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1 VISUALIZANDO O CORPO TEORIAS OCIDENTAIS E SUJEITOS AFRICANOS Oyèrónkẹ Oyěwùmí OYĚWÙMÍ Oyèrónkẹ Visualizing the Body Western Theories and African Subjects in COETZEE Peter H ROUX Abraham PJ eds The African Philosophy Reader New York Routledge 2002 p 391415 Tradução para uso didático de wanderson flor do nascimento A ideia de que a biologia é destino ou melhor o destino é a biologia tem sido um marco do pensamento ocidental por séculos1 Seja na questão de quem é quem na pólis2 de Aristóteles ou quem é pobre nos Estados Unidos do final do século XX a noção de que diferença e hierarquia na sociedade são biologicamente determinadas continua a gozar de credibilidade mesmo entre cientistas sociais que pretendem explicar a sociedade humana em outros termos que não os genéticos No Ocidente as explicações biológicas parecem ser especialmente privilegiadas em relação a outras formas de explicar diferenças de gênero raça ou classe A diferença é expressa como degeneração Ao traçar a genealogia da ideia de degeneração no pensamento europeu J Edward Chamberlain e Sander Gilman notaram a maneira como ela era usada para definir certos tipos de diferença no século XIX em particular Inicialmente a degeneração reuniu duas noções de diferença uma científica um desvio de um tipo original e a outra moral um desvio de uma norma de comportamento Mas eram essencialmente a mesma noção de uma degradação um desvio do tipo original3 Consequentemente quem está em posições de poder acha imperativo estabelecer sua biologia como superior como uma maneira de afirmar seu privilégio e domínio sobre 1 Comparar com o uso feito por Thomas Laqueur Destino é anatomia que é o título do capítulo 2 de seu Making Sex Body and Gender from the Greeks to Freud Cambridge Mass Harvard University Press 1990 2 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 p 37 3 J Edward Chamberlain Sander Gilman Degeneration The Darker Side of Progress Nova York Columbia University Press 1985 p 292 2 os Outros Quem é diferente é visto como geneticamente inferior e isso por sua vez é usado para explicar sua posição social desfavorecida A noção de sociedade que emerge dessa concepção é que a sociedade é constituída por corpos e como corpos corpos masculinos corpos femininos corpos judaicos corpos arianos corpos negros corpos brancos corpos ricos corpos pobres Uso a palavra corpo de duas maneiras primeiro como uma metonímia para a biologia e segundo para chamar a atenção para a fisicalidade que parece estar presente na cultura ocidental Refirome tanto ao corpo físico como às metáforas do corpo Ao corpo é dada uma lógica própria Acreditase que ao olhar para ele pode se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas Como Naomi Scheman aponta em sua discussão sobre o corpo político na Europa prémoderna As maneiras pelas quais as pessoas conheciam seus lugares no mundo estavam relacionadas com seus corpos e as histórias desses corpos e quando violavam as prescrições para esses lugares seus corpos eram punidos muitas vezes de forma espetacularizada O lugar de alguém no corpo político era tão natural quanto a localização dos órgãos em um corpo e a desordem política era tão antinatural quanto a mudança e o deslocamento desses órgãos4 De modo semelhante Elizabeth Grosz observa o que ela chama de profundidade do corpo nas sociedades ocidentais modernas Nossas formas corporais ocidentais são consideradas expressões de um interior e não inscrições em uma superfície plana Ao construir uma alma ou psique por si mesma o corpo civilizado forma fluxos libidinais sensações experiências e intensifica as necessidades os desejos O corpo se torna um texto um sistema de signos a serem decifrados lidos e interpretados A lei social é encarnada corporalizada correlativamente os corpos são textualizados lidos por outros como expressão do interior psíquico de um sujeito Um depósito de inscrições e mensagens entre as fronteiras externas e internas do corpo gera ou constrói os movimentos do corpo como comportamento que então tem significados e funções interpessoais e socialmente identificáveis dentro de um sistema social5 4 Naomi Scheman Engenderings Constructions of Knowledge Authority and Privilege Nova York Routledge 1993 p 186 5 Elizabeth Grosz Bodies and Knowledges Feminism and the Crisis of Reason in Linda Alcoff Elizabeth Potter eds Feminist Epistemologies Nova York Routledge 1994 p 198 grifos meus 3 Consequentemente uma vez que o corpo é o alicerce sobre o qual a ordem social é fundada o corpo está sempre em vista e à vista Como tal invoca um olhar um olhar de diferença um olhar de diferenciação o mais historicamente constante é o olhar generificado Há um sentido em que expressões como o corpo social ou o corpo político não são apenas metáforas mas podem ser lidas literalmente Não surpreende portanto que quando o corpo político precisou ser purificado na Alemanha nazista certos tipos de corpos precisaram ser eliminados6 A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão7 A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao ver O olhar é um convite para diferenciar Diferentes abordagens para compreender a realidade então sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades Em relação à sociedade iorubá que é o foco deste livro o corpo aparece com uma presença exacerbada na conceituação ocidental da sociedade O termo cosmovisão que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade capta o privilégio ocidental do visual É eurocêntrico usálo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos O termo cosmopercepção8 é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais Neste estudo portanto cosmovisão só será aplicada para descrever o sentido cultural ocidental e cosmopercepção será usada ao descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou até mesmo uma combinação de sentidos Isso dificilmente representa a visão recebida da história e do pensamento social ocidentais Muito pelo contrário até recentemente a história das sociedades 6 Scheman Engenderings 7 Consultar por exemplo o seguinte para relatos da importância da visão no pensamento ocidental Hans Jonas The Phenomenon of Life Nova York Harper and Row 1966 Donald Lowe History of Bourgeois Perception Chicago University of Chicago Press 1982 8 Traduzo aqui a expressão worldsense por cosmopercepção por entender que a palavra sense indica tanto os sentidos físicos quanto a capacidade de percepção que informa o corpo e o pensamento A palavra percepção pode indicar tanto um aspecto cognitivo quanto sensorial E o uso da palavra cosmopercepção também busca seguir uma diferenciação proposta por Oyěwùmí com a palavra worldview que é usualmente traduzida para o português como cosmovisão e não como visão do mundo N da T 4 ocidentais tem sido apresentada como uma documentação do pensamento racional em que as ideias são enquadradas como agentes da história Se os corpos aparecem eles são articulados como o lado degradado da natureza humana O foco preferido tem estado na mente elevada acima das fraquezas da carne No início do discurso ocidental surgiu uma oposição binária entre corpo e mente O tão falado dualismo cartesiano era apenas uma afirmação de uma tradição9 na qual o corpo era visto como uma armadilha da qual qualquer pessoa racional deveria escapar Ironicamente mesmo quando o corpo permaneceu no centro das categorias e discursos sociopolíticos muitas das pessoas que pensaram sobre isso negaram sua existência para certas categorias de pessoas mais notavelmente elas mesmas A ausência do corpo tem sido uma précondição do pensamento racional Mulheres povos primitivos judeus africanos pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo de diferente em épocas históricas variadas foram consideradas como corporalizadas dominadas portanto pelo instinto e pelo afeto estando a razão longe delas Elas são o Outro e o Outro é um corpo10 Ao apontar a centralidade do corpo na construção da diferença na cultura ocidental não se nega necessariamente que tenha havido certas tradições no Ocidente que tentaram explicar as diferenças segundo critérios diversos em relação à presença ou ausência de certos órgãos a posse de um pênis o tamanho do cérebro a forma do crânio ou a cor da pele A tradição marxista é especialmente notável a esse respeito na medida em que enfatizava as relações sociais como uma explicação para a desigualdade de classes Contudo a crítica ao androcentrismo marxista por numerosas escritoras feministas sugere que esse paradigma também está implicado na somatocentralidade ocidental11 Da mesma forma o surgimento de disciplinas como a sociologia e a 9 Comparar com a discussão de Nancy ScheperHughes e Margaret Lock em The Mindful Body A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology Medical Anthropology Quarterly ns 1 Março de 1987 p 741 10 O trabalho de Sander Gilman é particularmente elucidativo sobre as concepções de diferença e alteridade Conferir Difference and Pathology Stereotypes of Sexuality Race and Madness Ithaca N Y Cornell University Press 1985 On Blackness without Blacks Essays on the Image of the Black in Germany Boston G K Hall 1982 The Case of Sigmund Freud Medicine and Identity Baltimore John Hopkins University Press 1993 Jewish Self Hatred AntiSemitism and the Hidden Language of the Jews Baltimore John Hopkins University Press 1986 11 Consultar por exemplo Linda Nicholson Feminism and Marx in Feminism as Critique On The Politics of Gender editado por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell Minneapolis University of Minnesota 5 antropologia que pretendem explicar a sociedade com base nas interações humanas parece sugerir o ostracismo do determinismo biológico no pensamento social Entretanto em um exame mais detalhado descobrese que dificilmente o corpo fora banido do pensamento social sem mencionar seu papel na constituição do status social Isso pode ser ilustrado na sociologia Em uma monografia sobre o corpo e a sociedade Bryan Turner lamenta o que ele percebe como a ausência do corpo nas investigações sociológicas Ele atribui esse fenômeno dos corpos ausentes12 ao fato de que a sociologia emergiu como uma disciplina que tomou o significado social da interação humana como seu principal objeto de investigação afirmando que o significado das ações sociais nunca pode ser reduzido à biologia ou à fisiologia ibid É possível concordar com Turner sobre a necessidade de separar a sociologia da eugenia e da frenologia No entanto dizer que os corpos estão ausentes das teorias sociológicas é desconsiderar o fato de que os grupos sociais que são objeto da disciplina são essencialmente entendidos como enraizados na biologia São categorias baseadas em percepções da presença da diferença física de vários tipos de corpo Nos EUA contemporâneos enquanto quem exerce a sociologia lida com as chamadas categorias sociais como subclasse suburbanos trabalhadores fazendeiros eleitores cidadãos e criminosos para mencionar algumas categorias que são entendidas historicamente e no ethos cultural como representações de específicos tipos de corpos não há como fugir da biologia Se o reino social é determinado pelos tipos de corpos que o ocupam então até que ponto existe um campo social dado que ele é concebido para ser biologicamente determinado Por exemplo ninguém que ouve a expressão executivos corporativos supõe que sejam mulheres e nas décadas de 1980 e 1990 ninguém associaria espontaneamente os brancos aos termos subclasse ou gangues de fato se alguém construísse uma associação entre os termos seus significados teriam que ser mudados Consequentemente qualquer pessoa que exerça Press 1986 Michele Barret Womens Oppression Today Londres New Left Books 1980 Heidi Hartmann The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism Towards a More Progressive Union in Women and Revolution A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism editado por Lydia Sargent Boston South End Press 1981 12 Bryan Turner Sociology and the Body in The Body and Society Explorations in Social Theory Oxford Blackwell 1984 p 31 6 a sociologia e estude essas categorias não pode escapar de uma subjacente insidiosidade biológica Essa onipresença de explicações biologicamente deterministas nas ciências sociais pode ser demonstrada com a categoria de criminoso ou delinquente na sociedade estadunidense contemporânea Troy Duster em um excelente estudo sobre o ressurgimento do determinismo biológico evidente nos círculos intelectuais desdenha da ânsia de muitas pessoas que realizam pesquisas em associar a criminalidade à herança genética ele prossegue argumentando que outras interpretações da criminalidade são possíveis A interpretação econômica predominante explica as taxas de criminalidade em termos de acesso a emprego e desemprego Uma interpretação cultural tenta mostrar diferentes os ajustes culturais entre a polícia e aqueles apreendidos por crimes Uma interpretação política vê a atividade criminal como interpretação política ou pré revolucionária Uma interpretação do conflito vê isso como um conflito de interesses por recursos escassos13 Nitidamente em face disso todas essas explicações da criminalidade são não biologicistas no entanto enquanto a população ou o grupo social que elas tentam explicar neste caso os criminosos negros eou pobres é vista como representando um agrupamento genético as suposições subjacentes sobre a predisposição genética dessa população ou grupo estruturarão as explicações apresentadas se são baseadas no corpo ou não Isso está ligado ao fato de que em função da história do racismo a questão de pesquisa subjacente mesmo que não seja declarada não é o motivo pelo qual certos indivíduos cometem crimes efetivamente na verdade é por que os negros têm tal propensão A definição do que é atividade criminosa está muito ligada a quem negro branco rico pobre está envolvido na atividade ibid Da mesma forma a polícia como um grupo é assumida como branca Similarmente quando são feitos estudos sobre liderança na sociedade estadunidense quem pesquisa descobre que a maioria das pessoas em cargos de liderança são machos brancos não importa que tipo de interpretação dão para este resultado suas declarações serão lidas como explicações para a predisposição desse grupo para a liderança 13 Troy Duster Backdoor to Eugenics Nova York Routledge 1990 7 Não questiono aqui a integridade de quem pesquisa meu propósito não é rotular qualquer grupo dedicado à pesquisa como intencionalmente racista Pelo contrário desde o movimento pelos direitos civis a pesquisa científicosocial tem sido usada para formular políticas que reduzam ou que procurem acabar com a discriminação contra grupos subordinados O que deve ser ressaltado no entanto é como a produção e disseminação de conhecimento nos Estados Unidos estão inevitavelmente embutidas no que Michael Omi e Howard Winant chamam de senso comum cotidiano da raça uma maneira de compreender explicar e agir no mundo14 A raça é então um princípio organizador fundamental na sociedade estadunidense É institucionalizada e funciona independentemente da ação de atores individuais No Ocidente as identidades sociais são todas interpretadas através do prisma da hereditariedade15 para tomar emprestada a expressão de Duster O determinismo biológico é um filtro através do qual todo o conhecimento sobre a sociedade funciona Como mencionado no prefácio refirome a esse tipo de pensamento como raciocínio corporal16 é uma interpretação biológica do mundo social O ponto novamente é que enquanto atores sociais como gestores criminosos enfermeiros e pobres sejam apresentados como grupos e não como indivíduos e desde que tais agrupamentos sejam concebidos como geneticamente constituídos então não há como escapar do determinismo biológico Neste contexto a questão da diferença de gênero é particularmente interessante no que diz respeito à história e à constituição da diferença na prática e no pensamento social europeus A longa história da corporificação de categorias sociais é sugerida pelo mito fabricado por Sócrates para convencer cidadãos de diferentes 14 Michael Omi e Howard Winant Racial Formation in the United States from the 1960s to the 1980s Nova York Routledge 1986 Comparar também com a discussão sobre a difusão da raça acima de outras variáveis como a classe na análise do motim de Los Angeles de 1992 Segundo Cedric Robinson A mídia de massa e as declarações oficiais subsumiram a genealogia das revoltas de Rodney King nas narrativas antidemocráticas de raça que dominam a cultura estadunidense A inquietação urbana o crime e a pobreza são economias discursivas que exprimem a raça e apagam a classe Race Capitalism and the AntiDemocracy artigo apresentado no Interdisciplinary Humanities Center University of California Santa Barbara Inverno de 1994 15 Duster Backdoor salienta que a noção amplamente difundida de que tanto as doenças como o dinheiro correm dentro das famílias 16 Comparar com o conceito de raciocínio racial de Cornel West em Race Matters Nova York Vantage 1993 8 classes a aceitarem qualquer status que lhes fosse imposto Sócrates explicou o mito a Gláucon nos seguintes termos Cidadãos diremos a eles em nossa história vocês são irmãos mas Deus os moldou de maneira diferente Alguns de vocês têm o poder de comando e na composição destes misturaram ouro portanto também têm a maior honra outros ele fez de prata para ser auxiliares outros novamente que devem ser lavradores e artesãos Ele compôs de bronze e ferro e as espécies geralmente serão preservadas nas crianças Um Oráculo diz que quando um homem de bronze ou ferro proteger o Estado ele será destruído Tal é a história existe alguma possibilidade de fazer nossos cidadãos acreditarem nela17 Gláucon responde Não na geração atual não há como realizar isso mas seus filhos podem ser levados a acreditar na história e os filhos de seus filhos e a posteridade depois deles18 Gláucon estava enganado sobre a aceitação do mito só poder ser alcançada na geração seguinte o mito daqueles nascidos para governar já estava em operação mães irmãs e filhas mulheres já foram excluídas da consideração em qualquer desses grupamentos Em um contexto em que as pessoas eram classificadas de acordo com a associação com certos metais as mulheres eram por assim dizer feitas de madeira e portanto nem sequer eram consideradas Stephen Gould um historiador da ciência chama de profecia à observação de Gláucon uma vez que a história mostra que a narrativa de Sócrates foi promulgada e aceita pelas gerações subsequentes ibid A questão no entanto é que mesmo nos tempos de Gláucon era mais do que uma profecia já era uma prática social excluir mulheres das classes de governantes Paradoxalmente no pensamento europeu apesar do fato de que a sociedade era vista como habitada por corpos apenas as mulheres eram percebidas como corporificadas os homens não tinham corpos eram mentes caminhantes Duas categorias sociais que emanaram dessa construção foram o homem da razão o pensador e a mulher do corpo e elas foram construídas de maneira oposicional A ideia de que o homem de razão frequentemente tinha a mulher do corpo em sua mente nitidamente não era bem recebida Como sugere a História da Sexualidade de 17 Platão A República III 415 ac N da T 18 Platão A República III 415 d Citado em Stephen Gould The Mismeasure of Man Nova York Norton 1981 p 19 9 Michel Foucault no entanto o homem de ideias frequentemente tinha a mulher e outros corpos em sua mente19 Nos últimos tempos graças em parte à pesquisa feminista o corpo está começando a receber a atenção que merece como local e como material para a explicação da história e do pensamento europeus20 A contribuição característica do discurso feminista para nossa compreensão das sociedades ocidentais é que ele explicita a natureza generificada e portanto corporificada e androcêntrica de todas as instituições e discursos ocidentais As lentes feministas desnudam o homem de ideias para todos verem Mesmo os discursos como os da ciência considerados objetivos foram mostrados como masculinamente tendenciosos21 A extensão em que o corpo está implicado na construção de categorias e epistemologias sociopolíticas não pode ser exagerada Como observado anteriormente Dorothy Smith escreveu que nas sociedades ocidentais o corpo de um homem confere credibilidade a seus enunciados enquanto o corpo de uma mulher o afasta dos dela22 Escrevendo sobre a construção da masculinidade R W Connell observa que o corpo é inescapável nessa construção e que uma fisicalidade gritante fundamenta as categorias 19 Uma antologia recente questiona a auto representação dominante dos judeus como o Povo do Livro e no processo tenta documentar uma imagem relativamente menos comum dos judeus como o Povo do Corpo O editor do volume faz um comentário interessante sobre O pensador judeu e seu livro Ele comenta que o livro do pensador evoca a sabedoria e a busca pelo conhecimento Dessa forma a imagem do judeu que é sempre masculino debruçada sobre um livro é sempre enganosa Ele parece estar elevado na busca espiritual Mas se pudéssemos espiar por cima dos ombros e ver o que seu texto diz ele poderia de fato estar lendo sobre assuntos tão eróticos como que posição adotar durante a relação sexual O que está acontecendo na cabeça do pensador ou mais interessantemente em seu lombo Howard ElbergSchwartz Povo do Corpo introdução a People of the Body Jews and Judaism from an Embodied Perspective Albany State University of New York Press 1992 A natureza somatocêntrica dos discursos europeus sugere que a expressão Povo do Corpo pode ter um alcance mais amplo 20 A atenção ao corpo também não foi um mar de rosas no feminismo Consultar Elizabeth Grosz Volatile Bodies Toward a Corporeal Feminism Bloomington Indiana University Press 1994 21 Virginia Woolf resumiu sucintamente a posição feminista A ciência parece não ser assexuada ela é um homem também um pai infectado citado em Hillary Rose Hand Brain and Heart A Feminist Epistemology for the Natural Sciences Signs 9 n1 1983 7390 Consultar também Sandra Harding The Science Question in Feminism Ithaca NY Cornell University Press 1986 Sandra Harding ed The Racial Economy of Science Bloomington Indiana University Press 1993 Donna J Haraway Primate Visions Gender Race and Nature in the World of Modern Science Nova York Routledge 1989 e Margaret Wertheim Pythagoras Trousers God Physics and the Gender Wars Nova York Random House 1995 22 Dorothy E Smith The Everyday World as Problematic A Feminist Sociology Boston Northeastern University Press 1987 p 30 10 de gênero na cosmovisão ocidental Em nossa cultura ocidental pelo menos a sensação física de masculinidade e feminilidade é central para a interpretação cultural do gênero O gênero masculino é entre outras coisas uma certa sensação na pele certas formas e tensões musculares certas posturas e modos de se movimentar certas possibilidades no sexo23 Desde as pessoas da antiguidade até as da modernidade o gênero tem sido uma categoria fundamental sobre a qual as categorias sociais foram erguidas Assim o gênero foi ontologicamente conceituado A categoria cidadão que tem sido a pedra angular de grande parte da teoria política ocidental era masculina apesar das muito aclamadas tradições democráticas ocidentais24 Elucidando a categorização dos sexos feita por Aristóteles Elizabeth Spelman escreve Uma mulher é uma fêmea que é livre um homem é um macho que é um cidadão25 As mulheres foram excluídas da categoria de cidadãos porque a posse do pênis Ibid era uma das qualificações para a cidadania Lorna Schiebinger observa em um estudo sobre as origens da ciência moderna e a exclusão das mulheres das instituições científicas europeias que as diferenças entre os dois sexos eram reflexos de um conjunto de princípios dualistas que penetravam o cosmos e os corpos de homens e mulheres26 Diferenças e hierarquias portanto estão consagradas nos corpos e os corpos consagram as diferenças e a hierarquia Assim dualismos como naturezacultura públicoprivado e visívelinvisível são variações sobre o tema dos corpos masculinosfemininos hierarquicamente ordenados diferencialmente colocados em relação ao poder e espacialmente distanciados um do outro27 No transcurso da história ocidental as justificativas para a elaboração das categorias homem e mulher não permaneceram as mesmas Pelo contrário elas 23 R W Connell Masculinities Londres Polity Press 1995 p 53 24 Susan Okin Women in Western Political Thought Princeton NJ Princeton University Press 1979 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 25 Citado em Laqueur Making Sex p 54 26 Lorna Schiebinger The Mind Has No Sex Women in the Origins of Modern Science Cambridge Mass Harvard University Press 1989 p 162 27 Para a descrição de alguns desses dualismos consultar Hélène Cixous em New French Feminisms An Anthology editado por Elaine Marks e Isabelle de Courtivron Amherst Mass University of Massachusetts Press 1980 11 foram dinâmicas Embora as fronteiras estejam se deslocando e o conteúdo de cada categoria possa mudar as duas categorias permaneceram hierárquicas e em oposição binária Para Stephen Gould a justificativa para classificar os grupos pelo valor inato variou com os fluxos da história ocidental Platão fiouse na dialética a igreja sobre o dogma Nos últimos dois séculos as alegações científicas tornaramse o principal agente de validação do mito de Platão28 A constante nessa narrativa ocidental é a centralidade do corpo dois corpos à mostra dois sexos duas categorias persistentemente vistas uma em relação à outra Essa narrativa trata da elaboração inabalável do corpo como o local e causa de diferenças e hierarquias na sociedade No Ocidente desde que a questão seja a diferença e a hierarquia social o corpo é constantemente colocado posicionado exposto e reexposto como sua causa A sociedade então é vista como um reflexo preciso do legado genético aqueles com uma biologia superior são inevitavelmente aqueles em posições sociais superiores Nenhuma diferença é elaborada sem corpos posicionados hierarquicamente Em seu livro Making Sex Thomas Laqueur traz uma história ricamente contextualizada da construção do sexo desde a Grécia clássica até o período contemporâneo observando as mudanças nos símbolos e as transformações nos significados O ponto no entanto é a centralidade e a persistência do corpo na construção de categorias sociais Em vista dessa história a afirmação de Freud de que a anatomia é destino não foi original ou excepcional ela foi apenas mais explícita que as de muitos de seus predecessores A ordem social e a biologia naturais ou construídas A ideia de que o gênero é socialmente construído de que as diferenças entre machos e fêmeas devem estar localizadas em práticas sociais e não em fatos biológicos foi uma compreensão importante que emergiu no início da pesquisa feminista da segunda onda Essa descoberta foi compreensivelmente considerada radical em uma cultura em que a diferença particularmente a diferença de gênero foi sempre articulada como natural e portanto biologicamente determinada O gênero como construção social tornouse o pilar de muitos discursos feministas A noção foi 28 Gould Mismeasure of Man p 20
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1 VISUALIZANDO O CORPO TEORIAS OCIDENTAIS E SUJEITOS AFRICANOS Oyèrónkẹ Oyěwùmí OYĚWÙMÍ Oyèrónkẹ Visualizing the Body Western Theories and African Subjects in COETZEE Peter H ROUX Abraham PJ eds The African Philosophy Reader New York Routledge 2002 p 391415 Tradução para uso didático de wanderson flor do nascimento A ideia de que a biologia é destino ou melhor o destino é a biologia tem sido um marco do pensamento ocidental por séculos1 Seja na questão de quem é quem na pólis2 de Aristóteles ou quem é pobre nos Estados Unidos do final do século XX a noção de que diferença e hierarquia na sociedade são biologicamente determinadas continua a gozar de credibilidade mesmo entre cientistas sociais que pretendem explicar a sociedade humana em outros termos que não os genéticos No Ocidente as explicações biológicas parecem ser especialmente privilegiadas em relação a outras formas de explicar diferenças de gênero raça ou classe A diferença é expressa como degeneração Ao traçar a genealogia da ideia de degeneração no pensamento europeu J Edward Chamberlain e Sander Gilman notaram a maneira como ela era usada para definir certos tipos de diferença no século XIX em particular Inicialmente a degeneração reuniu duas noções de diferença uma científica um desvio de um tipo original e a outra moral um desvio de uma norma de comportamento Mas eram essencialmente a mesma noção de uma degradação um desvio do tipo original3 Consequentemente quem está em posições de poder acha imperativo estabelecer sua biologia como superior como uma maneira de afirmar seu privilégio e domínio sobre 1 Comparar com o uso feito por Thomas Laqueur Destino é anatomia que é o título do capítulo 2 de seu Making Sex Body and Gender from the Greeks to Freud Cambridge Mass Harvard University Press 1990 2 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 p 37 3 J Edward Chamberlain Sander Gilman Degeneration The Darker Side of Progress Nova York Columbia University Press 1985 p 292 2 os Outros Quem é diferente é visto como geneticamente inferior e isso por sua vez é usado para explicar sua posição social desfavorecida A noção de sociedade que emerge dessa concepção é que a sociedade é constituída por corpos e como corpos corpos masculinos corpos femininos corpos judaicos corpos arianos corpos negros corpos brancos corpos ricos corpos pobres Uso a palavra corpo de duas maneiras primeiro como uma metonímia para a biologia e segundo para chamar a atenção para a fisicalidade que parece estar presente na cultura ocidental Refirome tanto ao corpo físico como às metáforas do corpo Ao corpo é dada uma lógica própria Acreditase que ao olhar para ele pode se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas Como Naomi Scheman aponta em sua discussão sobre o corpo político na Europa prémoderna As maneiras pelas quais as pessoas conheciam seus lugares no mundo estavam relacionadas com seus corpos e as histórias desses corpos e quando violavam as prescrições para esses lugares seus corpos eram punidos muitas vezes de forma espetacularizada O lugar de alguém no corpo político era tão natural quanto a localização dos órgãos em um corpo e a desordem política era tão antinatural quanto a mudança e o deslocamento desses órgãos4 De modo semelhante Elizabeth Grosz observa o que ela chama de profundidade do corpo nas sociedades ocidentais modernas Nossas formas corporais ocidentais são consideradas expressões de um interior e não inscrições em uma superfície plana Ao construir uma alma ou psique por si mesma o corpo civilizado forma fluxos libidinais sensações experiências e intensifica as necessidades os desejos O corpo se torna um texto um sistema de signos a serem decifrados lidos e interpretados A lei social é encarnada corporalizada correlativamente os corpos são textualizados lidos por outros como expressão do interior psíquico de um sujeito Um depósito de inscrições e mensagens entre as fronteiras externas e internas do corpo gera ou constrói os movimentos do corpo como comportamento que então tem significados e funções interpessoais e socialmente identificáveis dentro de um sistema social5 4 Naomi Scheman Engenderings Constructions of Knowledge Authority and Privilege Nova York Routledge 1993 p 186 5 Elizabeth Grosz Bodies and Knowledges Feminism and the Crisis of Reason in Linda Alcoff Elizabeth Potter eds Feminist Epistemologies Nova York Routledge 1994 p 198 grifos meus 3 Consequentemente uma vez que o corpo é o alicerce sobre o qual a ordem social é fundada o corpo está sempre em vista e à vista Como tal invoca um olhar um olhar de diferença um olhar de diferenciação o mais historicamente constante é o olhar generificado Há um sentido em que expressões como o corpo social ou o corpo político não são apenas metáforas mas podem ser lidas literalmente Não surpreende portanto que quando o corpo político precisou ser purificado na Alemanha nazista certos tipos de corpos precisaram ser eliminados6 A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão7 A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao ver O olhar é um convite para diferenciar Diferentes abordagens para compreender a realidade então sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades Em relação à sociedade iorubá que é o foco deste livro o corpo aparece com uma presença exacerbada na conceituação ocidental da sociedade O termo cosmovisão que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade capta o privilégio ocidental do visual É eurocêntrico usálo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos O termo cosmopercepção8 é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais Neste estudo portanto cosmovisão só será aplicada para descrever o sentido cultural ocidental e cosmopercepção será usada ao descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou até mesmo uma combinação de sentidos Isso dificilmente representa a visão recebida da história e do pensamento social ocidentais Muito pelo contrário até recentemente a história das sociedades 6 Scheman Engenderings 7 Consultar por exemplo o seguinte para relatos da importância da visão no pensamento ocidental Hans Jonas The Phenomenon of Life Nova York Harper and Row 1966 Donald Lowe History of Bourgeois Perception Chicago University of Chicago Press 1982 8 Traduzo aqui a expressão worldsense por cosmopercepção por entender que a palavra sense indica tanto os sentidos físicos quanto a capacidade de percepção que informa o corpo e o pensamento A palavra percepção pode indicar tanto um aspecto cognitivo quanto sensorial E o uso da palavra cosmopercepção também busca seguir uma diferenciação proposta por Oyěwùmí com a palavra worldview que é usualmente traduzida para o português como cosmovisão e não como visão do mundo N da T 4 ocidentais tem sido apresentada como uma documentação do pensamento racional em que as ideias são enquadradas como agentes da história Se os corpos aparecem eles são articulados como o lado degradado da natureza humana O foco preferido tem estado na mente elevada acima das fraquezas da carne No início do discurso ocidental surgiu uma oposição binária entre corpo e mente O tão falado dualismo cartesiano era apenas uma afirmação de uma tradição9 na qual o corpo era visto como uma armadilha da qual qualquer pessoa racional deveria escapar Ironicamente mesmo quando o corpo permaneceu no centro das categorias e discursos sociopolíticos muitas das pessoas que pensaram sobre isso negaram sua existência para certas categorias de pessoas mais notavelmente elas mesmas A ausência do corpo tem sido uma précondição do pensamento racional Mulheres povos primitivos judeus africanos pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo de diferente em épocas históricas variadas foram consideradas como corporalizadas dominadas portanto pelo instinto e pelo afeto estando a razão longe delas Elas são o Outro e o Outro é um corpo10 Ao apontar a centralidade do corpo na construção da diferença na cultura ocidental não se nega necessariamente que tenha havido certas tradições no Ocidente que tentaram explicar as diferenças segundo critérios diversos em relação à presença ou ausência de certos órgãos a posse de um pênis o tamanho do cérebro a forma do crânio ou a cor da pele A tradição marxista é especialmente notável a esse respeito na medida em que enfatizava as relações sociais como uma explicação para a desigualdade de classes Contudo a crítica ao androcentrismo marxista por numerosas escritoras feministas sugere que esse paradigma também está implicado na somatocentralidade ocidental11 Da mesma forma o surgimento de disciplinas como a sociologia e a 9 Comparar com a discussão de Nancy ScheperHughes e Margaret Lock em The Mindful Body A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology Medical Anthropology Quarterly ns 1 Março de 1987 p 741 10 O trabalho de Sander Gilman é particularmente elucidativo sobre as concepções de diferença e alteridade Conferir Difference and Pathology Stereotypes of Sexuality Race and Madness Ithaca N Y Cornell University Press 1985 On Blackness without Blacks Essays on the Image of the Black in Germany Boston G K Hall 1982 The Case of Sigmund Freud Medicine and Identity Baltimore John Hopkins University Press 1993 Jewish Self Hatred AntiSemitism and the Hidden Language of the Jews Baltimore John Hopkins University Press 1986 11 Consultar por exemplo Linda Nicholson Feminism and Marx in Feminism as Critique On The Politics of Gender editado por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell Minneapolis University of Minnesota 5 antropologia que pretendem explicar a sociedade com base nas interações humanas parece sugerir o ostracismo do determinismo biológico no pensamento social Entretanto em um exame mais detalhado descobrese que dificilmente o corpo fora banido do pensamento social sem mencionar seu papel na constituição do status social Isso pode ser ilustrado na sociologia Em uma monografia sobre o corpo e a sociedade Bryan Turner lamenta o que ele percebe como a ausência do corpo nas investigações sociológicas Ele atribui esse fenômeno dos corpos ausentes12 ao fato de que a sociologia emergiu como uma disciplina que tomou o significado social da interação humana como seu principal objeto de investigação afirmando que o significado das ações sociais nunca pode ser reduzido à biologia ou à fisiologia ibid É possível concordar com Turner sobre a necessidade de separar a sociologia da eugenia e da frenologia No entanto dizer que os corpos estão ausentes das teorias sociológicas é desconsiderar o fato de que os grupos sociais que são objeto da disciplina são essencialmente entendidos como enraizados na biologia São categorias baseadas em percepções da presença da diferença física de vários tipos de corpo Nos EUA contemporâneos enquanto quem exerce a sociologia lida com as chamadas categorias sociais como subclasse suburbanos trabalhadores fazendeiros eleitores cidadãos e criminosos para mencionar algumas categorias que são entendidas historicamente e no ethos cultural como representações de específicos tipos de corpos não há como fugir da biologia Se o reino social é determinado pelos tipos de corpos que o ocupam então até que ponto existe um campo social dado que ele é concebido para ser biologicamente determinado Por exemplo ninguém que ouve a expressão executivos corporativos supõe que sejam mulheres e nas décadas de 1980 e 1990 ninguém associaria espontaneamente os brancos aos termos subclasse ou gangues de fato se alguém construísse uma associação entre os termos seus significados teriam que ser mudados Consequentemente qualquer pessoa que exerça Press 1986 Michele Barret Womens Oppression Today Londres New Left Books 1980 Heidi Hartmann The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism Towards a More Progressive Union in Women and Revolution A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism editado por Lydia Sargent Boston South End Press 1981 12 Bryan Turner Sociology and the Body in The Body and Society Explorations in Social Theory Oxford Blackwell 1984 p 31 6 a sociologia e estude essas categorias não pode escapar de uma subjacente insidiosidade biológica Essa onipresença de explicações biologicamente deterministas nas ciências sociais pode ser demonstrada com a categoria de criminoso ou delinquente na sociedade estadunidense contemporânea Troy Duster em um excelente estudo sobre o ressurgimento do determinismo biológico evidente nos círculos intelectuais desdenha da ânsia de muitas pessoas que realizam pesquisas em associar a criminalidade à herança genética ele prossegue argumentando que outras interpretações da criminalidade são possíveis A interpretação econômica predominante explica as taxas de criminalidade em termos de acesso a emprego e desemprego Uma interpretação cultural tenta mostrar diferentes os ajustes culturais entre a polícia e aqueles apreendidos por crimes Uma interpretação política vê a atividade criminal como interpretação política ou pré revolucionária Uma interpretação do conflito vê isso como um conflito de interesses por recursos escassos13 Nitidamente em face disso todas essas explicações da criminalidade são não biologicistas no entanto enquanto a população ou o grupo social que elas tentam explicar neste caso os criminosos negros eou pobres é vista como representando um agrupamento genético as suposições subjacentes sobre a predisposição genética dessa população ou grupo estruturarão as explicações apresentadas se são baseadas no corpo ou não Isso está ligado ao fato de que em função da história do racismo a questão de pesquisa subjacente mesmo que não seja declarada não é o motivo pelo qual certos indivíduos cometem crimes efetivamente na verdade é por que os negros têm tal propensão A definição do que é atividade criminosa está muito ligada a quem negro branco rico pobre está envolvido na atividade ibid Da mesma forma a polícia como um grupo é assumida como branca Similarmente quando são feitos estudos sobre liderança na sociedade estadunidense quem pesquisa descobre que a maioria das pessoas em cargos de liderança são machos brancos não importa que tipo de interpretação dão para este resultado suas declarações serão lidas como explicações para a predisposição desse grupo para a liderança 13 Troy Duster Backdoor to Eugenics Nova York Routledge 1990 7 Não questiono aqui a integridade de quem pesquisa meu propósito não é rotular qualquer grupo dedicado à pesquisa como intencionalmente racista Pelo contrário desde o movimento pelos direitos civis a pesquisa científicosocial tem sido usada para formular políticas que reduzam ou que procurem acabar com a discriminação contra grupos subordinados O que deve ser ressaltado no entanto é como a produção e disseminação de conhecimento nos Estados Unidos estão inevitavelmente embutidas no que Michael Omi e Howard Winant chamam de senso comum cotidiano da raça uma maneira de compreender explicar e agir no mundo14 A raça é então um princípio organizador fundamental na sociedade estadunidense É institucionalizada e funciona independentemente da ação de atores individuais No Ocidente as identidades sociais são todas interpretadas através do prisma da hereditariedade15 para tomar emprestada a expressão de Duster O determinismo biológico é um filtro através do qual todo o conhecimento sobre a sociedade funciona Como mencionado no prefácio refirome a esse tipo de pensamento como raciocínio corporal16 é uma interpretação biológica do mundo social O ponto novamente é que enquanto atores sociais como gestores criminosos enfermeiros e pobres sejam apresentados como grupos e não como indivíduos e desde que tais agrupamentos sejam concebidos como geneticamente constituídos então não há como escapar do determinismo biológico Neste contexto a questão da diferença de gênero é particularmente interessante no que diz respeito à história e à constituição da diferença na prática e no pensamento social europeus A longa história da corporificação de categorias sociais é sugerida pelo mito fabricado por Sócrates para convencer cidadãos de diferentes 14 Michael Omi e Howard Winant Racial Formation in the United States from the 1960s to the 1980s Nova York Routledge 1986 Comparar também com a discussão sobre a difusão da raça acima de outras variáveis como a classe na análise do motim de Los Angeles de 1992 Segundo Cedric Robinson A mídia de massa e as declarações oficiais subsumiram a genealogia das revoltas de Rodney King nas narrativas antidemocráticas de raça que dominam a cultura estadunidense A inquietação urbana o crime e a pobreza são economias discursivas que exprimem a raça e apagam a classe Race Capitalism and the AntiDemocracy artigo apresentado no Interdisciplinary Humanities Center University of California Santa Barbara Inverno de 1994 15 Duster Backdoor salienta que a noção amplamente difundida de que tanto as doenças como o dinheiro correm dentro das famílias 16 Comparar com o conceito de raciocínio racial de Cornel West em Race Matters Nova York Vantage 1993 8 classes a aceitarem qualquer status que lhes fosse imposto Sócrates explicou o mito a Gláucon nos seguintes termos Cidadãos diremos a eles em nossa história vocês são irmãos mas Deus os moldou de maneira diferente Alguns de vocês têm o poder de comando e na composição destes misturaram ouro portanto também têm a maior honra outros ele fez de prata para ser auxiliares outros novamente que devem ser lavradores e artesãos Ele compôs de bronze e ferro e as espécies geralmente serão preservadas nas crianças Um Oráculo diz que quando um homem de bronze ou ferro proteger o Estado ele será destruído Tal é a história existe alguma possibilidade de fazer nossos cidadãos acreditarem nela17 Gláucon responde Não na geração atual não há como realizar isso mas seus filhos podem ser levados a acreditar na história e os filhos de seus filhos e a posteridade depois deles18 Gláucon estava enganado sobre a aceitação do mito só poder ser alcançada na geração seguinte o mito daqueles nascidos para governar já estava em operação mães irmãs e filhas mulheres já foram excluídas da consideração em qualquer desses grupamentos Em um contexto em que as pessoas eram classificadas de acordo com a associação com certos metais as mulheres eram por assim dizer feitas de madeira e portanto nem sequer eram consideradas Stephen Gould um historiador da ciência chama de profecia à observação de Gláucon uma vez que a história mostra que a narrativa de Sócrates foi promulgada e aceita pelas gerações subsequentes ibid A questão no entanto é que mesmo nos tempos de Gláucon era mais do que uma profecia já era uma prática social excluir mulheres das classes de governantes Paradoxalmente no pensamento europeu apesar do fato de que a sociedade era vista como habitada por corpos apenas as mulheres eram percebidas como corporificadas os homens não tinham corpos eram mentes caminhantes Duas categorias sociais que emanaram dessa construção foram o homem da razão o pensador e a mulher do corpo e elas foram construídas de maneira oposicional A ideia de que o homem de razão frequentemente tinha a mulher do corpo em sua mente nitidamente não era bem recebida Como sugere a História da Sexualidade de 17 Platão A República III 415 ac N da T 18 Platão A República III 415 d Citado em Stephen Gould The Mismeasure of Man Nova York Norton 1981 p 19 9 Michel Foucault no entanto o homem de ideias frequentemente tinha a mulher e outros corpos em sua mente19 Nos últimos tempos graças em parte à pesquisa feminista o corpo está começando a receber a atenção que merece como local e como material para a explicação da história e do pensamento europeus20 A contribuição característica do discurso feminista para nossa compreensão das sociedades ocidentais é que ele explicita a natureza generificada e portanto corporificada e androcêntrica de todas as instituições e discursos ocidentais As lentes feministas desnudam o homem de ideias para todos verem Mesmo os discursos como os da ciência considerados objetivos foram mostrados como masculinamente tendenciosos21 A extensão em que o corpo está implicado na construção de categorias e epistemologias sociopolíticas não pode ser exagerada Como observado anteriormente Dorothy Smith escreveu que nas sociedades ocidentais o corpo de um homem confere credibilidade a seus enunciados enquanto o corpo de uma mulher o afasta dos dela22 Escrevendo sobre a construção da masculinidade R W Connell observa que o corpo é inescapável nessa construção e que uma fisicalidade gritante fundamenta as categorias 19 Uma antologia recente questiona a auto representação dominante dos judeus como o Povo do Livro e no processo tenta documentar uma imagem relativamente menos comum dos judeus como o Povo do Corpo O editor do volume faz um comentário interessante sobre O pensador judeu e seu livro Ele comenta que o livro do pensador evoca a sabedoria e a busca pelo conhecimento Dessa forma a imagem do judeu que é sempre masculino debruçada sobre um livro é sempre enganosa Ele parece estar elevado na busca espiritual Mas se pudéssemos espiar por cima dos ombros e ver o que seu texto diz ele poderia de fato estar lendo sobre assuntos tão eróticos como que posição adotar durante a relação sexual O que está acontecendo na cabeça do pensador ou mais interessantemente em seu lombo Howard ElbergSchwartz Povo do Corpo introdução a People of the Body Jews and Judaism from an Embodied Perspective Albany State University of New York Press 1992 A natureza somatocêntrica dos discursos europeus sugere que a expressão Povo do Corpo pode ter um alcance mais amplo 20 A atenção ao corpo também não foi um mar de rosas no feminismo Consultar Elizabeth Grosz Volatile Bodies Toward a Corporeal Feminism Bloomington Indiana University Press 1994 21 Virginia Woolf resumiu sucintamente a posição feminista A ciência parece não ser assexuada ela é um homem também um pai infectado citado em Hillary Rose Hand Brain and Heart A Feminist Epistemology for the Natural Sciences Signs 9 n1 1983 7390 Consultar também Sandra Harding The Science Question in Feminism Ithaca NY Cornell University Press 1986 Sandra Harding ed The Racial Economy of Science Bloomington Indiana University Press 1993 Donna J Haraway Primate Visions Gender Race and Nature in the World of Modern Science Nova York Routledge 1989 e Margaret Wertheim Pythagoras Trousers God Physics and the Gender Wars Nova York Random House 1995 22 Dorothy E Smith The Everyday World as Problematic A Feminist Sociology Boston Northeastern University Press 1987 p 30 10 de gênero na cosmovisão ocidental Em nossa cultura ocidental pelo menos a sensação física de masculinidade e feminilidade é central para a interpretação cultural do gênero O gênero masculino é entre outras coisas uma certa sensação na pele certas formas e tensões musculares certas posturas e modos de se movimentar certas possibilidades no sexo23 Desde as pessoas da antiguidade até as da modernidade o gênero tem sido uma categoria fundamental sobre a qual as categorias sociais foram erguidas Assim o gênero foi ontologicamente conceituado A categoria cidadão que tem sido a pedra angular de grande parte da teoria política ocidental era masculina apesar das muito aclamadas tradições democráticas ocidentais24 Elucidando a categorização dos sexos feita por Aristóteles Elizabeth Spelman escreve Uma mulher é uma fêmea que é livre um homem é um macho que é um cidadão25 As mulheres foram excluídas da categoria de cidadãos porque a posse do pênis Ibid era uma das qualificações para a cidadania Lorna Schiebinger observa em um estudo sobre as origens da ciência moderna e a exclusão das mulheres das instituições científicas europeias que as diferenças entre os dois sexos eram reflexos de um conjunto de princípios dualistas que penetravam o cosmos e os corpos de homens e mulheres26 Diferenças e hierarquias portanto estão consagradas nos corpos e os corpos consagram as diferenças e a hierarquia Assim dualismos como naturezacultura públicoprivado e visívelinvisível são variações sobre o tema dos corpos masculinosfemininos hierarquicamente ordenados diferencialmente colocados em relação ao poder e espacialmente distanciados um do outro27 No transcurso da história ocidental as justificativas para a elaboração das categorias homem e mulher não permaneceram as mesmas Pelo contrário elas 23 R W Connell Masculinities Londres Polity Press 1995 p 53 24 Susan Okin Women in Western Political Thought Princeton NJ Princeton University Press 1979 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 25 Citado em Laqueur Making Sex p 54 26 Lorna Schiebinger The Mind Has No Sex Women in the Origins of Modern Science Cambridge Mass Harvard University Press 1989 p 162 27 Para a descrição de alguns desses dualismos consultar Hélène Cixous em New French Feminisms An Anthology editado por Elaine Marks e Isabelle de Courtivron Amherst Mass University of Massachusetts Press 1980 11 foram dinâmicas Embora as fronteiras estejam se deslocando e o conteúdo de cada categoria possa mudar as duas categorias permaneceram hierárquicas e em oposição binária Para Stephen Gould a justificativa para classificar os grupos pelo valor inato variou com os fluxos da história ocidental Platão fiouse na dialética a igreja sobre o dogma Nos últimos dois séculos as alegações científicas tornaramse o principal agente de validação do mito de Platão28 A constante nessa narrativa ocidental é a centralidade do corpo dois corpos à mostra dois sexos duas categorias persistentemente vistas uma em relação à outra Essa narrativa trata da elaboração inabalável do corpo como o local e causa de diferenças e hierarquias na sociedade No Ocidente desde que a questão seja a diferença e a hierarquia social o corpo é constantemente colocado posicionado exposto e reexposto como sua causa A sociedade então é vista como um reflexo preciso do legado genético aqueles com uma biologia superior são inevitavelmente aqueles em posições sociais superiores Nenhuma diferença é elaborada sem corpos posicionados hierarquicamente Em seu livro Making Sex Thomas Laqueur traz uma história ricamente contextualizada da construção do sexo desde a Grécia clássica até o período contemporâneo observando as mudanças nos símbolos e as transformações nos significados O ponto no entanto é a centralidade e a persistência do corpo na construção de categorias sociais Em vista dessa história a afirmação de Freud de que a anatomia é destino não foi original ou excepcional ela foi apenas mais explícita que as de muitos de seus predecessores A ordem social e a biologia naturais ou construídas A ideia de que o gênero é socialmente construído de que as diferenças entre machos e fêmeas devem estar localizadas em práticas sociais e não em fatos biológicos foi uma compreensão importante que emergiu no início da pesquisa feminista da segunda onda Essa descoberta foi compreensivelmente considerada radical em uma cultura em que a diferença particularmente a diferença de gênero foi sempre articulada como natural e portanto biologicamente determinada O gênero como construção social tornouse o pilar de muitos discursos feministas A noção foi 28 Gould Mismeasure of Man p 20