempre que a via instava para que aban donasse a inclinação por ela e pelas mulheres em geral e a rejeit ara continuamente até a tentativa de suicídio Um segundo ponto que logo procurei esclarecer dizia re speito aos motivos da própria garota que talvez amparassem o tratamento analítico Ela não tentou enganarme com a afirm ação de que tinha necessidade urgente de livrarse da sua ho mossexualidade Pelo contrário não podia imaginar outra es pécie de paixão mas era pelos pais acrescentou que queria hon estamente colaborar na tentativa terapêutica pois sentia muito 109300 lhes dar essa preocupação Também essa declaração vi como um bom sinal não podia adivinhar que atitude afetiva inconsciente se ocultava por trás dela Aquilo que depois veio à luz quanto a isso influiu decisivamente na configuração da terapia e em sua prematura interrupção Os leitores não analíticos devem estar esperando com impa ciência a resposta a duas outras questões Essa garota homos sexual mostrava nítidas características físicas do outro sexo Era ela um caso de homossexualidade inata ou adquirida desen volvida mais tarde Não ignoro a importância da primeira questão Apenas não se deve exagerar essa importância e deixar que ela obscureça o fato de que frequentemente ocorrem traços secundários do outro sexo em indivíduos normais e de que características físicas acen tuadas do sexo oposto podem se achar em pessoas cuja escolha objetal não experimentou mudança no sentido de uma inversão em outras palavras em ambos os sexos o grau de hermafrodit ismo físico é independente em elevada medida do grau de her mafroditismo psíquico Restringindo os dois enunciados acres centemos que tal independência é mais clara no homem que na mulher na qual regularmente coincidem os traços físicos e os psíquicos do sexo oposto Entretanto não me é possível respon der satisfatoriamente à primeira das duas questões colocadas O psicanalista não costuma fazer um exame físico detalhado do pa ciente em certos casos De todo modo não se notava qualquer desvio da compleição física feminina e tampouco algum distúr bio menstrual Se a bela e bemproporcionada garota tinha a el evada estatura do pai e feições marcantes em vez de suaves po demos ver nisso indicações de uma masculinidade física Tam bém a uma natureza masculina poderíamos relacionar alguns 110300 dos seus atributos intelectuais como a agudeza da compreensão e a fria clareza do pensamento quando não se achava sob o domínio de sua paixão Mas tais diferenças são antes conven cionais do que fundamentadas cientificamente Mais significat ivo sem dúvida é que no seu comportamento ante o objeto amoroso ela adotava o tipo masculino isto é mostrava a hu mildade e a enorme superestimação sexual do homem apaixon ado a renúncia a toda satisfação narcísica a preferência por am ar a ser amado Portanto ela havia não só escolhido um objeto feminino mas assumido uma postura masculina para com ele A outra questão se o seu caso corresponderia a uma homos sexualidade inata ou adquirida deverá ser respondida ao longo da história do desenvolvimento de seu distúrbio Nela se verá até que ponto essa questão mesma é estéril e inapropriada II Após uma introdução tão prolixa restame apenas apresentar de modo sucinto e panorâmico a história libidinal desse caso Na in fância a menina passou pela atitude normal do complexo de Édipo feminino1 sem eventos notáveis e também começou a substituir o pai pelo irmão um pouco mais velho Não se recor dava de traumas sexuais na primeira infância nem a análise os revelou A comparação dos genitais do irmão com os seus suce dida no começo do período de latência aos cinco anos ou um pouco antes deixoulhe uma forte impressão e teria efeitos duradouros Havia bem poucos indícios de masturbação infantil ou a análise não avançou o suficiente para esclarecer esse ponto O nascimento de um outro irmão quando ela tinha cinco ou seis 111300 anos de idade não influiu de maneira especial no seu desenvol vimento No período escolar na prépuberdade ela gradual mente se inteirou dos fatos da vida sexual e recebeuos com um misto de volúpia e temerosa rejeição que deve ser considerado normal e que não foi de medida exagerada Estas informações parecem escassas e não posso garantir que sejam completas Talvez a história de sua infância e juventude tenha sido bem mais rica não sei A análise cessou pouco tempo depois como disse fornecendo uma anamnese que não é muito mais confiável que outras anamneses de homossexuais justificadamente ques tionadas Além disso a garota jamais fora neurótica e não trouxe à análise nenhum sintoma histérico de modo que não se produziram facilmente oportunidades para a investigação de sua história Aos treze e quatorze anos ela mostrou uma afetuosa e se gundo o juízo de todos exagerada predileção por um menino pequeno de quase três anos de idade que via regularmente num parque infantil Apegouse tanto ao menino que dali nasceu uma constante amizade aos pais da criança Esse episódio nos permite concluir que naquele tempo a dominava um forte desejo de ela própria ser mãe e ter um filho Mas pouco depois ficou in diferente ao menino e passou a demonstrar interesse por mul heres maduras mas de aparência ainda jovem interesse que logo lhe custou uma severa reprimenda por parte do pai Foi constatado acima de qualquer dúvida que essa trans formação coincidiu com um evento que se deu na família do qual é lícito esperarmos então algum esclarecimento sobre a mudança Antes a sua libido orientavase para a maternidade depois ela se tornou uma homossexual apaixonada por mulheres mais maduras e assim permaneceu desde então Esse evento 112300 tão significativo para a nossa compreensão do caso foi uma nova gravidez da mãe e o nascimento do terceiro irmão quando a ga rota tinha cerca de dezesseis anos A situação que passo a deslindar não é produto de meu talento para a combinação foime sugerida por material analítico tão digno de confiança que posso reivindicar certeza objetiva para ela Uma série de sonhos interrelacionados e de fácil inter pretação em particular foi decisiva quanto a isso A análise permitiu ver inequivocamente que a senhora amada era um substituto para a mãe É verdade que ela mesma não era mãe mas também não era o primeiro amor da garota Os primeiros objetos de sua afeição desde o dfdfjnasci mento do último irmão eram realmente mães mulheres de trinta a 35 anos de idade que ela conheceu acompanhadas por seus filhos nas férias de verão ou no círculo de famílias da capit al A condição da maternidade foi depois abandonada pois não se harmonizava bem com uma outra cada vez mais importante A ligação particularmente intensa com a última amada a dama tinha também outra razão que um dia a garota perce beu facilmente A figura esbelta a beleza austera e a natureza rude daquela dama lembravamlhe seu próprio irmão aquele um tanto mais velho O objeto finalmente escolhido portanto correspondia não apenas ao seu ideal de mulher mas também ao seu ideal de homem juntava a satisfação da tendência homos sexual do desejo com a da heterossexual Sabese que a análise de homossexuais masculinos mostra em numerosos casos a mesma conjunção o que é um aviso para não concebermos de forma demasiado simples a natureza e a gênese da inversão e não perdermos de vista a bissexualidade geral do ser humano2 113300 Mas como se entende o fato de o nascimento tardio de uma criança quando a garota já estava madura e tinha seus próprios desejos fortes têla movido a orientar seu apaixonado afeto para a mulher que gerou essa criança sua própria mãe e a expressá lo numa representante da mãe Conforme tudo o que sabemos seria de esperar o oposto Em tais circunstâncias as mães geralmente sentemse incomodadas ante as filhas em idade núb il e as filhas tendem a sentir uma mescla de compaixão de sprezo e inveja pela mãe algo que não contribui para aumentar a ternura por ela A garota sob nossa observação tinha poucos motivos para abrigar ternura pela mãe Essa filha que desab rochara tão rapidamente era uma concorrente importuna para aquela mulher ainda jovem A mãe a preteria em favor dos filhos limitava ao máximo sua independência e cuidava zelosamente em mantêla afastada do pai Justificavase pois que desde sempre a garota necessitasse de uma mãe mais amorosa Por que esta necessidade eclodiu então e em forma de uma consumidora paixão não é compreensível A explicação é a seguinte A menina encontravase na fase de revivescência na puberdade do complexo de Édipo infantil quando teve o desapontamento Tomou clara consciência do desejo de ter um filho e um filho homem que ele devia ser um filho do seu pai e uma cópia deste é algo que o seu consciente não podia saber Mas então sucedeu que não foi ela a ter o filho e sim a rival que odiava no inconsciente a mãe Revoltada e am argurada voltou as costas ao pai aos homens em geral Após esse primeiro grande malogro ela rejeitou sua feminilidade e pôsse a buscar uma outra colocação para a sua libido Nisso comportouse de modo igual a muitos homens que após uma primeira experiência dolorosa rompem com o infiel 114300 sexo feminino e tornamse misóginos Contase de uma das figuras de príncipe mais atraentes e infelizes de nossa época que ele tornouse homossexual porque sua noiva o traiu com outro homem Não sei se é uma verdade histórica mas um quê de ver dade psicológica se esconde por trás desse rumor Em todos nós a vida inteira a libido normalmente oscila entre o objeto mas culino e o feminino o homem solteiro abandona suas amizades quando se casa e retorna à sua mesa do bar quando o casamento se torna insosso É certo que quando a oscilação é radical e definitiva nossa conjectura se volta para um fator especial que beneficia decisivamente um ou outro lado que teria apenas aguardado o instante apropriado para determinar conforme en tende a escolha do objeto Portanto após aquela decepção a garota havia afastado de si o desejo de um filho o amor a um homem e o papel feminino Evidentemente coisas bem diversas poderiam ter acontecido en tão o que realmente ocorreu foi algo extremo Ela converteuse em homem e tomou a mãe em vez do pai como objeto de amor3 Sem dúvida sua relação com a mãe fora ambivalente desde o iní cio e foi fácil reanimar o antigo amor por ela e com ajuda deste efetuar uma sobrecompensação da atual hostilidade que sente por ela Dado que pouco se podia fazer com a mãe real a trans formação afetiva que descrevemos resultou na busca por um sucedâneo da mãe ao qual era possível ligarse apaixonada mente4 A isto se juntava como benefício da doença um motivo prático oriundo de sua relação real com a mãe Esta ainda at ribuía grande valor aos galanteios e festejos dos homens Tornandose homossexual deixando para a mãe os homens pondose de lado por assim dizer a garota tirava do caminho 115300 algo que até então fora parcialmente responsável pelo desfavor da mãe5 A postura libidinal assim adquirida foi reforçada quando ela notou que isso desagradava bastante ao pai Desde a reprimenda inicial por uma ligação demasiado terna a uma mulher ela sabia como irritar o pai e de que modo vingarse dele Permaneceu en tão homossexual em desafio ao pai E também não teve es crúpulo em mentir para ele e enganálo de qualquer maneira Com a mãe era insincera apenas na medida necessária para que o pai nada soubesse Minha impressão é de que ela agia segundo a lei de talião Se você me enganou tem de aceitar que eu o en gane Também não posso julgar de outra forma as claras im prudências de uma garota bastante inteligente O pai tinha de saber ocasionalmente dos seus encontros com aquela dama de outro modo lhe escaparia a satisfação da vingança que era a mais premente para ela Então cuidou para que isto sucedesse aparecendo publicamente com aquela que adorava passeando com ela nas ruas vizinhas ao negócio do pai etc Essas faltas de precaução eram deliberadas É digno de nota que ambos os pais se comportavam como se entendessem a psicologia secreta da filha A mãe mostravase tolerante como se visse no pôrse de lado da filha um obséquio o pai se enfurecia como que sen tindo o propósito de vingança dirigido contra a sua pessoa Mas a inversão da garota teve um reforço derradeiro quando ela encontrou na dama um objeto que simultaneamente dava satisfação à parte heterossexual de sua libido ainda apegada ao irmão 116300 III A exposição linear não se presta muito para a descrição de pro cessos psíquicos intrincados e que transcorrem em diferentes ca madas da psique Afirmei que em sua relação com a dama venerada a moça ad otou o tipo masculino de amor Sua humildade e sua terna de spretensão che poco spera e nulla chiede que pouco espera e nada pede a felicidade quando lhe era permitido acompanhar um pouco a dama e beijarlhe a mão em despedida a alegria quando escutava lhe louvarem a beleza enquanto nada signi ficava lhe reconhecerem sua própria beleza sua peregrinação pelos lugares em que a amada tinha estado uma vez o silenciar de todo desejo sensualmente mais ousado esses pequenos traços correspondiam todos eles à primeira inflamada paixão de um adolescente por uma artista famosa que ele crê estar muito acima dele mesmo e à qual ele ousa erguer o olhar apenas timi damente Chega até aos detalhes a correspondência ao tipo masculino de escolha de objeto por mim descrito cujas par ticularidades fiz remontar à ligação com a mãe Pode parecer surpreendente que ela não fosse minimamente desencorajada pela má reputação da amada embora suas próprias observações a convencessem do caráter justo dessa fama Afinal era uma moça casta e bemeducada que pessoalmente evitara toda aven tura sexual e que considerava antiestética a satisfação sensual crua Mas já os seus primeiros entusiasmos diziam respeito a mulheres a que não se atribuía uma moral muito severa O primeiro protesto de seu pai contra a sua escolha amorosa foi 117300 despertado pela teimosia com que ela buscara num local de ver aneio a companhia de uma atriz de cinema Nunca eram mul heres com fama de homossexuais que lhe oferecessem a per spectiva de uma satisfação desse tipo ela antes cortejava ilo gicamente mulheres cocotas no sentido comum da palavra re jeitou sem hesitar uma amiga homossexual de sua idade que se colocara de muito bom grado à sua disposição Mas justamente a má reputação daquela dama era uma condição para seu amor e tudo o que há de enigmático nessa conduta desaparece quando lembramos que também para aquele tipo masculino de escolha objetal derivado da mãe existe a condição de a amada ser mal afamada de algum modo de poder ser qualificada de cocota Ao descobrir mais tarde em que medida essa designação cabia para a sua adorada e que esta vivia simplesmente de entregar o próprio corpo reagiu com enorme compaixão e desenvolveu fantasias e planos para salvála dessa situação indigna As mes mas tendências salvadoras nos chamaram a atenção nos homens do tipo que descrevi e no mencionado trabalho busquei mostrar de onde derivam psicanaliticamente essas tendências É a âmbitos bem diferentes de explicação que nos leva a anál ise da tentativa de suicídio que é preciso ver como sincera e que aliás melhorou consideravelmente a posição da garota junto aos pais e também junto à amada Certo dia ela foi passear com esta num determinado local numa hora em que era possível encontrar o pai que saía do escritório Ele passou de fato por elas e lançou um olhar raivoso à filha e à acompanhante que ele já conhecia Pouco depois ela jogouse no fosso da linha de trem Parece plausível o que ela afirmou sobre a causa imediata de sua decisão Confessou à dama que o senhor que olhara de modo ir ritado para elas era seu pai que proibira absolutamente a 118300 relação das duas A dama então se encolerizou mandou que a deixasse imediatamente e que nunca mais aguardasse por ela ou a abordasse essa história tinha de acabar naquele momento No desespero de haver perdido a amada para sempre ela buscou a morte Por trás da sua interpretação porém a análise descobriu outra mais profunda que se apoiava nos seus próprios sonhos A tentativa de suicídio significava como era de se esperar duas outras coisas a execução de um castigo autopunição e a realiz ação de um desejo Nesse último sentido era a consecução do desejo cuja decepção a impelira à homossexualidade isto é ter um filho do pai pois ela caiu por culpa do pai6 O fato de naquele instante a mulher haver falado exatamente como o pai e haver enunciado a mesma proibição forma o nexo entre essa in terpretação mais funda e aquela superficial da qual a garota era consciente Como autopunição o ato da garota nos evidencia que ela desenvolvera no inconsciente fortes desejos de morte em re lação a um ou outro genitor Talvez por vingança contra o pai que impedia seu amor mais provavelmente contra a mãe quando ela estava grávida do irmão menor Pois a psicanálise trouxe a seguinte explicação para o enigma do suicídio talvez ninguém encontre a energia psíquica para se matar se primeiro não estiver matando também um objeto com o qual se identi ficou e em segundo lugar se não estiver dirigindo contra si mesmo um desejo de morte que era voltado para outra pessoa A descoberta regular de tais desejos inconscientes de morte no sui cida não deve surpreender nem impressionar como uma con firmação das nossas deduções pois o inconsciente de todos os vivos está pleno de tais desejos de morte inclusive em relação a pessoas amadas7 Na identificação com a mãe que deveria ter morrido no parto desse filho que lhe fora negado a ela a filha 119300 esse cumprimento do castigo tornase ele mesmo cumprimento do desejo Por fim não destoa de nossa expectativa o fato de que motivos poderosos e variados tivessem de cooperar para tornar possível um ato como o da garota Na motivação da garota não comparece o pai nem sequer o medo da sua ira é mencionado Na motivação divisada pela psic análise cabe a ele o papel principal A relação com o pai teve a mesma importância decisiva no transcorrer e no desenlace da terapia ou melhor exploração analítica Por trás da preten dida consideração aos pais graças à qual ela queria tentar uma transformação escondiase a postura de desafio e vingança para com o pai que a manteve na homossexualidade Assegurada por esta cobertura a resistência deixou livre para a investigação analítica uma ampla região A análise efetuouse quase sem indí cios de resistência com viva participação intelectual da analis anda mas também com tranquilidade de ânimo da sua parte Quando certa vez expuslhe algo bem importante da teoria e que lhe tocava diretamente ela exclamou num tom inimitável Ah que interessante como uma dama do mundo que é con duzida por um museu e examina com seu lorgnon objetos que lhe são indiferentes A impressão que dava a sua análise semel hava a de um tratamento hipnótico em que a resistência recuou igualmente até uma determinada linha na qual se mostra então invencível A mesma tática russa como poderíamos chamála é seguida pela resistência em muitos casos de neurose obses siva que por algum tempo fornecem resultados claríssimos e permitem uma profunda visão das causas dos sintomas Mas começamos a nos perguntar por que progressos tão fartos na compreensão psicanalítica não trazem a menor mudança nas compulsões e inibições do doente até percebermos enfim que 120300 tudo o que foi obtido estava sujeito à reserva da dúvida o muro protetor por trás do qual a neurose pôde sentirse segura Seria ótimo acha o doente muitas vezes de modo consciente se eu tivesse necessariamente de acreditar nesse homem mas isso está fora de questão e não preciso mudar enquanto assim for Ao nos aproximarmos da motivação dessa dúvida irrompe seria mente a luta com as resistências Na nossa paciente não foi a dúvida mas o fator afetivo da vingança do pai que possibilitou sua fria reserva que dividiu claramente a análise em duas fases e tornou os resultados da primeira fase tão completos e visíveis Parecia também que nela não se produzira nada semelhante a uma transferência para com o médico Mas isso é naturalmente um contrassenso ou uma forma inexata de expressão Alguma relação com o médico tem de acontecer e quase sempre ela é transferida de um relaciona mento infantil Na realidade a garota transferiu para mim a pro funda rejeição aos homens que sentia desde a decepção que o pai lhe infligira Via de regra é fácil a amargura em relação ao homem satisfazerse no médico ela não necessita provocar manifestações afetivas tempestuosas mostrase simplesmente ao fazer fracassar todos os esforços dele e apegarse à doença Sei por experiência como é difícil levar o analisando a com preender tais sintomas mudos e tornar consciente sem pôr em perigo o tratamento essa hostilidade latente muitas vezes exces sivamente forte De modo que interrompi a análise tão logo per cebi a atitude da garota em relação ao pai e recomendei que prosseguisse a tentativa terapêutica com uma médica se a ela dava importância Enquanto isso a garota prometeu ao pai deix ar de ver a dama pelo menos e não sei se minha 121300 recomendação cujos motivos são óbvios será efetivamente seguida Uma única vez nessa análise sucedeu algo que pude ver como transferência positiva como revivescência muito debilitada da paixão original pelo pai Também essa manifestação não estava isenta de outro motivo suplementar mas eu a menciono porque numa outra direção ela coloca um interessante problema de téc nica psicanalítica Num certo momento não muito depois do iní cio da terapia a garota apresentou uma série de sonhos que devidamente deformados e vazados em correta linguagem onírica eram de tradução fácil e segura porém Seu conteúdo quando interpretado era surpreendente Eles antecipavam a cura da inversão pelo tratamento expressavam a alegria da moça com as perspectivas de vida que se descortinavam para ela ad mitiam o anseio pelo amor de um homem e por filhos e podiam ser saudados então como auspiciosa preparação à transform ação desejada A contradição entre eles e as manifestações no es tado de vigília era grande Ela não me ocultou que pensava real mente em casar mas apenas para fugir à tirania do pai e seguir em paz suas verdadeiras inclinações Comentou não sem algum desprezo que saberia lidar com o marido e que afinal podese ter relações sexuais com um homem e uma mulher ao mesmo tempo como se via pelo exemplo da mulher que adorava Ad vertido por alguma ligeira impressão faleilhe certo dia que não acreditava nesses sonhos que eles eram mendazes ou hipócritas e sua intenção era enganarme como enganava o pai Eu estava certo esse tipo de sonho não reapareceu depois disso Mas tam bém creio que juntamente com a intenção de despistar havia nesses sonhos um quê de sedução eram também uma tentativa 122300 de ganhar meu interesse e minha boa opinião talvez para me desiludir mais radicalmente depois Posso imaginar que a alusão à existência de tais sonhos mendazes e complacentes desencadeará uma verdadeira tem pestade de confusa indignação em vários leitores que se intitu lam psicanalistas Com o quê também o inconsciente pode mentir O autêntico núcleo de nossa vida psíquica aquilo que em nós é tão mais próximo do divino do que nossa mísera consciên cia Como será possível então basearse nas interpretações da análise e na certeza de nossos conhecimentos A isso devemos responder que o reconhecimento de tais sonhos mendazes não constitui uma novidade avassaladora Bem sei que a necessidade humana de misticismo é inerradicável e que sempre faz tent ativas de reconquistar para o misticismo o território que lhe foi tomado pela Interpretação dos sonhos mas no caso em questão as coisas são simples O sonho não é o inconsciente é o molde em que pôde ser refundido graças ao favorecimento do estado de sono um pensamento descartado do préconsciente ou mesmo do consciente da vida desperta No estado de sono ele adquiriu o apoio de desejos inconscientes sofrendo assim dis torção pelo trabalho do sonho que é determinado pelos mecanismos que vigoram para o inconsciente Na nossa garota a intenção de me induzir em erro como costumava fazer com o pai vinha certamente do préconsciente se não fosse mesmo consciente pôde então prevalecer ao ligarse com o desejo in consciente de agradar ao pai ou substituto do pai e assim criou um sonho mentiroso As duas intenções enganar o pai e agradar ao pai vêm do mesmo complexo a primeira nasceu da repressão da segunda esta é referida àquela pelo trabalho do sonho Não 123300 se pode falar portanto de uma degradação do inconsciente de um abalo da confiança nos resultados de nossa análise Não quero perder a oportunidade de manifestar meu assom bro pelo fato de as pessoas poderem atravessar longas e import antes áreas de sua vida amorosa sem lhes dar muita atenção ou mesmo sem delas ter a menor ideia e de quando lhes vêm à consciência enganaremse tão radicalmente no juízo que delas fazem Isso acontece não apenas nas condições da neurose em que estamos familiarizados com o fenômeno mas parece ser comum de modo geral Em nosso caso uma garota desenvolve um entusiasmo por mulheres que inicialmente apenas irrita os pais e quase não é levado a sério Ela mesma sabe o quanto isso a ocupa mas experimenta pouco as sensações de uma paixão enér gica até que uma determinada frustração provoca uma reação excessiva que mostra a todos os envolvidos que estão a lidar com uma paixão devoradora de força elementar Quanto às premissas para a irrupção de tal tormenta psíquica a garota ja mais as percebeu Outras vezes encontramos garotas ou mul heres com severas depressões que perguntadas sobre as possí veis causas de sua condição informam haver tido um certo in teresse por determinada pessoa mas este não se aprofundou e logo elas superaram a situação depois que tiveram de abandoná lo E foi esta renúncia aparentemente fácil de suportar que se tornou a causa do grave distúrbio Ou lidamos com homens que passaram por relações amorosas superficiais com mulheres e só a partir das consequências descobrem que eram muito apaixon ados pelo objeto supostamente menosprezado Surpreendemo nos também com os efeitos inesperados que decorrem de um aborto intencional da liquidação de um feto que fora decidida sem lamento e hesitação Vemonos assim obrigados a dar razão 124300 aos poetas que gostam de nos retratar pessoas que amam sem o saber ou que não sabem se amam ou que acreditam odiar e na realidade amam Ao que parece justamente a informação que nossa consciência obtém de nossa vida amorosa pode ser incom pleta cheia de lacunas ou falseada Naturalmente não deixei nessas considerações de descontar a parte de um esquecimento posterior IV Retomo agora a discussão do caso interrompida anteriormente Obtivemos uma ideia geral das forças que fizeram a libido da ga rota passar da atitude edípica normal à postura homossexual as sim como das vias psíquicas que foram então percorridas Em primeiro lugar entre essas forças moventes estava a impressão gerada pelo nascimento do irmão menor o que nos leva a classi ficar o caso como uma inversão adquirida tardiamente No entanto aqui nos apercebemos de algo que encontramos em muitos outros exemplos de esclarecimento psicanalítico de um processo mental Quando seguimos o desenvolvimento em direção contrária a partir do resultado final surgenos uma con exão sem lacunas e nossa compreensão nos parece inteiramente satisfatória talvez exaustiva Mas se tomamos o caminho in verso partindo de pressupostos achados mediante a análise e procurando seguilos até o resultado faltanos completamente a impressão de um encadeamento necessário que não poderia ser determinado de outra forma Logo notamos que o resultado po deria ter sido outro e que o teríamos compreendido e explicado igualmente Portanto a síntese não é tão satisfatória como a 125300 análise em outras palavras não seríamos capazes de prever a natureza do resultado a partir do conhecimento das premissas Não é nada difícil chegar às causas desse triste reconheci mento Ainda que nos sejam inteiramente conhecidos os fatores etiológicos decisivos para um determinado êxito nós os con hecemos apenas em seu traço qualitativo não em sua força re lativa Alguns deles muito fracos serão suprimidos por outros e não influirão no resultado final Mas nunca sabemos antecipada mente que fatores determinantes se revelarão mais fracos ou mais fortes Apenas no final dizemos que aqueles que se afirm aram eram os mais fortes Assim as causas são sempre de recon hecimento seguro na direção da análise mas não é possível predizêlas na direção da síntese Não queremos dizer portanto que sucumbirá à homossexual idade toda garota cuja ânsia de amor derivada da atitude edípica da puberdade experimenta uma decepção assim Pelo contrário serão mais frequentes reações de outro tipo a esse trauma Nessa garota devem ter pesado fatores especiais exteriores ao trauma provavelmente de natureza interna Também não é difícil apontálos Sabese que também no indivíduo normal é preciso algum tempo até que se imponha definitivamente a decisão relativa ao sexo do objeto amoroso Entusiasmos homossexuais amizades bastante fortes e de matiz sensual são comuns em ambos os sexos nos primeiros anos após a puberdade Assim foi também com essa garota mas nela tais inclinações mostraramse in dubitavelmente mais fortes e duraram mais tempo do que em outras Além disso tais prenúncios da homossexualidade pos terior sempre apareceram em sua vida consciente enquanto a atitude oriunda do complexo de Édipo permaneceu inconsciente 126300 e exteriorizouse apenas em indícios como a ternura com aquele menino pequeno Durante alguns anos na escola foi apaixonada por uma professora severa e pouco acessível um óbvio substi tuto da mãe Ela havia mostrado interesse bastante vivo por al gumas jovens mães bem antes do nascimento do irmão e com maior certeza ainda muito antes da primeira repreensão do pai Portanto desde muito cedo a sua libido fluiu em duas correntes e delas a mais superficial pode ser facilmente designada de ho mossexual Esta era provavelmente a continuação direta e não modificada de uma fixação infantil na mãe É possível que com nossa análise não tenhamos descoberto senão o processo que numa ocasião apropriada levou também a corrente libidinal het erossexual mais profunda à corrente homossexual manifesta A análise demonstrou além disso que a garota trouxera da infância um complexo de masculinidade bastante acentuado Vivaz combativa nada disposta a ficar na sombra do irmão pou co maior desde aquela inspeção dos genitais ela desenvolvera uma forte inveja do pênis cujos derivados ainda lhe tomavam o pensamento Ela era na verdade uma feminista achava injusto que as garotas não gozassem das mesmas liberdades que os meninos e revoltavase contra a sina das mulheres Na época da análise a ideia de engravidar e ter filho não lhe era agradável também suponho pela deformação física que envolvia Seu nar cisismo de garota que não mais se exteriorizava como orgulho de sua beleza havia recuado até essa defesa8 Diferentes indícios apontavam naquele tempo para um forte prazer em olhar e exibirse Quem não quiser ver diminuído o papel da aquisição na etiologia chamará a atenção para o fato de que o comporta mento da garota como foi aqui descrito era exatamente o que havia de resultar do efeito conjunto da negligência materna e da 127300 comparação de seus genitais com os do irmão dada uma intensa fixação na mãe Também aqui existe a possibilidade de fazer re montar ao cunho deixado por influência externa atuante bem cedo na vida aquilo que se gostaria de ver como peculiaridade constitucional E parte dessa aquisição se realmente ocorreu deverá também ser creditada à constituição inata Assim se junta e se mistura continuamente na observação o que na teoria queremos separar como um par de opostos herança e aquisição Se um desfecho provisório da análise levou à afirmação de que se tratava de um caso de aquisição tardia da homossexualidade o reexame do material que agora empreendemos nos faz concluir que é antes um caso de homossexualidade congênita que como de hábito fixouse e mostrouse inequivocamente apenas depois da puberdade Cada uma dessas classificações faz justiça a apen as uma parte das coisas verificáveis pela observação e negligen cia a outra parte O melhor é não atribuirmos demasiado valor a essa colocação do problema A bibliografia sobre a homossexualidade não costuma separar nitidamente a questão da escolha do objeto por um lado e a questão das características e da atitude sexual por outro lado como se a decisão quanto a um desses pontos estivesse ligada ne cessariamente ao outro A experiência mostra o contrário porém Um homem de características predominantemente mas culinas e que também apresenta o tipo masculino na vida amorosa pode no entanto ser invertido no tocante ao objeto amar apenas homens em vez de mulheres Um homem em cujo caráter predominam obviamente traços femininos que no amor chega a comportarse como uma mulher deveria por essa atit ude feminina tomar um homem como objeto de amor ele pode 128300 entretanto ser heterossexual e não mostrar mais inversão no que toca ao objeto do que medianamente um indivíduo normal O mesmo vale para as mulheres também nelas as características sexuais psíquicas e a escolha do objeto não correspondem de maneira fixa Portanto o segredo da homossexualidade não é tão simples como popularmente se crê uma alma feminina destin ada a amar os homens que infelizmente está num corpo de homem ou uma alma masculina atraída irresistivelmente pelas mulheres mas aprisionada num corpo feminino Na verdade lidamos aí com três séries de características características sexuais somáticas hermafroditismo físico característica sexual psíquica atitude masculina feminina tipo de escolha do objeto que até certo grau variam independentemente uma da outra e que nos diferentes indivíduos se acham em permutações várias Uma bibliografia tendenciosa dificultou a nossa visão desses nexos destacando por motivos práticos a conduta no terceiro ponto a escolha do objeto o único a chamar a atenção dos lei gos e também exagerando a fixidez da relação entre este e o primeiro ponto E ela obstrui seu caminho para uma com preensão mais profunda de tudo isso que é uniformemente cha mado de homossexualidade ao recusar dois fatos fundamentais descobertos pela pesquisa psicanalítica O primeiro que os ho mens homossexuais experimentaram uma fixação particular mente forte na mãe o segundo que todos os indivíduos normais deixam transparecer ao lado de sua heterossexualidade 129300 manifesta uma considerável medida de homossexualidade lat ente ou inconsciente Levandose em conta esses achados cai por terra certamente a hipótese de um terceiro sexo criado pela natureza num momento de capricho Não cabe à psicanálise resolver o problema da homossexualid ade Ela tem de contentarse em desvendar os mecanismos psíquicos que levaram à decisão na escolha do objeto e em seguir os caminhos que vão deles às disposições instintuais Então ela para e deixa o restante à pesquisa biológica que justa mente agora com as experiências de Steinach9 traz informações bem significativas sobre a influência que a segunda e a terceira séries de características acima mencionadas sofrem da primeira Ela se acha no mesmo terreno da biologia tomando por pres suposto uma bissexualidade original do indivíduo humano como do animal Mas a essência do que é chamado de mas culino e feminino no sentido convencional ou no biológico a psicanálise não pode esclarecer ela adota os dois conceitos e os toma por base de seus trabalhos Se procura examinálos mais a masculinidade se dissolve em atividade e a feminilidade em passividade o que é pouco Já procurei expor em que medida cabe ou é confirmada pela experiência a expectativa de que esse tanto de trabalho elucidativo que faz parte da análise pos sibilite uma mudança na inversão Comparando esse grau de in fluência às formidáveis transformações que Steinach obteve em alguns casos com suas intervenções cirúrgicas a impressão feita não é grande Seria uma precipitação e um nocivo exagero porém se desde agora tivéssemos esperança de uma terapia da inversão que fosse de uso geral Os casos de homossexualidade masculina em que Steinach teve êxito preenchiam a condição que nem sempre se acha de um nítido hermafroditismo 130300 somático O tratamento de uma homossexualidade feminina por via análoga é muito pouco claro no momento Se consistisse na remoção dos ovários provavelmente hermafroditas e na im plantação de outros que se espera serem unissexuais ele teria pouca possibilidade de aplicação Uma mulher que se sente mas culina e que amou de maneira masculina dificilmente permitirá que lhe imponham o papel feminino se tiver de pagar essa trans formação não inteiramente vantajosa com a renúncia à maternidade A expressão em certos casos soa estranha pois sabese que os psicanalis tas como o próprio Freud não fazem um exame clínico dos pacientes Mas es tá no original in bestimmten Fällen inclusive numa edição mais recente do texto a da Studienausgabe As versões estrangeiras consultadas a espan hola a argentina a italiana a inglesa e a holandesa trazem o mesmo sen tido sem acrescentar comentário 1 Não vejo progresso ou vantagem na utilização do termo complexo de Elec tra e não o recomendo 2 Cf I Sadger Jahresbericht über sexuelle Perversionen Relato anual sobre perversões sexuais Jahrbuch der Psychoanalyse vi 1914 e outros trabalhos 3 Não é raro absolutamente que uma relação amorosa seja rompida pelo fato de a pessoa identificarse ela mesma com o objeto o que corresponde a uma espécie de regressão ao narcisismo Depois que isto acontece podese numa nova escolha de objeto investir facilmente a libido no sexo oposto à escolha anterior 4 Sem dúvida os deslocamentos da libido que aqui descrevemos são familiares a todo psicanalista com base na investigação das anamneses dos neuróticos Mas nestes ocorrem na tenra infância na época da primeira florescência da vida amorosa e nessa garota de modo algum neurótica sucedem nos 131300 primeiros anos depois da puberdade também de forma inteiramente incon sciente aliás Talvez esse fator temporal venha a se mostrar muito significat ivo algum dia 5 Como esse pôrse de lado não foi mencionado até agora entre as causas da homossexualidade nem no mecanismo da fixação libidinal relatarei aqui uma observação analítica similar que é interessante devido a uma circunstância especial Certa vez conheci dois gêmeos que eram igualmente dotados de for tes impulsos libidinais Um deles tinha muita sorte com mulheres envolvendose com inúmeras delas O outro iniciou pelo mesmo caminho mas logo tornouselhe desagradável entrar na seara do irmão ser confundido com ele em situações íntimas graças à semelhança dos dois e resolveu a dificuldade tornandose homossexual Deixou para o irmão as mulheres e assim pôsse de lado Em outra ocasião tratei de um homem ainda jovem artista e de disposição claramente bissexual no qual a homossexualidade se apresentara juntamente com um distúrbio em relação ao trabalho Evitava tanto as mulheres como o seu trabalho A análise que conseguiu devolvêlo a ambos mostrou que o temor ao pai era o mais poderoso motivo psíquico para os dois distúrbios que eram propriamente renúncias Em sua imaginação to das as mulheres pertenciam ao pai e ele fugiu para os homens por respeito a fim de esquivarse a um conflito com o pai Uma tal motivação da escolha ho mossexual de objeto não deve ser rara nos primórdios do gênero humano to das as mulheres pertenciam provavelmente ao pai e chefe da horda primitiva No caso de irmãos que não são gêmeos esse esquivarse desempenha papel de relevo também em outros âmbitos que não o da escolha amorosa Por ex emplo o irmão mais velho cultiva a música e é admirado por isso o mais jovem bem mais dotado musicalmente interrompe os estudos musicais pou co depois não obstante seu gosto por eles e é impossível fazêlo tocar de novo um instrumento Eis um único exemplo de algo que ocorre frequentemente e a investigação dos motivos que levam a esquivar em vez de aceitar a concor rência revela condições psíquicas bem complicadas Citação de Tasso Jerusalém libertada canto V estrofe 16 132300 Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem Contribuições à psicologia do amor i 1910 O verbo usado no texto original niederkommen parir é composto de nieder baixo e kommen vir podendo ser entendido de forma literal como vir para baixo cair 6 Há muito tempo é conhecida dos analistas essa interpretação dos modos de suicídio como realizações do desejo sexual Envenenarse engravidar afogarse dar à luz cair de uma altura parir 7 Cf Considerações atuais sobre a guerra e a morte Imago iv 1915 8 Cf a admissão de Cremilda na Canção dos nibelungos 9 Ver A Lipschütz Die Pubertätsdrüse und ihre Wirkungen A glândula da puberdade e seus efeitos Berna 1919 133300 PSICANÁLISE E TELEPATIA 1941 1921 TÍTULO ORIGINAL DO MANUSCRITO VORBERICHT COMUNICAÇÃO PRELIMINAR REDIGIDO EM 1921 E PUBLICADO POSTUMAMENTE EM GESAMMELTE WERKE XVII PP 2744 COM O TÍTULO PSYCHOANALYSE UND TELEPATHIE ESTE TRABALHO NÃO SE DESTINAVA A PUBLICAÇÃO FOI APRESENTADO APENAS AOS COLABORADORES MAIS PRÓXIMOS AO PUBLICÁLO EM 1941 OS EDITORES DOS GW LHE DERAM ESSE TÍTULO E OMITIRAM VÁRIAS PASSAGENS A FIM DE PRESERVAR A IDENTIDADE DOS PACIENTES SOBRETUDO ESSAS MODIFICAÇÕES FORAM APONTADAS POR ILSE GRUBRICHSIMITIS EM ZURÜCK ZU FREUDS TEXTEN FRANKFURT FISCHER 1993 CAP 8 ED BRAS DE VOLTA AOS TEXTOS DE FREUD RIO DE JANEIRO IMAGO 1995 Não parece estar em nosso destino poder trabalhar calmamente na ampliação de nossa ciência Mal acabamos de rechaçar vitori osamente dois ataques um deles procurou recentemente negar aquilo que elucidamos e ofereceunos em lugar de todo o con teúdo apenas o motivo dessa negação e o outro quis nos per suadir de que não compreendemos a natureza desse conteúdo e que faríamos bem em trocálo por outro mal começamos a nos sentir salvos desses inimigos portanto eis que surge outro perigo à nossa frente dessa vez algo imponente elementar que ameaça não apenas a nós mas talvez ainda mais a nossos inimigos Ao que parece não é mais possível rejeitar o estudo dos assim chamados fenômenos ocultos daqueles fatos que supostamente garantem a real existência de forças psíquicas diversas das mentes humana e animal que conhecemos ou que revelam fac uldades até agora insuspeitadas nessas mentes O impulso atual para essas pesquisas parece irresistível no breve período dessas férias em três ocasiões me recusei a colaborar com novas revis tas dedicadas a esse estudo Acreditamos compreender de onde essa corrente extrai sua força Ela é ao mesmo tempo expressão da perda de valor que tudo atingiu desde a catástrofe da Grande Guerra um tatear na direção da grande reviravolta para a qual nos dirigimos cuja extensão ainda não podemos calcular e sem dúvida também uma tentativa de compensação a fim de obter em outra esfera ultraterrena o encanto que perdeu a vida nessa Terra É possível que alguns eventos das ciências exatas tenham favorecido esse desenvolvimento A descoberta do ele mento químico rádio embaraçou e ampliou igualmente as pos sibilidades de explicação do mundo físico e a percepção recente mente adquirida pela chamada teoria da relatividade teve o efeito em muitos dos admiradores que não a compreendem de reduzir a confiança na credibilidade objetiva da ciência Lembremse de que o próprio Einstein há não muito tempo teve ocasião de protestar contra esse mau entendimento Não é seguro que o maior interesse pelo ocultismo envolva um perigo para a psicanálise Pelo contrário seria de esperar simpa tia mútua entre aquele e esta Os dois sofreram o mesmo trata mento arrogante e depreciativo por parte da ciência oficial Ainda hoje a psicanálise é suspeita de misticismo e seu incon sciente é visto como uma dessas coisas entre o céu e a Terra com que a filosofia não pode sonhar As inúmeras solicitações para colaboração que recebemos dos ocultistas mostram que eles desejam nos tratar como aliados e ter nosso apoio contra a autoridade da ciência exata Por outro lado a psicanálise não tem interesse em defender essa autoridade com o próprio sacrifí cio ela mesma se acha em oposição a tudo limitado convencion almente fixado reconhecido de forma geral não seria a primeira vez que ela empresta sua ajuda às intuições obscuras mas indestrutíveis do povo contra a presunção de sabedoria dos cultos Uma aliança e cooperação entre analistas e ocultistas pareceria natural e promissora Uma consideração mais detida revela dificuldades porém A grande maioria dos ocultistas não é impulsionada pela vontade de saber pela vergonha de a ciência haver longamente descuid ado de tomar conhecimento de problemas inegáveis e pela ne cessidade de submeter a esta novos campos de fenômenos Eles são isto sim pessoas já convencidas que procuram confirm ações que querem uma justificativa para declarar abertamente a sua fé Mas a crença que inicialmente adotam e depois querem impor aos demais é a velha fé religiosa que foi dispensada pela 136300 ciência no decorrer da evolução humana ou uma outra ainda mais próxima das ultrapassadas convicções dos primitivos Já os psicanalistas não podem negar sua procedência da ciência exata e sua afinidade com os representantes desta Extremamente desconfiados do poder dos desejos humanos das tentações do princípio do prazer eles se dispõem a tudo sacrificar para al cançar um pouco de verdade objetiva o ofuscante brilho de uma teoria sem lacunas a exaltada consciência de possuir uma visão de mundo bemacabada a tranquilidade psíquica que vem de amplas motivações para agir de forma ética e conveniente Em vez disso contentamse com pedaços de conhecimento e hipóteses fundamentais imprecisas que sempre aguardam re visão Em vez de espreitar a ocasião que lhes permitirá subtrair se à coerção das leis físicas e químicas têm a esperança de que apareçam leis naturais mais amplas e mais profundas às quais estão dispostos a submeterse Os analistas são no fundo mecanicistas e materialistas incorrigíveis ainda que não preten dam despojar o psíquico e espiritual de suas peculiaridades ainda não reconhecidas Eles se põem a investigar os fenômenos ocultos apenas porque esperam desse modo excluir definitiva mente da realidade material os produtos do desejo humano Considerando essas disposições mentais tão diferentes a col aboração entre analistas e ocultistas não oferece perspectiva de êxito O analista tem seu campo de trabalho que não deve aban donar o inconsciente da vida psíquica Se ficasse à espreita de fenômenos ocultos durante seu trabalho arriscaria não enxergar tudo o que lhe é mais próximo Perderia a imparcialidade a aus ência de prevenção e de expectativa que constituem parte essen cial de seu armamento analítico Se tais fenômenos se impuser em à sua atenção de modo semelhante aos outros ele não os 137300 evitará assim como não evita os outros Este seria o único propósito compatível com a atividade do analista Contra o perigo subjetivo de desperdiçar o interesse nos fenô menos ocultos o analista pode se defender mediante a autodis ciplina Sucede de outro modo com o perigo objetivo Há pouca dúvida de que o trato com os fenômenos ocultos logo resultará na confirmação de que certo número deles é real é de presumir que levará muito tempo até que se chegue a uma teoria aceitável desses novos fatos Mas aqueles avidamente atentos não esper arão tanto Já na primeira aprovação os ocultistas declararão vitoriosa a sua causa estenderão a crença de uma afirmação a to das as outras e dos fenômenos às explicações que lhe são mais agradáveis e mais congeniais Os métodos da investigação científica devem lhes servir apenas como escada para se erguer acima da ciência Que pena se subirem tão alto Ceticismo nen hum dos que os rodeiam e os escutam poderá fazêlos refletir nenhuma objeção da maioria poderá detêlos Serão saudados como liberadores da importuna coação do pensamento serão ju bilosamente recebidos por toda a credulidade que se acha disponível desde os dias de infância da humanidade e os anos de infância do indivíduo Talvez seja então iminente um terrível colapso do pensamento crítico da exigência determinista da ciência mecanicista a técnica poderá detêlo mediante o in flexível apego à grandeza da força à massa e qualidade do material É uma vã esperança que justamente o trabalho analítico pelo fato de ocuparse do misterioso inconsciente venha a subtrairse a essa derrocada de valores Se os espíritos familiares às pessoas derem as explicações derradeiras não poderá restar interesse pelas trabalhosas abordagens de poderes psíquicos 138300 desconhecidos realizadas pela investigação analítica Também serão abandonados os caminhos da técnica analítica se houver a esperança de mediante procedimentos ocultos colocarse em re lação direta com os espíritos atuantes exatamente como os hábi tos do trabalho paciente são descuidados quando há a esperança de tornarse rico mediante uma bemsucedida especulação Dur ante essa guerra soubemos de pessoas que se achavam entre duas nações inimigas pertencendo a uma pelo nascimento à outra por opção e local de residência seu destino foi serem trata das como inimigas primeiro por um lado e depois se tiveram a sorte de escapar pelo outro O destino da psicanálise poderia ser desse tipo No entanto é preciso suportar o destino qualquer que seja ele Também a psicanálise terá de se haver com o seu Retornemos agora ao presente à tarefa imediata Nesses últimos anos fiz al gumas observações que não pretendo esconder ao menos do cír culo dos mais próximos A relutância em transigir com uma cor rente dominante nesse tempo a preocupação em não desviar o interesse da psicanálise e a absoluta ausência de um véu de dis crição são os motivos que conjuntamente me levam a não dar maior publicidade a esta comunicação Penso que meu material tem duas vantagens que raramente se encontram Primeiro está livre das dúvidas e reservas de que geralmente sofrem as obser vações dos ocultistas e em segundo lugar mostra sua força com probatória somente depois de submetido à elaboração analítica É preciso dizer que ele consiste apenas em dois casos de natureza semelhante um terceiro caso de outra espécie é acrescentado à maneira de apêndice e está sujeito a avaliação distinta Os dois primeiros casos que agora exporei amplamente referemse a eventos do mesmo tipo profecias de videntes profissionais que 139300 não se realizaram No entanto produziram enorme impressão nos indivíduos a quem foram enunciadas de maneira que o es sencial nelas não pode ser a relação com o futuro Qualquer con tribuição para seu esclarecimento e qualquer reparo a seu valor comprobatório me serão muito bemvindos Minha atitude pess oal diante desse material continua a ser relutante e ambivalente I Alguns anos antes da guerra um jovem da Alemanha procurou me para análise queixandose de que não conseguia trabalhar tinha esquecido sua vida passada e perdido o interesse em tudo Ia graduarse em filosofia estudava em Munique estava diante do exame final de resto era um jovem esperto e de grande cul tura infantilmente travesso e seu pai era um financista que como depois se verificou havia elaborado com sucesso um imenso erotismo anal Quando lhe perguntei se realmente nada lembrava de sua vida ou seus interesses admitiu ter o projeto de um romance que havia esboçado que se passava no tempo de Amenófis iv no Egito e no qual um certo anel tinha grande im portância Nosso ponto de partida foi esse romance o anel se revelou como um símbolo do casamento e dali conseguimos reavivar todos os seus interesses e recordações Seu colapso psíquico fora consequência de um enorme esforço de superação Ele tinha uma única irmã alguns anos mais nova à qual se lig ava com amor total e não dissimulado Por que não podemos nos casar haviam se perguntado com frequência Contudo essa afeição jamais ultrapassara a medida do que é permitido entre irmãos Um jovem engenheiro se apaixonou por essa irmã Foi corres pondido por ela mas não teve a simpatia dos pais severos Em 140300 seu apuro o casal se voltou para o irmão pediulhe ajuda Este abraçou a causa dos enamorados intermediou sua corres pondência possibilitou seus encontros quando se achava na casa da família de férias e terminou por influir para que os pais concordassem no noivado e casamento dos apaixonados Dur ante o noivado aconteceu algo suspeito O irmão conduziu o fu turo cunhado numa subida ao Zugspitze mas os dois se extra viaram na montanha correram o risco de despencar e a duras penas se salvaram O paciente não objetou muito quando inter pretei essa aventura como uma tentativa de assassinato e suicí dio Poucos meses após o casamento da irmã ele iniciou a análise Deixoua depois de seis a nove meses inteiramente capaz de trabalhar a fim de fazer seus exames e escrever sua tese Ret ornou um ano depois para prosseguir a análise já como doutor em filosofia porque segundo falou a psicanálise tinha para ele como filósofo um interesse que ia além do sucesso terapêutico Sei que recomeçou em outubro Algumas semanas depois me contou a seguinte experiência já não me recordo a propósito de quê Em Munique há uma vidente que goza de grande reputação Os príncipes da Baviera têm o hábito de visitála antes de empreender algo Tudo o que ela solicita é que lhe deem uma data Não perguntei se é preciso incluir o ano Pressupõese que seja a data do aniversário de determinada pessoa mas ela não pergunta quem Tendo essa data ela consulta livros de as trologia faz longos cálculos e por fim profetiza algo em relação a essa pessoa No mês de março anterior meu paciente resolvera consultar a vidente e lhe dera a data de nascimento de seu cun hado naturalmente sem dizer o nome deste e sem revelar que o 141300 tinha em mente O oráculo foi de que a pessoa morreria em julho ou agosto de uma intoxicação por ostras ou camarão Depois de relatar isso meu paciente acrescentou Isso foi formidável Eu não compreendi e repliquei vivamente O que você acha formidável nisso Há algumas semanas você vem aqui se o seu cunhado tivesse morrido há muito você teria me contado isso ele ainda vive portanto A profecia foi em março deveria se cumprir no verão e agora estamos em novembro Não se cumpriu portanto O que você pode admirar nisso Ele É verdade que ela não se cumpriu Mas o curioso é que meu cunhado adora ostras camarões etc e em agosto passado teve realmente uma intoxicação por camarão e quase morreu dela Depois não falamos mais disso Queiram agora examinar esse caso comigo Eu acredito na sinceridade do narrador É um homem real mente sério atualmente ensina filosofia em K Não sei de nen hum motivo que pudesse fazêlo me enganar O relato foi epi sódico e nada tendencioso nenhuma coisa mais foi ligada a ele nem foram tiradas conclusões dele Não houve a intenção de me convencer da existência de fenômenos psíquicos ocultos e tive a impressão de que ele não fazia ideia clara do significado de sua experiência Eu próprio fiquei tão surpreso penosamente to cado na verdade que não fiz utilização analítica de sua comunicação A observação também me parece irrepreensível de outro ponto de vista Está provado que a vidente não conhecia o visit ante Mas perguntem a si mesmos que grau de intimidade é pre ciso para que se reconheça uma data como o dia de aniversário do cunhado de um conhecido Por outro lado duvidarão tenazmente como eu que mediante algumas fórmulas e com 142300 algumas tabelas alguém possa inferir a partir da data de nasci mento um evento tão específico como uma intoxicação por la gosta Não esqueçamos que muitos indivíduos nascem no mesmo dia vocês acham possível que chegue a semelhante de talhe a comunhão de destinos que seria baseada no mesmo dia de nascimento Portanto atrevome a excluir inteiramente da discussão os cálculos astrológicos acho que a vidente poderia ter feito qualquer outra coisa sem alterar o resultado da indagação Assim pareceme que também do lado da vidente digamos logo da médium estaria descartada uma fonte de engano Se vocês admitirem a realidade e veracidade dessa obser vação estaremos diante de sua explicação E logo advertimos algo que vale para a maioria desses fenômenos que sua ex plicação com hipóteses ocultas é extraordinariamente adequada cobre de maneira total o que tem de ser explicado exceto que é tão insatisfatória em si mesma O conhecimento de que o homem nascido naquele dia teve intoxicação por camarão não podia estar presente na adivinhadora nem ela podia têlo ad quirido de seus cálculos e tabelas Mas estava presente naquele que a consultava O fato se explica integralmente se nos di spomos a supor que tal conhecimento se transferiu dele para ela a suposta profeta por um meio desconhecido que exclui as formas de comunicação que nos são familiares Ou seja teríamos que tirar esta conclusão existe transmissão de pensamento O trabalho astrológico da vidente corresponderia então a uma atividade que distrai suas próprias forças psíquicas ocupandoas de modo inofensivo de maneira que ela possa tornarse re ceptiva e permeável aos pensamentos do outro indivíduo uma verdadeira médium Vimos procedimentos análogos no chiste 143300 por exemplo quando se trata de garantir a um processo psíquico um decurso mais automático O recurso à psicanálise proporciona algo mais nesse caso porém e realça a sua importância Ensinanos que não se comu nicou uma informação irrelevante qualquer a uma segunda pess oa pela via da indução mas sim que o desejo excepcionalmente forte de uma pessoa que se achava em relação especial com sua consciência pôde achar com o auxílio de uma segunda pessoa expressão consciente sob ligeiro disfarce exatamente como numa placa sensível à luz o final invisível do espectro se revela aos sentidos como extensão colorida Acreditamos ser possível reconstruir a linha de pensamentos do jovem após a doença e re cuperação do cunhado por ele odiado como um rival Bem dessa vez ele escapou mas nem por isso abandona esse gosto perigoso e da próxima vez é de esperar que se vá Esse é de es perar é o que converte na profecia Como contrapartida desse episódio eu poderia lhes relatar o sonho de uma outra pessoa no qual uma profecia aparece como material e a análise do sonho mostra que o conteúdo da profecia coincide com a realiza ção de um desejo Não posso simplificar minhas afirmações caracterizando o desejo de morte do paciente em relação ao cunhado como incon scientemente reprimido Esse desejo tinha se tornado consciente durante a terapia do ano anterior e as consequências da repressão haviam cedido ao tratamento Mas ele persistia não mais patogênico mas com intensidade bastante Poderíamos definilo como refreado 144300 II Na cidade de F cresce uma menina a maior de cinco irmãs A mais jovem tem dez anos menos que ela esta a deixou cair dos braços uma vez quando ainda era bebê e a chama de minha filha A irmã que vem depois dela tem uma diferença mínima de idade nasceram no mesmo ano A mãe mais velha que o pai não é uma mulher muito amável Este mais jovem não apenas na idade dedicase bastante às filhas e as impressiona com suas habilidades Infelizmente não impressiona em outros aspectos incompetente como homem de negócios não pode manter a família sem a ajuda dos parentes A filha mais velha se torna bem cedo a confidente de todas as apreensões que resultam da precariedade econômica do pai Tendo mostrado um caráter rígido e passional durante a in fância cresceu para se tornar um verdadeiro espelho de virtudes Seu elevado senso moral é acompanhado de uma inteligência limitada Tornouse professora de uma escola pública e é bastante respeitada As tímidas homenagens de um jovem par ente seu professor de música deixamna indiferente Nenhum outro homem despertou ainda seu interesse Um dia aparece um parente da mãe bem mais velho do que a moça mas como ela tem apenas dezenove anos ele é ainda um homem jovem É estrangeiro vive na Rússia como diretor de uma grande firma comercial tornouse muito rico Serão ne cessárias nada menos que uma guerra mundial e a queda do maior despotismo existente para empobrecer também a ele Apaixonase pela jovem e severa prima quer tornála sua 145300 mulher Os pais não procuram convencêla mas ela sabe o que desejam Por trás de todos os ideais éticos vislumbra a realização do desejo cultivado na fantasia de ajudar o pai salvandoo de sua penúria Ela imagina que o futuro noivo apoiará o pai en quanto este prosseguir com os negócios o aposentará quando ele finalmente abandonálos e fornecerá dotes e enxovais para as irmãs de modo que poderão casarse Apaixonase por ele casase pouco depois e o acompanha na volta para a Rússia Exceto por alguns pequenos incidentes que somente em ret rospecto ganharão significado tudo corre esplendidamente nesse matrimônio Ela se torna uma mulher amorosa sensual mente satisfeita e a benfeitora de sua família Falta apenas uma coisa ela não tem filhos Está com 27 anos no oitavo ano do casamento vive agora na Alemanha e após superar todas as hes itações procura um ginecologista de lá Este lhe promete êxito com a habitual ligeireza dos especialistas caso ela se submeta a uma pequena operação Ela está de acordo e no dia anterior fala com o marido a respeito disso Anoitece ela vai acender a luz O marido lhe pede que não o faça pois quer lhe dizer algo e para isso prefere a escuridão Ela deve suspender a operação é dele a culpa pela falta de filhos Durante um congresso de medicina dois anos atrás ele soube que determinadas doenças podem tor nar um homem incapaz de procriar e um exame demonstrou que esse era seu caso Após essa revelação a cirurgia deixa de se realizar Algo na mulher desmorona subitamente em vão ela tenta escondêlo Ela pôde amar aquele homem apenas como sucedâneo do pai e agora ouve que ele nunca se tornará pai Três caminhos se abrem para ela todos eles inviáveis a infidel idade a renúncia a ter filhos a separação do marido Este último 146300 ela não pode seguir por evidentes motivos práticos o segundo pelos fortes motivos inconscientes que vocês facilmente imagin am Toda a sua infância foi dominada pelo desejo três vezes baldado de ter um filho com o pai Então lhe resta aquela saída que a tornará tão interessante para nós Sucumbe a uma grave neurose Durante algum tempo defendese de várias tentações com o auxílio de uma histeria de angústia mas depois ela muda para graves ações obsessivas Vai para sanatórios e após dez anos de enferma chega também a mim Seu sintoma mais sali ente era que ao deitar na cama prendia sua roupa ao lençol com presilhas Assim revelava o segredo da contaminação do mar ido que a deixara sem filhos Certa vez essa paciente me contou ela tinha então quarenta anos de idade talvez uma experiência da época do início de sua depressão antes que irrompesse a neurose obsessiva Para distraíla seu marido a levou consigo numa viagem de negócios a Paris Eles estavam sentados no hall do hotel com um colega dele quando notaram certo movimento no local Ela perguntou a um funcionário o que sucedia e soube que Monsieur le profes seur chegava para atender na salinha junto à entrada Segundo ele M le professeur era um grande adivinho não fazia pergun tas apenas instruía o visitante para que pusesse a mão dentro de um recipiente com areia e vaticinava o futuro pelo exame da marca deixada Ela afirmou que também queria consultálo mas seu marido foi contra disse que era algo absurdo Depois que ele saiu com o parceiro de negócios porém ela tirou do dedo a ali ança e entrou no gabinete do adivinho Este examinou longa mente a impressão de sua mão e anunciou No futuro próximo a senhora passará por grandes conflitos mas tudo sairá bem a 147300 senhora se casará e com 32 anos terá dois filhos Ao contar essa história ela dava sinais evidentes de admiração e incom preensão Observei que lamentavelmente o prazo da profecia já havia expirado oito anos antes mas isso não lhe causou im pressão Refleti que talvez ela admirasse a confiante audácia dessa predição o olhar do rabino É pena que minha memória normalmente confiável não es teja segura da primeira parte da profecia se dizia Tudo sairá bem a senhora se casará ou em vez disso A senhora será fel iz Minha atenção se concentrou demasiadamente na frase final com seus detalhes pregnantes Na realidade porém as afirm ações iniciais sobre os conflitos que terminarão bem correspon dem às fórmulas vagas que aparecem em todas as profecias até mesmo nas vendidas prontas Sobressaem mais ainda portanto os dois números enunciados na frase final Seria interessante não há dúvida saber se o professor realmente falou em casamento Ela não usou a aliança e com 27 anos parecia jovem o bastante para ser tida como solteira mas por outro lado não é preciso muito refinamento para perceber a marca de um anel num dedo Limitemonos então ao problema da última frase que pro mete dois filhos aos 32 anos Esses detalhes parecem inteira mente arbitrários e inexplicáveis Nem o indivíduo mais crédulo tentaria deduzilos das marcas da mão Eles encontrariam uma justificação irrefutável se o destino os tivesse confirmado mas isso não ocorreu ela já estava com quarenta anos e não tinha nenhum filho Quais eram então a origem e o significado desses números A paciente mesma não fazia ideia A coisa óbvia a fazer 148300 seria abandonar a questão e incluir o episódio entre as inúmeras manifestações sem sentido supostamente ocultas Isto seria ótimo a mais simples solução e uma facilitação muito desejada se infelizmente devo dizer a análise não est ivesse em condições de dar um esclarecimento sobre os dois números e isso de maneira satisfatória até mesmo evidente para a situação Pois os dois números cabiam perfeitamente na história da vida da mãe de nossa paciente Ela havia se casado após os trinta anos e justamente aos 32 diferenciandose da maioria das mulheres e como que recuperando o atraso con seguira dar à luz dois filhos Então é fácil traduzir a profecia Não se entristeça com sua falta de filhos isso não quer dizer nada você ainda pode ter o mesmo destino de sua mãe que com sua idade ainda não era casada e com 32 teve dois filhos Esta profecia lhe promete que se realizará a identificação com a mãe que fora o segredo de sua infância e é feita por um vidente que ignora todas essas coisas pessoais e trabalha com uma impressão deixada na areia Nada nos impede de acrescentar como pres suposto dessa realização de desejo inconsciente em todo sentido o seguinte Você se livrará de seu marido inútil com a morte dele ou encontrará forças para se divorciar dele A primeira possibilidade corresponderia melhor à natureza da neurose ob sessiva e a segunda teria relação com os conflitos vitoriosos de que fala a profecia Vocês observam que o papel da interpretação analítica é ainda mais importante nesse caso do que no anterior podese dizer que com ela criouse o fato oculto Por conseguinte deveríamos também atribuir a esse exemplo uma enorme força com probatória da possibilidade de transmitir um desejo inconsciente 149300 poderoso e os pensamentos e informações a ele relacionados Vejo apenas uma forma de escapar à conclusão imposta por esse caso e certamente não a ocultarei É possível que a paciente tenha desenvolvido uma paramnésia nos doze ou treze anos de corridos entre a profecia e seu relato que o professor tenha dito apenas algumas vagas palavras de consolo o que não seria de es tranhar e que pouco a pouco ela tenha introduzido os números significativos a partir de seu inconsciente Então desapareceria o fato que nos impõe tão sérias conclusões De bom grado nos identificamos com um indivíduo cético que dá valor a uma comunicação dessas apenas quando sucede logo após o evento E não sem hesitar mesmo então Lembrome que após minha nomeação para professor tive uma audiência de agradecimento com o ministro Voltando dessa audiência surpreendime tent ando falsear as palavras que havíamos trocado e nunca mais pude lembrar exatamente a conversa que tivemos Deixarei que vocês decidam se consideram esta explicação aceitável Não posso refutála nem provála Assim esta segunda observação embora mais impressionante que a primeira não estaria menos sujeita à dúvida do que ela Os dois casos que lhes apresentei correspondem a profecias não realizadas Creio que observações assim trazem o melhor material para o problema da transmissão de pensamentos e quero encorajálos a reunir coisas similares Eu também havia preparado para vocês um material de outro tipo o caso de um paciente especial que durante uma sessão falou coisas que se lig avam notavelmente a uma experiência que eu acabara de ter Mas lhes darei uma prova tangível de que apenas com enorme resistência me ocupo dessas questões de ocultismo Quando em Gastein eu buscava os apontamentos que tinha levado para 150300 preparar esta comunicação não consegui achar a folha em que anotara essa última observação e sim uma outra levada por en gano com anotações de outra espécie inteiramente Contra uma resistência tão nítida não há o que fazer ficarei lhes devendo esse caso pois não posso completálo de memória Em vez disso farei algumas observações sobre uma pessoa bastante conhecida em Viena um grafólogo chamado Rafael Schermann a quem se atribuem realizações assombrosas Ele seria capaz não só de adivinhar o caráter de alguém mediante uma amostra de sua caligrafia como também de descrever a pessoa e fazer predições que depois são confirmadas pelo des tino No entanto muitas dessas proezas vêm de seus próprios re latos Certa vez um amigo fez a experiência sem meu conheci mento de deixálo fantasiar sobre uma amostra de minha es crita Ele disse apenas que ela procedia de um homem velho fácil de notar e de difícil convivência pois era um insuportável tirano doméstico Bem dificilmente isto será confirmado pelas pessoas que vivem comigo Mas como se sabe no terreno do ocultismo há o cômodo princípio de que os casos negativos nada provam Não observei Schermann diretamente mas através de um pa ciente adquiri certa ligação com ele da qual nada sabe Disso lhes falarei agora Há alguns anos fui procurado por um jovem que me causou uma impressão extremamente simpática de modo que lhe dei a preferência em relação a muitos outros Ele estava envolvido numa relação com uma conhecida cortesã e desejava rompêla porque lhe tirava a autodeterminação mas não conseguia fazêlo Foime possível liberálo e ao mesmo tempo compreender plenamente sua compulsão Poucos meses antes ele havia contraído um matrimônio normal socialmente 151300 satisfatório Logo se verificou na análise que a compulsão con tra a qual lutava não dizia respeito à cortesã mas a uma senhora de seu próprio ambiente com a qual tinha uma relação desde o início da juventude A cortesã apenas servia como bode expi atório para os sentimentos de ciúme e vingança que se dirigiam à amada na realidade Segundo um modelo nosso conhecido ele havia se subtraído à inibição própria da ambivalência mediante o deslocamento para um novo objeto A essa cortesã que por ele se apaixonara quase desinteressa damente ele costumava atormentar da maneira mais refinada Quando ela já não podia esconder o sofrimento porém ele a cobria da ternura que sentia pelo amor da juventude davalhe presentes e a tranquilizava e assim prosseguia o ciclo Quando por influência do tratamento ele enfim terminou com ela tornouse claro o que pretendia alcançar agindo daquela forma com a substituta da amada a reparação por uma tentativa de suicídio na juventude quando a amada não ouvia suas súplicas Após essa tentativa finalmente conquistou a amada mais velha que ele Nessa época do tratamento ele costumava procurar Sch ermann seu conhecido que várias vezes lhe interpretou a letra da dama galante dizendolhe que ela estava no fim das forças à beira do suicídio e certamente se mataria Mas ela não se matou em vez disso desvencilhouse de suas fraquezas humanas e lembrouse dos princípios de sua profissão e de seus deveres em relação ao amigo oficial Para mim ficou claro que o homem dos prodígios havia apenas revelado a meu paciente o seu próprio desejo íntimo Superada a ligação com esta pessoa substituta meu paciente se dedicou seriamente a livrarse de sua verdadeira amarra Por alguns sonhos percebi o plano que nele se formava de como 152300 poderia dissolver a ligação com o amor da juventude sem magoá la nem prejudicála materialmente Ela tinha uma filha que se mostrava bem terna com o jovem amigo da casa e que presum ivelmente nada sabia do papel secreto que ele desempenhava Com essa garota ele pretendia casar Pouco depois o plano se tornou consciente e o jovem deu os primeiros passos para executálo Apoiei sua intenção que correspondia a uma saída ir regular mas possível de uma complicada situação Mas pouco depois veio um sonho que exprimia hostilidade para com a moça e ele novamente consultou Schermann que emitiu o pare cer de que a moça era infantil neurótica e inapta para o casamento O grande conhecedor dos seres humanos tinha razão dessa vez o comportamento da garota que já era tida como noiva do jovem tornouse mais e mais contraditório e decidiu se encaminhála a uma análise O resultado dessa análise foi o abandono do projeto de casamento A garota tinha conheci mento inconsciente das relações entre sua mãe e seu noivo e ligavase a ele apenas devido a seu próprio complexo de Édipo Nessa época interrompemos a análise O paciente se achava livre e capacitado a seguir por si próprio seu caminho Escolheu para mulher uma garota respeitável de fora do círculo famili ar sobre a qual Schermann havia se pronunciado favoravel mente Esperamos que dessa vez ele acerte de novo Vocês terão compreendido de que maneira tendo a interpretar essas minhas experiências com Schermann Vejam que todo o meu material lida apenas com a indução de pensamentos nada tenho a dizer sobre todos os demais prodígios de que fala o ocultismo Minha própria vida transcorreu particularmente pobre em matéria de eventos ocultos como já afirmei publica mente Talvez o problema da transmissão de pensamentos lhes 153300 pareça mínimo comparado ao grande mundo mágico do oculto Mas ponderem que sério passo adiante para além da concepção que até hoje tivemos a admissão dessa única hipótese já repres entaria Continua sendo verdadeiro o que o custódio da basílica de SaintDenis acrescentava à história do martírio do santo De pois que lhe cortaram a cabeça SaintDenis a teria apanhado do chão e andado um bom trecho com ela sob o braço O custódio observou sobre isso Dans des cas pareils ce nest que le premi er pas qui coûte Em casos assim apenas o primeiro passo é que custa O resto vem por si Referências a Adler e Jung O monte mais elevado dos Alpes na Baviera Esse caso também é relatado em Sonhos e ocultismo uma das Novas conferências introdutórias à psicanálise 1933 mas de maneira menos detal hada e com a ligeira diferença nesse ponto de que a intoxicação do cunhado foi devida a ostras Transmissão de pensamento Gedankenübertragung o termo Übertra gung também pode significar transporte translado tradução e transferên cia é o mesmo usado para designar o fenômeno da transferência do paciente em relação ao analista Cf O chiste e sua relação com o inconsciente 1905 cap v Psicologia das massas e análise do Eu 1921 cap x Não sabemos exatamente a que sonho Freud se refere Strachey afirma que talvez seja o relatado no manuscrito Um sonho premonitório realizado de 1899 publicado em 1941 mas admite que nele não há uma profecia específica Refreado tradução aqui dada a unterdrückt particípio do verbo unter drücken que em outras ocasiões traduzimos por suprimir nas versões 154300 estrangeiras consultadas se acha contenido sofocado represso suppressed Cf notas sobre a versão de Unterdrückung no v 12 destas Obras completas pp 83 e 223 Contaminação Ansteckung o verbo traduzido por prender na frase an terior é anstecken Alusão a uma piada contada em O chiste e sua relação com o inconsciente cap ii seção 8 Local onde Freud passava férias então Tanto o caso seguinte como o anterior da mulher sem filhos que consultou um adivinho foram reaproveitados em Sonhos e ocultismo em geral com menos detalhes sendo que o anterior também aparece em Alguns comple mentos à interpretação dos sonhos 1925 Como foi dito na página inicial desse texto ele não foi redigido para pub licação e sofreu modificações por parte dos editores ao ser publicado postum amente Entre as mudanças reveladas pela pesquisadora GrubrichSimitis a mais significativa foi a omissão de que o amor da juventude do paciente era na verdade sua cunhada e que ele seria o pai do filho mais novo dela Assim se explica a afirmação de que não pertencia ao círculo familiar a garota com quem ele afinal se casou 155300 SONHO E TELEPATIA 1922 TÍTULO ORIGINAL TRAUM UND TELEPATHIE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 8 1 PP 122 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII PP 16591 Nesses tempos de tão grande interesse pelos fenômenos chama dos ocultos um tema como o anunciado deve despertar expect ativas bem definidas Então eu me apresso em contrariálas Os senhores nada aprenderão nesta conferência sobre o enigma da telepatia nem mesmo poderão concluir se creio ou não na ex istência de uma telepatia Eu me propus aqui a tarefa bem modesta de investigar a relação das ocorrências telepáticas qualquer que seja a sua origem com o sonho ou mais precis amente com a nossa teoria do sonho Como sabem o vínculo entre sonho e telepatia é geralmente considerado bastante es treito Eu defenderei a opinião de que os dois têm muito pouco a ver entre si e ainda que a existência de sonhos telepáticos fosse confirmada isso em nada mudaria nossa concepção do sonho O material em que se baseia esta comunicação é pequeno Antes de tudo devo lamentar não poder trabalhar com meus próprios sonhos como fiz ao escrever A interpretação dos son hos 1900 Mas o fato é que nunca tive um sonho telepático Não que me faltassem sonhos contendo a informação de que em certo lugar distante estaria ocorrendo determinada coisa cabendo ao sonhador decidir se o acontecimento se dá naquele instante ou nalgum tempo futuro E não poucas vezes também tive em plena vida desperta pressentimentos de fatos distantes mas nenhum desses prenúncios intuições e previsões se veri ficou como se diz Sucedeu que não houve realidade externa que lhes correspondesse e eles tiveram de ser vistos como ex pectativas puramente subjetivas Durante a guerra por exemplo eu sonhei que um de meus fil hos que se achava no front havia sucumbido O sonho não o dizia diretamente mas de forma inequívoca expressavao com os meios do conhecido simbolismo da morte primeiramente oferecido por Wilhelm Stekel Não vamos deixar de cumprir aqui o dever muitas vezes incômodo da escrupulosidade liter áriaVi o jovem soldado numa passarela de embarque entre a terra e a água pareciame bastante pálido falei com ele mas não respondeu E havia outras indicações inconfundíveis Ele não vestia uniforme militar e sim um traje de esquiador como o que usara num grave acidente alguns anos antes da guerra Estava sobre uma espécie de banquinho em frente a um armário situ ação que me sugeria a interpretação de queda graças a uma minha recordação de infância pois com pouco mais de dois anos de idade eu mesmo havia trepado num banquinho como aquele para pegar algo de um armário provavelmente algo gostoso e havia caído e me machucado ganhando uma cicatriz que ainda hoje tenho Mas meu filho que aquele sonho declarava morto retornou são e salvo da guerra Há pouco tempo tive um outro sonho de mau augúrio acho que pouco antes de me decidir a escrever este breve comunicado Dessa vez não houve muito disfarce no sonho Vi minhas duas sobrinhas que moram na Inglaterra elas estavam de preto e me diziam Nós a enterramos na quintafeira Eu sabia que fa lavam da morte de sua mãe que tinha 87 anos esposa de meu fa lecido irmão mais velho Houve então naturalmente um período de dolorosa expect ativa para mim O súbito falecimento de uma senhora tão idosa não seria nada surpreendente mas seria desagradável se o meu sonho coincidisse com aquele evento No entanto a primeira carta vinda da Inglaterra dissipou esse temor Para todos aqueles preocupados por causa da teoria do sonho como realização de 158300 desejo quero deixar a tranquilizadora informação de que não foi difícil a análise revelar os presumíveis motivos inconscientes também nesses sonhos relativos à morte Agora não me interrompam com a objeção de que tais comu nicados não têm valor pois as experiências negativas provam tão pouco nisso como em outras áreas menos ocultas Também sei disso e não trouxe esses exemplos com a intenção de provar algo ou de instilarlhes uma determinada atitude Quis apenas justifi car a escassez do meu material Mais significativo me parece um outro fato o de que durante uma atividade de 27 anos como analista eu nunca encontrei um sonho realmente telepático As pessoas que tratei eram uma boa coleção de naturezas seriamente neuropáticas e altamente sens itivas Muitas delas me relataram os mais curiosos aconteci mentos de sua vida nos quais baseavam sua crença em misterio sas influências ocultas Acidentes enfermidades de parentes próximos especialmente morte de pai ou mãe sucederam com razoável frequência e interromperam a análise mas nem uma única vez essas contingências que se prestavam para isso por sua natureza deramme ocasião de flagrar um sonho telepático embora o tratamento se estendesse por um semestre um ano in teiro ou vários anos Uma explicação para esse fato que implica mais uma restrição de meu material poderá ser buscada por quem se interessar em fazêlo Os senhores verão que ela não in flui no teor desta minha comunicação Tampouco pode me embaraçar a questão de por que não re corri ao acervo de sonhos telepáticos reunidos na literatura sobre o tema Não precisaria procurar muito já que as publicações da Society for Psychical Research inglesa e da americana se acham à 159300 minha disposição na qualidade de membro Em nenhuma des sas comunicações há uma tentativa de apreciação psicanalítica do sonho tal como nos interessa em primeira linha1 Por outro lado logo os senhores verão que para os objetivos da presente comunicação bastará um só exemplo de sonho Portanto meu material consiste apenas em dois relatos que me vieram de dois correspondentes na Alemanha Não os con heço pessoalmente mas forneceram nome e local de residência não há o menor motivo para crer que tivessem a intenção de me enganar I Com um deles eu já estava em correspondência ele tinha a am abilidade de enviarme como muitos outros leitores obser vações sobre eventos cotidianos e coisas assim Esse homem ob viamente culto e inteligente colocou seu material à minha dis posição se eu quisesse aproveitálo literariamente Eis a sua carta O sonho seguinte me parece de interesse bastante para que o envie ao senhor como material para seus estudos Primeiramente devo informar isto minha filha que é cas ada e vive em Berlim terá seu primeiro parto em meados de dezembro Eu pretendo viajar para Berlim nessa época com minha segunda esposa a madrasta de minha filha Na noite de 16 para 17 de novembro sonhei de modo mais vivo e claro do que nunca que minha mulher teve gêmeos Vejo os dois esplêndidos bebês com suas bochechas rosadas deitados um ao lado do outro no berço o sexo não percebo um deles com cabelo louroclaro tem nitidamente os meus traços com 160300 algo de minha mulher o outro com cabelo castanho tem nitidamente os traços de minha mulher com algo de meu Digo a minha mulher que tem cabelo louroavermelhado Provavelmente o cabelo castanho de seu bebê também ficará vermelho depois Minha mulher dá o peito às duas crianças Ela cozinhou no sonho marmelada numa bacia de banho e os bebês engatinham na bacia e lambem o conteúdo Este foi o sonho Quatro ou cinco vezes eu quase acordei perguntandome se era verdade que tínhamos gêmeos e con cluindo sem plena certeza que havia apenas sonhado O sonho durou até que acordei e depois ainda um momento até que me dei conta da verdade No café da manhã relatei a minha mulher o sonho que muito a divertiu Ela falou Mas Ilse minha filha vai ter gêmeos Eu respondi Acho difícil pois nem na minha família nem na de G seu marido há gêmeos No dia 18 de novembro às dez da manhã recebi um telegrama de meu genro passado na tarde anterior em que comunicava o nascimento de gêmeos um garoto e uma men ina O nascimento se deu portanto quando sonhei que minha mulher teve gêmeos O parto ocorreu quatro semanas antes do que esperávamos pelas conjecturas de minha filha e do marido E ainda isto na noite seguinte sonhei que minha falecida mulher a mãe de minha filha adotou 48 recémnascidos Quando a primeira dúzia é trazida eu protesto Assim acaba o sonho Minha falecida mulher gostava muito de crianças Com frequência dizia que gostaria de ter um bando delas ao redor quanto mais melhor que tinha aptidão e se sentiria bem em 161300 tomar conta de um jardim de infância Barulho de criança era música para seus ouvidos De vez em quando ela chamava muitas crianças da rua e lhes servia bolo e chocolates no pátio de nossa casa Certamente minha filha se lembrou da mãe após o parto ainda mais com a surpresa do evento prematuro e com os gêmeos de sexo diferente Sabia que ela receberia o acontecimento com grande alegria e interesse Que diria mamãe se estivesse comigo agora Sem dúvida lhe veio o pensamento E eu tenho este sonho com minha falecida primeira mulher com quem sonho raramente e de quem não havia falado nem pensado após o primeiro sonho O senhor julga um acaso a coincidência entre sonho e evento nos dois casos Minha filha que me é bastante próx ima certamente pensou em mim durante seu parto inclusive porque me correspondi bastante com ela sobre sua conduta durante a gravidez sempre lhe dando conselhos É fácil imaginar minha resposta a essa carta Lamentei que também no caso dele o interesse analítico fosse inteiramente su plantado pelo interesse na telepatia Esquiveime de sua per gunta direta observei que o sonho também continha muitas coisas além de sua relação com o nascimento dos gêmeos e soli citei que me transmitisse os dados e associações que me per mitiriam uma interpretação do sonho Então recebi esta segunda carta que não satisfez inteiramente meu pedido Somente hoje venho a responder sua amável carta do dia 24 Vou lhe informar de bom grado com franqueza e sem lacunas 162300 todas as associações que me ocorrem Infelizmente não há muita coisa numa comunicação oral haveria bem mais Muito bem Minha esposa e eu não desejamos mais filhos Quase já não nos relacionamos sexualmente e na época do sonho não havia nenhum perigo de todo modo O parto de minha filha esperado para meados de dezembro era objeto frequente de nossas conversas claro Ela havia sido examin ada e havia feito raios X no verão e o médico constatou que seria um menino Minha mulher dizia ocasionalmente Eu vou rir se for menina Ela também achava que seria melhor se fosse um H do que um G nome de família do meu genro minha filha é mais bonita e de figura mais imponente do que meu genro embora ele tenha sido oficial da marinha Eu me ocupei de questões de hereditariedade e tenho o hábito de ol har atentamente para os bebês a fim de ver com quem se parecem Mais uma coisa Nós temos um cachorro pequeno que à noite se senta à mesa conosco obtém sua ração e lambe inteiramente os pratos e travessas Todo esse material aparece no sonho Gosto de crianças pequenas e já disse com frequência que bem gostaria de criar novamente um serzinho desses agora que posso fazêlo com muito mais calma compreensão e in teresse mas não quero ter um filho com minha mulher que não possui as aptidões para educar sensatamente uma cri ança O sonho me presenteou com duas o sexo não cheguei a constatar Ainda posso vêlas na cama e reconheço clara mente os traços uma delas mais eu a outra mais minha mul her mas cada uma com pequenos traços da outra parte Minha mulher tem cabelo louroavermelhado uma das 163300 crianças tem cabelo castanhoavermelhado Eu disse Ora vai ficar ruivo depois Os dois bebês engatinham numa grande bacia de banho em que minha esposa cozinhou a marmelada e lambem o fundo e as bordas no sonho A origem desse de talhe se explica facilmente o próprio sonho não seria difícil de compreender e interpretar se não coincidisse com o inesper ado nascimento de meus netos prematuros em três semanas quase exatamente não posso dizer com precisão a hora em que teve início o sonho meus netos nasceram às nove e quin ze aproximadamente às onze fui me deitar à noite sonhei e se já não soubéssemos que seria um menino A incerteza de que a previsão estava correta se o bebê seria homem ou mulher pode ter feito aparecer gêmeos no sonho é verdade mas há sempre a coincidência cronológica entre o sonho com gêmeos e a inesperada vinda dos gêmeos para minha filha adiantada em três semanas Não é a primeira vez que acontecimentos distantes me chegam à consciência antes de eu receber a notícia Esse foi um entre muitos Em outubro fui visitado por meus três irmãos Havia trinta anos que não nos víamos todos dois a dois sim com maior frequência claro apenas duas vezes muito rapidamente no enterro de meu pai e no de minha mãe Ambas as mortes haviam sido esperadas não pressenti nenhuma das duas Mas há cerca de 25 anos meu irmão caçula morreu repentinamente e quando o carteiro me entregou o cartão com a notícia da morte logo me veio à cabeça antes de olhar o seu conteúdo este pensamento Está aí que o teu irmão morreu Ele era o único que ainda vivia com os pais um rapaz forte e saudável enquanto nós os quatro mais 164300 velhos havíamos nos tornado independentes e deixado a casa paterna Durante a visita de meus irmãos a conversa caiu nessa minha experiência e todos os três como que seguindo um comando afirmaram que naquele instante lhes havia acontecido exatamente o mesmo Já não sei dizer se foi da mesma forma mas cada um declarou que havia tido a certeza interior da morte logo antes de receber a notícia totalmente imprevista Nós quatro temos por herança materna naturezas sensíveis mas somos indivíduos grandes e robus tos e não temos a menor inclinação para o ocultismo e o es piritismo pelo contrário rejeitamos decididamente as duas coisas Meus irmãos são todos três de formação acadêmica dois são professores de ginásio um é agrimensor são bem meticulosos e pouco fantasiosos Isso é tudo o que tinha para lhe dizer sobre o sonho Se o senhor quiser aproveitálo literariamente colocoo à sua disposição Receio que os senhores se comportarão como o autor dessas duas cartas Também se interessarão sobretudo em saber se este sonho pode realmente ser visto como um prenúncio telepático do inesperado nascimento de gêmeos não se dispondo a submetêlo à análise como fariam com qualquer outro Prevejo que sempre será assim quando psicanálise e ocultismo se encon trarem A primeira tem todos os instintos psíquicos contra si por assim dizer enquanto este conta com fortes e obscuras sim patias Mas não adotarei a postura de que sou apenas um psican alista de que as questões do ocultismo não me dizem respeito isso os senhores veriam como simples fuga do problema Afirmo isto sim que seria uma grande satisfação poder convencer a mim mesmo e aos outros mediante observações irrepreensíveis que 165300 existem processos telepáticos mas que as informações relativas a este sonho são muito insuficientes para justificar uma resol ução assim Observem que não ocorre a esse homem inteligente interessado no problema de seu sonho dizernos quando viu pela última vez a filha grávida ou que notícias dela teve recente mente Ele escreve na primeira carta que o nascimento se deu com um mês de antecipação mas na segunda carta são apenas três semanas e em nenhuma delas somos informados se ele foi realmente prematuro ou se as pessoas envolvidas calcularam mal como frequentemente sucede Mas necessitaríamos desse e de outros detalhes se fossemos considerar a probabilidade de uma avaliação e adivinhação inconsciente por parte daquele que sonha Achei também que não adiantaria muito se obtivesse res posta para algumas dessas questões Nas tentativas de alcançar a prova sempre surgiriam novas dúvidas que somente poderiam ser eliminadas tendo o homem à nossa frente e lhe avivando as lembranças todas que talvez tenha afastado como não essenciais Certamente ele está certo ao dizer no início da segunda carta que numa comunicação oral apareceriam mais coisas Pensem num outro caso semelhante em que não tem parti cipação o perturbador interesse no ocultismo Sem dúvida já est iveram na situação de poder comparar a anamnese e o relato da doença feitos na primeira sessão por um paciente neurótico com aquilo que aprenderam sobre ele após alguns meses de an álise Fora a inevitável abreviação quantas informações essenci ais não foram omitidas ou suprimidas quantas relações não fo ram deslocadas em suma quanta coisa inverídica e incorreta ele não lhes contou na primeira vez Acho que não me julgarão de masiado crítico se eu me recusar a decidir na presente situação 166300 se o sonho relatado corresponde a um fato telepático ou a uma sutil realização inconsciente do sonhador ou se deve ser visto como simples coincidência Nossa curiosidade terá que aguardar uma ocasião futura em que nos seja dado interrogar oralmente e de forma detalhada a pessoa que sonhou Mas os senhores não podem se declarar decepcionados com esse resultado de nossa indagação pois eu lhes avisei que não aprenderiam nada que lançasse luz sobre o problema da telepatia Se agora passamos ao tratamento analítico desse sonho temos de mais uma vez confessar nosso desgosto O material dos pensamentos que o sonhador relaciona ao conteúdo manifesto do sonho é também insuficiente com ele não podemos fazer uma análise do sonho Esse se detém por exemplo na semel hança dos bebês com os pais discute a cor dos cabelos e a provável mudança deles no futuro e como explicação para o prolongamento nesses detalhes há apenas a mera informação da parte do sonhador de que ele sempre se interessou por questões de hereditariedade e semelhança Estamos acostumados a esper ar muito mais Mas há um ponto em que o sonho permite uma interpretação psicanalítica justamente nele a psicanálise que de resto nada tem a ver com o ocultismo vem insolitamente socorrer a telepatia É devido apenas a essa passagem que chamo a sua atenção para este sonho Se o observamos bem este sonho não tem nenhum direito de ser chamado telepático Ele não informa ao sonhador nada que fora de seu conhecimento normal ocorra simultaneamente num outro lugar o que o sonho relata é algo bem diferente do anunciado dois dias depois por um telegrama Sonho e aconteci mento divergem num ponto extremamente importante tirando a simultaneidade concordam apenas num outro elemento 167300 muito interessante No sonho a mulher do sonhador tem gêmeos Mas ocorre que sua filha que mora longe é que deu à luz gêmeos O sonhador não ignora essa diferença ele parece não saber como superála e não tendo predileção pelo ocultismo se gundo ele próprio afirma apenas pergunta timidamente se pode ser mais que um acaso o fato de sonho e acontecimento coinci direm num ponto Mas a interpretação psicanalítica de sonhos elimina essa diferença entre sonho e acontecimento e atribui a ambos o mesmo conteúdo Se recorremos ao material de asso ciações relativo a este sonho ele nos mostra apesar de sua es cassez que há aqui um íntimo laço afetivo entre pai e filha um laço tão habitual e natural que deveríamos deixar de nos enver gonhar dele que na vida cotidiana só se manifesta como afetu oso interesse e apenas em sonho é levado às últimas consequên cias O pai sabe que a filha lhe é muito apegada está convencido de que ela pensou muito nele na hora do parto creio que no fundo não a concedeu de boa vontade ao genro que recebe al guns comentários depreciativos na carta Por ocasião do parto fosse esperado ou comunicado telepaticamente ativase no rep rimido este desejo inconsciente Ela deveria ser minha se gunda esposa e é esse desejo que deforma o pensamento onírico e provoca a diferença entre o conteúdo onírico manifesto e o acontecimento É lícito substituirmos a segunda mulher do sonho pela filha Se tivéssemos mais material relativo ao sonho certamente poderíamos assegurar e aprofundar essa interpretação Agora chego ao que desejaria lhes mostrar Esforçamonos pela mais rigorosa imparcialidade e admitimos duas concepções do sonho como igualmente possíveis e não provadas De acordo com a primeira o sonho é a reação a uma mensagem telepática 168300 Sua filha está dando à luz gêmeos Conforme a segunda há um inconsciente trabalho de pensamento por trás do sonho que po deria ser traduzido mais ou menos assim Hoje é o dia em que haveria o parto se os jovens em Berlim se enganaram realmente em um mês como eu acredito E se minha primeira mulher ainda vivesse ela não ficaria satisfeita com um só neto Para ela deveriam ser no mínimo dois Se a segunda concepção é correta não surgem novos problemas para nós Tratase de um sonho como qualquer outro Ao mencionado préconsciente pensamento onírico juntouse o inconsciente desejo de que apenas a filha se tornasse a segunda mulher do sonhador e desse modo surgiu o sonho manifesto que nos foi comunicado Se preferem supor no entanto que uma mensagem telepática sobre o parto da filha chegou ao homem que dormia aparecem novas questões acerca da relação de tal mensagem com o sonho e da sua influência na formação do sonho A resposta não é difí cil e pode ser formulada inequivocamente A mensagem telepát ica é tratada como uma porção do material que vai para a form ação do sonho como algum outro estímulo externo ou interno um barulho perturbador vindo da rua uma insistente sensação de um órgão do sonhador É claro em nosso exemplo como ela é retrabalhada com ajuda de um desejo à espreita reprimido até se tornar realização de desejo infelizmente não é tão fácil mostrar que ela e outro material ativado simultaneamente se fundem num sonho Portanto uma mensagem telepática se for realmente reconhecida como tal nada pode alterar na formação do sonho a telepatia nada tem a ver com a natureza do sonho Para evitar a impressão de que quero esconder algo pouco claro em termos abstratos e bemsonantes disponhome a repe tir a natureza do sonho consiste no peculiar processo do 169300 trabalho do sonho que com o auxílio de um desejo inconsciente transporta pensamentos préconscientes restos diurnos para o conteúdo manifesto do sonho O problema da telepatia assim como o da angústia não diz respeito ao sonho Espero que concordem quanto a isso mas que também façam a objeção de que existem outros sonhos telepáticos em que não há diferença entre acontecimento e sonho e se encontra apenas a reprodução não deformada do acontecimento Também não con heço tais sonhos telepáticos por experiência própria mas sei que são relatados com frequência Supondo que estivéssemos diante de um sonho telepático desses não deformado e não contam inado então caberia uma outra pergunta devemos chamar de sonho uma vivência telepática assim Os senhores certamente o farão se adotarem o costume popular de considerar sonho tudo o que ocorre na vida psíquica durante o sono Talvez digam também Eu me revirei no sonho e não vejam incorreção em dizer Eu chorei no sonho ou me angustiei no sonho Mas devem notar que em todos esses casos usam sonho e sono in diferenciadamente Acho que no interesse da precisão científica é melhor manter uma clara distinção entre um e outro Por que deveríamos criar uma contrapartida para a confusão gerada por Maeder que descobriu uma nova função para o sonho recusandose a distinguir entre o trabalho do sonho e os pensamentos oníricos latentes Assim se encontrarmos um puro sonho telepático desses vamos preferir chamálo de vivência telepática ocorrida no sono Um sonho sem condens ação deformação e dramatização e sobretudo sem realização de desejo não merece esse nome afinal Os senhores me lembrarão que há outras produções psíquicas no sono a que devemos negar o direito de se chamarem sonhos Pode ocorrer que vivências 170300 reais do dia sejam simplesmente repetidas no sono há pouco tempo as reproduções de cenas traumáticas no sonho nos levaram a uma revisão da teoria dos sonhos Existem sonhos que se diferenciam do tipo habitual por características muito especi ais que nada são de fato senão fantasias noturnas incólumes e não contaminadas de resto inteiramente similares às conhecidas fantasias diurnas Seria desagradável certamente excluir essas formações da categoria de sonhos Mas elas vêm todas de den tro são produtos de nossa vida psíquica enquanto o sonho pura mente telepático é por definição uma percepção externa di ante da qual a psique mantém uma atitude passiva e receptiva II O segundo caso que desejo lhes relatar situase numa linha di versa na verdade Não nos traz um sonho telepático e sim um que sempre retorna desde a infância numa pessoa que teve muitas vivências telepáticas Sua carta que transcrevo em seguida contém coisas dignas de nota acerca das quais não po demos formar julgamento Algumas delas podem interessar ao problema da relação entre a telepatia e os sonhos 1 Meu médico o dr N recomendoume lhe contar um sonho que há aproximadamente trinta 32 anos me acom panha Segui o conselho dele o sonho talvez tenha algum in teresse científico para o senhor Como em sua opinião esses sonhos se ligam a alguma vivência de natureza sexual durante a primeira infância ofereço também recordações da infância 171300 são vivências que ainda hoje produzem impressão e que fo ram tão marcantes que determinaram minha religião Peçolhe que após tomar conhecimento dele o senhor me informe de que maneira explicaria este sonho e se não é possível tirálo de minha vida pois ele me segue como um fantasma e por causa das circunstâncias que o acompanham eu sempre caio da cama e já me machuquei consideravel mente é doloroso e intolerável para mim 2 Tenho 37 anos de idade sou robusta e fisicamente saudável quando criança além de sarampo e escarlatina fui acometida de nefrite Com cinco anos tive uma grave infecção dos olhos que deixou como sequela uma diplopia As imagens aparecem oblíquas uma em relação à outra os contornos da imagem são borrados porque cicatrizes das úlceras afetam a clareza Segundo os especialistas não haverá mais nenhuma mudança ou melhora na visão De tanto eu apertar o olho es querdo para ver mais claro a metade esquerda do rosto ficou puxada para cima Com exercícios e força de vontade consigo fazer delicados trabalhos de costura assim também quando tinha seis anos consertei o estrabismo com exercícios diante do espelho de modo que hoje não se percebe o defeito na visão Já em meus primeiros anos eu sempre ficava sozinha afastavame das outras crianças e tinha visões clarividência e ouvido aguçado mas não podia distinguilas da realidade e então frequentemente entrava em conflitos que me tornaram uma pessoa tímida e reservada Como desde que era pequena já sabia mais do que teria podido aprender simplesmente não 172300 entendia mais as crianças de minha idade Eu sou a mais velha de doze irmãos Dos seis aos dez anos frequentei a escola do bairro e de pois até os dezesseis a escola secundária das ursulinas em B Com dez anos em quatro semanas foram oito aulas particu lares aprendi tanto francês quanto as outras crianças em dois anos Só precisava repetir era como se já soubesse e apenas tivesse esquecido Depois não precisei nunca ter aulas de francês diferentemente do inglês que não trouxe di ficuldade mas era desconhecido para mim De modo semel hante ao francês foi o latim que não estudei propriamente e conheço apenas pelo latim da igreja que me é inteiramente familiar no entanto Se hoje em dia leio uma obra em francês penso imediatamente em francês enquanto isso nunca sucede com o inglês embora eu domine melhor o inglês Meus pais são camponeses durante gerações não falaram outras línguas que não o alemão e o polonês Visões às vezes a realidade desaparece momentanea mente e vejo outra coisa Em meu apartamento por exemplo muitas vezes enxergo um velho casal e uma criança e o apartamento tem outra mobília Ainda no sanatório minha amiga veio bem cedo às quatro da manhã ao meu quarto eu estava acordada tinha a lâmpada acesa e lia sentada à mesa pois sofro bastante de insônia Essa aparição sempre signi ficou aborrecimento também dessa vez Em 1914 meu irmão estava no campo de batalha eu não estava com nossos pais em B mas sim em Ch Eram dez hor as da manhã 22 de agosto quando ouvi a voz de meu irmão chamar mãe mãe Eu a consolei e nada falei de mim Três 173300 semanas depois veio uma carta de meu irmão que ele havia escrito entre nove e dez horas do dia 22 pouco depois ele morreu Em 27 de setembro de 1921 no sanatório recebi uma es pécie de mensagem Houve duas ou três batidas fortes na cama de minha colega de quarto Nós duas estávamos acorda das perguntei se ela havia batido ela nem sequer havia escut ado algo Após oito semanas soube que uma de minhas amig as havia morrido na noite de 26 para 27 Agora algo que seria uma alucinação questão de ponto de vista Tenho uma amiga que se casou com um viúvo com cinco filhos eu o conheci apenas através dela Em seu aparta mento sempre vejo quando estou lá uma senhora que vai e vem Era de supor que fosse a primeira mulher do marido Em certa ocasião pedi para ver uma fotografia mas não pude identificar a aparição pela imagem Sete anos depois com um dos filhos vi uma foto que continha os traços da mulher Era a primeira esposa Na foto ela tinha aparência bem melhor havia feito um tratamento de engorda o que lhe mudou o as pecto era doente dos pulmões Esses são alguns exemplos entre muitos O sonho Vejo uma língua de terra cercada de água As ondas são impelidas para a frente pela arrebentação e de pois novamente para trás No pedaço de terra há uma pal meira um tanto curvada para a água Uma mulher tem o braço em torno do tronco da palmeira e se inclina bastante para a água onde um homem procura chegar a terra Por fim ela se deita na terra com a mão esquerda se mantém agarrada à palmeira e estende a mão direita para o homem 174300 na água o máximo que pode sem alcançálo Nisso eu caio da cama e acordo Eu tinha quinze ou dezesseis anos quando percebi que era essa mulher e não só experimentava a angústia da mulher por causa do homem às vezes também es tava ali como uma terceira pessoa que não participava apenas olhava Sonhava isso também em etapas À medida que o in teresse pelo homem crescia em mim de dezoito a vinte anos procurava reconhecer o rosto do homem mas não era pos sível A espuma das águas deixava à mostra somente a nuca e a parte de trás da cabeça Fiquei noiva por duas vezes mas pela cabeça e o feitio do corpo não era nenhum desses dois noivos Certa vez quando estava no sanatório sob o efeito do paraldeído vi o rosto do homem que me aparece em todo sonho É o do médico que cuida de mim que me é simpático como médico mas com quem não tenho outros laços Lembranças Entre seis e nove meses de idade Eu no car rinho de bebê à minha direita dois cavalos um deles castanho olha para mim com olho grande e expressivo É a experiência mais forte eu tinha a sensação de que era uma pessoa Com um ano de idade Meu pai e eu no parque da cidade onde um vigia do parque me dá um pequeno pássaro na mão Os olhos deste me fitam eu penso É um ser como você Animais sendo abatidos Quando os porcos grunhiam eu sempre gritava por socorro e exclamava Vocês estão matando uma pessoa com quatro anos de idade Sempre re cusei carne Carne de porco sempre me causou vômitos Só durante a guerra aprendi a comer carne mas a contragosto agora estou me desacostumando novamente disso 175300 Cinco anos de idade Minha mãe estava dando à luz e eu a ouvia gritar Tive a sensação de que havia um animal ou uma pessoa em grande aflição como quando animais eram abatidos Quando criança era totalmente indiferente ao sexo aos dez anos pecados contra a castidade ainda escapavam à minha compreensão Aos doze anos tive a primeira menstru ação Aos 26 anos depois que tive um filho é que despertei como mulher até então por seis meses sempre vomitava fortemente no coito Também depois tinha vômitos quando sofria a menor contrariedade Tenho uma capacidade de observação extremamente aguda e uma audição excepcional também meu olfato é bastante desenvolvido Posso reconhecer pessoas familiares pelo cheiro de olhos fechados no meio de muitas outras Não relaciono o fato de ver e ouvir mais a uma natureza doentia e sim a uma sensibilidade mais fina e uma maior ca pacidade de combinação mas falei sobre isso apenas com meu professor de religião e com o dr e muito a contragosto com esse último pois receava ouvir que tenho atributos negat ivos que pessoalmente vejo como positivos e porque fiquei bastante receosa devido à incompreensão quando era pequena Não é difícil entender o sonho que esta senhora nos pede para interpretar Tratase de um sonho de salvação da água ou seja um típico sonho de nascimento Como sabem os senhores a lin guagem do simbolismo não conhece gramática é um caso ex tremo de língua de infinitivos em que o modo ativo e o passivo são representados com a mesma imagem Quando uma mulher 176300 no sonho tira ou quer tirar um homem da água isso pode sig nificar que quer ser sua mãe reconheceo como filho como a filha do faraó fez com Moisés ou também que quer se tornar mãe através dele ter com ele um filho que sendo sua imagem fiel equivale a ele O tronco que ela segura é facilmente recon hecível como símbolo fálico também por não estar reto mas in clinado curvado como diz o sonho para a superfície da água O fluxo e refluxo da arrebentação sugeriu a outra mulher que tivera um sonho muito semelhante a comparação com as dores intermitentes do parto e quando perguntei a ela que não havia ainda dado à luz de onde conhecia essa característica do trabalho de parto respondeu que imaginava as dores como uma espécie de cólica o que é irrepreensível do ponto de vista fisioló gico Ela fez a associação Ondas do mar e do amor Como a nossa sonhadora pôde chegar numa idade tão tenra a uma ap resentação tão refinada dos símbolos língua de terra palmeir as isso é algo que não sei dizer Mas não esqueçamos que quando as pessoas afirmam que há anos são perseguidas pelo mesmo sonho muitas vezes se constata que não é manifesta mente o mesmo Apenas o cerne do sonho retorna a cada vez pormenores do conteúdo são mudados ou acrescentados No final desse sonho claramente angustiado a sonhadora cai da cama Isso é uma nova representação do parto A investigação psicanalítica das fobias de altura do medo do impulso de jogar se pela janela certamente já levou todos os senhores a esse mesmo resultado E quem é o homem do qual a sonhadora deseja um filho ou de cujo sósia gostaria de ser mãe Ela se esforçou bastante para ver o rosto mas o sonho não o permitiu o homem devia per manecer incógnito Inúmeras análises nos revelam o que 177300 significa esse ocultamento e nossa conclusão por analogia é re forçada por outra indicação da sonhadora Sob efeito do paraldeído ela reconheceu o rosto do homem do sonho como sendo o do médico que a tratava no sanatório que nada signi ficava em sua vida emocional consciente O original nunca havia se mostrado portanto mas sua cópia na transferência permite a conclusão de que antes devia ser sempre o pai Estava certo Ferenczi quando indicou os sonhos dos que não desconfiam como preciosos documentos para a confirmação de nossas hipóteses analíticas Nossa sonhadora era a primogênita de doze filhos com que frequência não foi atormentada pelo ciúme e pela desilusão quando sua mãe e não ela obteve do pai o filho desejado Muito acertadamente ela compreendeu que suas primeiras recordações da infância seriam valiosas para a interpretação do sonho que teve bem cedo e que sempre retorna Na primeira cena antes de um ano de idade ela está sentada no carrinho de bebê e a seu lado há dois cavalos um dos quais olha para ela de modo firme e expressivo Ela designa isso como sua vivência mais intensa teve a sensação de que era uma pessoa que a fitava Mas só podemos entender essa avaliação se supusermos que dois cavalos representam aí como frequentemente sucede um casal o pai e a mãe É como que um vislumbre do totemismo infantil Se pudéssemos falar com a mulher que nos escreve pergun taríamos se o pai segundo a cor da pele não poderia ser recon hecido no cavalo castanho que a olha tão humanamente A se gunda recordação é associada à primeira através do mesmo ol har compreensivo Mas o fato de pegar o passarinho na mão lembra ao analista que tem suas ideias preconcebidas um outro 178300 elemento do sonho em que a mão da mulher entra em contato com um outro símbolo fálico As duas recordações seguintes relacionamse estreitamente oferecem ainda menos dificuldade para a interpretação Os gri tos da mãe na hora do parto lembramlhe diretamente os grun hidos dos porcos ao serem abatidos em casa e suscitam o mesmo arrebatamento de compaixão Mas também imaginamos que haja uma forte reação a um malvado desejo de morte refer ente à mãe Com essas indicações de ternura pelo pai de contatos genitais com ele e de desejos de morte em relação à mãe traçamse as lin has do complexo de Édipo feminino A prolongada ignorância sexual e a posterior frigidez correspondem a essas premissas Nossa missivista se tornou virtualmente e por algum tempo de fato uma neurótica histérica As forças da vida para sorte dela arrastaramna consigo possibilitaramlhe as sensações sexuais femininas a felicidade de mãe e as atividades profission ais mas uma parte de sua libido ainda se apega às fixações da in fância ela continua a sonhar aquele sonho que a derruba da cama e a pune com machucados consideráveis pela escolha in cestuosa de objeto Agora ela espera do esclarecimento epistolar de um médico que não conhece algo que as mais fortes influências de sua vida posterior não puderam produzir Dadas as circunstâncias tive de me contentar em lhe dizer que estou convencido de que sofre as consequências de uma forte ligação afetiva ao pai e correspond ente identificação com a mãe mas que eu mesmo não acredito que essa explicação lhe seja proveitosa Curas espontâneas de neuroses costumam deixar cicatrizes que de quando em quando voltam a ser dolorosas Sentimos orgulho de nossa arte quando 179300 realizamos uma cura mediante a psicanálise mas nem sempre podemos evitar o desenlace da formação de uma cicatriz dolorosa Essa pequena série de recordações ainda reterá um pouco a nossa atenção Escrevi certa vez que tais cenas infantis são lembranças encobridoras que numa época posterior são sele cionadas reunidas e não raro falseadas Às vezes podemos descobrir a que tendência serve essa elaboração posterior Em nosso caso praticamente ouvimos o Eu da missivista se gabar ou se consolar mediante esta série de recordações Já quando pequena eu era uma criatura nobre e compassiva Logo percebi que os animais têm alma como nós e não tolerava crueldade com os animais Os pecados da carne me eram estranhos e por muito tempo mantive a castidade Com declarações assim ela contraria ostensivamente as suposições que fizemos sobre sua infância com base em nossa experiência analítica que ela ab rigava impulsos sexuais precoces e fortes impulsos de ódio para com a mãe e os irmãos mais novos Além de ter o significado genital que lhe atribuímos o passarinho pode ser símbolo de um bebê como todos os bichos pequenos e a recordação enfatiza a equiparação desse pequeno ser com ela mesma Assim a breve série de recordações proporciona um belo exemplo de formação psíquica com duplo aspecto Olhada superficialmente dá ex pressão a uma ideia abstrata que aqui como em geral ocorre diz respeito à ética conforme a designação de H Silberer ela tem conteúdo anagógico Numa investigação mais aprofundada ela se mostra como uma cadeia de fatos do âmbito da vida instin tual reprimida manifesta seu conteúdo psicanalítico Como sabem Silberer um dos primeiros a nos advertir que não es quecêssemos a parte nobre da alma humana afirmou que todos 180300 ou a maioria dos sonhos admitem tal interpretação dupla uma mais pura anagógica acima da interpretação vulgar psicanalít ica Infelizmente não é assim pelo contrário uma sobreinter pretação assim raramente é possível pelo que sei até hoje não foi publicado um exemplo útil de tal análise de sonho com dupla interpretação Mas nas séries de associações trazidas por nossos pacientes em tratamento analítico os senhores podem fazer tais observações com relativa frequência Por um lado os pensamen tos espontâneos que se sucedem são ligados por uma associação evidente por outro lado os senhores se dão conta de um tema mais ao fundo mantido em segredo que participa de todos esses pensamentos espontâneos A oposição entre os dois temas dom inantes na mesma série não é sempre aquela entre elevado anagógico e vulgaranalítico mas entre chocante e decente ou in diferente o que permite compreender facilmente o motivo para o surgimento da cadeia associativa Certamente não é um acaso em nosso exemplo que anagogia e interpretação psicanalítica es tejam em tão clara oposição ambas dizem respeito ao mesmo material e a tendência ulterior é justamente a das formações reativas que se ergueram contra os impulsos instintuais repudiados Mas por que buscamos nós uma interpretação psicanalítica não nos satisfazendo com a anagógica mais acessível Isso está relacionado a diversas coisas à existência da neurose simples mente às explicações que ela inevitavelmente requer ao fato de a virtude não tornar as pessoas tão felizes e fortes como seria de esperar como se ainda carregasse muita coisa de sua origem também nossa sonhadora não foi bem recompensada por sua virtude e a várias outras que não preciso abordar diante dos senhores 181300 No entanto até agora deixamos de lado a telepatia o outro elemento a determinar nosso interesse neste caso É hora de re tornar a ela De certo modo nossa tarefa é aqui mais fácil do que no caso do sr H Para uma pessoa que tão facilmente e já na infância se subtrai à realidade pondo em seu lugar um mundo de fantasia tornase muito grande a tentação de juntar suas vivências telepáticas e visões à sua neurose e deriválas dela embora também aqui não devamos nos iludir acerca da força persuasiva de nossas proposições Apenas colocamos possibilid ades compreensíveis no lugar do que é desconhecido e incompreensível Em 22 de agosto de 1914 às dez horas da manhã a missivista tem a percepção telepática de que seu irmão que se acha na frente de guerra grita Mãe mãe O fenômeno é puramente acústico repetese pouco depois mas ela nada enxerga Dois di as depois ela vê sua mãe e a encontra muito abatida pois o jovem anunciouse a ela gritando repetidamente Mãe mãe Ela se lembra que a mesma mensagem telepática lhe foi trans mitida naquele mesmo instante e realmente se verifica após al gumas semanas que o jovem soldado havia morrido naquele dia na hora assinalada Não pode ser provado mas também não pode ser descartado que tenha acontecido o seguinte na verdade A mãe lhe comu nicou um dia que o filho se manifestara telepaticamente Imedi atamente surgiu nela a convicção de que tivera a mesma exper iência naquele instante Tais ilusões de memória aparecem com força coerciva que retiram de uma fonte real mas transformam realidade psíquica em realidade material O forte nessa ilusão de memória é poder se tornar uma boa expressão para a tendência 182300 presente na irmã de identificarse com a mãe Você se preocupa com o garoto mas eu sou a mãe dele O grito era dirigido para mim eu é que recebi a mensagem telepática Naturalmente a irmã rejeitaria com firmeza a nossa tentativa de explicação e se apegaria à crença na autenticidade de sua vivência E não poder ia agir de outra forma Tem de acreditar na realidade do efeito patológico enquanto lhe é desconhecida a realidade da pres suposição inconsciente A força e a natureza inatacável de todo delírio se devem ao fato de procederem de uma realidade psíquica inconsciente Quero mencionar também que não nos cabe explicar a experiência da mãe nem investigar sua autenticidade Mas o irmão falecido não é apenas o filho imaginário de nossa missivista também representa um rival que já no nascimento foi recebido com ódio A grande maioria dos pressentimentos telepáticos diz respeito à morte ou à possibilidade de morte aos pacientes que nos informam sobre a frequência e a infalibilidade de suas sombrias premonições nós podemos demonstrar com a mesma regularidade que eles abrigam fortes desejos incon scientes de morte em relação aos entes mais próximos e por isso há muito tempo os suprimem O paciente cuja história relatei nas Observações sobre um caso de neurose obsessiva de 1909 era um exemplo disso seus parentes o chamavam também de pássaro de mau agouro mas quando esse homem amável e in teligente que depois desapareceu na guerra começou a mel horar ele próprio me ajudou a esclarecer seus ilusionismos psicológicos Também a informação contida na carta de nosso primeiro missivista de que ele e seus três irmãos acolheram a notícia da morte do irmão mais novo como algo que havia muito 183300 sabiam interiormente não parece necessitar de outra explicação Os irmãos mais velhos teriam desenvolvido cada qual para si a convicção da superfluidade desse novo rebento Eis outra visão de nossa sonhadora que talvez se torne mais compreensível mediante a percepção psicanalítica As amigas têm é evidente uma grande importância em sua vida afetiva A morte de uma delas foilhe anunciada recentemente por batidas na cama de uma colega de quarto no sanatório Uma outra amiga se casou muitos anos atrás com um viúvo que tinha muitos fil hos cinco Na casa dela lhe aparecia regularmente em suas vis itas uma dama que ela imaginou ser a falecida primeira mulher o que não pôde ser confirmado logo e apenas sete anos mais tarde ao acharem uma nova fotografia da defunta ela teve cer teza daquilo Essa experiência visionária se acha na mesma de pendência íntima dos complexos familiares da missivista nossos conhecidos que seu pressentimento da morte do irmão Ao se identificar com a amiga pôde encontrar na pessoa dela a realiza ção de seu desejo já que todas as filhas mais velhas de famílias numerosas cultivam no inconsciente a fantasia de se tornar com a morte da mãe a segunda mulher do pai Se a mãe adoece ou morre a filha mais velha toma naturalmente seu lugar em re lação aos irmãos e também com o pai pode assumir uma parte das funções da esposa O desejo inconsciente preenche a outra parte Isso é o que queria lhes comunicar Acrescentarei ainda a ob servação de que os casos de mensagem ou experiência telepática aqui discutidos relacionamse claramente a emoções que per tencem ao âmbito do complexo de Édipo Isso pode parecer sur preendente mas não deve ser visto como nenhuma grande descoberta Voltemos ao resultado obtido na investigação do 184300 sonho em nosso primeiro caso A telepatia nada tem a ver com a natureza do sonho também não pode aprofundar nossa com preensão analítica do sonho Por outro lado a psicanálise pode fazer avançar o estudo da telepatia na medida em que com o auxílio de suas interpretações torne mais inteligíveis algumas obscuridades dos fenômenos telepáticos ou pela primeira vez demonstre que outros fenômenos ainda duvidosos são realmente de natureza telepática O que resta da aparente relação íntima entre telepatia e sonho é o fato inegável de que o sono favorece a telepatia Claro que ele não é uma condição indispensável para o surgimento de fenô menos telepáticos consistam eles em mensagens ou em ativid ade inconsciente Se os senhores ainda não sabiam disso podem percebêlo pelo nosso segundo exemplo em que o jovem se anuncia entre nove e dez da manhã Mas é preciso dizer que não se podem contestar as observações telepáticas porque o evento e a premonição ou mensagem não ocorreram na mesma hora as tronômica É perfeitamente concebível que uma mensagem telepática chegue no mesmo instante do evento e contudo só durante o sono da noite seguinte ou também na vida desperta mas após algum tempo durante uma pausa da atividade intelec tual seja percebida pela consciência Pois também achamos que o sonho não começa a se formar apenas quando se instaura o sono necessariamente Muitas vezes os pensamentos oníricos latentes podem ter sido preparados ao longo do dia até que dur ante a noite entram em contato com o desejo inconsciente que os transforma em sonho Mas se o fenômeno telepático é apenas uma realização do inconsciente não há um novo problema as leis da vida psíquica inconsciente se aplicam também à telepatia 185300 Terei lhes dado a impressão de que sorrateiramente me in clino pela realidade da telepatia no sentido ocultista Se assim for lamento muito que seja difícil evitar essa impressão Pois procurei realmente ser imparcial Tenho todas as razões para isso pois não tenho juízo formado nada sei a respeito do tema Este trabalho parece ter sido concebido como uma palestra para a Sociedade Psicanalítica de Viena embora não haja evidência de ela realmente ter sido ministrada Freud se refere a Wilhelm Stekel Die Sprache des Traumes A linguagem do sonho Wiesbaden 1911 a guerra mencionada é naturalmente a Primeira Guerra 1 Em dois textos do autor mencionado W Stekel Der telepathische Traum O sonho telepático sem ano de publicação e Die Sprache des Traumes 2a ed 1922 há pelo menos esboços de aplicação da técnica psicanalítica a sonhos supostamente telepáticos O autor manifesta sua crença na realidade da telepatia Instintos psíquicos seelische Instinkte no original Ativase no reprimido este desejo inconsciente é o que consta no original wird im Verdrängten der unbewußte Wunsch rege embora fosse antes de esperar ativase no inconsciente este desejo reprimido Cf duas notas de Freud em A interpretação dos sonhos cap vi parte i e cap vii parte D Ondas do mar e do amor Des Meeres und der Liebe Wellen título de uma peça do dramaturgo austríaco Franz Grillparzer 17911872 Freud se refere ao ensaio Träume der Ahnungslosen Sonhos dos que não desconfiam que não fazem ideia do que seja de Sandor Ferenczi Interna tionale Zeitschrift für Psychoanalyse v 9 n 69 1917 186300 Na edição alemã está sr G o que é evidentemente um erro como já foi apontado por alguns leitores e tradutores G é o nome de família do genro do sr H o homem que relata o sonho cf p 180 Tratase do célebre caso do Homem dos ratos 1909 187300 SOBRE ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO CIÚME NA PARANOIA E NA HOMOSSEXUALIDADE 1922 TÍTULO ORIGINAL ÜBER EINIGE NEUROTISCHE MECHANISMEN BEI EIFERSUCHT PARANOIA UND HOMOSEXUALITÄT PUBLICADO PRIMEIRAMENTE NA INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE V 8 N 3 PP 24958 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII PP 195207 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 21728 A O ciúme é um dos estados afetivos que como o luto podem ser designados como normais Quando parece estar ausente no caráter e na conduta de alguém justificase concluir que sofreu uma forte repressão e por isso tem um papel tanto maior na vida psíquica inconsciente Os casos de ciúme anormalmente in tenso encontrados na análise mostramse constituídos de três camadas Esses estratos ou estágios do ciúme podem receber os nomes de 1 competitivo ou normal 2 projetado 3 delirante Acerca do ciúme normal há pouco a dizer psicanaliticamente É fácil ver que ele se constitui essencialmente do luto da dor pelo objeto amoroso que se acredita haver perdido e da injúria narcísica na medida em que esta se diferencia da outra e tam bém de sentimentos hostis pelo rival favorecido e de um grau maior ou menor de autocrítica que busca responsabilizar o próprio Eu pela perda amorosa Este ciúme embora o chamemos de normal está longe de ser inteiramente racional isto é nascido de relações presentes proporcional às circunstân cias reais e totalmente governado pelo Eu consciente pois é pro fundamente enraizado no inconsciente dá continuidade aos primeiros impulsos da afetividade infantil e vem do complexo de Édipo ou do complexo de irmãos do primeiro período sexual No entanto é digno de nota que algumas pessoas o experimentem de forma bissexual ou seja pode haver no homem além da dor pela mulher amada e do ódio pelo rival tristeza por causa do homem inconscientemente amado e ódio pela mulher como rival num ciúme reforçado Sei também de um homem que so fria enormes ataques de ciúme e que segundo seu próprio relato sentia tormentos atrozes ao se pôr conscientemente no lugar da mulher infiel A sensação de completo desamparo que então ex perimentava as imagens com que descrevia seu estado aban donado à sanha do abutre como Prometeu ou lançado a um ninho de cobras amarrado ele próprio ligava às impressões deixadas por alguns ataques homossexuais quando era menino O ciúme da segunda camada o projetado deriva tanto no homem como na mulher da própria infidelidade realmente prat icada ou de impulsos à infidelidade que cederam à repressão A experiência cotidiana mostra que a fidelidade sobretudo aquela exigida no casamento é mantida em face de contínuas tentações Quem as nega em si próprio contudo sente sua pressão de forma tão intensa que faz uso de um mecanismo inconsciente para se aliviar Obtém esse alívio essa absolvição perante sua consciência quando projeta seus próprios impulsos à infidelid ade no parceiro ao qual deve fidelidade Esse forte motivo pode então servirse das percepções que revelam o mesmo tipo de im pulso inconsciente no outro e a pessoa poderia justificarse com a reflexão de que o parceiro ou parceira provavelmente não é também muito melhor do que ela1 Os costumes sociais levaram sabiamente em conta esse fato concedendo alguma margem ao anseio de agradar da mulher casada e ao anseio de conquistas do marido esperando assim de safogar e tornar inofensiva a imperiosa tendência à infidelidade A convenção estabelece que nenhum dos dois deve considerar os pequenos passos do outro na direção da infidelidade e geral mente consegue que o desejo provocado pelo novo objeto en contre satisfação no próprio objeto num certo retorno à fidelid ade Mas o indivíduo ciumento não quer admitir essa tolerância convencional não acredita que haja uma parada ou uma volta no caminho encetado que o flerte social possa representar um 190300 seguro contra a real infidelidade Ao tratar um ciumento como esse não devemos contestar o material em que ele se apoia po demos apenas procurar induzilo a uma outra avaliação do material É certo que o ciúme originado de uma tal projeção tem caráter quase delirante mas ele não resiste ao trabalho analítico que revela as fantasias inconscientes da própria infidelidade Mais problemático é o ciúme do terceiro estágio o verdadeiramente delirante Também ele provém de reprimidas inclinações à infi delidade mas os objetos dessas fantasias são do mesmo sexo do indivíduo O ciúme delirante corresponde a uma homossexualid ade desandada e justificadamente toma seu lugar entre as formas clássicas da paranoia Como tentativa de defesa de um impulso homossexual extremamente forte ele pode ser descrito no homem com a seguinte fórmula Não sou eu quem o ama é ela2 Num caso de delírio de ciúme devemos estar preparados para encontrar ciúme de todas as três camadas nunca da terceira somente B Paranoia Por razões já conhecidas os casos de paranoia não se prestam geralmente à investigação psicanalítica No entanto o estudo intenso de dois paranoicos me possibilitou descobrir algo novo recentemente O primeiro caso foi o de um homem jovem com ciúme para noico bem desenvolvido tendo por objeto a esposa que era imaculadamente fiel Já havia passado por uma fase 191300 tempestuosa em que o delírio o dominara continuamente Quando o conheci tinha apenas ataques isolados que duravam alguns dias e curiosamente apresentavamse no dia seguinte ao de um ato sexual aliás satisfatório para os dois É lícito con cluir que a cada vez após a satisfação da libido heterossexual o componente homossexual simultaneamente estimulado im punha sua expressão com o ataque de ciúmes Os ataques retiravam seu material da observação de pequenos indícios imperceptíveis para outra pessoa nos quais se revelava para ele o inconsciente coquetismo da mulher Ora a sua mão havia roçado sem querer no homem sentado junto a ela ora o seu rosto se havia inclinado demasiadamente na direção dele ou mostrado um sorriso mais radiante do que quando ela estava sozinha com o marido Ele demonstrava uma atenção ex traordinária para essas manifestações do inconsciente da esposa e sempre sabia como interpretálas corretamente de modo que sempre tinha razão e podia invocar também a análise para justi ficar seu ciúme Na verdade sua anormalidade se reduzia ao fato de que observava mais agudamente e dava bem mais importân cia ao inconsciente da mulher do que um outro pensaria em fazer Lembramonos de que também os paranoicos perseguidos se comportam de maneira muito semelhante Também eles nada veem de indiferente nos outros e em seu delírio de referências utilizam os menores sinais que esses outros desconhecidos lhes dão O sentido do seu delírio de referências é que esperam de to dos os desconhecidos algo assim como amor mas os outros não demonstram nada disso sorriem consigo mesmos agitam suas bengalas ou até mesmo cospem no chão ao passar por ele e isso realmente não se faz quando se tem algum interesse amigável na 192300 pessoa que está próxima Fazse isso apenas quando há indifer ença para com a pessoa quando se pode tratála como se fosse ar e com a afinidade básica entre as noções de desconhecido e inimigo o paranoico não está tão errado ao sentir tal indifer ença como hostilidade em relação à sua exigência de amor Começamos a suspeitar que descrevemos de maneira insatis fatória o comportamento do paranoico ciumento e do perseguido ao dizer que eles projetam para fora para outros o que não querem perceber no seu próprio interior Certamente eles o fazem mas não projetam no vazio ali onde não se acha nada semelhante são guiados por seu conhecimento do inconsciente isto sim e deslocam para o inconsciente do outro a atenção que desviam do seu próprio inconsciente Nosso marido ciumento reconhece a infidelidade da esposa em vez da sua própria ao se tornar consciente e magnificar enormemente a infidelidade da mulher ele consegue manter inconsciente a sua própria Se tomamos esse exemplo como paradigmático po demos concluir que também a hostilidade que o perseguido sente nos outros é reflexo dos próprios sentimentos hostis para com esses outros Como sabemos que no paranoico é justamente a pessoa mais querida do mesmo sexo que se torna o perseguid or surge a questão de qual a procedência dessa reversão do afeto e a resposta que se oferece é que a ambivalência afetiva continuamente presente fornece a base para o ódio e o não cumprimento das reivindicações de amor o reforça Assim a am bivalência de sentimentos presta ao perseguido o mesmo serviço a defesa contra a homossexualidade que o ciúme presta ao nosso paciente Os sonhos do meu paciente ciumento constituíram uma grande surpresa Não se apresentaram simultaneamente à 193300 irrupção do ataque de ciúme mas ainda na vigência do delírio e eram no entanto completamente livres de delírio e deixavam perceber os impulsos homossexuais subjacentes com disfarce não maior que o habitual Como tinha pouca experiência com sonhos de paranoicos tendi a supor que de modo geral a para noia não penetra no sonho Não era difícil observar o estado homossexual nesse paciente Ele não havia formado amizades nem interesses sociais tinhase a impressão de que somente o delírio se encarregara de desen volver suas relações com os homens como que para recuperar um tanto do que fora negligenciado A pouca importância do pai em sua família e um vergonhoso trauma homossexual na infân cia haviam se combinado para reprimir sua homossexualidade e obstruirlhe a via da sublimação Toda a sua infância e ad olescência fora dominada por uma forte ligação à mãe Entre os vários filhos ele era o favorito declarado da mãe e desenvolveu em relação a ela um forte ciúme de tipo normal Mais tarde quando escolheu esposa governado essencialmente pelo motivo de tornar a mãe rica sua necessidade de uma mãe virgem se manifestou em dúvidas obsessivas quanto à virgindade da noiva Os primeiros anos de seu casamento foram livres de ciúme De pois ele foi infiel à esposa e deu início a uma longa relação com outra mulher Apenas quando amedrontado por uma certa sus peita ele pôs fim a esse caso amoroso irrompeu nele o ciúme do segundo tipo projetivo com o qual pôde mitigar suas recrimin ações pela infidelidade Logo o ciúme foi complicado pelo ac réscimo dos impulsos homossexuais que tinham o sogro por ob jeto e se tornou um completo ciúme paranoico Sem análise provavelmente o meu segundo caso não seria classificado como paranoia persecutoria mas tive de vêlo 194300 como candidato a esse desfecho patológico Nele havia uma am bivalência na relação com o pai que era de extraordinária amp litude Por um lado ele era o mais decidido rebelde que em tudo se afastara ostensivamente dos ideais e desejos do pai e por outro em camada mais profunda era ainda o mais submisso dos filhos que após a morte do pai se privava do gozo das mulheres numa afetuosa consciência de culpa Suas efetivas relações com os homens se achavam claramente sob o signo da desconfiança com seu agudo intelecto ele racionalizava essa atitude e sabia dispor as coisas de modo a ser enganado e explorado por amigos e conhecidos O que com ele aprendi foi que pensamentos perse cutórios clássicos podem estar presentes sem que achem crédito e valor Eles transpareciam ocasionalmente durante a análise mas ele não lhes dava importância e deles troçava sempre Assim pode ocorrer em muitos casos de paranoia e ao irromper essa enfermidade talvez tomemos as ideias delirantes por novas produções quando terão existido há muito tempo Uma descoberta importante pareceme ser que um fator qual itativo a presença de determinadas formações neuróticas tem menor significação prática do que o fator quantitativo o grau de atenção ou mais corretamente a medida de investimento que tais formações podem atrair A discussão de nosso primeiro caso do ciúme paranoico levounos à mesma apreciação do fator quantitativo ao nos mostrar que a anormalidade ali consistia essencialmente no superinvestimento das interpretações do in consciente alheio Há muito conhecemos um fato semelhante da análise da histeria As fantasias patogênicas derivativos de im pulsos instintuais reprimidos são toleradas longamente junto à vida psíquica normal e não produzem efeito patogênico até que por uma reviravolta da economia libidinal recebem um 195300 superinvestimento só então eclode o conflito que leva à form ação de sintoma Assim com o progresso de nosso conhecimento somos impelidos cada vez mais a situar em primeiro plano o ponto de vista econômico Gostaria também de perguntar se o fator quantitativo aqui enfatizado não basta para responder pelos fenômenos para os quais Bleuler e outros propuseram re centemente o conceito de ligação Schaltung Seria preciso apenas supor que um aumento da resistência numa direção do fluxo psíquico tenha por consequência o superinvestimento de uma outra via e com isso a inserção desta no fluxo Em meus dois casos de paranoia evidenciouse uma instrutiva contraposição nos sonhos Enquanto no primeiro caso eles eram sem delírios como já disse o outro paciente produziu sonhos persecutórios em grande número que podem ser vistos como precursores ou substitutos das ideias delirantes de mesmo con teúdo O perseguidor do qual ele escapava com grande angústia era geralmente um touro ou algum outro símbolo de virilidade que às vezes ele próprio reconhecia no sonho mesmo como rep resentação do pai Certa vez relatou um sonho de transferência paranoico bem característico Viame fazendo a barba em sua presença e notava pelo odor que eu utilizava o mesmo sabão que seu pai Eu o fazia para obrigálo à transferência do pai para a minha pessoa A escolha da situação do sonho demonstrava in equivocamente o menosprezo do paciente por suas fantasias paranoicas e sua descrença quanto a elas pois a evidência cotidi ana lhe mostrava que eu poderia usar sabão de barbear na situ ação em que nos achávamos e que nesse ponto não oferecia portanto nenhuma base para a transferência paterna A comparação dos sonhos de nossos pacientes nos ensina porém que a questão de a paranoia ou outra psiconeurose 196300 poder ou não penetrar nos sonhos repousa numa concepção equivocada dos sonhos O sonho se distingue da vigília pelo fato de aceitar conteúdos do âmbito do reprimido que não podem ocorrer na vigília À parte isso ele é apenas uma forma de pensamento uma transformação do material de pensamento préconsciente mediante o trabalho do sonho e suas condições Nossa terminologia das neuroses não é aplicável ao reprimido este não pode ser chamado de histérico obsessivo ou paranoico Já a outra parte do material que é sujeito à formação do sonho os pensamentos préconscientes pode ser normal ou ter o caráter de qualquer neurose Os pensamentos préconscientes podem ser resultado de todos aqueles processos patogênicos em que divisamos a essência de uma neurose Não vemos motivo por que toda ideia patológica assim não deveria ser transform ada num sonho Logo um sonho pode corresponder a uma fantasia histérica uma ideia obsessiva um delírio ou seja revelarse como tal na interpretação Pela nossa observação de dois paranoicos o sonho de um é normal enquanto o indivíduo sofre de um acesso e o do outro tem um conteúdo paranoico en quanto o indivíduo zomba de suas ideias delirantes Portanto nos dois casos o sonho acolheu o que então fora repelido na vida desperta Mas isso também não é necessariamente a regra C Homossexualidade O reconhecimento do fator orgânico da ho mossexualidade não nos dispensa da obrigação de estudar os processos psíquicos envolvidos na sua gênese O processo típico já verificado em inúmeros casos consiste em que alguns anos 197300 após o fim da puberdade o adolescente que até então se fixava fortemente na mãe realiza uma mudança identificase com a mãe e busca objetos amorosos em que possa reencontrar a si mesmo que gostaria de amar como a mãe o amou Característica desse processo é que normalmente por muitos anos uma con dição necessária do amor será que os objetos masculinos têm que ter a idade em que nele ocorreu a transformação Tomamos conhecimento de vários fatores que provavelmente contribuem em graus diferentes para esse resultado Primeiro a fixação na mãe que dificulta a passagem para um outro objeto feminino A identificação com a mãe resulta desse vínculo de objeto e possib ilita ao mesmo tempo que o filho permaneça em determinado sentido fiel a esse primeiro objeto Depois a tendência à escolha narcísica de objeto que geralmente está mais próxima e é mais facilmente realizável do que o direcionamento para o outro sexo Por trás desse fator se acha um outro de intensidade particular ou talvez coincida com ele a elevada estima do órgão masculino e a incapacidade de abdicar de sua presença no objeto amoroso A pouca estima pela mulher a aversão e até mesmo horror a ela procedem geralmente da descoberta feita bastante cedo de que a mulher não possui pênis Mais tarde também vimos como po deroso motivo para a escolha homossexual de objeto a consider ação pelo pai ou o medo dele pois a renúncia à mulher tem a sig nificação de que se foge à competição com ele ou com todos os indivíduos do sexo masculino que o substituam Os dois últimos motivos a insistência em que haja o pênis e o afastamento po dem ser juntados ao complexo de castração Apego à mãe nar cisismo medo da castração esses fatores de modo algum es pecíficos aliás encontramos até aqui na etiologia psíquica da homossexualidade e a eles se agregaram também a influência da 198300 sedução que causa uma fixação prematura da libido e do fator orgânico que favorece o papel passivo na vida amorosa Nós nunca acreditamos porém que essa análise da gênese da homossexualidade fosse completa Hoje posso indicar um novo mecanismo que leva à escolha homossexual de objeto embora não consiga dizer até onde vai seu papel na configuração da ho mossexualidade extrema manifesta e exclusiva A observação me fez atentar para alguns casos em que haviam surgido na primeira infância impulsos de ciúme particularmente fortes ori undos do complexo materno dirigidos contra rivais geralmente irmãos mais velhos Esse ciúme levou a atitudes bastante hostis e agressivas em relação aos irmãos que podiam chegar até ao desejo de morte mas que cederam durante o desenvolvimento Sob o influxo da educação e também certamente pela contínua impotência desses impulsos houve a repressão deles e uma transformação afetiva de maneira que os antigos rivais se torn aram os primeiros objetos amorosos homossexuais Uma tal solução para o apego à mãe mostra várias relações interessantes com outros processos que conhecemos Primeiro é a contra partida cabal do desenvolvimento da paranoia persecutoria em que as pessoas primeiramente amadas se tornam os perseguid ores odiados enquanto aqui os rivais odiados se transformam em objetos de amor Além disso representa uma exageração do processo que segundo a minha concepção leva à gênese indi vidual dos instintos sociais3 Tanto aqui como ali há inicial mente impulsos de ciúme e hostilidade que não podem obter sat isfação e os sentimentos de identificação afetuosos e sociais aparecem como formações reativas contra os impulsos agress ivos reprimidos 199300 Esse novo mecanismo da escolha homossexual de objeto a origem na rivalidade superada e na tendência reprimida à agressão misturase em alguns casos às condições típicas que já conhecemos Não é raro ouvirmos de um homossexual que a mudança ocorreu depois que a mãe elogiou e destacou como modelo um outro menino Assim foi estimulada a tendência à escolha narcísica de objeto e após uma breve fase de ciúme in tenso o rival se tornou objeto de amor Fora isso no entanto o novo mecanismo se distingue pelo fato de nele a transformação acontecer num período bem anterior e a identificação com a mãe passar para segundo plano E também nos casos por mim obser vados ele levou apenas a posturas homossexuais que não ex cluíam a heterossexualidade e não envolviam horror feminae horror à mulher Sabese que bom número de indivíduos homossexuais se cara cteriza por um particular desenvolvimento dos impulsos instin tuais sociais e pela dedicação a interesses da comunidade Somos tentados a oferecer a seguinte explicação teórica para isso um homem que vê possíveis objetos amorosos em outros homens se comportará em relação à comunidade dos homens diferente mente de outro que enxerga nos homens antes de tudo rivais no tocante à mulher Mas cabe lembrar que também no amor ho mossexual há ciúme e rivalidade e que a comunidade dos ho mens também inclui esses possíveis rivais No entanto mesmo sem considerar essa fundamentação especulativa o fato de a escolha homossexual de objeto não raro se originar de uma pre coce superação da rivalidade com os homens não pode deixar de ter importância para o nexo entre homossexualidade e senti mento social 200300 Na perspectiva psicanalítica estamos habituados a ver os sen timentos sociais como sublimações de posturas homossexuais ante os objetos Nos homossexuais com interesse social mar cante os sentimentos sociais não teriam logrado se desligar totalmente da escolha objetal Tristeza Trauer em alemão a mesma palavra também se traduz por luto como na frase inicial do texto e no ensaio Luto e melancolia de 1915 1 Cf a cantiga de Desdêmona Shakespeare Otelo ato iv cena 3 I called my love false love what answered he then If I court more women you will couch with more men Chamei de falso o meu amor que respondeu ele então Se eu cortejar outras mulheres dormirás com outros homens No original einer vergorenen Homossexualität em que o qualificativo é o particípio passado de vergären fermentar desandar as versões estrangeir as consultadas apresentam omissão na antiga tradução espanhola fer mentada che ha seguito il suo corso that has run its course 2 Cf meu exame do caso Schreber Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia dementia paranoides relatado em autobiografia 1911 Freud usa o latim nessa expressão por isso não há acento no adjetivo James Strachey chama a atenção para o nexo entre esta passagem e a con cepção do aparelho psíquico que Freud havia apresentado no manuscrito Es boço de uma psicologia de 1895 3 Ver Psicologia de massas e análise do Eu 1921 201300 UMA NEUROSE DO SÉCULO XVII ENVOLVENDO O DEMÔNIO 1923 TÍTULO ORIGINAL EINE TEUFELSNEUROSE IM SIEBZEHNTEN JAHRHUNDERT PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO 9 NO 1 PP 134 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII PP 31753 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 283319 PREFÁCIO Aprendemos no estudo das neuroses infantis que nelas podem ser vistas facilmente várias coisas que mais tarde se dão a con hecer apenas com o estudo aprofundado Podemos ter uma ex pectativa semelhante em relação às doenças neuróticas de outros séculos desde que estejamos dispostos a reconhecêlas sob nomes diferentes dos das neuroses de hoje Não devemos nos surpreender se as neuroses de tempos passados aparecerem sob roupagem demonológica enquanto as de nossa pouco psicoló gica época atual tomam aspecto hipocondríaco disfarçadas de enfermidades orgânicas É sabido que vários autores Charcot entre eles identificaram as manifestações da histeria nas repres entações de possessão e êxtase que a arte nos deixou se as histórias desses doentes tivessem recebido mais atenção na épo ca não teria sido difícil reencontrar nelas os conteúdos típicos da neurose A teoria demonológica daqueles tempos obscuros teve razão afinal diante de todas as concepções somáticas da era da ciência exata As possessões correspondem a nossas neuroses para cuja explicação novamente recorremos a poderes psíquicos Os demônios são para nós desejos maus rejeitados são derivados de impulsos instintuais repudiados reprimidos Nós apenas re cusamos a projeção dessas entidades psíquicas no mundo exter no que a Idade Média realizava entendemos que se originaram na vida interior dos doentes onde habitam I A HISTÓRIA DO PINTOR CHRISTOPH HAITZMANN Devo ao gentil interesse do Hofrat dr R PayerThurn diretor da então Fideikommiβbibliothek régioimperial em Viena o con hecimento de uma neurose demonológica desse tipo ocorrida no século xvii Ele descobriu na biblioteca um manuscrito proveni ente do santuário de Mariazell em que é narrada minu ciosamente a milagrosa redenção de um pacto com o demônio por graça da Virgem Maria Seu interesse foi despertado pela re lação desse tema com a lenda de Fausto e o levará a empreender uma edição e apreciação detalhada do material Como ele observou no entanto que a pessoa redimida na história sofria de visões e convulsões procuroume para uma opinião médica sobre o caso Combinamos que nossos trabalhos seriam inde pendentes um do outro e publicados separadamente Quero re gistrar meu agradecimento por sua iniciativa e pela ajuda que me prestou no exame do manuscrito Esse caso clínicodemonológico é realmente um achado valioso que se evidencia sem maior interpretação como uma jazida a oferecer o metal puro que em outros locais temos de ex trair penosamente do minério bruto O manuscrito do qual disponho de uma cópia exata dividese em duas partes bem diferentes o relato em latim do escriba ou compilador monástico e trechos do diário do paciente redigidos em alemão A primeira seção contém um prefácio e a cura mil agrosa propriamente a segunda pode não ter sido relevante para 204300 os religiosos tanto mais valor tem para nós Ela contribui para dar firmeza a nosso juízo dessa história clínica que de outra forma seria hesitante e temos bons motivos para agradecer aos religiosos o fato de haverem conservado esse documento em bora ele não pudesse favorecer suas opiniões podia isto sim contrariálas Antes de examinar a composição da pequena brochura manuscrita intitulada Tropheum MarianoCellense devo re latar uma parte de seu conteúdo que se acha no prefácio Em 5 de setembro de 1677 o pintor Christoph Haitzmann da Baviera foi levado a Mariazell com uma carta do pastor de Pot tenbrunn na Baixa Áustria um lugarejo próximo1 Segundo a carta ele se achava em Pottenbrunn por alguns meses exer cendo sua arte em 29 de agosto foi tomado de terríveis con vulsões na igreja e quando estas se repetiram nos dias sub sequentes o praefectus dominii Pottenbrunnensis prefeito do domínio de Pottenbrunn o examinou perguntando o que o oprimia e se ele teria entrado em comércio ilícito com o espírito mau Ao que ele admitiu que realmente nove anos antes numa época de desalento com sua arte e dúvida com a sobrevivência havia cedido ao Demônio que o tentara em nove ocasiões e se comprometera por escrito a pertencerlhe de corpo e alma após aquele período O fim do prazo se aproximava seria em 24 daquele mês setembro2 O infeliz se arrependia e estava con vencido de que apenas a graça da mãe de Deus em Mariazell poderia salválo obrigando o Maligno a devolverlhe a promessa redigida em sangue Por esse motivo o pastor se permitia re comendar miserum hunc hominem omni auxilio destitutum 205300 esse homem miserável destituído de todo auxílio à benevolên cia dos senhores de Mariazell Isso conforme o pastor de Pottenbrunn Leopold Braun em 1o de setembro de 1677 Podemos agora proceder à análise do manuscrito Ele se com põe de três partes 1 Uma página de rosto colorida que traz as cenas da assinatura do pacto e da redenção na capela de Mariazell Na página seguinte há oito desenhos também em cores das apar ições posteriores do Demônio com breves legendas em alemão Essas imagens não são originais são cópias como é solene mente assegurado cópias fiéis das pinturas de Christoph Haitzmann 2 O Tropheum MarianoCellense propriamente em latim obra de um compilador religioso que assina P A E no final e acompanha essas iniciais de quatro versos contendo sua bio grafia A conclusão é um atestado do abade Kilian de S Lambert de 12 de setembro de 1729 em letra diversa da do compilador que certifica a exata concordância do manuscrito e das imagens com o original guardado no arquivo Não é informado em que ano o Trophaeum foi produzido Estamos livres para supor que isso ocorreu no mesmo ano em que o abade Kilian redigiu o atestado ou seja em 1729 ou como 1714 é o último ano mencionado no texto para situar a obra do compilador em algum momento entre 1714 e 1729 O milagre que esse escrito salvaria do esqueci mento se deu em 1677 ou seja de 37 a 52 anos antes 206300 3 O diário do pintor escrito em alemão que vai do período de sua redenção na capela a 13 de janeiro do ano seguinte 1678 Está incluído no texto do Trophaeum pouco antes do fim O núcleo do Trophaeum propriamente dito é formado por duas peças a mencionada carta do pastor de Pottenbrunn Leo pold Braun de 1o de setembro de 1677 e o relato do abade Fran ziscus de Mariazell e S Lambert que descreve a cura milagrosa datado de 12 de setembro de 1677 ou seja poucos dias depois O redator ou compilador P A E forneceu uma introdução que praticamente funde o teor desses dois documentos e além disso alguns trechos de ligação sem maior importância e acrescentou no final um relato sobre as vicissitudes posteriores do pintor conforme uma averiguação feita em 17143 Portanto a história prévia do pintor é contada três vezes no Trophaeum 1 na carta do pastor de Pottenbrunn 2 no solene relato do abade Franziscus 3 na introdução do redator A com paração dessas três fontes revela algumas incoerências que não será irrelevante examinar Agora posso prosseguir com a história do pintor Depois de se entregar longamente à penitência e à oração em Mariazell o Di abo lhe apareceu em forma de dragão alado em 8 de setembro dia do nascimento de Maria por volta da meianoite e lhe de volveu o pacto redigido em sangue Mais adiante veremos para nossa surpresa que na história do pintor Christoph Haitzmann aparecem dois compromissos com o Demônio um escrito com tinta negra e outro posterior com sangue Aquele mencionado na descrição do exorcismo que também pode ser reconhecido na 207300 imagem da página de rosto é o segundo o registrado com sangue Neste ponto talvez nos assalte alguma desconfiança quanto à credibilidade dos relatos advertindonos para não desperdiçar nosso trabalho num produto de superstição monacal Consta que vários religiosos citados pelos nomes deram assistência ao ex orcizado e também presenciaram a aparição de Satã na capela Se fosse afirmado que também viram o dragãodemônio quando esse entregou ao pintor o papel com escrita vermelha Schedam sibi porigentem conspexisset estaríamos diante de várias pos sibilidades não muito agradáveis entre as quais uma alucinação coletiva ainda seria a menos grave Mas o testemunho dado pelo abade Franziscus afasta essa desconfiança De maneira nenhuma ele afirma que também os religiosos que assistiam ao penitente enxergaram o Demônio mas apenas de forma simples e direta que o pintor livrouse de repente dos religiosos que o seguravam correu para o canto da capela onde viu a aparição e retornou com o papel nas mãos4 O milagre foi grande a vitória da mãe do Senhor sobre o Demônio indubitável mas infelizmente a cura não foi duradoura Seja dito em favor dos religiosos mais uma vez que eles tampouco silenciam esse fato O pintor deixou Mariazell pouco tempo depois em bom estado de saúde e foi morar em Viena com uma irmã casada Em 11 de outubro começaram nov os ataques alguns bastante severos conforme o diário mantido até 13 de janeiro Foram visões ausências em que viu e teve ex periência das coisas mais diversas convulsões acompanhadas das mais dolorosas sensações certa vez uma paralisia das pernas etc Mas ali não foi o Demônio que o atormentou foi visitado por 208300 figuras sagradas Cristo e a própria Virgem Maria É curioso que não tenha sofrido menos com essas aparições celestiais e os cas tigos que lhe impuseram do que antes no comércio com o Demônio Também essas novas vivências ele chamou de apar ições do Demônio em seu diário e queixouse de maligni Spirit us manifestationes ao voltar para Mariazell em maio de 1678 O motivo que alegou para a sua volta perante os religiosos foi a necessidade de resgatar junto ao Demônio um outro com promisso anterior redigido com tinta5 Também dessa vez a Virgem Maria e os frades piedosos o auxiliaram em sua de manda Mas o relato não diz como isso aconteceu limitase a es tas palavras qua iuxta votum reddita quando lhe foi restituído conforme sua prece Ele novamente rezou e obteve o contrato de volta Então se sentiu inteiramente livre e entrou para a ordem dos Irmãos da Misericórdia Novamente temos ocasião de reconhecer que não obstante a óbvia tendência que o guiava o compilador não se afastou da veracidade que requeremos de um caso clínico Pois não omite o resultado da indagação sobre o destino do pintor feita ao superi or do convento dos Irmãos da Misericórdia em 1714 O reverendo pater provincialis informa que o irmão Crisóstomo experi mentou ainda inúmeras tentações do Espírito Maligno que desejava induzilo a um novo pacto o que se dava quando ele bebia um tanto mais de vinho mas sempre conseguiu rechaçálas com a graça de Deus O irmão Crisóstomo morreu de tísica calmo e consolado no mosteiro da ordem em Neustatt an der Moldau no ano de 1700 209300 II O MOTIVO DO PACTO COM O DEMÔNIO Se vemos esse compromisso com o Diabo como um caso clínico de neurose nosso interesse se dirige inicialmente para a sua mo tivação que é claro ligase estreitamente àquilo que o ocasion ou Por que um indivíduo se compromete com o Demônio É verdade que dr Fausto pergunta de maneira desdenhosa Que tens a dar pobre Diabo Mas ele se engana pois em troca da alma imortal o Diabo tem a oferecer muitas coisas que os ho mens estimam riqueza proteção dos perigos poder sobre os semelhantes e as forças da natureza também as artes da magia e sobretudo prazer prazer com mulheres bonitas Essas realiza ções ou obrigações do Diabo costumam ser mencionadas expres samente no contrato firmado com ele6 Qual foi para Christoph Haitzmann o motivo do pacto Curiosamente nenhum desses desejos tão naturais Para afastar qualquer dúvida sobre isso basta examinar as breves ob servações que o pintor ajunta a suas ilustrações das visitas do Demônio Eis o que diz a legenda à terceira visão por exemplo Na terceira vez em um ano e meio ele me surgiu como essa figura horrenda com um livro nas mãos que tratava de magia e artes negras Mas na nota a uma aparição posterior somos informados de que o Demônio o repreendeu fortemente por haver queimado o dito livro e ameaçou fazêlo em pedaços se não o restituísse 210300 Na quarta visita ele lhe mostra uma grande bolsa amarela e um ducado enorme e promete lhe dar tantos daquele quantos quiser mas o pintor pode se gabar de que nada peguei daquilo Em outra ocasião ele lhe fala que deve se distrair se entreter Ao que o pintor comenta o que aconteceu conforme seu desejo mas não continuei por mais de três dias e então acabou Como rejeitou artes mágicas dinheiro e prazer ao lhe serem oferecidos pelo Demônio certamente não as teria tornado con dições para o pacto e necessitamos realmente saber o que esse pintor queria mesmo do Demônio quando com ele se compro meteu Algum motivo para se envolver com o Demônio ele teria O Trophaeum também nos dá informação segura sobre esse ponto Ele ficara abatido tornarase incapaz ou indisposto para o trabalho e tinha preocupação com a sobrevivência ou seja so fria de depressão melancólica com inibição do trabalho e preocu pação justificada com sua vida Vemos que de fato lidamos com um caso clínico percebemos também o que ocasionou a doença que o próprio pintor chama de melancolia nas observações que acompanham as imagens que eu devia buscar diversão e es pantar a melancolia É certo que de nossas três fontes apenas a primeira a carta do pastor menciona o estado de depressão dum artis suae progressum emolumentumque secuturum pusillanimis perpenderet sentindose prostrado com o anda mento de sua arte e seus emolumentos futuros mas a segunda o relato do abade Francisco é capaz de designar também a fonte desse desalento ou abatimento pois ali consta acceptâ aliquâ pusillanimitate ex morte parentis sendo tomado de prostração pela morte do pai e de forma correspondente mas com a or dem das palavras alterada na introdução do compilador ex 211300 morte parentis acceptâ aliquâ pusillanimitate Portanto seu pai havia morrido o que o lançou numa melancolia e dele se aproximou o Demônio perguntoulhe por que estava tão triste e acabrunhado e lhe prometeu ajudar e apoiar de toda maneira7 Eis aí portanto alguém que se comprometeu com o Diabo para livrarse de uma depressão do humor Certamente um bom motivo conforme a opinião de todo aquele que busca entender quem sofre os tormentos desse estado e que sabe quão pouco a arte médica pode fazer para aliviálos Mas ninguém que até aqui acompanhou esta narrativa poderá adivinhar o teor exato do compromisso com o Demônio ou melhor dos dois compromis sos do primeiro escrito com tinta e do segundo com sangue aproximadamente um ano depois ambos ao que se diz exist entes na câmara do tesouro de Mariazell e transcritos no Trophaeum Eles nos reservam duas grandes surpresas Primeiro não mencionam obrigação alguma do Diabo em troca da qual o indi víduo penhora a beatitude eterna e sim uma mera solicitação que o pintor deve satisfazer Parecenos totalmente ilógico ab surdo que esse homem entregue sua alma não por algo que rece berá do Diabo mas por algo que realizará para este E ainda mais peculiar é a obrigação do pintor A primeira syngrapha compromisso redigida com tinta preta diz Eu Christoph Haitzmann subscrevome a este Senhor como seu filho e servo por nove anos Ano de 1669 A segunda redigida com sangue Ano de 1669 212300 Christoph Haitzmann Eu me obrigo a este Satã a ser seu filho e servo e em nove anos de corpo e alma lhe pertencer Mas a estranheza desaparece se lemos os compromissos no sentido de que neles é apresentado como solicitação do Demônio o que é na verdade sua realização ou seja solicitação do pintor Assim o pacto incompreensível ganha um significado reto e po deria ser interpretado da seguinte maneira O Demônio se obriga a substituir durante nove anos o pai que o pintor perdeu Ao fim desse período este passa a pertencer ao Demônio de corpo e alma como era habitual nesses contratos O raciocínio que motivou o pacto do pintor parece ter sido este a morte do pai tiroulhe o ânimo e a capacidade de trabalho achando um sub stituto para o pai ele espera reaver aquilo que perdeu Alguém que sucumbiu à melancolia em virtude da morte do pai deve ter amado esse pai É muito singular então que essa pessoa tenha a ideia de tomar o Demônio como substituto do pai amado III O DEMÔNIO COMO SUCEDÂNEO DO PAI Receio que uma crítica sóbria não admitirá que esta nossa rein terpretação tenha revelado o sentido do pacto com o Demônio Levantará duas objeções contra ela Primeira não é necessário ver no compromisso um contrato em que as obrigações das duas partes são enunciadas Ele conteria apenas a obrigação do pin tor a do Demônio ficaria fora do texto como que sousenten due subentendida O pintor se compromete a duas coisas primeiro a ser filho do Demônio por nove anos depois a 213300 pertencerlhe inteiramente após a morte Isso invalida um dos fundamentos de nossa conclusão O segundo reparo diz que não devemos conceder grande valor à expressão filho e servo do Demônio Ela seria uma locução usual que cada qual pode entender à sua maneira tal como fizeram os religiosos Na versão para o latim eles não traduzem a filiação mencionada nos compromissos apenas dizem que o pintor mancipavit tornouse um servo do Maligno obrigouse a levar uma vida pecadora e negar a Deus e à Santíssima Trindade Por que nos afastarmos dessa concepção plausível e natural8 O caso seria simplesmente o de alguém que no tor mento e desamparo de uma depressão melancólica assina um trato com o Demônio a quem atribui enorme poder terapêutico O fato de esse abatimento ser ocasionado pela morte do pai não tem maior importância poderia ter havido um outro ensejo Isso parece razoável e convincente Novamente se faz à psic análise a objeção de complicar sofisticamente coisas simples de ver segredos e problemas onde não existem e realizar isso destacando traços pequenos e secundários encontrados em toda parte e elevandoos a suporte das mais amplas e esquisitas con clusões Argumentaríamos em vão que com essa recusa da psicanálise são ignoradas muitas analogias convincentes e são rompidos nexos sutis que podemos demonstrar neste caso Os adversários dirão que tais analogias e nexos não existem que são introduzidos no caso por nós com excessivo engenho Não iniciarei minha réplica com as palavras sejamos hones tos ou sejamos sinceros pois sempre devemos ser capazes de sêlo sem nos prepararmos especialmente para isso Apenas direi simplesmente que sei muito bem que quando alguém não acredita antes na validade do modo psicanalítico de pensar 214300 tampouco adquirirá essa convicção a partir do caso do pintor Christoph Haitzmann E tampouco é minha intenção utilizálo como evidência da validade da psicanálise antes pressuponho como válida a psicanálise e recorro a ela para elucidar a doença demonológica do pintor A justificativa para este procedimento vem do êxito de nossas investigações sobre a natureza das neur oses em geral Com toda a modéstia é possível afirmar que hoje em dia até os mais embotados entre nossos colegas e contem porâneos começam a perceber que não se obtém compreensão dos estados neuróticos sem ajuda da psicanálise Estas flechas podem conquistar Troia unicamente elas re conhece Ulisses no Filoctete de Sófocles Se é correto ver o pacto demoníaco de nosso pintor como uma fantasia neurótica uma apreciação psicanalítica dele não requer maior apologia Também pequenos sinais têm seu sentido e val or sobretudo nas condições de surgimento da neurose Sem dúvida podemos tanto superestimálos como subestimálos e a medida em que chegamos a utilizálos continua sendo uma questão de tato No entanto se alguém não crê na psicanálise nem no Diabo deve ser deixado por sua conta o que fazer no caso do pintor seja podendo explicálo com seus próprios meios seja não encontrando nada que requeira explicação Retornemos então à nossa hipótese de que o Demônio com que o pintor se compromete é um substituto direto do pai Com isso também se harmoniza a figura com que ele aparece primeiramente como velho burguês respeitável de barba castanha com um chapéu negro bengala na mão direita e um cão negro ao lado Fig 1 p 2379 Depois sua aparência se torna cada vez mais terrível mais mitológica talvez se possa dizer é 215300 dotado de chifres garras de águia e asas de morcego Por fim surge na capela como dragão voador Mais adiante voltaremos a certo detalhe de sua forma física Parece estranho que o Demônio seja escolhido como substi tuto de um pai querido mas apenas quando ouvimos isso pela primeira vez pois sabemos de algumas coisas que podem atenu ar a surpresa Primeiro que Deus é um substituto do pai ou melhor dizendo um pai elevado ou de outra forma ainda uma cópia do pai tal como foi visto e vivenciado na infância o indiví duo em sua própria infância e o gênero humano em sua pré história como pai da horda primitiva Depois o indivíduo o enxergou de outra forma diminuído mas a imagem infantil per maneceu e se fundiu com o traço mnemônico do pai primevo formando a ideia de Deus do indivíduo Sabemos igualmente a partir da vida oculta do indivíduo que a análise desvela que a re lação com esse pai era ambivalente talvez desde o início de toda forma logo se tornou assim isto é compreendeu dois impulsos afetivos opostos não apenas um impulso terno e submisso mas também um hostil e desafiador Segundo nossa concepção a mesma ambivalência governa a relação da espécie humana com sua divindade No interminável conflito entre nostalgia do pai por um lado e medo e rebeldia filial por outro lado encon tramos explicação para importantes características e decisivas vicissitudes das religiões10 Acerca do Demônio malvado sabemos que foi imaginado como contrapartida de Deus e no entanto achase muito próx imo da natureza deste Mas sua história não foi tão bem pesquis ada como a de Deus nem todas as religiões adotaram o espírito mau o adversário de Deus e seu modelo na vida individual per manece obscuro até aqui Uma coisa é certa porém deuses 216300 podem se tornar demônios maus quando novos deuses os rep rimem Quando um povo é conquistado por outro não é raro que os deuses destronados dos vencidos se transformem em de mônios para os vencedores O demônio ruim da fé cristã o Diabo da Idade Média era segundo a própria mitologia cristã um anjo caído de natureza similar à divina Não é preciso muita per spicácia analítica para adivinhar que Deus e o Diabo eram ini cialmente idênticos uma só figura que mais tarde se decompôs em duas com características opostas11 Nos primeiros tempos das religiões o próprio Deus possuía todos os traços apavorantes que depois foram reunidos numa contraparte dele É o processo bem nosso conhecido da decomposição de uma ideia de teor contraditório ambivalente em duas partes niti damente contrárias Mas as contradições da natureza original de Deus são reflexo da ambivalência que domina a relação do indi víduo com seu pai Se o Deus justo e bom é um substituto do pai não devemos nos admirar de que também a atitude hostil que o odeia e teme e dele se queixa tenha vindo a se expressar na cri ação de Satã Portanto o pai seria o protótipo individual tanto de Deus como do Diabo Mas as religiões se achariam sob o efeito inextinguível do fato de que o pai primordial foi um ser de infin ita maldade menos semelhante a Deus que ao Diabo Certamente não é fácil acusar na vida psíquica do indivíduo traços dessa concepção satânica do pai Quando um menino desenha caretas e caricaturas podese demonstrar que nelas está zombando do pai e quando pessoas dos dois sexos têm medo de ladrões e bandidos à noite não há dificuldade em reconhecêlos como dissociações da figura do pai12 Também os animais que aparecem nas zoofobias das crianças são com a maior frequên cia substitutos do pai como o animal totêmico nos tempos 217300 primitivos Mas nunca se viu tão claramente como em nosso pin tor neurótico do século xvii que o Demônio é uma cópia do pai e pode se apresentar como sucedâneo dele Por isso manifestei no início deste trabalho a expectativa de que um caso clínico de monológico dessa espécie nos mostraria como um metal puro aquilo que nas neuroses de uma época posterior não mais su persticiosa mas hipocondríaca tem de ser laboriosamente ex traído mediante o trabalho analítico do minério bruto dos sin tomas e pensamentos espontâneos13 Se nos aprofundarmos na análise da doença de nosso pintor provavelmente adquiriremos uma mais firme convicção Não é algo incomum que um homem sofra de depressão melancólica e inibição no trabalho em consequência da morte do pai Disso concluímos que um amor particularmente forte o ligava a esse pai e nos lembramos da frequência com que também a melan colia grave aparece como forma neurótica do luto Nisso temos razão sem dúvida mas não se concluímos igual mente que essa relação foi de puro amor Pelo contrário o luto após a perda do pai se transformará tanto mais facilmente em melancolia quanto mais a relação com ele se achava sob o signo da ambivalência Enfatizar essa ambivalência no entanto preparanos para a possibilidade de uma depreciação do pai tal como se exprime na neurose demonológica do pintor Se pudéssemos saber tanto de Christoph Haitzmann quanto de um paciente que se submete à análise conosco seria fácil desen volver essa ambivalência fazêlo recordar quando e por quais ensejos teve razão para temer e odiar o pai mas principalmente descobrir os fatores acidentais que se juntaram aos típicos motivos do ódio ao pai inevitavelmente enraizados na relação 218300 natural entre pai e filho Talvez a inibição no trabalho fosse en tão elucidada É possível que o pai tivesse se oposto ao desejo do filho se tornar pintor então a incapacidade deste exercer sua arte após a morte do pai seria expressão da conhecida obed iência a posteriori por um lado e por outro ao tornálo incapaz do sustento próprio faria aumentar a nostalgia do pai como aquele que protege das necessidades da vida Como obediência a posteriori seria também uma manifestação de remorso e uma bemsucedida autopunição Dado que não podemos empreender tal análise com Christoph Haitzmann falecido em 1700 devemos nos limitar a enfatizar ca racterísticas de seu caso clínico que podem remeter a típicas mo tivações para uma atitude negativa frente ao pai São poucas não muito ostensivas mas bem interessantes Primeiro o papel do número nove O pacto com o Demônio foi de nove anos O insuspeito relato do pastor de Pottenbrunn é claro a respeito disso pro novem annis Syngraphen scriptam tradidit entregou um pacto assinado por nove anos Essa carta de apresentação datada de 1o de setembro de 1677 também in forma que o prazo expiraria em pouco tempo quorum et finis 24 mensis hujus futurus appropinquat cujo fim previsto para o dia 24 deste mês está próximo O compromisso portanto seria selado em 24 de setembro de 168814 No mesmo relato o número nove é utilizado em outro momento ainda Nonies nove vezes o pintor teria resistido às tentações do Maligno antes de se render Esse detalhe não é mencionado nos relatos posteriores Post annos novem depois de nove anos achase também no testemunho do abade e o compilador repete ad novem annos 219300 em seu sumário prova de que o número não era visto como algo indiferente O número nove nos é conhecido de fantasias neuróticas É o número de meses da gravidez e sempre que aparece dirige nossa atenção para uma fantasia de gravidez É certo que no caso de nosso pintor são nove anos não nove meses e o nove alguém lembrará é de toda forma um número significativo Mas quem sabe o nove não deve boa parte de seu caráter sagrado ao papel que tem na gravidez e a mudança de nove meses para nove anos não precisa nos desconcertar Sabemos pelos sonhos como a atividade mental inconsciente trata os números Se por exem plo encontramos um cinco num sonho ele sempre pode ser rela cionado a um cinco importante na vida desperta mas se na real idade eram cinco anos de diferença de idade ou um grupo de cinco pessoas no sonho aparecem como cinco notas de dinheiro ou cinco frutas Ou seja o número é conservado mas seu de nominador é substituído à vontade conforme as exigências de condensação e deslocamento Nove anos num sonho podem fa cilmente corresponder a nove meses na realidade O trabalho do sonho brinca também de outra maneira com os números da vida desperta ao desdenhar os zeros com soberana indiferença não os tratando absolutamente como números Cinco dólares num sonho podem representar cinquenta quinhentos 5 mil dólares na realidade Outro detalhe nas relações do pintor com o Demônio nos re mete à sexualidade Na primeira vez como foi mencionado ele viu o Maligno com a aparência de um cidadão honrado Mas já na vez seguinte ele estava nu disforme e tinha dois pares de seios de mulher Em nenhuma das aparições seguintes faltam os 220300 seios em um ou em mais pares Apenas numa delas o Demônio exibe além dos seios um pênis grande que termina como uma serpente Essa ênfase na característica sexual feminina com seios grandes e pendentes jamais há indicação dos genitais fem ininos deve nos parecer uma evidente contradição a nossa hipótese de que o Demônio significa um sucedâneo do pai para nosso pintor Tal representação do Demônio é algo incomum em si Quando ele é uma noção genérica quando surgem demônios no plural a representação de demônios femininos nada tem de estranho mas não me parece ocorrer que o Demônio que é uma forte individualidade o senhor do Inferno e opositor de Deus não seja retratado como masculino ou mesmo supermasculino com chifres cauda e um grande pênisserpente Esses dois pequenos indícios nos possibilitam chegar ao ele mento típico que determina o lado negativo de sua relação com o pai Ele se rebela contra a atitude feminina em relação ao pai que culmina na fantasia de gerarlhe um filho os nove anos Te mos um conhecimento preciso dessa resistência em nossas anál ises onde ela assume formas singulares na transferência e nos dá bastante trabalho Com o luto pelo pai que perdeu com o aumento do anseio por ele é também reativada no pintor a fantasia de gravidez há muito reprimida contra a qual ele tem de se defender mediante a neurose e a depreciação do pai Mas por que o pai rebaixado a Demônio tem a característica física de uma mulher Esse traço parece de difícil interpretação no entanto logo surgem duas explicações para ele que com petem entre si mas não se excluem A postura feminina do ga roto diante do pai sucumbiu à repressão tão logo ele entendeu que a competição com uma mulher pelo amor do pai tinha por condição a perda do próprio genital masculino ou seja a 221300 castração Assim a rejeição da atitude feminina é consequência da revolta contra a castração via de regra tem sua mais forte ex pressão na fantasia oposta de castrar o pai de tornálo mulher Então os seios do Diabo corresponderiam a uma projeção da própria feminilidade no sucedâneo do pai A outra explicação para esse ornamento no corpo do Diabo já não tem significado hostil e sim carinhoso vê nessa conformação um sinal de que a ternura infantil foi deslocada da mãe para o pai e assim alude a uma forte fixação anterior na mãe fixação esta responsável por uma parte da hostilidade em relação ao pai Os seios grandes são o atributo sexual positivo da mãe mesmo numa época em que a característica negativa da mulher a falta de pênis ainda não é do conhecimento da criança15 Se a repugnância em admitir a castração torna impossível para nosso pintor a resolução de sua nostalgia do pai é inteira mente compreensível que ele se volte para a imagem da mãe em busca de auxílio e salvação Por isso declara que apenas a santa Mãe de Deus em Mariazell pode liberálo do pacto com o Demônio e recupera sua liberdade no dia do nascimento da Mãe 8 de setembro Talvez o dia em que o pacto foi selado 24 de setembro tenha sido escolhido de forma semelhante mas isso jamais saberemos Dificilmente alguma outra constatação da psicanálise sobre a vida psíquica das crianças parece tão chocante e indigna de crédito para um adulto normal quanto a atitude feminina di ante do pai e a fantasia de gravidez dela resultante Podemos falar dela sem temor e sem necessidade de desculpas apenas de pois que o juizpresidente do Tribunal de Apelação da Saxônia Daniel Paul Schreber publicou a história de seu adoecimento 222300 psicótico e sua considerável recuperação16 Por essa obra ines timável ficamos sabendo que o juizpresidente adquiriu a firme convicção por volta dos cinquenta anos de vida de que Deus que aliás tem traços de seu pai o insigne médico dr Schreber decidira castrálo utilizálo como mulher e nele gerar uma nova raça de humanos de espírito schreberiano Seu próprio casamento foi sem filhos Ao se revoltar contra essa intenção divina que lhe pareceu totalmente injusta e contrária à ordem das coisas adoeceu com os sintomas de uma paranoia que no entanto regrediu no decorrer dos anos até se tornar um resíduo O inteligente autor do próprio caso clínico não podia imaginar que havia descoberto em si mesmo um fator patogênico típico Alfred Adler tirou do contexto orgânico essa revolta contra a castração ou a atitude feminina ligoua de maneira errada ou ar tificial com a aspiração pelo poder e estabeleceua como um protesto masculino independente Dado que uma neurose pode nascer apenas do conflito entre duas tendências é justificado ver a causa de toda neurose tanto no protesto masculino como na atitude feminina contra a qual se protesta É correto dizer que esse protesto masculino participa regularmente na formação do caráter grandemente em alguns tipos e que nos aparece como clara resistência na análise de homens neuróticos A psic análise reconhece o protesto masculino no contexto do complexo da castração mas não pode sustentar sua onipotência ou oni presença nas neuroses O mais acentuado caso de protesto mas culino que me veio ao encontro com todas as reações e caracter ísticas manifestas necessitou de tratamento devido a uma neur ose obsessiva com ideias obsedantes em que o não resolvido conflito entre atitude masculina e feminina medo da castração e vontade de castração expressavase nitidamente Além disso o 223300 paciente desenvolvera fantasias masoquistas que remontavam ao desejo de aceitar a castração e até mesmo passara das fantas ias à real satisfação em situações perversas Todo o seu estado como a própria teoria de Adler baseavase na repressão na negação de fixações amorosas da primeira infância O juizpresidente Schreber recuperouse quando decidiu abandonar a resistência à castração e conformarse ao papel feminino que Deus lhe destinara Então ficou lúcido e calmo ob teve ele próprio alta da internação e levou uma vida normal ex ceto que dedicava diariamente algumas horas ao cultivo de sua feminilidade na convicção de que ela avançava lentamente em direção à meta estabelecida por Deus IV OS DOIS PACTOS Um detalhe curioso na história do pintor é a informação de que firmou dois compromissos diferentes com o Demônio O primeiro redigido com tinta preta dizia Eu C H subscrevome a este Senhor como seu filho e servo por nove anos E o segundo escrito com sangue CH Eu me obrigo a este Satã a ser seu filho e servo e em nove anos de corpo e alma lhe pertencer Os dois estariam presentes no arquivo de Mariazell quando o Trophaeum foi escrito os dois são do mesmo ano 1669 Já mencionei os dois compromissos algumas vezes e agora me ponho a lidar mais detidamente com eles embora 224300 precisamente nisso haja o perigo de atribuir demasiado valor aos pormenores É realmente insólito o fato de alguém selar dois compromissos com o Demônio de forma que o primeiro é substituído pelo se gundo mas sem perder sua validade Talvez isso não seja tão es tranho para outras pessoas que tenham maior familiaridade com a demonologia De minha parte só podia enxergar nisso uma característica peculiar de nosso caso e comecei a suspeitar de algo mais quando constatei que os relatos não concordam justamente nesse ponto O estudo dessas contradições nos levará de forma inesperada a uma compreensão mais profunda do caso clínico A carta do pastor de Pottenbrunn mostra uma situação bastante simples e clara Nela se fala de apenas um pacto que o pintor redigiu com sangue nove anos antes e que vai expirar proximamente no dia 24 de setembro ou seja teria sido firmado em 24 de setembro de 1668 Infelizmente não é explicitada essa data que podemos inferir com certeza O testemunho do abade Franziscus datado de alguns dias de pois 12 setembro de 1677 como sabemos já se refere a um es tado de coisas mais complicado É natural supor que naquele meiotempo o pintor houvesse dado informações mais precisas Nesse testemunho lemos que o pintor fez dois pactos um em 1668 como teria de ser conforme a carta escrito com tinta preta mas o outro sequenti anno 1669 escrito com sangue O pacto que lhe foi devolvido no dia do nascimento da Virgem foi aquele redigido com sangue ou seja o segundo de 1669 Isso não procede do testemunho do abade pois ali se acha simplesmente 225300 mais adiante schedam redderet deu de volta o papel e schedam sibi porrigentem conspexisset viuo passandolhe o papel como se houvesse um só documento Mas se depreende do curso da história assim como do frontispício em cores do Trophaeum onde se vê claramente na folha que o Demônio em forma de dragão segura uma escrita vermelha Os acontecimen tos posteriores já mencionados foram os seguintes o pintor re tornou a Mariazell em maio de 1678 após sofrer novas tentações do Maligno e solicitou que por uma nova mercê da Mãe de Deus lhe fosse devolvido também o primeiro pacto aquele redigido com tinta O modo como isso ocorreu não se acha descrito tão pormenorizadamente como da primeira vez Lêse apenas quâ iuxta votum redditâ quando lhe foi restituído conforme sua prece e em outro lugar o compilador diz que justamente esse pacto amassado e desfeito em quatro pedaços foi atirado pelo Demônio ao pintor em 9 de maio de 1678 pelas nove horas da noite No entanto os dois pactos têm a mesma data o ano de 1669 Ou essa incoerência nada significa ou nos conduz à seguinte pista Se partimos da exposição do abade sendo ela a mais minu ciosa deparamos com várias dificuldades Quando Christoph Haitzmann confessa ao pastor de Pottenbrunn que se acha em apuros com o Demônio que o prazo logo terminará só pode ter em mente em 1677 o compromisso firmado em 1668 isto é o primeiro em tinta preta que na carta porém é mencionado como o único e designado como aquele escrito com sangue Mas poucos dias depois em Mariazell ele se preocupa somente em ter de volta aquele posterior com sangue que ainda não está 226300 próximo de caducar 166977 e deixa que o primeiro fique ven cido Este é solicitado de volta apenas em 1678 ou seja no décimo ano Além disso por que os dois pactos são datados do mesmo ano de 1669 quando o primeiro é expressamente at ribuído ao anno subsequenti O compilador deve ter percebido essas dificuldades pois faz uma tentativa de resolvêlas Em sua introdução ele adere ao re lato do abade mas o modifica num ponto O pintor diz ele assinou um pacto com o Demônio em 1669 com tinta mas depois deinde vero com sangue Ou seja ele não toma conhecimento da afirmação dos dois relatos de que um pacto é de 1668 e negli gencia a observação no testemunho do abade de que entre os dois pactos houve uma alteração no ano a fim de permanecer em harmonia com a datação dos dois documentos restituídos pelo Demônio No testemunho do abade se acha após as palavras sequenti vero anno 1669 mas no ano seguinte 1669 um trecho entre parênteses que diz sumitur hic alter annus pro nondum com pleto uti saepe in loquendo fieri solet nam eundum annum in dicant Syngraphae quarum atramento scripta ante praesentem attestationem nondum habita fuit aqui é tomado o ano seguinte no lugar daquele não inteiramente decorrido como se costuma fazer na conversação pois o mesmo ano é indicado em ambos os pactos dos quais aquele redigido com tinta não fora ainda de volvido antes do presente testemunho Essa passagem é sem dúvida uma interpolação do compilador pois o abade que viu apenas um pacto não pode declarar que os dois são do mesmo ano E a colocação da passagem entre parênteses devia indicar 227300 que se tratava de um acréscimo de outra pessoa Ela constitui mais uma tentativa de solucionar as contradições por parte do compilador Ele está de acordo em que o primeiro pacto foi de 1668 mas acha que como o ano já se encontrava adiantado setembro o pintor lhe deu o ano seguinte de maneira que os dois pactos apresentassem o mesmo ano Seu argumento de que muitas vezes se faz algo semelhante na linguagem oral me parece condenar toda essa tentativa de explicação como desculpa ruim Não sei se minha exposição do caso produziu alguma im pressão no leitor e se o fez interessarse por tais minúcias Achei impossível estabelecer os fatos de modo indubitável mas o ex ame dessa questão confusa me levou a uma suposição que tem a vantagem de fornecer a mais natural sucessão dos eventos em bora os testemunhos não combinem inteiramente com ela A meu ver quando o pintor foi para Mariazell da primeira vez falou apenas de um pacto escrito com sangue conforme a regra que logo venceria e que portanto fora firmado em setembro de 1668 exatamente como informa a carta do pastor Em Mariazell ele também apresentou esse pacto redigido com sangue como aquele que o Demônio lhe devolvera por pressão de Nossa Sen hora Sabemos o que aconteceu em seguida O pintor deixou o santuário pouco tempo depois e se dirigiu a Viena onde se sen tiu livre até meados de outubro Mas então recomeçaram os so frimentos e aparições nos quais via a obra do Maligno Sentiu novamente que necessitava de redenção mas achouse ante a di ficuldade de explicar por que o exorcismo na capela sagrada não lhe trouxera uma salvação duradoura Como reincidente não curado provavelmente não seria tão bemvindo a Mariazell 228300 Nesse apuro inventou um primeiro pacto anterior mas redigido com tinta para que fosse plausível sua preterição em favor de um posterior escrito com sangue Tendo retornado a Mariazell fez com que lhe fosse devolvido também esse suposto primeiro pacto Então teve sossego com o Maligno ao mesmo tempo con tudo fez outra coisa que nos mostrará o que constitui o pano de fundo dessa neurose Sem dúvida os desenhos foram feitos apenas durante a se gunda permanência em Mariazell o frontispício que é uma só composição apresenta as duas cenas em que houve pacto Na tentativa de harmonizar sua nova história com a anterior ele talvez tenha se embaraçado Eralhe desfavorável que pudesse acrescentar apenas um pacto anterior não um posterior Assim não pôde evitar a desastrada consequência de haver resgatado um pacto aquele com sangue cedo demais com oito anos e o outro com tinta preta tarde demais com dez anos Como indí cio revelador da dupla redação aconteceulhe se enganar na datação dos pactos e situar também o primeiro em 1669 Esse erro tem o sentido de uma honestidade involuntária ele nos permite imaginar que o pacto supostamente anterior foi produz ido ulteriormente O compilador que certamente não se pôs a trabalhar com o material antes de 1714 talvez apenas em 1729 precisou se empenhar em resolver da melhor maneira possível as contradições que não eram pequenas Como os dois pactos que tinha diante de si datavam de 1669 recorreu à desculpa que inter polou ao testemunho do abade Vêse facilmente onde está o ponto fraco dessa construção que é atraente de resto A indicação de dois pactos um em tinta preta e o outro com sangue já se encontra no testemunho do 229300 abade Franziscus Tenho então a escolha suspeitar que o com pilador fez uma alteração no testemunho intimamente relacion ada à interpolação ou reconhecer que não sou capaz de solu cionar a confusão17 Há algum tempo essa discussão toda deve parecer supérflua para o leitor e irrelevantes os detalhes nela tratados Mas a questão adquire novo interesse quando a seguimos em determin ada direção Eu disse que o pintor desagradavelmente surpreso com a evolução de sua doença teria inventado um pacto anterior aquele redigido com tinta para poder conservar sua posição di ante dos religiosos de Mariazell Ora escrevo para leitores que acreditam na psicanálise mas não no Demônio e esses poderi am me objetar que seria absurdo fazer tal recriminação ao pobre coitado do pintor hunc miserum esse miserável é como o chama a carta do pastor Afinal diriam o pacto escrito com sangue foi tão imaginário como o supostamente anterior com tinta Na realidade nenhum Demônio lhe apareceu toda a história de pactos existiu apenas em sua fantasia Compreendo isso não se pode negar ao coitado o direito de suplementar a fantasia original com uma outra se uma nova situação parecia requerer isso Mas também nisso há uma continuação Afinal os dois pactos não são fantasias como as visões do Diabo foram documentos conservados no arquivo de Mariazell para que todos possam ver e tocar segundo as garantias do copista e o testemunho posteri or do abade Kilian Portanto achamonos em face de um dilema Ou devemos supor que os dois documentos supostamente de volvidos por graça divina foram confeccionados pelo próprio pintor no momento em que necessitou deles ou temos de nos 230300 recusar a dar crédito aos religiosos de Mariazell e S Lambert não obstante todas as solenes garantias e testemunhas autentica das com selos Confesso que não me seria fácil desconfiar dos re ligiosos É verdade que me inclino a pensar que o compilador no interesse da concordância falseou algo no testemunho do primeiro abade mas essa elaboração secundária não vai além das intervenções desse tipo também de historiadores modernos e profanos e de toda forma foi realizada de boafé Há outro as pecto em que os religiosos demonstraram ter direito a nossa con fiança Já afirmei que nada poderia têlos impedido de suprimir os relatos sobre a cura incompleta e o prosseguimento das tentações e também a descrição do exorcismo na capela que era lícito aguardar com alguma apreensão pareceunos sóbria e fidedigna Portanto só nos resta pôr a culpa no pintor Provavel mente ele tinha consigo o pacto com sangue quando foi à capela para a oração de penitência e o mostrou ao retornar para junto dos religiosos que o assistiam após o encontro com o Demônio Não é preciso que fosse o mesmo papel que depois seria guardado no arquivo mas segundo nossa construção podia ter a data de 1668 nove anos antes do exorcismo V O CURSO POSTERIOR DA NEUROSE Mas isto seria fraude e não neurose o pintor seria um enganador e falsário não um doente possesso Bem os limites entre neur ose e simulação são fluidos como se sabe Tampouco vejo di ficuldade em supor que ele tenha escrito e levado consigo esse papel e os posteriores num estado peculiar equiparável ao de 231300 suas visões Se queria levar a efeito a fantasia do pacto com o Demônio não tinha mesmo outra coisa a fazer Já o diário de Viena que entregou aos religiosos na segunda estadia em Mariazell tem o selo da veracidade E nos permite enxergar mais profundamente a motivação ou melhor a utiliz ação da neurose As anotações vão desde o exorcismo bemsucedido até 13 de janeiro do ano seguinte 1678 Até 11 de outubro ele estava muito bem em Viena onde morava com uma irmã casada mas então tiveram início novos ataques com visões convulsões perda de consciência e sensações dolorosas que enfim o obrigaram a vol tar para Mariazell em maio de 1678 A história de sua nova doença se divide em três fases Primeiro a tentação surgiu na forma de um cavalheiro bem vestido que procurou convencêlo a jogar fora seu atestado de admissão na Irmandade do Sagrado Rosário Como ele resistiu a aparição voltou no dia seguinte mas dessa vez num salão mag nificamente decorado em que senhores nobres dançavam com belas damas O mesmo cavalheiro propôs algo relacionado à pin tura18 e prometeu um bom dinheiro por aquilo O pintor fez essa visão desaparecer mediante orações mas ela se repetiu alguns dias depois de forma ainda mais insistente Dessa vez o caval heiro enviou uma das mais belas damas que se achavam à mesa do banquete para fazêlo juntarse àquela sociedade e ele preci sou se empenhar muito para rechaçar a tentadora A mais apa vorante contudo foi a visão seguinte de um salão ainda mais luxuoso em que havia um trono feito de peças de ouro Caval heiros se achavam no local esperando a chegada de seu rei O mesmo indivíduo que já lhe dera atenção em outras ocasiões se 232300 aproximou e o exortou a sentarse no trono pois queriam têlo como rei e adorálo por toda a eternidade Com essa ex acerbação de sua fantasia termina a primeira fase bastante transparente da história de suas tentações Tinha de haver um efeito contrário nesse ponto Uma reação ascética levantou a cabeça Em 20 de outubro apareceulhe uma grande luz da qual saiu uma voz dizendose Cristo e exigindo que ele renunciasse a este mundo e servisse a Deus num deserto durante seis anos Ao que tudo indica o pintor sofreu mais com essas aparições divinas do que com as anteriores demoníacas Desse ataque ele acordou somente após duas horas e meia No ataque seguinte a pessoa sagrada e rodeada de luz foi bem mais hostil ameaçouo porque não havia aceitado a proposta divina e o conduziu ao inferno para que se aterrorizasse com a sina dos condenados Mas isso claramente não produziu efeito pois as visitas da pessoa iluminada que seria Cristo se repetiram várias vezes e em cada uma delas o pintor sofria perdas da consciência e êxtases que duravam horas No mais formidável dos êxtases a pessoa iluminada o levou primeiramente a uma cidade em cujas ruas os seres humanos cometiam todos os atos das trevas e de pois por contraste a um belo prado em que anacoretas viviam na satisfação de Deus e recebiam provas palpáveis da graça e da atenção divinas Depois surgiu no lugar de Cristo a própria Mãe de Deus que evocando o auxílio que já prestara antes advertiu lhe que obedecesse à ordem de seu querido Filho Como ele não se resolveu de fato Cristo retornou no dia seguinte e o apertou bastante com ameaças e promessas Enfim ele cedeu decidiu abandonar essa vida e fazer o que lhe era pedido Com essa 233300 resolução termina a segunda fase O pintor afirma que desde en tão não lhe sucederam mais aparições ou provocações Mas essa decisão não deve ter sido bastante firme ou sua ex ecução foi muito adiada pois em 26 de dezembro quando ele fazia suas orações na catedral de Santo Estêvão viu uma gal harda senhorita com um cavalheiro muito elegante e não con seguiu afugentar a ideia de que bem poderia estar no lugar daquele homem Isso requeria punição e na mesma noite ela o atingiu como um raio ele se viu em chamas e caiu fora de si Houve tentativas de reanimálo mas ele rolou pelo aposento até que lhe saiu sangue pela boca e pelo nariz sentiuse envolvido em calor e mau cheiro e escutou uma voz a dizer que tudo aquilo lhe era enviado como punição por seus pensamentos frívolos e vãos Mais tarde foi açoitado por maus espíritos com cordas e foilhe assegurado que todos os dias seria atormentado dessa maneira até que decidisse entrar para a Ordem dos Anacoretas Essas vivências prosseguiram até as últimas anotações 13 de janeiro Vemos que em nosso infeliz pintor as fantasias de tentação fo ram seguidas por fantasias ascéticas e enfim de punição O final de seus sofrimentos já conhecemos Em maio ele foi para Mariazell lá contou a história de um pacto anterior redigido com tinta ao qual evidentemente atribuiu o fato de ainda ser procurado pelo Demônio recebeu também esse documento de volta e ficou curado Durante a segunda estadia ele pintou os quadros que se acham copiados no Trophaeum e depois fez algo que condiz com a exigência da fase ascética de seu diário Não foi para o deserto a fim de se tornar eremita mas ingressou na Ordem dos 234300 Irmãos da Misericórdia religiosus factus est tornouse um religioso A leitura do diário nos faz compreender uma outra parte da história Lembremos que o pintor se comprometeu com o Demônio porque se achava deprimido e incapaz de trabalhar re ceava não conseguir ganhar a vida após a morte do pai Esses fatores depressão inibição para o trabalho e luto pelo pai estão de alguma forma ligados de maneira simples ou um tanto mais complicada Talvez o motivo por que as aparições do Demônio eram abundantemente dotadas de seios fosse que o Maligno se tornaria seu pai nutridor A esperança não se cumpriu o pintor continuou mal não podia trabalhar realmente ou não tinha sorte e não achava trabalho suficiente A carta do pastor se refere a ele como hunc miserum omni auxilio destitutum esse miserável destituído de todo auxílio Ele se achava em apuros tanto mater iais como espirituais No relato de suas últimas visões há obser vações esparsas que indicam tal como o próprio teor das cenas que também após o primeiro e bemsucedido exorcismo nada havia mudado Tomamos conhecimento de um homem que nada consegue e por isso ninguém lhe dá crédito Na primeira visão o cavalheiro lhe pergunta o que pretende fazer se não tem quem o ajude como era abandonado de todos o que faria eu A primeira série de visões em Viena corresponde inteiramente às fantasias de um homem pobre e desgraçado sequioso de prazeres salões esplêndidos vida regalada talheres de prata mulheres bonitas aqui se encontra o que nos parecia faltar na relação com o Diabo Naquele tempo ele era tomado de uma melancolia que o tornava incapaz de fruição que o fazia rejeitar os mais sedutores oferecimentos Desde o exorcismo a 235300 melancolia parece vencida todos os apetites do ser mundano es tão novamente vivos Numa das visões ascéticas ele se queixa à pessoa que o con duz Cristo de que ninguém quer acreditar nele de modo que não consegue realizar o que lhe foi ordenado A resposta que ob tém permanece obscura para nós infelizmente Embora não me creiam sei bem o que ocorreu mas é impossível para mim dizêlo Particularmente esclarecedor no entanto é o que seu divino guia o faz vivenciar entre os eremitas Ele vai a uma cav erna em que um homem idoso já vive há sessenta anos e em re sposta a uma pergunta que faz escuta que esse velho é ali mentado diariamente pelos anjos de Deus Em seguida ele próprio vê um anjo que dá de comer ao idoso Três tigelas de comida um pão uma almôndega e de beber Depois que o er emita come o anjo recolhe e leva embora tudo Compreendemos a tentação que as visões religiosas lhe oferecem querem leválo a escolher um modo de vida em que não haverá preocupação com o sustento Também são dignas de nota as falas de Cristo na úl tima visão Após ameaçar que se ele não ceder acontecerá algo que fará com que ele e as pessoas acreditem Cristo adverte aber tamente Que eu não deveria escutar as pessoas mesmo que elas me perseguissem ou não me dessem ajuda Deus não me abandonaria Christoph Haitzmann era artista e mundano o suficiente para achar difícil renunciar a este mundo pecador Mas enfim renun ciou tendo em vista seu desvalimento Ingressou numa ordem religiosa assim tiveram fim sua luta interior e suas necessidades materiais Em sua neurose esse desenlace se reflete no fato de os ataques e visões cessarem com a restituição do suposto primeiro pacto Na realidade as duas partes de sua doença demonológica 236300 tiveram o mesmo significado Ele sempre quis apenas garantir sua vida na primeira vez com o auxílio do Demônio à custa da própria bemaventurança e quando isso falhou e teve de ser abandonado com o auxílio da classe religiosa à custa da própria liberdade e da maioria das possibilidades de fruição da vida Talvez Haitzmann fosse apenas um pobrediabo que não tinha sorte talvez fosse muito canhestro ou pouco talentoso para manter a si próprio um desses tipos conhecidos como eternos bebês que não conseguem se libertar da feliz situação de apego ao seio materno e por toda a vida mantêm a reivindicação de ser em alimentados por alguém Foi assim que na história de sua doença ele percorreu o caminho que levou do pai através do Demônio como pai substituto até os piedosos padres da Igreja Numa consideração superficial sua neurose aparece como uma bufonaria que se sobrepõe em parte à séria mas trivial luta pela vida Certamente as coisas não são sempre assim mas tampouco é raro que assim sejam Os psicanalistas descobrem frequentemente como é desvantajoso tratar um homem de negó cios que no mais é saudável mas desde algum tempo apresenta os sintomas de uma neurose A catástrofe financeira de que ele se sente ameaçado levanta como efeito secundário essa neurose e ele tem a vantagem de poder ocultar suas reais preocupações na vida por trás dos sintomas dela Fora isso ela é totalmente in conveniente pois ocupa forças que seriam mais vantajosamente empregadas na resolução ponderada da situação perigosa Em número bem maior de casos a neurose é mais autônoma e independente dos interesses da subsistência e autoconservação No conflito que produz a neurose estão em jogo apenas in teresses libidinais ou então interesses libidinais estreitamente li gados aos de autoconservação O dinamismo da neurose é o 237300 mesmo em todos os três casos Um estancamento da libido que não pode ser satisfeito na realidade obtém descarga pelo in consciente reprimido com o auxílio da regressão a antigas fix ações O Eu do doente na medida em que pode tirar desse pro cesso um benefício da doença admite a neurose embora não haja dúvida quanto à nocividade econômica desta A má situação de vida do pintor não teria gerado nele uma neurose envolvendo o Demônio se em sua miséria não tivesse nascido uma intensificada nostalgia do pai Mas depois que a melancolia e o Demônio foram dispensados surgiu nele um con flito entre o prazer libidinal com a vida e a descoberta de que o interesse da conservação da vida exigia imperiosamente a renún cia e a ascese É interessante que o pintor tenha percebido a unidade das duas partes da história de sua doença pois rela ciona uma e outra a compromissos que firmara com o Demônio Por outro lado não distingue claramente entre as intervenções do espírito maligno e as dos poderes divinos tem uma só desig nação para as duas aparições do Demônio Era a biblioteca em que se registravam os bens hereditários agora faz parte da Biblioteca Nacional Austríaca Hofrat literalmente conselheiro da Corte era um alto funcionário do Estado Mariazell mencionado na frase seguinte é um conhecido local de romaria 130 km a sudoeste de Viena O trabalho de R PayerThurn foi publicado no ano seguinte ao de Freud com o título de Faust in Mariazell Chronik des Wiener GoetheVereins vol 34 1 238300 1 A idade do pintor não aparece em nenhum lugar O contexto leva a supor um homem de trinta ou quarenta anos talvez mais próximo dos trinta Como veremos ele morreu no ano de 1700 Apenas mencionemos a possibilidade de essa interrogação ter inspirado sugerido ao doente a fantasia de seu pacto com o demônio 2 Quorum et finis 24 mensis hujus futurus appropinquat Os monges de S Lambert eram encarregados da manutenção do santuário 3 Isso indicaria que 1714 foi também o ano da redação do Trophaeum 4 ipsumque Daemonem ad Aram Sac Cellae per fenestrellam in cornu Epistolae Schedam sibi porrigentem conspexisset eo advolans e Religiosor um manibus qui eum tenebant ipsam Schedam ad manum obtinuit viu o próprio Demônio junto ao sagrado altar de Zell passandolhe o papel pela janelinha da epístola e escapando às mãos dos religiosos que o seguravam precipitouse e apanhou aquele papel 5 Esse teria sido firmado em setembro de 1668 e nove anos e meio depois em maio de 1678 já teria caducado desde muito 6 Cf Fausto i Gabinete de estudos cena 4 vv 16569 palavras de Me fistófeles Ich will mich hier zu deinem Dienst verbinden Auf deinen Wink nicht rasten und nicht ruhen Wenn wir uns drüben wieder finden So sollst du mir das gleiche tun Obrigome eu te sirvo eu te secundo Aqui em tudo sem descanso ou paz No encontro nosso no outro mundo O mesmo para mim farás trad Jenny Klabin Segall apres e notas Marcus Vinicius Mazzari São Paulo Editora 34 2004 7 Imagem 1 e sua legenda na página de rosto representando o Demônio em forma de um honrado cidadão No original Ich Christoph Haitzmann vndterschreibe mich disen Herrn sein leibeigener Sohn auf 9 Jahr 1669 jahr 239300 Anno 1669 Christoph Haitzmann Ich verschreibe mich diβen Satan ich sein leibeigener Sohn zu sein und in 9 Jahr ihm mein Leib und Seel zuzugeheren 8 Na verdade mais adiante quando considerarmos quando e para quem esses compromissos foram redigidos perceberemos que seu texto tinha de ser dis creto e compreensível para todos Mas para nós basta que ele mantenha uma ambiguidade que sirva como ponte para nossa interpretação 9 Em Goethe Fausto i cenas 2 e 3 um cão negro se transforma no próprio Demônio 10 Ver Totem e tabu 1913 e Theodor Reik Probleme der Religionspsychologie i 1919 11 Ver Reik Der eigene und der fremde Gott O deus próprio e o alheio ImagoBücher iii 1923 capítulo Gott und Teufel Deus e diabo 12 Na conhecida história dos sete cabritinhos também o pai lobo aparece como ladrão Cf O homem dos lobos 1918 13 Se raramente encontramos o Diabo como substituto do pai em nossas anál ises isso indicaria que para as pessoas que se submetem a análise conosco há muito tempo essa figura da mitologia medieval deixou de significar algo Para o cristão devoto de séculos passados a crença no Diabo era tão obrigatória quanto a fé em Deus Na realidade ele necessitava do Demônio para se pren der a Deus Por razões diversas o recuo da fé atingiu primeiramente a pessoa do Demônio Se ousarmos aplicar a ideia do Diabo como sucedâneo do pai à história cultural poderemos ver sob nova luz também os processos de bruxaria da Idade Média 14 Os dois pactos reproduzidos trazem o ano de 1669 mais adiante nos ocu paremos dessa discrepância 240300 15 Cf Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci 1910 Constatação no original Ermittlungen pl termo que admite algumas variações de sentido como se nota nas traduções consultadas tesis de lo que ha pesquisado conclusioni che ha tratto tirou dalle sue osser vazioni découvertes observations além daquelas a que normalmente recor remos a espanhola a argentina a italiana e a inglesa pudemos consultar uma versão francesa incluída no volume Linquiétante étrangeté et autres es sais trad Bertrand Féron Paris Gallimard Folio 1985 16 D P Schreber Denkwürdigkeiten eines Nervenkrankes Leipzig 1903 ed bras Memórias de um doente dos nervos trad e intr Marilene Carone Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 1a ed 1984 Cf minha análise do caso Schreber Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobio grafia 1911 Neurose obsessiva com ideias obsedantes Zwangsneurose mit Obsession en O substantivo Zwang significa compulsão coação mas o termo Zwangs neurose é tradicionalmente vertido por neurose obsessiva o que no presente caso cria uma dificuldade para a tradução Na maioria das versões consultadas foi omitida a expressão mit Obsessionen exceto na francesa de Bertrand Féron que utiliza avec idées obsedantes como fizemos aqui e explica o problema numa nota Nela o tradutor observa Esta passagem mostra caso ainda se requeira essa demonstração que a neurose obsessiva obsessionelle não implica necessariamente a existência de pensamentos obsedantes que se poderia também chamar de ideias fixas O mesmo se encontra de maneira mais elaborada no verbete sobre neurose obsessiva do Vocabulário da psic análise de Laplanche e Pontalis trad Pedro Tamen 11a ed São Paulo Martins Fontes 1991 Negação Verleugnung nas versões consultadas negación desmentida disconoscimento dénégation denial Depois da carta do pastor datada de 1o de setembro de 1677 como se viu acima p 230 241300 17 A meu ver o compilador se achava entre dois fogos De um lado encontrou tanto na carta do pastor como no depoimento do abade a informação de que o pacto ao menos o primeiro foi firmado em 1668 de outro os dois pactos con servados no arquivo forneciam o ano de 1669 Como tinha à sua frente dois pactos para ele era certo que dois haviam sido celebrados Se como creio o testemunho do abade falava de um apenas ele teve de incluir nesse testemunho a menção do outro e resolver a incoerência com a hipótese da pósdatação A mudança que ele realizou no texto ocorre imediatamente antes da interpolação que somente ele pode ter feito Ele foi obrigado a ligar a inter polação e a mudança com as palavras sequenti vero anno 1669 mas no ano seguinte 1669 pois o pintor havia escrito na legenda bastante danificada da página de rosto Após um ano ele terríveis ameaças em figura no 2 obrigado assinar pacto com sangue O lapso Verschreiben do pintor ao redigir os Syngraphae que sou obri gado a supor em minha tentativa de explicação pareceme não menos in teressante que seus pactos Verschreibungen mesmos Freud tira partido dos dois sentidos do verbo sich verschreiben que tanto pode significar equivocarse ao escrever cometer um lapso escrito tema do capítulo vi de Psicopatologia da vida cotidiana de 1901 como devotarse a dedicarse a os dois substantivos que ele emprega correspondem a esses dois significados sendo que Verschreibung foi alternadamente traduzido por pacto e compromisso No texto que serviu de base para esta tradução o dos Gesammelte Werke encontrase 15 mas uma nota na Standard inglesa e na Studienausgabe informa que se trata de um erro presente em todas as edições alemãs exceto a primeira Segundo Strachey uma ordem religiosa em que ele ingressara após chegar a Viena 242300 18 Uma passagem que não é compreensível para mim No original na linguagem daquele tempo com a ortografia do manuscrito so fer man mir nit glauben waβ aber geschechen waιβ ich wol ist mir aber selbes auszuspröchen vnmöglich Na tradução das citações que Freud faz do manuscrito ao longo de todo este ensaio não se buscou reproduzir as peculi aridades gramaticais e ortográficas do alemão de Christoph Haitzmann Bufonaria Gaukelspiel as versões consultadas oferecem farsa es camoteo buffonata fantasmagorie masquerade Estancamento da libido Libidostauung alguns tradutores preferem o vocábulo grego estase usado na medicina para designar a estagnação do sangue e de outras substâncias estancamiento da la libido estasis libidinal ingorgo libidico stase libidinale dammedup libido Prazer libidinal com a vida libidinöse Lebenslust como Lust significa prazer gozo desejo vontade gosto é natural encontrarmos diferenças nas versões consultadas deseo vital libidinoso gusto libidinoso por la vida gioia alegria di vivere libidica plaisir libidinal de la vie libidinal enjoyment of life 243300 PSICANÁLISE E TEORIA DA LIBIDO DOIS VERBETES PARA UM DICIONÁRIO DE SEXOLOGIA 1923 TÍTULO ORIGINAL PSYCHOANALYSE UND LIBIDOTHEORIE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM HANDWÖRTERBUCH DER SEXUALWISSENSCHAFT DICIONÁRIO DE SEXOLOGIA MAX MARCUSE ORG BONN 1923 PP 296308 E 37783 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII PP 21133 I PSICANÁLISE psicanálise é o nome 1 de um procedimento para a investigação de processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis 2 de um método de tratamento de distúrbios neuróti cos baseado nessa investigação 3 de uma série de conhecimen tos psicológicos adquiridos dessa forma que gradualmente pas sam a constituir uma nova disciplina científica história A melhor maneira de compreender a psicanálise é acompanhar sua gênese e evolução Nos anos de 1880 e 1881 o dr Breuer de Viena conhecido médico e fisiologista experimental tratou de uma jovem que adoecera de uma grave histeria quando cuidava de seu pai enfermo Seu quadro clínico se compunha de paralisias motoras inibições e transtornos de consciência Seguindo indicação da própria paciente que era uma pessoa in teligente ele a hipnotizou e conseguiu que informandolhe os estados de espírito e pensamentos que a dominavam ela sempre voltasse à condição psíquica normal Repetindo sistematica mente o mesmo procedimento laborioso ele teve sucesso em livrála de todas as suas inibições e paralisias de maneira que seus esforços foram enfim recompensados por um grande êxito terapêutico e inesperados conhecimentos sobre a natureza da enigmática neurose Mas Breuer se absteve de levar adiante sua descoberta e nada publicou a respeito durante cerca de dez anos até que o autor deste verbete Freud que retornara a Viena em 1886 após frequentar a escola de Charcot o induziu a retomar o tema e empreender um trabalho conjunto sobre o mesmo Então os dois Breuer e Freud publicaram em 1893 uma comunicação preliminar Sobre o mecanismo psíquico dos processos psíqui cos e em 1895 o livro Estudos sobre a histeria na quarta edição em 1922 em que designaram de catártico o seu método terapêutico a catarse As investigações que constituíam a base dos estudos de Breuer e Freud levaram a dois resultados principais que não fo ram abalados pela experiência ulterior primeiro que os sinto mas histéricos têm importância e significado como substitutos para atos psíquicos normais segundo que o desvelamento desse sentido oculto é acompanhado da remoção dos sintomas ou seja que pesquisa científica e esforço terapêutico coincidem nesse caso As observações foram feitas numa série de pacientes tratados da mesma forma que a primeira paciente de Breuer isto é colocados em hipnose profunda e os êxitos pareciam esplên didos até que depois se revelou seu lado frágil As concepções teóricas de Breuer e Freud eram influenciadas pelos ensinamen tos de Charcot sobre a histeria traumática e apoiavamse nas pesquisas de seu discípulo Pierre Janet que foram publicadas antes dos Estudos mas eram posteriores ao primeiro caso de Breuer Desde o início o elemento afetivo se achava nelas em primeiro plano os sintomas histéricos apareciam quando um processo psíquico carregado de intenso afeto era de alguma forma impedido de acertarse pela via normal que conduz à con sciência e à mobilidade de abreagir com o que então o afeto por assim dizer entalado entrava por vias erradas achando es coamento na inervação somática conversão As ocasiões em que surgiam tais representações patogênicas foram designadas 246300 como traumas psíquicos por Breuer e Freud e como fre quentemente pertenciam a épocas remotas os autores puderam dizer que os histéricos sofriam em grande parte de reminiscên cias não resolvidas A catarse ocorria então no tratamento mediante a abertura do caminho para a consciência e a descarga normal do afeto A hipótese de processos psíquicos inconscientes era como se vê parte indispensável dessa teoria Também Janet havia trabal hado com atos inconscientes na vida psíquica mas como ele mesmo enfatizou em suas posteriores polêmicas contra a psic análise isso era apenas um expediente uma façon de parler maneira de falar com que não pretendia indicar nenhum novo ponto de vista Numa seção teórica dos Estudos Breuer fez algumas especu lações acerca dos processos de excitação no interior da psique que proporcionavam orientação para o futuro e ainda hoje não foram consideradas inteiramente Com isso findaram suas con tribuições a essa área do conhecimento logo depois ele se afastou do trabalho conjunto a transição para a psicanálise Nos Estudos já se haviam mostrado diferenças nas concepções dos dois autores Breuer supunha que as ideias patogênicas manifestam efeitos traumáticos porque surgiram durante estados hipnóticos em que a função psíquica está sujeita a limitações especiais O autor destas linhas rejeitava essa explicação acreditando que uma ideia se torna patogênica quando seu conteúdo contraria as tendências dominantes da vida psíquica de modo que ela provoca a defesa do indivíduo Janet atribuíra aos histéricos uma incapacidade constitucional 247300 de manter unidos seus conteúdos psíquicos nesse ponto os cam inhos de Breuer e Freud separaramse do dele Também as duas inovações que fizeram o presente autor deixar o terreno da catarse já haviam sido mencionadas nos Estudos Após o afasta mento de Breuer elas foram o ponto de partida para outros desenvolvimentos o abandono da hipnose Uma dessas inovações baseouse numa ex periência prática e levou a uma mudança na técnica a outra con sistiu num avanço no conhecimento clínico da neurose Logo se verificou que as expectativas terapêuticas que havíamos deposit ado no tratamento catártico em estado hipnótico não chegavam a cumprirse inteiramente É certo que o desaparecimento dos sintomas ocorria paralelamente à catarse mas o êxito geral de pendia totalmente da relação do paciente com o médico isto é semelhava uma consequência da sugestão e se essa relação era perturbada todos os sintomas reapareciam como se não tivessem tido solução Além disso o pequeno número de pessoas que podiam ser colocadas em hipnose profunda limitava consid eravelmente a aplicação do método catártico Por esses motivos o presente autor decidiu abandonar a hipnose Ao mesmo tempo porém as impressões que havia retirado da hipnose lhe forne ceram os meios para substituíla a associação livre O estado hipnótico havia provocado no pa ciente uma tal expansão da capacidade de associar que imedi atamente ele sabia achar o caminho inacessível à sua reflexão consciente que levava do sintoma aos pensamentos e lem branças a este relacionados A renúncia à hipnose parecia criar 248300 uma situação sem saída mas o presente autor se lembrou da demonstração de Bernheim de que as coisas vivenciadas no son ambulismo eram esquecidas só aparentemente e a qualquer in stante podiam ser reconduzidas à lembrança se o médico asse gurasse com firmeza que o paciente as sabia Ele insistiu então para que também seus pacientes não hipnotizados comunicas sem as associações a fim de achar através desse material o caminho para o esquecido ou defendido Mais tarde notou que não era preciso tal insistência que sempre emergiam muitos pensamentos espontâneos no paciente mas que esses eram im pedidos de serem comunicados e mesmo de chegar à consciên cia por determinadas objeções que ele próprio se fazia Na ex pectativa naquele tempo ainda não verificada mas depois con firmada por ampla experiência de que tudo o que ocorria ao paciente num determinado ponto devia estar intimamente ligado a esse ponto chegouse à técnica de educar o paciente na renún cia de toda atitude crítica e de utilizar o material de pensamentos espontâneos assim trazido à luz para desvelar os nexos buscados Sem dúvida uma forte confiança no estrito determinismo da psique teve participação na escolha dessa técnica para substituir a hipnose a regra técnica fundamental esse procedimento da associação livre foi desde então mantida no trabalho psicanalítico O trata mento tem início convidandose o paciente a se pôr no lugar de um autoobservador atento e desapaixonado a ler apenas a su perfície de sua consciência obrigandose por um lado à com pleta sinceridade e por outro lado não omitindo nenhum pensamento que lhe ocorra mesmo quando 1 sintao como algo 249300 muito desagradável ou quando 2 tenha de julgálo absurdo 3 muito insignificante 4 sem relação com o que se busca Geral mente se verifica que precisamente as ideias que provocam as objeções mencionadas por último têm valor especial para se descobrir o que foi esquecido a psicanálise como arte da interpretação A nova técnica mudou de tal forma o quadro do tratamento levou o médico a uma relação tão nova com o paciente e gerou tantos resultados sur preendentes que foi justificado recorrer a um novo nome para distinguir esse procedimento do método catártico O presente autor escolheu a denominação de psicanálise para esse modo de tratamento que podia se estender a muitas outras formas de dis túrbio neurótico Essa psicanálise era em primeira linha uma arte da interpretação e impôsse a tarefa de aprofundar a primeira das grandes descobertas de Breuer a de que os sinto mas neuróticos seriam um substituto significativo de outros atos psíquicos que não se realizaram Cabia então apreender o ma terial dos pensamentos espontâneos do paciente como se apon tasse para um sentido oculto adivinhar esse sentido a partir dele Logo a experiência mostrou que o comportamento mais ad equado para o médico que conduzia a análise era entregarse com atenção uniformemente flutuante à sua própria atividade mental inconsciente evitar ao máximo a reflexão e a formação de expectativas conscientes não pretender fixar especialmente na memória nada do que ouve e assim apreender o inconsciente do paciente com seu próprio inconsciente Então se percebia quando as circunstâncias não eram muito desfavoráveis que os 250300 pensamentos espontâneos do paciente como que aludiam tateavam em direção a um tema determinado e bastava arriscar apenas um passo adiante para se adivinhar o que estava oculto ao próprio paciente e poder comunicálo a este Sem dúvida esse trabalho de interpretação não podia ser formulado em regras es tritas e deixava amplo espaço para o tato e a habilidade do médico mas conjugando imparcialidade e prática chegavase normalmente a resultados confiáveis isto é que podiam ser con firmados mediante a repetição em casos similares Num tempo em que se sabia tão pouco sobre o inconsciente a estrutura das neuroses e os processos patológicos por trás delas tínhamos de ficar satisfeitos em dispor de uma técnica assim ainda que seus fundamentos teóricos deixassem a desejar E na psicanálise de hoje ela é utilizada da mesma forma mas com o sentimento de maior segurança e melhor compreensão de seus limites a interpretação dos atos falhos e das ações casuais Foi um triunfo da arte de interpretação da psicanálise conseguir mostrar que certos atos psíquicos frequentes das pessoas normais para os quais até então não se buscava explicação psicológica devem ser entendidos como os sintomas dos neuróticos isto é possuem um significado que não é conhecido da pessoa e pode ser facilmente encontrado mediante a análise Os fenômenos em questão o es quecimento temporário de palavras e nomes familiares o esque cimento de propósitos os tão frequentes atos falhos ao falar ler escrever perder ou pôr fora de lugar objetos certos erros atos aparentemente casuais em que a pessoa prejudica a si mesma movimentos realizados de forma habitual como que não inten cionalmente e de brincadeira melodias que cantarolamos sem 251300 pensar e assim por diante tudo isso foi subtraído à ex plicação fisiológica nos casos em que se tentava oferecêla foi mostrado como rigorosamente determinado e percebido como manifestação de intenções suprimidas da pessoa ou consequên cia do choque de duas intenções das quais uma era inconsciente de forma duradoura ou temporária A importância dessa con tribuição à psicologia foi múltipla O âmbito do determinismo psíquico foi ampliado de maneira imprevista o suposto abismo entre o funcionamento psíquico normal e o patológico foi reduz ido em muitos casos obtevese um cômodo vislumbre do jogo de forças psíquicas que imaginávamos existir por trás dos fenô menos Por fim entramos de posse de um material que como nenhum outro é adequado para despertar a crença na existência de atos psíquicos inconscientes inclusive naqueles para quem a hipótese de uma psique inconsciente parece algo estranho e até mesmo absurdo O estudo dos próprios atos falhos e ações casu ais que a maioria de nós tem muitas oportunidades de fazer é ainda hoje a melhor preparação para adentrar a psicanálise No tratamento analítico a interpretação dos atos falhos tem seu lugar como meio para desvelar o inconsciente junto à inter pretação das associações incomparavelmente mais importante a interpretação dos sonhos Abriuse um novo acesso às profun dezas da vida psíquica quando a técnica da livre associação foi aplicada aos sonhos próprios ou de pacientes da análise Na ver dade o melhor e a maior parte do que sabemos dos processos das camadas psíquicas inconscientes vem da interpretação dos sonhos A psicanálise devolveu ao sonho a importância que nos tempos antigos lhe era geralmente atribuída mas lida de outra forma com eles Não se fia no engenho do intérprete de sonhos 252300 transferindo a maior parte da tarefa para o sonhador mesmo ao lhe perguntar sobre suas associações com cada elemento do sonho Prosseguindo com estas associações chegamos a pensamentos que correspondem inteiramente ao sonho mas que exceto num ponto revelamse porções genuínas e completa mente inteligíveis da atividade mental desperta Assim o sonho lembrado se contrapõe como conteúdo onírico manifesto aos pensamentos oníricos latentes achados mediante a inter pretação O processo que converteu esses naquele no sonho justamente e que é desfeito pelo trabalho de interpretação pode ser denominado trabalho onírico Por sua relação com a vida desperta também chamamos os pensamentos oníricos latentes de resíduos diurnos Graças ao trabalho onírico ao qual seria incorreto atribuir caráter criat ivo eles são peculiarmente condensados deformados medi ante o deslocamento de intensidades psíquicas arranjados para a representação em imagens e além disso antes da formação do sonho manifesto são sujeitos a uma elaboração secundária que busca dar algum sentido e coerência ao novo produto Esse úl timo processo já não faz parte do trabalho onírico teoria dinâmica da formação do sonho Não houve grandes di ficuldades em compreender a dinâmica da formação do sonho A força motriz para a formação do sonho não é fornecida pelos pensamentos oníricos latentes ou resíduos diurnos mas por um impulso inconsciente reprimido durante o dia com que os resí duos diurnos puderam estabelecer contato e que a partir do ma terial dos pensamentos latentes engendra para si uma realiza ção de desejo Assim todo sonho é por um lado uma realização de desejo do inconsciente e por outro lado na medida em que 253300 consegue proteger de distúrbios o sono uma realização do desejo normal de sono que deu início a este Se abstraímos da contribuição inconsciente à formação do sonho e reduzimos o sonho a seus pensamentos patentes ele pode representar tudo o que ocupa a vida desperta uma reflexão uma advertência um propósito uma preparação para o futuro imediato ou também a satisfação de um desejo não realizado O caráter irreconhecível estranho absurdo do sonho manifesto é em parte consequência da transposição dos pensamentos oníricos para um outro modo de expressão que podemos chamar de arcaico mas é igual mente efeito de uma instância limitadora de rejeição crítica que mesmo durante o sono não é inteiramente abolida É natural supor que a censura onírica que consideramos primeiramente responsável pela deformação dos pensamentos oníricos no sonho manifesto seja uma expressão das mesmas forças psíquicas que durante o dia retiveram reprimiram o desejo inconsciente Valeu a pena aprofundar a explicação dos sonhos pois o tra balho analítico mostrou que a dinâmica da formação do sonho é igual à da formação dos sintomas Numa e noutra reconhecemos um antagonismo entre duas tendências uma inconsciente geral mente reprimida que busca a satisfação realização de desejo e uma que provavelmente é parte do Eu consciente desap rovadora e repressiva e como resultado desse conflito uma formação de compromisso o sonho o sintoma em que as duas tendências acham expressão incompleta O significado teórico dessa concordância é esclarecedor Como o sonho não é um fenômeno patológico ela evidencia que os mecanismos psíquicos que produzem os sintomas da doença também se 254300 acham presentes na vida psíquica normal que as mesmas leis envolvem o normal e o anormal e que os resultados da pesquisa com neuróticos e doentes mentais podem não ser irrelevantes para a compreensão da mente sadia o simbolismo Ao estudar a forma de expressão criada pelo tra balho onírico deparamos com o fato surpreendente de que de terminados objetos atividades e relações são representados no sonho indiretamente até certo ponto por símbolos que o son hador utiliza sem lhes conhecer o significado e a respeito dos quais suas associações nada costumam produzir A tradução deles tem de ser dada pelo analista que somente pode achála empiricamente através de inserções experimentais no contexto Verificouse depois que a linguagem a mitologia e o folclore con têm abundantes analogias com os símbolos oníricos Tendo re lação com problemas interessantíssimos ainda não resolvidos os símbolos parecem ser fragmentos de uma antiga herança psíquica O âmbito do simbolismo comum ultrapassa aquele da linguagem comum a importância etiológica da vida sexual A segunda novidade a aparecer depois que se substituiu a técnica hipnótica pela asso ciação livre era de natureza clínica e foi encontrada durante a contínua busca pelas vivências traumáticas de que os sintomas histéricos pareciam derivar Quanto mais cuidadosamente se empreendia essa busca mais rico se revelava o encadeamento dessas impressões etiologicamente significativas e também mais elas remontavam à puberdade ou à infância do neurótico Ao mesmo tempo adquiriam um caráter uniforme e afinal foi 255300 preciso curvarse à evidência e reconhecer que na raiz de toda formação de sintoma se achavam impressões traumáticas da vida sexual dos primeiros tempos Assim o trauma sexual as sumia o lugar do trauma ordinário e esse devia sua significação etiológica à relação associativa ou simbólica com aquele que o precedera Como a investigação simultânea de casos de nervos ismo comum classificados como neurastenia e neurose de an gústia revelou que esses distúrbios se ligam a abusos contem porâneos na vida sexual e podem ser eliminados com a cessação destes foi natural concluir que as neuroses em geral são ex pressão de transtornos na vida sexual as assim chamadas neuroses atuais expressão quimicamente mediada de dados contemporâneos as psiconeuroses expressão psiquicamente elaborada de danos antigos dessa função biologicamente tão rel evante até então negligenciada pela ciência Nenhuma das colocações da psicanálise despertou tanta descrença e tão am arga resistência como essa sobre a enorme importância etioló gica da vida sexual para as neuroses Seja expressamente notado porém que a psicanálise ao longo de sua evolução e até o dia de hoje não encontrou motivos para voltar atrás nessa afirmação a sexualidade infantil Devido a suas pesquisas etiológicas a psic análise veio a lidar com um tema de cuja existência pouco se sus peitava antes A ciência havia se acostumado a ver na puberdade o início da vida sexual e a considerar manifestações de sexualid ade infantil indícios raros de amadurecimento anormal e degen eração Então a psicanálise revelou uma quantidade de fenô menos notáveis e de ocorrência regular que obrigaram a fazer o começo da função sexual da criança praticamente coincidir com o início da vida extrauterina e perguntouse com espanto como 256300 fora possível ignorar tudo isso É certo que as primeiras per cepções da sexualidade infantil foram obtidas com a investigação psicanalítica de adultos e por isso estavam sujeitas a todas as dúvidas e possibilidades de erro que podiam ser atribuídas a uma retrospecção tardia mas quando mais tarde a partir de 1908 começouse a analisar crianças e observálas de forma isenta chegouse à confirmação direta do teor factual da nova concepção Em vários aspectos a sexualidade infantil mostrava um quadro diferente da dos adultos e surpreendia com muitos traços daquilo que nos adultos era condenado como perversão Foi preciso ampliar o conceito de sexualidade para que ele abar casse mais do que a tendência à união dos dois sexos no ato sexual ou à geração de determinadas sensações de prazer nos genitais Mas essa ampliação valeu a pena pois tornou possível apreender a vida sexual infantil a normal e a perversa a partir de um só conjunto A pesquisa analítica do presente autor incorreu inicialmente no erro de superestimar a sedução como fonte das manifestações sexuais infantis e gérmen da formação de sintomas neuróticos Esse engano foi superado quando se pôde reconhecer o papel ex traordinário da atividade da fantasia na vida psíquica dos neuróticos que claramente tinha peso maior para a neurose que a realidade externa Atrás dessas fantasias apareceu então o material que permite a seguinte descrição do desenvolvimento da função sexual o desenvolvimento da libido O instinto sexual cuja expressão dinâmica na vida psíquica chamamos de libido é composto de 257300 instintos parciais em que pode novamente decomporse e que só gradualmente se juntam em organizações definidas As fontes desses instintos parciais são os órgãos do corpo especialmente algumas zonas erógenas bem demarcadas mas contribuem igualmente para a libido todos os processos funcionais import antes do corpo Os instintos parciais buscam inicialmente a sat isfação de modo independente mas no curso do desenvolvi mento são cada vez mais conjugados concentrados O primeiro estágio de organização que se percebe é o oral em que a zona da boca de forma correspondente ao interesse principal do lactente desempenha o principal papel Ela é seguida pela or ganização sádicoanal em que o instinto parcial do sadismo e a área do ânus se destacam a diferença entre os sexos é aí repres entada pela oposição de ativo e passivo O terceiro e definitivo estágio de organização é a reunião da maioria dos instintos par ciais sob o primado das zonas genitais Em geral esse desenvol vimento é percorrido rapidamente e sem chamar a atenção mas certas porções dos instintos permanecem nos estágios prelimin ares do desfecho e dão origem a fixações da libido que são im portantes enquanto predisposições para futuras irrupções de tendências reprimidas e têm relação com o desenvolvimento de futuras neuroses e perversões Ver Teoria da libido o encontro do objeto e o complexo de édipo O instinto parcial oral encontra inicialmente satisfação apoiandose no aplacamento da necessidade de alimentação e tem seu objeto no seio materno Depois ele se desliga tornase independente e ao mesmo tempo autoerótico ou seja encontra seu objeto no próprio corpo Tam bém outros instintos parciais agem primeiramente de forma au toerótica e apenas depois são dirigidos para um outro objeto De 258300 especial importância é o fato de os instintos parciais da zona genital passarem regularmente por um período de intensa satis fação autoerótica Os instintos parciais não são todos igualmente aproveitáveis na organização genital definitiva da libido alguns deles os anais por exemplo são deixados de lado ou suprim idos ou sofrem complicadas transformações Nos primeiros anos da infância de dois a cinco anos aproximadamente produzse uma confluência dos impulsos sexuais cujo objeto no garoto é a mãe Essa escolha do objeto e a correspondente atitude de rivalidade e hostilidade em relação ao pai é o conteúdo do chamado complexo de Édipo de máxima importância na configuração final da vida amorosa em todas as pessoas Estabeleceuse como algo próprio do indivíduo normal o fato de aprender a superar o complexo de Édipo enquanto o neurótico permanece a ele preso o início em dois tempos do desenvolvimento sexual Esse período ini cial da vida sexual concluise normalmente pelo final dos cinco anos de idade e é substituído por um período de latência mais ou menos integral durante o qual são edificadas as restrições éticas como formações protetoras contra os impulsos e desejos do com plexo de Édipo No período seguinte o da puberdade o com plexo de Édipo tem uma revivescência no inconsciente e vai ao encontro de suas novas transformações Somente a época da pu berdade desenvolve os instintos sexuais em sua plena intensid ade mas a direção desse desenvolvimento e todas as predis posições a ele inerentes já foram determinadas pelo anterior florescimento infantil da sexualidade Esse desenvolvimento em dois tempos interrompido pelo período de latência parece ser 259300 uma peculiaridade biológica da espécie humana e conter a pre condição para o surgimento das neuroses a teoria da repressão Esses conhecimentos teóricos reunidos às impressões diretas do trabalho analítico levam a uma concepção das neuroses que de maneira tosca pode ser delineada assim as neuroses são expressão de conflitos entre o Eu e aqueles im pulsos sexuais que lhe parecem incompatíveis com sua integrid ade e suas exigências éticas O Eu reprimiu esses impulsos não afinados com o Eu isto é deles retirou seu interesse e impediu lhes o acesso à consciência e à descarga motora conducente à satisfação Quando se procura no trabalho analítico tornar con scientes esses impulsos reprimidos chegase a perceber as forças repressoras como resistência Mas a operação da repressão fra cassa facilmente no caso dos instintos sexuais A libido represada desses instintos encontra outras saídas do inconsciente ao re gredir a anteriores fases de desenvolvimento e atitudes ante os objetos e irromper na consciência e alcançar descarga ali onde se acham fixações infantis nos pontos fracos do desenvolvimento da libido O que assim surge é um sintoma e portanto no fundo uma satisfação sexual substituta mas também o sintoma não pode escapar inteiramente à influência das forças repressoras do Eu de modo que exatamente como o sonho tem de admitir modificações e deslocamentos que tornam irreconhecível seu caráter de satisfação sexual Ele adquire assim o caráter de uma formação de compromisso entre os instintos sexuais reprimidos e os instintos do Eu repressores uma realização de desejo simul tânea mas incompleta para os dois lados do conflito Isso vale rigorosamente para os sintomas da histeria enquanto é 260300 frequente nos sintomas da neurose obsessiva uma expressão mais intensa por parte da instância repressora mediante o es tabelecimento de formações reativas garantias contra a satis fação sexual a transferência Se ainda for necessária mais uma prova para a tese de que as forças motrizes da formação do sintoma neurótico são de natureza sexual ela estará no fato de que durante o trata mento analítico produzse normalmente uma relação afetiva es pecial do paciente com o médico relação que ultrapassa a me dida racional que varia entre a mais terna devoção e a mais dura hostilidade e que retira suas peculiaridades de atitudes amorosas antigas do paciente que se tornaram inconscientes Essa trans ferência que tanto em sua forma positiva como na negativa põe se a serviço da resistência tornase o mais poderoso auxiliar do tratamento nas mãos do médico e desempenha na dinâmica do processo de cura um papel que dificilmente se pode exagerar os pilares da teoria psicanalítica A suposição de que há processos mentais inconscientes o reconhecimento da teoria da resistência e da repressão a consideração da sexualidade e do complexo de Édipo são os principais conteúdos da psicanálise e os fundamen tos de sua teoria e quem não puder aceitálos não deveria considerarse um psicanalista destino subsequente da psicanálise Aproximadamente até o ponto delineado acima a psicanálise foi conduzida pelo trabalho do presente autor que por mais de uma década foi seu único rep resentante Em 1906 os psiquiatras suíços Eugen Bleuler e C G 261300 Jung começaram a ter participação ativa na psicanálise Em 1907 em Salzburgo houve um primeiro encontro de seus seguidores e logo a nova ciência estava no centro do interesse de psiquiatras e leigos O tipo de acolhida que teve na Alemanha país sequioso de autoridade não foi exatamente honroso para a ciência alemã e motivou a defesa enérgica até mesmo de um partidário fleumático como Bleuler Mas as condenações e os repúdios em congressos oficiais não conseguiram deter o crescimento interno e a expansão da psicanálise que no curso dos dez anos seguintes avançou além das fronteiras da Europa e sobretudo nos Estados Unidos da América se tornou popular em larga medida graças ao empenho ou colaboração de James Putnam Boston Ernest Jones Toronto e depois Londres Flournoy Genebra Ferenczi Budapeste Abraham Berlim e muitos outros O anátema im posto à psicanálise levou seus aderentes a se juntarem numa or ganização internacional que neste ano 1922 realiza seu oitavo congresso particular em Berlim e atualmente abrange os grupos locais de Budapeste Berlim Holanda Zurique Londres Nova York Calcutá e Moscou Tampouco a Guerra Mundial inter rompeu esse desenvolvimento Em 19189 foi fundada pelo dr Anton von Freund Budapeste a Editora Psicanalítica Inter nacional que publica revistas e livros dedicados à psicanálise e em 1920 foi inaugurada em Berlim pelo dr Max Eitingon a primeira Policlínica psicanalítica para tratamento de neuróti cos destituídos de meios Traduções das principais obras do presente autor para o francês o italiano e o espanhol que estão sendo preparadas agora atestam o surgimento do interesse na psicanálise também no mundo românico Entre 1911 e 1913 262300 destacaramse da psicanálise duas orientações que claramente se empenhavam em atenuar seus aspectos inconvenientes Uma delas iniciada por C G Jung procurava corresponder a exigên cias éticas despojava o complexo de Édipo de sua real significação atribuindolhe valor apenas simbólico e negligen ciava na clínica o desvelamento do período infantil esquecido préhistórico A outra originada por Alfred Adler em Viena trazia vários elementos da psicanálise sob outro nome por ex emplo a repressão em versão sexualizada como protesto mas culino mas não considerava o inconsciente e os instintos sexuais e buscava relacionar o desenvolvimento do caráter e das neuroses à vontade de poder que mediante a supercompensação procura sustar os perigos que vêm das inferioridades de órgão Essas orientações elaboradas em forma de sistemas não tiveram influência duradoura no desenvolvimento da psicanál ise no caso da adleriana logo se fez claro que ela tinha pouco em comum com a psicanálise que pretendia substituir progressos recentes da psicanálise Desde que se tornou o âmbito de trabalho para um grande número de observadores a psicanál ise experimentou avanços na amplitude e na profundidade que neste artigo podem ser mencionados apenas brevemente o narcisismo Seu avanço teórico mais importante foi provavel mente a aplicação da teoria da libido ao Eu repressor O próprio Eu veio a ser considerado um reservatório de libido denomin ada narcísica desde o qual fluem os investimentos libidinais dos objetos e para o qual podem novamente ser recolhidos Com esta concepção foi possível chegar à análise do Eu e fazer a 263300 separação clínica das psiconeuroses em neuroses de transferên cia e afecções narcísicas No caso das primeiras histeria e neur ose obsessiva achase disponível uma certa quantidade de libido que tende a transferirse para outros objetos e que é utilizada na efetivação do tratamento analítico já os distúrbios narcísicos dementia praecox paranoia melancolia são caracterizados pela retirada da libido dos objetos sendo portanto pouco acessíveis à terapia analítica Mas essa inacessibilidade terapêutica não impediu a psicanálise de fazer ricas con tribuições iniciais para uma maior compreensão dessas doenças incluídas entre as psicoses mudança da técnica Depois que a elaboração da técnica interpret ativa satisfez por assim dizer a ânsia de saber do analista o in teresse tinha que se voltar para o problema de como atingir a in fluência mais eficaz sobre o paciente Logo se verificou que a primeira tarefa do médico seria ajudar o paciente a alcançar o conhecimento e depois a superação das resistências que nele surgem durante o tratamento e de que ele próprio no início não tem consciência Ao mesmo tempo viuse também que parte es sencial do trabalho de cura reside na superação dessas resistên cias e que sem isso não pode ser obtida uma duradoura mudança psíquica do paciente Desde que o trabalho do analista leva assim em conta a resistência do doente a técnica analítica ganhou uma sutileza e uma segurança que rivalizam com a da técnica cirúrgica Portanto é absolutamente desaconselhável empreender tratamentos psicanalíticos sem um treino rigoroso e o médico que se aventura a fazêlo confiando apenas em seu diploma não tem mais competência do que um simples leigo 264300 a psicanálise como método terapêutico A psicanálise nunca se ap resentou como uma panaceia nem pretendeu realizar milagres Numa das áreas mais difíceis da atividade médica é o único método possível para algumas doenças e para outras aquele que oferece os melhores ou mais duradouros resultados jamais sem o correspondente dispêndio de trabalho e tempo O médico que não é totalmente absorvido pelo trabalho de auxílio terapêutico tem o esforço amplamente recompensado com inéditas per cepções das tramas da vida psíquica e dos nexos entre o físico e o psíquico Ali onde atualmente ela não pode oferecer ajuda mas apenas compreensão teórica a psicanálise talvez abra o caminho para uma futura influência mais direta sobre os distúrbios neuróticos Seu âmbito de trabalho são sobretudo as duas neur oses de transferência a histeria e a neurose obsessiva em que contribuiu para a revelação da estrutura interna e dos mecanis mos ativos mas também todas as espécies de fobias inibições deformações do caráter perversões sexuais e dificuldades da vida amorosa Conforme alguns psicanalistas Jelliffe Groddeck Felix Deutsch também há perspectivas para o tratamento analítico de enfermidades orgânicas vulgares pois não é raro um fator psíquico participar da gênese e da manutenção dessas doenças Como a psicanálise requer alguma plasticidade psíquica em seus pacientes tem que manter certos limites de idade na escolha desses e como implica uma demorada e intensa ocu pação com o doente seria antieconômico esbanjar esse esforço em indivíduos sem valor que ao mesmo tempo são neuróticos Só a experiência obtida com o material de policlínicas poderá en sinar que modificações são necessárias para tornar a terapêutica 265300 analítica acessível a camadas amplas da população e adequála a inteligências mais fracas comparação com métodos de hipnose e sugestão O procedimento psicanalítico distinguese de todos os que fazem uso de sugestão persuasão etc pelo fato de não procurar suprimir mediante a autoridade nenhum fenômeno psíquico do paciente Busca averiguar a causa do fenômeno e eliminálo através de uma mudança duradoura das condições para seu surgimento Na psicanálise a inevitável influência sugestiva do médico é dirigida para a tarefa que cabe ao doente de superar as resistências ou seja de realizar o trabalho de cura O cuidadoso manejo da téc nica protege do perigo de falsear mediante a sugestão os dados da memória do paciente Em geral porém justamente o desper tar das resistências protege contra os efeitos enganadores da in fluência sugestiva Podese dizer que o objetivo do tratamento é pela eliminação das resistências e averiguação das repressões do doente produzir a mais ampla harmonização e fortalecimento do seu Eu pouparlhe o dispêndio psíquico em conflitos internos e dele obter o melhor que permitam suas disposições e capacidades tornandoo na medida do possível capaz de trabal har e de fruir A remoção dos sintomas não é buscada como ob jetivo especial mas resulta quase como um ganho secundário no correto exercício da análise O psicanalista respeita a peculiarid ade do paciente não busca moldálo conforme os seus do médico ideais pessoais e se alegra ao não precisar dar consel hos e em vez disso poder despertar a iniciativa do analisando 266300 relação com a psiquiatria Hoje a psiquiatria é uma ciência essen cialmente descritiva e classificatória de orientação mais somát ica do que psicológica que carece de possibilidades de explicação para os fenômenos observados Mas a psicanálise não se con trapõe a ela como se poderia crer pela atitude quase unânime dos psiquiatras Enquanto psicologia profunda psicologia dos processos da vida psíquica que se furtam à consciência ela é des tinada isto sim a fornecerlhe o indispensável alicerce e remedi ar suas atuais limitações No futuro haverá provavelmente uma psiquiatria científica para a qual a psicanálise terá servido de introdução críticas e incompreensões da psicanálise A maioria das críticas feitas à psicanálise também em obras científicas baseiase em informação insuficiente que por sua vez parece motivada por resistências afetivas É um erro por exemplo acusar a psicanál ise de pansexualismo e dizer que ela faz derivar todo o funcio namento psíquico da sexualidade e o explica a partir desta Na verdade desde o início a psicanálise diferenciou os instintos sexuais de outros que chamou provisoriamente de instintos do Eu Ela jamais pretendeu explicar tudo e mesmo as neuroses ela não derivou apenas da sexualidade mas do conflito entre os impulsos sexuais e o Eu O nome libido não designa na psicanál ise excetuando C G Jung a energia psíquica pura e simples mente mas a força motriz dos instintos sexuais Certas afirm ações como a de que todo sonho seria uma realização de desejo sexual nunca tiveram procedência A objeção de unilateralidade feita à psicanálise que como ciência do inconsciente psíquico tem seu delimitado e definido campo de trabalho é algo tão 267300 despropositado quanto seria tachar a química de unilateral Uma incompreensão maldosa justificada apenas pela ignorância é achar que a psicanálise espera que a cura dos distúrbios neuróti cos se dê a partir da liberação da sexualidade A tomada de consciência dos desejos sexuais reprimidos na análise possibil ita antes um domínio dos mesmos que não se alcançava com a representação anterior É mais correto dizer que a análise libera o neurótico das cadeias de sua sexualidade Além do mais é muito pouco científico julgar a psicanálise pela sua possível aptidão para minar a religião a autoridade e a ética pois como toda ciência ela é não tendenciosa e conhece apenas o intuito de apreender uma porção da realidade de maneira não contra ditória Por fim podese caracterizar como simplório o temor manifestado por alguns de que os chamados bens supremos da humanidade pesquisa arte amor sensibilidade ética e social perderiam seu valor ou sua dignidade porque a psicanálise é capaz de mostrar sua procedência de impulsos instintuais ele mentares animais as aplicações e conexões não médicas da psicanálise Uma apreciação da psicanálise seria incompleta se deixasse de informar que única entre as disciplinas médicas ela mantém amplas re lações com as ciências humanas e está prestes a adquirir para a história da religião e da civilização a mitologia e a ciência da lit eratura uma significação análoga à que tem para a psiquiatria Isso pode surpreender quando se considera que originalmente ela não tinha outro objetivo senão compreender e influenciar os sintomas neuróticos Mas é fácil indicar onde se estabeleceu a ponte para as ciências humanas Quando a análise dos sonhos 268300 levou a uma percepção dos processos psíquicos inconscientes e mostrou que os mecanismos que geram os sintomas patológicos também agem na vida psíquica normal a psicanálise se tornou psicologia da profundeza e como tal capaz de ser aplicada às ciências humanas pôde resolver uma série de questões ante as quais a psicologia oficial da consciência detinhase perplexa Bastante cedo estabeleceramse os vínculos com a filogênese humana Viuse que frequentemente a função patológica nada mais é do que regressão a um anterior estágio de desenvolvi mento da função normal C G Jung foi o primeiro a enfatizar a espantosa coincidência entre as desordenadas fantasias dos doentes de dementia praecox e os mitos de povos primitivos o presente autor chamou a atenção para o fato de que os dois dese jos que formam o complexo de Édipo têm conteúdo igual ao das duas proibições capitais do totemismo não matar o ancestral e não desposar uma mulher do próprio clã e disso tirou con clusões de vasto alcance O significado do complexo de Édipo começou a tomar proporções gigantescas chegouse à ideia de que a organização do Estado a moralidade o direito e a religião teriam surgido conjuntamente na préhistória da humanidade como formação reativa ao complexo de Édipo Otto Rank lançou viva luz sobre a mitologia e a história da literatura aplicando conhecimentos psicanalíticos Theodor Reik fez o mesmo com a história dos costumes e das religiões e o pastor Oskar Pfister de Zurique despertou o interesse de educadores religiosos e pro fessores mostrando o valor dos pontos de vista psicanalíticos para a pedagogia Não cabem aqui maiores detalhes sobre essas aplicações da psicanálise basta observar que ainda não se pode ver até onde irão 269300 caráter da psicanálise como ciência empírica A psicanálise não é como um sistema filosófico que parte de conceitos fundamentais claramente definidos procura com eles apreender o mundo como um todo e depois quando completado não tem mais lugar para novos achados e melhores percepções Ela se atém aos fatos do seu âmbito de trabalho busca solucionar os problemas imedi atos trazidos pela observação segue tateando com base na ex periência está sempre incompleta sempre disposta a ajustar ou modificar suas teorias Tal como a física e a química ela tolera muito bem que seus principais conceitos sejam vagos e seus pressupostos sejam provisórios e espera uma maior precisão deles como resultado do trabalho futuro II TEORIA DA LIBIDO libido é um termo da teoria dos instintos já utilizado nesse sen tido por Albert Moll Investigações sobre a libido sexualis 1898 e introduzido na psicanálise pelo presente autor Nas páginas seguintes apenas serão apresentados os desenvolvimentos ainda não concluídos que a teoria dos instintos experimentou na psicanálise contraposição de instintos sexuais e instintos do eu A psicanálise logo percebeu que todo o funcionamento psíquico tinha de ser baseado no jogo de forças dos instintos elementares e viuse numa situação ruim pois não havia uma teoria dos instintos na psicologia e ninguém era capaz de dizer o que é realmente um 270300 instinto A arbitrariedade era completa cada psicólogo postulava tais e tantos instintos como lhe apetecia As primeiras manifest ações que a psicanálise estudou foram as chamadas neuroses de transferência histeria e neurose obsessiva Seus sintomas apareciam pelo fato de impulsos instintuais sexuais terem sido rejeitados reprimidos pela personalidade o Eu e achado ex pressão por rodeios através do inconsciente Foi possível dar conta disso contrapondo aos instintos sexuais os instintos do Eu instintos de autoconservação o que se harmonizava com a célebre afirmação de um poeta de que o mundo é movimentado pela fome e pelo amor A libido era expressão de energia do amor no mesmo sentido que a fome era expressão do instinto de autoconservação A natureza dos instintos do Eu continuava en tão indefinida e como as demais características do Eu ina cessível à análise Não havia como indicar se existiam e quais seriam as diferenças qualitativas entre as duas espécies de instintos a libido primordial C G Jung tentou superar essa obscuridade por via especulativa supondo uma única libido primordial que podia ser sexualizada ou dessexualizada que portanto coincidia essencialmente com a energia psíquica em geral Essa inovação era discutível em termos de método gerava confusão reduzia o termo libido a um sinônimo dispensável e na prática tinha sempre que distinguir entre libido sexual e assexual A diferença entre os instintos sexuais e os instintos com outras metas não podia ser abolida mediante uma nova definição 271300 a sublimação Nesse meiotempo o estudo ponderado dos im pulsos sexuais acessíveis apenas através da análise havia res ultado em alguns conhecimentos dignos de nota O assim cha mado instinto sexual era bastante composto e podia novamente se decompor em seus instintos parciais Cada instinto parcial era invariavelmente caracterizado por sua fonte ou seja a região ou zona do corpo da qual obtinha sua excitação Além do mais podiase distinguir nele um objeto e uma meta A meta era sempre a satisfação pela descarga mas podia experimentar uma transformação da atividade para a passividade O objeto se ligava ao instinto de modo menos firme do que se imaginava antes era trocado facilmente por outro e o instinto que possuía um objeto externo também podia se voltar para a própria pessoa Os instin tos podiam permanecer independentes uns dos outros ou combinarse de modo ainda inconcebível fundirse para um tra balho em comum Também podiam representar uns aos outros transferir uns para os outros seu investimento objetal de modo que a satisfação de um tomava o lugar da satisfação dos outros O mais importante destino de um instinto parecia ser a sublim ação em que objeto e meta são mudados de forma que o in stinto originalmente sexual passa a encontrar satisfação numa realização não mais sexual vista como de maior valor social ou ético Tudo isso são traços que ainda não se juntam num quadro único o narcisismo Houve um progresso decisivo quando se passou à análise da dementia praecox e de outras afecções psicóticas começando assim a estudar o próprio Eu até então conhecido apenas como instância repressora e opositora Identificouse 272300 como processo patogênico na demência o fato de a libido ser re tirada dos objetos e introduzida no Eu enquanto as manifest ações ruidosas da doença vêm dos vãos esforços da libido para encontrar o caminho de volta aos objetos Era possível então que libido do objeto se transformasse em investimento do Eu e viceversa Considerações ulteriores levaram a supor que esse processo deve ocorrer em ampla escala que o Eu deve ser visto como grande reservatório de libido do qual essa é enviada para os objetos e que está sempre disposto a acolher a libido que re flui dos objetos Portanto os instintos de autoconservação seri am também de natureza libidinal seriam instintos sexuais que em vez de objetos externos teriam tomado o próprio Eu como objeto Na experiência clínica já eram conhecidas pessoas que se comportavam de forma singular como se estivessem enamora das de si mesmas e essa perversão fora denominada narcisismo A libido dos instintos de autoconservação foi então chamada de narcísica e um alto grau desse amor a si próprio foi reconhecido como o estado primário e normal A fórmula anterior para as neuroses de transferência não necessitava uma correção mas certamente uma modificação em vez de um conflito entre instin tos sexuais e instintos do Eu era melhor falar de conflito entre li bido objetal e libido do Eu ou dado que a natureza dos instintos era a mesma entre os investimentos objetais e o Eu aparente aproximação à concepção de jung Desse modo pareceu que a pesquisa psicanalítica em seu lento proceder terminava seguindo a especulação junguiana sobre a libido primordial sobretudo porque a transformação da libido objetal em narcisismo achase inevitavelmente ligada a uma certa 273300 dessexualização a um abandono das metas sexuais específicas Mas impõese a reflexão de que se os instintos de autoconser vação do Eu são reconhecidos como libidinais isso não prova que não haja outros instintos atuando no Eu o instinto de rebanho Diversas vozes afirmam que há um in stinto de rebanho específico inato e não suscetível à decom posição que determina a conduta social do ser humano levando os indivíduos à união em comunidades maiores A psicanálise vêse obrigada a contradizer essa tese Ainda que o instinto so cial seja inato ele pode facilmente remontar a investimentos de objeto originalmente libidinais e desenvolverse na criança como formação reativa a posturas hostis de rivalidade Baseiase num tipo especial de identificação com o outro impulsos sexuais inibidos na meta Os instintos sociais pertencem a uma classe de impulsos que não chegam a pedir a denominação de sublimados embora estejam próximos desses Não abandon aram seus objetivos diretamente sexuais mas resistências interi ores os impedem de alcançálos contentamse com determin adas aproximações à satisfação e justamente por isso produzem laços bastante firmes e duradouros entre os indivíduos São dessa espécie em particular as relações de ternura plena mente sexuais na origem entre pais e filhos os sentimentos de amizade e as ligações afetivas do casamento procedentes da at ração sexual reconhecimento de duas espécies de instintos na vida psíquica Por mais que a psicanálise se empenhe em desenvolver suas teorias 274300 de modo independente das demais ciências ela é obrigada no caso da teoria dos instintos a buscar apoio na biologia Com base em amplas reflexões sobre os processos que constituem a vida e conduzem à morte devese provavelmente reconhecer duas espécies de instintos que correspondem aos processos opostos de construção e desintegração do organismo Alguns deles trabalhando silenciosamente no fundo perseguiriam a meta de conduzir à morte o ser vivo merecendo a designação de instintos de morte e voltandose para fora pela ação conjunta de numerosos organismos elementares unicelulares se manifest ariam como tendências de destruição ou agressão Os outros seriam os que conhecemos mais na psicanálise os instintos li bidinais sexuais ou da vida que bem podem ser reunidos sob o nome de Eros cuja intenção seria formar unidades cada vez maiores com a substância viva e assim manter o prosseguimento da vida e levála a desenvolvimentos cada vez mais altos Nos seres vivos os instintos eróticos e os de morte es tabeleceriam misturas ou fusões regulares mas também seriam possíveis disjunções deles A vida consistiria nas manifestações do conflito ou da interferência dessas duas espécies de instintos trazendo para o indivíduo a vitória dos instintos de destruição mediante a morte mas também a vitória de Eros mediante a procriação a natureza dos instintos A partir dessa concepção podese carac terizar os instintos como tendências intrínsecas à substância viva à restauração de um estado anterior ou seja tendências historicamente condicionadas de natureza conservadora e como que expressão de uma inércia ou elasticidade do orgânico As duas espécies de instintos o Eros e o instinto de morte 275300 estariam atuando e pelejando entre si desde o surgimento da vida Conhecimentos tradução insatisfatória para Einsichten as versões es trangeiras consultadas trazem conocimientos intelecciones conoscenze in formation o termo adotado na versão inglesa surpreende pois a palavra inglesa insight é a que mais se aproxima do original alemão e é utilizada em outras passagens da Standard A partir de um só conjunto aus einem Zusammenhang nas versões consultadas unitariamente a partir de un conjunto unitario de nexos par tendo da um unico contesto as a single whole Educadores religiosos e professores Seelsorger und Lehrer O problema é a versão do primeiro termo que não tem correspondência exata em por tuguês é formado de Seele alma e Sorger aquele que cuida Algumas versões estrangeiras consultadas recorreram a pastores de almas idem cur atori danime religious and secular teachers Mas uma nota de James Strachey informa que Freud já havia usado o termo no artigo Sobre a justificativa para separar da neurastenia como neurose de angústia um determinado complexo de sintomas de 1895 e também numa carta a Wilhelm Fliess em 18 de agosto de 1894 Disjunções tradução aqui dada a Entmischungen o oposto de Vermis chungen misturas mesclas usado logo antes na mesma frase As versões consultadas recorreram a disociaciones desmezclas disimpasto defusions O termo também aparece nos capítulos iii e iv de O Eu e o Id 1923 276300 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 19201922 CONTRIBUIÇÃO À PRÉHISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA No mais recente livro de Havelock Ellis o emérito pesquisador da sexualidade e eminente crítico da psicanálise intitulado The philosophy of conflict and other essays in wartime second series Londres 1919 encontrase um ensaio Psychoanalysis in relation to sex que busca demonstrar que a obra do criador da psicanálise não deveria ser julgada como trabalho científico mas como realização artística Não podemos senão ver nessa con cepção uma nova forma de resistência e uma rejeição da análise embora expressa de maneira amável e até excessivamente lison jeira Nós nos inclinamos a contestála decididamente Mas o motivo de nos ocuparmos do ensaio de Havelock Ellis não é a contestação e sim o fato de ele com sua vasta leitura in troduzir um autor que praticou e recomendou a técnica da livre associação embora para outros fins e que assim tem o direito de ser chamado nesse aspecto um precursor da psicanálise Em 1857 diz Havelock Ellis o dr J J Garth Wilkinson mais con hecido como poeta e místico seguidor de Swedenborg do que como médico publicou um volume de poemas místicos rimados produzido no que seria um novo método por ele denominado impressão Um tema é escolhido ou registrado no papel afirma ele e quando isso é feito a primeira ideia que vem à mente impression upon the mind após a redação do título é o começo da elaboração daquele tema por mais estranha ou sem nexo que pareça a palavra ou a frase O primeiro movimento do espírito a primeira palavra que surge é consequência do esforço de imersão no tema dado Prosseguese coerentemente com esse método e Garth Wilkinson diz Sempre constatei que isto leva ao íntimo da questão como que por um instinto infalível Essa técnica corresponde segundo ele a um exaltado abandonarse uma solicitação a que os impulsos inconscientes mais profundos se manifestem Vontade e reflexão devem ser deixadas de lado lembra ele o indivíduo se entrega à inspiração influx e nisso vê que as faculdades mentais dirigemse para objetivos que não conhecem Não podemos esquecer que Wilkinson embora fosse médico usou essa técnica para fins religiosos e literários e não médicos ou científicos mas é fácil ver que se trata essencialmente da téc nica psicanalítica tomando a própria pessoa como objeto mais uma prova de que o método de Freud é o de um artista Conhecedores da literatura psicanalítica se lembrarão aqui da bela passagem na correspondência entre Schiller e Körner1 na qual o grande poeta e pensador em 1788 recomenda a quem quiser ser produtivo a consideração ao pensamento es pontâneo É de imaginar que a técnica supostamente nova de Wilkinson já tenha sido vislumbrada por muitos outros e o seu uso sistemático na psicanálise não nos parecerá tanto uma prova da natureza artística de Freud quanto resultado da convicção a que ele se apegou como a um preconceito da total determinação de tudo o que sucede na psique A relação do pensamento es pontâneo com o tema fixado revelouse então a primeira e mais provável possibilidade que é também confirmada pela experiên cia analítica na medida em que resistências extraordinárias não tornem irreconhecível o nexo suposto 279300 No entanto podemos seguramente admitir que nem Schiller nem Garth Wilkinson tiveram influência na escolha da técnica psicanalítica É de outra parte que há indícios de uma referência pessoal Há pouco tempo o dr Hugo Dubowitz de Budapeste chamou a atenção do dr Ferenczi para um curto ensaio de apenas quatro páginas e meia escrito por Ludwig Börne em 1823 que se acha no primeiro volume de suas Obras reunidas edição de 1862 Intitulase A arte de se tornar um escritor original em três dias e tem as notórias peculiaridades do estilo de Jean Paul do qual Börne era admirador naquele tempo Conclui com as seguintes frases Eis aqui o método prometido Tomem algumas folhas de papel e escrevam por três dias sem falsidade e hipocrisia tudo o que lhes passar pela cabeça Escrevam o que pensam de si mes mos de suas mulheres da guerra com os turcos de Goethe do processo Fonk do Juízo Final de seus superiores e após os três dias ficarão admirados com os pensamentos novos e inaudi tos que tiveram Essa é a arte de se tornar um escritor original em três dias Quando o prof Freud teve a oportunidade de ler o ensaio de Börne transmitiu algumas informações que podem ter relevân cia para o tema aqui discutido o da préhistória do uso psic analítico da livre associação Ele contou que aos catorze anos de idade recebeu de presente as obras de Börne e que hoje cin quenta anos depois esse é o único livro de sua juventude que ainda guarda Esse escritor foi o primeiro que o interessou pro fundamente Não consegue lembrarse do ensaio em questão mas outros do mesmo volume como o tributo a Jean Paul O artista do comer O tolo do Cisne branco repetidamente lhe 280300 voltaram à memória durante muitos anos sem motivo claro Ficou particularmente surpreso ao ver expressas na instrução para se tornar um escritor original algumas ideias que sempre abrigou e defendeu como por exemplo Uma infame covardia de pensar nos detém a todos Mais opressora que a censura dos governos é a censura que a opinião pública exerce sobre as nossas obras intelectuais aqui é mencionada a censura que na psicanálise reapareceu como censura onírica Para serem melhores do que são o que falta à maioria dos escritores não é intelecto mas caráter A retidão é a fonte de toda genialid ade e os homens seriam mais inteligentes se fossem mais morais É possível então que essa referência tenha trazido à luz o quê de criptomnésia que em tantos casos se acha por trás de uma aparente originalidade A ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS DE UMA GAROTA DE QUATRO ANOS Eis um trecho da carta de uma senhora americana mãe de uma garota de quatro anos Tenho de lhe contar o que a pequena disse ontem Ainda não me recuperei do espanto A prima Emily falou que mudaria para um apartamento Então a menina falou Se Emily se casar vai ter um neném Eu me surpreendi e per guntei Como você sabe isso E ela respondeu Quando alguém casa sempre vem um neném Eu repeti Mas como você pode saber isso E ela Ah eu sei muita coisa mais eu sei também 281300 que as árvores crescem na terra in the ground Veja que lig ação É justamente o que eu pensava em lhe dizer um dia como esclarecimento E ela continuou Também sei que Deus cria o mundo makes the world Quando ela diz coisas assim mal posso acreditar que ainda vai fazer quatro anos de idade Ao que parece a própria mãe entendeu a passagem da primeira frase da criança para a segunda A menina quer dizer Eu sei que as crianças crescem dentro da mãe e não exprime este saber diretamente mas de forma simbólica substituindo a mãe pela Mãe Terra Já notamos por muitas observações segur as que bem cedo as crianças começam a usar os símbolos Mas também a terceira frase da pequena se vincula com as anteriores Só podemos supor que ela quis comunicar alguma coisa mais do que sabe sobre a origem dos bebês Sei também que tudo é obra do pai Mas desta vez ela substitui o pensamento direto pela sublimação correspondente Deus cria o mundo O DR ANTON VON FREUND Em 20 de janeiro de 1920 poucos dias após completar quarenta anos de idade morreu num hospital de Viena o dr Anton von Freund secretáriogeral da Associação Psicanalítica Internacion al desde o Congresso de Budapeste em setembro de 1918 Ele era o mais vigoroso promotor de nossa ciência e uma de suas grandes esperanças Nascido em Budapeste em 1880 doutorou se em filosofia e pretendia dedicarse ao magistério mas foi con vencido a ingressar nos empreendimentos industriais do pai No 282300 entanto os sucessos que obteve como industrial e administrador não podiam satisfazer as duas necessidades que vinham do fundo de seu ser a beneficência social e a atividade científica Despretensioso no tocante a si mesmo possuindo todos os dons que encantam e conquistam o amor das pessoas ele utilizou seus recursos materiais para promover os semelhantes mitigar a dureza do destino desses e fortalecer em toda parte o senso de justiça social Assim criou um grande círculo de amigos que sen tirão profundamente a sua perda Ao conhecer a psicanálise em seus últimos anos de vida ela pareceu lhe acenar com a realização simultânea de seus dois grandes desejos Ele se propôs a tarefa de ajudar as massas com a psicanálise de empregar a ação terapêutica dessa técnica medicinal que até então beneficiara apenas os ricos para o alí vio da miséria neurótica dos pobres Como o Estado não se pre ocupava com as neuroses da população as clínicas em geral re jeitavam a terapia psicanalítica sem oferecer uma alternativa para ela e os escassos médicos analistas presos às necessidades da subsistência não se achavam à altura de tão enorme tarefa Anton von Freund quis abrir para todos por sua iniciativa par ticular a via para o cumprimento desse tão importante dever so cial Durante os anos de guerra ele havia reunido uma soma en tão considerável mais de um milhão e meio de coroas para fins humanitários na cidade de Budapeste Em concordância com o então prefeito da cidade dr Stephan von Bárczy ele destinou essa quantia para a fundação de um instituto psicanalítico no qual a análise seria praticada ensinada e posta ao alcance da população O intuito era formar médicos em grande número para o exercício da psicanálise que depois receberiam da in stituição honorários para o tratamento ambulatorial de 283300 neuróticos pobres Além disso o instituto se tornaria um centro para o aperfeiçoamento científico na psicanálise O dr Ferenczi seria o diretor científico da instituição o próprio Von Freund se encarregaria de sua organização e do sustento E o fundador deu ao professor Freud uma quantia proporcionalmente menor para a fundação de uma editora psicanalítica internacional Mas que são as esperanças que são os projetos acalentados pelo homem este ser fugaz A morte prematura de Von Freund pôs fim a esses planos fil antrópicos e tão auspiciosos para a ciência Embora o fundo que ele reuniu ainda exista a postura dos atuais detentores do poder na capital húngara não dá margem à esperança de que suas in tenções se realizem Somente a editora psicanalítica foi criada em Viena No entanto o exemplo do falecido já produziu algum efeito Poucas semanas após sua morte foi inaugurada em Berlim graças à energia e à liberalidade do dr Max Eitingon a primeira policlínica psicanalítica Assim a obra de Von Freund tem con tinuadores sua pessoa é insubstituível e inesquecível PREFÁCIO A ADDRESSES ON PSYCHOANALYSIS DE JAMES J PUTNAM O editor desta série Ernest Jones editor de The International PsychoAnalytical Library deve sentir uma satisfação especial 284300 em poder lançar como volume inaugural esta coletânea dos tex tos psicanalíticos do professor James J Putnam o eminente neurologista da Universidade Harvard O professor Putnam que faleceu em 1918 com a idade de 72 anos foi não só o primeiro americano a se interessar pela psicanálise como logo se tornou o seu mais resoluto defensor e mais influente representante na América Em consequência da sólida reputação que adquirira com o magistério e por seu importante trabalho no âmbito das doenças nervosas orgânicas e ainda graças ao respeito geral de que gozava a sua pessoa ele foi capaz de fazer mais que qualquer outro provavelmente para a difusão da psicanálise em seu país e soube protegêla das calúnias que tanto no outro lado do Atlântico como neste inevitavelmente foram lançadas contra ela Todas as acusações estavam fadadas ao esquecimento se um homem com os elevados padrões éticos e a retidão moral de Put nam se colocava entre os defensores da nova ciência e da terapêutica nela baseada Os textos aqui reunidos num volume que Putnam escreveu entre 1909 e o final de sua vida fornecem um bom quadro de suas relações com a psicanálise Mostram como inicialmente ele se empenhou em corrigir um juízo provisório baseado num conhe cimento insuficiente como depois admitiu a essência da análise reconhecendolhe a capacidade de lançar uma viva luz sobre a origem das imperfeições e dos deslizes humanos e como o atraiu a possibilidade de contribuir para a melhoria humana conforme a psicanálise como depois se persuadiu como médico da ver dade da maioria das conclusões e postulados psicanalíticos e testemunhou que o médico que utiliza a análise compreende muito mais os sofrimentos de seus pacientes e pode fazer muito 285300 mais por eles do que era possível com os métodos anteriores de tratamento e por fim como se pôs a ir além das fronteiras da análise solicitando que como ciência ela deveria ligarse a um sistema filosófico particular e que sua prática deveria ser franca mente associada a um conjunto particular de doutrinas éticas Não é de surpreender que um espírito de inclinações notavel mente éticas e filosóficas como Putnam desejasse após mergul har profundamente na psicanálise estabelecer a mais íntima re lação entre esta e os objetivos que lhe eram mais próximos ao coração Mas esse entusiasmo tão admirável num homem de sua idade não conseguiu arrebatar outros Indivíduos mais jovens permaneceram indiferentes sobretudo Ferenczi manifestou opinião contrária A razão decisiva para a rejeição das propostas de Putnam foi a dúvida no tocante a quais dos inúmeros sistem as filosóficos deveriam ser aceitos já que todos pareciam re pousar em fundamentos igualmente frágeis e até então tudo isso fora sacrificado em prol da relativa certeza dos resultados da an álise Pareceu mais prudente esperar e descobrir se uma atitude particular ante a vida poderia se impor em nós com todo o peso da necessidade pela própria investigação psicanalítica Temos o dever de exprimir nossos agradecimentos à viúva do autor sra Putnam pela assistência no tocante aos manuscritos aos direitos de edição e ao apoio financeiro sem a qual a pub licação deste volume não teria sido possível Não havia manuscritos em inglês no caso dos artigos de números vi vii e x Eles foram traduzidos para o inglês pela dra Katherine Jones do texto alemão redigido pelo próprio Putnam Este volume conservará nos meios psicanalíticos a memória do amigo cuja perda lamentamos tão profundamente Que seja o 286300 primeiro de uma série de publicações destinadas a promover o entendimento e a aplicação da psicanálise entre os falantes da língua inglesa um objetivo ao qual James J Putnam dedicou os últimos dez anos de sua fecunda vida Janeiro de 1921 APRESENTAÇÃO DE THE PSYCHOLOGY OF DAYDREAMS DE J VARENDONCK O presente livro do dr Varendonck contém uma importante novidade e despertará legitimamente o interesse de todos os filósofos psicólogos e psicanalistas O autor conseguiu após um esforço de vários anos apreender essa atividade fantasiadora do pensamento a que nos abandonamos nos estados de distração e na qual facilmente caímos antes de adormecer ou ao não acordar inteiramente Ele levou à consciência as cadeias de pensamentos que em tais circunstâncias se apresentam sem a vontade da pessoa registrouas estudou suas peculiaridades e as diferenças entre elas e o pensamento intencional consciente e nisso fez uma série de significativas descobertas de que derivam prob lemas e questões ainda mais amplos Vários pontos da psicologia do sonho e dos atos falhos têm solução segura nas observações do dr Varendonck Na edição alemã utilizada seguese esta observação no corpo do texto acompanhada do restante do texto em inglês A edição 287300 inglesa do livro de Varendonck The psychology of daydreams George Allen Unwin Ltd Londres 1927 sic contém ainda o seguinte trecho Não é minha intenção passar em revista os resultados do autor Eu me contentarei em assinalar a importância do seu trabalho e me permitirei somente uma observação sobre a ter minologia que adotou Ele considera o tipo de atividade men tal que encontrou no pensamento autista de Bleuler mas chamao via de regra pensamento préconsciente forecon scious thinking seguindo o costume em vigor na psicanálise No entanto o pensamento autista de Bleuler não coincide ab solutamente com a extensão e o conteúdo do préconsciente e também não posso dizer que o nome usado por Bleuler tenha sido bem escolhido A própria designação de pensamento préconsciente me parece como característica insatisfatória e enganadora O ponto em questão é que a espécie de ativid ade de pensamento da qual o conhecido devaneio é um exem plo completo em si mesmo desenvolvendo uma situação ou um ato que está sendo levado a um término constitui o mel hor e até agora o único exemplo estudado O devanear não deve suas peculiaridades à circunstância de ocorrer geral mente de modo préconsciente nem as formas se modificam quando é realizado conscientemente De outro ponto de vista sabemos que mesmo a reflexão rigorosamente dirigida pode ser alcançada sem a cooperação da consciência isto é pré conscientemente Por essa razão acho aconselhável ao se es tabelecer uma distinção entre os diferentes modos de ativid ade do pensamento não utilizar a relação com a consciência em primeira instância e designar o devaneio assim como as 288300 cadeias de pensamentos estudadas por Varendonck como pensamento livremente divagante ou fantástico em oposição à reflexão intencionalmente dirigida Ao mesmo tempo deve ser levado em consideração que nem mesmo o pensamento fantástico carece sempre de um objetivo e de representações finais PREFÁCIO A LA MÉTHODE PSYCHANALYTIQUE DE RAYMOND DE SAUSSURE É um grande prazer para mim declarar publicamente que con sidero este livro do dr Raymond de Saussure um trabalho valioso e meritório particularmente apto a transmitir ao leitor francês uma ideia correta sobre a natureza e o teor da psicanál ise O dr De Saussure não apenas estudou conscienciosamente as minhas obras como fez o sacrifício de submeterse a uma an álise comigo durante vários meses Desse modo pôsse em con dições de formar um juízo próprio sobre a maioria das questões pendentes na psicanálise e de evitar os muitos equívocos e dis torções que é habitual encontrarmos nas exposições das teorias psicanalíticas tanto em autores franceses como em alemães Ele também não deixa de refutar vigorosamente algumas afirmações inexatas ou descuidadas que os comentadores passam uns para os outros como a de que todos os sonhos teriam um significado sexual ou de que o único móvel da vida psíquica seria de acordo comigo a libido sexual Como o dr De Saussure informa em seu prefácio que eu cor rigi seu trabalho devo precisar que minha influência se limitou a 289300 algumas correções e observações De forma nenhuma tentei re stringir a independência do autor Na primeira parte do livro teórica eu teria apresentado diferentemente algumas coisas como o difícil assunto do préconsciente e do inconsciente por exemplo e sobretudo teria tratado mais exaustivamente do complexo de Édipo O belo sonho oferecido pelo dr Odier ao autor pode dar tam bém aos não iniciados uma ideia da riqueza das associações oníricas da relação entre a imagem onírica manifesta e os pensamentos latentes ocultos atrás dela e da importância que cabe à análise dos sonhos no tratamento do paciente Ex celentes por fim são as observações conclusivas sobre a técnica da psicanálise Inteiramente corretas nada omitem de essencial não obstante sua brevidade e atestam a refinada compreensão do autor Naturalmente o leitor não pode esperar que o simples conhecimento das regras técnicas o capacite a conduzir uma análise Também na França a psicanálise começa a despertar em me dida mais ampla o interesse dos especialistas e dos leigos Lá ela certamente não encontrará menores resistências do que em out ros países Que o livro do dr De Saussure contribua bastante para o esclarecimento nas discussões vindouras Viena fevereiro de 1922 290300 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O INCONSCIENTE O palestrante repetiu a já conhecida história do desenvolvimento do conceito de inconsciente na psicanálise Inconsciente é primeiramente um termo tão só descritivo que então inclui o que é temporariamente latente Mas a concepção dinâmica do processo de repressão faz necessário dar ao inconsciente um sen tido sistemático de modo que o inconsciente seja equiparado ao reprimido O latente só temporariamente inconsciente recebe o nome de préconsciente e é colocado do ponto de vista dinâmico na proximidade do consciente A dupla significação do nome inconsciente trouxe certas desvantagens pouco relev antes e difíceis de serem evitadas Vêse porém que não é pos sível fazer o reprimido coincidir com o inconsciente e o Eu com o préconsciente e o consciente O palestrante discutiu os dois fa tos que demonstram que também no Eu há um inconsciente que se comporta dinamicamente como o inconsciente reprimido ou seja a resistência procedente do Eu na análise e o sentimento de culpa inconsciente Ele informou que procura num trabalho a ser publicado em breve O Eu e o Id considerar a influência que essas novas ideias Einsichten devem ter sobre a concepção do inconsciente 291300 A CABEÇA DA MEDUSA A interpretação de temas mitológicos isolados não foi tentada com muita frequência por nós Mas ela surge naturalmente em relação à horripilante cabeça cortada da Medusa Decapitar castrar O horror à Medusa é portanto horror à castração ligado à visão de algo De muitas análises conhecemos o ensejo para isso ele se dá quando o garoto que até então não queria crer na ameaça de castração enxerga um genital femin ino Provavelmente de uma mulher adulta rodeado de pelos o da mãe no fundo Se os cabelos da Medusa são muitas vezes retratados nas obras de arte como serpentes estas procedem também do com plexo de castração e curiosamente por mais terríveis que sejam elas próprias contribuem de fato para mitigar o horror pois substituem o pênis cuja falta é a causa do horror É a confirm ação da regra técnica segundo a qual a multiplicação do pênis significa castração A visão da cabeça da Medusa torna rígido de terror trans forma o espectador em pedra A mesma origem no complexo de castração e a mesma mudança do afeto Pois o tornarse rígido significa a ereção ou seja o consolo do espectador na situação original Ele ainda tem um pênis assegurase disso com a rigidez Atenas a deusa virgem leva este símbolo do terror em sua vestimenta Com razão pois assim se torna uma mulher inabor dável que rechaça todo desejo sexual Leva à mostra o aterrador 292300 genital da mãe Para os gregos em geral fortemente homos sexuais não podia faltar a representação da mulher que apavora com sua castração Se a cabeça da Medusa substitui a representação do genital feminino ou melhor isola seu efeito apavorante daquele prazer oso é possível lembrar que a exibição dos genitais também é conhecida de resto como um ato apotropaico O que desperta horror num indivíduo terá o mesmo efeito no inimigo do qual ele busca se defender Em Rabelais por exemplo o Diabo foge de pois que uma mulher lhe mostra a vulva Também o membro masculino ereto serve como apotropeu mas devido a outro mecanismo Mostrar o pênis e todos os seus sucedâneos quer dizer Não tenho medo de ti te en frento possuo um pênis Este é portanto um outro meio de in timidar o mau espírito Para poder sustentar seriamente essa interpretação seria ne cessário investigar a gênese desse símbolo do horror na mitolo gia grega e seus paralelos em outras mitologias Título original Zur Vorgeschichte der analytischen Technik publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse Revista In ternacional de Psicanálise v 6 1920 pp 7981 assinado apenas com a inicial F Traduzido de Gesammelte Werke xii pp 30912 também se acha em Studienausgabe Ergänzungsband Volume Complementar pp 2515 1 Descoberta por Otto Rank e citada na Interpretação dos sonhos 7a ed 1922 p 72 GW iiiii pp1078 SE iv pp 1023 Pensamento espontâneo tradução aqui dada a freier Einfall O substantivo alemão não tem correspondência exata em português o verbo einfallen 293300 significa ocorrer no sentido de ter uma ideia Ocorreume que Em versões estrangeiras consultadas se lê asociaciones espontáneas ocurrencia libre libere associazioni free association Para mais informações sobre o termo Einfall ver Nietzsche Além do bem e do mal trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1992 nota 16 do tradutor Título original Gedankenassoziation eines vierjährigen Kindes publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse Revista In ternacional de Psicanálise v 6 1920 p 157 Traduzido de Gesammelte Werke xii pp 3056 Título original Dr Anton v Freund publicado primeiramente em Interna tionale Zeitschrift für Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise assinado Redação e Editor Traduzido de Gesammelte Werke xiii pp 4356 Was sind Hoffnungen was sind Entwürfe die der Mensch der Vergäng liche baut Schiller Die Braut von Messina A noiva de Messina ato iii cena 5 Título original Preface to J J Putnams Addresses on psychoanalysys publicado primeiramente na obra com esse título Londres 1921 Até hoje não se encontrou o original alemão desse texto Mesmo nas mais completas edições alemãs das obras de Freud Gesammelte Schriften da década de 1920 e Gesammelte Werke dos anos 40 foi incluída a versão inglesa de Ern est Jones feita para a edição original do livro de Putnam Traduzido de Ges ammelte Werke xiii p 437 Título original Geleitwort zu J Varendonck Über das vorbewußte phantasierende Denken título alemão do livro traduzido por Anna Freud e lançado em 1922 publicado primeiramente na edição original inglesa do livro Londres Allen Unwin 1921 Traduzido de Gesammelte Werke xiii pp 43940 294300 Título original Geleitwort zu Raymond de Saussure La méthode psychana lytique publicado primeiramente na obra com esse título Lausanne e Genebra 1922 pp viiviii Traduzido de Gesammelte Werke Nachtragsband Frankfurt Fischer 1999 pp 7523 Segundo Ernest Jones esse livro de R de Saussure filho do famoso lin guista Ferdinand de Saussure foi proibido na França sob a alegação de que o sonho transmitido pelo dr Odier era uma ofensa à discrição profissional cf Jones Sigmund Freud life and work v iii Londres Hogarth 1957 p 101 Título original Einiges vom Unbewussten publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 8 1922 p 486 Tratase do ab stract de uma conferência ou comunicação redigido pelo próprio autor sob a rubrica Informe sobre o vii Congresso Psicanalítico de Berlim 2527 de setembro de 1922 Traduzido de Gesammelte Werke Nachtragsband Frank furt Fischer 1999 p 730 Até o momento a única versão estrangeira parece ter sido a italiana em Freud Opere v 9 191723 Turim Paolo Boringhieri 1986 1977 p 467 Título original Das Medusenhaupt manuscrito datado de 14 de maio de 1922 publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse Imago v 25 1940 p 105 Traduzido de Gesammelte Werke xvii pp 478 Apotropaico adj que se supõe evitar ou anular malefícios Novo Aurélio Dicionário eletrônico versão 30 Lexikon Informática sd apo tropeu adj e subst masc que ou o que tem poder de afastar desgraça in fluência maléfica Dicionário eletrônico Houaiss versão 105a Instituto Antônio HouaissObjetiva 2002 É pertinente citar nesse ponto uma nota de Freud a um artigo de Wilhelm Stekel intitulado Contribuição à psicologia do exibicionismo Zentralblatt für Psychoanalyse v 1 1911 lembrada por James Strachey O dr Stekel 295300 propõe aqui derivar o exibicionismo de impulsos narcísicos inconscientes Pareceme provável que a mesma explicação se aplique à exibição apotropaica encontrada nos povos da Antiguidade 296300 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16O EU E O ID ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO E OUTROS TEXTOS 19231925 17INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA Copyright da tradução 2011 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes xii xiii e xvii Londres Imago 1941 1940 e 1941 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fischer 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 obras da coleção pessoal de Freud Artemis Grécia período helenístico séc ii aC 25 cm Cabeça de guardião China dinastia Ming séc xvxvii 17 cm Freud Museum Londres Preparação Célia Euvaldo Revisão Huendel Viana Carmen S da Costa ISBN 9788580860733 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr wwwblogdacompanhiacombr Created by PDF to ePub