4
Filosofia do Direito
CESUPA
5
Filosofia do Direito
CESUPA
4
Filosofia do Direito
CESUPA
5
Filosofia do Direito
CESUPA
213
Filosofia do Direito
CESUPA
1
Filosofia do Direito
CESUPA
4
Filosofia do Direito
CESUPA
1
Filosofia do Direito
CESUPA
7
Filosofia do Direito
CESUPA
1
Filosofia do Direito
CESUPA
Texto de pré-visualização
Dogmática e crítica da jurisprudência Página 1 DOGMÁTICA E CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA ou da vocação da doutrina em nosso tempo Revista dos Tribunais vol 891 p 65 Jan 2010 Doutrinas Essenciais de Direito Civil vol 1 p 829 Out 2010DTR201091 Otavio Luiz Rodrigues Junior Doutor em Direito Civil pela USP Membro da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano Oviedo Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense Advogado da União Área do Direito Administrativo Resumo A doutrina teve uma função definitiva como parte do método jurídico Em termos ideais sua operacionalização é livre e espontânea Na tradição continental ela teve o papel de criticar tanto o direito positivo quanto as interpretações acerca dele Atualmente a doutrina experimenta um período de declínio O direito jurisprudencial mostrase como uma fonte criativa e central do direito O artigo afirma que é necessário rever a função da doutrina para restaurar sua relevância Palavraschave Doutrina Doutrinadores Jurisprudência Fontes do Direito Poder criativo Abstract The legal doctrine had an established function as part of jurists methods In ideal terms such construction is free and spontaneous In the continental tradition it held the role to criticize both the statutory law and the interpretations about the former Nowadays the legal doctrine method faces a period of decline The judgemade law appears a central and creative source of lawmaking The paper states that it is necessary to review the function of the legal commentaries in order to restore its importance Keywords Legal commentaries Legal doctrine method Judgemade law Sources of lawmaking Creative power Sumário 1Colocação do problema 2Que é doutrina e qual sua função 3Causas e extensão da crise da doutrina 4A vocação da doutrina em nosso tempo 5Conclusões 1 Colocação do problema Na Introdução da obra coletiva sobre a Lei de Modernização do Código Civil alemão de 2002 organizada por Horst Ehmann e Holger Sutschet encontrase uma advertência perturbadora que vale a transcrição literal Na exposição de motivos do antigo legislador do Código Civil lêse freqüentemente que certa questão é deixada nas mãos da Ciência do Direito ou da jurisprudência Nos materiais estudos e justificativas da Lei de Modernização por outro lado lêse na maioria das vezes que a controvérsia literalmente a questão deve ser deixada a cargo da jurisprudência Não se trata de uma casualidade por detrás disso escondese um menosprezo à doutrina à qual se aplica a maldição de Mefistófeles Despreza somente a razão e a Ciência A força suprema do homem Dogmática e crítica da jurisprudência Página 2 E ainda que não se tenha entregado ao diabo De todos os modos estará perdido1 Esse trecho revela a crise da histórica divisão de funções entre a doutrina e a jurisprudência pela qual competia a primeira a tarefa de projetar a compreensão geral das normas individuais em relação à totalidade do Direito e assim dar em caráter geral à jurisprudência Rechtsprechung a ajuda necessária para que reflita sobre as regras gerais teóricas em sua aplicação em um caso concreto2 Não é o Direito Civil o único campo no qual se observa esse estado de coisas Um expoente da dogmática criminal alemã contemporânea como Ingerborg Puppe denuncia que os tribunais superiores de seu país têm assumido comportamento autárquico em relação à doutrina O uso de conceitos jurídicos indeterminados especialmente na distinção entre dolo culpa e tentativa serve de biombo para a atitude pretoriana de se evadir do debate com a doutrina Wissenschaft e com isso exercer de modo arbitrário o ius dicere3 No direito italiano ainda nos anos 70 Pietro Perlingieri ressaltava a renúncia da doutrina a seu papel histórico Chegouse ao paradoxo de ter a doutrina perdido prestígio e credibilidade ou haver desconhecido sua missão a crítica das decisões judiciais e a conformação do sistema jurídico4 No Brasil é sensível a diminuição de citações doutrinárias nos acórdãos ou nas decisões monocráticas dos tribunais superiores A partir da observação empírica dos julgados mais recentes dessas cortes não deveria ter causado sensação o que afirmou um Ministro do STJ ao proclamar que não lhe importava o que pensavam os doutrinadores para fundamentar seus votos bastarlheiam o notório saber jurídico e sua investidura constitucional5 A redescoberta contemporânea do sistema romanogermânico pelos juristas de Common Law deveuse em grande medida a John Henry Merryman que realizou pesquisa rigorosa sobre o método as escolas e os fundamentos do Direito que se desenvolvia no continente O interesse de John Henry Merryman foi despertado quando ele notou que havia um Direito dos professores e não um Direito dos juízes como é o existente em sua pátria os Estados Unidos da América6 É sobre a crise desse Direito dos professores nascido dos que ensinam e por isso também aprendem docendo discimus o objeto deste artigo O exame do problema posto demandará a abordagem de três questões i que é a doutrina e para que ela serve ii quais as razões da crise da doutrina em nosso tempo iii como devem se relacionar a doutrina e a jurisprudência contemporaneamente A conclusão do estudo além da sistematização de seus resultados procurará responder tanto quanto possível qual a vocação da doutrina em nosso tempo Não por acaso esse é o subtítulo do artigo 2 Que é doutrina e qual sua função 21 Origens etimológica e teológica da doutrina A palavra doutrina segundo a boa etimologia é oriunda do latim doctrinaae e referese a docére ensinar Em português a palavra acumulou os significados de ciência saber erudição ensino7 Os antigos Pais da Igreja no movimento conhecido como Patrística elaboravam obras de doutrina para os recémconvertidos à fé verdadeira do Cristo Eles escreviam a partir de seus ensinamentos nas pregações ao povo Surge a noção da doutrina da igreja os ensinamentos baseados na autoridade moral e intelectual dos homens que conviveram com Jesus ou com seus primeiros discípulos e com base na sucessão apostólica transmitiam essas verdades aos cristãos O bispo na sé diocesana possuía uma cadeira de onde sentado ensinava aos assistentes as verdades eclesiásticas Essa cadeira era a cátedra daí se falar em igreja catedral Dogmática e crítica da jurisprudência Página 3 22 Diferentes acepções da doutrina 221 Considerações iniciais Essa concepção teológica de doutrina foi transposta para o Direito Nesse processo de adaptação surgiram diferentes acepções de doutrina i é a opinião de certos juristas unanimemente respeitada e consolidada no tempo que ganhou força normativa por ato do soberano tornandose verdadeira fonte do Direito ii é o conjunto de princípios extraídos das decisões judiciais por meio de indução que se tornam aplicáveis a outros casos como autênticos modelos iii é o ensinamento dos mestres magister da ciência do Direito proferido em razão de sua autoridade universitária ou de seu reconhecimento pelos pares como saber digno de acatamento uniforme e reiterado 222 Primeira acepção a doutrina obrigatória pela vontade do príncipe A acepção a tem bons exemplos históricos No Dominado em Roma a decadência dos costumes não se limitou à sociedade imperial e chegou ao Direito Houve explosão de glosas e comentários a textos de leis senatusconsultos editos dos pretores e sentenças de grandes expoentes da jurisprudência clássica8 Essa prolífica criação doutrinária deu causa a abusos seja por meio de escritos que deturpavam obras antigas seja pela utilização de citações capciosas apresentadas a juízes incultos falsamente atribuídas a renovados jurisprudentes do passado A mais famosa intervenção de Roma contra essas práticas foi a Lei das Citações de 426 uma Constituição imperial baixada por Teodósio II e Valentiniano III pela qual se reconheceu a autoridade dos jurisconsultos Gaio Papiniano Paulo Ulpiano e Modestino9 Esses eram os únicos doutrinadores recitáveis em petições e julgamentos Ressalvavamse os autores por eles referidos desde que se trouxesse a fonte original comprobatória da citação Esse conjunto de juristas recebeu o nome sugestivo de Tribunal dos Mortos pois se realizava o cotejo de suas opiniões e no caso de divergência entre elas prevalecia a tese seguida pela maioria Se houvesse empate a opinio de Papiniano preponderaria10 Na Idade Média no Reino de Castela houve atos normativos que reconheceram a autoridade das opiniões de Bartolo de Saxoferrato e Baldo de Ubaldis com a Lei das Citações de Madri baixada por Elrey D João II11 Em Portugal as Ordenações Afonsinas 14461447 definiram como fontes do Direito lusitano a lei o costume e o estilo da corte este último correspondente à jurisprudência dos altos tribunais marcada pela idéia de reiteração e de constância12 Como instrumento de integração das lacunas indicavamse o Direito Romano o Direito Canônico a glosa de Acúrsio as opiniões de Bártolo e a vontade do rei13 Ainda aqui a doutrina glosa e opiniões assumia o caráter de fonte jurídica por reconhecimento do Estado Ela era veículo do Direito não por ser doutrina mas por se equiparar à norma jurídica As Ordenações Manuelinas 1521 abrandaram a relevância da glosa e admitese o recurso à opinio communis doctorum para se combater os excessos nas citações de Acúrsio e de Bártolo14 223 Segunda acepção b doutrina jurisprudencial A acepção b é denominada de doutrina jurisprudencial Essa nomenclatura equívoca pois confunde o trabalho das cortes de justiça com a opinião dominante dos doutores equiparandoas encontra certo prestígio entre autores contemporâneos Seu conteúdo deriva da união de sentenças e de escritos comentários artigos manuais que servem de fundamento às decisões dos juízes os quais formam a opinio iuris opinião dominante Por Dogmática e crítica da jurisprudência Página 4 meio dessa doutrina concretizarseiam cláusulas gerais boafé bons costumes e permitirseia a evolução do Direito15 Luis DíezPicazo e Antonio Gullón também mencionam a existência de uma doutrina jurisprudencial que viria a ser um corpo de doutrina que possui a autoridade que lhe proporciona o órgão da qual emana e que deve entroncarse nas funções que dito órgão realiza em relação com o ordenamento jurídico Em regra para esses autores o órgão com autoridade para criar essa doutrina é o Tribunal Supremo equivalente espanhol ao brasileiro Superior Tribunal de Justiça Desse modo a doutrina jurisprudencial apresentaria três funções i interpretativa em sentido estrito por meio da qual o Tribunal Supremo estabeleceria o alcance a inteligência ou o significado de expressão ambígua ou obscura de determinado preceito de lei ii integradora de nítida feição criativa que permite estender preceitos legais ou conceitos indeterminados a casos não regidos por normas específicas iii veículo para aplicação dos princípios gerais do Direito os quais préexistem à jurisprudência e são fontes autônomas do Direito mas que recebem a consagração pela jurisprudência no caso concreto16 224 Terceira acepção c doutrina propriamente dita A terceira acepção c é a que se enquadra no conceito contemporâneo de doutrina Crêse que a doutrina como ensinamento magisterial para os fins de delimitação e conceituação ora empreendidos deve ser distinguida de espécies aproximadas que se opta por denominar de doutrinanorma e doutrinaparecer Examinemse essas duas espécies I Doutrinanorma É a existente em algumas fases da História como sendo a opinio iuris indicada expressamente em lei como regra jurídica ao estilo da constituição do Tribunal dos Mortos É o equivalente moderno da doutrina reconhecida pelo príncipe com força normativa acepção a Nos dias atuais temse como resquício dessa natureza normativa da produção intelectiva os pareceres vinculantes da AdvocaciaGeral da União que se aprovados e publicados juntamente com o despacho presidencial obrigam a Administração Federal cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento17 O concurso do despacho do presidente da República empresta caráter genérico ao parecer e faz com que suas conclusões dilatemse a outras hipóteses de fato As opiniões nele contidas não valem pela autoridade de quem as proferiu tãosomente mas por seu reconhecimento formal pelo chefe do Poder Executivo após obediência a procedimento legalmente estabelecido II Doutrinaparecer A contratação de advogados para que se pronunciem sobre determinado direito controvertido em juízo ou em fase prejudicial é prática antiga Confundese com as próprias origens do Direito Os antigos jurisprudentes romanos começaram suas atividades por meio das respostas a questionamentos dos interessados que com eles se aconselhavam sobre a melhor forma de propor uma ação ou de como se conduzir em juízo A função de respondere resolver casos práticos através de pareceres responsa dados a particulares ou a magistrados era considerada a mais importante de entre todas as atribuições da iurisprudentia a ciência do Direito em Roma como salienta A Santos Justo18 Nesse contexto histórico essa atividade era descomprometida porquanto não se admitia qualquer compensação pecuniária D 50 13 1 519 Na atualidade a regra é o pagamento por essas respostas jurídicas A esperada isenção do parecerista ante quem lhe paga por uma opinião jurídica foi objeto de irônica crítica por Piero Calamandrei O autor italiano ataca com ferocidade o expediente de se acostarem às petições os pareceres a que chamam para a Verdade como se quisessem nos fazer crer que nessas consultas pagas não pretendem atuar como patronos partidários mas como mestres desinteressados que não se preocupam com as coisas terrenas20 A visão do Direito como ciência ou arte ao estilo de alguns neutra é atualmente Dogmática e crítica da jurisprudência Página 5 criticável21 A tomada de posição ideológica ainda quando se afirma não o fazer é inerente à natureza do pensamento jurídico como de resto essa é uma decorrência do reconhecimento da impureza humana Não há neutralidade em assuntos humanos como afirma Arnaldo Vasconcelos Feita essa observação é também equívoco admitir que a falta de neutralidade no Direito confundese com a admissão pura e simples do parecer como uma peça doutrinária de semelhante dignidade a um manual ou a uma tese de doutorado Na Alemanha até agora pelo menos existe sensível diferença entre a função magisterial e a função operativa respectivamente atribuída a professores e a advogados e por extensão a juízes e promotores Dos primeiros esperase a emissão de juízos tendencialmente abstratos e ligados ao plano teórico Aos segundos por sua atividade profissional aguardase o fornecimento de casos concretos os quais findarão em acórdãos e por sua vez tendem a constituir a jurisprudência índice de aplicação maior menor ou nenhuma das teorias Dividemse bem os planos e por assim o parecer não é considerado como peça doutrinária autônoma ainda que ele haja influenciado o juiz da causa Em países como a Itália e o Brasil no entanto há essa íntima vinculação entre a vida acadêmica e o universo operativo do Direito Daí a importância de se qualificar o parecer como obra doutrinária ou não A resposta mais simples e também reducionista seria atribuir aos pareceres como sugere causticamente Piero Calamandrei valor idêntico ao de petições iniciais de respostas do réu ou de arrazoados dos recorrentes Peças comprometidas ab initio com teses de interesse dos litigantes e por isso nãoservíveis a ocupar a nobre função doutrinal Na prática essa questão assume contornos ainda mais delicados quando se recorda de casos bastante comuns de pareceristas que são autores de manuais ou lições de Direito Alguns juízes inspirados ou não pelos adversários transcrevem trechos das obras didáticas dos pareceristas nos quais figuram opiniões bem diversas das contidas nos pareceres A leitura das sentenças ou dos acórdãos chega a ser constrangedora pois se utilizam das opiniões doutrinárias dos livros para negar o direito da parte sob o patrocínio do doutrinadoradvogado Por outro lado há pareceres históricos que introduziram novos institutos ou renovaram a dogmática de modo radicalmente positivo Esses pareceres que efetivamente mereceram emprego em processos judiciais e defenderam pontosdevista interessantes para os contendores depois foram publicados em revistas especializadas ou integraram coletâneas com grande interesse para a ciência jurídica22 Como lhes negar valor O tempo e a consagração das idéias neles contidos a despeito de sua origem deramlhes relevância para o Direito Há também pareceres emitidos por membros dos órgãos da procuratura das Fazendas Públicas advogados da União procuradores dos Estados ou dos municípios e do Ministério Público a despeito de sua aprovação superior com caráter vinculante ou seu uso como peças processuais que se podem submeter a esse processo de abstração superveniente da origem administrativa ou contenciosa O transcurso do tempo sua originalidade e seu impacto na transformação de institutos jurídicos podem atuar para a descaracterização de seu propósito originário23 A solução aqui proposta é intermediária A doutrinaparecer é de ser considerada a opinião oferecida por um jurista a cliente para lhe servir em negócios extrajudiciais ou em ações tendo como destinatário o magistrado e por assim merecedora de valoração específica considerados seus vínculos imediatos com o interesse posto sob seu crivo Posteriormente desligada do caso concreto e submetida à comunidade jurídica aquela contribuição poderá assumir natureza doutrinária O tempo e a autoridade do subscritor farão com que se decantem os elementos estritamente parciais da opinio porque realmente inseridos em uma disputa de interesses e do parecer se extraiam resultados apreciáveis à ciência do Direito 23 A visão da doutrina na dogmática e na lei Dogmática e crítica da jurisprudência Página 6 Excluídas a doutrinanorma e a doutrinaparecer com as mitigações propostas em relação à última voltese para a doutrina na acepção c entendida como ensinamento magistral ex magister do mestre Parte significativa dos livros de Introdução à Ciência do Direito de Teoria Geral do Direito ou de Direito Civil aponta que a doutrina entendida como o produto cultural dos cientistas jurídicos é uma fonte do Direito ao lado da lei dos costumes e dos princípios gerais do direito24 Com menor ênfase mas lhe conservando certo prestígio encontrase sua qualificação como fonte de modelos dogmáticos25 A doutrina na acepção c revela seu fundamento na autoridade dos juristas que a produzem A doutrina não teria força vinculante mas orientaria os aplicadores do Direito e seus intérpretes a saber os juízes e os agentes administrativos encarregados dessa função Ela também serviria como farol iluminador dos caminhos a serem trilhados pelos legisladores26 A crítica doutrinária abriria margem para a edição de novas leis que criariam institutos anteriormente inexistentes suprimiriam outros por inadequados e corrigiriam os desvios dos que se acham em vigor27 Seria ainda pela porta da doutrina que entrariam para o Direito concepções figuras e teorias jurídicas novas que após serem apresentadas aos juízos pelos advogados transformavamse em jurisprudência e ao fim de certo tempo eram recolhidas pelo legislador e normatizadas Nesse sentido a Reforma do BGB de 2002 não deveria ser entendida como a legitimação do Direito pretoriano pelo legislador e sim a prova dos sucessos da doutrina incorporada pelos tribunais e que ao cabo de cem anos finalmente mereceu o reconhecimento dos congressistas alemães A teoria da alteração da base do negócio jurídico que possui a vertente francesa teoria da imprevisão e italiana teoria da onerosidade excessiva é o exemplo desse processo de interferência criativa da dogmática28 Assim também o abuso do direito a exceção de préexecutividade o dano moral independente do dano material ou a função social da propriedade O ordenamento jurídico brasileiro consigna textualmente a doutrina em duas normas legais i a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações tem a função de meio auxiliar para a determinação das regras de direito nos julgamentos da Corte Internacional de Justiça criada com a Carta das Nações Unidas29 ii é conduta sancionável administrativamente a deturpação do sentido de citação doutrinária para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa30 Em dezenas de outros diplomas falase em doutrina militar ou em doutrina como sinônimo de conjunto de posições ideológicas subversivas31 Não se concedeu à doutrina o privilégio de ser acolhida expressamente como fonte do direito ao estilo da eqüidade art 8º CLT art 108 CTN da jurisprudência art 8º CLT dos costumes art 126 CPC art 7º CDC ou dos princípios gerais do direito art 3º CPP art 108 CTN 24 Conceito de doutrina proposto 241 Conceito e elementos Convém sistematizar as asserções até agora apresentadas A doutrina é o conjunto de opiniões postas pelos juristas sobre o Direito seu fundamento seus institutos suas figuras e o modo de sua aplicação com a finalidade de criálo e interpretálo Há nesse conceito três elementos fundantes a opinião posta o meio o jurista o agente causador e a criação e a interpretação do Direito o fim 242 Primeiro elemento opinião posta disponível Dogmática e crítica da jurisprudência Página 7 O primeiro elemento a opinião posta exige esclarecimento prévio A tradição cientificista que teve seu auge no século XIX e prosperou até meados do século XX criou compartimentos separando a ciência exata objetiva neutra causal empírica metódica provável por meio de experimentos controlados e as artes bem assim outros conhecimentos suportados em critérios subjetivos extraídos do senso comum dos valores coletivos e por essa razão insusceptíveis de verificação Nesse contexto a opinião é uma assertiva um juízo pessoal sobre um fato logo subjetivo sem controle por gruposteste e sem valor científico De partida se doutrinar é opinar a doutrina não merece respeito científico A ciência contemporânea todavia não resistiu a ela própria A teoria da relatividade Albert Einstein o princípio da incerteza Werner Heisenberg e a física quântica Max Planck abalaram as certezas de uma ciência exata ao menos nos moldes clássicos da era inaugurada por sir Isaac Newton32 Essa virada científica refletiuse na Filosofia e na Epistemologia e faz com que a doutrina possa ser levada a sério como forma de produção de conhecimento Admitase que o Direito não é ciência e sim uma arte como já enunciavam os romanos jus est ars boni et aequi o Direito é a arte do bom e do equitativo Com maior fundamento a doutrina é de ser aceita como uma opinião um juízo sobre um objeto emitido por um sujeito cognoscente baseado em reflexões conjecturas refutações ou em certos casos no exame indutivo como se dá no estudo da jurisprudência Nesse sentido o Direitoarte e não Direitociência torna mais aceitável a idéia de doutrina como um conjunto de opiniões Em quaisquer das vinculações ciência ou arte o mero estado de subjetividade da doutrina não mais pode ser encarado como causa do déficit de valor de sua autoridade E até por isso temse o resgate da fórmula consagrada da comum opinião dos doutores communis opinio doctorum Muito bem isso está claro Mas por que falar em opinião posta Sim Não é a simples opinião pensada e não declarada ou meramente declarada que serve à formação do conceito de doutrina Fazse necessário que ela seja posta disponível Com isso a opinião dos doutores há de ser apresentada à comunidade jurídica Os meios para assim o proceder são tão antigos quanto o Direito livros escritos artigos ensaios teses Apesar das mídias eletrônicas a doutrina ainda é a opinião posta em fólios Com a evolução tecnológica temse hoje a doutrina posta rectius disponível em meio digital Essa mudança de suporte da disponibilidade bem como o barateamento e a ampliação descomunal do acesso a esses meios na sociedade contemporânea criaram sérios problemas à autoridade da doutrina como já ocorridos na decadência do Império Romano e merecerão estudo na próxima secção Por enquanto ficase com a qualificação da opinio como necessariamente disponível 243 Segundo elemento juristadoutrinador A opinião posta ou disponível é de ser criada por alguém os doutores No caso do Direito chamamse juristas Na elegante definição de doutrina oferecida pela Conferência das Nações Unidas tornada direito positivo no Brasil ela assim é considerada quando produzida pelos juristas mais qualificados das diferentes nações Não é necessário ir tão longe A doutrina nacional é suficiente embora possam ser utilizados e é muito conveniente que assim o seja os ensinamentos de juristas de outros países E quem são os juristas Os jurisconsultos jurisprudentes na linguagem antiga dos romanos Os homens de grande conhecimento do Direito que estudaram sua natureza seus fundamentos suas normas sua história e além disso compreendem a interação dos elementos axiológico e fático com o elemento normativo Objetivamente terseiam nesse grupo os professores de Direito os autores de obras jurídicas e os juízes ou os legisladores quando escrevam na qualidade de estudiosos do Direito e não pela autoridade que o Estado lhes conferiu ao exemplo dos famosos justices norteamericanos como Benjamin Cardozo Black ou Holmes Reiterese Neste último Dogmática e crítica da jurisprudência Página 8 caso a autoridade de suas opiniões é a que surge de seu reconhecimento como jurisconsultos e não por serem juízes Mais ainda O locus da doutrina na acepção estrita por eles elaborada não está em seus acórdãos ou em suas sentenças mas em seus livros ou artigos Este não é o momento ainda para discutir o problema da restrição ou da ampliação excessiva do conceito de juristadoutrinador A esse problema dedicarseá a secção posterior Registrese por agora que não basta ser jurista para que se tenha um doutrinador É necessário que esse doctor cerquese de alguns requisitos Ele escreve para transmitir conhecimentos Ele é um docente ele ensina ainda que não possua uma cátedra formal O juristadoutrinador também há de escrever criar produzir conhecimento Não basta ser um jurisperito se não fecunda suas idéias e as faz divulgar Daí ser requisito escrever e mais que isso aceitar submeter suas opiniões à apreciação à crítica e ao controle da comunidade jurídica Em argüição de concurso de provas e títulos para o cargo de professor livredocente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo João Baptista Villela produziu uma das mais elegantes definições dos requisitos necessários para se habilitar a esse mister33 Por sua adequação ao objeto deste artigo fazse a transcrição de passagem um tanto extensa de suas palavras O candidato se declara expressamente na busca do grau de livredocência na Faculdade de Direito Largo São Francisco p 6 da tese Devo dizerlhe preliminarmente que a LivreDocência não é um grau que se possa buscar É antes uma habilitação a que se candidata e que obtida se traduz no reconhecimento da venia legendi se posso retomar a expressão do bom e decantado sabor medieval cf a propósito J F Niermeyer e C van de Kieft Mediae Latinitatis Lexicon Minus vol 1 2 Überarb Aufl Darmstadt Wissenschaftl Buchgesellschaft 2002 verbo legere34 Conferir a habilitação significa certificar que o candidato se encontra capacitado ao exercício do magistério na sua expressão plena e acabada Isto é que está apto a 1 lecionar com proficiência em todos os níveis do ensino superior 2 formar recursos humanos para a constituição e reposição dos quadros docentes 3 dirigir e fomentar grupos de estudo 4 fazer nascer escola ou linha de pensamento pela mobilização de experiência talento e espírito criativo 5 intervir com representantividade e níveis aceitáveis de excelência em congressos e reuniões científicas no País e no Exterior 6 produzir textos doutrinários de qualidade35 Conquanto extensos e vinculados ao exercício da livredocência muitos desses requisitos servem à qualificação de um doutrinador i boa plural e fecunda formação jurídica ii capacidade de mobilizar experiência talento e espírito criativo iii aceitação acatamento ou reconhecimento de suas opiniões em encontros científicos nos tribunais e em meios idôneos de divulgação doutrinária com controle e sindicância pelos pares conselhos editoriais representativos e rigorosos Três inferências mediatas são extraíveis do que se afirmou sobre o juristadoutrinador I O magistério é condição importante para ser doutrinador Dirseia em outros sistemas como o alemão que é necessária essa condição Dadas as peculiaridades brasileiras não se revela adequada essa causalidade Com isso temse a possibilidade de haver o magistério doutrinal sem que o jurista seja titular de uma cátedra Tanto melhor que o seja mas não é essa uma qualidade sine qua non Sobre isso há ainda uma lamentável observação empírica o acesso à cátedra especialmente por concurso público não representa o elemento legitimador que se pressupõe Recuperando a bela terminologia da Dogmática e crítica da jurisprudência Página 9 venia legendi encontrase o paralelo entre essa e a aprovação em concursos públicos para universidades O postulante à venia legendi ganhava o reconhecimento dos doutores para que se tornasse um lente lecture no idioma inglês na universidade Mal comparando ele exercia a função do leitor e é esse o significado da palavra lente dos Evangelhos na missa O bispo sentado na cátedra pregava o sermão Analogicamente o professor catedrático hoje titular por efeito da legislação em vigor no Brasil que representa o cargo máximo na estrutura da docência superior equivale ao bispo daí se exigir dele algo mais do que a mera reprodução do pensamento alheio Hoje em dia a obtenção do cargo de professor é marcada por expedientes não pouco raros de favoritismo pessoalidade e autoreferência com as escolas de Direito repudiando o acesso de professores formados em outras instituições ou que não integrem certas camarilhas A certeza de que essa tragédia não é exclusivamente brasileira temse pela leitura de Pietro Perlingieri A crise infelizmente é tal e tão grave que se insinua entre os componentes da Justiça especialmente advogados e magistrados tal e tão grave é também a crise da docência e da pesquisa principalmente no setor das ciências humanas e sociais A pouca seriedade dedicada à própria formação e à de terceiros a desenvoltura decadente que circunda todas as formas de recrutamento cada vez mais privilegiando o nepotismo e a perda de credibilidade das instituições contribuem à ineficiência frustrando toda e qualquer ilha fundada na dedicação36 A primeira inferência é a de que o juristadoutrinador deveria ser um docente mas dadas as condições atuais a produção dogmática há de ser aceita como válida ante o preenchimento dos requisitos propostos por João Baptista Villela com as necessárias mitigações Logo afirmar que a doutrina é o direito dos professores não exclui totalmente aqueles juristas alheados das cátedras universitárias Em certas circunstâncias e instituições infelizmente não ser professor talvez seja um mérito para o doutrinador Parafraseando Ruy Barbosa de tanto ver triunfar as nulidades o doutrinador honesto sente vergonha de o ser37 II Em seguida observese que o doutrinador tem de se notabilizar por sua cultura sua formação e seu conhecimento científico ou como querem artístico do Direito Os modos de se aferir essas qualidades são formais obtenção de títulos universitários38 aprovação e ingresso na carreira docente superior39 produção científica exposição de suas idéias em textos publicados em órgãos idôneos com controle de pares A revelação material dessas qualidades observarseá pelo acatamento das idéias do doutrinador pelos tribunais e pela comunidade científica seja pela formação ou alteração de correntes jurisprudenciais a partir do ensinamento dogmático seja pela formação de escolas de pensamento Nesta secção adiantouse o problema da perda de credibilidade na concessão de títulos e de cargos acadêmicos Essa questão será cuidada ao final deste estudo com maior profundidade Na secção seguinte será exposta a grave crise gerada para a própria doutrina pela excessiva produção jurídica Por enquanto conservemse esses critérios como definidores formal e materialmente da qualidade do juristadoutrinador III A terceira e última inferência está em que não se considera doutrina a produção jurídica com funções normativas ou ligada ao poder e a interesses privados concretos E por isso não será doutrinador o que emite opiniões jurídicas aprovadas pelo Estado e tornadas aplicáveis a casos concretos Sobre isso já se expôs acima Mas cabe um aprofundamento O doutrinador é necessariamente um homem desvinculado de quaisquer compromissos com o poder na expressão de Arnaldo Vasconcelos40 A doutrina e quem a faz tem a missão de criar o Direito além da lei da jurisprudência e do costume A diferença e que nobre diferença é que a doutrina nasce com a nota da altivez acadêmica a independência do Estado e dos poderes humanos da época Lembrese de Papiniano que foi condenado à morte por Antonino Caracala em face de não Dogmática e crítica da jurisprudência Página 10 legitimar o homicídio praticado pelo imperador41 Os estudos elaborados ad hoc para satisfação de interesses privados também não merecem o nome de doutrina Acima se fez a exclusão da doutrinaparecer com as necessárias ressalvas dos pareceres publicados em revistas e submetidos ao exame dos pares Infelizmente a queda dos custos editoriais fez com que grupos de interesse patrocinassem a publicação de livros monotemáticos com textos elaborados sob a forma de artigos mas essencialmente tendenciosos como forma de produzir uma falsa impressão de que existe a communis opinio doctorum em torno de uma tese Com isso toda a doutrina cai em descrédito e perde um dos suportes de sua autoridade a independência Nem se esqueça de situações ainda mais vexatórias como a inclusão de pareceres sob a forma de capítulos inteiros em livros de formação de jovens juristas 244 Terceiro elemento finalidade de criar o Direito Vejase agora o terceiro elemento do conceito de doutrina expor o fundamento os institutos as figuras e o modo de aplicação do Direito com a finalidade de criálo e interpretálo Levouse bastante tempo para se admitir que a jurisprudência cria o Direito além da própria lei As explicações teóricas são variadas Falase em póspositivismo42 diferença entre soft cases e hard cases nova configuração da teoria da separação das funções do Estado Concluiuse que a mera subsunção da norma ao fato seria insuficiente para a aplicação do Direito43 Os juízes e agentes administrativos com poder decisório são convocados a valorar autonomamente as normas ou até mesmo a decidir e agir de um modo semelhante ao do legislador44 As raízes dessa nova postura em relação à jurisprudência estão em movimentos teóricos alemães do século XIX e da primeira metade do século XX ao estilo da jurisprudência de interesses a hermenêutica concretizadora e a tópica45 Não é este o momento apropriado para se criticar o sincretismo da doutrina e de algumas decisões jurisprudenciais quanto ao emprego desses diversos movimentos como fundamentação contrária ao positivismo e favorável à intervenção judicial ativa com base no texto constitucional Registrese apenas o desconforto de se encontrar citações de Ronald Dworkin e Robert Alexy especificamente sobre ponderação conflito regras e princípios como se houvesse franca uniformidade de pensamento entre esses autores46 Importa sim comentar que a mesma eloqüência na defesa da atividade jurisprudencial pelo uso de princípios e na superação do método subsuntivo não se encontra no que respeita à doutrina Em diversos textos sempre é enaltecido o juiz como o herói contemporâneo do póspositivismo como se não fosse ele também um agente estatal da mesma forma que o legislador e ainda bem menos susceptível de controle social47 É oportuno fazer uma observação sobre o problema do chamado sistema aberto em contraponto ao que se convencionou chamar de sistema fechado tão característico do positivismo do século XIX A simples admissão da doutrina como fonte do Direito é um gesto eloqüente de quebra de compromisso com a autoreferência legalista Criticar a supervalorização do decisionismo portanto não é tomar partido do velho sistema fechado e sim acudir que os mesmos problemas que deram causa ao surgimento da legislatria podem como nuvens no céu estar a se formar no horizonte É demasiado importante referir essa jurisprudenciolatria na doutrina a qual como se observará na próxima secção tem sido uma das causas do desprestígio e da crise da dogmática Aditese que se a doutrina sacraliza a jurisprudência em paralelo esta última temse tornado autoreferente e dispensado o concurso da primeira 25 Síntese conceptual Dogmática e crítica da jurisprudência Página 11 Com essas ressalvas voltese ao ponto a doutrina é fonte criadora do Direito Ela está antes da lei sugerindoa está na lei apoiandoa e está depois da lei vivificandoa48 A doutrina é a liberdade em ação no ato criador do jurídico Ela não é o Direito mas seu continente Como bem afirma Gérard Cornu a atividade doutrinal é fundamentalmente livre A disparidade de opiniões jurídicas é um sintoma da independência dos doutrinadores no trato das coisas do Direito49 Não há temor reverencial por súmulas vinculantes ou não O doutrinador muita vez prega a interpretação contra legem quando não defende a própria revogação de uma norma jurídica O doutrinador pode ser e nalguns casos deve ser crítico em relação às normas e ao próprio Estado Esperase dele a crítica da jurisprudência severa quando necessário50 É por essa razão que em alguns sistemas preferese a separação entre o campo acadêmico e o operativo de molde a preservar a liberdade de crítica dos autores Ao escrever um livro ou um artigo no qual se propõe um modo de se interpretar o Direito o doutrinador poderá transformálo A norma interpretada com base em suas lições não será mais aquela primitivamente cogitada pelo congressista A junção dos três elementos doutrinador opinião e criação do Direito compõe o quadro conceitual da doutrina aqui proposto 26 Funções da doutrina As funções da doutrina mereceram referência nos parágrafos anteriores A título de sistematização do que já se afirmou apresentamse as mais importantes de entre elas i criar o Direito quando transforma a regra em outra regra após sua interpretação ii sistematizar o Direito por meio de constructos teóricos que procuram agrupar instituições províncias e figuras jurídicas por diferentes métodos aproximação específica comparatismo pandectismo tópica iii reformar as leis e as instituições jurídicas por meio de estímulos ao legislador o que se faz com grande superioridade pela doutrina dada a vantagem de pensar o Direito de modo sistemático teórico e descompromissado com elementos circunstanciais iv influenciar e criticar as decisões jurisprudenciais servindolhes de fundamento e de meio de reflexão v controlar a atuação judicial o que deveria ocorrer pelas críticas nos fóruns acadêmicos simpósios congressos livros e ensaios vi criar novos institutos e figuras jurídicas muita vez a partir da elaboração racional ou da observação dos fenômenos51 3 Causas e extensão da crise da doutrina 31 Insuficiências do discurso crítico Na secção introdutória evidenciouse o malestar da doutrina rectius dos doutrinadores com o papel que se lhe atribui nos dias de hoje A sensação é de crise Inventariar as causas e a extensão dessa crise é uma providência necessária Nesta secção disso se cuidará não sem antes uma advertência Esse é um exercício dos mais corriqueiros nos estudos jurídicos atuais a desconstrução de figuras categorias ou institutos por meio da chamada visão crítica ou leitura crítica Tratase de postura sedutora pois agrada às expectativas de significativa parcela da academia comprometida com esse discurso e é conveniente ao estudioso por colocála na cômoda posição niilista de tudo corroer com palavras ácidas e em nada contribuir para novos modelos A fim de não se incorrer nesse desvio após o exame dos problemas enfrentados pela doutrina tentarseá fornecer elementos para a revisão de seu papel no Direito 32 Inventário de causas da crise da doutrina Dogmática e crítica da jurisprudência Página 12 I A doutrina ao menos em sua mais ampla extensão deixou de ser uma arte de juristas E nisso tem sucesso grande parte de seu desprestígio A redução nos custos de publicações e de impressos resultado da fabulosa transformação no mercado gráfico nos últimos 15 anos em decorrência das novas tecnologias da informação permitiu que fossem estampados livros e revistas em quantidades nunca antes vistas na história humana O acesso a uma editora tornouse mais simples Houve aumento significativo no número de casas publicadoras jurídicas no Brasil Do universo de cinco ou seis editoras nacionais nas primeiras oito décadas do século XX têmse hoje mais de duas dezenas de empresas dedicadas a esse mercado Em alguns lugares há gráficas que enviam convites para advogados jovens professores ou recémformados a fim de que esses publiquem seus livros em tiragens econômicas e com isso obtenham prestígio profissional acadêmico ou pontos nas provas de títulos de concursos públicos As próprias editoras jurídicas nacionais por exigência de mercado ou pela própria queda de nível do público leitor reduziram os antigos rigores na seleção de obras a serem estampadas por seus selos Ao menos no Brasil a edição de um livro com a marca de uma grande editora especializada não significa mais a certeza da filtragem ortodoxa de tema ou de autor II As revistas jurídicas tradicional repositório de boa doutrina e de seleção dos principais acórdãos padeceram com os efeitos dessa revolução tecnológica O desenvolvimento de sistemas de informática pelos tribunais especialmente o STF e o STJ tornaram imediatamente acessíveis os acórdãos e as decisões capturáveis por mecanismos de busca booleana dos mais eficientes A certificação digital com a mudança nos atos regimentais que controlam o uso dos precedentes para efeitos de prova do dissídio pretoriano nos recursos extraordinário e especial criou revistas eletrônicas de jurisprudência o que aliviou os periódicos tradicionais da exclusividade na indicação como fonte autorizada52 Indiretamente isso afetou a doutrina A abertura para as fontes digitais com a perda de mercado daí resultante não foi a única conseqüência negativa A redução nos custos gráficos e o aumento exponencial do número de cursos jurídicos deu ensejo à explosão de novas revistas jurídicas organizadas e vinculadas às instituições de ensino superior recémabertas Seja por exigências do Ministério da Educação nos critérios de avaliação dos cursos superiores seja por vaidade acadêmica cada faculdade de Direito pode contar hoje com uma publicação de doutrina Com isso os doutores tiveram de se dividir entre solicitações as mais diversas e ante a impossibilidade de preenchimento das pautas editoriais reduziramse as exigências para se ter um artigo publicado nesses periódicos Os estudantes que possuíam antigas e tradicionais revistas jurídicas mantidas pelo esforço de centros ou diretórios acadêmicos passaram a ter seus estudos publicados em revistas tradicionais Antes um espaço para os que ensinavam docentes o templo da doutrina foi ocupado pelos que em tese deveriam ainda aprender discentes Não é raro encontrar texto de autoria de um terceiroanista de Direito em algum periódico jurídico sério Em tempos igualitários e emancipacionistas nos quais os estudantes escolhem reitores em votações paritéticas ou podem afastar docentes por meio de abaixoassinados nada mais esperável do que a ocupação de espaços destinados à produção da chamada doutrina jurídica por aqueles que em razão do tempo e da maturidade nos estudos deveriam ser os receptores dessas obras53 III Dois outros fatores intimamente associados podem ser referidos como causais desse processo de crise da doutrina O primeiro está na exigência de produção científica dos docentes Os critérios de avaliação dos cursos superiores pelo Ministério da Educação prestigiam a realização de pesquisa pelos mestres O meio objetivo de se aferir sua efetividade é o número de livros artigos Dogmática e crítica da jurisprudência Página 13 relatórios e papers publicados pelos integrantes do magistério Obrigouse até mesmo a criação de um currículo eletrônico padronizado com acesso direto na rede que recebeu o nome do grande físico brasileiro César Lattes como forma de objetivar o controle dos títulos acadêmicos e expor à comunidade universitária o grau de comprometimento de cada docente com a produção de conhecimento A fecundidade na publicação de textos jurídicos tornouse razão direta da qualidade do professor e ainda serve como fator importante para a obtenção de aumentos nas universidades particulares ou gratificações e progressões na carreira nas universidades públicas Quem ousaria não doutrinar hoje em dia com tantos estímulos para o autor O segundo fator está na utilização do número de livros ou artigos jurídicos como critério de pontuação em provas de títulos nos concursos públicos Com isso o ato de escrever textos jurídicos serviu a propósitos nada científicos Edições com tiragens pequenas hoje são custeadas pelos autores com essa finalidade A publicação de artigos em série destituídos de qualquer reflexão ou estudo que possa contribuir para o avanço do Direito constituiuse em objetivo primaz de alguns Estabeleceuse funesta competição entre os juristas em torno do número de textos levados a estampa em revistas ou em obras coletivas Produzir artigos deixou de ser preocupação de juscientistas ou artistas para os que não crêem no Direito como ciência e tornouse instrumento de prestígio pessoal ou melhoria nas classificações profissionais ou nos certames públicos O ato solitário reflexivo baseado em leituras razoáveis focado em tema específico e orientado pela vocação de contribuir originalmente para o Direito tornouse a exceção Em dois estudos baseados em sólida pesquisa empírica encontramse algumas explicações para esse modo particular de ser da doutrina no Brasil o qual guarda conexões com o estado das atividades de pesquisa e dos cursos de pósgraduação em Direito No primeiro texto Roberto Fragale Filho demonstra que entre 1996 e 2003 o número de mestres e doutores em Direito cresceu respectivamente 1100 e 940 no país Apenas em 2003 formaramse 250 novos doutores e 1800 novos mestres54 O resultado desse incremento no número de candidatos à venia legendi é uma das causas dessa exponencial produção jurídica de que ora se cuida No segundo estudo dessa vez escrito em coautoria com Alexandre Veronese Roberto Fragale Filho após ressaltar a evolução sensível na pesquisa científica em Direito bem como na expansão de vagas de pósgraduação ratifica o que se defende neste trabalho houve um aumento formal da pesquisa e das publicações Com isso fazse necessário o exame da qualidade material dessa produção55 Os critérios instituídos pela Capes como o padrão Qualis e a exigência de adaptação dos periódicos a certos padrões internacionais foi uma evolução No entanto o aumento quantitativo não veio acompanhado de soluções efetivas no controle de qualidade IV A atividade legislativa perdeu os juristas São poucos os membros do Congresso Nacional que possuem sólida formação jurídica e dentre esses mais raros ainda os que se dedicaram à vida intelectual na academia Diferentemente do que ocorrera nas seis ou sete primeiras décadas do século XX quando o parlamento ostentava nomes como Bilac Pinto Aliomar Baleeiro Ruy Barbosa Carvalho de Mendonça Paulo Brossard Neri da Silveira a criação de leis é pouco influenciada pela doutrina Ressalvamse os contributos de associações de juristas como o Instituto Brasileiro de Direito Processual nas reformas do Código de Processo Civil56 ou de grupos de doutrinadores como se verificou na comissão de autores do anteprojeto do Código de Direito do Consumidor liderada por Ada Pellegrini Grinover além dos integrantes do comitê revisor do Código Civil de 2002 de entre esses Regina Beatriz Tavares da Silva Mário Delgado Regis e Carlos Alberto Dabus Maluf Em quase todas essas situações porém o que verdadeiramente ocorreu foi que os juristas organizaramse sob a forma de grupos de pressão à semelhança do que já fazem pecuaristas fazendeiros médicos representantes da indústria de armas sindicatos religiosos e outros segmentos sociais Com isso provocaram a iniciativa do legislador seja Dogmática e crítica da jurisprudência Página 14 convencendoo seja fornecendolhe cabedal técnico para levar adiante idéias socialmente úteis Não é de se estranhar que nos exemplos de maior sucesso dos juristas organizados em grupos estavam projetos de normas de elevada tecnicidade e vinculadas à própria atuação dos profissionais do Direito como a reforma das regras processuais e a revisão do Código Civil V O campo de maior visibilidade da crise funcional da dogmática é na atividade dos juízes As citadas palavras do Ministro do STJ para quem não interessa o que pensam os doctores perdemse em um cenário mais amplo De fato têm diminuído sensivelmente a quantidade de referências doutrinárias nos acórdãos dos tribunais superiores Menos do que a baixa estima pelo que se produz doutrinariamente esse é em maior medida reconheçase o resultado do acúmulo monstruoso de processos e recursos nessas Cortes Somente em 2005 foram remetidos mais de 210000 processos ao STJ Em 2006 esse número passou a 251020 No primeiro semestre de 2008 as seis Turmas do STJ julgaram em média 25000 processos o que dá um total de 150000 processos na metade do ano Com isso a elaboração de decisões tornouse mecânica e repetitiva sem espaço ou tempo para a consulta de tratados monografias ou artigos jurídicos Essa pesquisa quase sempre é limitada aos casos inovadores ou aos debates de significativa repercussão na jurisprudência do tribunal Nos demais processos buscase incessantemente o julgado que sirva de precedente ao caso e resolva expeditamente o recurso A estatística tornouse o Grande Irmão em paráfrase a George Orwell dos órgãos jurisdicionais brasileiros por sua vez submetidos a controle externo inédito em sua história e de duvidosos efeitos práticos na melhoria da prestação oferecida ao povo brasileiro Se havia a romântica distinção entre um direito dos professores em contraponto ao direito dos juízes como praticado na Inglaterra e no País de Gales temse hoje no Brasil o permanente distanciamento do modelo romanogermânico em prol do modelo angloamericano dos precedentes Não se fala apenas da súmula vinculante ou do excessivo avanço do STF sobre áreas nãoconstitucionais É a realização de uma jurisdição de resultados que pode ser identificada como principal responsável por essa mudança de eixo Para se chegar a este estado de coisas combinaramse fatores como a base de dados de jurisprudência que tornou possível a busca de informações pretorianas em poucos segundos por meio dos critérios booleanos e a saturação do nível de judicialização da vida Não há tempo a perder Há precedente aplicável ao recurso Se existe ótimo O operador do Direito estará dispensado da penosa construção de raciocínios jurídicos que exige leitura e reflexão de obras doutrinárias Ele ficará limitado ao uso do computador com os comandos do editor de texto e concluirá seu ofício O descompromisso da jurisprudência com a doutrina é menos sensível no Brasil se comparado com a forma descrita por Ingeborg Puppe na Alemanha57 Nos hard cases os tribunais superiores costumam fundamentarse em ensinamentos doutrinários como se nota de decisões recentes do STF de grande impacto social ou jurídico ao estilo dos seguintes acórdãos i MC no HC 94173BA investigação criminal pelo Ministério Público58 ii Suspensão de Tutela Antecipada 235RO59 ii HC 91386BA60 VI Outra causa para o sensível desprestígio da doutrina está na própria atitude dos que a fazem O desconhecimento de noções epistemológicas a deficiente formação de base em Filosofia Geral e Jurídica e o pragmatismo encontramse na base do problema A contemporaneidade parece ser inimiga das teorizações e da investigação profunda das causas primeiras Em uma era tecnológica e tomada pela idéia de mudança o desenvolvimento dessas aptidões é um contrasenso No outro extremo temse o discurso gramisciano mal disfarçado que se apresenta sob a forma de posições ditas libertárias em relação a costumes sociedade família e propriedade Com isso permanece a negligência aos estudos filosóficos e epistemológicos salvo por meio de leituras superficiais a erudição de orelha de livros e pelo manuseio desastrado de meia dúzia de categorias ditas pósmodernas Dogmática e crítica da jurisprudência Página 15 A introdução dos informativos jurisprudenciais e o acesso imediato aos acórdãos pela rede criou nos últimos dez anos o que se poderia chamar de dogmática judicializada à falta de expressão melhor Longe de pensar sistemas formular abstrações e fornecer dados ao juiz essa doutrina é escrita a partir do que já pensaram os juízes em seus acórdãos Não há margem para erros ou desvios O doutrinador concede ao estudante a visão dos tribunais Nada além disso Quando muito alguma posição acessória de crítica discreta ou de aplauso eloqüente O doutrinador surge como o autômato o organizador de jurisprudência em blocos esquemas e sumas do pensamento do tribunal O leitor deve comprar a novíssima edição pois a cada ano com as mudanças de humores nas Cortes a obra está desatualizada Não pela revogação da lei mas pela alteração de entendimento do pretório No Direito Constitucional a dogmática judicializada fez enorme progresso O modelo francês de Teoria Constitucional representado por nomes como José Afonso da Silva e Raul Machado Horta perdeu espaço ante a engenhosa percepção de que seria mais interessante ao aluno ler diretamente o que o STF afirmar ser a Constituição Aqui os próprios doutrinadores parecem afirmar que pouco importa o que pensam seus colegas de dogmática61 Nesse campo existem notáveis exceções como a obra de Virgílio Afonso da Silva na qual se encontram sólidas críticas ao método ou à ausência de método de construção das decisões judiciais62 Posteriormente esse modo de fazer a dogmática chegou ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal províncias jurídicas tradicionalmente marcadas pela riqueza do debate científico com escolas de pensamento ligadas historicamente aos grandes movimentos filosóficos como a Escola Sudocidental alemã e o Círculo de Viena63 No Direito Tributário essa doutrina judicializada também aportou Algumas resistências ainda se observam como nas obras de Hugo de Brito Machado com forte carga crítica em relação a certas posições assumidas pelos tribunais Paulo de Barros Carvalho e Luciano Amaro O Direito Civil foi a última barreira a ser vencida nesse processo de transformação nem sempre feliz da doutrina De início citese o recurso ao estudo do caso cujos fundamentos a despeito da terminologia utilizada para justificar sua superioridade em muito lembram o estudo de situações concretas através das quais se tenta induzir conclusões gerais aplicáveis a outras hipóteses particulares É notável também a mudança na estrutura da apresentação de certas obras Privilegiase o acórdão e a partir de suas conseqüências tentase construir fundamentos dogmáticos Invertese a função da doutrina e da jurisprudência A crítica desse modelo é refutada por argumentos pragmáticos Interessa expor ao discente o que pensam os tribunais e não as alocuções subjetivas de certo autor64 O prestígio dado aos conceitos jurídicos indeterminados e às cláusulas gerais por sua vez é outra marcante característica da dogmática civil contemporânea Provavelmente sem a exata percepção da teia em que se têm enredado os adeptos dessa corrente contribuem para debilitar o papel da doutrina na medida em que aumentam o grau de discricionariedade dos juízes e abdicam de projetar a compreensão geral das normas individuais em relação com a totalidade do Direito65 Os efeitos de longo prazo dessa opção não têm sido compreendidos com a necessária prudência A esse respeito a advertência de Juan Javier del Granado é atualíssima deuse uma fratura no Direito Privado no Brasil e em alguns países latinoamericanos que poderá implicar a ruptura com a tradição romanogermânica Esse abandono das raízes históricas do Direito Civil e Comercial em nada contribuirá para a conservação do espaço da autonomia privada e dos valores humanísticos dessas duas províncias jurídicas Dirseia mais em nada coopera com o fortalecimento da doutrina frente à jurisprudência66 4 A vocação da doutrina em nosso tempo 41 A vocação da doutrina Dogmática e crítica da jurisprudência Página 16 O título desta secção na verdade o subtítulo do artigo é uma homenagem a Friedrich Carl Von Savigny Sua obra mais famosa foi Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft em português Da vocação de nosso século para a legislação e a Jurisprudência ciência do Direito O pai da Escola Histórica após analisar a realidade das nações que possuíam e das que não possuíam códigos civis defendeu a tese da impotência de um código para fundar uma ciência do Direito verdadeiramente substantiva Isso porque o império dos códigos geraria dois efeitos ou nos veríamos completamente privados de literatura jurídica ou o que é mais provável teríamos uma literatura jurídica tão débil escassa e insuportável quanto a gerada sob o fastígio da recémbaixada codificação francesa67 A despeito de sua derrota pois em sua pátria a Alemanha o novo século XX veria o nascer do Código Civil de 1900 Savigny contrapôs o Direito produzido pelo Estado a lei codificada ao Direito produzido pelo espírito do povo Volksgeist o costume68 Ainda que consideradas a perspectiva histórica e a ideologia de Savigny a dualidade existente era entre o Estado e o povo Nesse ponto o jurista prussiano foi vitorioso O século XX revelou a falência de um Direito monista fundado tãosomente na lei Ocorre todavia que os maiores artífices da derrocada do chamado Positivismo legalista fizeram surgir um novo Positivismo de matriz igualmente estatal mas fundado no decisionismo Das leis passase ao que os juízes dizem sobre as leis E nesse ponto permanece o problemachave denunciado por Savigny no Oitocentos Continuase sob o prestígio dos poderes estatais embora se tenha no Brasil o privilégio de uma magistratura culta responsável e democrática Mas em regimes que desbordam do Estado Democrático de Direito e nosso tempo é pródigo de exemplos assim o uso feito da interpretação judicial muita vez conduz ou reconduz à busca da literalidade da norma a última garantia do cidadão contra o abuso do Estado cometido com a lamentável participação de agentes judiciais enfraquecidos pela quebra da independência do Poder Judiciário Como a era contemporânea repugna movimentos armados e golpes de Estado a dissolução da independência judicial ocorre de modo pouco sensível à população seja pela mudança na compostura das Cortes seja pelo aparelhamento ideológico dos juízes nomeados para cargos de maior relevo na jerarquia pretoriana Como desdobramento natural das idéias de Savigny podese afirmar que a doutrina é o costume em nosso tempo A função histórica do costume o contraponto ao racionalismo e ao estatalismo legal pode e deve ser exercida pela doutrina69 Se o costume é uma resultante do espírito do povo Volksgeist a doutrina também o é pois nasce do pensamento dos juristas eles mesmos uma parte do povo70 A vocação da doutrina em nosso tempo é perturbar criticar insurgirse denunciar e obrigar a reflexão sobre o Direito Ela deve exercer essas funções sobre a sociedade o Estado e os agentes mais ligados à produção jurídica o legislador e o juiz Não se veda a esses dois que doutrinem desde que o façam sem confundir a autoridade que decorre de suas respectivas funções no Estado Doutrinar é convencer persuadir influenciar com idéias pelo efeito de sua qualidade e do mérito de quem as produz Gérard Cornu faz um interessante jogo de palavras sobre o fundamento da autoridade da doutrina Non ratione auctoritatis sed auctoritate rationis não em razão da autoridade mas pela autoridade da razão71 A doutrina tem a vocação de ser o elemento necessariamente desagregador na produção jurídica legaljurisprudencial Não se recusa a legitimidade democrática dos legisladores e a legitimidade dos juízes fundada no mérito No entanto é necessária a oxigenação do sistema pelo recurso direto ao povo sob a forma de uma parcela sua a classe dos juristas Quem os escolheu Ninguém Quem os autorizou Ninguém A liberdade de manifestação é quem os suporta aliada ao reconhecimento singular de seu mérito conquistado pela prudência e pela perícia no trato das coisas do Direito para se fazer uso da graciosa Dogmática e crítica da jurisprudência Página 17 linguagem dos romanos conservada pelos medievais A prudência qualidade que repousa na experiência e a perícia qualidade que se esteia no estudo técnicocientífico ou artístico como querem alguns das normas segundo a natureza das coisas Natur der Sache A natureza das coisas tem na sentença de Horácio Livro I Épodo IX sua mais literária e elegante expressão Naturam expellas furca tamen usque recurret expulsai a natureza ela voltará correndo Essa doutrina desenvolvida por autores como Karl Larenz Gustav Radbruch e Zippellius fundase em pressupostos da filosofia de Aristóteles ao pôr em evidência a faticidadeaxiológica não apenas os fatos mas esses sob a óptica dos valores tendo como antecedente o plano da validade Essa perspectiva da doutrina tem conseqüências Se o fundamento da doutrina como fonte do Direito conjuga a liberdade a criação plural do Direito a prudência a perícia e a natureza das coisas não se pode admitir que ela se valha exclusivamente da autoridade do Estado para existir Se hoje as afirmações dos velhos catedráticos franceses do século XIX de que eles não eram professores de Direito Civil e sim professores do Código Napoleão servem de modelo nas escolas jurídicas sobre os extremos da Escola da Exegese e do Positivismo do Oitocentos não é possível substituir essa doutrina legalista por outra jurisprudencialista É provável que em muitas faculdades de Direito os docentes de Direito Constitucional não mais ensinem essa disciplina e sim embora não o confessem sejam meros professores da Constituição interpretada pelo Supremo Tribunal Federal Ao viso deste trabalho não há diferenças entre a doutrina legalista e a doutrina jurisprudencialista Ambas condenam a liberdade dos doutrinadores à submissão ao Direito produzido pelo Estado Nada mais contrário à essência e à vocação da dogmática Essa assertiva porém não deve ser levada ao extremo de isolar a dogmática da lei e da jurisprudência O Direito prático fazse em grande medida pela interpretação da norma legal e ela se manifesta de modo socialmente organizado com aparato repressivo legítimo em larga escala mas não exclusivamente dentro do Poder Judiciário A separação entre professores e juízes é interessante como forma de permitir a autonomia dos primeiros mas isso não significa que aqueles não se debrucem sobre o ofício laborado pelos últimos É conveniente e fecunda essa interação entre o direito doutrinário e o direito pretoriano Retornese a Savigny Para o jurista a ciência do Direito a jurisprudência conformase pela ampliação de seu raio para além dos jurisconsultos teóricos os doutos e os historiadores É a aproximação da teoria e da prática72 Não se há como admitir porém é uma jurisprudência que usurpe as funções da doutrina e rompa com a harmônica coexistência entre essas duas fontes de criação do Direito Pela primeira vez em muitos séculos vivese sério risco dessa ruptura aqui e alhures como se notou dos exemplos transcritos ao longo do texto Friedrich Carl Freiherr von Savigny em sua obra clássica Sistema do direito romano atual ensinava que a atividade humana é susceptível de duas direções o conjunto do sistema científico o qual compreende a Ciência os livros o ensino ou a aplicação particular das regras aos acontecimentos da vida real Essa distinção entre a teoria e a prática é da natureza do próprio Direito bem como a própria evolução das civilizações tem dado às pessoas a missão de desenvolver cada um desses campos do saber assim todos os que se ocupam do Direito salvo algumas exceções fazendo da teoria ou da prática sua vocação especial se não é sua vocação exclusiva No entanto essa departição é boa quando não perde de vista sua unidade primitiva Isso ocorre quando o teórico conserva e cultiva a inteligência da prática e o prático a inteligência da teoria73 Se radicalizada a divisão entre as funções a teoria se converterá em exercício vão de pensamentos etéreos e a prática se consumirá em atividade puramente mecânica Hoje a teoria padece da incapacidade de conservar e cultivar a inteligência prática pois se tornou serva dessa última enquanto a prática por não encontrar respostas na teoria voltase para si mesma em um processo de contínua autoreferência 42 A vocação da doutrina e sua crise meios de superação Dogmática e crítica da jurisprudência Página 18 Na secção anterior fezse inventário das causas da crise da doutrina Interessa sumariálas I ampliação excessiva do número de obras jurídicas II crise dos periódicos tradicionais de doutrina com a ampliação de revistas e a demanda exagerada por contribuições o que fez decrescer a seletividade e a qualidade dos textos III uso das publicações como meio de pontuação em concursos públicos ascensão funcional e obtenção de gratificações na carreira do magistério superior IV ausência de legisladoresjuristas V redução nas citações doutrinárias nos acórdãos VI má qualidade na formação jurídica especialmente pelo desinteresse com a formação filosófica e epistemológica e vícios na seleção de quadros nas universidades como o favoristimo e a autoreferência VII avanço da dogmática judicializada e da valorização do estudo de casos Examinemse os tópicos com a esperança de se oferecer algumas soluções I ampliação excessiva do número de obras jurídicas II crise dos periódicos tradicionais de doutrina com a ampliação de revistas e a demanda exagerada por contribuições o que fez decrescer a seletividade e a qualidade dos textos III uso das publicações como meio de pontuação em concursos públicos ascensão funcional e obtenção de gratificações na carreira do magistério superior O barateamento das edições as publicações eletrônicas os sítios jurídicos e outros meios de difusão dos escritos científicos criaram a demanda maior do que a oferta de textos de qualidade além de colocar praticamente no mesmo nível o jurista e o indivíduo não dotado das qualidades de prudência e perícia necessárias à doutrina É de certo modo reconfortante observar a História e perceber que os homens antes da imprensa ou da internet viveram momentos daquilo que Rudolf von Ihering chamou não sem sarcasmo de grafomania a mania de escrever prolixamente obras jurídicas74 Sim A Lei de Citações do Dominado não foi algo mais do que uma tentativa do Estado de controlar a decadência e os abusos dela advindos na produção grafomaníaca de escritos glosas e adulterações em textos de Direito É esse o sentido da denúncia de Ihering em pleno século XIX da corrida sem mérito pelo mérito de se doutrinar A criação de mecanismos de controle da produção científica baseados na premiação financeira ou funcional foi inicialmente uma forma positiva de apartar docentes inertes e pesquisadores diligentes além de estimular o crescimento intelectivo dos servidores por meio da realização de cursos como espécie de sanção premial Como em todos os processos dessa natureza em certo tempo descobriuse que a forma prepondera sobre o fundo Se para obter uma gratificação alguns pontos em provas de títulos ou boas notas nas avaliações da Capes basta escrever um livro e quatro ou cinco artigos por ano então que se faça75 Descobriram os inertes que bastaria seguir as regras e a partida estaria ganha A denúncia de Roberto Fragale Filho e Alexandre Veronese quanto à insuficiência dos critérios formais de avaliação do desempenho dos cursos de pósgraduação é cada vez mais atual76 Em termos rigorosos se a produção científica em Direito for submetida a uma auditoria terseiam duas conclusões ou ela é o produto de gênios com imensa fecundidade no desenvolvimento de novos saberes jurídicos ou ela é uma fraude marcada por práticas viciadas como o manualismo o sincretismo metodológico a repetição de temas ou a visão da atividade científica como algo que rouba horas do convívio dos familiares77 Algumas providências a respeito desses desvios merecem reflexão i revisão dos textos normativos que prevêem pontuação por trabalhos publicados para ascensão funcional ou gratificações de servidores O estabelecimento de número máximo de textos para fins de contagem de pontos desestimularia o excedente derivado do simples espírito de competitividade que nada diz com a ciência ii aumento no rigor do credenciamento de periódicos no sistema Qualis com a eleição de critérios menos formais e portanto facilmente obteníveis78 A exigência de conselhos editoriais efetivos é uma medida adequada iii estabelecimento de selo de qualidade para as editoras como forma de se restringir a aceitação de determinadas publicações como válidas para pontuação de títulos ou de gratificações Como contrapartida deverseiam obrigar as editoras a possuir Dogmática e crítica da jurisprudência Página 19 conselhos editoriais efetivos iv estímulo às pesquisas por meio de financiamento público ou privado com agrupamento de investigadores Em síntese os três problemas expostos demandam o controle qualitativo da produção científica o que passa necessariamente pelo desvalor da pesquisa e da escrita voltadas para a competição de pontos em provas e em concursos IV ausência de legisladoresjuristas A crise dos parlamentos é mundialmente reconhecida Não há muito que se fazer sobre a perda de influência direta dos juristas nas assembléias e nos congressos Tratase de um fenômeno dos tempos atuais A melhor reação a isso é a ampliação da atividade das associações de juristas como grupos legítimos de pressão ao exemplo do que já se verificou no âmbito do Direito Processual e do Direito do Consumidor V redução nas citações doutrinárias nos acórdãos Esse problema resulta de uma combinação de fatores i massificação da atividade doutrinária se todos somos doutrinadores ninguém verdadeiramente o é ii baixa qualidade da doutrina produzida iii aumento exponencial do número de litígios em dissonância com a estrutura do Poder Judiciário iv informatização A repercussão geral a argüição de relevância e a técnica dos processos repetitivos no STF e no STJ poderão em poucos anos reverter esse quadro na medida em que os tribunais passarão a emitir julgados em menor quantidade e com maior tempo para se aprofundar nos temas de efetivo relevo Essa é a grande esperança para a recuperação exterior da doutrina porque se não houve melhora interna de nada adiantarão essas mudanças Os tribunais ante uma dogmática atrasada e autoreferente deixarão de consultála por sua própria inutilidade a seus ofícios A redução no número de recursos e o aumento na qualidade da doutrina poder servir de meios bastantes e suficientes a esse fim Há descrições comoventes do quanto um juristadoutrinador sério contribui para a construção de grandes molduras jurisprudenciais e de outro lado quando um tribunal sabe reconhecer a importância da contribuição da dogmática O Min Carlos Velloso relatou acórdão do STF que pareceu reviver a antiga prática de consulta aos jurisprudentes romanos No RE 262651SP julgado aos 16112005 pela 2ª T RTJ 1942675 analisouse a controvérsia relativa à extensão ao terceiro que não está se utilizando do serviço público alheio ao serviço de transporte a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público O relator afirma que procedeu a investigação em diversas fontes doutrinárias sem maior sucesso na identificação de uma resposta específica ao caso Então informa o Min Carlos Velloso em gesto de singular homenagem ao conhecimento dogmático que dirigiu ao jurista Celso Antônio Bandeira de Mello carta pedindo o seu pronunciamento a respeito tendo recebido pronta e gentil resposta do autor sobre tema a respeito do qual suas obras não apresentavam posição Esse é um exemplo do quão podem ser profícuas as interrelações entre doutrina e jurisprudência Fazse necessário para isso que aos juízes importe o que os doutores com venia legendi tenham a dizer e que esses juristas tenham o que dizer A falta de um desses fatores elimina a justa e harmônica equação dogmáticajurisprudência VI má qualidade na formação jurídica especialmente pelo desinteresse com a formação filosófica e epistemológica e vícios na seleção de quadros nas universidades como o favoristimo e a autoreferência Em respeito a este tópico uma advertência fazse indispensável a crise no ensino jurídico não é um privilégio de nosso tempo Falase de crise da formação de bacharéis ao longo de todo o século XX para se limitar à última centúria Esse não é um problema novo e crêse firmemente na sensível melhora nas Faculdades de Direito em diversos aspectos a despeito de elementos de decadência e degeneração os quais não lhes podem ser atribuídos isoladamente Eles resultam do comprometimento generalizado do ensino nos diversos níveis com o pragmatismo a exclusão do Humanismo e o desapreço pelo esforço acadêmico tanto de alunos quanto de professores Hoje de outro lado estudam mais pessoas Os níveis de exigência Dogmática e crítica da jurisprudência Página 20 profissional e teórica são mais profundos Deuse grande impulso no estudo de Filosofia geral e jurídica com diversos mestres e doutores que se dedicam a matérias de Teoria Geral do Direito O discurso da crítica pela crítica não convence Mas é também inquestionável a concorrência de três fatores todos contemporâneos a justificar que a má formação dos juristas é causa de declínio da dogmática 1 Conquanto se note o florescimento dos estudos filosóficos nas Escolas de Direito ele se mostra restrito a grupos de discentes os quais se relacionam com disciplinas de Teoria Geral na graduação e seguem nos mestrados e doutorados por esses caminhos metajurídicos Dáse na verdade uma exclusão mútua de péssimo resultado para a cultura jurídica O especialista se é possível dizer isso de um filósofo do Direito em temas teóricos busca cada vez mais evadirse dos estudos dogmáticos provavelmente tangido pelo choque entre a óptica teorética e o Direito praticado Parecem esquecer que o elemento humano contamina e torna impura todas as ciências culturais É a tragédia do homem o toque de Midas da humanidade que transforma o sacro em profano o puro em impuro dada a contradição essencial do próprio homem imperfeito e pecador Com isso criamse torres de marfim jusfilosóficas em alguns centros de ensino do Direito nas quais por uma geração no máximo o filósofo da moda atrai um secto de crentes até que seja substituído por um novo guia das consciências à semelhança dos padixás do Império Otomano cujos sucessores eliminavam os vestígios de seus antecedentes como forma de afirmar com maior ênfase seu próprio poder Não há desse modo a abertura para o diálogo entre os juristasfilósofos e os juristasdogmáticos Nesse aspecto houve irrecusável decadência na formação jurídica Recordese que Hans Kelsen antes de ser o magnífico juristafilósofo do século XX era um renomado constitucionalista e internacionalista em sua Áustria natal Miguel Reale dedicouse ao Direito Civil Arnaldo Vasconcelos o maior representante da Escola Egológica na América Latina foi especialista em Direito Comercial O afastamento também se dá por parte dos juristasdogmáticos A mera leitura de alguns manuais contemporâneos de Direito Civil apresenta a renúncia desses autores aos clássicos capítulos iniciais das obras de Teoria Geral do Direito Civil dedicados ao estudo do Direito Estado norma jurídica seu fundamento e sua natureza Salvo honrosas exceções as obras que conservam esses capítulos fazemno com base em uma Filosofia jurídica do pósguerra sem dialogar ou criticar com as novas correntes justeoréticas Estagnação ou absenteísmo Eis o elemento preponderante da crise e com ela surgem efeitos deletérios sincretismo metodológico manualismo incapacidade de se construir grandes sistematizações repetição acrítica de conceitos pósmarxistas repúdio ao Direito Romano simplificações e mistificações 2 Não há doutrina sem bons juristas E não se formam bons juristas sem escolas de Direito de qualidade O elementocentral desse processo é o magister o professor Muito bem Desde o início dos tempos sempre houve e haverá a política do favoritismo Esse é outro convidado indiscreto dos impuros negócios humanos apesar das heróicas tentativas do legislador de escoimálo da coisa pública O art 37 da CF1988 é o mais completo libelo escrito na história recente brasileira contra o pessoalismo e a imoralidade no trato da Administração Pública e do recrutamento de seus quadros79 O regime dos professores catedráticos anterior à grande reforma do sistema educacional realizada nos anos 70 era fortemente contaminado pelo favoritismo No entanto o controle dos próprios titulares das cátedras em relação a seus pupilos era implacável Havia certa ética nesse recrutamento O compromisso era bilateral A deficiência do pupilo implicava a nãoobtenção do cargo de docente Nos dias atuais porém tanto no Brasil quanto em outros países ao que já visto o mérito perdeu relevo em comparação ao favoritismo Essa é uma das causas mais pronunciadas da crise da dogmática a seleção descomprometida com a moralidade e a impessoalidade nos quadros universitários Com isso excluemse grandes doutrinadores do cenáculo que Dogmática e crítica da jurisprudência Página 21 se lhes deveria reservar as cátedras das Escolas de Direito das quais poderiam realizar o antigo e sempre novo docendo discimus Podese chegar ao extremo em alguns casos de que o bom doutrinador assim será considerado porque não integra a estrutura da universidade E dentro das Escolas haverá tudo menos doutrinadores Com isso quebrase o compromisso da doutrina com a criação do Direito pois lhe falta o fundamento da perícia e da prudência A dogmática deslegitimase porque desacreditada A dogmática desaparece porque não consegue produzir algo de útil Na raiz A falta de semeadores de trigo e o excesso de semeadores de joio 3 Como último fator destaquese a autoreferência Com seleções marcadas pelo vício do favoritismo não se abrem as portas da universidade para elementos formados em outras escolas com outros valores conhecimentos e visões de mundo Fechase a Escola de Direito em um ciclo vicioso de autoreferência Não há crescimento científico sem pluralismo Não há produção de conhecimento sem heteroreferência O historiador britânico Benedict Anderson em seu Comunidades imaginadas examinou o surgimento dos modernos Estados nacionais nos séculos XIXXX com a descolonização da América Ásia e África Uma das causas determinantes da independência desses novos países foi o sentimento de que todos os nativos pertenciam a uma comunidade com valores símbolos e elementos unificantes imaginados A literatura a imprensa e a cartografia contribuíram decisivamente nesse processo E segundo o autor a criação nas décadas que antecederam a independência de escolas centrais para formação de quadros entre os colonos e nativos foi outro elemento fundamental para o surgimento das comunidades imaginadas Elementos de diversas regiões da colônia afluíam para uma mesma universidade central conheciamse trocavam experiências e compartilhavam suas visões de mundo Ao voltarem traziam as sementes da noção de identidade nacional e cultural No Brasil o melhor exemplo dessa função agregadora sob o prisma dos discentes oriundos de diversas regiões do país é a Universidade de São Paulo especificamente sua Faculdade de Direito Esse modelo de heteroreferência é uma das razões mais significativas da permanente pujança dessa Escola Suponhase o valor da heteroreferência no plano docente nas diversas instituições universitárias brasileiras Os ganhos seriam notáveis Muito bem Mas o que fazer Algumas sugestões 1 Durante décadas os concursos públicos foram objeto de variegadas suspeitas de pessoalidade Convenceuse o Estado na maior parte das seleções de pessoal hoje realizadas no Brasil de que a melhor forma de assegurar os valores do art 37 da CF1988 seria atribuir a instituições externas a elaboração aplicação e correção dessas provas Diminuíram sensivelmente os casos de irregularidades desde então E mais do que isso a instituição do concurso público ganhou respeito social e tornouse mecanismo de constituição de uma elite burocrática baseada na meritocracia de investidura Nada impede que se adote esse modelo de realização externa de concursos públicos para as universidades estatais Somese a isso a unificação de vagas nacionalmente nas escolas superiores federais para fins de ocupação de cargos em quaisquer das regiões do país Medidas simples baixadas pelo Ministério da Educação teriam efeitos históricos nesse campo 2 A adoção de critérios universais objetivos e impessoais de avaliação dos postulantes a cargos de docente também poderia ser levada a efeito pelo Ministério da Educação Estabelecimento de pontos e notas mínimas e máximas para cada fase com redução da subjetividade e da discricionariedade das bancas examinadoras em fases nas quais esses fatores não poderiam prosperar como em provas de títulos de notória objetividade 3 Objetivação de critérios prévios de suspeição e impedimento com base em normas baixadas pelo Ministério da Educação Dogmática e crítica da jurisprudência Página 22 4 Atuação mais efetiva dos órgãos de controle interno e controle externo do Estado sobre os concursos públicos nas universidades Esses órgãos são por demais eficientes na fiscalização de obras públicas contratações de pessoal mas apesar da constância de representações ao Ministério Público de candidatos defraudados em certames para professor é praticamente nula a intervenção desses plexos no âmbito universitário A mera perspectiva de uma sanção disciplinar advinda de auditorias ou tomadas de contas especiais pelo Tribunal de Contas ou pela ControladoriaGeral por certo desestimularia abusos hoje cometidos nas universidades públicas VII avanço da dogmática judicializada e da valorização do estudo de casos Nesse último tópico que foi tangenciado ao longo do artigo destacamse dois problemas i a judicialização da dogmática ii a questão do estudo de casos jurisprudenciais Quanto à judicialização basta ressaltar que esse fenômeno revela a dificuldade da doutrina em exercer suas próprias funções sistematizar criar criticar e produzir conhecimento Essa leniência já cobra seu tributo Se a doutrina é mera paráfrase de acórdãos para que os juízes terão interesse em ler obras dogmáticas Se a doutrina é incapaz de propor criticar sistematizar para que existe Na raiz a crise de fundamentos filosóficos epistemológicos e metodológicos Sem Filosofia Teoria do Conhecimento e algum método não há como se evadir das armadilhas do manualismo da reprodução e da estagnação A jurisprudência é índice de aplicação teórica E quando atua criativamente gerando novas figuras jurídicas ou institutos não pensados ela influencia a doutrina embora não lhe seja isso exigido É necessário ter em consideração exatamente esse ponto a jurisprudência pode criar mas não se lhe pode demandar esse papel E ao fazêlo oferece importantes subsídios à doutrina No entanto é da dogmática que se deve exigir a função criativa Se ela renuncia a esse ofício e escorase no que os tribunais afirmam perde sua ratio essendi e dá mercê a que seja demitida pela História Quanto ao estudo de casos observase que há um movimento de reconstrução da dogmática a partir de duas perspectivas i a mera afirmação do juristadoutrinador é insuficiente para criar conhecimento jurídico tratase do velho recurso ao argumento de autoridade sem referibilidade e com excesso de subjetivismo ii o conhecimento jurídico necessita de alguma dose de método indutivo a partir do exame de casos tendências jurisprudenciais estatísticas e base de dados Não é adequado confundir o manualismo e a escrita jurídica baseada em chavões com a doutrina Essas duas espécies revelam sintomas da doença da grafomania denunciada por Rudolf von Ihering e literatura jurídica de baixa qualidade Daí se haver dedicado nas seções anteriores fortes linhas em ordem a se qualificar quem é o jurista apto a doutrinar E basearse na opinião doutrinária não é estimular o argumento de autoridade Como dito Non ratione auctoritatis sed auctoritate rationis A doutrina vincula não em razão da autoridade mas pela autoridade da razão80 Mais que isso a doutrina fundamentase no valor democrático na abertura para que o povo através da classe dos juristas crie Direito e modifique ou se contraponha ao Direito produzido pelo Estado por meio dos legisladores ou dos juízes Só por isso a doutrina já estaria devidamente validada em termos sociais históricos e políticos Por fim o estudo de casos especialmente quando focado em decisões judiciais tem seu valor É uma boa forma de se conferir a aplicação da doutrina ou sua não aplicação pelos órgãos estatais autorizados a dizer o Direito em última instância No entanto não se pode extrair dessas sistematizações a força ou a autoridade decorrente da supremacia de um método indutivo sobre o método dedutivo Verificar tendências pretorianas ou entender o porquê das decisões dos tribunais a partir delas mesmas não gera conhecimento superior ao produzido pela doutrina O fato é simples A autoridade dos tribunais decorre simplesmente de serem tribunais Seu poder é emanado da Constituição e com isso devem ser respeitadas estudadas e analisadas suas decisões Daí a concluir que são Dogmática e crítica da jurisprudência Página 23 óptimas por serem judiciais vaise ao absurdo da jurisprudenciolatria Há boas e ruins decisões judiciais Seu valor intelectivo é variável portanto Logo o exame desses julgamentos não substitui a tradicional forma de se doutrinar A empiria é importante Este articulista já desenvolveu pesquisas empíricas que coadjuvaram significativamente as teses concebidas dedutivamente É até necessário o estímulo à empiria no Direito Não se pode é ignorar que a doutrina fazse pelo direito de o jurista emitir sua opinio sobre fatos normas e valores e com ela modificar ou criar o Direito 5 Conclusões A crise da doutrina diferentemente da chamada crise do ensino jurídico é relativamente nova embora tenham sido historicamente identificados momentos de sério comprometimento dessa fonte do Direito À semelhança de ocorrências do passado a situação atual tem por ingredientes a máformação e a seleção dos juristas e docentes o pragmatismo e o avanço do Estado sobre a liberdade do povo em criar o Direito As soluções para a crise são possíveis de implementação com maior ou menor facilidade Algumas dependem do Estado outras dos próprios doutrinadores Em tudo destacase a imperativa recuperação pelos doutrinadores de seu espaço É a estes que compete a mais difícil tarefa recobrar o respeito pela própria doutrina tão abalado pelos sucessos descritos neste texto81 Em tempos de Direito Comunitário e da Integração deve assumir a doutrina maior importância ainda pois tem a aptidão de harmonizar e servir de meio à cooperação entre as comunidades jurídicas82 A doutrina como elemento democrático na criação do Direito tem de sobreviver 1 No original In den Motiven des einstigen BGBGesetzgebers 1900 heiβt es des öfteren daβ diese oder jene Frage Wissenschaft und Rechtsprechung übertlassen bleiben soll In den Materialien des Modernisierungsgesetzes heiβt es demgegenüber zumeist daβ die Frage der Rechstprechung überlassen bleiben soll Das ist kein Zufall dahinter verbirgt sich eine Verachtung der Wissenchatf für welche der Fluch des Mephistopheles gilt Verachte nur Vernunft und Wissenschaft Des Menschen allerhöchste Kraft Und Hätt er sich auch nicht dem Teufel übergeben Er müβte doch zugrunde gehn EHMANN Horst SUSTSCHET Holger Modernisiertes Schuldrecht Lehrbuch der Grundsätze des neuen Rechts und seiner Besonderheiten München Vahlen 2002 p13 2 EHMANN Horst SUSTSCHET Holger Op cit p14 3 A jurisprudência pelo menos entre nós de há muito está decidida a caminhar sem a ajuda da ciência do direito O resultado disso como demonstrado a partir dos exemplos da jurisprudência sobre o dolo de homicídio e a desistência da tentativa de homicídio é a insegurança jurídica e arbítrio PUPPE Ingeborg Ciência do direito penal e jurispru dência Tradução de Luís Greco Revista Brasileira de Ciências Criminais v14 n58 p105113 janfev 2006p113 4 PERLINGIERI Pietro Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional Tradição de Maria Cristina de Cicco 2 ed Rio de Janeiro Renovar 2002 p2122 5 Não me importa o que pensam os doutrinadores Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça assumo a autoridade da minha jurisdição O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação A eles porém não me sub Dogmática e crítica da jurisprudência Página 24 meto Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro Decido po rém conforme minha consciência Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual para que este tribunal seja respeitado É preciso consolidar o entendimento de que os Srs Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim porque pensam assim E o Superior Tribunal de Justiça decide assim porque a maioria de seus integrantes pensa como estes ministros Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele É fundamental expressarmos o que somos Ninguém nos dá lições Não Somos aprendizes de ninguém Quando viemos para este Tribunal corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico uma imposição da Constituição Federal Pode não ser verdade Em relação a mim cer tamente não é mas para efeitos constitucionais minha investidura obrigame a pensar que assim seja AgRg nos EREsp 319997SC Rel Ministro Francisco Peçanha Martins Rel p Acórdão Ministro Humberto Gomes de Barros Primeira Seção julgado em 14082002 DJ 07042003 p216 Há incisiva contestação doutrinária dessas pa lavras no seguinte ensaio STRECK Lenio Luiz Ao contrário do ministro devemos nos importar muito com o que a doutrina diz Disponível em httpultimainstanciauolcombrensaioslernoticiaphpidNoticia23310 Acesso em 182008 6 MERRYMAN John Henry The Civil Law tradition an introduction to the legal systems of Europe and Latin America 3 ed Palo Alto Stanford University Press 2007 passim 7 HOUAISS Antonio Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa Verbete doutrina Disponível em httphouaissuolcombrbuscajhtmverbetedoutrinastypek Acesso em 182008 8 Modernamente a palavra jurisprudência é usada para referir o conjunto de decisões dos tribunais Esse não é o único sentido porém Jurisprudência iurisprudentia é a Ci ência do Direito como ainda se usa no idioma alemão a atividade cometida ao prudens o perito em matéria jurídica de ius dicere dizer ou interpretar o Direito Os jurisprudentes eram inicialmente os pontífices sacerdotes romanos da religião pagã Com a dessacrali zação do Direito em fins do Século IV e início do Século III AC a atividade foi assumida pelos estudiosos da Ciência Jurídica A era de ouro da Jurisprudência corresponde ao período entre 27 AC Otávio Augusto e 235 AD dinastia dos Severos São repre sentantes desse período dito clássico os juristas Gaio Papiniano Paulo Ulpiano e Mo destino Alguns deles foram mortos por razões de Estado ante haverem feito a opção pelo rigor de suas posições científicas em detrimento da vontade do imperador Papiniano ad exemplum foi condenado à morte por Antonino Caracala em decorrência de sua negativa a justificar o homicídio praticado pelo imperador contra seu próprio irmão IGLESIAS Juan Derecho Romano 12 ed Barcelona Ariel 1999 p3638 A Santos Justo Direito Privado Romano Parte geral Introdução Relação jurídica Defesa dos direitos 3 ed Coimbra Coimbra Editora 2006 v1 p56 adverte que a iurisprudentia romana aproximase da doutrina actual 9 MATOS PEIXOTO José Carlos de Curso de Direito Romano Parte introdutória e geral 4 ed Rio de Janeiro Renovar 1997 t1 p120 10 MOREIRA ALVES José Carlos Direito Romano 11 ed Rio de Janeiro Forense 1998 v1 p44 11 DÍEZPICAZO Luis GULLÓN Antonio Sistema de Derecho Civil 11 ed Madrid Tecnos 2005 v1 p161 12 ALMEIDA COSTA Mário Júlio de História do Direito Português Coimbra Almedina 2000 v3 p 304308 Dogmática e crítica da jurisprudência Página 25 13 ALMEIDA COSTA Mário Júlio de Op cit p 308317 14 ALMEIDA COSTA Mário Júlio de Op cit p 314316 15 HORN Norbert Introdução à Ciência do Direito e à Filosofia Jurídica Tradução de Elisete Antoniuk Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2005 p58 16 DÍEZPICAZO Luis GULLÓN Antonio Op cit p157158 17 Art40 Lei Complementar 43 de 1021993 DOU 1121993 18 SANTOS JUSTO A Op cit p86 19 Na época republicana é eminentemente criadora e tem por suporte uma auctoritas saber socialmente reconhecido inequivocamente expressa na consideração dos iuris periti como príncipes civitatis e da sua casa como oraculum civitatis e protegida na recusa de qualquer compensação pecuniária SANTOS JUSTO A Op cit p87 20 CALAMANDREI Piero Eles os juízes vistos por um advogado Tradução de Edu ardo Brandão São Paulo Martins Fontes 2000 p37 21 VASCONCELOS Arnaldo Teoria pura do Direito repasse crítico de seus princi pais fundamentos Rio de Janeiro Forense 2003 p174 e ss com robusta funda mentação filosófica e epistemológica sobre o fim da era da inocência no mundo cientí fico ROCHA José de Albuquerque Estudos sobre o Poder Judiciário São Paulo Malheiros 1995 p30 especificamente sobre a diferença entre imparcialidade e neutra lidade do juiz o que se estende ao próprio Direito 22 A título de exemplo citemse as obras seguintes JUNQUEIRA DE AZEVEDO Antonio Junqueira de Estudos e pareceres de direito privado São Paulo Saraiva 2004 com parecer que introduziu no Direito brasileiro a doutrina do terceiro cúmplice AZEVEDO Álvaro Villaça Contrato atipíco misto e indivisibilidade de suas prestações Revista dos Tribunais São Paulo v89 n778 p115134 ago 2000 BARBOSA Ruy Inadim plemento de contrato MadeiraMamoré Railway Co direitos da concessionária a perdas e danos remédio jurídico parecer In Trabalhos jurídicos Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1962 v 40 t 2 p 103117 BEVILAQUA Clovis Soluções práticas de Direito Rio de Janeiro Freitas Bastos 19231945 4 v coletânea de pareceres 23 É o caso no Direito Público dos pareceres de José Horácio Meirelles Teixeira Hely Lopes Meirelles e Francisco Campos cujos ecos se fazem ouvir nas modernas obras doutrinárias ou influenciaram no modo de ser de figuras ou institutos jurídicos 24 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da norma jurídica 2 ed Rio de Janeiro Forense 1986 p276 GUSMÃO Paulo Dourado de Introdução ao estudo do Direito 33 ed Rio de Janeiro Forense 2003 p129132 Nos manuais de Direito Civil VENOSA Sílvio de Salvo Direito Civil parte geral 8 ed São Paulo Atlas 2008 v1 p1819 NADER Paulo Curso de Direito Civil parte geral 4 ed atual Rio de Janeiro Forense 2007v1 p112 apontando a doutrina como fonte indireta do Direito 25 REALE Miguel Lições preliminares de Direito 4 ed São Paulo Saraiva 1977 p176 Negando à doutrina a natureza de fonte do Direito mas concedendolhe a função participativa na formação legislativa ou costumeira do Direito influindo nela tão só pelo rigor científico ou técnico de suas soluções DEL VECCHIO Giorgio Lições de Filosofia do Direito Tradução de António José Brandão 5 ed Coimbra Arménio Amado 1979 p430 Dogmática e crítica da jurisprudência Página 26 26 ASCENSÃO José de Oliveira O Direito introdução e teoria geral Uma perspectiva lusobrasileira 6 ed Coimbra Almedina 1991 p230 27 GOMES Orlando Introdução ao Direito Civil Atualizado por Edvaldo Brito e Regi nalda Paranhos de Brito 19 ed rev Rio de Janeiro Forense 2007 p44 28 MORIN Gaston Le rôle de la doctrine dans lélaboration du droit positif In AAVV Annuaire de lInstitut de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique Paris Sirey 1934 p64 29 Art38 Decreto 19841 de 22101945 DOU 5111945 que promulga a Carta das Nações Unidas da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça assinada em São Francisco a 26 de junho de 1945 por ocasião da Conferência da Organização Internacional das Nações Unidas 30 Lei 8906 de 471994 DOU 571994 dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB art34 inciso XIV 31 No primeiro caso doutrina com sinônimo de doutrina militar citese por todas a Lei Complementar 97 de 961999 DOU 1061999 que dispõe sobre as normas gerais para a organização o preparo e o emprego das Forças Armadas em cujo art13 se diz que o preparo compreende entre outras as atividades permanentes de planejamento orga nização e articulação instrução e adestramento desenvolvimento de doutrina e pesquisas específicas inteligência e estruturação das Forças Armadas de sua logística e mobiliza ção Quanto ao segundo caso doutrina como sinônimo de idéias filosóficas anotese o art11 2º alínea c da Lei 1802 de 511953 DOU 7110953 relativa aos Crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social que declara não constituir propaganda tipi ficável como criminosa a exposição a crítica ou o debate de qualquer doutrina 32 VASCONCELOS Arnaldo Teoria purap176177 Ressalvese porém que isso não significa o total colapso da visão mecanicista do mundo como adverte Friedrich Müller Teoria estruturante do Direito Tradução de Peter Naumann e Eurides Avance de Souza São Paulo RT 2008 p13 Há ainda espaço para o mecanicismo na Física só que em experimentações restritas e sem mais a pretensão universal que se lhes reconhecia até o século XX e o surgimento das novas teorias quântica da relatividade e da incerteza 33 A livredocência é um título acadêmico concedido no Brasil por uma instituição de ensino superior por meio de concurso público tãosomente aos que possuem o título de Doutor e que confere a seus titulares o reconhecimento de uma qualidade superior na docência e na pesquisa Seu fundamento normativo está na Lei nº 5802 de 1191972 que dispõe sobre a inscrição em prova de habilitação à livredocência e na Lei n 6096 de 591974 que prorroga o prazo estabelecido no parágrafo único do artigo 1o da Lei 5802 de 11091972 34 Venia legendi expressão utilizada por João Baptista Villela tem significado específico de habilitação para o título de Privatdozent a equivaler ao livredocente no Brasil 35 VILLELA João Baptista Livredocência apontamentos de uma argüição Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico e Financeiro v143 p3941 julset 2006 p4041 36 PERLINGIERI Pietro Op cit p24 37 O célebre discurso de Rui Barbosa jurista e Senador brasileiro tem a seguinte oração De tanto ver triunfar as nulidades de tanto ver prosperar a desonra de tanto ver crescer a injustiça de tanto ver agigantaremse os poderes nas mãos dos maus o homem chega Dogmática e crítica da jurisprudência Página 27 a desanimar da virtude a rirse da honra a ter vergonha de ser honesto BARBOSA Rui Obras completas Rio de Janeiro Senado Federal 1914 v 41 t 3 p 86 38 Mestrado doutorado livredocência e titularidade 39 Na Universidade de São Paulo a organização da carreira acadêmica alcança os seguintes níveis Professor doutor Professor associado com exigência do título de LivreDocente e Professor titular com defesa de tese de titularidade Nas universidades federais brasi leiras têmse os cargos de Professor auxiliar com graduação Professor assistente com exigência do grau de Mestre Professor adjunto com doutorado e Professor titular úl timo nível na carreira com titulação mínima de doutor 40 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da normap275 41 A Santos Justo Op cit p88 anota que sempre houve tentativas dos poderes polí ticos de controlar a atividade dos doutrinadores em Roma 42 BONAVIDES Paulo Curso de Direito Constitucional 12 ed São Paulo Malheiros 2002 p237 43 BARROSO Luis Roberto O começo da história a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro Revista Forense Rio de Janeiro Forense v371 p175202 janfev 2004 p177 44 ENGISCH Karl Introdução ao pensamento Jurídico Tradução de João Baptista Machado 6 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1983 p207 45 Para um extenso apanhado do enfraquecimento do monismo sob a óptica da doutrina alemã TORRES Ricardo Lobo Legalidade tributos contraprestacionais e harmonia entre os poderes do Estado Revista Forense Rio de Janeiro Forense v384 p155169 marabr 2006 p162 46 Para uma crítica aprofundada sobre o sincretismo doutrinário no Brasil na questão da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre privados SILVA Virgílio Afonso da A constitucionalização do Direito Os direitos fundamentais nas relações entre particulares São Paulo Malheiros 2005 p2938 47 Como exemplo dessa visão judicializada do Direito vejase essa passagem A con clusão inarredável é que respeitado o espaço de discricionariedade legislativa e admi nistrativa não há limites ao emprego da técnica de ponderação de bens e interesses o Neoconstitucionalismo consagrou a abertura da Caixa de Pandora reconhecendo que ao Poder Judiciário cabe inescapável monopólio da última palavra sendo inútil lançar mão de artifícios com a exigência de cega obediência à lei escrita e a medidas hermenêuticas previsíveis interpretação literal sistemática histórica teleológica para proclamar uma falsa segurança jurídica Na falta de elementos objetivos o controle de legitimidade da ponderação pelo juiz tem sido realizado pelo exame da argumentação ou melhor dizendo da fundamentação desenvolvida MARTINS Samir José Caetano Neoconstituciona lismo e seus reflexos nas relações jurídicas privadas em busca de parâmetros de apli cação direta dos direitos fundamentais Revista Forense Ri de Janeiro Forense v393 p173204 setout 2007 p192 Convém registrar que essa tendência não é unânime Vejase a séria crítica feita por Carlos Bastide Horbach A nova roupa do Direito Consti tucional Neoconstitucionalismo póspositivismo e outros modismos Revista dos Tri bunais São Paulo RT v96 n859 p8191 maio 2007 p90 Já no Brasil em tempos de neoconstitucionalismo quando se afirma sou contra esta lei porque é inconstitu cional estáse na verdade dizendo Esta lei é inconstitucional porque sou contra ela Dogmática e crítica da jurisprudência Página 28 Na verdade essas decisões mostram como o neoconstitucionalismo faz com que o direito constitucional deixe de ser uma ciência objetivamente considerada e passe a ser a ex pressão emocional das intenções do intérprete o que é reforçado com a conclusão de que sob a ótica da dogmática constitucional as velhas e novas técnicas de interpretação em nada diferem 48 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da norma jurídicap276 49 CORNU Gérard Droit Civil Introduction les personnes les biens 12 ed Paris LGDJ 2005 p193 50 CORNU Gérard Op cit p194 51 Em trabalho publicado originalmente no ano de 1944 já oferecia Francisco Clementino San Tiago Dantas uma síntese das funções da dogmática jurídica que é muito próxima da que ora se formula Ela ergue o sistema explica as relações e a interdependência dos comandos destaca os institutos inclusos hierarquiza princípios faz generalizações e exerce mesmo um papel revelador da excelência ou da imprestabilidade da lei quando a submete às deduções extremas e a experimenta nas várias situações práticas possíveis E é graças a este último aspecto que os estudos dogmáticos construídos sobre a lei rein vertem na própria legislação os seus melhores produtos pois muitas reformas e inovações legislativas encontram sua origem não nos fatos econômicos ou políticos mas na própria elaboração doutrinária que o Direito anterior suscitou SAN TIAGO DANTAS FC Nova dogmática jurídica Revista Forense comemorativa 100 anos Rio de Janeiro Fo rense 2007 p 141146 v2 p142 52 Art541 parágrafo único CPC 53 Obviamente que não é de ser simplesmente fechada a porta à publicação de artigos de estudantes em periódicos sérios Em alguns casos a precocidade do discente e seu des taque intelectual fazem com que se supere essa presunção Mas como parecer ser óbvio não há como se receber com naturalidade essa situação tornarse uma regra quando deveria ser excepcional 54 FRAGALE FILHO Roberto Quando a empíria é necessária In XIV Congresso Nacional do CONPEDI 2006 Fortaleza Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI Flo rianópolis Fundação Boiteux 2005 p 323 55 FRAGALE FILHO Roberto VERONESE Alexandre Kehrig A pesquisa em Direito di agnóstico e perspectivas Revista Brasileira de Pós Graduação Brasília v 2 p 5370 2004 p5455 56 Lêse da Exposição de Motivos n40 do Senhor Ministro de Estado da Justiça ao an teprojeto de lei que introduziu no CPC o art543C recursos repetitivos De há muito surgem propostas e sugestões nos mais variados âmbitos e setores de reforma do processo civil Manifestações de entidades representativas como o Instituto Brasileiro de Direito Processual a Associação dos Magistrados Brasileiros a Associação dos Juizes Federais do Brasil de órgãos do Poder Judiciário do Poder Legislativo e do próprio Poder Executivo são acordes em afirmar a necessidade de alteração de dispositivos do Código de Processo Civil e da lei de juizados especiais para conferir eficiência à tramitação de feitos e evitar a morosidade que atualmente caracteriza a atividade em questão 57 PUPPE Ingeborg Op cit p113 58 Acórdão relatado pelo Min Celso de Mello no qual se invocam as lições de Fauzi Hassan Chouke Ada Pellegrini Grinover Rogério Lauria Tucci Roberto Maurício Genofre Paulo Dogmática e crítica da jurisprudência Página 29 Fernando Silveira Romeu de Almeida Salles Junior e Luiz Carlos Rocha Informativo STF n513 Brasília 30 de junho a 4 de julho de 2008 59 Acórdão relatado pelo Min Gilmar Mendes que cita José Joaquim Gomes Canotilho e J Chevalier Informativo STF505 Brasília 5 a 9 de maio de 2008 60 Acórdão relatado pelo Min Gilmar Mendes com referências a Martín Kriele MaunzDürig e a Norberto Bobbio Informativo STF n500 Brasília 31 de março a 4 abril de 2008 61 Chega a ser emblemático o que Manoel Gonçalves Ferreira Filho Curso de Direito Constitucional33 ed São Paulo Saraiva 2007 pVIIVIII escreveu em prefácio de recente edição de seu manual Digase de passagem que ninguém está mais surpreendido com a longevidade do Curso de que o seu próprio autor Tratase de um curso escrito segundo o padrão cultural europeu mormente francês que insiste nos fundamentos doutrinários e também políticos e sociais das instituições bem como dos grandes temas constitucionais Visa a preparar cabeças capazes de raciocinar por si próprias em face de qualquer Constituição e não as que querem receber prontas as respostas certas para os questionários escolares ou de concursos elementares Ora não é essa a mentalidade hoje predominante em cursos e cursinhos o que torna elitista este Curso 62 SILVA Virgílio Afonso da Op cit especialmente pp162170 63 São exceções dentre outras os manuais de Cezar Roberto Bitencourt Tratado de Direito Penal 12 ed São Paulo Saraiva 2008 passim e Eugênio Pacelli de Oliveira Curso de Processo Penal 8 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 passim 64 É de ser reconhecido todavia que a dogmática civilista necessitava de renovação especialmente quanto a aspecto bem destacado por Francisco Clementino San Tiago Dantas Op cit p146 a saber o descompromisso com as leis especiais e os fenômenos que se afastavam do tratamento harmônico dado pelos códigos A visão do Direito ob jetivo que muitos juristas conservam e defendem é a de um sistema harmônico de normas de Direito comum em torno do qual cresce acongérie das normas de Direito especial caprichosas contraditórias e efêmeras A doutrina abona e explica as primeiras para as segundas temos de cair numa positividade estreita pois não se reconhece estrutura doutrinária capaz de lhes dar continuidade e coerência Com isso temas importantes em demasia locações prediais urbanas filiação genética cláusulas abusivas leis de urba nismo foram segregados nos manuais de doutrina a referências em notas de pé de página ou em parágrafos isolados O resultado dessa renúncia em se enfrentar a heterodoxia normativa foi a ampliação de zonas cinzentas ou a perda de espaço do Direito Civil para outras disciplinas 65 EHMANN Horst SUSTSCHET Holger Op cit p14 66 GRANADO Juan Javier de Pósfácio In TIMM Luciano Benetti O novo Direito Civil ensaios sobre o mercado a reprivatização do Direito Civil e a privatização do Direito Pú blico Porto Alegre Livraria do Advogado 2008 p202204 67 SAVIGNY F Von De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la Ciencia del Derecho Traducción del alemán de Adolfo G Posada Buenos Aires Heliasta 1977 p177 68 Alf Ross Teoría de las fuentes del Derecho una contribución a la teoria del derecho positivo sobre La base de investigaciones históricodogmáticas Traducción del alemã notas y estúdio preliminar de José Luis Muñoz de Baena Simón Aurelio de Prada García y Pablo López Pietsch Madrid Centro de Estudios Políticos y Constitucionales 2007 p198224 desenvolveu amplo estudo sobre o espírito do povo Volksgeist o qual se Dogmática e crítica da jurisprudência Página 30 recomenda consulta dado ultrapassar os limites deste artigo o exame das proposições desse autor Destaquese tãosomente os vínculos estabelecidos entre Savigny e o movimento do Romantismo alemão indicados por Alf Ross como a chave para a com preensão da Escola Histórica É também digno de observação o intenso debate descrito por Alf Ross acerca de ser Savigny um naturalista um positivista ou um precursor da Escola do Direito Livre 69 Restaria por último fixar a posição e as perspectivas da doutrina no universo jurídico de nossa época Alguns eminentes juristas já o fizeram com singular discernimento Todos eles partem da teoria de Savigny de que a dinâmica do progresso social motiva a subs tituição do costume pela doutrina VASCONCELOS Arnaldo Teoria da normap283 70 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da normap276 Por honestidade intelectual atri buase a passagem do costume como fundamento do Direito para a opinio necessitatis dos que operam com o Direito a expoentes tardios da Escola Histórica ao exemplo de Cosack Kohler e Brie ROSS Alf Op cit p506 71 Conquanto o autor para não fugir à Escola Francesa considere que a doutrina não é uma fonte formal do Direito mas possui a força de sua autoridade Cf CORNU Gérard Op cit p195 72 SAVIGNY F Von Op cit p141 73 SAVIGNY F Von Sistema del Derecho Romano Actual Traducido del alemán por CH Guenoux Vertido al castellano por Manuel Durán y Bas Granada Comares 2005 pLXXIV 74 IHERING Rudolf von Bromas y veras ridendo dicere verum Traducción del alemán por Tomás A Banzhaf Madrid Civitas 1987 p99 75 A CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior é uma fun dação autárquica vinculada ao Ministério da Educação que tem por finalidade subsidiar o Ministério na formulação de políticas e no desenvolvimento de atividades de suporte à formação de profissionais de magistério para a educação básica e superior e para o de senvolvimento científico e tecnológico do País art2o Lei nº 8405 de 911992 76 FRAGALE FILHO Roberto VERONESE Alexandre Kehrig A pesquisa em Direito di agnóstico e perspectivasp58 77 Sobre o inventário dessas mazelas da produção jurídica nacional confirase OLIVEIRA Luciano Sua Excelência o Comissário e outros ensaios de Sociologia Jurídica Rio de Janeiro Letra Legal 2004 passim 78 O Qualis é uma lista de meios utilizados para a divulgação da produção científica dos programas de pósgraduação em sentido estrito mestrado e doutorado A lista classifica esses veículos quanto à circulação Local Nacional Internacional e à qualidade A B C por área de avaliação O Qualis serve como parâmetro para fundamentar o processo de avaliação do Sistema Nacional de PósGraduação 79 Art 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade impessoalidade moralidade publicidade e eficiência e também ao seguinte Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 II a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego na forma prevista em lei ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei Dogmática e crítica da jurisprudência Página 31 de livre nomeação e exoneração Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 80 CORNU Gérard Op cit p195 81 Esse é uma preocupação que já se expressa na óptica de observadores mais lúcidos da crise da dogmática brasileira Quanto à doutrina ela já há muito deixou de ser fonte do direito e cada vez menos se publicam textos com algum resquício de criatividade As mais da vezes não passam de considerações analíticas sobre leis e decisões judiciais de dis cutível valor científico e ao sabor das conveniências do grande mercado editorial formado pela classe dos operadores do direito COELHO Luiz Fernando Saudade do Futuro 2ed Curitiba Juruá 2007 p 76 82 Vejase o papel da doutrina na formação de códigostipo CARDILLI Riccardo El papel de la doctrina en la elaboración del sistema El ejemplo de la responsabilidad con tractual AAVV El contrato en el sistema jurídico latinoamericano Bases para um Código Latinoamericano Tipo Bogotá Universidad Externado de Colombia 1998 p6190 359 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 DOI 1012818P030423402020v76p359 ABSTRACT This article examines three different models of legal dogmatics descriptivist realistic and argumentative In order to do so it confronts firstly the criticisms related to the use of the term legal science pointing out the reasons why the term legal dogmatics would be more technical to designate the activity practiced by law scholars Secondly the paper addresses the critiques of the descriptivist model as a reductionist model of the object of legal dogmatic As a counterpoint to this model the characteristics of the realistic and argumentative models are examined And thirdly it defends the adoption of the argumentative model more specifically in its evolution to the semanticargumentativist model The hypothesis to be faced concerns defining what is the activity practiced by law scholars to answer if this activity is descriptive creative or argumentative The method used is the analytical through a critical doctrinal research on the subject The conclusions reached include the preference for the conception of legal dogmatics not legal science as a method referring to both the activity and its product Moreover it concludes by adopting a discursive objectivity which presupposes the adoption of clear and safe criteria without this leading to decisionism which is exactly the criticism presented to the realistic model This means that understanding law as a discursive practice whose objectivity is in the argument does not necessarily mean O referido artigo foi produzido no âmbito de disciplina cursada no Mestrado em Teoria do Direito e Democracia Constitucional no Istituto Tarello per la Filosodia del Diritto e Università Degli Studi di Genova com bolsa de financiamento parcial Doutora e Mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP Mestre em Teoria do Direito pelo Istituto Tarello per la Filosodia del Diritto e Università Degli Studi di Genova Especialista em Direito Público e Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São PauloSP Email marthaleaomackenziebr O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA O QUE FAZEM OS ESTUDIOSOS DO DIREITO THE OBJECT OF LEGAL DOGMATICS WHAT DO JURISTICS DO Martha toribio Leão RESUMO O presente artigo examina três diferentes modelos de dogmática jurídica descritivista realista e argumentativista Para tanto enfren ta em primeiro lugar as críticas atinentes ao uso da expressão ciência jurídica apontan do as razões pelas quais o termo dogmática jurídica seria mais técnico para designar a atividade praticada pelos estudiosos do Di reito Em segundo lugar o trabalho aborda as críticas ao modelo descritivista enquanto modelo reducionista do objeto da dogmática jurídica Como contraponto a este modelo são examinadas as características dos mode los realista e argumentativista E em terceiro lugar defendese a adoção do modelo argu mentativista mais especificamente em sua evolução para o modelo semânticoargument ativista A hipótese a ser enfrentada diz respei to a definir qual é a atividade praticada pelos estudiosos do Direito para responder se esta atividade é descritiva criativa ou argumen tativa O método utilizado é o analítico por meio de uma pesquisa doutrinária crítica com relação ao tema Como conclusões alcançad as destacase a preferência pela concepção de dogmática jurídica e não ciência jurídica en quanto método referindose tanto a atividade como ao seu produto Além disso concluise pela adoção de uma objetividade discursiva que pressupõe a adoção de critérios claros e seguros sem que isso leve ao decisionismo que é exatamente a crítica apresentado ao mo delo realista Isso significa dizer que entender O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 360 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 that law will be only what judges say it is The interpreter actively participates in the construction and reconstruction of the law but this participation activates part of the post Law KEYWORDS Legal dogmatics Legal science Argumentative model Descriptive model Realistic model o Direito como uma prática discursiva cuja objetividade encontrase na argumentação não significa necessariamente que o Direi to será apenas aquilo que os juízes disserem que ele é O intérprete participa ativamente da construção e reconstrução do Direito mas esta participação ativa parte do Direito posto PALAVRASCHAVE Dogmática jurídica Ciência jurídica Modelo argumentativista Modelo descritivista Modelo realista SUMÁRIO Introdução 1 Por quê um modelo de dogmática jurídica e não de ciência jurídica 2 Os modelos argumentativista e realista como contraponto ao modelo descritivista 3 Do modelo argumentativista ao modelo semânticoargumentativista Conclusões Referências INTRODUÇÃO O papel do Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de constante debate político jornalístico e doutrinário1 O julgamento de casos recentes com enorme repercussão no país ilustram isso São exemplos paradigmáticos nesse sentido os julgamentos sobre a constitucionalidade da execução provisória da pena depois do julgamento em segunda instância2 a constitucionalidade da quebra do sigilo bancário independentemente de decisão judicial para fins tributários e penais3 e ainda a questão da nulidade dos processos penais em função da ordem que deve ser adotada entre defesa e acusação nas alegações finais4 É nesse contexto de críticas e defesas ao protagonismo político dos Ministros da Corte Constitucional brasileira que se propõe um artigo para responder à seguinte pergunta de pesquisa o que fazem os estudiosos do Direito Esta pergunta de aparência singela é uma das mais difíceis de serem respondidas no âmbito da Teoria do Direito Este artigo se propõe a contribuir para este debate a partir do exame de três diferentes modelos de dogmática jurídica o modelo descritivista o modelo 1 Nesse sentido a título exemplificativo as posições antagônicas de BARROSO 2018 na defesa de um papel mais ativo politicamente e ÁVILA 2019a na crítica ao protagonismo político das atuais decisões da Corte 2 BRASIL STF Ações Direta de Constitucionalidade nº 43 e 44 Relator Ministro Edson Fachin Tribunal Pleno julgado em 05102016 3 BRASIL STF Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2390 Relator Ministro Dias Toffoli Tribunal Pleno julgamento em 17022015 para fins tributários e BRASIL STF Recurso Extraordinário nº 1055941 Relator Ministro Dias Toffoli decisão monocrática julgamento em 15072019 para fins penais 4 BRASIL STF Habeas Corpus nº 166373 Relator Ministro Edson Fachin Tribunal Pleno julgamento iniciado em 26092019 Martha Toribio Leão 361 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 realista e o modelo argumentativista A comparação entre estes modelos levará à conclusão de que o modelo mais adequado para explicar a atividade praticada pelos estudiosos do Direito é o modelo semânticoargumentativista Para tanto o artigo inicia com a análise das razões pelas quais o termo ciência jurídica é em si problemático para designar a atividade praticada pelos juristas E isso porque ele parte da premissa de que esta atividade é científica o que por si só já é objeto de contestação por parte da doutrina A partir disso se passa a analisar o modelo descritivista de dogmática jurídica inspirado no ideal do empirismo e suas limitações para a transposição de suas conclusões ao Direito A ideia é demonstrar que o Direito não é uma entidade física mas uma realidade discursiva que não pode ser meramente descrita porque precisa da participação do intérprete para a sua reconstrução Em outras palavras o Direito não é um objeto pronto e acabado ou seja um objeto previamente dado cujo conteúdo dependa exclusivamente de atividades cognoscitivas reveladoras de sentidos predeterminados Ele é uma composição entre atividades semânticas e argumentativas que dependem de um processo decisional que possui caráter axiológico Estas evidências são utilizadas também na análise acerca das limitações do modelo realista para a dogmática do Direito na medida em que este reconhece o papel do intérprete mas vai a outro extremo ao desconsiderar o papel do texto enquanto Direito posto 1 POR QUÊ UM MODELO DE DOGMÁTICA JURÍDICA E NÃO DE CIÊNCIA JURÍDICA A utilização do termo ciência jurídica para definir a atividade realizada pelos estudiosos do Direito não obstante sua difusão é bastante criticada pela doutrina De um lado ciência jurídica seria um termo inadequado por adotar como premissa o caráter científico desta atividade o que por si só é discutível para alguns autores que negam este caráter de cientificidade à atividade do estudioso do Direito De outro lado o termo é ambivalente ou ambíguo na medida em que comporta uma série de definições incompatíveis entre si Sua utilização por essas razões gera uma dificuldade terminológica com relação a circunscrever a atividade teórica praticada pelos estudiosos do Direito5 Embora o termo tenha um significado cognoscitivo por vezes sua utilização decorre da conotação de um significado emotivo o que é científico tem uma espécie de timbre de elogioso despertando reações favoráveis do interlocutor6 Como destaca Waldron algumas palavras como a dignidade por exemplo podem ser consideradas como feel good words ou seja palavras que se conectam a sentimentos positivos trazendo consigo um apelo emocional 5 NÚNEZ 2014 p 17 NINO 2003 p 11 6 NINO 1989 p 13 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 362 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 ao ouvinte ou destinatário do texto7 Esta mesma construção se aplica aos termos ciência e científico Construção semelhante e crítica é feita por Ross ao tratar dos termos justo e justiça Para o autor invocar a justiça seria como dar uma pancada na mesa porque se usa uma expressão emocional que faz da própria exigência um postulado absoluto buscando entendimento mútuo8 Assim palavras como dignidade justiça e ciência não apresentam apenas uma descrição mas expressam uma valoração positiva suscitando no ouvinte um estímulo para compartilhar desse valor9 Há uma função apelativa e retórica em seu uso em decorrência da sua dimensão emocional10 e o termo acaba funcionando como um conceito incontestável como uma bandeira linguística que solicita aderência e coesão11 ou como armas semânticas semantische Waffen12 Em suma essas são palavras utilizadas com uma função persuasiva13 O problema é que faz parte do próprio objeto em discussão a existência ou não de cientificidade Isso significa dizer que o termo é problemático exatamente por adotar como premissa algo que faz parte daquilo que está em discussão e precisaria ser comprovado pela atividade do estudioso do Direito ou seja que há cientificidade no objeto em análise A utilização da expressão dogmática jurídica por sua vez afasta esta discussão Por dogmática jurídica entendese o método atividade ou resultado proposto ou descrito por quem considera que os estudiosos do Direito não se limitam ou não deveriam limitar se a meramente descrever o conteúdo do Direito mas sim propor soluções aos juízes para resolver os casos difíceis14 A dogmática jurídica por tanto parte já de uma determinada concepção de Direito e da atividade que deveria ser praticada pelo estudioso do Direito que não deveria ser meramente descritiva do seu conteúdo Isso não significa contudo que o termo também não seja criticável Muitos autores como Atienza por exemplo criticam a expressão por sua vinculação analógica à ideia de dogmas da teologia quando na verdade o sentido denotado por dogmática jurídica indicaria a possibilidade de alterações 7 WALDRON 2012 p 137 8 ROSS 2007 p 320 9 ALEXY 1996 p 194 10 BAYERTZ 1999 p 4 11 A constatação é feita por MUNOZDARÉ com relação à fraternidade The word therefore functions as an uncontested concept as a linguistic flag prompting adhesion and cohesion MUNOZDARE 1999 p 83 12 ALEXY 1996 p 1617 13 STEVENSON menciona a existência definições persuasivas persuasive definitions que seriam aquelas utilizadas com o propósito consciente ou não de alterar o posicionamento das pessoas STEVENSON 1938 p 331 14 NÚNEZ 2014 p 33 Martha Toribio Leão 363 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 e evoluções no sistema jurídico o que seria impensável do ponto de vista dos dogmas religiosos15 Ainda assim o autor defende o uso do termo não apenas devido a sua aceitação doutrinária como também em virtude de um sentido metafórico que pode ser atribuído a ele Com efeito para ele a educação científica dependeria do aceite de uma tradição préestabelecida de como solucionar os problemas ou seja de um paradigma comum que determinaria as regras do jogo A tarefa de um cientista seria exatamente buscar as respostas dos problemas dentro destas regras conhecidas e aceitas ou seja pressuporia um compromisso ainda que a priori com a manutenção deste status quo Atienza compreende que isso é seguido na prática jurídica enquanto modelo discursivo que aceita uma pauta de proposições como ponto de partida e que se propõe a resolver os problemas com os procedimentos aceitos por aquela comunidade Esta pauta de racionalidade de que se parte para a solução dos problemas jurídicas seria de forma metafórica um dogma dos estudiosos do Direito16 Por essas razões este trabalho parte desta concepção de dogmática jurídica enquanto método referindose tanto a atividade como ao seu produto a ser praticado pelo estudioso do Direito que defende uma postura ativa deste para a solução dos problemas jurídicos tal qual estabelecido pelo conceito de Núnez e que para tanto parte de uma determinada racionalidade que funciona como um paradigma das regras aceitas por aquela comunidade jurídica tal qual estabelecido por Atienza 2 OS MODELOS ARGUMENTATIVISTA E REALISTA COMO CONTRAPONTO AO MODELO DESCRITIVISTA Este movimento de afastamento do termo ciência jurídica por dogmática jurídica no modelo argumentativista tem como objetivo central afastarse de duas teses principais Em primeiro lugar do descritivismo ou seja da ideia de que a Ciência do Direito seria uma metalinguagem a quem caberia apenas a descrição do conteúdo das normas jurídicas E em segundo lugar do empirismo isto é da premissa de que os enunciados descritivos doutrinários deveriam ser testados com base no ordenamento jurídicopositivo como um dado empírico daí a adoção do conceito de verdade por correspondência17 Estes paradigmas no entanto se mostraram incapazes de de um lado explicar aquilo que de fato é praticado pelos estudiosos do Direito e de outro lado ajudar a resolver os problemas reais impostos pelos casos práticos Estas dificuldades levaram a uma inversão ao invés de revelar o objeto do Direito passouse à tentativa de encaixálo em um molde científico prédeterminado 15 ATIENZA 2014 p 127 16 ATIENZA 2014 p 122126 17 ÁVILA 2012 p 235 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 364 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 Daí a analogia de Aarnio no sentido de tentar ajustar a dogmática jurídica à cama de Procusto ainda que para isso fosse necessário cortar suas mãos e pés A cama de Procusto tem o tamanho correto se e apenas se o hóspede é medido para caber naquela cama O problema é que quando o objeto do direito é medido para caber em uma cama determinada nesse caso a da ciência ele deixa de ser aquilo que de fato é Por essa razão a necessidade de se afastar deste paradigma científico e passar a analisar o objeto do estudioso do Direito como aquilo que ele de fato é ou seja uma forma de prática social18 No mesmo sentido Ávila destaca que a adoção da tese descritivista da Ciência do Direito partiu de um modelo de Ciência criado para outros mundos e não para o mundo do Direito o ideal dos empiristas de criar um único método para todas as ciências surgiu inicialmente para as ciências naturais alastrando se mais tarde para todas as ciências inclusive a do Direito O problema é que o Direito envolve um discurso que não tem por objeto uma entidade física mas uma realidade discursiva incapaz de ser descrita como supostamente o é uma entidade física pela singela e boa razão de que a sua realidade não está pronta sem a participação do intérprete Assim por meio do modelo empirista adequouse o Direito ao modelo de Ciência em vez de se adaptar o modelo de Ciência ao Direito Em suma conclui Ávila construiuse o Direito da Ciência no lugar da Ciência do Direito19 Desse modo a incapacidade deste modelo descritivista de resolver os problemas jurídicos criou a necessidade de um novo modelo para a atividade praticada pelo estudioso do Direito Calsamiglia é enfático ao demonstrar como o ideal de neutralidade proposto por este paradigma científico do empirismo entra em crise a partir do momento em que os próprios cientistas do Direito tratam de responder a problemas de decisão e recomendar soluções aos problemas encontrados A partir disso impõese o reconhecimento de que o Direito não é um produto acabado que o cientista do Direito possa descrever sem participar ativamente do seu objeto Para responder à pergunta de como deve ser o Direito o estudioso do Direito precisa ir além do aparato tradicional da ciência na medida em que este mostrase insuficiente para a resolução destes problemas20 Da mesma forma Ávila criticando os paradigmas do descritivismo e do empirismo destaca que existem outros paradigmas mais adequados ao tratamento do fenômeno jurídico como da verdade por verossimilhança e o da objetividade discursiva centrados não na capacidade de antecipar com certeza o Direito como se ele fora um objeto prévia e inteiramente dado mas no poder de revelar com a maior consistência possível os critérios de realização do Direito 18 AARNIO 2011 p 79 19 ÁVILA 2013 p 201 20 CALSAMIGLIA 1996 p 1725 Martha Toribio Leão 365 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 como um processo discursivo a ser continuamente constituído inclusive com o auxílio da doutrina21 No modelo argumentativista portanto entendese que os estudiosos do Direito devem dedicarse a construir soluções para os problemas jurídicos que o próprio ordenamento não resolve de maneira unívoca sendo que esta tarefa deve ser realizada a partir do oferecimento de razões baseadas em regras e princípios incorporados ao Direito A atividade nesse sentido tem um sentido prático que busca responder à pergunta sobre o que deve fazer o estudioso do Direito22 Por isso nas palavras de Aarnio a metodologia central para o estudioso do Direito não poderia mais ser indutiva ou dedutiva mas racionaldiscursiva O método é a argumentação jurídica que produz uma rede coerente de razões para suportar as recomendações normativas A coerência vinculase com a formação do maior grupo possível de proposições compatíveis23 Tal modelo está diretamente vinculado à concepção argumentativa de interpretação baseada no processo por meio do qual se chega a um resultado no sentido de que cabe ao intérprete mediante atividade dinâmica e intermediária centrada não apenas em aspectos semânticos mas também em estruturas argumentativas reconstruir um conteúdo normativo a partir de núcleos semânticos gerais mínimos O conteúdo normativo aferível antecipadamente apenas com relação às alternativas interpretativas possíveis e os critérios para a sua delimitação correspondem a um espectro com o qual a realidade se conforma em maior ou em menor medida O Direito nessa acepção é considerado como uma atividade dependente do processo de interpretação e de aplicação24 Nesse sentido Guastini destaca que interpretar é atribuir significado a um texto normativo e portanto independe da existência de dúvidas ou controvérsias porque qualquer texto normativo necessita de interpretação para o autor não há significado sem interpretação e consequentemente não há aplicação sem interpretação25 É importante mencionar contudo que o modelo argumentativista não é o único que se contrapõe ao modelo descritivista antes mencionado O modelo realista também se opôs a estes paradigmas científicos indo porém a outro extremo Para este modelo a ciência jurídica recomenda aos estudiosos do Direito realizar previsões acerca de como decidirão os juízes em futuras controvérsias Um dos seus principais expoentes é Guastini Para o autor italiano os enunciados doutrinários não são apenas uma metalinguagem da atividade do legislador Em parte a doutrina se dirige àquilo que foi estabelecido pelo 21 ÁVILA 2012 p 233 22 NÚNEZ 2014 p 4849 23 AARNIO 2011 p 2842 114 24 ÁVILA 2019b p 360 25 GUASTINI 2011 p 405 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 366 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 legislador No entanto sua atividade não se encerra na mera descrição daquilo que foi determinado pelo legislador Estas duas linguagens tanto a do legislador como a do intérprete fazem parte de um mesmo processo de formação do Direito na medida em que a atividade do intérprete modela e enriquece aquilo que foi determinado pela linguagem do legislador E além disso por vezes cria novas normas que não estavam presentes naquela primeira linguagem A determinação dos significados admitidos pelo texto ou seja a interpretação cognitiva constitui apenas uma etapa logicamente anterior à atividade decisória e não esgota o objeto da ciência jurídica Tratase apenas de uma contribuição modesta para o conhecimento do Direito porque ainda não é capaz por si só de determinar as normas aplicáveis mas apenas aquelas possivelmente aplicáveis A adoção do modelo de realismo metodológico pelo autor significa a adoção da premissa de que as formulações normativas não são propriamente Direito mas apenas fonte de Direito e as normas só passam a existir a partir da interpretação do texto26 Tal postura pragmática acerca do conteúdo do Direito vinculase à adoção da teoria interpretativa conhecida como ceticismo interpretativo que marca a Escola Cética de Gênova De acordo com esta teoria os textos normativos não têm um único significado objetivo préconstituído A atribuição de significado é fruto de decisão dos intérpretes em última instância dos juízes27 A interpretação cética é aquela que confere ao intérprete um status ativo isto é na definição dos conceitos trazidos pelos textos e dispositivos normativos quaisquer interpretações dadas poderiam ser tomadas como corretas28 O ceticismo radical adotado por Guastini entende que os textos normativos não têm nenhum significado antes da interpretação o significado não preexiste à interpretação é resultado dela Isso significa que os juízes são totalmente livres para atribuir a todo texto normativo literalmente qualquer significado A interpretação nessa linha envolveria tão somente atos de vontade e a atribuição de algum significado a determinado dispositivo que admitiria qualquer um Nesse caso a atividade do intérprete seria sempre adscritiva por escolher qualquer significado como sendo o correto Para o autor em algum sentido sequer existiria Direito antes da interpretação os textos normativos não são exatamente Direito mas apenas fontes de Direito Todo o Direito neste sentido é criado não pelos legisladores mas sim pelos intérpretes e somente por eles29 O problema é que esta postura também se mostra problemática na medida em que esvazia o papel do Poder Legislativo para o Direito a lei passa a ser simplesmente aquilo que os juízes determinam que ela é Tal modelo 26 GUASTINI 2014 p 104 e ss 27 GUASTINI 2011 p 412 28 SOUZA 2019 p 439 29 GUASTINI 2011 p 414 Martha Toribio Leão 367 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 portanto embora responda às críticas ao descritivismo vai a outro extremo gerando um inchaço do papel do Poder Judiciário e o enfraquecimento do Poder Legislativo Tal postura radicalmente cética leva ao esvaziamento da legalidade Isso porque se os significados são criados e construídos pelo intérprete e o texto ou o dispositivo não oferece qualquer tipo de limite à interpretação não há que se falar em garantia da legalidade A legalidade tornase absolutamente inócua em seu papel de garantir a segurança jurídica A norma aplicável será aquela definida pela vontade do intérprete sem que o texto sirva sequer de limite para esta atividade o texto é vazio e não serve nem mesmo de moldura 30 Exatamente por isso tal postura é alvo de críticas por exemplo de Diciotti para quem o ceticismo extremo seria o mesmo que defender que o juiz poderia estabelecer qualquer coisa como resultado da atividade interpretativa ou em outros termos como significado de um enunciado legislativo31 Como destaca Schauer desconsiderar o texto como ponto de partida é desconsiderar um aspecto muito importante sobre a própria natureza do Direito32 Tal entendimento poderia levar ao extremo de se entender que o legislador produz formulações ou disposições mas não normas enquanto o intérprete como o juiz ao adscrever e atribuir significado a estas formulações seria o verdadeiro criador das normas Com isso não é possível dizer que o juiz está submetido à norma já que ele mesmo é o criador desta Tal construção contudo levaria à ruína da noção de império da lei Estas conclusões também são apontadas por Maccormick ao analisar as consequências de uma teoria da correção judicial baseada tão somente na autoridade do prolator das decisões Para o autor se for considerado que a correção de uma decisão depende apenas da autoridade de quem a emite isso traria como consequência a ideia de que os juízes se tornam em um sentido puro atores políticos ou seja pessoas que decidem o Direito com base em suas próprias opiniões e quaisquer coisas que sejam a eles relevantes não havendo nenhum Direito que não seja aquele que eles decidem nos casos que chegam perante as Cortes33 Quando este tipo de postura é adotado especialmente pela Corte Constitucional se coloca em perigo a própria supremacia da Constituição os termos empregados no texto constitucional passam a ter o sentido que o intérprete gostaria que tivesse a despeito do sentido atribuído pela própria Constituição34 A consequência apontada por Maccormick é que em termos de sociologia ou de teoria política isso implica a existência de um Poder Judiciário colocado 30 LEÃO 2018 p 62 31 DICIOTTI 2003 p 1213 32 SCHAUER 2009 p 158 33 MacCORMICK 2005 p 275 34 LEÃO DIAS 2019 p 315 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 368 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 em um primeiro plano do processo político de fazer o Direito correção em termos legais seria o que os juízes dizem que é e isso seria tudo o que se tem Nesse caso os juízes seriam criadoresdodireito lawmakers enquanto aplicadoresdodireito lawsayers35 Estas considerações demonstram por que é preciso haver alguma normatividade prévia à interpretação que vincule e exerça o papel de lei como controle e limite do poder A interpretação nesse sentido pressupõe um significado e não atribui um significado A interpretação é interpretação de significado não interpretação de uma enigmática formulação sintática que não quer dizer nada até que o intérprete exerça sobre ela sua função mágica36 O modelo argumentavista especialmente em sua vertente semânticoargumentativista é uma tentativa de responder a estas críticas 3 DO MODELO ARGUMENTATIVISTA AO MODELO SEMÂN TICOARGUMENTATIVISTA A característica de descritividade da Ciência marca do modelo normativista pressupõe que o Direito seja algo dado pronto antes mesmo da tarefa de descrevêlo Como destaca Ávila no entanto isso não sucede uma vez que a interpretação dos enunciados não envolve uma atividade meramente descritiva de sentidos mas sim reconstrutiva de significações o material sobre o qual se debruça o estudioso do Direito é um material bruto com uma série de elementos entremostrados que precisam ser reconstruídos ou pelo menos coerentemente aperfeiçoados pelo intérprete37 Isso não significa contudo que o intérprete é livre na realização desta atividade A atividade do intérprete é tanto descritiva como adscritiva descritiva por identificar os vários significados possíveis de um dispositivo legal e adscritiva por escolher um deles como sendo o correto A instituição de uma regra postula a sua maior rigidez inflexibilidade e intransigência relativamente a razões que não estejam cristalizadas na sua hipótese porque embora ela deva ser reconstruída a partir de um dispositivo ela já possui algum significado intersubjetivamente consensuado que lhe permite transmitir conteúdos prescritivos ainda que estes conteúdos sejam aperfeiçoados pelo contexto aplicativo38 Isso significa dizer que as regras jurídicas constituem razões autônomas para uma decisão jurídica ou seja elas carregam um peso autônomo ou intrínseco independente dos objetivos almejados pelo legislador que fornecem razões imediatas e suficientes para a decisão39 Em outras palavras haveria um significado prévio à interpretação O 35 MacCORMICK 2005 p 275 36 LAPORTA 2007 p 182183 37 ÁVILA 2012 p 235 38 ÁVILA 2007 p 963989 39 SANTOS 2019 p 351 Martha Toribio Leão 369 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 significado não é qualquer um é algum Isso quer dizer que as normas muitas vezes possuem um núcleo duro de significação estabelecido hard core of settled meaning que constrange enormemente as escolhas que podem ser feitas pelo operador do Direito40 Nesse sentido é fundamental reestabelecer o papel da lei e a importância da limitação imposta pelo texto Por essas razões defende se uma interpretação centrada no texto textoriented na medida em que este tem um significado autônomo que depende sobretudo das convenções sobre o uso das palavras naquela comunidade O significado não pode ser entregue ao leitor do texto ou seja ao seu intérprete porque senão toda a ideia de império da lei escaparia entre os dedos41 Nas palavras de Aarnio os compromissos linguísticosconceituais também desempenham um papel importante na própria argumentação ou seja na deliberação racional em que se busca a justificação das alternativas interpretativas reconhecidas com a ajuda do sistema42 O discurso é um marco racional para o debate ele é a única forma de garantir o princípio da imparcialidade O procedimento discursivo é uma ferramenta para a discussão ideal determinada o que não significa que ele produza juízos de valor ideais ou objetivos e muito menos verdadeiros Os resultados deste discurso cumprem unicamente os critérios de correção relativa43 Nesse sentido a tarefa da dogmática jurídica consiste também em criticar as formas de pensamento imperante tanto aquelas produzidas pela própria dogmática como aquelas produzidas pelos Tribunais44 De forma semelhante Nino destaca que o dogmático não é absolutamente livre na eleição de hipóteses interpretativas na medida em que deve derivalas de um conjunto de pressupostos regras e teorias que se vinculam às expressões linguísticas do legislador e que estão incorporadas profundamente à tradição dogmática o que significa que há critérios racionais no âmbito da dogmática jurídica para resolver os problemas45 E também Atienza ainda que defendendo uma nova modalidade argumentativista a dogmáticajurídica como tecno práxis reconhece que o Direito é uma prática discursiva de forma que os problemas que os dogmáticos devem resolver requerem um conhecimento adequado da linguagem ou das regras do jogo que formam aquilo que seria analogicamente os dogmas do Direito46 40 MENÉNDEZ 2001 p 73 41 LAPORTA 2007 p 178179 42 AARNIO 2012 p 101 43 AARNIO 2012 p 30 44 AARNIO 2012 p 30 45 NINO 1989 p 113 46 ATIENZA 2014 p 127 150 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 370 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 Assim a partir da adoção de um ceticismo interpretativo moderado no sentido de que os textos são ao longo do tempo objeto de processos de cognição que formam significados mínimos ou núcleos de significação objeto de consenso e que isso é um limite à interpretação o modelo realista mostra se incapaz de revelar estes limites O modelo capaz de oferecer uma solução mais adequada reflete portanto uma concepção semânticoargumentativa de Direito em vez de compreender o Direito como algo total e previamente dado a ser por meio de um método discursivo meramente descrito pelo intérprete concepção objetivista do Direito ou como uma mera atividade argumentativa não submetida a qualquer limitação anterior ao seu processo decisional de realização concepção realista de Direito compreendese o Direito em posição intermediária entre essas duas concepções isto é como uma prática reconstrutiva de sentidos mínimos cuja realização depende de estruturas jurídicoracionais de legitimação de determinação de argumentação e de fundamentação47 CONCLUSÕES Todas as considerações anteriores demonstram que é preciso superar a crença de que apenas a cientificidade formal garante racionalidade à atividade do estudioso do Direito A determinação da natureza descritiva empírica da dogmática jurídica não é condição necessária para o reconhecimento de sua racionalidade e da possibilidade de controlar intersubjetivamente suas conclu sões48 Nesse sentido é preciso reconhecer a necessidade de que a dogmática jurídica prossiga atuando ativamente na construção de critérios intersubjeti vamente controláveis de interpretação e aplicação do Direito a objetividade discursiva pressupõe a adoção de critérios claros e seguros sem que isso leve ao decisionismo que é exatamente a crítica apresentado ao modelo realista49 Em outras palavras entender o Direito como uma prática discursiva cuja objetivi dade encontrase na argumentação não significa necessariamente que o Direito será apenas aquilo que os juízes disserem que ele é Doutrina e jurisprudência participam ativamente da construção e reconstrução do Direito mas esta parti cipação ativa parte do Direito posto REFERÊNCIAS AARNIO Aulis Essays on the doctrinal study of Law Doordrecht Springer 2011 Cambio o evolución In Idem ATIENZA Manuel LAPORTA Francisco Bases teóricas de la interpretación jurídica Fundación Coloquio Jurídico Europeo Madrid pp 81119 2012 47 ÁVILA 2012 p 237 48 NINO 1989 p 114 49 ÁVILA 2012 p 241 Martha Toribio Leão 371 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 Una única respuesta correcta In Idem ATIENZA Manuel LAPORTA Francisco Bases teóricas de la interpretación jurídica Fundación Coloquio Jurídico Europeo Madrid pp 945 2012 ALEXY Robert Theorie der Grundrechte 3 Aufl Frankfurt am Main Suhrkamp 1996 ATIENZA Manuel La dogmatica jurídica como tecnopraxis In NÚNEZ Álvaro Coord Modelando la ciência jurídica Lima Palestra pp 115159 2014 ÁVILA Humberto Constituição Liberdade e Interpretação São Paulo Malheiros 2019 Teoria da Segurança Jurídica 5ª ed São Paulo Malheiros 2019 A doutrina e o Direito Tributário In Idem Coord Fundamentos do Direito Tributário Madri Marcial Pons pp 221245 2012 Função da Ciência do Direito Tributário do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo Direito Tributário Atual n 29 São Paulo Dialética pp 181204 2013 Juristische Theorie der Argumentation In HELDRICH Andreas et al Orgs FS für ClausWilhelm Canaris zum 70 Geburtstag München Beck pp 963989 2007 BAYERTZ Kurt Four uses of Solidarity In BAYERTZ Kurt Ed Solidarity Dordrecht Kluwer Academic Publishers pp 328 1999 BARROSO Luís Roberto Contramajoritário representativo e iluminista os papéis das supremas cortes e tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas Revista Interdisciplinar de Direito v 16 n 1 p 217266 jun 2018 CALSAMIGLIA Albert Ciencia jurídica In GARZÓN VALDES Ernesto LAPORTA Francisco Eds El Derecho y la Justicia Madrid Trotta pp 17 25 1996 DICIOTTI Enrico Lambigua alternativa tra cognitivismo e scetticismo interpretativo Working Paper 45 pp 381 2003 GUASTINI Riccardo Interpretare e argomentare Milano Dott A Giuffrè Editore 2011 El realismo jurídico redefinido In NÚNEZ Álvaro Coord Modelando la ciência jurídica Lima Palestra pp 87114 2014 LAPORTA Francisco J El Império da la Ley Una visíon actual Madrid Trotta 2007 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 372 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 LEÃO Martha O Direito Fundamental de economizar tributos São Paulo Malheiros 2018 DIAS Daniela Gueiros O conceito constitucional de serviço e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Direito Tributário Atual n 41 São Paulo Instituto Brasileiro de Direito Tributário pp 295316 2019 MacCORMICK Neil Rhetoric and the Rule of Law A Theory of Legal Reasoning Oxford Oxford University Press 2005 MENÉNDEZ José Augustín Justifying Taxes some elements for a General Theory of Democratic Tax Law Dordrecht Kluwer Academic Publishers 2001 MUNOZDARE Véronique Fraternity and Justice In BAYERTZ Kurt Ed Solidarity Dordrecht Kluwer Academic Publishers pp 8197 1999 NINO Carlos Algunos modelos metodologicos de ciencia jurídica Ciudad de México Fontamara 2003 Consideraciones sobre la dogmatica juridica Ciudad de México Ediciones Coyoacán 1989 NÚNEZ Álvaro Ciencia jurídica un mapa conceptual In Idem Coord Modelando la ciência jurídica Lima Palestra pp 1451 2014 ROSS Alf Direito e Justiça 2 ed Trad de Edson Bini Bauru EDIPRO 2007 SANTOS Ramon Tomazela Formalismo e tributação contributo para as regras jurídicas e as razões formais no Direito Tributário Direito Tributário Atual n 40 São Paulo Instituto Brasileiro de Direito Tributário pp 349374 2019 SCHAUER Frederick Thinking like a lawyer a new introduction to legal reasoning Cambridge Harvard University Press 2009 SOUZA Túlio Venturini Deciframe ou te devoro a perspectiva cética do STF no julgamento do RE n 651703PR e seus desdobramentos do conceito de serviço Direito Tributário Atual n 41 São Paulo Instituto Brasileiro de Direito Tributário pp 436461 2019 STEVENSON Charles Leslie Persuasive definitions Mind v 47 n 187 Oxford University Press pp 331350 jul 1938 WALDRON Jeremy The Harm in Hate Speech Cambridge Harvard University Press 2012 Recebido em 22022019 Aprovado em 07102019
4
Filosofia do Direito
CESUPA
5
Filosofia do Direito
CESUPA
4
Filosofia do Direito
CESUPA
5
Filosofia do Direito
CESUPA
213
Filosofia do Direito
CESUPA
1
Filosofia do Direito
CESUPA
4
Filosofia do Direito
CESUPA
1
Filosofia do Direito
CESUPA
7
Filosofia do Direito
CESUPA
1
Filosofia do Direito
CESUPA
Texto de pré-visualização
Dogmática e crítica da jurisprudência Página 1 DOGMÁTICA E CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA ou da vocação da doutrina em nosso tempo Revista dos Tribunais vol 891 p 65 Jan 2010 Doutrinas Essenciais de Direito Civil vol 1 p 829 Out 2010DTR201091 Otavio Luiz Rodrigues Junior Doutor em Direito Civil pela USP Membro da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano Oviedo Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense Advogado da União Área do Direito Administrativo Resumo A doutrina teve uma função definitiva como parte do método jurídico Em termos ideais sua operacionalização é livre e espontânea Na tradição continental ela teve o papel de criticar tanto o direito positivo quanto as interpretações acerca dele Atualmente a doutrina experimenta um período de declínio O direito jurisprudencial mostrase como uma fonte criativa e central do direito O artigo afirma que é necessário rever a função da doutrina para restaurar sua relevância Palavraschave Doutrina Doutrinadores Jurisprudência Fontes do Direito Poder criativo Abstract The legal doctrine had an established function as part of jurists methods In ideal terms such construction is free and spontaneous In the continental tradition it held the role to criticize both the statutory law and the interpretations about the former Nowadays the legal doctrine method faces a period of decline The judgemade law appears a central and creative source of lawmaking The paper states that it is necessary to review the function of the legal commentaries in order to restore its importance Keywords Legal commentaries Legal doctrine method Judgemade law Sources of lawmaking Creative power Sumário 1Colocação do problema 2Que é doutrina e qual sua função 3Causas e extensão da crise da doutrina 4A vocação da doutrina em nosso tempo 5Conclusões 1 Colocação do problema Na Introdução da obra coletiva sobre a Lei de Modernização do Código Civil alemão de 2002 organizada por Horst Ehmann e Holger Sutschet encontrase uma advertência perturbadora que vale a transcrição literal Na exposição de motivos do antigo legislador do Código Civil lêse freqüentemente que certa questão é deixada nas mãos da Ciência do Direito ou da jurisprudência Nos materiais estudos e justificativas da Lei de Modernização por outro lado lêse na maioria das vezes que a controvérsia literalmente a questão deve ser deixada a cargo da jurisprudência Não se trata de uma casualidade por detrás disso escondese um menosprezo à doutrina à qual se aplica a maldição de Mefistófeles Despreza somente a razão e a Ciência A força suprema do homem Dogmática e crítica da jurisprudência Página 2 E ainda que não se tenha entregado ao diabo De todos os modos estará perdido1 Esse trecho revela a crise da histórica divisão de funções entre a doutrina e a jurisprudência pela qual competia a primeira a tarefa de projetar a compreensão geral das normas individuais em relação à totalidade do Direito e assim dar em caráter geral à jurisprudência Rechtsprechung a ajuda necessária para que reflita sobre as regras gerais teóricas em sua aplicação em um caso concreto2 Não é o Direito Civil o único campo no qual se observa esse estado de coisas Um expoente da dogmática criminal alemã contemporânea como Ingerborg Puppe denuncia que os tribunais superiores de seu país têm assumido comportamento autárquico em relação à doutrina O uso de conceitos jurídicos indeterminados especialmente na distinção entre dolo culpa e tentativa serve de biombo para a atitude pretoriana de se evadir do debate com a doutrina Wissenschaft e com isso exercer de modo arbitrário o ius dicere3 No direito italiano ainda nos anos 70 Pietro Perlingieri ressaltava a renúncia da doutrina a seu papel histórico Chegouse ao paradoxo de ter a doutrina perdido prestígio e credibilidade ou haver desconhecido sua missão a crítica das decisões judiciais e a conformação do sistema jurídico4 No Brasil é sensível a diminuição de citações doutrinárias nos acórdãos ou nas decisões monocráticas dos tribunais superiores A partir da observação empírica dos julgados mais recentes dessas cortes não deveria ter causado sensação o que afirmou um Ministro do STJ ao proclamar que não lhe importava o que pensavam os doutrinadores para fundamentar seus votos bastarlheiam o notório saber jurídico e sua investidura constitucional5 A redescoberta contemporânea do sistema romanogermânico pelos juristas de Common Law deveuse em grande medida a John Henry Merryman que realizou pesquisa rigorosa sobre o método as escolas e os fundamentos do Direito que se desenvolvia no continente O interesse de John Henry Merryman foi despertado quando ele notou que havia um Direito dos professores e não um Direito dos juízes como é o existente em sua pátria os Estados Unidos da América6 É sobre a crise desse Direito dos professores nascido dos que ensinam e por isso também aprendem docendo discimus o objeto deste artigo O exame do problema posto demandará a abordagem de três questões i que é a doutrina e para que ela serve ii quais as razões da crise da doutrina em nosso tempo iii como devem se relacionar a doutrina e a jurisprudência contemporaneamente A conclusão do estudo além da sistematização de seus resultados procurará responder tanto quanto possível qual a vocação da doutrina em nosso tempo Não por acaso esse é o subtítulo do artigo 2 Que é doutrina e qual sua função 21 Origens etimológica e teológica da doutrina A palavra doutrina segundo a boa etimologia é oriunda do latim doctrinaae e referese a docére ensinar Em português a palavra acumulou os significados de ciência saber erudição ensino7 Os antigos Pais da Igreja no movimento conhecido como Patrística elaboravam obras de doutrina para os recémconvertidos à fé verdadeira do Cristo Eles escreviam a partir de seus ensinamentos nas pregações ao povo Surge a noção da doutrina da igreja os ensinamentos baseados na autoridade moral e intelectual dos homens que conviveram com Jesus ou com seus primeiros discípulos e com base na sucessão apostólica transmitiam essas verdades aos cristãos O bispo na sé diocesana possuía uma cadeira de onde sentado ensinava aos assistentes as verdades eclesiásticas Essa cadeira era a cátedra daí se falar em igreja catedral Dogmática e crítica da jurisprudência Página 3 22 Diferentes acepções da doutrina 221 Considerações iniciais Essa concepção teológica de doutrina foi transposta para o Direito Nesse processo de adaptação surgiram diferentes acepções de doutrina i é a opinião de certos juristas unanimemente respeitada e consolidada no tempo que ganhou força normativa por ato do soberano tornandose verdadeira fonte do Direito ii é o conjunto de princípios extraídos das decisões judiciais por meio de indução que se tornam aplicáveis a outros casos como autênticos modelos iii é o ensinamento dos mestres magister da ciência do Direito proferido em razão de sua autoridade universitária ou de seu reconhecimento pelos pares como saber digno de acatamento uniforme e reiterado 222 Primeira acepção a doutrina obrigatória pela vontade do príncipe A acepção a tem bons exemplos históricos No Dominado em Roma a decadência dos costumes não se limitou à sociedade imperial e chegou ao Direito Houve explosão de glosas e comentários a textos de leis senatusconsultos editos dos pretores e sentenças de grandes expoentes da jurisprudência clássica8 Essa prolífica criação doutrinária deu causa a abusos seja por meio de escritos que deturpavam obras antigas seja pela utilização de citações capciosas apresentadas a juízes incultos falsamente atribuídas a renovados jurisprudentes do passado A mais famosa intervenção de Roma contra essas práticas foi a Lei das Citações de 426 uma Constituição imperial baixada por Teodósio II e Valentiniano III pela qual se reconheceu a autoridade dos jurisconsultos Gaio Papiniano Paulo Ulpiano e Modestino9 Esses eram os únicos doutrinadores recitáveis em petições e julgamentos Ressalvavamse os autores por eles referidos desde que se trouxesse a fonte original comprobatória da citação Esse conjunto de juristas recebeu o nome sugestivo de Tribunal dos Mortos pois se realizava o cotejo de suas opiniões e no caso de divergência entre elas prevalecia a tese seguida pela maioria Se houvesse empate a opinio de Papiniano preponderaria10 Na Idade Média no Reino de Castela houve atos normativos que reconheceram a autoridade das opiniões de Bartolo de Saxoferrato e Baldo de Ubaldis com a Lei das Citações de Madri baixada por Elrey D João II11 Em Portugal as Ordenações Afonsinas 14461447 definiram como fontes do Direito lusitano a lei o costume e o estilo da corte este último correspondente à jurisprudência dos altos tribunais marcada pela idéia de reiteração e de constância12 Como instrumento de integração das lacunas indicavamse o Direito Romano o Direito Canônico a glosa de Acúrsio as opiniões de Bártolo e a vontade do rei13 Ainda aqui a doutrina glosa e opiniões assumia o caráter de fonte jurídica por reconhecimento do Estado Ela era veículo do Direito não por ser doutrina mas por se equiparar à norma jurídica As Ordenações Manuelinas 1521 abrandaram a relevância da glosa e admitese o recurso à opinio communis doctorum para se combater os excessos nas citações de Acúrsio e de Bártolo14 223 Segunda acepção b doutrina jurisprudencial A acepção b é denominada de doutrina jurisprudencial Essa nomenclatura equívoca pois confunde o trabalho das cortes de justiça com a opinião dominante dos doutores equiparandoas encontra certo prestígio entre autores contemporâneos Seu conteúdo deriva da união de sentenças e de escritos comentários artigos manuais que servem de fundamento às decisões dos juízes os quais formam a opinio iuris opinião dominante Por Dogmática e crítica da jurisprudência Página 4 meio dessa doutrina concretizarseiam cláusulas gerais boafé bons costumes e permitirseia a evolução do Direito15 Luis DíezPicazo e Antonio Gullón também mencionam a existência de uma doutrina jurisprudencial que viria a ser um corpo de doutrina que possui a autoridade que lhe proporciona o órgão da qual emana e que deve entroncarse nas funções que dito órgão realiza em relação com o ordenamento jurídico Em regra para esses autores o órgão com autoridade para criar essa doutrina é o Tribunal Supremo equivalente espanhol ao brasileiro Superior Tribunal de Justiça Desse modo a doutrina jurisprudencial apresentaria três funções i interpretativa em sentido estrito por meio da qual o Tribunal Supremo estabeleceria o alcance a inteligência ou o significado de expressão ambígua ou obscura de determinado preceito de lei ii integradora de nítida feição criativa que permite estender preceitos legais ou conceitos indeterminados a casos não regidos por normas específicas iii veículo para aplicação dos princípios gerais do Direito os quais préexistem à jurisprudência e são fontes autônomas do Direito mas que recebem a consagração pela jurisprudência no caso concreto16 224 Terceira acepção c doutrina propriamente dita A terceira acepção c é a que se enquadra no conceito contemporâneo de doutrina Crêse que a doutrina como ensinamento magisterial para os fins de delimitação e conceituação ora empreendidos deve ser distinguida de espécies aproximadas que se opta por denominar de doutrinanorma e doutrinaparecer Examinemse essas duas espécies I Doutrinanorma É a existente em algumas fases da História como sendo a opinio iuris indicada expressamente em lei como regra jurídica ao estilo da constituição do Tribunal dos Mortos É o equivalente moderno da doutrina reconhecida pelo príncipe com força normativa acepção a Nos dias atuais temse como resquício dessa natureza normativa da produção intelectiva os pareceres vinculantes da AdvocaciaGeral da União que se aprovados e publicados juntamente com o despacho presidencial obrigam a Administração Federal cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento17 O concurso do despacho do presidente da República empresta caráter genérico ao parecer e faz com que suas conclusões dilatemse a outras hipóteses de fato As opiniões nele contidas não valem pela autoridade de quem as proferiu tãosomente mas por seu reconhecimento formal pelo chefe do Poder Executivo após obediência a procedimento legalmente estabelecido II Doutrinaparecer A contratação de advogados para que se pronunciem sobre determinado direito controvertido em juízo ou em fase prejudicial é prática antiga Confundese com as próprias origens do Direito Os antigos jurisprudentes romanos começaram suas atividades por meio das respostas a questionamentos dos interessados que com eles se aconselhavam sobre a melhor forma de propor uma ação ou de como se conduzir em juízo A função de respondere resolver casos práticos através de pareceres responsa dados a particulares ou a magistrados era considerada a mais importante de entre todas as atribuições da iurisprudentia a ciência do Direito em Roma como salienta A Santos Justo18 Nesse contexto histórico essa atividade era descomprometida porquanto não se admitia qualquer compensação pecuniária D 50 13 1 519 Na atualidade a regra é o pagamento por essas respostas jurídicas A esperada isenção do parecerista ante quem lhe paga por uma opinião jurídica foi objeto de irônica crítica por Piero Calamandrei O autor italiano ataca com ferocidade o expediente de se acostarem às petições os pareceres a que chamam para a Verdade como se quisessem nos fazer crer que nessas consultas pagas não pretendem atuar como patronos partidários mas como mestres desinteressados que não se preocupam com as coisas terrenas20 A visão do Direito como ciência ou arte ao estilo de alguns neutra é atualmente Dogmática e crítica da jurisprudência Página 5 criticável21 A tomada de posição ideológica ainda quando se afirma não o fazer é inerente à natureza do pensamento jurídico como de resto essa é uma decorrência do reconhecimento da impureza humana Não há neutralidade em assuntos humanos como afirma Arnaldo Vasconcelos Feita essa observação é também equívoco admitir que a falta de neutralidade no Direito confundese com a admissão pura e simples do parecer como uma peça doutrinária de semelhante dignidade a um manual ou a uma tese de doutorado Na Alemanha até agora pelo menos existe sensível diferença entre a função magisterial e a função operativa respectivamente atribuída a professores e a advogados e por extensão a juízes e promotores Dos primeiros esperase a emissão de juízos tendencialmente abstratos e ligados ao plano teórico Aos segundos por sua atividade profissional aguardase o fornecimento de casos concretos os quais findarão em acórdãos e por sua vez tendem a constituir a jurisprudência índice de aplicação maior menor ou nenhuma das teorias Dividemse bem os planos e por assim o parecer não é considerado como peça doutrinária autônoma ainda que ele haja influenciado o juiz da causa Em países como a Itália e o Brasil no entanto há essa íntima vinculação entre a vida acadêmica e o universo operativo do Direito Daí a importância de se qualificar o parecer como obra doutrinária ou não A resposta mais simples e também reducionista seria atribuir aos pareceres como sugere causticamente Piero Calamandrei valor idêntico ao de petições iniciais de respostas do réu ou de arrazoados dos recorrentes Peças comprometidas ab initio com teses de interesse dos litigantes e por isso nãoservíveis a ocupar a nobre função doutrinal Na prática essa questão assume contornos ainda mais delicados quando se recorda de casos bastante comuns de pareceristas que são autores de manuais ou lições de Direito Alguns juízes inspirados ou não pelos adversários transcrevem trechos das obras didáticas dos pareceristas nos quais figuram opiniões bem diversas das contidas nos pareceres A leitura das sentenças ou dos acórdãos chega a ser constrangedora pois se utilizam das opiniões doutrinárias dos livros para negar o direito da parte sob o patrocínio do doutrinadoradvogado Por outro lado há pareceres históricos que introduziram novos institutos ou renovaram a dogmática de modo radicalmente positivo Esses pareceres que efetivamente mereceram emprego em processos judiciais e defenderam pontosdevista interessantes para os contendores depois foram publicados em revistas especializadas ou integraram coletâneas com grande interesse para a ciência jurídica22 Como lhes negar valor O tempo e a consagração das idéias neles contidos a despeito de sua origem deramlhes relevância para o Direito Há também pareceres emitidos por membros dos órgãos da procuratura das Fazendas Públicas advogados da União procuradores dos Estados ou dos municípios e do Ministério Público a despeito de sua aprovação superior com caráter vinculante ou seu uso como peças processuais que se podem submeter a esse processo de abstração superveniente da origem administrativa ou contenciosa O transcurso do tempo sua originalidade e seu impacto na transformação de institutos jurídicos podem atuar para a descaracterização de seu propósito originário23 A solução aqui proposta é intermediária A doutrinaparecer é de ser considerada a opinião oferecida por um jurista a cliente para lhe servir em negócios extrajudiciais ou em ações tendo como destinatário o magistrado e por assim merecedora de valoração específica considerados seus vínculos imediatos com o interesse posto sob seu crivo Posteriormente desligada do caso concreto e submetida à comunidade jurídica aquela contribuição poderá assumir natureza doutrinária O tempo e a autoridade do subscritor farão com que se decantem os elementos estritamente parciais da opinio porque realmente inseridos em uma disputa de interesses e do parecer se extraiam resultados apreciáveis à ciência do Direito 23 A visão da doutrina na dogmática e na lei Dogmática e crítica da jurisprudência Página 6 Excluídas a doutrinanorma e a doutrinaparecer com as mitigações propostas em relação à última voltese para a doutrina na acepção c entendida como ensinamento magistral ex magister do mestre Parte significativa dos livros de Introdução à Ciência do Direito de Teoria Geral do Direito ou de Direito Civil aponta que a doutrina entendida como o produto cultural dos cientistas jurídicos é uma fonte do Direito ao lado da lei dos costumes e dos princípios gerais do direito24 Com menor ênfase mas lhe conservando certo prestígio encontrase sua qualificação como fonte de modelos dogmáticos25 A doutrina na acepção c revela seu fundamento na autoridade dos juristas que a produzem A doutrina não teria força vinculante mas orientaria os aplicadores do Direito e seus intérpretes a saber os juízes e os agentes administrativos encarregados dessa função Ela também serviria como farol iluminador dos caminhos a serem trilhados pelos legisladores26 A crítica doutrinária abriria margem para a edição de novas leis que criariam institutos anteriormente inexistentes suprimiriam outros por inadequados e corrigiriam os desvios dos que se acham em vigor27 Seria ainda pela porta da doutrina que entrariam para o Direito concepções figuras e teorias jurídicas novas que após serem apresentadas aos juízos pelos advogados transformavamse em jurisprudência e ao fim de certo tempo eram recolhidas pelo legislador e normatizadas Nesse sentido a Reforma do BGB de 2002 não deveria ser entendida como a legitimação do Direito pretoriano pelo legislador e sim a prova dos sucessos da doutrina incorporada pelos tribunais e que ao cabo de cem anos finalmente mereceu o reconhecimento dos congressistas alemães A teoria da alteração da base do negócio jurídico que possui a vertente francesa teoria da imprevisão e italiana teoria da onerosidade excessiva é o exemplo desse processo de interferência criativa da dogmática28 Assim também o abuso do direito a exceção de préexecutividade o dano moral independente do dano material ou a função social da propriedade O ordenamento jurídico brasileiro consigna textualmente a doutrina em duas normas legais i a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações tem a função de meio auxiliar para a determinação das regras de direito nos julgamentos da Corte Internacional de Justiça criada com a Carta das Nações Unidas29 ii é conduta sancionável administrativamente a deturpação do sentido de citação doutrinária para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa30 Em dezenas de outros diplomas falase em doutrina militar ou em doutrina como sinônimo de conjunto de posições ideológicas subversivas31 Não se concedeu à doutrina o privilégio de ser acolhida expressamente como fonte do direito ao estilo da eqüidade art 8º CLT art 108 CTN da jurisprudência art 8º CLT dos costumes art 126 CPC art 7º CDC ou dos princípios gerais do direito art 3º CPP art 108 CTN 24 Conceito de doutrina proposto 241 Conceito e elementos Convém sistematizar as asserções até agora apresentadas A doutrina é o conjunto de opiniões postas pelos juristas sobre o Direito seu fundamento seus institutos suas figuras e o modo de sua aplicação com a finalidade de criálo e interpretálo Há nesse conceito três elementos fundantes a opinião posta o meio o jurista o agente causador e a criação e a interpretação do Direito o fim 242 Primeiro elemento opinião posta disponível Dogmática e crítica da jurisprudência Página 7 O primeiro elemento a opinião posta exige esclarecimento prévio A tradição cientificista que teve seu auge no século XIX e prosperou até meados do século XX criou compartimentos separando a ciência exata objetiva neutra causal empírica metódica provável por meio de experimentos controlados e as artes bem assim outros conhecimentos suportados em critérios subjetivos extraídos do senso comum dos valores coletivos e por essa razão insusceptíveis de verificação Nesse contexto a opinião é uma assertiva um juízo pessoal sobre um fato logo subjetivo sem controle por gruposteste e sem valor científico De partida se doutrinar é opinar a doutrina não merece respeito científico A ciência contemporânea todavia não resistiu a ela própria A teoria da relatividade Albert Einstein o princípio da incerteza Werner Heisenberg e a física quântica Max Planck abalaram as certezas de uma ciência exata ao menos nos moldes clássicos da era inaugurada por sir Isaac Newton32 Essa virada científica refletiuse na Filosofia e na Epistemologia e faz com que a doutrina possa ser levada a sério como forma de produção de conhecimento Admitase que o Direito não é ciência e sim uma arte como já enunciavam os romanos jus est ars boni et aequi o Direito é a arte do bom e do equitativo Com maior fundamento a doutrina é de ser aceita como uma opinião um juízo sobre um objeto emitido por um sujeito cognoscente baseado em reflexões conjecturas refutações ou em certos casos no exame indutivo como se dá no estudo da jurisprudência Nesse sentido o Direitoarte e não Direitociência torna mais aceitável a idéia de doutrina como um conjunto de opiniões Em quaisquer das vinculações ciência ou arte o mero estado de subjetividade da doutrina não mais pode ser encarado como causa do déficit de valor de sua autoridade E até por isso temse o resgate da fórmula consagrada da comum opinião dos doutores communis opinio doctorum Muito bem isso está claro Mas por que falar em opinião posta Sim Não é a simples opinião pensada e não declarada ou meramente declarada que serve à formação do conceito de doutrina Fazse necessário que ela seja posta disponível Com isso a opinião dos doutores há de ser apresentada à comunidade jurídica Os meios para assim o proceder são tão antigos quanto o Direito livros escritos artigos ensaios teses Apesar das mídias eletrônicas a doutrina ainda é a opinião posta em fólios Com a evolução tecnológica temse hoje a doutrina posta rectius disponível em meio digital Essa mudança de suporte da disponibilidade bem como o barateamento e a ampliação descomunal do acesso a esses meios na sociedade contemporânea criaram sérios problemas à autoridade da doutrina como já ocorridos na decadência do Império Romano e merecerão estudo na próxima secção Por enquanto ficase com a qualificação da opinio como necessariamente disponível 243 Segundo elemento juristadoutrinador A opinião posta ou disponível é de ser criada por alguém os doutores No caso do Direito chamamse juristas Na elegante definição de doutrina oferecida pela Conferência das Nações Unidas tornada direito positivo no Brasil ela assim é considerada quando produzida pelos juristas mais qualificados das diferentes nações Não é necessário ir tão longe A doutrina nacional é suficiente embora possam ser utilizados e é muito conveniente que assim o seja os ensinamentos de juristas de outros países E quem são os juristas Os jurisconsultos jurisprudentes na linguagem antiga dos romanos Os homens de grande conhecimento do Direito que estudaram sua natureza seus fundamentos suas normas sua história e além disso compreendem a interação dos elementos axiológico e fático com o elemento normativo Objetivamente terseiam nesse grupo os professores de Direito os autores de obras jurídicas e os juízes ou os legisladores quando escrevam na qualidade de estudiosos do Direito e não pela autoridade que o Estado lhes conferiu ao exemplo dos famosos justices norteamericanos como Benjamin Cardozo Black ou Holmes Reiterese Neste último Dogmática e crítica da jurisprudência Página 8 caso a autoridade de suas opiniões é a que surge de seu reconhecimento como jurisconsultos e não por serem juízes Mais ainda O locus da doutrina na acepção estrita por eles elaborada não está em seus acórdãos ou em suas sentenças mas em seus livros ou artigos Este não é o momento ainda para discutir o problema da restrição ou da ampliação excessiva do conceito de juristadoutrinador A esse problema dedicarseá a secção posterior Registrese por agora que não basta ser jurista para que se tenha um doutrinador É necessário que esse doctor cerquese de alguns requisitos Ele escreve para transmitir conhecimentos Ele é um docente ele ensina ainda que não possua uma cátedra formal O juristadoutrinador também há de escrever criar produzir conhecimento Não basta ser um jurisperito se não fecunda suas idéias e as faz divulgar Daí ser requisito escrever e mais que isso aceitar submeter suas opiniões à apreciação à crítica e ao controle da comunidade jurídica Em argüição de concurso de provas e títulos para o cargo de professor livredocente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo João Baptista Villela produziu uma das mais elegantes definições dos requisitos necessários para se habilitar a esse mister33 Por sua adequação ao objeto deste artigo fazse a transcrição de passagem um tanto extensa de suas palavras O candidato se declara expressamente na busca do grau de livredocência na Faculdade de Direito Largo São Francisco p 6 da tese Devo dizerlhe preliminarmente que a LivreDocência não é um grau que se possa buscar É antes uma habilitação a que se candidata e que obtida se traduz no reconhecimento da venia legendi se posso retomar a expressão do bom e decantado sabor medieval cf a propósito J F Niermeyer e C van de Kieft Mediae Latinitatis Lexicon Minus vol 1 2 Überarb Aufl Darmstadt Wissenschaftl Buchgesellschaft 2002 verbo legere34 Conferir a habilitação significa certificar que o candidato se encontra capacitado ao exercício do magistério na sua expressão plena e acabada Isto é que está apto a 1 lecionar com proficiência em todos os níveis do ensino superior 2 formar recursos humanos para a constituição e reposição dos quadros docentes 3 dirigir e fomentar grupos de estudo 4 fazer nascer escola ou linha de pensamento pela mobilização de experiência talento e espírito criativo 5 intervir com representantividade e níveis aceitáveis de excelência em congressos e reuniões científicas no País e no Exterior 6 produzir textos doutrinários de qualidade35 Conquanto extensos e vinculados ao exercício da livredocência muitos desses requisitos servem à qualificação de um doutrinador i boa plural e fecunda formação jurídica ii capacidade de mobilizar experiência talento e espírito criativo iii aceitação acatamento ou reconhecimento de suas opiniões em encontros científicos nos tribunais e em meios idôneos de divulgação doutrinária com controle e sindicância pelos pares conselhos editoriais representativos e rigorosos Três inferências mediatas são extraíveis do que se afirmou sobre o juristadoutrinador I O magistério é condição importante para ser doutrinador Dirseia em outros sistemas como o alemão que é necessária essa condição Dadas as peculiaridades brasileiras não se revela adequada essa causalidade Com isso temse a possibilidade de haver o magistério doutrinal sem que o jurista seja titular de uma cátedra Tanto melhor que o seja mas não é essa uma qualidade sine qua non Sobre isso há ainda uma lamentável observação empírica o acesso à cátedra especialmente por concurso público não representa o elemento legitimador que se pressupõe Recuperando a bela terminologia da Dogmática e crítica da jurisprudência Página 9 venia legendi encontrase o paralelo entre essa e a aprovação em concursos públicos para universidades O postulante à venia legendi ganhava o reconhecimento dos doutores para que se tornasse um lente lecture no idioma inglês na universidade Mal comparando ele exercia a função do leitor e é esse o significado da palavra lente dos Evangelhos na missa O bispo sentado na cátedra pregava o sermão Analogicamente o professor catedrático hoje titular por efeito da legislação em vigor no Brasil que representa o cargo máximo na estrutura da docência superior equivale ao bispo daí se exigir dele algo mais do que a mera reprodução do pensamento alheio Hoje em dia a obtenção do cargo de professor é marcada por expedientes não pouco raros de favoritismo pessoalidade e autoreferência com as escolas de Direito repudiando o acesso de professores formados em outras instituições ou que não integrem certas camarilhas A certeza de que essa tragédia não é exclusivamente brasileira temse pela leitura de Pietro Perlingieri A crise infelizmente é tal e tão grave que se insinua entre os componentes da Justiça especialmente advogados e magistrados tal e tão grave é também a crise da docência e da pesquisa principalmente no setor das ciências humanas e sociais A pouca seriedade dedicada à própria formação e à de terceiros a desenvoltura decadente que circunda todas as formas de recrutamento cada vez mais privilegiando o nepotismo e a perda de credibilidade das instituições contribuem à ineficiência frustrando toda e qualquer ilha fundada na dedicação36 A primeira inferência é a de que o juristadoutrinador deveria ser um docente mas dadas as condições atuais a produção dogmática há de ser aceita como válida ante o preenchimento dos requisitos propostos por João Baptista Villela com as necessárias mitigações Logo afirmar que a doutrina é o direito dos professores não exclui totalmente aqueles juristas alheados das cátedras universitárias Em certas circunstâncias e instituições infelizmente não ser professor talvez seja um mérito para o doutrinador Parafraseando Ruy Barbosa de tanto ver triunfar as nulidades o doutrinador honesto sente vergonha de o ser37 II Em seguida observese que o doutrinador tem de se notabilizar por sua cultura sua formação e seu conhecimento científico ou como querem artístico do Direito Os modos de se aferir essas qualidades são formais obtenção de títulos universitários38 aprovação e ingresso na carreira docente superior39 produção científica exposição de suas idéias em textos publicados em órgãos idôneos com controle de pares A revelação material dessas qualidades observarseá pelo acatamento das idéias do doutrinador pelos tribunais e pela comunidade científica seja pela formação ou alteração de correntes jurisprudenciais a partir do ensinamento dogmático seja pela formação de escolas de pensamento Nesta secção adiantouse o problema da perda de credibilidade na concessão de títulos e de cargos acadêmicos Essa questão será cuidada ao final deste estudo com maior profundidade Na secção seguinte será exposta a grave crise gerada para a própria doutrina pela excessiva produção jurídica Por enquanto conservemse esses critérios como definidores formal e materialmente da qualidade do juristadoutrinador III A terceira e última inferência está em que não se considera doutrina a produção jurídica com funções normativas ou ligada ao poder e a interesses privados concretos E por isso não será doutrinador o que emite opiniões jurídicas aprovadas pelo Estado e tornadas aplicáveis a casos concretos Sobre isso já se expôs acima Mas cabe um aprofundamento O doutrinador é necessariamente um homem desvinculado de quaisquer compromissos com o poder na expressão de Arnaldo Vasconcelos40 A doutrina e quem a faz tem a missão de criar o Direito além da lei da jurisprudência e do costume A diferença e que nobre diferença é que a doutrina nasce com a nota da altivez acadêmica a independência do Estado e dos poderes humanos da época Lembrese de Papiniano que foi condenado à morte por Antonino Caracala em face de não Dogmática e crítica da jurisprudência Página 10 legitimar o homicídio praticado pelo imperador41 Os estudos elaborados ad hoc para satisfação de interesses privados também não merecem o nome de doutrina Acima se fez a exclusão da doutrinaparecer com as necessárias ressalvas dos pareceres publicados em revistas e submetidos ao exame dos pares Infelizmente a queda dos custos editoriais fez com que grupos de interesse patrocinassem a publicação de livros monotemáticos com textos elaborados sob a forma de artigos mas essencialmente tendenciosos como forma de produzir uma falsa impressão de que existe a communis opinio doctorum em torno de uma tese Com isso toda a doutrina cai em descrédito e perde um dos suportes de sua autoridade a independência Nem se esqueça de situações ainda mais vexatórias como a inclusão de pareceres sob a forma de capítulos inteiros em livros de formação de jovens juristas 244 Terceiro elemento finalidade de criar o Direito Vejase agora o terceiro elemento do conceito de doutrina expor o fundamento os institutos as figuras e o modo de aplicação do Direito com a finalidade de criálo e interpretálo Levouse bastante tempo para se admitir que a jurisprudência cria o Direito além da própria lei As explicações teóricas são variadas Falase em póspositivismo42 diferença entre soft cases e hard cases nova configuração da teoria da separação das funções do Estado Concluiuse que a mera subsunção da norma ao fato seria insuficiente para a aplicação do Direito43 Os juízes e agentes administrativos com poder decisório são convocados a valorar autonomamente as normas ou até mesmo a decidir e agir de um modo semelhante ao do legislador44 As raízes dessa nova postura em relação à jurisprudência estão em movimentos teóricos alemães do século XIX e da primeira metade do século XX ao estilo da jurisprudência de interesses a hermenêutica concretizadora e a tópica45 Não é este o momento apropriado para se criticar o sincretismo da doutrina e de algumas decisões jurisprudenciais quanto ao emprego desses diversos movimentos como fundamentação contrária ao positivismo e favorável à intervenção judicial ativa com base no texto constitucional Registrese apenas o desconforto de se encontrar citações de Ronald Dworkin e Robert Alexy especificamente sobre ponderação conflito regras e princípios como se houvesse franca uniformidade de pensamento entre esses autores46 Importa sim comentar que a mesma eloqüência na defesa da atividade jurisprudencial pelo uso de princípios e na superação do método subsuntivo não se encontra no que respeita à doutrina Em diversos textos sempre é enaltecido o juiz como o herói contemporâneo do póspositivismo como se não fosse ele também um agente estatal da mesma forma que o legislador e ainda bem menos susceptível de controle social47 É oportuno fazer uma observação sobre o problema do chamado sistema aberto em contraponto ao que se convencionou chamar de sistema fechado tão característico do positivismo do século XIX A simples admissão da doutrina como fonte do Direito é um gesto eloqüente de quebra de compromisso com a autoreferência legalista Criticar a supervalorização do decisionismo portanto não é tomar partido do velho sistema fechado e sim acudir que os mesmos problemas que deram causa ao surgimento da legislatria podem como nuvens no céu estar a se formar no horizonte É demasiado importante referir essa jurisprudenciolatria na doutrina a qual como se observará na próxima secção tem sido uma das causas do desprestígio e da crise da dogmática Aditese que se a doutrina sacraliza a jurisprudência em paralelo esta última temse tornado autoreferente e dispensado o concurso da primeira 25 Síntese conceptual Dogmática e crítica da jurisprudência Página 11 Com essas ressalvas voltese ao ponto a doutrina é fonte criadora do Direito Ela está antes da lei sugerindoa está na lei apoiandoa e está depois da lei vivificandoa48 A doutrina é a liberdade em ação no ato criador do jurídico Ela não é o Direito mas seu continente Como bem afirma Gérard Cornu a atividade doutrinal é fundamentalmente livre A disparidade de opiniões jurídicas é um sintoma da independência dos doutrinadores no trato das coisas do Direito49 Não há temor reverencial por súmulas vinculantes ou não O doutrinador muita vez prega a interpretação contra legem quando não defende a própria revogação de uma norma jurídica O doutrinador pode ser e nalguns casos deve ser crítico em relação às normas e ao próprio Estado Esperase dele a crítica da jurisprudência severa quando necessário50 É por essa razão que em alguns sistemas preferese a separação entre o campo acadêmico e o operativo de molde a preservar a liberdade de crítica dos autores Ao escrever um livro ou um artigo no qual se propõe um modo de se interpretar o Direito o doutrinador poderá transformálo A norma interpretada com base em suas lições não será mais aquela primitivamente cogitada pelo congressista A junção dos três elementos doutrinador opinião e criação do Direito compõe o quadro conceitual da doutrina aqui proposto 26 Funções da doutrina As funções da doutrina mereceram referência nos parágrafos anteriores A título de sistematização do que já se afirmou apresentamse as mais importantes de entre elas i criar o Direito quando transforma a regra em outra regra após sua interpretação ii sistematizar o Direito por meio de constructos teóricos que procuram agrupar instituições províncias e figuras jurídicas por diferentes métodos aproximação específica comparatismo pandectismo tópica iii reformar as leis e as instituições jurídicas por meio de estímulos ao legislador o que se faz com grande superioridade pela doutrina dada a vantagem de pensar o Direito de modo sistemático teórico e descompromissado com elementos circunstanciais iv influenciar e criticar as decisões jurisprudenciais servindolhes de fundamento e de meio de reflexão v controlar a atuação judicial o que deveria ocorrer pelas críticas nos fóruns acadêmicos simpósios congressos livros e ensaios vi criar novos institutos e figuras jurídicas muita vez a partir da elaboração racional ou da observação dos fenômenos51 3 Causas e extensão da crise da doutrina 31 Insuficiências do discurso crítico Na secção introdutória evidenciouse o malestar da doutrina rectius dos doutrinadores com o papel que se lhe atribui nos dias de hoje A sensação é de crise Inventariar as causas e a extensão dessa crise é uma providência necessária Nesta secção disso se cuidará não sem antes uma advertência Esse é um exercício dos mais corriqueiros nos estudos jurídicos atuais a desconstrução de figuras categorias ou institutos por meio da chamada visão crítica ou leitura crítica Tratase de postura sedutora pois agrada às expectativas de significativa parcela da academia comprometida com esse discurso e é conveniente ao estudioso por colocála na cômoda posição niilista de tudo corroer com palavras ácidas e em nada contribuir para novos modelos A fim de não se incorrer nesse desvio após o exame dos problemas enfrentados pela doutrina tentarseá fornecer elementos para a revisão de seu papel no Direito 32 Inventário de causas da crise da doutrina Dogmática e crítica da jurisprudência Página 12 I A doutrina ao menos em sua mais ampla extensão deixou de ser uma arte de juristas E nisso tem sucesso grande parte de seu desprestígio A redução nos custos de publicações e de impressos resultado da fabulosa transformação no mercado gráfico nos últimos 15 anos em decorrência das novas tecnologias da informação permitiu que fossem estampados livros e revistas em quantidades nunca antes vistas na história humana O acesso a uma editora tornouse mais simples Houve aumento significativo no número de casas publicadoras jurídicas no Brasil Do universo de cinco ou seis editoras nacionais nas primeiras oito décadas do século XX têmse hoje mais de duas dezenas de empresas dedicadas a esse mercado Em alguns lugares há gráficas que enviam convites para advogados jovens professores ou recémformados a fim de que esses publiquem seus livros em tiragens econômicas e com isso obtenham prestígio profissional acadêmico ou pontos nas provas de títulos de concursos públicos As próprias editoras jurídicas nacionais por exigência de mercado ou pela própria queda de nível do público leitor reduziram os antigos rigores na seleção de obras a serem estampadas por seus selos Ao menos no Brasil a edição de um livro com a marca de uma grande editora especializada não significa mais a certeza da filtragem ortodoxa de tema ou de autor II As revistas jurídicas tradicional repositório de boa doutrina e de seleção dos principais acórdãos padeceram com os efeitos dessa revolução tecnológica O desenvolvimento de sistemas de informática pelos tribunais especialmente o STF e o STJ tornaram imediatamente acessíveis os acórdãos e as decisões capturáveis por mecanismos de busca booleana dos mais eficientes A certificação digital com a mudança nos atos regimentais que controlam o uso dos precedentes para efeitos de prova do dissídio pretoriano nos recursos extraordinário e especial criou revistas eletrônicas de jurisprudência o que aliviou os periódicos tradicionais da exclusividade na indicação como fonte autorizada52 Indiretamente isso afetou a doutrina A abertura para as fontes digitais com a perda de mercado daí resultante não foi a única conseqüência negativa A redução nos custos gráficos e o aumento exponencial do número de cursos jurídicos deu ensejo à explosão de novas revistas jurídicas organizadas e vinculadas às instituições de ensino superior recémabertas Seja por exigências do Ministério da Educação nos critérios de avaliação dos cursos superiores seja por vaidade acadêmica cada faculdade de Direito pode contar hoje com uma publicação de doutrina Com isso os doutores tiveram de se dividir entre solicitações as mais diversas e ante a impossibilidade de preenchimento das pautas editoriais reduziramse as exigências para se ter um artigo publicado nesses periódicos Os estudantes que possuíam antigas e tradicionais revistas jurídicas mantidas pelo esforço de centros ou diretórios acadêmicos passaram a ter seus estudos publicados em revistas tradicionais Antes um espaço para os que ensinavam docentes o templo da doutrina foi ocupado pelos que em tese deveriam ainda aprender discentes Não é raro encontrar texto de autoria de um terceiroanista de Direito em algum periódico jurídico sério Em tempos igualitários e emancipacionistas nos quais os estudantes escolhem reitores em votações paritéticas ou podem afastar docentes por meio de abaixoassinados nada mais esperável do que a ocupação de espaços destinados à produção da chamada doutrina jurídica por aqueles que em razão do tempo e da maturidade nos estudos deveriam ser os receptores dessas obras53 III Dois outros fatores intimamente associados podem ser referidos como causais desse processo de crise da doutrina O primeiro está na exigência de produção científica dos docentes Os critérios de avaliação dos cursos superiores pelo Ministério da Educação prestigiam a realização de pesquisa pelos mestres O meio objetivo de se aferir sua efetividade é o número de livros artigos Dogmática e crítica da jurisprudência Página 13 relatórios e papers publicados pelos integrantes do magistério Obrigouse até mesmo a criação de um currículo eletrônico padronizado com acesso direto na rede que recebeu o nome do grande físico brasileiro César Lattes como forma de objetivar o controle dos títulos acadêmicos e expor à comunidade universitária o grau de comprometimento de cada docente com a produção de conhecimento A fecundidade na publicação de textos jurídicos tornouse razão direta da qualidade do professor e ainda serve como fator importante para a obtenção de aumentos nas universidades particulares ou gratificações e progressões na carreira nas universidades públicas Quem ousaria não doutrinar hoje em dia com tantos estímulos para o autor O segundo fator está na utilização do número de livros ou artigos jurídicos como critério de pontuação em provas de títulos nos concursos públicos Com isso o ato de escrever textos jurídicos serviu a propósitos nada científicos Edições com tiragens pequenas hoje são custeadas pelos autores com essa finalidade A publicação de artigos em série destituídos de qualquer reflexão ou estudo que possa contribuir para o avanço do Direito constituiuse em objetivo primaz de alguns Estabeleceuse funesta competição entre os juristas em torno do número de textos levados a estampa em revistas ou em obras coletivas Produzir artigos deixou de ser preocupação de juscientistas ou artistas para os que não crêem no Direito como ciência e tornouse instrumento de prestígio pessoal ou melhoria nas classificações profissionais ou nos certames públicos O ato solitário reflexivo baseado em leituras razoáveis focado em tema específico e orientado pela vocação de contribuir originalmente para o Direito tornouse a exceção Em dois estudos baseados em sólida pesquisa empírica encontramse algumas explicações para esse modo particular de ser da doutrina no Brasil o qual guarda conexões com o estado das atividades de pesquisa e dos cursos de pósgraduação em Direito No primeiro texto Roberto Fragale Filho demonstra que entre 1996 e 2003 o número de mestres e doutores em Direito cresceu respectivamente 1100 e 940 no país Apenas em 2003 formaramse 250 novos doutores e 1800 novos mestres54 O resultado desse incremento no número de candidatos à venia legendi é uma das causas dessa exponencial produção jurídica de que ora se cuida No segundo estudo dessa vez escrito em coautoria com Alexandre Veronese Roberto Fragale Filho após ressaltar a evolução sensível na pesquisa científica em Direito bem como na expansão de vagas de pósgraduação ratifica o que se defende neste trabalho houve um aumento formal da pesquisa e das publicações Com isso fazse necessário o exame da qualidade material dessa produção55 Os critérios instituídos pela Capes como o padrão Qualis e a exigência de adaptação dos periódicos a certos padrões internacionais foi uma evolução No entanto o aumento quantitativo não veio acompanhado de soluções efetivas no controle de qualidade IV A atividade legislativa perdeu os juristas São poucos os membros do Congresso Nacional que possuem sólida formação jurídica e dentre esses mais raros ainda os que se dedicaram à vida intelectual na academia Diferentemente do que ocorrera nas seis ou sete primeiras décadas do século XX quando o parlamento ostentava nomes como Bilac Pinto Aliomar Baleeiro Ruy Barbosa Carvalho de Mendonça Paulo Brossard Neri da Silveira a criação de leis é pouco influenciada pela doutrina Ressalvamse os contributos de associações de juristas como o Instituto Brasileiro de Direito Processual nas reformas do Código de Processo Civil56 ou de grupos de doutrinadores como se verificou na comissão de autores do anteprojeto do Código de Direito do Consumidor liderada por Ada Pellegrini Grinover além dos integrantes do comitê revisor do Código Civil de 2002 de entre esses Regina Beatriz Tavares da Silva Mário Delgado Regis e Carlos Alberto Dabus Maluf Em quase todas essas situações porém o que verdadeiramente ocorreu foi que os juristas organizaramse sob a forma de grupos de pressão à semelhança do que já fazem pecuaristas fazendeiros médicos representantes da indústria de armas sindicatos religiosos e outros segmentos sociais Com isso provocaram a iniciativa do legislador seja Dogmática e crítica da jurisprudência Página 14 convencendoo seja fornecendolhe cabedal técnico para levar adiante idéias socialmente úteis Não é de se estranhar que nos exemplos de maior sucesso dos juristas organizados em grupos estavam projetos de normas de elevada tecnicidade e vinculadas à própria atuação dos profissionais do Direito como a reforma das regras processuais e a revisão do Código Civil V O campo de maior visibilidade da crise funcional da dogmática é na atividade dos juízes As citadas palavras do Ministro do STJ para quem não interessa o que pensam os doctores perdemse em um cenário mais amplo De fato têm diminuído sensivelmente a quantidade de referências doutrinárias nos acórdãos dos tribunais superiores Menos do que a baixa estima pelo que se produz doutrinariamente esse é em maior medida reconheçase o resultado do acúmulo monstruoso de processos e recursos nessas Cortes Somente em 2005 foram remetidos mais de 210000 processos ao STJ Em 2006 esse número passou a 251020 No primeiro semestre de 2008 as seis Turmas do STJ julgaram em média 25000 processos o que dá um total de 150000 processos na metade do ano Com isso a elaboração de decisões tornouse mecânica e repetitiva sem espaço ou tempo para a consulta de tratados monografias ou artigos jurídicos Essa pesquisa quase sempre é limitada aos casos inovadores ou aos debates de significativa repercussão na jurisprudência do tribunal Nos demais processos buscase incessantemente o julgado que sirva de precedente ao caso e resolva expeditamente o recurso A estatística tornouse o Grande Irmão em paráfrase a George Orwell dos órgãos jurisdicionais brasileiros por sua vez submetidos a controle externo inédito em sua história e de duvidosos efeitos práticos na melhoria da prestação oferecida ao povo brasileiro Se havia a romântica distinção entre um direito dos professores em contraponto ao direito dos juízes como praticado na Inglaterra e no País de Gales temse hoje no Brasil o permanente distanciamento do modelo romanogermânico em prol do modelo angloamericano dos precedentes Não se fala apenas da súmula vinculante ou do excessivo avanço do STF sobre áreas nãoconstitucionais É a realização de uma jurisdição de resultados que pode ser identificada como principal responsável por essa mudança de eixo Para se chegar a este estado de coisas combinaramse fatores como a base de dados de jurisprudência que tornou possível a busca de informações pretorianas em poucos segundos por meio dos critérios booleanos e a saturação do nível de judicialização da vida Não há tempo a perder Há precedente aplicável ao recurso Se existe ótimo O operador do Direito estará dispensado da penosa construção de raciocínios jurídicos que exige leitura e reflexão de obras doutrinárias Ele ficará limitado ao uso do computador com os comandos do editor de texto e concluirá seu ofício O descompromisso da jurisprudência com a doutrina é menos sensível no Brasil se comparado com a forma descrita por Ingeborg Puppe na Alemanha57 Nos hard cases os tribunais superiores costumam fundamentarse em ensinamentos doutrinários como se nota de decisões recentes do STF de grande impacto social ou jurídico ao estilo dos seguintes acórdãos i MC no HC 94173BA investigação criminal pelo Ministério Público58 ii Suspensão de Tutela Antecipada 235RO59 ii HC 91386BA60 VI Outra causa para o sensível desprestígio da doutrina está na própria atitude dos que a fazem O desconhecimento de noções epistemológicas a deficiente formação de base em Filosofia Geral e Jurídica e o pragmatismo encontramse na base do problema A contemporaneidade parece ser inimiga das teorizações e da investigação profunda das causas primeiras Em uma era tecnológica e tomada pela idéia de mudança o desenvolvimento dessas aptidões é um contrasenso No outro extremo temse o discurso gramisciano mal disfarçado que se apresenta sob a forma de posições ditas libertárias em relação a costumes sociedade família e propriedade Com isso permanece a negligência aos estudos filosóficos e epistemológicos salvo por meio de leituras superficiais a erudição de orelha de livros e pelo manuseio desastrado de meia dúzia de categorias ditas pósmodernas Dogmática e crítica da jurisprudência Página 15 A introdução dos informativos jurisprudenciais e o acesso imediato aos acórdãos pela rede criou nos últimos dez anos o que se poderia chamar de dogmática judicializada à falta de expressão melhor Longe de pensar sistemas formular abstrações e fornecer dados ao juiz essa doutrina é escrita a partir do que já pensaram os juízes em seus acórdãos Não há margem para erros ou desvios O doutrinador concede ao estudante a visão dos tribunais Nada além disso Quando muito alguma posição acessória de crítica discreta ou de aplauso eloqüente O doutrinador surge como o autômato o organizador de jurisprudência em blocos esquemas e sumas do pensamento do tribunal O leitor deve comprar a novíssima edição pois a cada ano com as mudanças de humores nas Cortes a obra está desatualizada Não pela revogação da lei mas pela alteração de entendimento do pretório No Direito Constitucional a dogmática judicializada fez enorme progresso O modelo francês de Teoria Constitucional representado por nomes como José Afonso da Silva e Raul Machado Horta perdeu espaço ante a engenhosa percepção de que seria mais interessante ao aluno ler diretamente o que o STF afirmar ser a Constituição Aqui os próprios doutrinadores parecem afirmar que pouco importa o que pensam seus colegas de dogmática61 Nesse campo existem notáveis exceções como a obra de Virgílio Afonso da Silva na qual se encontram sólidas críticas ao método ou à ausência de método de construção das decisões judiciais62 Posteriormente esse modo de fazer a dogmática chegou ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal províncias jurídicas tradicionalmente marcadas pela riqueza do debate científico com escolas de pensamento ligadas historicamente aos grandes movimentos filosóficos como a Escola Sudocidental alemã e o Círculo de Viena63 No Direito Tributário essa doutrina judicializada também aportou Algumas resistências ainda se observam como nas obras de Hugo de Brito Machado com forte carga crítica em relação a certas posições assumidas pelos tribunais Paulo de Barros Carvalho e Luciano Amaro O Direito Civil foi a última barreira a ser vencida nesse processo de transformação nem sempre feliz da doutrina De início citese o recurso ao estudo do caso cujos fundamentos a despeito da terminologia utilizada para justificar sua superioridade em muito lembram o estudo de situações concretas através das quais se tenta induzir conclusões gerais aplicáveis a outras hipóteses particulares É notável também a mudança na estrutura da apresentação de certas obras Privilegiase o acórdão e a partir de suas conseqüências tentase construir fundamentos dogmáticos Invertese a função da doutrina e da jurisprudência A crítica desse modelo é refutada por argumentos pragmáticos Interessa expor ao discente o que pensam os tribunais e não as alocuções subjetivas de certo autor64 O prestígio dado aos conceitos jurídicos indeterminados e às cláusulas gerais por sua vez é outra marcante característica da dogmática civil contemporânea Provavelmente sem a exata percepção da teia em que se têm enredado os adeptos dessa corrente contribuem para debilitar o papel da doutrina na medida em que aumentam o grau de discricionariedade dos juízes e abdicam de projetar a compreensão geral das normas individuais em relação com a totalidade do Direito65 Os efeitos de longo prazo dessa opção não têm sido compreendidos com a necessária prudência A esse respeito a advertência de Juan Javier del Granado é atualíssima deuse uma fratura no Direito Privado no Brasil e em alguns países latinoamericanos que poderá implicar a ruptura com a tradição romanogermânica Esse abandono das raízes históricas do Direito Civil e Comercial em nada contribuirá para a conservação do espaço da autonomia privada e dos valores humanísticos dessas duas províncias jurídicas Dirseia mais em nada coopera com o fortalecimento da doutrina frente à jurisprudência66 4 A vocação da doutrina em nosso tempo 41 A vocação da doutrina Dogmática e crítica da jurisprudência Página 16 O título desta secção na verdade o subtítulo do artigo é uma homenagem a Friedrich Carl Von Savigny Sua obra mais famosa foi Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft em português Da vocação de nosso século para a legislação e a Jurisprudência ciência do Direito O pai da Escola Histórica após analisar a realidade das nações que possuíam e das que não possuíam códigos civis defendeu a tese da impotência de um código para fundar uma ciência do Direito verdadeiramente substantiva Isso porque o império dos códigos geraria dois efeitos ou nos veríamos completamente privados de literatura jurídica ou o que é mais provável teríamos uma literatura jurídica tão débil escassa e insuportável quanto a gerada sob o fastígio da recémbaixada codificação francesa67 A despeito de sua derrota pois em sua pátria a Alemanha o novo século XX veria o nascer do Código Civil de 1900 Savigny contrapôs o Direito produzido pelo Estado a lei codificada ao Direito produzido pelo espírito do povo Volksgeist o costume68 Ainda que consideradas a perspectiva histórica e a ideologia de Savigny a dualidade existente era entre o Estado e o povo Nesse ponto o jurista prussiano foi vitorioso O século XX revelou a falência de um Direito monista fundado tãosomente na lei Ocorre todavia que os maiores artífices da derrocada do chamado Positivismo legalista fizeram surgir um novo Positivismo de matriz igualmente estatal mas fundado no decisionismo Das leis passase ao que os juízes dizem sobre as leis E nesse ponto permanece o problemachave denunciado por Savigny no Oitocentos Continuase sob o prestígio dos poderes estatais embora se tenha no Brasil o privilégio de uma magistratura culta responsável e democrática Mas em regimes que desbordam do Estado Democrático de Direito e nosso tempo é pródigo de exemplos assim o uso feito da interpretação judicial muita vez conduz ou reconduz à busca da literalidade da norma a última garantia do cidadão contra o abuso do Estado cometido com a lamentável participação de agentes judiciais enfraquecidos pela quebra da independência do Poder Judiciário Como a era contemporânea repugna movimentos armados e golpes de Estado a dissolução da independência judicial ocorre de modo pouco sensível à população seja pela mudança na compostura das Cortes seja pelo aparelhamento ideológico dos juízes nomeados para cargos de maior relevo na jerarquia pretoriana Como desdobramento natural das idéias de Savigny podese afirmar que a doutrina é o costume em nosso tempo A função histórica do costume o contraponto ao racionalismo e ao estatalismo legal pode e deve ser exercida pela doutrina69 Se o costume é uma resultante do espírito do povo Volksgeist a doutrina também o é pois nasce do pensamento dos juristas eles mesmos uma parte do povo70 A vocação da doutrina em nosso tempo é perturbar criticar insurgirse denunciar e obrigar a reflexão sobre o Direito Ela deve exercer essas funções sobre a sociedade o Estado e os agentes mais ligados à produção jurídica o legislador e o juiz Não se veda a esses dois que doutrinem desde que o façam sem confundir a autoridade que decorre de suas respectivas funções no Estado Doutrinar é convencer persuadir influenciar com idéias pelo efeito de sua qualidade e do mérito de quem as produz Gérard Cornu faz um interessante jogo de palavras sobre o fundamento da autoridade da doutrina Non ratione auctoritatis sed auctoritate rationis não em razão da autoridade mas pela autoridade da razão71 A doutrina tem a vocação de ser o elemento necessariamente desagregador na produção jurídica legaljurisprudencial Não se recusa a legitimidade democrática dos legisladores e a legitimidade dos juízes fundada no mérito No entanto é necessária a oxigenação do sistema pelo recurso direto ao povo sob a forma de uma parcela sua a classe dos juristas Quem os escolheu Ninguém Quem os autorizou Ninguém A liberdade de manifestação é quem os suporta aliada ao reconhecimento singular de seu mérito conquistado pela prudência e pela perícia no trato das coisas do Direito para se fazer uso da graciosa Dogmática e crítica da jurisprudência Página 17 linguagem dos romanos conservada pelos medievais A prudência qualidade que repousa na experiência e a perícia qualidade que se esteia no estudo técnicocientífico ou artístico como querem alguns das normas segundo a natureza das coisas Natur der Sache A natureza das coisas tem na sentença de Horácio Livro I Épodo IX sua mais literária e elegante expressão Naturam expellas furca tamen usque recurret expulsai a natureza ela voltará correndo Essa doutrina desenvolvida por autores como Karl Larenz Gustav Radbruch e Zippellius fundase em pressupostos da filosofia de Aristóteles ao pôr em evidência a faticidadeaxiológica não apenas os fatos mas esses sob a óptica dos valores tendo como antecedente o plano da validade Essa perspectiva da doutrina tem conseqüências Se o fundamento da doutrina como fonte do Direito conjuga a liberdade a criação plural do Direito a prudência a perícia e a natureza das coisas não se pode admitir que ela se valha exclusivamente da autoridade do Estado para existir Se hoje as afirmações dos velhos catedráticos franceses do século XIX de que eles não eram professores de Direito Civil e sim professores do Código Napoleão servem de modelo nas escolas jurídicas sobre os extremos da Escola da Exegese e do Positivismo do Oitocentos não é possível substituir essa doutrina legalista por outra jurisprudencialista É provável que em muitas faculdades de Direito os docentes de Direito Constitucional não mais ensinem essa disciplina e sim embora não o confessem sejam meros professores da Constituição interpretada pelo Supremo Tribunal Federal Ao viso deste trabalho não há diferenças entre a doutrina legalista e a doutrina jurisprudencialista Ambas condenam a liberdade dos doutrinadores à submissão ao Direito produzido pelo Estado Nada mais contrário à essência e à vocação da dogmática Essa assertiva porém não deve ser levada ao extremo de isolar a dogmática da lei e da jurisprudência O Direito prático fazse em grande medida pela interpretação da norma legal e ela se manifesta de modo socialmente organizado com aparato repressivo legítimo em larga escala mas não exclusivamente dentro do Poder Judiciário A separação entre professores e juízes é interessante como forma de permitir a autonomia dos primeiros mas isso não significa que aqueles não se debrucem sobre o ofício laborado pelos últimos É conveniente e fecunda essa interação entre o direito doutrinário e o direito pretoriano Retornese a Savigny Para o jurista a ciência do Direito a jurisprudência conformase pela ampliação de seu raio para além dos jurisconsultos teóricos os doutos e os historiadores É a aproximação da teoria e da prática72 Não se há como admitir porém é uma jurisprudência que usurpe as funções da doutrina e rompa com a harmônica coexistência entre essas duas fontes de criação do Direito Pela primeira vez em muitos séculos vivese sério risco dessa ruptura aqui e alhures como se notou dos exemplos transcritos ao longo do texto Friedrich Carl Freiherr von Savigny em sua obra clássica Sistema do direito romano atual ensinava que a atividade humana é susceptível de duas direções o conjunto do sistema científico o qual compreende a Ciência os livros o ensino ou a aplicação particular das regras aos acontecimentos da vida real Essa distinção entre a teoria e a prática é da natureza do próprio Direito bem como a própria evolução das civilizações tem dado às pessoas a missão de desenvolver cada um desses campos do saber assim todos os que se ocupam do Direito salvo algumas exceções fazendo da teoria ou da prática sua vocação especial se não é sua vocação exclusiva No entanto essa departição é boa quando não perde de vista sua unidade primitiva Isso ocorre quando o teórico conserva e cultiva a inteligência da prática e o prático a inteligência da teoria73 Se radicalizada a divisão entre as funções a teoria se converterá em exercício vão de pensamentos etéreos e a prática se consumirá em atividade puramente mecânica Hoje a teoria padece da incapacidade de conservar e cultivar a inteligência prática pois se tornou serva dessa última enquanto a prática por não encontrar respostas na teoria voltase para si mesma em um processo de contínua autoreferência 42 A vocação da doutrina e sua crise meios de superação Dogmática e crítica da jurisprudência Página 18 Na secção anterior fezse inventário das causas da crise da doutrina Interessa sumariálas I ampliação excessiva do número de obras jurídicas II crise dos periódicos tradicionais de doutrina com a ampliação de revistas e a demanda exagerada por contribuições o que fez decrescer a seletividade e a qualidade dos textos III uso das publicações como meio de pontuação em concursos públicos ascensão funcional e obtenção de gratificações na carreira do magistério superior IV ausência de legisladoresjuristas V redução nas citações doutrinárias nos acórdãos VI má qualidade na formação jurídica especialmente pelo desinteresse com a formação filosófica e epistemológica e vícios na seleção de quadros nas universidades como o favoristimo e a autoreferência VII avanço da dogmática judicializada e da valorização do estudo de casos Examinemse os tópicos com a esperança de se oferecer algumas soluções I ampliação excessiva do número de obras jurídicas II crise dos periódicos tradicionais de doutrina com a ampliação de revistas e a demanda exagerada por contribuições o que fez decrescer a seletividade e a qualidade dos textos III uso das publicações como meio de pontuação em concursos públicos ascensão funcional e obtenção de gratificações na carreira do magistério superior O barateamento das edições as publicações eletrônicas os sítios jurídicos e outros meios de difusão dos escritos científicos criaram a demanda maior do que a oferta de textos de qualidade além de colocar praticamente no mesmo nível o jurista e o indivíduo não dotado das qualidades de prudência e perícia necessárias à doutrina É de certo modo reconfortante observar a História e perceber que os homens antes da imprensa ou da internet viveram momentos daquilo que Rudolf von Ihering chamou não sem sarcasmo de grafomania a mania de escrever prolixamente obras jurídicas74 Sim A Lei de Citações do Dominado não foi algo mais do que uma tentativa do Estado de controlar a decadência e os abusos dela advindos na produção grafomaníaca de escritos glosas e adulterações em textos de Direito É esse o sentido da denúncia de Ihering em pleno século XIX da corrida sem mérito pelo mérito de se doutrinar A criação de mecanismos de controle da produção científica baseados na premiação financeira ou funcional foi inicialmente uma forma positiva de apartar docentes inertes e pesquisadores diligentes além de estimular o crescimento intelectivo dos servidores por meio da realização de cursos como espécie de sanção premial Como em todos os processos dessa natureza em certo tempo descobriuse que a forma prepondera sobre o fundo Se para obter uma gratificação alguns pontos em provas de títulos ou boas notas nas avaliações da Capes basta escrever um livro e quatro ou cinco artigos por ano então que se faça75 Descobriram os inertes que bastaria seguir as regras e a partida estaria ganha A denúncia de Roberto Fragale Filho e Alexandre Veronese quanto à insuficiência dos critérios formais de avaliação do desempenho dos cursos de pósgraduação é cada vez mais atual76 Em termos rigorosos se a produção científica em Direito for submetida a uma auditoria terseiam duas conclusões ou ela é o produto de gênios com imensa fecundidade no desenvolvimento de novos saberes jurídicos ou ela é uma fraude marcada por práticas viciadas como o manualismo o sincretismo metodológico a repetição de temas ou a visão da atividade científica como algo que rouba horas do convívio dos familiares77 Algumas providências a respeito desses desvios merecem reflexão i revisão dos textos normativos que prevêem pontuação por trabalhos publicados para ascensão funcional ou gratificações de servidores O estabelecimento de número máximo de textos para fins de contagem de pontos desestimularia o excedente derivado do simples espírito de competitividade que nada diz com a ciência ii aumento no rigor do credenciamento de periódicos no sistema Qualis com a eleição de critérios menos formais e portanto facilmente obteníveis78 A exigência de conselhos editoriais efetivos é uma medida adequada iii estabelecimento de selo de qualidade para as editoras como forma de se restringir a aceitação de determinadas publicações como válidas para pontuação de títulos ou de gratificações Como contrapartida deverseiam obrigar as editoras a possuir Dogmática e crítica da jurisprudência Página 19 conselhos editoriais efetivos iv estímulo às pesquisas por meio de financiamento público ou privado com agrupamento de investigadores Em síntese os três problemas expostos demandam o controle qualitativo da produção científica o que passa necessariamente pelo desvalor da pesquisa e da escrita voltadas para a competição de pontos em provas e em concursos IV ausência de legisladoresjuristas A crise dos parlamentos é mundialmente reconhecida Não há muito que se fazer sobre a perda de influência direta dos juristas nas assembléias e nos congressos Tratase de um fenômeno dos tempos atuais A melhor reação a isso é a ampliação da atividade das associações de juristas como grupos legítimos de pressão ao exemplo do que já se verificou no âmbito do Direito Processual e do Direito do Consumidor V redução nas citações doutrinárias nos acórdãos Esse problema resulta de uma combinação de fatores i massificação da atividade doutrinária se todos somos doutrinadores ninguém verdadeiramente o é ii baixa qualidade da doutrina produzida iii aumento exponencial do número de litígios em dissonância com a estrutura do Poder Judiciário iv informatização A repercussão geral a argüição de relevância e a técnica dos processos repetitivos no STF e no STJ poderão em poucos anos reverter esse quadro na medida em que os tribunais passarão a emitir julgados em menor quantidade e com maior tempo para se aprofundar nos temas de efetivo relevo Essa é a grande esperança para a recuperação exterior da doutrina porque se não houve melhora interna de nada adiantarão essas mudanças Os tribunais ante uma dogmática atrasada e autoreferente deixarão de consultála por sua própria inutilidade a seus ofícios A redução no número de recursos e o aumento na qualidade da doutrina poder servir de meios bastantes e suficientes a esse fim Há descrições comoventes do quanto um juristadoutrinador sério contribui para a construção de grandes molduras jurisprudenciais e de outro lado quando um tribunal sabe reconhecer a importância da contribuição da dogmática O Min Carlos Velloso relatou acórdão do STF que pareceu reviver a antiga prática de consulta aos jurisprudentes romanos No RE 262651SP julgado aos 16112005 pela 2ª T RTJ 1942675 analisouse a controvérsia relativa à extensão ao terceiro que não está se utilizando do serviço público alheio ao serviço de transporte a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público O relator afirma que procedeu a investigação em diversas fontes doutrinárias sem maior sucesso na identificação de uma resposta específica ao caso Então informa o Min Carlos Velloso em gesto de singular homenagem ao conhecimento dogmático que dirigiu ao jurista Celso Antônio Bandeira de Mello carta pedindo o seu pronunciamento a respeito tendo recebido pronta e gentil resposta do autor sobre tema a respeito do qual suas obras não apresentavam posição Esse é um exemplo do quão podem ser profícuas as interrelações entre doutrina e jurisprudência Fazse necessário para isso que aos juízes importe o que os doutores com venia legendi tenham a dizer e que esses juristas tenham o que dizer A falta de um desses fatores elimina a justa e harmônica equação dogmáticajurisprudência VI má qualidade na formação jurídica especialmente pelo desinteresse com a formação filosófica e epistemológica e vícios na seleção de quadros nas universidades como o favoristimo e a autoreferência Em respeito a este tópico uma advertência fazse indispensável a crise no ensino jurídico não é um privilégio de nosso tempo Falase de crise da formação de bacharéis ao longo de todo o século XX para se limitar à última centúria Esse não é um problema novo e crêse firmemente na sensível melhora nas Faculdades de Direito em diversos aspectos a despeito de elementos de decadência e degeneração os quais não lhes podem ser atribuídos isoladamente Eles resultam do comprometimento generalizado do ensino nos diversos níveis com o pragmatismo a exclusão do Humanismo e o desapreço pelo esforço acadêmico tanto de alunos quanto de professores Hoje de outro lado estudam mais pessoas Os níveis de exigência Dogmática e crítica da jurisprudência Página 20 profissional e teórica são mais profundos Deuse grande impulso no estudo de Filosofia geral e jurídica com diversos mestres e doutores que se dedicam a matérias de Teoria Geral do Direito O discurso da crítica pela crítica não convence Mas é também inquestionável a concorrência de três fatores todos contemporâneos a justificar que a má formação dos juristas é causa de declínio da dogmática 1 Conquanto se note o florescimento dos estudos filosóficos nas Escolas de Direito ele se mostra restrito a grupos de discentes os quais se relacionam com disciplinas de Teoria Geral na graduação e seguem nos mestrados e doutorados por esses caminhos metajurídicos Dáse na verdade uma exclusão mútua de péssimo resultado para a cultura jurídica O especialista se é possível dizer isso de um filósofo do Direito em temas teóricos busca cada vez mais evadirse dos estudos dogmáticos provavelmente tangido pelo choque entre a óptica teorética e o Direito praticado Parecem esquecer que o elemento humano contamina e torna impura todas as ciências culturais É a tragédia do homem o toque de Midas da humanidade que transforma o sacro em profano o puro em impuro dada a contradição essencial do próprio homem imperfeito e pecador Com isso criamse torres de marfim jusfilosóficas em alguns centros de ensino do Direito nas quais por uma geração no máximo o filósofo da moda atrai um secto de crentes até que seja substituído por um novo guia das consciências à semelhança dos padixás do Império Otomano cujos sucessores eliminavam os vestígios de seus antecedentes como forma de afirmar com maior ênfase seu próprio poder Não há desse modo a abertura para o diálogo entre os juristasfilósofos e os juristasdogmáticos Nesse aspecto houve irrecusável decadência na formação jurídica Recordese que Hans Kelsen antes de ser o magnífico juristafilósofo do século XX era um renomado constitucionalista e internacionalista em sua Áustria natal Miguel Reale dedicouse ao Direito Civil Arnaldo Vasconcelos o maior representante da Escola Egológica na América Latina foi especialista em Direito Comercial O afastamento também se dá por parte dos juristasdogmáticos A mera leitura de alguns manuais contemporâneos de Direito Civil apresenta a renúncia desses autores aos clássicos capítulos iniciais das obras de Teoria Geral do Direito Civil dedicados ao estudo do Direito Estado norma jurídica seu fundamento e sua natureza Salvo honrosas exceções as obras que conservam esses capítulos fazemno com base em uma Filosofia jurídica do pósguerra sem dialogar ou criticar com as novas correntes justeoréticas Estagnação ou absenteísmo Eis o elemento preponderante da crise e com ela surgem efeitos deletérios sincretismo metodológico manualismo incapacidade de se construir grandes sistematizações repetição acrítica de conceitos pósmarxistas repúdio ao Direito Romano simplificações e mistificações 2 Não há doutrina sem bons juristas E não se formam bons juristas sem escolas de Direito de qualidade O elementocentral desse processo é o magister o professor Muito bem Desde o início dos tempos sempre houve e haverá a política do favoritismo Esse é outro convidado indiscreto dos impuros negócios humanos apesar das heróicas tentativas do legislador de escoimálo da coisa pública O art 37 da CF1988 é o mais completo libelo escrito na história recente brasileira contra o pessoalismo e a imoralidade no trato da Administração Pública e do recrutamento de seus quadros79 O regime dos professores catedráticos anterior à grande reforma do sistema educacional realizada nos anos 70 era fortemente contaminado pelo favoritismo No entanto o controle dos próprios titulares das cátedras em relação a seus pupilos era implacável Havia certa ética nesse recrutamento O compromisso era bilateral A deficiência do pupilo implicava a nãoobtenção do cargo de docente Nos dias atuais porém tanto no Brasil quanto em outros países ao que já visto o mérito perdeu relevo em comparação ao favoritismo Essa é uma das causas mais pronunciadas da crise da dogmática a seleção descomprometida com a moralidade e a impessoalidade nos quadros universitários Com isso excluemse grandes doutrinadores do cenáculo que Dogmática e crítica da jurisprudência Página 21 se lhes deveria reservar as cátedras das Escolas de Direito das quais poderiam realizar o antigo e sempre novo docendo discimus Podese chegar ao extremo em alguns casos de que o bom doutrinador assim será considerado porque não integra a estrutura da universidade E dentro das Escolas haverá tudo menos doutrinadores Com isso quebrase o compromisso da doutrina com a criação do Direito pois lhe falta o fundamento da perícia e da prudência A dogmática deslegitimase porque desacreditada A dogmática desaparece porque não consegue produzir algo de útil Na raiz A falta de semeadores de trigo e o excesso de semeadores de joio 3 Como último fator destaquese a autoreferência Com seleções marcadas pelo vício do favoritismo não se abrem as portas da universidade para elementos formados em outras escolas com outros valores conhecimentos e visões de mundo Fechase a Escola de Direito em um ciclo vicioso de autoreferência Não há crescimento científico sem pluralismo Não há produção de conhecimento sem heteroreferência O historiador britânico Benedict Anderson em seu Comunidades imaginadas examinou o surgimento dos modernos Estados nacionais nos séculos XIXXX com a descolonização da América Ásia e África Uma das causas determinantes da independência desses novos países foi o sentimento de que todos os nativos pertenciam a uma comunidade com valores símbolos e elementos unificantes imaginados A literatura a imprensa e a cartografia contribuíram decisivamente nesse processo E segundo o autor a criação nas décadas que antecederam a independência de escolas centrais para formação de quadros entre os colonos e nativos foi outro elemento fundamental para o surgimento das comunidades imaginadas Elementos de diversas regiões da colônia afluíam para uma mesma universidade central conheciamse trocavam experiências e compartilhavam suas visões de mundo Ao voltarem traziam as sementes da noção de identidade nacional e cultural No Brasil o melhor exemplo dessa função agregadora sob o prisma dos discentes oriundos de diversas regiões do país é a Universidade de São Paulo especificamente sua Faculdade de Direito Esse modelo de heteroreferência é uma das razões mais significativas da permanente pujança dessa Escola Suponhase o valor da heteroreferência no plano docente nas diversas instituições universitárias brasileiras Os ganhos seriam notáveis Muito bem Mas o que fazer Algumas sugestões 1 Durante décadas os concursos públicos foram objeto de variegadas suspeitas de pessoalidade Convenceuse o Estado na maior parte das seleções de pessoal hoje realizadas no Brasil de que a melhor forma de assegurar os valores do art 37 da CF1988 seria atribuir a instituições externas a elaboração aplicação e correção dessas provas Diminuíram sensivelmente os casos de irregularidades desde então E mais do que isso a instituição do concurso público ganhou respeito social e tornouse mecanismo de constituição de uma elite burocrática baseada na meritocracia de investidura Nada impede que se adote esse modelo de realização externa de concursos públicos para as universidades estatais Somese a isso a unificação de vagas nacionalmente nas escolas superiores federais para fins de ocupação de cargos em quaisquer das regiões do país Medidas simples baixadas pelo Ministério da Educação teriam efeitos históricos nesse campo 2 A adoção de critérios universais objetivos e impessoais de avaliação dos postulantes a cargos de docente também poderia ser levada a efeito pelo Ministério da Educação Estabelecimento de pontos e notas mínimas e máximas para cada fase com redução da subjetividade e da discricionariedade das bancas examinadoras em fases nas quais esses fatores não poderiam prosperar como em provas de títulos de notória objetividade 3 Objetivação de critérios prévios de suspeição e impedimento com base em normas baixadas pelo Ministério da Educação Dogmática e crítica da jurisprudência Página 22 4 Atuação mais efetiva dos órgãos de controle interno e controle externo do Estado sobre os concursos públicos nas universidades Esses órgãos são por demais eficientes na fiscalização de obras públicas contratações de pessoal mas apesar da constância de representações ao Ministério Público de candidatos defraudados em certames para professor é praticamente nula a intervenção desses plexos no âmbito universitário A mera perspectiva de uma sanção disciplinar advinda de auditorias ou tomadas de contas especiais pelo Tribunal de Contas ou pela ControladoriaGeral por certo desestimularia abusos hoje cometidos nas universidades públicas VII avanço da dogmática judicializada e da valorização do estudo de casos Nesse último tópico que foi tangenciado ao longo do artigo destacamse dois problemas i a judicialização da dogmática ii a questão do estudo de casos jurisprudenciais Quanto à judicialização basta ressaltar que esse fenômeno revela a dificuldade da doutrina em exercer suas próprias funções sistematizar criar criticar e produzir conhecimento Essa leniência já cobra seu tributo Se a doutrina é mera paráfrase de acórdãos para que os juízes terão interesse em ler obras dogmáticas Se a doutrina é incapaz de propor criticar sistematizar para que existe Na raiz a crise de fundamentos filosóficos epistemológicos e metodológicos Sem Filosofia Teoria do Conhecimento e algum método não há como se evadir das armadilhas do manualismo da reprodução e da estagnação A jurisprudência é índice de aplicação teórica E quando atua criativamente gerando novas figuras jurídicas ou institutos não pensados ela influencia a doutrina embora não lhe seja isso exigido É necessário ter em consideração exatamente esse ponto a jurisprudência pode criar mas não se lhe pode demandar esse papel E ao fazêlo oferece importantes subsídios à doutrina No entanto é da dogmática que se deve exigir a função criativa Se ela renuncia a esse ofício e escorase no que os tribunais afirmam perde sua ratio essendi e dá mercê a que seja demitida pela História Quanto ao estudo de casos observase que há um movimento de reconstrução da dogmática a partir de duas perspectivas i a mera afirmação do juristadoutrinador é insuficiente para criar conhecimento jurídico tratase do velho recurso ao argumento de autoridade sem referibilidade e com excesso de subjetivismo ii o conhecimento jurídico necessita de alguma dose de método indutivo a partir do exame de casos tendências jurisprudenciais estatísticas e base de dados Não é adequado confundir o manualismo e a escrita jurídica baseada em chavões com a doutrina Essas duas espécies revelam sintomas da doença da grafomania denunciada por Rudolf von Ihering e literatura jurídica de baixa qualidade Daí se haver dedicado nas seções anteriores fortes linhas em ordem a se qualificar quem é o jurista apto a doutrinar E basearse na opinião doutrinária não é estimular o argumento de autoridade Como dito Non ratione auctoritatis sed auctoritate rationis A doutrina vincula não em razão da autoridade mas pela autoridade da razão80 Mais que isso a doutrina fundamentase no valor democrático na abertura para que o povo através da classe dos juristas crie Direito e modifique ou se contraponha ao Direito produzido pelo Estado por meio dos legisladores ou dos juízes Só por isso a doutrina já estaria devidamente validada em termos sociais históricos e políticos Por fim o estudo de casos especialmente quando focado em decisões judiciais tem seu valor É uma boa forma de se conferir a aplicação da doutrina ou sua não aplicação pelos órgãos estatais autorizados a dizer o Direito em última instância No entanto não se pode extrair dessas sistematizações a força ou a autoridade decorrente da supremacia de um método indutivo sobre o método dedutivo Verificar tendências pretorianas ou entender o porquê das decisões dos tribunais a partir delas mesmas não gera conhecimento superior ao produzido pela doutrina O fato é simples A autoridade dos tribunais decorre simplesmente de serem tribunais Seu poder é emanado da Constituição e com isso devem ser respeitadas estudadas e analisadas suas decisões Daí a concluir que são Dogmática e crítica da jurisprudência Página 23 óptimas por serem judiciais vaise ao absurdo da jurisprudenciolatria Há boas e ruins decisões judiciais Seu valor intelectivo é variável portanto Logo o exame desses julgamentos não substitui a tradicional forma de se doutrinar A empiria é importante Este articulista já desenvolveu pesquisas empíricas que coadjuvaram significativamente as teses concebidas dedutivamente É até necessário o estímulo à empiria no Direito Não se pode é ignorar que a doutrina fazse pelo direito de o jurista emitir sua opinio sobre fatos normas e valores e com ela modificar ou criar o Direito 5 Conclusões A crise da doutrina diferentemente da chamada crise do ensino jurídico é relativamente nova embora tenham sido historicamente identificados momentos de sério comprometimento dessa fonte do Direito À semelhança de ocorrências do passado a situação atual tem por ingredientes a máformação e a seleção dos juristas e docentes o pragmatismo e o avanço do Estado sobre a liberdade do povo em criar o Direito As soluções para a crise são possíveis de implementação com maior ou menor facilidade Algumas dependem do Estado outras dos próprios doutrinadores Em tudo destacase a imperativa recuperação pelos doutrinadores de seu espaço É a estes que compete a mais difícil tarefa recobrar o respeito pela própria doutrina tão abalado pelos sucessos descritos neste texto81 Em tempos de Direito Comunitário e da Integração deve assumir a doutrina maior importância ainda pois tem a aptidão de harmonizar e servir de meio à cooperação entre as comunidades jurídicas82 A doutrina como elemento democrático na criação do Direito tem de sobreviver 1 No original In den Motiven des einstigen BGBGesetzgebers 1900 heiβt es des öfteren daβ diese oder jene Frage Wissenschaft und Rechtsprechung übertlassen bleiben soll In den Materialien des Modernisierungsgesetzes heiβt es demgegenüber zumeist daβ die Frage der Rechstprechung überlassen bleiben soll Das ist kein Zufall dahinter verbirgt sich eine Verachtung der Wissenchatf für welche der Fluch des Mephistopheles gilt Verachte nur Vernunft und Wissenschaft Des Menschen allerhöchste Kraft Und Hätt er sich auch nicht dem Teufel übergeben Er müβte doch zugrunde gehn EHMANN Horst SUSTSCHET Holger Modernisiertes Schuldrecht Lehrbuch der Grundsätze des neuen Rechts und seiner Besonderheiten München Vahlen 2002 p13 2 EHMANN Horst SUSTSCHET Holger Op cit p14 3 A jurisprudência pelo menos entre nós de há muito está decidida a caminhar sem a ajuda da ciência do direito O resultado disso como demonstrado a partir dos exemplos da jurisprudência sobre o dolo de homicídio e a desistência da tentativa de homicídio é a insegurança jurídica e arbítrio PUPPE Ingeborg Ciência do direito penal e jurispru dência Tradução de Luís Greco Revista Brasileira de Ciências Criminais v14 n58 p105113 janfev 2006p113 4 PERLINGIERI Pietro Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional Tradição de Maria Cristina de Cicco 2 ed Rio de Janeiro Renovar 2002 p2122 5 Não me importa o que pensam os doutrinadores Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça assumo a autoridade da minha jurisdição O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação A eles porém não me sub Dogmática e crítica da jurisprudência Página 24 meto Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro Decido po rém conforme minha consciência Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual para que este tribunal seja respeitado É preciso consolidar o entendimento de que os Srs Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim porque pensam assim E o Superior Tribunal de Justiça decide assim porque a maioria de seus integrantes pensa como estes ministros Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele É fundamental expressarmos o que somos Ninguém nos dá lições Não Somos aprendizes de ninguém Quando viemos para este Tribunal corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico uma imposição da Constituição Federal Pode não ser verdade Em relação a mim cer tamente não é mas para efeitos constitucionais minha investidura obrigame a pensar que assim seja AgRg nos EREsp 319997SC Rel Ministro Francisco Peçanha Martins Rel p Acórdão Ministro Humberto Gomes de Barros Primeira Seção julgado em 14082002 DJ 07042003 p216 Há incisiva contestação doutrinária dessas pa lavras no seguinte ensaio STRECK Lenio Luiz Ao contrário do ministro devemos nos importar muito com o que a doutrina diz Disponível em httpultimainstanciauolcombrensaioslernoticiaphpidNoticia23310 Acesso em 182008 6 MERRYMAN John Henry The Civil Law tradition an introduction to the legal systems of Europe and Latin America 3 ed Palo Alto Stanford University Press 2007 passim 7 HOUAISS Antonio Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa Verbete doutrina Disponível em httphouaissuolcombrbuscajhtmverbetedoutrinastypek Acesso em 182008 8 Modernamente a palavra jurisprudência é usada para referir o conjunto de decisões dos tribunais Esse não é o único sentido porém Jurisprudência iurisprudentia é a Ci ência do Direito como ainda se usa no idioma alemão a atividade cometida ao prudens o perito em matéria jurídica de ius dicere dizer ou interpretar o Direito Os jurisprudentes eram inicialmente os pontífices sacerdotes romanos da religião pagã Com a dessacrali zação do Direito em fins do Século IV e início do Século III AC a atividade foi assumida pelos estudiosos da Ciência Jurídica A era de ouro da Jurisprudência corresponde ao período entre 27 AC Otávio Augusto e 235 AD dinastia dos Severos São repre sentantes desse período dito clássico os juristas Gaio Papiniano Paulo Ulpiano e Mo destino Alguns deles foram mortos por razões de Estado ante haverem feito a opção pelo rigor de suas posições científicas em detrimento da vontade do imperador Papiniano ad exemplum foi condenado à morte por Antonino Caracala em decorrência de sua negativa a justificar o homicídio praticado pelo imperador contra seu próprio irmão IGLESIAS Juan Derecho Romano 12 ed Barcelona Ariel 1999 p3638 A Santos Justo Direito Privado Romano Parte geral Introdução Relação jurídica Defesa dos direitos 3 ed Coimbra Coimbra Editora 2006 v1 p56 adverte que a iurisprudentia romana aproximase da doutrina actual 9 MATOS PEIXOTO José Carlos de Curso de Direito Romano Parte introdutória e geral 4 ed Rio de Janeiro Renovar 1997 t1 p120 10 MOREIRA ALVES José Carlos Direito Romano 11 ed Rio de Janeiro Forense 1998 v1 p44 11 DÍEZPICAZO Luis GULLÓN Antonio Sistema de Derecho Civil 11 ed Madrid Tecnos 2005 v1 p161 12 ALMEIDA COSTA Mário Júlio de História do Direito Português Coimbra Almedina 2000 v3 p 304308 Dogmática e crítica da jurisprudência Página 25 13 ALMEIDA COSTA Mário Júlio de Op cit p 308317 14 ALMEIDA COSTA Mário Júlio de Op cit p 314316 15 HORN Norbert Introdução à Ciência do Direito e à Filosofia Jurídica Tradução de Elisete Antoniuk Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2005 p58 16 DÍEZPICAZO Luis GULLÓN Antonio Op cit p157158 17 Art40 Lei Complementar 43 de 1021993 DOU 1121993 18 SANTOS JUSTO A Op cit p86 19 Na época republicana é eminentemente criadora e tem por suporte uma auctoritas saber socialmente reconhecido inequivocamente expressa na consideração dos iuris periti como príncipes civitatis e da sua casa como oraculum civitatis e protegida na recusa de qualquer compensação pecuniária SANTOS JUSTO A Op cit p87 20 CALAMANDREI Piero Eles os juízes vistos por um advogado Tradução de Edu ardo Brandão São Paulo Martins Fontes 2000 p37 21 VASCONCELOS Arnaldo Teoria pura do Direito repasse crítico de seus princi pais fundamentos Rio de Janeiro Forense 2003 p174 e ss com robusta funda mentação filosófica e epistemológica sobre o fim da era da inocência no mundo cientí fico ROCHA José de Albuquerque Estudos sobre o Poder Judiciário São Paulo Malheiros 1995 p30 especificamente sobre a diferença entre imparcialidade e neutra lidade do juiz o que se estende ao próprio Direito 22 A título de exemplo citemse as obras seguintes JUNQUEIRA DE AZEVEDO Antonio Junqueira de Estudos e pareceres de direito privado São Paulo Saraiva 2004 com parecer que introduziu no Direito brasileiro a doutrina do terceiro cúmplice AZEVEDO Álvaro Villaça Contrato atipíco misto e indivisibilidade de suas prestações Revista dos Tribunais São Paulo v89 n778 p115134 ago 2000 BARBOSA Ruy Inadim plemento de contrato MadeiraMamoré Railway Co direitos da concessionária a perdas e danos remédio jurídico parecer In Trabalhos jurídicos Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1962 v 40 t 2 p 103117 BEVILAQUA Clovis Soluções práticas de Direito Rio de Janeiro Freitas Bastos 19231945 4 v coletânea de pareceres 23 É o caso no Direito Público dos pareceres de José Horácio Meirelles Teixeira Hely Lopes Meirelles e Francisco Campos cujos ecos se fazem ouvir nas modernas obras doutrinárias ou influenciaram no modo de ser de figuras ou institutos jurídicos 24 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da norma jurídica 2 ed Rio de Janeiro Forense 1986 p276 GUSMÃO Paulo Dourado de Introdução ao estudo do Direito 33 ed Rio de Janeiro Forense 2003 p129132 Nos manuais de Direito Civil VENOSA Sílvio de Salvo Direito Civil parte geral 8 ed São Paulo Atlas 2008 v1 p1819 NADER Paulo Curso de Direito Civil parte geral 4 ed atual Rio de Janeiro Forense 2007v1 p112 apontando a doutrina como fonte indireta do Direito 25 REALE Miguel Lições preliminares de Direito 4 ed São Paulo Saraiva 1977 p176 Negando à doutrina a natureza de fonte do Direito mas concedendolhe a função participativa na formação legislativa ou costumeira do Direito influindo nela tão só pelo rigor científico ou técnico de suas soluções DEL VECCHIO Giorgio Lições de Filosofia do Direito Tradução de António José Brandão 5 ed Coimbra Arménio Amado 1979 p430 Dogmática e crítica da jurisprudência Página 26 26 ASCENSÃO José de Oliveira O Direito introdução e teoria geral Uma perspectiva lusobrasileira 6 ed Coimbra Almedina 1991 p230 27 GOMES Orlando Introdução ao Direito Civil Atualizado por Edvaldo Brito e Regi nalda Paranhos de Brito 19 ed rev Rio de Janeiro Forense 2007 p44 28 MORIN Gaston Le rôle de la doctrine dans lélaboration du droit positif In AAVV Annuaire de lInstitut de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique Paris Sirey 1934 p64 29 Art38 Decreto 19841 de 22101945 DOU 5111945 que promulga a Carta das Nações Unidas da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça assinada em São Francisco a 26 de junho de 1945 por ocasião da Conferência da Organização Internacional das Nações Unidas 30 Lei 8906 de 471994 DOU 571994 dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB art34 inciso XIV 31 No primeiro caso doutrina com sinônimo de doutrina militar citese por todas a Lei Complementar 97 de 961999 DOU 1061999 que dispõe sobre as normas gerais para a organização o preparo e o emprego das Forças Armadas em cujo art13 se diz que o preparo compreende entre outras as atividades permanentes de planejamento orga nização e articulação instrução e adestramento desenvolvimento de doutrina e pesquisas específicas inteligência e estruturação das Forças Armadas de sua logística e mobiliza ção Quanto ao segundo caso doutrina como sinônimo de idéias filosóficas anotese o art11 2º alínea c da Lei 1802 de 511953 DOU 7110953 relativa aos Crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social que declara não constituir propaganda tipi ficável como criminosa a exposição a crítica ou o debate de qualquer doutrina 32 VASCONCELOS Arnaldo Teoria purap176177 Ressalvese porém que isso não significa o total colapso da visão mecanicista do mundo como adverte Friedrich Müller Teoria estruturante do Direito Tradução de Peter Naumann e Eurides Avance de Souza São Paulo RT 2008 p13 Há ainda espaço para o mecanicismo na Física só que em experimentações restritas e sem mais a pretensão universal que se lhes reconhecia até o século XX e o surgimento das novas teorias quântica da relatividade e da incerteza 33 A livredocência é um título acadêmico concedido no Brasil por uma instituição de ensino superior por meio de concurso público tãosomente aos que possuem o título de Doutor e que confere a seus titulares o reconhecimento de uma qualidade superior na docência e na pesquisa Seu fundamento normativo está na Lei nº 5802 de 1191972 que dispõe sobre a inscrição em prova de habilitação à livredocência e na Lei n 6096 de 591974 que prorroga o prazo estabelecido no parágrafo único do artigo 1o da Lei 5802 de 11091972 34 Venia legendi expressão utilizada por João Baptista Villela tem significado específico de habilitação para o título de Privatdozent a equivaler ao livredocente no Brasil 35 VILLELA João Baptista Livredocência apontamentos de uma argüição Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico e Financeiro v143 p3941 julset 2006 p4041 36 PERLINGIERI Pietro Op cit p24 37 O célebre discurso de Rui Barbosa jurista e Senador brasileiro tem a seguinte oração De tanto ver triunfar as nulidades de tanto ver prosperar a desonra de tanto ver crescer a injustiça de tanto ver agigantaremse os poderes nas mãos dos maus o homem chega Dogmática e crítica da jurisprudência Página 27 a desanimar da virtude a rirse da honra a ter vergonha de ser honesto BARBOSA Rui Obras completas Rio de Janeiro Senado Federal 1914 v 41 t 3 p 86 38 Mestrado doutorado livredocência e titularidade 39 Na Universidade de São Paulo a organização da carreira acadêmica alcança os seguintes níveis Professor doutor Professor associado com exigência do título de LivreDocente e Professor titular com defesa de tese de titularidade Nas universidades federais brasi leiras têmse os cargos de Professor auxiliar com graduação Professor assistente com exigência do grau de Mestre Professor adjunto com doutorado e Professor titular úl timo nível na carreira com titulação mínima de doutor 40 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da normap275 41 A Santos Justo Op cit p88 anota que sempre houve tentativas dos poderes polí ticos de controlar a atividade dos doutrinadores em Roma 42 BONAVIDES Paulo Curso de Direito Constitucional 12 ed São Paulo Malheiros 2002 p237 43 BARROSO Luis Roberto O começo da história a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro Revista Forense Rio de Janeiro Forense v371 p175202 janfev 2004 p177 44 ENGISCH Karl Introdução ao pensamento Jurídico Tradução de João Baptista Machado 6 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1983 p207 45 Para um extenso apanhado do enfraquecimento do monismo sob a óptica da doutrina alemã TORRES Ricardo Lobo Legalidade tributos contraprestacionais e harmonia entre os poderes do Estado Revista Forense Rio de Janeiro Forense v384 p155169 marabr 2006 p162 46 Para uma crítica aprofundada sobre o sincretismo doutrinário no Brasil na questão da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre privados SILVA Virgílio Afonso da A constitucionalização do Direito Os direitos fundamentais nas relações entre particulares São Paulo Malheiros 2005 p2938 47 Como exemplo dessa visão judicializada do Direito vejase essa passagem A con clusão inarredável é que respeitado o espaço de discricionariedade legislativa e admi nistrativa não há limites ao emprego da técnica de ponderação de bens e interesses o Neoconstitucionalismo consagrou a abertura da Caixa de Pandora reconhecendo que ao Poder Judiciário cabe inescapável monopólio da última palavra sendo inútil lançar mão de artifícios com a exigência de cega obediência à lei escrita e a medidas hermenêuticas previsíveis interpretação literal sistemática histórica teleológica para proclamar uma falsa segurança jurídica Na falta de elementos objetivos o controle de legitimidade da ponderação pelo juiz tem sido realizado pelo exame da argumentação ou melhor dizendo da fundamentação desenvolvida MARTINS Samir José Caetano Neoconstituciona lismo e seus reflexos nas relações jurídicas privadas em busca de parâmetros de apli cação direta dos direitos fundamentais Revista Forense Ri de Janeiro Forense v393 p173204 setout 2007 p192 Convém registrar que essa tendência não é unânime Vejase a séria crítica feita por Carlos Bastide Horbach A nova roupa do Direito Consti tucional Neoconstitucionalismo póspositivismo e outros modismos Revista dos Tri bunais São Paulo RT v96 n859 p8191 maio 2007 p90 Já no Brasil em tempos de neoconstitucionalismo quando se afirma sou contra esta lei porque é inconstitu cional estáse na verdade dizendo Esta lei é inconstitucional porque sou contra ela Dogmática e crítica da jurisprudência Página 28 Na verdade essas decisões mostram como o neoconstitucionalismo faz com que o direito constitucional deixe de ser uma ciência objetivamente considerada e passe a ser a ex pressão emocional das intenções do intérprete o que é reforçado com a conclusão de que sob a ótica da dogmática constitucional as velhas e novas técnicas de interpretação em nada diferem 48 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da norma jurídicap276 49 CORNU Gérard Droit Civil Introduction les personnes les biens 12 ed Paris LGDJ 2005 p193 50 CORNU Gérard Op cit p194 51 Em trabalho publicado originalmente no ano de 1944 já oferecia Francisco Clementino San Tiago Dantas uma síntese das funções da dogmática jurídica que é muito próxima da que ora se formula Ela ergue o sistema explica as relações e a interdependência dos comandos destaca os institutos inclusos hierarquiza princípios faz generalizações e exerce mesmo um papel revelador da excelência ou da imprestabilidade da lei quando a submete às deduções extremas e a experimenta nas várias situações práticas possíveis E é graças a este último aspecto que os estudos dogmáticos construídos sobre a lei rein vertem na própria legislação os seus melhores produtos pois muitas reformas e inovações legislativas encontram sua origem não nos fatos econômicos ou políticos mas na própria elaboração doutrinária que o Direito anterior suscitou SAN TIAGO DANTAS FC Nova dogmática jurídica Revista Forense comemorativa 100 anos Rio de Janeiro Fo rense 2007 p 141146 v2 p142 52 Art541 parágrafo único CPC 53 Obviamente que não é de ser simplesmente fechada a porta à publicação de artigos de estudantes em periódicos sérios Em alguns casos a precocidade do discente e seu des taque intelectual fazem com que se supere essa presunção Mas como parecer ser óbvio não há como se receber com naturalidade essa situação tornarse uma regra quando deveria ser excepcional 54 FRAGALE FILHO Roberto Quando a empíria é necessária In XIV Congresso Nacional do CONPEDI 2006 Fortaleza Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI Flo rianópolis Fundação Boiteux 2005 p 323 55 FRAGALE FILHO Roberto VERONESE Alexandre Kehrig A pesquisa em Direito di agnóstico e perspectivas Revista Brasileira de Pós Graduação Brasília v 2 p 5370 2004 p5455 56 Lêse da Exposição de Motivos n40 do Senhor Ministro de Estado da Justiça ao an teprojeto de lei que introduziu no CPC o art543C recursos repetitivos De há muito surgem propostas e sugestões nos mais variados âmbitos e setores de reforma do processo civil Manifestações de entidades representativas como o Instituto Brasileiro de Direito Processual a Associação dos Magistrados Brasileiros a Associação dos Juizes Federais do Brasil de órgãos do Poder Judiciário do Poder Legislativo e do próprio Poder Executivo são acordes em afirmar a necessidade de alteração de dispositivos do Código de Processo Civil e da lei de juizados especiais para conferir eficiência à tramitação de feitos e evitar a morosidade que atualmente caracteriza a atividade em questão 57 PUPPE Ingeborg Op cit p113 58 Acórdão relatado pelo Min Celso de Mello no qual se invocam as lições de Fauzi Hassan Chouke Ada Pellegrini Grinover Rogério Lauria Tucci Roberto Maurício Genofre Paulo Dogmática e crítica da jurisprudência Página 29 Fernando Silveira Romeu de Almeida Salles Junior e Luiz Carlos Rocha Informativo STF n513 Brasília 30 de junho a 4 de julho de 2008 59 Acórdão relatado pelo Min Gilmar Mendes que cita José Joaquim Gomes Canotilho e J Chevalier Informativo STF505 Brasília 5 a 9 de maio de 2008 60 Acórdão relatado pelo Min Gilmar Mendes com referências a Martín Kriele MaunzDürig e a Norberto Bobbio Informativo STF n500 Brasília 31 de março a 4 abril de 2008 61 Chega a ser emblemático o que Manoel Gonçalves Ferreira Filho Curso de Direito Constitucional33 ed São Paulo Saraiva 2007 pVIIVIII escreveu em prefácio de recente edição de seu manual Digase de passagem que ninguém está mais surpreendido com a longevidade do Curso de que o seu próprio autor Tratase de um curso escrito segundo o padrão cultural europeu mormente francês que insiste nos fundamentos doutrinários e também políticos e sociais das instituições bem como dos grandes temas constitucionais Visa a preparar cabeças capazes de raciocinar por si próprias em face de qualquer Constituição e não as que querem receber prontas as respostas certas para os questionários escolares ou de concursos elementares Ora não é essa a mentalidade hoje predominante em cursos e cursinhos o que torna elitista este Curso 62 SILVA Virgílio Afonso da Op cit especialmente pp162170 63 São exceções dentre outras os manuais de Cezar Roberto Bitencourt Tratado de Direito Penal 12 ed São Paulo Saraiva 2008 passim e Eugênio Pacelli de Oliveira Curso de Processo Penal 8 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 passim 64 É de ser reconhecido todavia que a dogmática civilista necessitava de renovação especialmente quanto a aspecto bem destacado por Francisco Clementino San Tiago Dantas Op cit p146 a saber o descompromisso com as leis especiais e os fenômenos que se afastavam do tratamento harmônico dado pelos códigos A visão do Direito ob jetivo que muitos juristas conservam e defendem é a de um sistema harmônico de normas de Direito comum em torno do qual cresce acongérie das normas de Direito especial caprichosas contraditórias e efêmeras A doutrina abona e explica as primeiras para as segundas temos de cair numa positividade estreita pois não se reconhece estrutura doutrinária capaz de lhes dar continuidade e coerência Com isso temas importantes em demasia locações prediais urbanas filiação genética cláusulas abusivas leis de urba nismo foram segregados nos manuais de doutrina a referências em notas de pé de página ou em parágrafos isolados O resultado dessa renúncia em se enfrentar a heterodoxia normativa foi a ampliação de zonas cinzentas ou a perda de espaço do Direito Civil para outras disciplinas 65 EHMANN Horst SUSTSCHET Holger Op cit p14 66 GRANADO Juan Javier de Pósfácio In TIMM Luciano Benetti O novo Direito Civil ensaios sobre o mercado a reprivatização do Direito Civil e a privatização do Direito Pú blico Porto Alegre Livraria do Advogado 2008 p202204 67 SAVIGNY F Von De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la Ciencia del Derecho Traducción del alemán de Adolfo G Posada Buenos Aires Heliasta 1977 p177 68 Alf Ross Teoría de las fuentes del Derecho una contribución a la teoria del derecho positivo sobre La base de investigaciones históricodogmáticas Traducción del alemã notas y estúdio preliminar de José Luis Muñoz de Baena Simón Aurelio de Prada García y Pablo López Pietsch Madrid Centro de Estudios Políticos y Constitucionales 2007 p198224 desenvolveu amplo estudo sobre o espírito do povo Volksgeist o qual se Dogmática e crítica da jurisprudência Página 30 recomenda consulta dado ultrapassar os limites deste artigo o exame das proposições desse autor Destaquese tãosomente os vínculos estabelecidos entre Savigny e o movimento do Romantismo alemão indicados por Alf Ross como a chave para a com preensão da Escola Histórica É também digno de observação o intenso debate descrito por Alf Ross acerca de ser Savigny um naturalista um positivista ou um precursor da Escola do Direito Livre 69 Restaria por último fixar a posição e as perspectivas da doutrina no universo jurídico de nossa época Alguns eminentes juristas já o fizeram com singular discernimento Todos eles partem da teoria de Savigny de que a dinâmica do progresso social motiva a subs tituição do costume pela doutrina VASCONCELOS Arnaldo Teoria da normap283 70 VASCONCELOS Arnaldo Teoria da normap276 Por honestidade intelectual atri buase a passagem do costume como fundamento do Direito para a opinio necessitatis dos que operam com o Direito a expoentes tardios da Escola Histórica ao exemplo de Cosack Kohler e Brie ROSS Alf Op cit p506 71 Conquanto o autor para não fugir à Escola Francesa considere que a doutrina não é uma fonte formal do Direito mas possui a força de sua autoridade Cf CORNU Gérard Op cit p195 72 SAVIGNY F Von Op cit p141 73 SAVIGNY F Von Sistema del Derecho Romano Actual Traducido del alemán por CH Guenoux Vertido al castellano por Manuel Durán y Bas Granada Comares 2005 pLXXIV 74 IHERING Rudolf von Bromas y veras ridendo dicere verum Traducción del alemán por Tomás A Banzhaf Madrid Civitas 1987 p99 75 A CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior é uma fun dação autárquica vinculada ao Ministério da Educação que tem por finalidade subsidiar o Ministério na formulação de políticas e no desenvolvimento de atividades de suporte à formação de profissionais de magistério para a educação básica e superior e para o de senvolvimento científico e tecnológico do País art2o Lei nº 8405 de 911992 76 FRAGALE FILHO Roberto VERONESE Alexandre Kehrig A pesquisa em Direito di agnóstico e perspectivasp58 77 Sobre o inventário dessas mazelas da produção jurídica nacional confirase OLIVEIRA Luciano Sua Excelência o Comissário e outros ensaios de Sociologia Jurídica Rio de Janeiro Letra Legal 2004 passim 78 O Qualis é uma lista de meios utilizados para a divulgação da produção científica dos programas de pósgraduação em sentido estrito mestrado e doutorado A lista classifica esses veículos quanto à circulação Local Nacional Internacional e à qualidade A B C por área de avaliação O Qualis serve como parâmetro para fundamentar o processo de avaliação do Sistema Nacional de PósGraduação 79 Art 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade impessoalidade moralidade publicidade e eficiência e também ao seguinte Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 II a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego na forma prevista em lei ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei Dogmática e crítica da jurisprudência Página 31 de livre nomeação e exoneração Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 80 CORNU Gérard Op cit p195 81 Esse é uma preocupação que já se expressa na óptica de observadores mais lúcidos da crise da dogmática brasileira Quanto à doutrina ela já há muito deixou de ser fonte do direito e cada vez menos se publicam textos com algum resquício de criatividade As mais da vezes não passam de considerações analíticas sobre leis e decisões judiciais de dis cutível valor científico e ao sabor das conveniências do grande mercado editorial formado pela classe dos operadores do direito COELHO Luiz Fernando Saudade do Futuro 2ed Curitiba Juruá 2007 p 76 82 Vejase o papel da doutrina na formação de códigostipo CARDILLI Riccardo El papel de la doctrina en la elaboración del sistema El ejemplo de la responsabilidad con tractual AAVV El contrato en el sistema jurídico latinoamericano Bases para um Código Latinoamericano Tipo Bogotá Universidad Externado de Colombia 1998 p6190 359 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 DOI 1012818P030423402020v76p359 ABSTRACT This article examines three different models of legal dogmatics descriptivist realistic and argumentative In order to do so it confronts firstly the criticisms related to the use of the term legal science pointing out the reasons why the term legal dogmatics would be more technical to designate the activity practiced by law scholars Secondly the paper addresses the critiques of the descriptivist model as a reductionist model of the object of legal dogmatic As a counterpoint to this model the characteristics of the realistic and argumentative models are examined And thirdly it defends the adoption of the argumentative model more specifically in its evolution to the semanticargumentativist model The hypothesis to be faced concerns defining what is the activity practiced by law scholars to answer if this activity is descriptive creative or argumentative The method used is the analytical through a critical doctrinal research on the subject The conclusions reached include the preference for the conception of legal dogmatics not legal science as a method referring to both the activity and its product Moreover it concludes by adopting a discursive objectivity which presupposes the adoption of clear and safe criteria without this leading to decisionism which is exactly the criticism presented to the realistic model This means that understanding law as a discursive practice whose objectivity is in the argument does not necessarily mean O referido artigo foi produzido no âmbito de disciplina cursada no Mestrado em Teoria do Direito e Democracia Constitucional no Istituto Tarello per la Filosodia del Diritto e Università Degli Studi di Genova com bolsa de financiamento parcial Doutora e Mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP Mestre em Teoria do Direito pelo Istituto Tarello per la Filosodia del Diritto e Università Degli Studi di Genova Especialista em Direito Público e Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São PauloSP Email marthaleaomackenziebr O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA O QUE FAZEM OS ESTUDIOSOS DO DIREITO THE OBJECT OF LEGAL DOGMATICS WHAT DO JURISTICS DO Martha toribio Leão RESUMO O presente artigo examina três diferentes modelos de dogmática jurídica descritivista realista e argumentativista Para tanto enfren ta em primeiro lugar as críticas atinentes ao uso da expressão ciência jurídica apontan do as razões pelas quais o termo dogmática jurídica seria mais técnico para designar a atividade praticada pelos estudiosos do Di reito Em segundo lugar o trabalho aborda as críticas ao modelo descritivista enquanto modelo reducionista do objeto da dogmática jurídica Como contraponto a este modelo são examinadas as características dos mode los realista e argumentativista E em terceiro lugar defendese a adoção do modelo argu mentativista mais especificamente em sua evolução para o modelo semânticoargument ativista A hipótese a ser enfrentada diz respei to a definir qual é a atividade praticada pelos estudiosos do Direito para responder se esta atividade é descritiva criativa ou argumen tativa O método utilizado é o analítico por meio de uma pesquisa doutrinária crítica com relação ao tema Como conclusões alcançad as destacase a preferência pela concepção de dogmática jurídica e não ciência jurídica en quanto método referindose tanto a atividade como ao seu produto Além disso concluise pela adoção de uma objetividade discursiva que pressupõe a adoção de critérios claros e seguros sem que isso leve ao decisionismo que é exatamente a crítica apresentado ao mo delo realista Isso significa dizer que entender O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 360 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 that law will be only what judges say it is The interpreter actively participates in the construction and reconstruction of the law but this participation activates part of the post Law KEYWORDS Legal dogmatics Legal science Argumentative model Descriptive model Realistic model o Direito como uma prática discursiva cuja objetividade encontrase na argumentação não significa necessariamente que o Direi to será apenas aquilo que os juízes disserem que ele é O intérprete participa ativamente da construção e reconstrução do Direito mas esta participação ativa parte do Direito posto PALAVRASCHAVE Dogmática jurídica Ciência jurídica Modelo argumentativista Modelo descritivista Modelo realista SUMÁRIO Introdução 1 Por quê um modelo de dogmática jurídica e não de ciência jurídica 2 Os modelos argumentativista e realista como contraponto ao modelo descritivista 3 Do modelo argumentativista ao modelo semânticoargumentativista Conclusões Referências INTRODUÇÃO O papel do Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de constante debate político jornalístico e doutrinário1 O julgamento de casos recentes com enorme repercussão no país ilustram isso São exemplos paradigmáticos nesse sentido os julgamentos sobre a constitucionalidade da execução provisória da pena depois do julgamento em segunda instância2 a constitucionalidade da quebra do sigilo bancário independentemente de decisão judicial para fins tributários e penais3 e ainda a questão da nulidade dos processos penais em função da ordem que deve ser adotada entre defesa e acusação nas alegações finais4 É nesse contexto de críticas e defesas ao protagonismo político dos Ministros da Corte Constitucional brasileira que se propõe um artigo para responder à seguinte pergunta de pesquisa o que fazem os estudiosos do Direito Esta pergunta de aparência singela é uma das mais difíceis de serem respondidas no âmbito da Teoria do Direito Este artigo se propõe a contribuir para este debate a partir do exame de três diferentes modelos de dogmática jurídica o modelo descritivista o modelo 1 Nesse sentido a título exemplificativo as posições antagônicas de BARROSO 2018 na defesa de um papel mais ativo politicamente e ÁVILA 2019a na crítica ao protagonismo político das atuais decisões da Corte 2 BRASIL STF Ações Direta de Constitucionalidade nº 43 e 44 Relator Ministro Edson Fachin Tribunal Pleno julgado em 05102016 3 BRASIL STF Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2390 Relator Ministro Dias Toffoli Tribunal Pleno julgamento em 17022015 para fins tributários e BRASIL STF Recurso Extraordinário nº 1055941 Relator Ministro Dias Toffoli decisão monocrática julgamento em 15072019 para fins penais 4 BRASIL STF Habeas Corpus nº 166373 Relator Ministro Edson Fachin Tribunal Pleno julgamento iniciado em 26092019 Martha Toribio Leão 361 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 realista e o modelo argumentativista A comparação entre estes modelos levará à conclusão de que o modelo mais adequado para explicar a atividade praticada pelos estudiosos do Direito é o modelo semânticoargumentativista Para tanto o artigo inicia com a análise das razões pelas quais o termo ciência jurídica é em si problemático para designar a atividade praticada pelos juristas E isso porque ele parte da premissa de que esta atividade é científica o que por si só já é objeto de contestação por parte da doutrina A partir disso se passa a analisar o modelo descritivista de dogmática jurídica inspirado no ideal do empirismo e suas limitações para a transposição de suas conclusões ao Direito A ideia é demonstrar que o Direito não é uma entidade física mas uma realidade discursiva que não pode ser meramente descrita porque precisa da participação do intérprete para a sua reconstrução Em outras palavras o Direito não é um objeto pronto e acabado ou seja um objeto previamente dado cujo conteúdo dependa exclusivamente de atividades cognoscitivas reveladoras de sentidos predeterminados Ele é uma composição entre atividades semânticas e argumentativas que dependem de um processo decisional que possui caráter axiológico Estas evidências são utilizadas também na análise acerca das limitações do modelo realista para a dogmática do Direito na medida em que este reconhece o papel do intérprete mas vai a outro extremo ao desconsiderar o papel do texto enquanto Direito posto 1 POR QUÊ UM MODELO DE DOGMÁTICA JURÍDICA E NÃO DE CIÊNCIA JURÍDICA A utilização do termo ciência jurídica para definir a atividade realizada pelos estudiosos do Direito não obstante sua difusão é bastante criticada pela doutrina De um lado ciência jurídica seria um termo inadequado por adotar como premissa o caráter científico desta atividade o que por si só é discutível para alguns autores que negam este caráter de cientificidade à atividade do estudioso do Direito De outro lado o termo é ambivalente ou ambíguo na medida em que comporta uma série de definições incompatíveis entre si Sua utilização por essas razões gera uma dificuldade terminológica com relação a circunscrever a atividade teórica praticada pelos estudiosos do Direito5 Embora o termo tenha um significado cognoscitivo por vezes sua utilização decorre da conotação de um significado emotivo o que é científico tem uma espécie de timbre de elogioso despertando reações favoráveis do interlocutor6 Como destaca Waldron algumas palavras como a dignidade por exemplo podem ser consideradas como feel good words ou seja palavras que se conectam a sentimentos positivos trazendo consigo um apelo emocional 5 NÚNEZ 2014 p 17 NINO 2003 p 11 6 NINO 1989 p 13 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 362 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 ao ouvinte ou destinatário do texto7 Esta mesma construção se aplica aos termos ciência e científico Construção semelhante e crítica é feita por Ross ao tratar dos termos justo e justiça Para o autor invocar a justiça seria como dar uma pancada na mesa porque se usa uma expressão emocional que faz da própria exigência um postulado absoluto buscando entendimento mútuo8 Assim palavras como dignidade justiça e ciência não apresentam apenas uma descrição mas expressam uma valoração positiva suscitando no ouvinte um estímulo para compartilhar desse valor9 Há uma função apelativa e retórica em seu uso em decorrência da sua dimensão emocional10 e o termo acaba funcionando como um conceito incontestável como uma bandeira linguística que solicita aderência e coesão11 ou como armas semânticas semantische Waffen12 Em suma essas são palavras utilizadas com uma função persuasiva13 O problema é que faz parte do próprio objeto em discussão a existência ou não de cientificidade Isso significa dizer que o termo é problemático exatamente por adotar como premissa algo que faz parte daquilo que está em discussão e precisaria ser comprovado pela atividade do estudioso do Direito ou seja que há cientificidade no objeto em análise A utilização da expressão dogmática jurídica por sua vez afasta esta discussão Por dogmática jurídica entendese o método atividade ou resultado proposto ou descrito por quem considera que os estudiosos do Direito não se limitam ou não deveriam limitar se a meramente descrever o conteúdo do Direito mas sim propor soluções aos juízes para resolver os casos difíceis14 A dogmática jurídica por tanto parte já de uma determinada concepção de Direito e da atividade que deveria ser praticada pelo estudioso do Direito que não deveria ser meramente descritiva do seu conteúdo Isso não significa contudo que o termo também não seja criticável Muitos autores como Atienza por exemplo criticam a expressão por sua vinculação analógica à ideia de dogmas da teologia quando na verdade o sentido denotado por dogmática jurídica indicaria a possibilidade de alterações 7 WALDRON 2012 p 137 8 ROSS 2007 p 320 9 ALEXY 1996 p 194 10 BAYERTZ 1999 p 4 11 A constatação é feita por MUNOZDARÉ com relação à fraternidade The word therefore functions as an uncontested concept as a linguistic flag prompting adhesion and cohesion MUNOZDARE 1999 p 83 12 ALEXY 1996 p 1617 13 STEVENSON menciona a existência definições persuasivas persuasive definitions que seriam aquelas utilizadas com o propósito consciente ou não de alterar o posicionamento das pessoas STEVENSON 1938 p 331 14 NÚNEZ 2014 p 33 Martha Toribio Leão 363 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 e evoluções no sistema jurídico o que seria impensável do ponto de vista dos dogmas religiosos15 Ainda assim o autor defende o uso do termo não apenas devido a sua aceitação doutrinária como também em virtude de um sentido metafórico que pode ser atribuído a ele Com efeito para ele a educação científica dependeria do aceite de uma tradição préestabelecida de como solucionar os problemas ou seja de um paradigma comum que determinaria as regras do jogo A tarefa de um cientista seria exatamente buscar as respostas dos problemas dentro destas regras conhecidas e aceitas ou seja pressuporia um compromisso ainda que a priori com a manutenção deste status quo Atienza compreende que isso é seguido na prática jurídica enquanto modelo discursivo que aceita uma pauta de proposições como ponto de partida e que se propõe a resolver os problemas com os procedimentos aceitos por aquela comunidade Esta pauta de racionalidade de que se parte para a solução dos problemas jurídicas seria de forma metafórica um dogma dos estudiosos do Direito16 Por essas razões este trabalho parte desta concepção de dogmática jurídica enquanto método referindose tanto a atividade como ao seu produto a ser praticado pelo estudioso do Direito que defende uma postura ativa deste para a solução dos problemas jurídicos tal qual estabelecido pelo conceito de Núnez e que para tanto parte de uma determinada racionalidade que funciona como um paradigma das regras aceitas por aquela comunidade jurídica tal qual estabelecido por Atienza 2 OS MODELOS ARGUMENTATIVISTA E REALISTA COMO CONTRAPONTO AO MODELO DESCRITIVISTA Este movimento de afastamento do termo ciência jurídica por dogmática jurídica no modelo argumentativista tem como objetivo central afastarse de duas teses principais Em primeiro lugar do descritivismo ou seja da ideia de que a Ciência do Direito seria uma metalinguagem a quem caberia apenas a descrição do conteúdo das normas jurídicas E em segundo lugar do empirismo isto é da premissa de que os enunciados descritivos doutrinários deveriam ser testados com base no ordenamento jurídicopositivo como um dado empírico daí a adoção do conceito de verdade por correspondência17 Estes paradigmas no entanto se mostraram incapazes de de um lado explicar aquilo que de fato é praticado pelos estudiosos do Direito e de outro lado ajudar a resolver os problemas reais impostos pelos casos práticos Estas dificuldades levaram a uma inversão ao invés de revelar o objeto do Direito passouse à tentativa de encaixálo em um molde científico prédeterminado 15 ATIENZA 2014 p 127 16 ATIENZA 2014 p 122126 17 ÁVILA 2012 p 235 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 364 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 Daí a analogia de Aarnio no sentido de tentar ajustar a dogmática jurídica à cama de Procusto ainda que para isso fosse necessário cortar suas mãos e pés A cama de Procusto tem o tamanho correto se e apenas se o hóspede é medido para caber naquela cama O problema é que quando o objeto do direito é medido para caber em uma cama determinada nesse caso a da ciência ele deixa de ser aquilo que de fato é Por essa razão a necessidade de se afastar deste paradigma científico e passar a analisar o objeto do estudioso do Direito como aquilo que ele de fato é ou seja uma forma de prática social18 No mesmo sentido Ávila destaca que a adoção da tese descritivista da Ciência do Direito partiu de um modelo de Ciência criado para outros mundos e não para o mundo do Direito o ideal dos empiristas de criar um único método para todas as ciências surgiu inicialmente para as ciências naturais alastrando se mais tarde para todas as ciências inclusive a do Direito O problema é que o Direito envolve um discurso que não tem por objeto uma entidade física mas uma realidade discursiva incapaz de ser descrita como supostamente o é uma entidade física pela singela e boa razão de que a sua realidade não está pronta sem a participação do intérprete Assim por meio do modelo empirista adequouse o Direito ao modelo de Ciência em vez de se adaptar o modelo de Ciência ao Direito Em suma conclui Ávila construiuse o Direito da Ciência no lugar da Ciência do Direito19 Desse modo a incapacidade deste modelo descritivista de resolver os problemas jurídicos criou a necessidade de um novo modelo para a atividade praticada pelo estudioso do Direito Calsamiglia é enfático ao demonstrar como o ideal de neutralidade proposto por este paradigma científico do empirismo entra em crise a partir do momento em que os próprios cientistas do Direito tratam de responder a problemas de decisão e recomendar soluções aos problemas encontrados A partir disso impõese o reconhecimento de que o Direito não é um produto acabado que o cientista do Direito possa descrever sem participar ativamente do seu objeto Para responder à pergunta de como deve ser o Direito o estudioso do Direito precisa ir além do aparato tradicional da ciência na medida em que este mostrase insuficiente para a resolução destes problemas20 Da mesma forma Ávila criticando os paradigmas do descritivismo e do empirismo destaca que existem outros paradigmas mais adequados ao tratamento do fenômeno jurídico como da verdade por verossimilhança e o da objetividade discursiva centrados não na capacidade de antecipar com certeza o Direito como se ele fora um objeto prévia e inteiramente dado mas no poder de revelar com a maior consistência possível os critérios de realização do Direito 18 AARNIO 2011 p 79 19 ÁVILA 2013 p 201 20 CALSAMIGLIA 1996 p 1725 Martha Toribio Leão 365 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 como um processo discursivo a ser continuamente constituído inclusive com o auxílio da doutrina21 No modelo argumentativista portanto entendese que os estudiosos do Direito devem dedicarse a construir soluções para os problemas jurídicos que o próprio ordenamento não resolve de maneira unívoca sendo que esta tarefa deve ser realizada a partir do oferecimento de razões baseadas em regras e princípios incorporados ao Direito A atividade nesse sentido tem um sentido prático que busca responder à pergunta sobre o que deve fazer o estudioso do Direito22 Por isso nas palavras de Aarnio a metodologia central para o estudioso do Direito não poderia mais ser indutiva ou dedutiva mas racionaldiscursiva O método é a argumentação jurídica que produz uma rede coerente de razões para suportar as recomendações normativas A coerência vinculase com a formação do maior grupo possível de proposições compatíveis23 Tal modelo está diretamente vinculado à concepção argumentativa de interpretação baseada no processo por meio do qual se chega a um resultado no sentido de que cabe ao intérprete mediante atividade dinâmica e intermediária centrada não apenas em aspectos semânticos mas também em estruturas argumentativas reconstruir um conteúdo normativo a partir de núcleos semânticos gerais mínimos O conteúdo normativo aferível antecipadamente apenas com relação às alternativas interpretativas possíveis e os critérios para a sua delimitação correspondem a um espectro com o qual a realidade se conforma em maior ou em menor medida O Direito nessa acepção é considerado como uma atividade dependente do processo de interpretação e de aplicação24 Nesse sentido Guastini destaca que interpretar é atribuir significado a um texto normativo e portanto independe da existência de dúvidas ou controvérsias porque qualquer texto normativo necessita de interpretação para o autor não há significado sem interpretação e consequentemente não há aplicação sem interpretação25 É importante mencionar contudo que o modelo argumentativista não é o único que se contrapõe ao modelo descritivista antes mencionado O modelo realista também se opôs a estes paradigmas científicos indo porém a outro extremo Para este modelo a ciência jurídica recomenda aos estudiosos do Direito realizar previsões acerca de como decidirão os juízes em futuras controvérsias Um dos seus principais expoentes é Guastini Para o autor italiano os enunciados doutrinários não são apenas uma metalinguagem da atividade do legislador Em parte a doutrina se dirige àquilo que foi estabelecido pelo 21 ÁVILA 2012 p 233 22 NÚNEZ 2014 p 4849 23 AARNIO 2011 p 2842 114 24 ÁVILA 2019b p 360 25 GUASTINI 2011 p 405 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 366 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 legislador No entanto sua atividade não se encerra na mera descrição daquilo que foi determinado pelo legislador Estas duas linguagens tanto a do legislador como a do intérprete fazem parte de um mesmo processo de formação do Direito na medida em que a atividade do intérprete modela e enriquece aquilo que foi determinado pela linguagem do legislador E além disso por vezes cria novas normas que não estavam presentes naquela primeira linguagem A determinação dos significados admitidos pelo texto ou seja a interpretação cognitiva constitui apenas uma etapa logicamente anterior à atividade decisória e não esgota o objeto da ciência jurídica Tratase apenas de uma contribuição modesta para o conhecimento do Direito porque ainda não é capaz por si só de determinar as normas aplicáveis mas apenas aquelas possivelmente aplicáveis A adoção do modelo de realismo metodológico pelo autor significa a adoção da premissa de que as formulações normativas não são propriamente Direito mas apenas fonte de Direito e as normas só passam a existir a partir da interpretação do texto26 Tal postura pragmática acerca do conteúdo do Direito vinculase à adoção da teoria interpretativa conhecida como ceticismo interpretativo que marca a Escola Cética de Gênova De acordo com esta teoria os textos normativos não têm um único significado objetivo préconstituído A atribuição de significado é fruto de decisão dos intérpretes em última instância dos juízes27 A interpretação cética é aquela que confere ao intérprete um status ativo isto é na definição dos conceitos trazidos pelos textos e dispositivos normativos quaisquer interpretações dadas poderiam ser tomadas como corretas28 O ceticismo radical adotado por Guastini entende que os textos normativos não têm nenhum significado antes da interpretação o significado não preexiste à interpretação é resultado dela Isso significa que os juízes são totalmente livres para atribuir a todo texto normativo literalmente qualquer significado A interpretação nessa linha envolveria tão somente atos de vontade e a atribuição de algum significado a determinado dispositivo que admitiria qualquer um Nesse caso a atividade do intérprete seria sempre adscritiva por escolher qualquer significado como sendo o correto Para o autor em algum sentido sequer existiria Direito antes da interpretação os textos normativos não são exatamente Direito mas apenas fontes de Direito Todo o Direito neste sentido é criado não pelos legisladores mas sim pelos intérpretes e somente por eles29 O problema é que esta postura também se mostra problemática na medida em que esvazia o papel do Poder Legislativo para o Direito a lei passa a ser simplesmente aquilo que os juízes determinam que ela é Tal modelo 26 GUASTINI 2014 p 104 e ss 27 GUASTINI 2011 p 412 28 SOUZA 2019 p 439 29 GUASTINI 2011 p 414 Martha Toribio Leão 367 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 portanto embora responda às críticas ao descritivismo vai a outro extremo gerando um inchaço do papel do Poder Judiciário e o enfraquecimento do Poder Legislativo Tal postura radicalmente cética leva ao esvaziamento da legalidade Isso porque se os significados são criados e construídos pelo intérprete e o texto ou o dispositivo não oferece qualquer tipo de limite à interpretação não há que se falar em garantia da legalidade A legalidade tornase absolutamente inócua em seu papel de garantir a segurança jurídica A norma aplicável será aquela definida pela vontade do intérprete sem que o texto sirva sequer de limite para esta atividade o texto é vazio e não serve nem mesmo de moldura 30 Exatamente por isso tal postura é alvo de críticas por exemplo de Diciotti para quem o ceticismo extremo seria o mesmo que defender que o juiz poderia estabelecer qualquer coisa como resultado da atividade interpretativa ou em outros termos como significado de um enunciado legislativo31 Como destaca Schauer desconsiderar o texto como ponto de partida é desconsiderar um aspecto muito importante sobre a própria natureza do Direito32 Tal entendimento poderia levar ao extremo de se entender que o legislador produz formulações ou disposições mas não normas enquanto o intérprete como o juiz ao adscrever e atribuir significado a estas formulações seria o verdadeiro criador das normas Com isso não é possível dizer que o juiz está submetido à norma já que ele mesmo é o criador desta Tal construção contudo levaria à ruína da noção de império da lei Estas conclusões também são apontadas por Maccormick ao analisar as consequências de uma teoria da correção judicial baseada tão somente na autoridade do prolator das decisões Para o autor se for considerado que a correção de uma decisão depende apenas da autoridade de quem a emite isso traria como consequência a ideia de que os juízes se tornam em um sentido puro atores políticos ou seja pessoas que decidem o Direito com base em suas próprias opiniões e quaisquer coisas que sejam a eles relevantes não havendo nenhum Direito que não seja aquele que eles decidem nos casos que chegam perante as Cortes33 Quando este tipo de postura é adotado especialmente pela Corte Constitucional se coloca em perigo a própria supremacia da Constituição os termos empregados no texto constitucional passam a ter o sentido que o intérprete gostaria que tivesse a despeito do sentido atribuído pela própria Constituição34 A consequência apontada por Maccormick é que em termos de sociologia ou de teoria política isso implica a existência de um Poder Judiciário colocado 30 LEÃO 2018 p 62 31 DICIOTTI 2003 p 1213 32 SCHAUER 2009 p 158 33 MacCORMICK 2005 p 275 34 LEÃO DIAS 2019 p 315 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 368 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 em um primeiro plano do processo político de fazer o Direito correção em termos legais seria o que os juízes dizem que é e isso seria tudo o que se tem Nesse caso os juízes seriam criadoresdodireito lawmakers enquanto aplicadoresdodireito lawsayers35 Estas considerações demonstram por que é preciso haver alguma normatividade prévia à interpretação que vincule e exerça o papel de lei como controle e limite do poder A interpretação nesse sentido pressupõe um significado e não atribui um significado A interpretação é interpretação de significado não interpretação de uma enigmática formulação sintática que não quer dizer nada até que o intérprete exerça sobre ela sua função mágica36 O modelo argumentavista especialmente em sua vertente semânticoargumentativista é uma tentativa de responder a estas críticas 3 DO MODELO ARGUMENTATIVISTA AO MODELO SEMÂN TICOARGUMENTATIVISTA A característica de descritividade da Ciência marca do modelo normativista pressupõe que o Direito seja algo dado pronto antes mesmo da tarefa de descrevêlo Como destaca Ávila no entanto isso não sucede uma vez que a interpretação dos enunciados não envolve uma atividade meramente descritiva de sentidos mas sim reconstrutiva de significações o material sobre o qual se debruça o estudioso do Direito é um material bruto com uma série de elementos entremostrados que precisam ser reconstruídos ou pelo menos coerentemente aperfeiçoados pelo intérprete37 Isso não significa contudo que o intérprete é livre na realização desta atividade A atividade do intérprete é tanto descritiva como adscritiva descritiva por identificar os vários significados possíveis de um dispositivo legal e adscritiva por escolher um deles como sendo o correto A instituição de uma regra postula a sua maior rigidez inflexibilidade e intransigência relativamente a razões que não estejam cristalizadas na sua hipótese porque embora ela deva ser reconstruída a partir de um dispositivo ela já possui algum significado intersubjetivamente consensuado que lhe permite transmitir conteúdos prescritivos ainda que estes conteúdos sejam aperfeiçoados pelo contexto aplicativo38 Isso significa dizer que as regras jurídicas constituem razões autônomas para uma decisão jurídica ou seja elas carregam um peso autônomo ou intrínseco independente dos objetivos almejados pelo legislador que fornecem razões imediatas e suficientes para a decisão39 Em outras palavras haveria um significado prévio à interpretação O 35 MacCORMICK 2005 p 275 36 LAPORTA 2007 p 182183 37 ÁVILA 2012 p 235 38 ÁVILA 2007 p 963989 39 SANTOS 2019 p 351 Martha Toribio Leão 369 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 significado não é qualquer um é algum Isso quer dizer que as normas muitas vezes possuem um núcleo duro de significação estabelecido hard core of settled meaning que constrange enormemente as escolhas que podem ser feitas pelo operador do Direito40 Nesse sentido é fundamental reestabelecer o papel da lei e a importância da limitação imposta pelo texto Por essas razões defende se uma interpretação centrada no texto textoriented na medida em que este tem um significado autônomo que depende sobretudo das convenções sobre o uso das palavras naquela comunidade O significado não pode ser entregue ao leitor do texto ou seja ao seu intérprete porque senão toda a ideia de império da lei escaparia entre os dedos41 Nas palavras de Aarnio os compromissos linguísticosconceituais também desempenham um papel importante na própria argumentação ou seja na deliberação racional em que se busca a justificação das alternativas interpretativas reconhecidas com a ajuda do sistema42 O discurso é um marco racional para o debate ele é a única forma de garantir o princípio da imparcialidade O procedimento discursivo é uma ferramenta para a discussão ideal determinada o que não significa que ele produza juízos de valor ideais ou objetivos e muito menos verdadeiros Os resultados deste discurso cumprem unicamente os critérios de correção relativa43 Nesse sentido a tarefa da dogmática jurídica consiste também em criticar as formas de pensamento imperante tanto aquelas produzidas pela própria dogmática como aquelas produzidas pelos Tribunais44 De forma semelhante Nino destaca que o dogmático não é absolutamente livre na eleição de hipóteses interpretativas na medida em que deve derivalas de um conjunto de pressupostos regras e teorias que se vinculam às expressões linguísticas do legislador e que estão incorporadas profundamente à tradição dogmática o que significa que há critérios racionais no âmbito da dogmática jurídica para resolver os problemas45 E também Atienza ainda que defendendo uma nova modalidade argumentativista a dogmáticajurídica como tecno práxis reconhece que o Direito é uma prática discursiva de forma que os problemas que os dogmáticos devem resolver requerem um conhecimento adequado da linguagem ou das regras do jogo que formam aquilo que seria analogicamente os dogmas do Direito46 40 MENÉNDEZ 2001 p 73 41 LAPORTA 2007 p 178179 42 AARNIO 2012 p 101 43 AARNIO 2012 p 30 44 AARNIO 2012 p 30 45 NINO 1989 p 113 46 ATIENZA 2014 p 127 150 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 370 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 Assim a partir da adoção de um ceticismo interpretativo moderado no sentido de que os textos são ao longo do tempo objeto de processos de cognição que formam significados mínimos ou núcleos de significação objeto de consenso e que isso é um limite à interpretação o modelo realista mostra se incapaz de revelar estes limites O modelo capaz de oferecer uma solução mais adequada reflete portanto uma concepção semânticoargumentativa de Direito em vez de compreender o Direito como algo total e previamente dado a ser por meio de um método discursivo meramente descrito pelo intérprete concepção objetivista do Direito ou como uma mera atividade argumentativa não submetida a qualquer limitação anterior ao seu processo decisional de realização concepção realista de Direito compreendese o Direito em posição intermediária entre essas duas concepções isto é como uma prática reconstrutiva de sentidos mínimos cuja realização depende de estruturas jurídicoracionais de legitimação de determinação de argumentação e de fundamentação47 CONCLUSÕES Todas as considerações anteriores demonstram que é preciso superar a crença de que apenas a cientificidade formal garante racionalidade à atividade do estudioso do Direito A determinação da natureza descritiva empírica da dogmática jurídica não é condição necessária para o reconhecimento de sua racionalidade e da possibilidade de controlar intersubjetivamente suas conclu sões48 Nesse sentido é preciso reconhecer a necessidade de que a dogmática jurídica prossiga atuando ativamente na construção de critérios intersubjeti vamente controláveis de interpretação e aplicação do Direito a objetividade discursiva pressupõe a adoção de critérios claros e seguros sem que isso leve ao decisionismo que é exatamente a crítica apresentado ao modelo realista49 Em outras palavras entender o Direito como uma prática discursiva cuja objetivi dade encontrase na argumentação não significa necessariamente que o Direito será apenas aquilo que os juízes disserem que ele é Doutrina e jurisprudência participam ativamente da construção e reconstrução do Direito mas esta parti cipação ativa parte do Direito posto REFERÊNCIAS AARNIO Aulis Essays on the doctrinal study of Law Doordrecht Springer 2011 Cambio o evolución In Idem ATIENZA Manuel LAPORTA Francisco Bases teóricas de la interpretación jurídica Fundación Coloquio Jurídico Europeo Madrid pp 81119 2012 47 ÁVILA 2012 p 237 48 NINO 1989 p 114 49 ÁVILA 2012 p 241 Martha Toribio Leão 371 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 Una única respuesta correcta In Idem ATIENZA Manuel LAPORTA Francisco Bases teóricas de la interpretación jurídica Fundación Coloquio Jurídico Europeo Madrid pp 945 2012 ALEXY Robert Theorie der Grundrechte 3 Aufl Frankfurt am Main Suhrkamp 1996 ATIENZA Manuel La dogmatica jurídica como tecnopraxis In NÚNEZ Álvaro Coord Modelando la ciência jurídica Lima Palestra pp 115159 2014 ÁVILA Humberto Constituição Liberdade e Interpretação São Paulo Malheiros 2019 Teoria da Segurança Jurídica 5ª ed São Paulo Malheiros 2019 A doutrina e o Direito Tributário In Idem Coord Fundamentos do Direito Tributário Madri Marcial Pons pp 221245 2012 Função da Ciência do Direito Tributário do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo Direito Tributário Atual n 29 São Paulo Dialética pp 181204 2013 Juristische Theorie der Argumentation In HELDRICH Andreas et al Orgs FS für ClausWilhelm Canaris zum 70 Geburtstag München Beck pp 963989 2007 BAYERTZ Kurt Four uses of Solidarity In BAYERTZ Kurt Ed Solidarity Dordrecht Kluwer Academic Publishers pp 328 1999 BARROSO Luís Roberto Contramajoritário representativo e iluminista os papéis das supremas cortes e tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas Revista Interdisciplinar de Direito v 16 n 1 p 217266 jun 2018 CALSAMIGLIA Albert Ciencia jurídica In GARZÓN VALDES Ernesto LAPORTA Francisco Eds El Derecho y la Justicia Madrid Trotta pp 17 25 1996 DICIOTTI Enrico Lambigua alternativa tra cognitivismo e scetticismo interpretativo Working Paper 45 pp 381 2003 GUASTINI Riccardo Interpretare e argomentare Milano Dott A Giuffrè Editore 2011 El realismo jurídico redefinido In NÚNEZ Álvaro Coord Modelando la ciência jurídica Lima Palestra pp 87114 2014 LAPORTA Francisco J El Império da la Ley Una visíon actual Madrid Trotta 2007 O OBJETO DA DOGMÁTICA JURÍDICA 372 Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 76 pp 359372 janjun 2020 LEÃO Martha O Direito Fundamental de economizar tributos São Paulo Malheiros 2018 DIAS Daniela Gueiros O conceito constitucional de serviço e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Direito Tributário Atual n 41 São Paulo Instituto Brasileiro de Direito Tributário pp 295316 2019 MacCORMICK Neil Rhetoric and the Rule of Law A Theory of Legal Reasoning Oxford Oxford University Press 2005 MENÉNDEZ José Augustín Justifying Taxes some elements for a General Theory of Democratic Tax Law Dordrecht Kluwer Academic Publishers 2001 MUNOZDARE Véronique Fraternity and Justice In BAYERTZ Kurt Ed Solidarity Dordrecht Kluwer Academic Publishers pp 8197 1999 NINO Carlos Algunos modelos metodologicos de ciencia jurídica Ciudad de México Fontamara 2003 Consideraciones sobre la dogmatica juridica Ciudad de México Ediciones Coyoacán 1989 NÚNEZ Álvaro Ciencia jurídica un mapa conceptual In Idem Coord Modelando la ciência jurídica Lima Palestra pp 1451 2014 ROSS Alf Direito e Justiça 2 ed Trad de Edson Bini Bauru EDIPRO 2007 SANTOS Ramon Tomazela Formalismo e tributação contributo para as regras jurídicas e as razões formais no Direito Tributário Direito Tributário Atual n 40 São Paulo Instituto Brasileiro de Direito Tributário pp 349374 2019 SCHAUER Frederick Thinking like a lawyer a new introduction to legal reasoning Cambridge Harvard University Press 2009 SOUZA Túlio Venturini Deciframe ou te devoro a perspectiva cética do STF no julgamento do RE n 651703PR e seus desdobramentos do conceito de serviço Direito Tributário Atual n 41 São Paulo Instituto Brasileiro de Direito Tributário pp 436461 2019 STEVENSON Charles Leslie Persuasive definitions Mind v 47 n 187 Oxford University Press pp 331350 jul 1938 WALDRON Jeremy The Harm in Hate Speech Cambridge Harvard University Press 2012 Recebido em 22022019 Aprovado em 07102019