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Direitos Humanos

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DIREITOS HUMANOS, CIDADADANIA E GLOBALIZAÇÃO J. A. LINDGREN ALVES Not the loss of specific rights, then, but the loss of a community willing and able to guarantee any rights whatsoever, has been the calamity which has befallen ever-increasing numbers of people. Hannah Arendt O fenômeno da globalização, entre os muitos efeitos que acarreta, tem provocado alterações profundas nas ideias de soberania e cidadania vigentes do mundo ocidental desde a Revolução Francesa. Esta já modificara ambos os conceitos, antes prevalecentes na versão absolutista, ao transferir a titularidade da soberania do monarca para os cidadãos, detentores de direitos. A modificação atual é, porém, mais radical. Não tanto porque a globalização tende a deslocar a soberania para entidades políticas supranacionais, mas porque os agentes econômicos transestatais e as tecnologias da comunicação instantânea praticamente inviabilizam seu exercício. Ao inviabilizar o exercício da soberania, a globalização incontrolada engendra o risco de anular a cidadania e, com ela, os direitos humanos. É preciso, portanto, encontrar meios de resgatar a cidadania ainda que modificada, para que a convivência humana não retorne aos modelos hobbesianos, seja o da “lei da selva”, do homem como lobo do homem, seja o da solução absolutista, esmagadora dos direitos. Os meios talvez possam ser os próprios direitos humanos, utilizados no discurso contemporâneo de maneira distorcida, devidamente reenfocados em sua indivisibilidade. O CONCEITO DA CIDADANIA Desde que o absolutismo foi superado nos estados modernos, os conceitos de soberania e cidadania são vinculados à ideia de direitos 186 LUA NOVA No 50— 2000 humanos. Enquanto outros elementos, como a localidade, a identidade e a história comum, influem na construção da nacionalidade, a noção de cidadania reporta-se à de Nação como espaço de realização individual e coletiva, politicamente organizada no Estado soberano, nacional ou plurinacional (a Suíça, por exemplo), como entidade garantidora dos direitos e do Direito. Obviamente isso não quer dizer que os direitos fundamentais tenham sido inteiramente respeitados, nem que todos os habitantes de um Estado qualquer tenham alguma vez vivido em perfeita harmonia. Significa que o Estado, administrado por representantes da própria cidadania, para levar seus nacionais à guerra, para estabelecer-lhes normas coercitivas ou para cobrarlhes impostos, assumia o compromisso de assegurar seus direitos. Ao proclamar, em 1789, a declaração de direitos de maior repercussão na História até a adoção pela ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Assembleia Nacional Francesa definiu a cidadania até mesmo no título do documento, “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, ou seja: todo homem, como expressão da espécie, tem direitos inerentes à sua natureza humana, que são, porém, exercidos no contexto da cidadania. Com linguagem e efeitos universalizantes, a declaração da França revolucionária redefiniu também a soberania estatal, estabelecendo, em seu Artigo 2º, que “o objetivo de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e inalienáveis do homem” (a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão) e no Artigo 3º, que “a fonte fundamental de toda a soberania reside na nação”. Até mesmo a crítica marxista ao Estado e ao Direito subentende a vinculação entre cidadania e direitos humanos. As reservas de Marx aos “direitos burgueses” consagrados nas declarações norte-americanas e francesa do século XVIII prendiam-se à percepção de que, ao protegerem a propriedade privada como um atributo natural e inalienável, elas estabeleciam uma igualdade jurídica meramente formal, legitimando a exploração capitalista do proletariado. A cidadania política seria, pois, a seu ver, um artifício do capitalismo para administrar a mais-valia em territórios estanques, ocultando a luta de classes, resolvível somente pela revolução proletária, necessariamente internacionalista. As análises não-marxistas mais influentes da vinculação entre a cidadania e os direitos humanos advêm de T. H. Marshall, desde o final da década de 40 (a primeira edição de Citizenship and Social Class é de 1950 e profunda ideias expostas em conferência de 1949). Com base nas experiências britânica e norte-americana por ele examinadas mais de perto, os três elementos articuladores da cidadania moderna seriam os direitos civis, DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E GLOBALIZAÇÃO 187 os direitos políticos e os direitos sociais, historicamente conquistados nessa ordem: os civis no século XVIII, os políticos no século XIX e os sociais no século XX. Diferentemente do entendimento marxista, os direitos civis e os direitos políticos não são, para Marshall e para a social-democracia clássica, dissimulações falsamente igualitaristas; são, ao contrário, instrumentos legais de luta para a conquista dos direitos econômicos e sociais sem recurso à revolução. Embora com relação a governos autoritários, no final do Século XX como no Século das Luzes, as primeiras preocupações se voltem naturalmente para a obtenção das liberdades civis e políticas, nos países de regime democrático o entendimento hoje predominante no movimento em prol dos direitos humanos parece aproximar-se bastante da interpretação de Marshall (ainda que não-formulada explicitamente nesses termos): os direitos humanos não abolem nem negam a ideia de luta de classes, mas são importantes para se atenuarem os malefícios sociais do capitalismo incontrolado. A atenuação se obtém pela expansão do conceito de direitos fundamentais e inalienáveis das tradicionais “liberdades burguesas”- ou direitos “de primeira geração”, que exigiram do Estado apenas “prestações negativas” – de forma a abranger também os direitos econômicos e sociais ou direitos “de segunda geração”, pelos quais o Estado passa a ter obrigação de realizar “prestações positivas” para a garantia do trabalho, da remuneração justa e equitativa, da proteção social, da educação gratuita, pelo menos nos países em que estes elementos possam e devam ser promovidos, em particular na esfera da saúde. Em rapidíssimas pinceladas, esse é o quadro em que se desenvolve a cidadania no Estado constitucional moderno. Ele se acha consagrado, desde 1948, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que entroniza no mesmo nível os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de todo ser humano. Esse é o quadro que inspira os esforços contemporâneos nacionais - não apenas brasileiros, mas de qualquer sociedade democrática consciente (embora a doutrina jurídica norte-americana ainda relute em aceitar a ideia de direitos econômicos e sociais) – para a plena observância dos direitos humanos. Esse não é, porém, o quadro predominante no cenário internacional. O QUADRO JURÍDICO INTERNACIONAL Pela ótica estrita dos direitos humanos, muitos autores entendem que sua asserção internacional percorreu caminho inverso àquele observa 188 LUIA NOVA Nº 50—2000 do por Marshall. Tendo em conta que a Organização Internacional do Trabalho – OIT remonta à Liga das Nações (1919), antecedendo as Nações Unidas e a Declaração Universal, os direitos sociais teriam precedido tem- poralmente os direitos civis e políticos. O entendimento pode ser correto - embora não seja claro na doutrina se os direitos trabalhistas, inclusive o direito de constituir organizações sindicais e o direito à greve, são proprie- mente direitos sociais ou liberdades civis. Mas não dá conta das dificul- dades empíricas do tema, nos tempos pretéritos e atuais. Desde que afirmaram como tema legítimo da agenda interna- cional, entre os propósitos das Nações Unidas, os direitos humanos sempre padeceram de desequilíbrios em seu tratamento, em favor dos direitos “de primeira geração”. A essencialidade de todos os direitos e liberdades fun- damentais, conquanto evidente na igual importância atribuída pela Declaração Universal a todos os direitos por ela relacionados, nunca se traduziu com adequação no próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos. Os dois pactos de 1966, um sobre direitos civis e políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais, que deram natureza jurídica obrigatória aos dispositivos da Declaração Universal, ainda que aprovados pela ONU simultaneamente (e sem abrangerem o direito à pro- priedade), eram profundamente diferentes em termos de mecanismos de proteção. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos dispunha desde o início de um comitê de peritos independentes encarregado de mo- nitorar a implementação de suas disposições, com capacidade inclusive para acolher queixas individuais (conforme seu Protocolo Facultativo). Esse comitê é, sintomaticamente, denominado “Comitê dos Direitos Humanos”. O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não dispunha originalmente de mecanismo supervisor assemel- hado. Somente em 1985 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas decidiu estabelecer um comitê de peritos para examinar os relatórios nacionais dos Estados-partes, formalmente idêntico a seu homó- logo do outro pacto, mas sem capacidade para acolher comunicações indi- viduais. A própria denominação dos dois comitês põe em relevo a diferenç de nível atribuída aos direitos protegidos por cada um: o novo “Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” não denota no nome o fato de que esses direitos, tanto quanto os civis e políticos, também são inalienáveis e fundamentais. Em função desse desequilíbrio, sempre agravado pelas atenções internacionais voltadas mais para as violações de direitos civis e políticos do que para a situação dos direitos econômicos e sociais, os países em desen- 189 DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E GLOBALIZAÇÃO volvimento, com apoio dos antigos países socialistas, insistiram na necessidade de reafirmar a indivisibilidade de todos os direitos humanos. Ela foi reafirma- da pela ONU inúmeras vezes, em resoluções e documentos vários. O proble- ma que acompanha essa insistência justa se encontra no fato de ela ter sido, e ainda ser, postulada com particular veemência por países que violam delibert- adamente os direitos civis e políticos de seus cidadãos com a alegação de que sua preocupação primeira é com o desenvolvimento e com os direitos econômicos e sociais. A alegação é comprovadamente absurda: o desenvolvi- mento entendido como simples crescimento econômico nunca de per si garan- tia de direitos, nem civis e políticos, nem econômicos e sociais. Como expli- citava Marshall e a experiência confirma, os direitos civis e políticos são instu- mentos legais importantes para a conquista da cidadania social. Sem eles a economia do Estado até pode crescer, e de muitos tem realmente crescido, que para a situação dos direitos econômicos e sociais, os países em desen- desenvolvimento” tragam benefícios ao conjunto da cidadania. O QUADRO PÓS-GUERRA FRIA Quando a Guerra Fria terminou, em fins de 1989, no episódio simbólico da queda do muro de Berlim, acreditou-se que o mundo havia entrado numa onda democratizante irreversível (a obra mais significativa do perdido foi o célebre ensaio de Francis Fukuyama sobre o fim da história, bastante controvertido). Foi exatamente essa crença que levou à convocação pelas Nações Unidas da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena em 1993. A conferência de Viena foi importante para a resolução de difi- culdades conceituais que sempre envolveram os direitos humanos, como a questão de sua universalidade; a da legitimidade do monitoramento inter- nacional de violações; e da inter-relação entre os direitos humanos, o desenvolvimento e a democracia; a do direito ao desenvolvimento e a da interdependência de todos os direitos fundamentais. A declaração de Viena, com suas recomendações programáticas, constitui o documento mais abrangente sobre a matéria na esfera internacional, com uma característica inédita: adotada consensualmente por representantes de todos os Estados de um mundo já sem colônias, sua validade não pode ser contestada como fruto do imperialismo (o que era possível dizer-se até então, com alguma lógica, da Declaração Universal de 1948, aprovada pelo voto de 48 países independentes e 8 abstenções, numa época em que a maioria da população extraocidental vivia em colônias do Ocidente, sem representação na ONU). 190 LUIA NOVA Nº 50—2000 Envolvendo 171 estados, cerca de 1000 organizações não-go- vernamentais e um total de mais de 10 mil indivíduos, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos teve efeito decisivo para a disseminação, em escala planetária, dos direitos humanos no discurso contemporâneo. Por mais que os governos ditos defenham-se como podem, inclusive com invocação de particularismos políticos-culturais e com alegações de que a abordagem internacional desses direitos é atentatória à soberania nacional, ou–o que é a mesma coisa dita de outra maneira–como violação do princípio da não-intervenção em assuntos internos (formalmente vigente nas relações interestatais desde os Tratados de Westfalia de 1648, e consagrado entre os princípios das Nações Unidas, no artigo 2°, parágrafo 7°, de sua carta), esses argumentos são agora, no mínimo, contraditórios com o assentimento dado pelos representantes dos mesmos Estados à Declaração de Viena. A universalização do discurso político dos direitos humanos —útil, em qualquer circunstância, para a popularização da idéia de tais direitos– não se coaduna, porém, com o fenômeno da globalização em curso e com o discurso que a impulsiona no moldes atuais. Incorre, por isso, no risco de deturpar-se, perdendo as características de abrangência e equilíbrio que haviam levado ao consenso de 1993. O fenômeno mais marcante do mundo Pós-Guerra Fria é, sem dúvida, a aceleração do processo de globalização econômico. Enquanto a situação estratégica planetária tinha conformação bipolar, com as ideolo- guais e não-comerciais era recurso protetivo dos Estados, aceito como necessário à defesa da soberania. O Estado-providência era forte, nos países desenvolvidos, sobretudo porque dificultava a contaminação das respectivas populações pela utopia antagônica. Com o fim da bipolaridade estratégica e da competição ideológica entre o liberalismo capitalista e o comunismo, a ideologia que se impôs em escala planetária não foi, entre- tanto, a da democracia baseada no Welfare State, justificando até mesmo pela filosofia lockeana1. Foi a do laissez faire absoluto, com a alegação de que a liberdade de mercado levaria à liberdade política e à democracia. Eticamente justificou-se, dessa forma, o investimento econômico maciço em países de regimes autoritários, neles se aceitando a substituição das No Segundo Tratado do Governo, Locke ressalta, nos parágrafos 134 e 135, que o obje- tivo fundamental do Estado é a preservação da sociedade e de cada pessoa que a compõe, não se lhe permitindo “destruir, escravizar ou deliberadamente, empobrecer seus súditos” (John Locke, The Two Treatises of Government, Londres, Everyman, 1997, p. 184). DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E GLOBALIZAÇÃO liberdades civis e políticas pelo crescimento econômico como problema a ser resolvido pela “mão invisível do mercado'’. 2 Por outro lado, nos países de sistema democrático, não somente as proteções mercadológicas, trabalhistas e previdenciárias passaram a ser objetadas em nome da modernidade, mas a própria noção do Estado-previdência tornou-se condenada como inepta à competitividade, num momento em que o desemprego era aceito como fatalidade “estrutural''. E com essas premissas ideológicas que a globalização se tem acelerado em ritmo vertiginoso. O problema para a democracia embutido no credo ultraliberal ora dominante é que, dentro do quadro jurídico-político conhecido até agora, os direitos humanos somente se realizam em sua indivisibilidade dentro de territórios nacionais e com as instituições do Estado-previdência. Sem as prestações positivas necessárias, oferecidas por tais instituições como garantias de subsistência à população, a cidadania, na acepção de Marshall, é uma cidadania incompleta, assemelhada àquela criticada por Marx. Os direitos humanos, tão difundidos no planeta, acabam por parecer-se àquilo que, na cidadania democrática, eles se propõem combater: um discurso legitimante de iniqüidades que se agravam por efeito da própria globalização. CENTRALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO A globalização incontrolada tem provocado tendências centrípetas e centrífugas, apenas aparentemente antagônicas. O estabelecimento da economia-mundo como tendência centrípeta não unifica nada. Engendra, ao contrário, divisões continuamente acentuadas na esfera social e uma dispersão cultural enorme disfarçada no fato de que todos os povos agora, quando podem, vestem calças jeans, comem hamburguers, ouvem e compõem rock and roll e querem ver filmes de Steven Spielberg. Pela ótica econômico-social, o fenômeno derivado mais visível é a emergência de duas classes que extrapolam limites territoriais: a dos globalizados (aqueles abarcados positivamente pela globalização) e a dos excluídos (mais de três quartos da humanidade). Essa divisão é sensível em nível internacional e dentro das sociedades nacionais. Os globalizados de todos os rincões têm ou aspiram a padrões de consumo de Primeiro Mundo. 2 Da a “exemplaridade” dos chamados “Tigres Asiáticos”, erigidos em modelos a serem imitados no Terceiro Mundo. 192 LUA NOVA N° 50 — 2000 Os excluídos (da globalização e do mercado) aspiram tão somente a condições mínimas de sobrevivência e, se não puderem contar com o direito inalienável à segurança social, são marginalizados da sociedade. Em nível internacional, o agravamento da distância entre países ricos e pobres vem sendo denunciado em todos os relatórios de organizações intergovernamentais. Dos dados amplamente divulgados vale a pena recordar alguns mais ilustrativos. Segundo os Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD -, em 1962, os 20% mais ricos da população mundial tinham recursos 30 vezes superiores aos dos 20% mais pobres. Em 1994 esse diferencial passara a ser de 60 vezes e em 1997, de 74 vezes. Em 1997, os recursos acumulados de 600 milhões de pessoas dos países menos desenvolvidos não alcançavam a fortuna somada dos três maiores bilionários. 3 Para uma comparação mais próxima, inteligível em nossa própria pele, as 400 maiores fortunas individuais dos Estados Unidos, listadas anualmente pela revista Forbes, acumulam atualmente um total bastante superior ao do PIB do Brasil: 1 trilhão de dólares4 (contra os nossos 800 bilhões de 1997, reduzidos em 1998 e, previsivelmente, em 1999). Enquanto quase todo o resto do mundo enfrenta situações agravadas, a quantidade de milionários norte-americanos, com fortunas cada vez mais impressionantes, vem aumentando acentuadamente: contra 1,3 milhões de famílias com renda líquida superior a US $ 1 milhão em 1989, o número atual é de 5 milhões, devendo, segundo estimativas da mesma Forbes, quadruplicar nos próximos 10 anos. 5 Não é porém somente nos países em desenvolvimento que se concentra a exclusão social. Mais de 100 milhões de pessoas sofrem privações nas sociedades mais ricas. Os Estados Unidos, com a maior renda média dos países desenvolvidos, têm, segundo o PNUD, a maior população abaixo da linha de pobreza: 17% do total. 6 Ignacio Ramonet, do Le Monde 3 Relatórios do PNUD sobre o Desenvolvimento Humano de 1994 e 1997 (dados de 1997 extraídos do texto de Ignacio Ramonet em resposta a Thomas Friedman, no debate “Dueling globalizations”, Foreign Policy N. 116, outono de 1999, p. 126). 4E da China, com seus 1,2 bilhões de habitantes! (“The Forbes 400”, edição especial da Forbes, outubro de 1999, p. 169). 5 Dinesh D’Souza, “The billionaire next door”, ibid, p. 52. Dos 400 relacionados em 1999, com renda líquida não inferior a US $ 625 milhões, 268 são bilionários, 79 a mais do que em 1998. 6 Human development report 1998, p. 2. Melhores índices de desenvolvimento humano têm aqueles países onde as instituições de Welfare State são mais sólidas, como a Suécia (7% de pobres) ou os Países Baixos (8%). DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E GLOBALIZAÇÃO 193 Diplomatique, acrescenta que a União Européia tem atualmente 50 milhões de desempregados e 15 milhões de habitantes em condições miseráveis.? A diferença entre eles e os pobres do Terceiro Mundo está no nível das privações enfrentadas. A faixa de pobreza nos Estados Unidos é tão elevada que, segundo o Banco Mundial, 81% da população global contam com uma renda que naquele país seria suficiente apenas para um regime de sub-alimentação. 8 Na Europa ocidental, além disso, mais do que nos Estados Unidos, as proteções sociais mínimas do Estado-previdência em defesa da cidadania perduram e se transnacionalizam na União Européia -contra os preceitos do credo que delas se propõe desfazer. Os globalizados de qualquer região tendem a saudar a globalização incontrolada com entusiasmo. Nas sociedades ricas, cujos segmentos solidamente “incluídos” de empresários e trabalhadores especializados em tecnologia de ponta são os verdadeiros sujeitos da globalização, os efeitos colaterais são sentidos principalmente no incômodo da imigração aumentada, ou na ansiedade provocada pela oscilação de bolsas quando há crises em países emergentes. Os incômodos são controlados, conforme o caso, com barreiras quantitativas ou de outra ordem à entrada de imigrantes não-qualificados e pela reorientação das aplicações financeiras para mercados mais promissores no momento, enquanto se aliviam as consciências com a prática da filantropia (descontada no imposto de renda). Nas camadas intermediárias os efeitos podem representar o fim do emprego e a exclusão do consumo hiper-exposto sinônimo de uma tragédia maior, junto com tudo o que pode implicar em termos de miséria, violência e criminalidade, sobretudo em países que não conseguem oferecer compensações previdenciárias ou outras alternativas de subsistência. Para a criminalidade comum, observada com maior freqüência entre as camadas mais pobres (também pelo lado das vítimas), a saída dos Estados Unidos (que algumas pessoas de boa fé parecem ter a intenção de copiar alhures) tem sido a repressão rigorosa, com a intolerância punitiva 7 Ignacio Ramonet, “A new totalitarianism”, Foreign Policy n° 116, outono de 1999, p. 118. 8 Veja Ano 32, n° 40, Edição de 6 de outubro de 1999, p. 136. O escritório federal do censo norte-americano (Census Bureau) estabelece atualmente como faixa de pobreza, abaixo da qual as famílias têm direito a receber vales alimentares e outros benefícios, rendimentos brutos anuais da ordem de US $ 16.000.00 e está estudando a possibilidade de elevar esse limite para US $ 19.500.00 (Louis Uchitelle, “Devising new math to define poverty”, New York Times, edição de 18/10/99, pp. A 1 e A4). Qualquer dessas duas quantias, num país onde o custo de vida médio não é muito mais elevado do que no Brasil, seria simplesmente astronômica para os pobres brasileiros. transformada em plataforma eleitoral unânime. A reclusão prisional passa a ser a regra para qualquer comportamento delitivo, levando muitas vezes a sen­tenciamento absurdo. Pela regra imperativa dos three strikes (três golpes) vigente da Califórnia, há, nesse Estado mais rico da mais opulenta Federação, indivíduos em situações que lembram a do Jean Valjean de Victor Hugo. Duas vezes reincidentes no mesmo delito, ou com três situ­ ações variadas, cumprem penas mínimas de 25 anos até a de prisão perpé­ tua todos os delinquentes violentos ou não, sejam homicidas contumazes não­condenados à morte, sejam pessoas marginalizadas que furtam comi­ da, cidadãos normalmente ordeiros que dirigem seus carros após ingestão de bebida, pequenos traficantes ou portadores de maconha9 (os estrangeiros, legais ou ilegais, são em seguida, deportados, quando a pena não é de prisão perpétua ). Como recursos econômicos não faltam para esses fins, os Estados Unidos têm hoje a maior população carcerária do mundo: quase 2 milhões de prisioneiros, segundo informações do Departamento de Justiça, após sete anos consecutivos de redução nos números totais e relativos de delitos graves.10 Daí a interpretação de Zygmunt Bauman de que, nas sociedades pós­modernas do capitalismo globalizado, mais do que no período clássico analisado por Foucault, o problema da exclusão social tende a ser resolvido pelo encarceramento, agora sem objetivos disciplinares ou de recuperação.11 Em quase todas as sociedades, um vasto segmento populacional, da tradicional classe média (que abrangia mesmo antes os tra­ balhadores formalmente empregados, sobretudo do Primeiro Mundo) usufrui de alguns benefícios da globalização. Viaja­se hoje muito mais do que antes; 9 Segundo recentemente noticiado, 88% das prisões registradas nacionalmente em conexão com drogas em 1998 teriam sido por posse e não por tráfico de maconha (Reuters, 1988 pot arrests near record', mad for possession', San Francisco Examiner, 18/10/99). 10 Com 12,5 milhões de delitos graves registrados em 1998, o envantório de assassinatos, estupros, assaltos, roubos violentos e furtos, inclusive de veículos, nos Estados Unidos, foi inferior em 5,3% ao de 1997. A taxa de crimes de 4.616 por 100.000 habitantes acusou redução de 6% com relação a 1997, 14% a 1994 e 20% a 1989 (Mark Helm, "Murder rate lowest inter three decades – serious crime drop for 7h straight year”, 1l/96). É interessante notar que as autoridades federais, conquan­ to refutavao com esse declinio, explicam­no sobretudo por razões demográficas (envelhecimento do grupo nascido no baby boom, entre 1946 e 1964 correspondendo a 25% da população), não red crescimento econômico do pais, nem pelo rigor repressivo. O aumento constante da popula~tic carceráita se deve reconhecindamente e intensificao da campanha de 'guerra às drogas'. 11 Zygmunt Bauman, Globalization – The Human Consequences, New York, Columbia University Press, 1998, pp. 103-127. O encarceramento dos excluídods, como recurso cres­ cente e pristo para 1a também crescente penalização de atos relativamente banais, seria a con­ trapartida natural do autoconfinamento dos ricos, em sociedades crescentemente inseguras.