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HERMENÊUTICA Jean Grondin O que vem a ser a hermenêutica No sentido clássico a hermenêutica desig nava outrora a arte de interpretar os tex tos sobretudo no seio das disciplinas liga das à interpretação dos textos sagrados ou canônicos a teologia o direito e a filologia No sentido mais estrito a hermenêuti ca serve atualmente para caracterizar o pensamento de autores como Gadamer e Ricoeur 19132005 que desenvolveram uma filosofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa experiência de mundo A terceira grande concepção faz da herme nêutica uma filosofia universal da interpre tação quando a hermenêutica se vê posta a serviço de uma filosofia da existência Pas samos aqui de uma hermenêutica de textos para uma hermenêutica da existência Ao assumir a forma de uma filosofia uni versal do entendimento a hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma re flexão sobre as ciências e por criar uma pretensão universal Veremos aqui que essa universalidade pode assumir várias formas Tradução M arcos M arcionilo Jean Grondin desenvolve neste livro uma concepção da her menêutica fundada na ideia de que o sentido que buscamos entender é sempre o sentido das próprias coisas daquilo que elas querem dizer um sen tido que certamente ultrapassa nossas parcas interpretações e o horizonte limitado mas sempre ampliável de nossa linguagem O autor apresenta muito clara mente as diferentes concepções da hermenêutica Heidegger Bultmann Gadamer Ricoeur Rorty e Vattimo bem como as conexões com a desconstrução Derrida e a crítica das ideolo gias Habermas levando muito em conta a herança da reflexão sobre as ciências sociais Dil they da fenomenològia Hus serl e da leitura de Nietzsche Encontramse aqui as diversas acepções do termo a partir das interrogações iniciais dos pen sadores relativamente ao en tendimento dos textos da arte da linguagem da existência da história para finalmen te aportar na ideia do alcan ce universal da hermenêutica Esse percurso inscreve então a hermenêutica na problemáti ca geral do conhecimento com conseqüências filosóficas e epis temológicas notáveis porque a hermenêutica sempre quis ser uma doutrina da verdade no campo da interpretação EPISTEME 6 editora afiliada ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM CAMBRIA CORPO 1 1 1 5 E IM PRESSA PELA GRÁFICA PAYM EM PAPEL OFFWHITE PARA A PARÁBOLA EDITORIAL EM OUTUBRO DE 2012 J ean G rondin 1955 é fi lósofo e professor canadense especialista nos pensamentos de Kant Gadamer e Heidegger Suas pesquisas concentramse principalmente na hermenêutica na fenomenologia na filosofia clássica alemã e na história da metafísica Ele leciona na Universidade de Montreal des de 1991 e doutorouse com uma tese sobre o conceito de verdade em hermenêutica na Universidade deTübingen em 1982 Ele pode ser considerado o principal sucessor da obra de Gadamer e de Ricoeur no campo da hermenêutica con temporânea Entre suas obras ainda figuram Uuniversalité de 1herméncutique PUF e Le toumant herméneutique de la phénoménologie PUF i V V s cA p qv sV m cf v E p i s t e m e 1 Foucault a coragem da verdade Frédéric Gros org 2 Diversidade cultural e mundialização Armand Mattelart Jjq 3 0 Círculo de Viena Mélika Ouelbani 4 Filosofia da linguagem Sylvain Auroux 5 A lógica Pierre Wagner 6 Hermenêutica Jean Grondin Tradução Marcos Marcionilo V A m H i t í t T T áto0 Título original LHerméneutique Presses Universitaires de France 2006 Traduzido da 2a edição atualizada outubro de 2008 ISBN 9782130570875 E O IÇ Ã O BRASILEIRA E d it o r Marcos M arcionilo C a p a e p r o je to g rAf ic o Andréia Custódio Karina M ota Ana Stahl Zilles Unisinos Angela Paiva Dionisio UFPE Carlos Alberto Faraco UFPR Egon de Oliveira Rangel PUCSP Gilvan Müller de Oliveira UFSC Ipol Henrique Monteagudo Univ de Santiago de Compostela Kanavillil Rajagopalan Unicamp Marcos Bagno UnB Maria Marta Pereira Scherre UFES Rachel Gazolla de Andrade PUCSP Roxane Rojo Unicamp Salma Tannus Muchail PUCSP Stella Maris BortoniRicardo UnB CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ G913h Grondin Jean Hermenêutica Jean Grondin tradutor Marcos Marcionilo São Paulo Parábola Editorial2012 21 cm Epísteme Tradução de lHerméneutique Inclui bibliografia ISBN 9788579340178 1Hermenêutica2Teoria do conhecimentoiTítulollSérie 124866 CDD121 CDU 16 Direitos reservados à PARÁBOLA EDITORIAL Rua Dr M ário Vicente 3 94 Ipiranga 04270000 São Paulo SP pabx 11 50619262 50611522 j fax l1 2 5 89 92 6 3 hom e page w w w parabolaeditorialcom br em ail parabola parabolaeditorialcom br Todos os direitos reservados Nenhum a parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meibs eletrônico ou mecânico inciuindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda R e v is ã o C o n s e l h o e d it o r ia l ISBN 9788579340178 desta edição Parábola Editorial São Paulo outubro de 2012 Â memória de meu pai Dr Pierre Grondin 19252006 SUMARIO introdução 0 QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 9 A coiné relativista de nosso tempo 9 Três possíveis grandes acepções da hermenêutica 11 capítulo i Con cepção clássica da h e r m e n ê u t ic a 17 capítulo II E m erg ên c ia d e um a h e r m en êu t ic a m ais u n iv er sa l no século XIX 2 3 1 Friedrich Schleiermacher 1 7 6 8 1 8 3 4 23 2 Wilhelm Dilthey 1 8 3 3 1 9 1 1 32 capítulo iii Vira d a ex is t e n c ia l da h e r m e n ê u t ic a em h e id eg g er 3 7 1 Uma hermenêutica da facticidade 38 2 0 estatuto da hermenêutica em S er e tem po 42 3 Uma nova hermenêutica do entender 46 4 Do círculo do entendimento 50 5 A última hermenêutica de Heidegger 51 capítulo iv Contribuição d e Bultmann ao avanço da h erm en êu tica 5 5 capítulo v Ha n sGeorg Ga d a m e r um a h e r m e n ê u t ic a do ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 1 1 Uma hermenêutica não metodológica das ciências humanas 61 2 O modelo da arte o acontecimento do entendimento 65 3 Os préjuízos condições do entendimento a reabilitação da tradição 67 4 O trabalho da história e sua consciência 70 5 A fusão dos horizontes e sua aplicação 73 6 A linguagem objeto e elemento da realização hermenêutica 75 sumário I 7 capítulo VI He r m e n ê u t ic a e c rítica das id e o l o g ia s 8 1 1 A reação metodológica de Betti 81 2 A contribuição de Gadamer segundo Habermas 83 3 A crítica a Gadamer por Habermas 86 capítulo vil Pau l Ricceur um a h e r m e n ê u t ic a do si histórico d ia n te do co n flito das in t e r p r e t a ç õ e s 9 3 1 Um percurso arborescente 93 2 Uma fenomenologia tornada hermenêutica 97 3 0 conflito das interpretações a hermenêutica da confiança e da suspeita100 4 Uma nova hermenêutica da explicação e do entendimento inspirada na noção de texto103 5 A hermenêutica da consciência histórica106 6 Uma fenomenologia hermenêutica do homem capaz109 capítulo viu He r m e n ê u t ic a e d esco n stru çã o1 1 3 1 Desconstrução hermenêutica e interpretação em Derrida 113 2 O encontro de Derrida e Gadamer em Paris117 3 Os desdobramentos do encontro 125 4 O último diálogo entre Derrida e Gadamer128 capítulo ix HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 1 1 Rorty a despedida pragmatista da noção de verdade131 2 Vattimo por um niilismo hermenêuticor137 conclusão FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA1 4 1 BIBLIOGRAFIA1 4 9 8 H ERM EN ÊUTICA introdução O QUE PODE SERA HERMENÊUTICA A COINÉ RE LATI VISTA DE NOSSO TEM PO az algum tempo Jean Bricmont e Alan Sokal montaram uma farsa a fim de denunciar o char latanismo que segundo eles frequentemente grassa nas ciências humanas Eles submeteram um ar tigo coalhado de absurdos à revista americana Social Text título que sugere um pouco que toda produção cultural ou científica pode ser considerada como um simples texto social logo como uma interpretação ou uma construção ideológicas 0 artigo pretendia de monstrar que a física quântica apesar de sua pretensão à objetividade não passava de uma construção social Apinhado de referências às equações de Einstein mas também aos mais eminentes mestres da desconstru ção entre os quais Lacan e Derrida o artigo foi acei to e publicado Os autores imediatamente divulgaram a fraude que provocou numerosas reações no mundo1 1 J Bricmont e A Sokal Imposturas intelectuais Rio de Janeiro Record 2006 O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 9 Se essa polêmica pode nos servir aqui de ponto de parti da é unicamente porque o termo hermenêutica figura va no título do artigo submetido à revista Transgredir fronteiras rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica Estejamos certos a ideia ininteli gível de uma hermenêutica transformativa não reme te a nada de muito preciso Mas ao se valerem do ter mo hermenêutica os autores retomavam um termo da moda que às vezes serve para descrever o pensamento contemporâneo pósmoderno e relativista justamente aquele que Bricmont e Sokal buscavam denunciar Pois é então justamente esse um dos sentidos possí veis do termo hermenêutica designar um espaço inte lectual e cultural onde não há verdade porque tudo é uma questão de interpretação Essa universalidade do reino interpretativo encontrou sua primeira expressão na afirmativa fulminante de Nietzsche Não há fatos só interpretações2 É dessa hermenêutica relativista que Gianni Vattimo pôde dizer que ela era a coiné a língua comum de nosso tempo3 Mesmo assim como lembraremos todo o tempo essa concepção se encontra nos antípodas daquilo que a hermenêutica sempre quis ser uma doutrina da ver dade no campo da interpretação A hermenêutica clás sica realmente quis propor regras a fim de combater a arbitrariedade e o subjetivismo nas disciplinas que têm a ver com a interpretação Uma hermenêutica votada à 2 F Nietzsche A vontade de poder n 481 3 G Vattimo Lherméneutique comme nouvelle koinè in Éthique de Vinterprétation Paris La Découverte 1991 pp 4558 1 0 H ERM EN ÊUTICA arbitrariedade e ao relativismo encarna consequente mente o mais completo dos contrassensos Contudo o percurso que leva da concepção clássica à hermenêuti ca pósmoderna não é destituído de lógica Ele segue paralelamente a certa ampliação do campo da inter pretação mas do qual não se tem certeza se ele leva necessariamente ao relativismo pósmoderno T r ê s p o s s í v e i s g r a n d e s a c e p ç õ e s DA HERMENÊUTICA No sentido mais restrito e mais usual do termo a herme nêutica serve atualmente para caracterizar o pensamen to de autores como HansGeorg Gadamer 19002002 e Paul Ricoeur 19132005 que desenvolveram uma filo sofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa xperiência de mundo De um lado esses pensamentos marcaram grande parte dos maiores debates intelec tuais que balizaram a segunda metade do século XX es truturalismo crítica das ideologias desconstrução pós modernismo recepções que fazem parte daquilo que podemos chamar de o pensamento hermenêutico con temporâneo De outro os pensamentos de Gadamer Ri cceur e de seus herdeiros frequentemente se vinculam à tradição mais antigk da hermenêutica quando ela ainda não designava uma filosofia universal da interpretação e sim simplesmente a arte de interpretar corretamente os textos Mas como essa concepção mais antiga é sem pre pressuposta e discutida pela hermenêutica mais re cente é preciso levála em conta em uma apresentação O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 1 1 de conjunto da hermenêutica Desse modo podemos distinguir três grandes acepções possíveis da herme nêutica que se sucederam nõ decorrer da história mas que se mantêm integralmente como concepções abso lutamente atuais e defensáveis da tarefa hermenêutica 1 No sentido clássico do termo a hermenêutica desig nava outrora a arte de interpretar os textos Essa arte se desenvolveu sobretudo no seio das disciplinas liga das à interpretação dos textos sagrados ou canônicos a teologia que elaborou uma hermeneutica sacra o direito hermeneutica iuris e a filologia hermeneutica profana A hermenêutica desempenhava então uma função auxiliar no sentido de que vinha secundar uma prática da interpretação que tinha necessidade sobre tudo de um socorro hermenêutico quando tinha de en frentar passagens ambíguas ambigua ou chocantes Ela possuía um objetivo essencialmente normativo propunha regras preceitos ou cânones que permitis sem bem interpretar os textos A maioria dessas regras eram tomadas de empréstimo da retórica uma das ci ências fundamentais do trivium ao lado da gramática e da dialética e no seio da qual encontravamse com fre quência reflexões hermenêuticas sobre a arte de inter pretar É esse o caso de Quintiliano 30100 que trata da exegesis enarratio em seu De institutione oratoria 1 9 mas especialmente Agostinho 354430 que compilou regras para a interpretação dos textos em seu tratado sobrei doutrina cristã 396426 que marcou toda a história da hermenêutica4 Essa tradição passou 4 Agostinho La doctrine chrétienne Paris Institut détudes augusti niennes 1997 1 2 H ERM EN ÊUTICA por uma importante renovação no protestantismo que deu origem a vários tratados de hermenêutica em sua maioria inspirados na Rhetorica 1519 de Melanchton 14971560 Essa tradição que faz da hermenêutica uma disciplina auxiliar e normativa nas ciências que praticam a interpretação persistiu até Friedrich Sch leiermacher 17681834 Mesmo que ele ainda faça parte dessa tradição seu projeto de uma hermenêu tica mais universal anuncia uma segunda concepção da hermenêutica que será inaugurada sobretudo por Wilhelm Dilthey 18331911 2 Dilthey conhece bem a tradição mais clássica da hermenêutica e sempre a pressupõe sem deixar de enriquecêla com uma nova tarefa se a hermenêutica se inclina sobre as regras e os métodos das ciências do entendimento ela poderia servir de fundamento meto dológico a todas as ciências humanas letras história teologia filosofia e aquilo que hoje se chama de as ci ências sociais A hermenêutica se torna assim uma reflexão metodológica sobre a pretensão de verdade e o estatuto científico das ciências humanas Essa reflexão se eleva contra o pano de fundo do desenvolvimento pelo qual passaram as ciências puras no século XIX su cesso amplamente atribuído ao rigor de seus métodos diante dos quais as ciências humanas parecem muito deficientes Se as ciências humanas quiserem se tornar ciências respeitáveis devem basearse em uma meto dologia que cabe à hermenêutica fazer surgir 3 A terceira grande concepção nasceu muito clara mente em reação a essa compreensão metodológica da hermenêutica Ela assume a forma de uma filosofia uni O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 1 3 versai da interpretação Sua ideia fundamental prefi gurada no último Dilthey é que o entendimento e a in terpretação não são apenas métodos encontráveis nas ciências humanas mas processos fundamentais que podemos encontrar no próprio núcleo da vida A inter pretação surge então cada vez mais como uma carac terística essencial de nossa presença no mundo Essa ampliação do sentido da interpretação é responsável pelo avanço do qual a hermenêutica do século XX se beneficiou Esse avanço pode invocar dois padrinhos um padrinho anônimo Nietzsche anônimo porque ele não falou muito de hermenêutica e sua filosofia uni versal da interpretação e um padrinho mais evidente em Heidegger mesmo que ele defenda uma concepção bem particular da hermenêutica em ruptura com a hermenêutica clássica e metodológica para ele a her menêutica não tem inicialmente a ver com textos mas com a própria existência que já é penetrada por inter pretações que a hermenêutica pode esclarecer A her menêutica se vê então posta a serviço de uma filosofia da existência chamada a um autodespertar Passamos aqui de uma hermenêutica de textos para uma her menêutica da existência A maior parte dos grandes representantes da herme nêutica contemporânea Gadamer Ricoeur e seus her deiros situamse na trilha de Heidegger mas não se guiram realmente sua via direta de uma filosofia da existência Eles preferiram retomar o diálogo com as ciências humanas mais ou menos negligenciado por Heidegger Desse modo reataram com a tradição de Schleiermacher e Dilthey sem com isso subscrever a 1 4 H ERM EN ÊUTICA ideia de que a hermenêutica estava por princípio in vestida de uma função metodológica Seu objetivo era especialmente desenvolver uma melhor hermenêutica das ciências humanas aliviada do paradigma exclusi vamente metodológico que faz mais justiça à dimen são lingüística e histórica do entendimento humano Ao assumir a forma de uma filosofia universal do en tendimento essa hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma reflexão sobre as ciências para criar uma pretensão univenal Veremos aqui que essa uni versalidade pode assumir várias formas O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 1 5 capítulo I CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA O termo hermeneutica só veio a lume no século XVII quando o teólogo estraburguense Jo hann Conrad Dannhauer o inventou para no mear o que se chamava antes dele de Auslegungslehre Auslegekunst ou a arte da interpretação Dannhauer foi também o primeiro a utilizar o termo no título de uma obra em sua Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum de 1564 título que resume por si só o sentido clássico da disciplina a hermenêutica sagrada ou seja o método para inter pretar exponere expor explicar os textos sacros Se há necessidade de um método desses é porque o senti do das Escrituras nem sempre é tão claro quanto o dia A interpretação exponere interpretari é aqui o méto do ou a operação que permite alcançar o entendimento do sentido o intelligere É importante gravar bem esse vínculo de finalidade entre a interpretação e o entendi mento porque os termos às vezes assumirão sentidos muito diversos na tradição hermenêutica posterior es pecialmente em Heidegger CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA 1 7 0 termo interpretação vem do verbo grego hermeneuein que tem dois sentidos importantes o termo designa ao mesmo tempo o processo de elocução enunciar dizer afirmar algo e o da interpretação ou de tradução Nos dois casos estamos diante de uma transmissão de sen tido que pode se operar em duas direções ela pode 1 ir do pensamento para o discurso ou 2 remontar do discurso para o pensamento Atualmente só falamos de interpretação para caracterizar o segundo processo que remonta do discurso para o pensamento que se en contra por trás mas os gregos já pensavam a elocução como um processo hermenêutico de mediação de sen tido designado então pela expressão ou pela tradução do pensamento em palavras O termo hermeneia serve portanto para nomear o enunciado que afirma algo 0 segundo livro do Organon de Aristóteles dedicado ao enunciado é um Peri hermeneias que foi traduzido em latim por De interpretatione Não se trata é claro da interpretação no sentido em que nós a entendemos ou seja como a explicação do discurso que retorna a sua vontade de sentido mas ao contrário das componentes da própria elocução já en tendida como transmissão de sentido Mas se a compre ensão grega do termo é esclarecedora é porque ela nos ajuda a ver que o processo de interpretação deve nem mais nem menos inverter a ordem da elocução ordem que vai do pensamento ao discurso do discurso inte rior logos endiathetos ao discurso exteriorlogos prophorikos como o dirão soberbamente os estoicos Podemos então distinguir aqui o esforço hermenêutico de explicação do sentido que remonta do discurso ex 1 8 I H ERM EN ÊUTICA terior para seu interior do esforço retórico de expres são que antecede a tarefa propriamente hermenêutica e lhe dá todo o seu sentido não se pode querer inter pretar uma expressão a fim de compreender seu senti do exceto porque se pressupõe que ela quer dizer algo que ela é a expressão de um discurso interior Então não é por acaso que as principais regras herme nêuticas foram frequentemente extraídas da retórica a arte do bem dizer que se funda na ideia de que o pen samento que se procura comunicar deve ser apresen tado de maneira eficaz no discurso É especialmente o caso da importante regra hermenêutica do todo e das partes segundo a qual as partes de um escrito devem ser entendidas a partir do todo constituído por um dis curso e por sua intenção geral que é a inversão daquilo que Platão apresenta como uma regra de composição retórica em seu Fedro 264 c um discurso deve ser composto como um organismo vivo no qual as partes estão ordenadas a serviço do todo É claro que o her meneuta deve conhecer perfeitamente bem as grandes figuras do discurso os tropos da retórica se quiser interpretar corretamente os textos Os grandes teóri cos da concepção clássica da hermenêutica quase sem pre foram professores de retórica É o caso de santo Agostinho profundamente marcado pela retórica de Cícero Antes de ser o teórico da inter pretação ele foi seu praticante Encontramos em san to Agostinho várias interpretações expositiones dos textos sagrados especialmente das Epístolas e do Gê nesis e já em suas Confissões cujos três últimos livros propõem uma interpretação dos primeiros versículos CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA 1 9 do Gênesis Em seu comentário literal do Gênesis ele retoma a doutrina clássica que remonta a Orígenes c 185254 e a Fílon de Alexandria c 1354 segundo a qual as Escrituras comportariam um quádruplo sen tido Em todos os livros santos importa distinguir as verdades eternas que são inculcadas aeterna os fatos que são narrados facta os acontecimentos futuros futura as regras para as ações agenda que são pres critas ou aconselhadas1 Mas para entender essas verdades esses fatos os acon tecimentos que virão e as máximas de ação há neces sidade de algumas regras prsecepta de interpretação que Agostinho apresenta em seu De doctrina christiana Seu princípio fundamental é que toda ciência tem a ver ou com coisas res ou com signos signa Claro que é necessário reconhecer uma prioridade à coisa sobre os signos dado que o conhecimento dos signos pressupõe necessariamente o conhecimento da coisa por eles de signada 0 primeiro livro da Doctrina christiana tam bém será dedicado à exposição da coisa que quer ser apresentada no texto bíblico a saber o relato da criação fundada no Deus trinitário e a salvação que ele propõe Agostinho distingue então dois tipos de coisas aquelas das quais fruímos por elas mesmas frui que têm seu fim em si mesmas e aquelas que utilizamos utí para outro fim Apenas as coisas eternas oferecem uma fruição real e o conhecimento delas corresponde ao Soberano Bem ao summum bonum Segundo Agostinho o fim da Encar 1 Agostinho La Genèse au sens littéral t i Paris Desclée 1972 p 83 2 0 H ERM EN ÊUTICA nação era exatamente ensinar essa diferença que se ex prime no princípio do amor que é em primeiro lugar o amor de Deus por sua criatura Daí Agostinho extrai um primeiro princípio hermenêutico é preciso interpretar todos os textos em função desse mandamento de amor que remete tudo o que é cambiante ao que é imutável Os dieta ditos e signa signos das Escrituras devem ser entendidos em vista dessa res essencial Mas para entender em que os signos remetem a essa res é pre ciso estudar as ciências particularmente a gramática e a retórica A retórica também nos ensina a discernir os tropos as figuras de estilo da Bíblia e a distinguir o sentido próprio do sentido figurado As regras de inspiração retórica da Doctrina christiana serviram de fundamento a toda a exegese medieval Amplamente retomadas pelos primeiros grandes teóricos da herme nêutica protestante Melanchton Flácio Dannhauer elas foram mantidas até Schleiermacher quando a her menêutica começa a adquirir nova abrangência CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA 2 1 capítulo II EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX i F r i e d r i c h S c h l e i e r m a c h e r 17 6 8 18 3 4 C ontemporâneo dos grandes pensadores do idealismo alemão Fichte Hegel e Schelling e mais próximo do romantismo de Friedri ch Schlegel Schleiermacher foi ao mesmo tempo um grande filólogo um teólogo expressivo um filósofo e um teórico da hermenêutica Em sua posição de filólo go ele traduziu os diálogos de Platão na íntegra para 0 alemão para os quais redigiu introduções fundamen tais que marcam os estudos platônicos até hoje Mas foi antes de tudo no campo da teologia que ele fez car reira Depois de ter publicado seus poderosos discur sos Sobre a religião em 1799 onde defende a ideia de que a fé exprime um sentimento de dependência total segundo uma leitura subjetivista que por sinal irá ca racterizar sua teologia e também sua hermenêutica ele foi nomeado professor de teologia em Halle em 1804 antes de se tornar em 1810 o primeiro decano EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 2 3 da Faculdade de Teologia da nova Universidade de Ber lim Ele publicou uma importante obra de dogmática sobre A fé cristã em 18211822 Mas Schleiermacher também deu cursos de filosofia foram publicadas pos tumamente sua Dialética 1839 sua Ética 1836 e sua Estética 1842 Mas ele só nos interessa aqui enquanto hermeneuta É importante saber que Schleiermacher se formou em Halle que fora um grande centro de hermenêutica no sé culo XVIII e onde se sucederam antes dele grandes mes tres da hermenêutica racionalista e pietista Schleier macher propriamente nunca publicou uma exposição sistemática de sua hermenêutica Durante sua vida ele publicou apenas o texto dos dois discursos que pronun ciou na Academia de Berlim em 1829 Sobre o conceito da hermenêutica a partir das sugestões de F A Wolf e do tratado de Ast Mas ao longo do tempo em que le cionou em Halle e em Berlim Schleiermacher dedicou vários cursos à hermenêutica Inspirandose em ma nuscritos de seu mestre seu aluno Lücke publicou em 1838 um apanhado das ideias de Schleiermacher sob o título Hermenêutica e crítica sobretudo em vista do Novo Testamento título que o inscreve na tradição clássica da hermenêutica crítica designa aqui a disciplina filoló gica que se interessa pela edição crítica dos textos A exemplo de todos os grandes teóricos da hermenêu tica Schleiermacher inspirase em grande medida na tradição retórica Já no princípio de sua hermenêuti ca realmente lemos que todo ato de entendimento é a inversão de um ato de discurso em virtude da qual deve ser trazido à consciência o pensamento que se en 2 4 I H ERM EN ÊUTICA contra na base do discurso1 Se é verdade que todo discurso baseiase em um pensamento anterior2 não resta dúvida de que a primeira tarefa do entender é reconduzir a expressão à vontade de sentido que a anima Buscase no pensamento a mesma coisa que o autor quis exprimir A hermenêutica pode ser compre endida então como a inversão da retórica Desse modo a tarefa é entender o sentido do discurso a partir da língua Tudo o que se deve pressupor em hermenêutica dirá Schleiermacher em um adágio vo tado a uma grande posteridade é a linguagem3 Des tinada à linguagem a hermenêutica se divide em duas grandes partes a interpretação gramatical que enten de todo discurso a partir de uma língua dada e de sua sintaxe e a interpretação psicológica eventualmente chamada de técnica que vê no discurso sobretudo a expressão de uma alma individual Se o intérprete deve sempre partir do quadro global da língua não é me nos claro que as pessoas nem sempre pensam a mesma coisa sob as mesmas palavras o que é verdadeiro es pecialmente das criações geniais que enriquecem o te souro da língua Do contrário tudo seria decorrência da gramática suspira Schleiermacher A interpretação psicológica encarna sem dúvida a con tribuição mais original de Schleiermacher Gadamer insistirá nisso mas para criticar o que ele classificará 1 F Schleiermacher Hermeneutik und Kritik HuK M Frank org Frankfurt Suhrkamp 1977 p 76 Herméneutique M Simon trad Pa ris Labor Fides p 101 trad C Berner Paris Le Cerf p 114 2 HuK 78 trad Simon p 102 trad Berner p 115 3 Herméneutique trad Simon p 57 trad Berner p 21 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX 2 5 de deriva psicologizante que levaria a perder de vista a intenção de verdade do entendimento Se o próprio Schleiermacher deulhe desde o princípio o nome de interpretação técnica é porque ela busca entender a arte techné bem específica de um autor sua virtuosi dade característica A esperança de Schleiermacher é desenvolver uma hermenêutica universal que ainda não existia A her menêutica como arte do entender ainda não existe sob uma forma geral mas existem apenas várias herme nêuticas especiais4 0 objetivo aqui é uma hermenêu tica geral que não se limitaria a um setor restrito como é o caso das hermenêuticas especiais do Novo Testa mento ou do direito E se a hermenêutica deve adquirir um estatuto universal é enquanto arte geral do enten der Kunst frequentemente Kunstlehre des Verstehens A tônica reservada ao entender é absolutamente inédi ta Até então a hermenêutica era mais encarada como uma arte da interpretação ars interpretandi Auslegun gslehre que devia conduzir ao entendimento Agora é o próprio ato de entender que tem necessidade de ser assegurado por uma arte insistência na qual podemos reconhecer o momento subjetivo já visível na teologia do sentimento de Schleiermacher Essa ênfase segue paralelamente a uma temática típica de Schleiermacher a da universalização do fenômeno do desentendimento possível O que é que nos permi te dizer que determinado entendimento é justo Nesse 4 HuK 75 trad Simon p 99 trad Berner p 113 2 6 H ERM EN ÊUTICA sentido Schleiermacher distingue duas compreensões bem distintas da interpretação a Uma prática distensa que parte da ideia segundo a qual o entendimento se produz por si mesmo Nessa prática o desentendimento é sobretudo a exceção Essa prática da hermenêutica exprime o propósito negativamente é preciso evitar o erro de entendimento Reconhecemos aqui a concepção clássica da hermenêutica que fazia dela uma ciên cia auxiliar à qual só se recorria para interpretar passagens ambíguas b Uma prática estrita partiria ao contrário do fato de que o desentendimento se produz por si mesmo e que o entendimento deve ser querido e buscado para cada ponto5 Essa distinção provoca conseqüências maiores A prá tica distensa da interpretação encontrase aqui assimi lada a uma prática intuitiva que não obedece a regra alguma nem a arte alguma Ora ela pressupõe que o entendimento se produz espontaneamente E se o de sentendimento fosse algo natural que se devesse com bater a todo momento Essa será a pressuposição de Schleiermacher O entendimento deverá então pro ceder em todos os pontos seguindo as regras estritas de uma arte 0 trabalho da hermenêutica não deve in tervir apenas quando a compreensão se torna incerta mas desde os primeiros começos de todo empreendi mento que visa compreender um discurso 5 HuK 92 trad Simon p 111112 trad Berner p 122123 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 2 7 Dirá Schleiermacher que a hermenêutica carece por tanto de mais método die hermeneutischen RegeJn müssen mehr Methode werderi6 Desse modo Schleier macher abre caminho para uma compreensão mais resolutamente metódica da hermenêutica que Gada mer também criticará a fim de conter o perigo do de sentendimento potencialmente universal A partir de então a hermenêutica deixará de ocupar uma função auxiliar para se tornar a condição sine qua non de todo entendimento digno desse nome No sentido estrito ela passará a ser uma Kunstiehre a doutrina de uma arte do entender É por isso que a operação fundamental da hermenêu tica ou do entendimento assumirá a forma de uma re construção A fim de bem entender um discurso e de conter a deriva constante do desentendimento tenho de poder reconstruílo a partir de seus elementos como se eu fosse seu autor A tarefa da hermenêutica será dessa maneira enten der o discurso de início tão bem e posteriormente melhor que seu autor seguindo uma máxima frequen temente retomada por Schleiermacher com varian tes Essa máxima sem dúvida foi usada pela primeira vez por Kant que dizia em sua Crítica da razão pura Nada de surpreendente há em se poder entender Pla tão melhor do que ele mesmo se entendeu inclusive porque ele próprio determinou insuficientemente seu conceito A 314 B 370 Schleiermacher fará disso 6 HuK 84 acréscimo não traduzido por M Simon p 106 nem por Berner p 118 2 8 H ERM EN ÊUTICA um princípio geral de sua hermenêutica que seguirá a via de uma explicação genética a partir de então en tender quer dizer reconstruir a gênese de vertente genética e psicologizante que caracterizará aliás as interpretações que começarão a florescer no século XIX A ideia vem do idealismo alemão entendemos algo quando apreendemos sua gênese a partir de um primeiro princípio Para o romântico Schleiermacher esse primeiro princípio é a decisão germinal do escri tor Dessa maneira Schleiermacher confere um aspec to psicológico à hermenêutica Em seus discursos de 1829 ele dirá que a tarefa da hermenêutica consiste em reproduzir o mais perfeitamente possível todo o processo da atividade de composição do escritor7 Mantendose fiel a sua vocação clássica dedicada à interpretação de textos a hermenêutica adquire com Schleiermacher um alcance mais universal Um primeiro momento de universalidade se anuncia no projeto de uma hermenêutica geral que deveria preceder a título de arte do entender as hermenêuti cas especiais consagradas a tipos de textos definidos é essa versão da universalidade a que Schleiermacher defende Mas uma segunda forma de universalidade atualizase na ideia segundo a qual a hermenêutica deve poder ser aplicada a todo justo entendimento Seguindo a prática rigorosa da interpretação que ele preconiza Schleiermacher enquanto romântico que sabe que alguém sempre pode ficar prisioneiro de suas próprias representações universaliza aqui o risco do 7 HuK 321 Simon 186 Berner 167 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX j 2 9 desentendimento possível É ele que leva a uma com preensão mais metódica e mais reconstrutora da tarefa v hermenêutica Um terceiro elemento de universalidade pode ser discernido na ideia desenvolvida no discurso de 1829 segundo a qual a hermenêutica não deve se limitar apenas aos textos escritos mas também deve poder ser aplicada a todos os fenômenos de entendi mento A hermenêutica não deve estar simplesmente limitada às produções literárias porque eu quase sem pre me surpreendo no decorrer de uma conversa fami liar fazendo operações hermenêuticas a solução do problema para o qual buscamos justamente uma teoria não está de maneira alguma ligada ao fato de o discurso ser fixado para os olhos pela escrita mas surgirá em to dos os lugares onde venhamos a perceber pensamentos ou sucessões de pensamento por meio das palavras8 A partir daí tudo pode se tornar objeto de hermenêu tica Essa universalização avança paralelamente com uma ampliação da estranheza Se o discurso falado não fazia parte da alçada da hermenêutica clássica era jus tamente porque ele era contemporâneo imediatamen te presente e portanto diretamente inteligível Apenas o discurso escrito e mais especialmente o dos autores antigos e remotos comportava um elemento de estra nheza que requeria uma mediação hermenêutica Schleiermacher universaliza essa dimensão o discurso de outros mesmo que seja meu contemporâneo en cerra sempre um momento de estranheza A primeira condição da hermenêutica é efetivamente que algo de 8 HuK 314 Simon 177 Berner 159 3 0 H ERM EN ÊUTICA estranho deve ser entendido segundo uma ideia que Schleiermacher toma emprestada de Ast Essa pro blemática para não dizer essa aporia leva Schleier macher a abordar a questão do círculo do todo e das partes que mais tarde dará nascimento ao círculo hermenêutico Schleiermacher conhecia bem essa re gra simultaneamente retórica e hermenêutica do todo e das partes mas ele se pergunta expressamente até onde se pode ir na utilização dessa regra9 Isso porque ela pode ser ampliada a horizontes de sentido sem pre mais englobantes uma frase deve ser entendida a partir de seu contexto o contexto deve ser entendido a partir do todo de um livro todo que deve ser enten dido a partir da obra e da biografia de um autor que por sua vez deve ser entendido a partir de sua época histórica época que só pode ser entendida a partir da história em seu conjunto Pouco antes de Schleierma cher o hermeneuta Ast10 aluno de Schelling realmente reconhecera uma extensão infinita a essa regra é ne jj cessário entender o Espírito de uma época se se quiser interpretar uma obra Sçhleiermacher se mostrará por sua vez preocupado em limitar a potencialização do círculo do todo e das partes Ele estabelecerá seus mar cos objetivos e subjetivos Do ponto de vista objetivo dirá ele a obra deve ser inicialmente entendida a partir do gênero literário do qual faz parte Mas do ponto de vista subjetivo uma obra também é o feito de seu autor ela faz parte do todo de sua vida cujo conhecimento deve esclarecer o entendimento de sua obra 9 HuK 330 Simon 194 Berner 174 10 F Ast Les príncipes fondamentaux de la grammaire de Vherméneu tique et de Ia critique Landshut 1808 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 3 1 2 W ilh e lm D i l t h e y 18 3 3 1 9 1 1 A hermenêutica que ainda era amplamente considera da como uma disciplina filológica em Schleiermacher receberá um sentido mais metodológico em Dilthey A essa altura entendemos por metodologia uma reflexão 5 sobre os métodos constitutivos de um tipo de ciência 0 problema de uma justificação metodológica das ciências humanas ainda não existia para Schleiermacher Ele só veio a se tornar urgente na segunda metade do século XIX diante do prodigioso impulso pelo qual passaram as ciências exatas cuja metodologia teria sido proposta por Kant Kant é então amplamente tido como aquele que teria aplicado um golpe mortal à metafísica tradicional ciência impossível do suprassensível e que teria trans formado a filosofia em uma metodologia das ciências exatas Mas o que se passava com as ciências humanas especialmente a história e a filologia que conheceram um inegável desenvolvimento no século XIX Se elas fo rem realmente ciências devem se basear em métodos que fundamentem seu rigor É essa reflexão metodo lógica que Dilthey espera poder fazer sob a palavra de ordem de inspiração kantiana de uma crítica da razão histórica Dilthey apresentou 0 projeto dessa crítica no primeiro tomo de sua Introdução às ciências humanas de 1883 que foi 0 único volume a ser publicado durante sua vida Ao se situar sob 0 patrocínio de uma crítica da ra zão histórica cem anos depois da Crítica da razão pura de Kant Dilthey se propõe a expor ali uma fundamenta ção lógica epistemológica e metodológica das ciências humanas Ela se propõe a fundar as ciências do enten dimento sobre categorias que lhes sejam próprias lógi 3 2 H ERM EN ÊUTICA ca sobre uma teoria do conhecimento epistemologia e sobre uma teoria do método específico Nessa época Dilthey está em luta contra dois grandes adversários de um lado contra o positivismo empírico de Auguste Comte ou de John Stuart Mill que afirmam que não exis tem métodos específicos às ciências humanas e que elas devem replicar a metodologia das ciências da natureza se quiserem ser ciências de outro contra a metafísica da história da filosofia idealista e de Hegel em especial que pretendia reconstruir a priori o curso da história se gundo as exigências de seu sistema filosófico Mais ou menos o que Kant fizera lutando contra o ceticismo em pírico de Hume e contra a metafísica visionária Dilthey buscará conduzir o navio da razão histórica por entre os dois escolhos do positivismo e do idealismo Em vista de fundar a especificidade metodológica das ci ências humanas Dilthey se inspira na distinção do histo riador Droysen 18081884 entre o explicar Erkláren e o entender Verstehen Enquanto as ciências puras tentam explicar os fenômenos a partir de hipóteses e de leis gerais as ciências humanas querem entender uma individualidade histórica a partir de suas manifestações externas A metodologia das ciências humanas será des sa forma uma metodologia do entendimento Geralmente lembramos que o termo entendimento e a ideia de uma teoria geral do entender detinham um papel fundamental em Schleiermacher Entre seus muitos méri tos Dilthey era um fino conhecedor da obra de Schleier macher Depois de ter defendido uma tese de doutorado sobre a ética schleiermacheriana em 1864 e redigido um estudo fundamental sobre o sistema hermenêutico de EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 3 3 Schleiermacher que permaneceu inédito até 1966 Dil they publicou uma volumosa biografia de Schleiermacher em 1870 Mesmo que a hermenêutica tenha ficado abso lutamente ausente de sua Introdução às ciências humanas de 1883 ela ocupa um lugar de primeira grandeza em um estudo definitivo de 1900 que abre o século da herme nêutica sobre A origem da hermenêutica Dilthey esbo ça ali em grandes traços a história de uma disciplina ain da muito amplamente desconhecida do grande público e da qual Schleiermacher terá sido para ele o maior teórico mas ele lhe confere uma nova função ligada ao grande problema da metodologia das ciências humanas Tratase agora de resolver a questão do conhecimento científico dos indivíduos e até mesmo das grandes for mas da existência humana singular em geral Um conhe cimento desses é possível e que meios temos para che gar a ele E se as ciências morais sistemáticas as ciências humanas extraem leis gerais dessa apre ensão do singular os processos de entendimento e de interpretação também não deixam de estar em sua base Do mesmo modo sua certeza tanto quanto a da história depende da questão de saber se a compreensão do sin gular pode adquirir uma validade universal11 É essa a questão a que a hermenêutica procura responder entendendose hermenêutica como a arte da interpreta ção das manifestações vitais fixadas por escrito O obje tivo da interpretação é entender a individualidade a par tir de seus sinais exteriores Chamamos entendimento o processo pelo qual conhecemos um interior pelo auxílio 11 W Dilthey Origines et développement de lherméneutique 1900 Le monde de lesprit Paris Aubier 1 9 4 7 11 p 313 3 4 H ERM EN ÊUTICA de sinais percebidos desde o exterior por nossos senti dos Esse interior que se trata de entender corresponde ao sentimento vivido Erlebnis pelo autor sentimento que não é acessível diretamente mas apenas por seus si nais exteriores O processo de entendimento consiste em recriar em si o sentimento vivido pelo autor partindo de suas expressões Remontando de uma expressão à Er lebnis do exterior a seu interior o entendimento inverte aqui o processo criador do mesmo modo como a tarefa hermenêutica da interpretação podia ser vista como a inversão do ato de expressão retórica A tríade da expe riência da expressão e do entendimento aparece desde então como constitutiva da hermenêutica das ciências humanas Se assim é a hermenêutica poderia ser investi da de uma nova tarefa sugere Dilthey 0 papel essencial da hermenêutica será estabelecer teoricamente contra a intrusão constante do arbitrário romântico e do subjeti vismo cético no campo da história a validade universal da interpretação base de toda certeza histórica12 Essa meta subsistirá amplamente como um programa na obra de Dilthey mas a ideia segundo a qual ela po deria servir de base metodológica às ciências humanas conferiu à hermenêutica uma pertinência e uma visibi lidade que antes dele ela realmente nunca conhecera Até o dia de hoje destacados pensadores como Emilio Betti e E D Hirsch ainda veem na hermenêutica uma reflexão metodológica sobre o estatuto científico das ciências humanas Para eles uma hermenêutica que renunciasse a essa tarefa perderia toda a razão de ser 12 Idem ibidem pp 332333 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 3 5 Mas há ainda outra ideia na última obra de Dilthey que iria propulsionar o essencial da herança hermenêu tica em uma direção muito distinta Tratase da ideia segundo a qual o entendimento que se desdobra nas ciências humanas é justamente o prolongamento de uma busca de entendimento e de formulação que dis tingue de antemão a vida humana e histórica como tal A própria vida se articula dirá Dilthey através das várias formas de expressão que as ciências humanas buscam entender recriando a experiência da qual elas brotam Instalada sobre uma filosofia universal da vida histórica a intuição fundamental de Dilthey prenhe de conseqüências é que o entendimento e a interpretação não são apenas métodos característicos das ciências humanas mas traduzem uma busca de sentido e de ex pressão ainda mais originária da própria vida Esse caráter hermenêutico da própria vida era con firmado pelas ideias quase simultaneamente desenvol vidas pelo último Nietzsche em sua filosofia universal da vontade de potência para a qual não existem fatos e sim apenas interpretações 0 que se perfila em Nietzsche assim como nos últimos trabalhos de Dilthey é então um novo rosto da universalidade da hermenêutica ou do reino interpretativo mas que parece questionar justamente o sonho diltheyano de uma fundamentação epistemológica das ciências humanas Para a maioria dos herdeiros de Dilthey Heidegger e Gadamer esse sonho parecerá incompatível com o caráter essencial mente histórico da vida no qual desembocam os últi mos trabalhos de Dilthey Ele confrontará a hermenêu tica com novas tarefas 3 6 H ERM EN ÊUTICA capítulo III VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER V epois de ter sido até o século XVIII uma arte II da interpretação de textos depois uma meto J dologia das ciências humanas no século XIX a hermenêutica se transformará em algo completamen te diferente no século XX uma filosofia mas também um termo cada vez mais em voga É o que ocorre ini cialmente no seio da escola de Dilthey onde seu aluno Georg Misch se empenha em desenvolver uma lógica hermenêutica que quer demonstrar que as categorias fundamentais da lógica e da ciência afundam suas raí zes em uma busca de entendimento da própria vida Tratase de uma lógica que Misch apresentou em seus cursos mas tais cursos permaneceram inéditos até pouco tempo1 e desempenharam um modesto papel na transmissão do pensamento hermenêutico 1 Georg Misch Der Aufbau der Logik aufdem Boden der Philosophie des Lebens Gôttinger Vorlesungen uber Logik und Einleitung ín die Theo ríe des Wissens München Karl Alber Freiburg 1994 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 3 7 Sem ser o único o espírito do tempo também fez sua obra Martin Heidegger 18891976 terá sido o prin cipal artífice da transformação filosófica da hermenêu tica transformada em uma forma de filosofia autôno ma Com Heidegger a hermenêutica mudará de objeto de vocação e de estatuto Primeiramente ela mudará de objeto deixando de incidir sobre os textos ou sobre as ciências interpretativas para incidir sobre a própria existência Podemos falar então de uma virada existen cial da hermenêutica Ela também mudará de vocação porque a hermenêutica deixará de ser entendida de ma neira técnica normativa ou metodológica Ela passará a ter uma função mais fenomenológica mais destruido ra no sentido libertador do termo que decorre de sua mudança de estatuto ela será não apenas uma reflexão que incide sobre a interpretação ou seus métodos ela será também a realização de um processo de interpre tação que se confundirá com a própria filosofia i U m a h e r m e n ê u t i c a d a f a c t i c i d a d e Não se insiste muito nisso mas Heidegger será de fato o primeiro a fazer da hermenêutica o título de uma fi losofia quando apresentar seu pensamento no título de um de seus cursos que ele citará em Ser e tempo e também em 1959 como uma hermenêutica da factici dade A facticidade designa aqui a existência concreta e individual que inicialmente não é para nós um objeto e sim uma aventura na qual somos projetados e para a qual podemos despertar de maneira expressa ou não 3 8 I H ERM EN ÊUTICA A ideia de uma hermenêutica da facticidade como a de uma hermenêutica da existência em Ser e tempo de 1927 comporta um duplo sentido precioso conforme o duplo sentido do genitivo no sentido em que o genitivo o medo dos inimigos metus hostiurrí pode designar tanto o medo que temos dos inimigos genitivo objetivo quanto o medo que os inimigos têm de nós genitivo subjetivo No sentido objetivo a hermenêutica da facticidade quer dizer que a filosofia tem como objeto a existência hu mana entendida de maneira radical como ens herme neuticum como um ser hermenêutico Essa concepção bastante ampla da hermenêutica provém de três fontes a Ela provém parcialmente de Dilthey e de sua ideia segundo a qual a vida é em si mesma intrinseca mente hermenêutica ou seja levada por uma inter pretação de si mesma b Ela também terá sido marcada pela concepção da intencionalidade em Husserl segundo a qual a consciência vive inicialmente no elemento da in tenção de sentido percebendo sempre o mundo na perspectiva de um entendimento constituinte c Sua inspiração vem em última instância da filosofia cristã de Kierkegaard que falara da escolha diante da qual se encontrava situada a existência que deve decidir a orientação de seu ser escolha que pressu põe ser a existência um ser de interpretação Mas no sentido subjetivo do genitivo o projeto de uma hermenêutica da facticidade sugere que essa inter pretação deve ser efetuada pela própria existência Em outros termos o filósofo ou o autor da hermenêutica VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 3 9 da facticidade não tem como se substituir à própria existência No máximo ele pode elaborar indicações formais que permitirão à existência se apropriar de suas próprias possibilidades de existência Mas é a própria existência que cabe elaborar a hermenêutica de sua própria facticidade e que em certo sentido ela pratica de maneira mais ou menos inconsciente pelo fato de já viver no interior de algumas interpretações Essa possibilidade de elucidação se funda sobré o que é a existência quer dizer um espaço aberto que não é inteiramente regulado pela ordem dos instintos mas que pode determinar sua orientação vital fundamental e se libertar das interpretações alienantes de seu ser Dessa maneira a facticidade designa em Heidegger o caráter de ser fundamental da existência humana e daquilo que ele também chamará de Dasein digamos o serqueélançadoaí esse ser que e CA LCl da oportu nidade meu que de início não é para mim apenas um objeto que se encontra diante de mim mas uma rela ção consigo ao modo da preocupação e da inquietude radical Para abordar essa facticidade o termo herme nêutica não foi escolhido por acaso Ele se funda na própria facticidade ressalta Heidegger É desse modo que a facticidade é simultaneamente a capaz de interpretação b está em expectativa e necessita de interpretação c é desde sempre vivida no interior de determinada interpretação de seu ser Simplesmente a facticidade o esquece facilmente esquecendose assim de si mesma A tarefa de uma 4 0 H ERM EN ÊUTICA hermenêutica da facticidade no sentido do genitivo objetivo será então lembrar a facticidade a si mesma arrancála de seu esquecimento de si A hermenêutica é de ataque visando à facticidade de cada um A her menêutica tem como tarefa tornar cada Daseirt atento a seu próprio ser comunicálo a ele expulsar a alienação de si que assola o Daseiri2 Em outros termos tratase de despertar a existência para si mesma O tema da hermenêutica é então o Da sein de cada um questionado de maneira hermenêu tica quanto a seu caráter de ser a fim de elaborar um despertar radical a propósito de si mesmo Medimos aqui a distância que separa Heidegger da hermenêu tica clássica a hermenêutica não tem mais a ver com textos e sim com a existência individual de cada um a fim de contribuir para se despertar a si mesma Visto que se trata de abalar a existência é preciso des truir as interpretações que a mantêm em seu estado de sonolência A hermenêutica realiza sua tarefa uni camente pelo viés da destruição3 Há necessidade de uma destruição porque a existência tenta evitarse a si mesma Transpassada pelo cuidado de si ela tem a preocupação de se aliviar dessa inquietude radical que ela é para si mesma A existência busca se apaziguar a si mesma busca se evitar sucumbindo assim à tendên cia ao aviltamento que a segue como sua sombra4 É 2 M Heidegger Herméneutique de Ia facticité CEuvres complètes GA t 63 Klostermann 1998 p 15 3 Idem ibidem p 32 4 Cf M Heidegger lnterprétations phénoménologiques dAristote 1992 TERRepress 1992 pp 1923 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 1 dessa forma que a existência sucumbe por si mesma à mediocridade ditada pelo se sujeito indeterminado e pela opinião pública Ressaltemos que Heidegger não tem realmente um mo delo mais edificante a propor à existência concreta Ele simplesmente lembra à existência que ela deixa de ser um pouco aí quando se deixa levar e não cuida de se assumir a si mesma Heidegger opõe a essa existência inautêntica o ideal de autenticidade que já habita a exis tência enquanto espaço aberto capaz de determinar a interpretação de seu ser Não se trata então de propor uma nova moral mas de convidar o Dasein para ser o que ele é um ser que pode ser aí onde caem as de cisões fundamentais quanto a seu ser mas que muito frequentemente está noutro lugar distraído longe de si 2 O ESTATUTO DA HERMENÊUTICA em S e r e te m po 0 programa hermenêutico de 1923 será retomado na obra mestra de 1927 mas dessa vez nosto a serviço do novo projeto de uma ontologia fundamental Nesse quadro a filosofia é efetivamente concebiaa como ontologia por que sua questão primeira é a do ser Segundo Heidegger a questão é prioritária e isso em vários sentidos a Inicialmente ela aparece como fundamental em ci ência porque todo conhecimento e toda relação com um objeto repousam sobre certa compreensão do ser de que se está tratando o ser é um pouco a pressuposi 4 2 H ERM EN ÊUTICA ção de toda pesquisa científica mas que cabe propria mente à filosofia trazer à luz b Mais fundamentalmente ainda a questão do ser se confirma como urgente para a própria existência se é verdade que a existência se caracteriza pelo fato de que vai a seu ser por seu próprio ser Portanto não há na filosofia questão mais essencial 0 que ocorre é que a questão hoje caiu no esquecimento declara a primeira linha do livro de 1927 É preciso então franquear um novo acesso a ela Para tanto Heidegger propõe seguir o método fenomenológi co gue inicialmente supõe um sentido proibitivo tudo o que será dito dos fenômenos deverá ser objeto de uma legitimação direta Ora a dificuldade com o ser é que ele não se mostra e a questão foi atualmente abandonada tendo ficado recoberta pela problemática da teoria do co nhecimento Aquilo que a fenomenologia deverá fazer ver dirá Heidegger é aquilo que não se mostra à primeira vis ta mas que tem necessidade de ser posto em evidência 0 que é que a fenomenologia deve fazer ver Mani festamente aquilo que à primeira vista justamente não je mostra aquilo que com relação ao que se mostra logo de cara e mais frequentemente está retraído mas que ao mesmo tempo pertence essencialmente proporcionan do sentido e fundamento ao que se mostra à primeira vista e o mais frequentemente5 Desse modo a fenomenologia será o caminho que per mite acesso ao ser inclusive como fenômeno funda 5 Être et temps trad Martineau 47 trad Vezin 62 SZ 35 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 3 mental mas que não se mostra por conta do esqueci mento do ser Mas como fazer ver aquilo que não se mostra aquilo que constitui o objeto da ontologia Heidegger resolve o dilema apelando à hermenêutica bem entendido à hermenêuti ca da existencia A fenomenologia fará então uma virada hermeneutica Os desenvolvimentos que Heidegger con sagra as noções de fenomenologia e de hermenêutica sugerem fortemente que a dissimulação do fenômeno do ser é o resultado de um recobrimento que nada tem de inocente Esse recobrimento se funda realmente em uma autodissimulação da existência que ao ocultar o tema do ser busca sobretudo esquivarse de seu ser fini to e mortal A tarefa de uma hermenêutica da existência será então reconquistar redespertar dizia o curso de 1923 a existência e seu tema fundamental o ser contra riamente a sua tendência de se ocultar a si mesma Tratase aqui de enfrentar um duplo esquecimento mas um duplo esquecimento que se sistematizou o esquecimento da própria existência isto é o esqueci f mento de si mesma como tarefa e como projeto e o esquecimento do ser como tema fundamental da filo sofia Nos dois casos o esquecimento supõe uma des truição ou seja pôr a descoberto os motivos que pre sidiram à instauração de um pensamento que oblitera o ser como tema fundamental da existência e da filo sofia Na introdução a Ser e tempo a insistência incide sobre o esquecimento do ser mas a seqüência da obra estabelecerá claramente que esse esquecimento se ali cerça em um esquecimento de si da existência e de sua finitude que é fundamental 4 4 H ERM EN ÊUTICA Em vista de suprimir esse duplo esquecimento há ne cessidade de uma hermenêutica ou seja de uma des coberta destruidora que sempre deve ser entendida no sentido positivo do desencapamento que busca pôr a nu o fenômeno que foi encoberto de um lado de uma hermenêutica da própria existência que a tire de seu autorrecobrimento de outro de uma hermenêuti ca do esquecimento filosófico do ser que se anuncia sob onome de uma destruição da história da ontologia Ser e tempo fará então em uma página muito densa SZ 37 uma caracterização concisa e condensada daqui lo que convém entender por hermenêutica 0 sentido metódico da descrição fenomenológica será resultado da hermenêutica no sentido preciso de que a descrição derivará de um trabalho de interpretação Auslegung voltaremos daqui a pouco a este termo crucial 0 cará ter hermenêutico da fenomenologia vem ressaltar que as duas coisas devem ser anunciadas à compreensão do ser que é a de nossa existência a o sentido autêntico do ser b as estruturas fundamentais de seu próprio ser Mas para comunicar o sentido autêntico e fundamental do ser e as estruturas do ser que é o nosso temos de partir de uma explicitação expressa do ser da existên cia que constituirá o sentido filosoficamente primei ro da hermenêutica em Ser e tempo Se esse sentido é chamado de primeiro é porque ele constituirá o fun damento verdadeiro da ontologia fenomenológica que Heidegger quer propor a fim de redespertar a questão do ser é necessário partir de uma interpretação expli VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 4 5 citante do entendimento de ser mais ou menos expres sa que é a da própria existência Tendo em vista essa problemática entre todas a mais fundamental é apenas de modo derivado diz Heidegger que podemos entender por hermenêutica uma meto dologia das ciências históricas do espírito Heidegger afastase assim da concepção diltheyana da herme nêutica mas em nome de um pensamento que vincula a hermenêutica à própria existência seguindo algumas das intuições do último Heidegger 3 U m a n o v a h e r m e n ê u t i c a d o e n t e n d e r í É desse modo que a hermenêutica promete recordar à existência as estruturas essenciais de seu ser às quais Heidegger dará 0 nome de existenciais Se é verda de que a existência é habitada por um entendimento preocupado de si consequentemente 0 entendi mento formará um existencial absolutamente funda mental e ao qual Heidegger dará um novo sentido de terminante para a hermenêutica posterior Já sabemos que a existência é hermenêutica por ser ela um ser de entendimento Mas o que quer dizer enten der Mais uma vez Heidegger rompe com a tradição anterior vendo nela menos uma intelecção intelligere ou um conhecimento e mais um poder uma capacida de um saber fazer ou uma habilidade Nesse sentido ele recorre à locução alemã sich auf etwas verstehen que quer dizer entenderse sobre algo ser capaz de 4 6 H ERM EN ÊUTICA algo 0 entenderse sobre é aqui um verbo pronomi nal que me implica em seu exercício porque é sempre uma possibilidade de mim mesmo que se desdobra e que também se arrisca no entendimento Entender portanto é poder algo e o que é podido nes se poder é sempre uma possibilidade de si mesmo um seentender Ancorado na existência e em sua inquietude funda mental a propósito de si mesmo tpdo entendimento terá a estrutura de um projeto Ou seja o entendimento se dá no seio de uma estrutura de antecipação de uma antecipação de significatividade regida pela existência e por sua necessidade de orientação Mas essa antecipação não decorre necessariamente de um projeto consciente Ela é o resultado de um projeto lançado lançado na existência o entendimento se nu tre de projetos de entendimento que são tantas outras possibilidades de se livrar de embaraços no mundo Mas é possível esclarecer esse serprojetado trazer à luz essas antecipações e assim apropriarse de seus projetos de entendimento Esse esclarecimento do en tender se realizará por meio daquilo que Heidegger chama de Ausiegung Heidegger esta recorrendo aqui ao conceito que de fine a tarefa clássica da hermenêutica a tarefa de in terpretação mas conferindolhe um sentido inédito A interpretação é exatamente dirá ele a explicitação do entendimento Heidegger está jogando aqui com o ter mo alemão Ausiegung que quer dizer interpretação na linguagem corrente mas cuja construção evoca a ideia VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 7 de um desbastamento ou de uma explicitação de onde a preferência dos tradutores por esse termo quando se trata de verter Ausiegung Dois deslocamentos maiores são operados aqui com relação à problemática clássica da interpretatio a 0 que se trata de trazer à luz não é inicialmente o sentido do texto ou a intenção do autor mas a in tenção que habita a própria existência o sentido de seu projeto Esse deslocamento tem tudo a ver com a virada existencial da hermenêutica em Heidegger que abandona o paradigma da interpretação dos textos mas sem deixar de ter repercussões sobre ela como o reconhecerão os herdeiros de Heideg ger que serão Bultmann Gadamer e Ricoeur b A interpretação deixa aqui de ser o procedimento que permite atingir o entendimento seguindo a estru tura teleológica da interpretação e do entendimento que prevaleceu na concepção clássica da hermenêuti ca Não a interpretação é sobretudo o esclarecimen to crítico de um entendimento que a precede Primei ro vem o entendimento depois sua interpretação na qual o entendimento vem a se entender a si mesmo a se apoderar de suas antecipações 0 entendimento é dotado de uma tríplice estrucura que vem a ser esclarecida naquilo que Heidegger chama a Ausiegung ou a interpretação explicitante Todo en tendimento possui a um présaber Vorhabe um horizonte a partir do qual ele entende b uma prévisão Vorsicht porque ele se efetua em uma certa intenção ou em uma certa visada 4 8 H ERM EN ÊUTICA c uma préapropriação Vorgriff dado que ela se desdobra no seio de uma conceitualidade que an tecipa o que há para ser entendido e que talvez não seja inocente 0 propósito da interpretação explicitante é destacar jpara si mesma enquanto tal ou qual a estrutura de antecipação e aquilo que ela implica Heidegger aqui está claramente animado por uma intenção de Aufklárung ou de elucidação que será um pouco tem perada por seu aluno Gadamer Em Ser e tempo Hei degger não pensa de início nos modos filológicos da interpretação e do entendimento ele pensa sobretudo em dois tipos de antecipação que estão na expectativa de explicitação ou de destruição a a antecipação de determinada concepção do ser como presença subsistente o que é é o que se es tende em uma presença permanente sob um olhar dominador concepção que teria dominado toda a história da metafísica b a antecipação de determinada concepção da exis tência o homem como coisa pensante ou animal rationale A questão de Heidegger aqui é a seguinte mas de onde vêm esses préentendimentos Eles nunca foram elu cidados por si mesmos Ser e tempo se propõe a fazê lo aplicando à questão do ser e do homem a estrutura do entendimento e da explicação que já é a estrutura da existência Dessa forma a obra pratica no plano fi losófico a hermenêutica do ser e da existência que já se opera no seio da existência Voltamos a perceber a distância que pode separar Heidegger da hermenêuti VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 9 ca clássica não se trata de interpretar o sentido de um texto ou o pensamento de um autor mas de elucidar o préentendimento da existência a fim de determinar se ela provém de uma apreensão autêntica ou não 4 Do c í r c u l o d o e n t e n d i m e n t o s Segundo Heidegger todo entendimento se eleva contra 1 0 fundo de algumas antecipações ditadas pelo cuidado da existência consigo mesma A existência se entende então a partir de certo saber de certa intenção e se gundo determinada çonceitualidade Tratase de outra maneira de dizer que não existe tabula rasa do entendi mento Ora contudo é esse ideal da tabula rasa do en tendimento que a metodologia científica quis impor à hermenêutica do século XIX especialmente em Dilthey a hermenêutica passa a ser entendida como a discipli na que deve rejeitar o subjetivismo da interpretação a fim de fundar a pretensão da objetividade das ciências humanas Aqui se pressupõe que não se pode entender objetivamente a não ser que sejam descartados os pressupostos do intérprete e de sua época De acordo com esse ideal de objetividade a concepção heideggeriana do entender e da interpretação parece levar a um círculo que dá todas as mostras de ser vi cioso É que parece não mais existir interpretação ob jetiva neutra com toda interpretação parecendo nada mais que a elaboração de um entendimento prévio Daí é que vem 0 problema pelo qual mais ou menos se defi nia a hermenêutica clássica como sair desse círculo de 5 0 H ERM EN ÊUTICA danação Como chegar a uma interpretação que seria enfim independente das preconcepções do intérprete Querer sair desse círculo seria aos olhos de Heidegger manter a esperança de chegar a um entendimento que deixaria de brotar da existência Mas não só nada dis so existe como manter uma ilusão dessas seria passar completamente ao largo do que é o entender saber uma busca de inteligibilidade que é sempre movida pelas ex pectativas da existência preocupada consigo mesma O que é decisivo clamará Heidegger não é sair do círculo mas entrar nele da maneira conveniente SZ 153 Para ele isso quer dizer que a tarefa primeira da interpreta ção é não a de ceder a preconceitos arbitrários mas a de elaborar a estrutura de antecipação do entender a partir das próprias coisas com isso Heidegger dá a en tender que não renuncia de modo algum à concepção clássica da verdade como adequação à coisa A máxima hermenêutica de Heidegger consiste então em destacar a estrutura de antecipação do entendi mento em vez de fazer como se ela não existisse É en tão a um exercício de rigor ou seja de autocrítica que Heidegger convida a interpretação É a esse exercício que é consagrado todo o projeto de Ser e tempo que se interroga sobre os pressupostos hermenêuticos da compreensão dominante do ser e da existência 5 A ÚLTIMA HERMENÊUTICA DE H EIDEGGER Essa explicação crítica terá seqüência na última filoso fia de Heidegger isto é em sua última hermenêutica VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 5 1 que assumirá a forma de uma explicação com a histó ria da metafísica e de sua concepção dominante do ser como presença disponível Mesmo sendo verdade que o último Heidegger quase não fala mais de hermenêuti ca ele radicaliza sua exigência dedicando todos os seus esforços à atualização dos pressupostos do pensamen to metafísico que agora ele considera o responsável pelo esquecimento do ser Em Ser e tempo esse esquecimento era amplamente 1 imputado à existência inautêntica que esquecia sua questão essencial 0 segundo Heidegger verá nele so bretudo a conseqüência do destino da metafísica oci dental ao submeter o ser à perspectiva da racionalida J1 de nada é sem razão a metafísica teria apagado o mistério original do ser seu surgimento gratuito sem porquê Essa metafísica da racionalidade encontraria sua realização na essência da técnica nela o ser não passaria de um dado disponível e compatibilizável f Heidegger está à espreita de outra compreensão do ser p menos imperial menos regida pelo princípio de ra zão Seu pensamento visa dessa maneira preparar um novo começo e a superar assim o pensamento metafí sico que tende a sujeitar o ser à perspectiva do homem ao exigir que ele preste contas Essa hermenêutica pro longa a visada de SZ no sentido de que seu propósito é destacar os pressupostos da concepção metafísica do ser em nome de outro pensamento mais original mais atento ao surgimento do ser Heidegger esboçou esse outro pensamento dispensan do uma atenção renovada e absolutamente hermenêu tica ao fenômeno da linguagem e da linguagem poética 5 2 H ERM EN ÊUTICA Ser e tempo já dissera que a tarefa da hermenêutica era anunciar à existência o sentido do ser Ora esse anún cio já não é o próprio fato da linguagem no qual o ser sempre assomou à fala Não é essa capacidade de enten der a linguagem e com isso de estar aberto ao mistério do ser que runda nosso Dasein nosso seraínalingua gem Portanto não é de admirar que todo o último Hei degger em suas reflexões sobre a linguagem pensada como a morada do ser tenha podido dizer que era a fala que dava voz à relação hermenêutica fundamen tal a relação do ser e do homem6 Além disso Heidegger o fez em uma entrevista retrospectiva publicada em 1959 na qual ele retoma nostalgicamente seu projeto de uma hermenêutica da facticidade e em que ele cita pela primeira vez em trinta anos textos de Schleiermacher e de Dilthey Ele quis com isso marcar sua solidariedade com a herança da hermenêutica que o precedera mas afirmando que a linguagem era o elemento da relação hermenêutica ele também antecipou os desenvolvi mentos da hermenêutica de seus herdeiros 6 M Heidegger Dun entretien de ia parole Acheminement vers Ia pa role 1959 Paris Gallimard 1967 pp 118120126 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 5 3 capítulo IV CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA O mínimo que se pode dizer é que Heidegger propôs uma concepção bastante herética da hermenêutica Preso à questão dõser e da existência seu projeto à primeira vista não tem lá muito a ver com a concepção clássica da hermenêu i tica entendida como arte de interpretar os textos ou j como metodologia das ciências humanas Tal projeto parece tão distanciado das preocupações tradicionais i da hermenêutica que vários historiadores da herme i nêutica podem se permitir ignorálo ou enxergar nele um risco mortal essejyyá o caso de Betti Mas para aqueles que podemos chamar dé os descendentes de j Heidegger Bultmann Gadamer Ricoeur Vattimo et j alií são exatamente suas reflexões revolucionárias sobre o entendimento a interpretação e a linguagem que deviam provocar conseqüências para o pensamen to hermenêutico dedicado à interpretação dos textos e à justificação da pretensão de verdade das ciências i humanas Podemos dizer que o cuidado desses auto W CONTRIBUIÇÃO DB BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA 5 5 ires concentrouse em aplicar cada um a sua maneira j as lições da hermenêutica existencial às questões mais í tradicionais da hermenêutica 0 primeiro pensador de envergadura a ter mostrado como a concepção heideggeriana podia ser posta a serviço das questões mais clássicas da interpretação de textos foi sem dúvida o teólogo Rudolf Bultmann 18841976 Antes mesmo de conhecer Heidegger Bultmann já era um eminente exegeta do Novo Testa mento Em sua História da tradição sinótica de 1921 ele dera uma contribuição de primeira plana à leitura históricocrítica do texto bíblico insistindo nos estilos e nos gêneros literários do texto sagrado Ele se tornou professor em Marburgo em 1921 onde desenvolveu toda a sua carreira e onde manteve relações muito es treitas com Heidegger que também foi professor em Marburgo de 1923 a 1928 mas também com Gadamer que passou vinte anos em Marburgo de 1919 a 1939 Bultmann sempre achou que a interpretação existen i ciai proposta por Heidegger oferecia uma descrição neutra da existência humana da qual o teólogo po dia se servir em seu trabalho de interpretação Desse modo ele terá sido o primeiro hermeneuta a fazer as ideias de Heidegger frutificarem no campo da exegese Isso é especialmente evidente no ensaio que ele pu blicou em 1950 sobre O problema da hermenêutica Esse texto foi publicado muito tardiamente na obra de r Bultmann mas é importante porque ajuda a delimitar aquilo que permanecerá para autores como Gadamer e Ricoeur como sendo o problema hermenêutico 5 6 H ERM EN ÊUTICA Bultmann expõe aquilo que ele chama o problema da hermenêutica apoiandose no ensaio de Dilthey sobre A origem da hermenêutica publicado cinqüenta anos an tes Mas começa criticando a concepção tremendamente restritiva excessivamente genética que Dilthey tinha do entendimento o entendimento é justamente a re efetuação dos fenômenos internos que se desenvolve ram em seu autor Não é ele exatamente a recriação do acontecimento criador interno do qual eles provêm1 Nesse ponto Bultmann está estigmatizando a orienta ção psicologizante de Dilthey Segundo ele ela mascara o próprio sentido do esforço de entendimento focali zado sobretudo na coisa a ser entendida e a partir da pergunta fundamental que é a do intérprete Um entendimento uma interpretação está sempre orientada por uma pergunta determinada por uma in tenção precisa Isso implica que ela jamais existe sem uma pressuposição ou para falar mais exatamente que ela é sempre guiada por um préentendimento da coisa sobre a qual ela interroga o texto2 Para Bultmann o entendimento está sempre voltado para a coisa Sache do texto para sua aposta e não para a psicologia do autor Mas esse entendimento da coisa não pode deixar de ser guiado por um préenten dimento do intérprete Por sua vez esse préentendi mento se funda na vida daquele que entende A pergunta fundamental procede de um interesse que se funda na vida daquele que questiona 0 pressuposto de 1 R Bultmann Le problème de 1herméneutique 1950 Foi et com prehension 11 Paris Le Seuil 1970 pp 599626 aqui p 603 2 Idem ibidem p 604 CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA 5 7 toda interpretação compreensiva é que o interesse do qual falamos está de uma maneira ou de outra vivo no texto a ser interpretado e funda a comunicação entre o texto e o intérprete3 Assim dirá Bultmann só podemos entender participan j do daquilo que é dito Bultmann fala aqui de um teilneh mendes Verstehen de um entendimento participativo entender é ter parte com aquilo que entendo Bultmann também dirá não posso entender Platão a não ser filo sofando com ele Bultmann insiste nessa ideia de par ticipação para criticar uma concepção excessivamente estetizante do entendimento segundo a qual o sen tido a entender seria inicialmente a expressão de uma individualidade Não diz Bultmann entender é sobre tudo apreender uma possibilidade de existência Essa possibilidade de existência que está no centro do problema da hermenêutica manifesta nos dois polos do entendimento que se tornam a partir daí uma questão de diálogo entendo sempre a partir de minha existên cia e aquilo que entendo é também uma possibilidade de existência revelada pelo texto Paul Ricoeur que terá sido muito marcado pelo pensamento de Bultmann dirá pos teriormente que o entendimento incide sobre o mundo que a obra abre para mim e no qual me permite habitar 0 préentendimento do intérprete não deve ser elimi nado em nome de um ideal metódico de hermenêutica ele deve antes ser elaborado para si mesmo e questiona do Não se trata de eliminar o préentendimento mas 3 Idem ibidem p 605 5 8 H ERM EN ÊUTICA de eleválo ao nível consciente4 E tornálo consciente Bultmann esclarece é proválo pelo texto fazer com que o entendimento possa ser questionado pelo texto e que dessa maneira ele possa ouvir sua reivindicação Ans pruch Uma revisão do préentendimento é sempre pos sível e é ela o produto do trabaího de interpretação Se com isso Bultmann demonstra ter apreendido per feitamente a estreita ligação entre o entendimento e a interpretaçãoexplicitante em Heidegger seu mérito é o de ter sido o primeiro a aplicar expressamente a concepção heideggeriana do círculo hermenêutico às questões mais tradicionais da hermenêutica desen volvendo e praticando uma hermenêutica existencial dos textos Heidegger se limitara explicitamente a uma hermenêutica da existência e da metafísica Ao afir mar que o entendimento baseavase em um interesse fundado na vida ele antecipava a concepção do en tendimento própria da hermenêutica filosófica de Ga damer o entendimento como aplicação e de Ricceur o entendimento como abertura de um mundo Des se modo antes de Gadamer ele se opunha à concep ção ainda excessivamente estetizante e reconstrutora do entendimento em Dilthey Sua concepção partici pativa do entender abria a partir daí caminho para a compreensão do entendimento como um diálogo 0 retorno dahermenêutica a suas questões mais antigas tornavase possível desde um solo heideggeriano 4 Idem ibidem p 618 CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA 5 9 capítulo v HANSGEORG GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO i U m a h e r m e n ê u t i c a n ã o m e t o d o l ó g i c a DAS CIÊNCIAS HUMANAS esmo que Heidegger já tivesse proposto uma concepção filosófica da hermenêutica é apenas coniGadamer que o termo herme nêutica começou a realmente se impor à consciência geral Em 1960 Gadamer submeteu a seu editor um longo manuscrito intitulado As grandes linhas de uma hermenêutica filosófica Contudo o editor avaliou que o termo hermenêutica talvez fosse muito esotérico e trouxesse o risco de espantar os leitores Solicitado a trocálo por algo mais atrativo Gadamer pensou ini cialmente em Entendimento e acontecimento antes de chegar ao título Verdade e método Foi essa obra que catapultou a hermenêutica aq centro dos debates filo sóficos a ponto de o editor insistir para que o termo GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 1 hermenêutica figurasse no título de uma coletânea de ensaios que Gadamer viria a publicar em 1967 Apesar de Gadamer ter sido alunode Heidegger e de ter se inspirado muito nele a transição da hermenêutica de Heidegger para a de Gadamer não é automática Gada mer não retomou diretamente a hermenêutica da exis tência de seu mestre Ele tentou repensar a partir dela a problemática mais diltheyana de uma hermenêutica das ciências humanas mesmo que Gadamer vá acabar indo além desse horizonte ao esboçar uma hermenêu tica universal da linguagem 0 que o impressionou em Heidegger foi menos o projeto de uma hermenêutica direta da existência ou de uma retomada da questão do ser e mais a nova compreensão do círculo hermenêuti co que não é mais para ser entendido segundo o ideal objetivista de uma tabula rasa A ideia fundamental de Heidegger dizia que era absurdo esperar alcançar um entendimento expurgado de toda antecipação logo fi nalmente objetivo porque entender para um ser fini to é ser movido por algumas antecipações Sem anteci pações constitutivas o entendimento perde toda razão de ser toda pertinência Por isso não existe interpreta ção que não seja guiada por um entendimento Heidegger afirmava tudo isso claro na perspectiva de uma hermenêutica da existência as antecipações da existência foram elaboradas de maneira autêntica a partir da finitude de nosso ser ou não Por sua vez Gadamer aplicará a valorização mais positiva do círcu lo hermenêutico à problemática de uma hermenêutica das ciências humanas A concepção de Heidegger não deve ter conseqüências para uma hermenêutica que 6 2 H ERM EN ÊUTICA se propõe fazer justiça à pretensão de verdade das ci ências humanas Gadamer parte então de Heidegger mas para renovar a compreensão do problema de Dil they Mesmo reatando com a interrogação de Dilthey Gadamer questiona a premissa de Dilthey segundo a qual apenas uma metodologia poderia dar conta da ver dade das ciências humanas Esse é um pouco o senti do do título Verdade e método a verdade não é apenas uma questão de método 0 método se funda sobre a distância do observador com relação a seu objeto Ora esse modelo de entendimento a distância é realmente apropriado às ciências humanas O espectador não está sempre comprometido de certa maneira Essa concep ção do entendimento vem diretamente de Heidegger entender é um se entender a si mesmo Mas ela tam bém evoca o entendimento participante de Bultmann 0 propósito inicial de Gadamer é justificar a experiência de verdade das ciências humanas e do entendimento em geral partindo da concepção participativa do entendi mento Ela é constitutiva daquilo que ele chama na pri meira linha de sua obra de o problema hermenêutico1 Mas esse problema fora encoberto segundo ele pela concepção excessivamente metodológica da hermenêu tica proposta por Dilthey A ideia de Gadamer é que Dil j they sucumbe a uma concepção da verdade inspirada na metodologia das ciências exatas que declara anátema todo envolvimento da subjetividade Em vez de seguir cegamente essa metodologia por sinal quase em desacordo com sua prática real as ci 1 HG Gadamer Vérité etméthode VM Paris Le Seuil 1996 p 11 CEuvres complètes GW 111 GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 3 ências humanas fariam melhor se se inspirassem na tradição um pouco esquecida do humanismo do qual por sinal as ciências humanas extraem o próprio nome humaniora A reconquista do problema hermenêuti co começará portanto por uma vigorosa reabilitação da concepção humanista do saber nas primeiras seções de Verdade e método 0 traço característico do huma nismo é que ele não visa inicialmente produzir resulta dos objetiváveis e mensuráveis como no caso das ciên cias metódicas da natureza Ele espera especialmente contribuir para a formação Bildung e para a educa ção dos indivíduos desenvolvendo sua capacidade de julgar Nesse ideal de formação no qual se forma um senso comum um senso comum a todos e um sentido do que é comum e justo se produz uma elevação ao universal mas que não é o universal da lei científica Ele corresponde sobretudo a um ultrapassamento de nossa particularidade que nos abre para outros hori zontes e que nos ensina a reconhecer humildemente nossa própria finitude Não se vê aqui um modo de co nhecimento que implica o indivíduo e que pode servir de modelo para as ciências humanas Se esse modelo perdeu para nós sua força coagente é porque o posi tivismo científico impôs um modelo único de saber o modelo do conhecimento metódico independente do intérprete Gadamer não tem nada contra o saber metódico enquanto tal ele reconhece toda a sua legi timidade mas avalia que sua imposição como o único modelo de conhecimento tende a nos tornar cegos a outros modos de saber Uma reflexão que quisesse fa zer justiça à verdade das ciências humanas reflexão decorrente daquilo que podemos chamar uma herme nêutica não seria necessariamente uma metodologia 6 4 I H ERM EN ÊUTICA 2 O MODELO DA ARTE O ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO Em busca de outro modelo de saber diferente do modelo da ciência metódica Gadamer vai se inspirar na primei ra parte de Verdade e método na experiência da arte A obra de arte não oferece apenas uma fruição estética ela é num primeiro momento um encontro de verdade afir ma firmemente Gadamer Reduzir a obra de arte a uma questão puramente estética é fazer o jogo da consciência metódica que reivindica um monopólio sobre a noção de verdade limitada à ordem daquilo que é cientificamente cognoscível Não dirá Gadamer é preciso também reco nhecer que a obra de arte tem sua verdade Essa amplia ção da noção de verdade permitirá mais tarde fazer justi ça ao modo de conhecimento das ciências humanas A fim de pensar esse encontro com a verdade Gadamer propõe partir da noção de jogo entender uma obra de arte é deixarse levar por seu jogo Nesse jogo somos menos aqueles que dirigem e mais aqueles que são le vados encantados pela obra que nos leva a participar de uma verdade superior 0 jogo não tem nada de pura mente subjetivo para Gadamer Bem ao contrário aque le que joga se encontra sobretudo transportado para uma realidade que o ultrapassa Aquele que participa de um jogo se dobra à autonomia do jogo o jogador de tênis responde à bola que lhe é enviada o dançarino se gue o ritmo da música aquele que lê um poema ou um romance é tomado por aquilo que está lendo Esse modelo é importante porque a subjetividade se encontra bastante implicada aqui mas ela é importan GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 5 te ao justamente se dobrar àquilo que a obra em toda a sua objetividade lhe impõe o sujeito se encontra enga jado em um encontro que o transforma Se se tratar de uma obra de arte o jogo se condensa em uma figura em uma obra que cativa e que descobre para mim algo de essencial a propósito do que é mas também a propó sito de mim mesmo A propósito do que é porque é um acréscimo de realidade que vem se apresentar em uma obra isto é uma realidade mais poderosa e ainda mais reveladora que a própria realidade que ela representa mas que ela me permite conhecer melhor por si mesma Desse modo é o quadro Dos de Mayo de Goya mostran do pobres camponeses espanhóis fuzilados à queima roupa pelas tropas francesas que descobre para mim o que é a realidade da ocupação da Espanha por Napoleão Esse encontro com a verdade encarna ao mesmo tem po um encontro consigo Há aí uma verdade da qual eu participo será inevitável pensar mais uma vez em Bultmann porque a obra me interpela sempre de maneira única Por isso é que há tanta variação nas interpretações das obras de arte Mas a ideia forte de Gadamer é que essa variação é essencial para o pró prio sentido Seria perversidade querer erradicála da interpretação A experiência de verdade não decorre tanto de minha perspectiva de mim mesmo decorre antes de tudo da própria obra que me abre os olhos para o que é É preciso distinguir a verdade de que fala Gadamer da concepção pragmatista que reduz a ver dade ao que ela pode ter de útil para mim não é a obra que deve se dobrar a minha perspectiva mas ao con trário minha perspectiva que deve se amplificar ou até se metamorfosear em presença da obra 6 6 H ERM EN ÊUTICA Há também na experiência da obra de arte um jogo rigoroso ritmado entre o acréscimo de ser que se apresenta a mim a modo de revelação ou até de um áiktat e a resposta que é a minha ninguém pode ficar indiferente diante de uma obra de arte que nos suspen de ante sua verdade Essa revelação que transforma a realidade transfigurada e reconhecida em uma obra de arte também nos transforma A obra de arte sempre me diz Você tem de mudar de vida É esse modelo da obra de arte e do rigor único que é o seu que Gadamer aplicará às ciências humanas Se gundo Gadamer a verdade das ciências humanas de corre mais do acontecimento que se apodera de nós e nos faz descobrir a realidade do que do método Nesse sentido é revelador que Gadamer tenha queri do inicialmente dar a sua obra o título Entendimento e acontecimento Com isso ele queria enfatizar que tal vez chegue muito tarde aquele que quiser impor a essa insigne experiência de verdade uma metodologia que lhe garantisse a objetividade Não estaríamos ceden do a um ideal metódico de conhecimento legítimo em si mesmo mas que deforma a experiência de verdade de que dão testemunho as ciências humanas e que a experiência da arte nos ajuda a redescobrir 3 OS PRÉJUÉZOS CONDIÇÕES DO ENTENDIMENTO A REABILITAÇÃO DA TRADIÇÃO A velha receita para fundar a verdade das ciências huma nas consistia em excluir os préjuízos do entendimen GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 7 to em nome de uma concepção da objetividade herdada das ciências exatas De uma maneira muito provocante Gadamer verá nos préjuízos sobretudo condições do entendimento Aqui ele invoca a análise da estrutura de antecipação do entender em Heidegger que demons trara que a projeção de sentido era não uma tara mas uma componente essencial de todo entendimento dig no desse nome É nesse mesmo sentido que Bultmann defendera que não havia interpretação sem préen tendimento da parte do intérprete Tanto em Heideg ger como em Bultmann contudo essa concepção não abria completamente as portas ao subjetivismo porque se tratava justamente de desenvolver antecipações que fossem adequadas à coisa a ser entendida Com efeito a interpretação era precisamente nos dois autores um convite a um exame crítico de seus préjuízos 0 próprio Gadamer começará sua análise muito já se in sistiu nisso enfatizando o processo de revisão constante que caracteriza o esforço de interpretação uma inter pretação justa deve se precaver contra o arbitrário dos preconceitos e voltar seu olhar para as próprias coisas2 Portanto assim como Heidegger Gadamer não é inimigo da ideia de adequação 0 que ele especialmente questio na é o ideal proveniente do Iluminismo de um entendi mento que seria inteiramente desprovido de préjuízos A sutileza da análise de Gadamer é mostrar que essa ob sessão com préjuízos procede de um préconceito não questionado especialmente de um préconceito contra os préjuízos A cruzada iluminista contra os préjuízos 2 VM 287288 GW I 271272 6 8 H ERM EN ÊUTICA alicerçase efetivamente sobre a ideia segundo a qual só pode ser reconhecido como verdadeiro aquilo que foi fundado na razão com base em uma primeira certeza É esse o princípio que leva o Iluminismo a desvalorizar todo conhecimento fundado na tradição e na autoridade Mas isso é desconhecer que também podem existir pré juízos legítimos préjuízos fecundos que nos são lega dos pela tradição Gadamer acredita que a oposição entre a razão e a tradição é abstrata ela mesma tributária de uma tradição cartesiana que rechaça toda verdade que não tenha sido fundada de maneira última Mas será que existe mesmo algo assim Gadamer se pergunta uma ver dade que não deveria estritamente nada à tradição e que seria então inteiramente separada da linguagem Gadamer não está pensando aqui em uma tradição defi nida o que faria dele o tradicionalista que ele não é ele está pensando especialmente no trabalho da histó ria que vai sendo tramado acima do entendimento Des se modo a tradição representa o que não é objetivável em um entendimento mas que o determina impercepti velmente 0 entendimento se opera a partir de algumas expectativas e objetivos que ela herda do passado e de seu presente mas que nem sempre pode pôr em pers pectiva Mesmo que Gadamer mantenha o ideal clássi co e heideggeriano de um exame crítico dos préjuízos parecelhe ilusório orientar a verdade do entendimento para um ideal de um conhecimento desprovido de todo préconceito Esse ideal não faz justiça segundo ele à historicidade constitutiva do esforço de entendimento Em Gadamer é também essa historicidade que permite ter a expectativa de resolver a questão crítica da herme GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 9 nêutica como distinguir os préjuízos legítimos aque les que tornam possível o entendimento daqueles que não são legítimos e que cabe à razão crítica superar3 Ele dirá com frequência é o recuo no tempo a distância temporal que permite fazer a triagem entre os bons e os maus préjuízos Vemos isso por exemplo na arte con temporânea mas também em filosofia como distinguir as contribuições importantes e originais daquelas que o são menos Aqui só o recuo no tempo oferece algum socorro permitindo aos grandes progressos emergirem e se fazerem valer Solução mais ou menos satisfatória porque mantém intacta a questão da ponderação das obras contemporâneas quando colapsa a distância tem poral mas não toda forma de distanciamento crítico mas também porque ela rejeita sem dúvida instâncias nas quais a distância temporal pode obnubilar grandes obras e interpretações importantes Mesmo tendo in sistido naquilo que a tradição pode ter de descobrido ra e com razão talvez Gadamer não tenha enfatizado suficientemente o que ela podia ter de recobridora e às vezes de repressiva Mas é verdade que essa crítica pressupõe um conceito muito moderno de tradição justamente aquele que Gadamer pretende relativizar 4 O TRABALHO DA HISTÓRIA E SUA CONSCIÊNCIA O conceito fundamental da hermenêutica de Gadamer é 0 de Wirkungsgeschichte 0 termo alemão que já existia 3 Ibidem 298 320 GW I 304 7 0 H ERM EN ÊUTICA antes de Gadamer designa em sua acepção mais cor rente a história da recepção ou mais simplesmente a posteridade das obras através da história É assim por exemplo que podemos distinguir a obra de Cervantes de sua posteridade a Revolução Francesa de sua influên cia sobre a história Uma vez que esse termo designa um operar da história e Gadamer enfatizará sua produtivi dade podemos falar aqui de um trabalho da história A disciplina da Wirkungsgeschichte foi desenvolvida no século XIX por historiadores orgulhosos de sua cons ciência histórica e interessados em estudar por si mesma a posteridade das grandes obras o historiador que quiser estudar o pensamento de Platão por si mes mo terá o cuidado de se distinguir de sua posteridade e de seus préjuízos Desse modo a consciência históri ca do trabalho da história devia permitir escapar a sua insidiosa determinação para o maior bem de uma in terpretação objetiva do passado tal qual ele realmente foi antes de a história lhe conferir novos sentidos Gadamer se pergunta se esse ideal de entendimento que busca manter a Wirkungsgeschichte à distância faz justiça ao trabalho da história 0 fato de estudar a posteridade por si mesma implica que justamente por isso nos subtraiamos a sua eficácia Não se tem certeza disso porque a própria interpretação que pretende objetivar o trabalho da história se faz em nome de préjuízos e de um ideal de objetividade que são propriamente o fruto de um trabalho subterrâneo da história no caso do positivismo Aos olhos de Ga damer parece menos importante objetivar esse traba lho da história tarefa impossível porque ela pretende GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 1 i se tomar senhora de todas as suas determinações do que reconhecer que todo entendimento se inscreve em um trabalho da história emanando das próprias obras mas do qual ela só teve uma consciência parcial Todo o propósito filosófico de Gadamer é desenvolver uma consciência adequada desse trabalho da história De início pode se tratar como em Heidegger e em Bult mann de uma consciência que se esforça para iluminar o trabalho da história dentro do qual ela se mantém a fim de esclarecer sua própria situação hermenêutica Isso é perfeitamente legítimo no seio da pesquisa histó rica mas aos olhos de Gadamer é fundamental tomar consciência dos limites desse esclarecimento Isso por que o trabalho da história continua a determinar nossa consciência para além da consciência que temos disso Uma consciência finita jamais será senhora de todas as suas determinações Em uma ambigüidade essencial e voluntária a consciência do trabalho da história de signa simultaneamente como o afirma o prefácio à 2a edição francesa de Verdade e método a a consciência lapidada e trabalhada pela história b a tomada de consciência desse serdeterminado e dos limites que ele impõe ao ideal de uma consci ência inteiramente transparente a si mesma4 A expectativa de Gadamer é exatamente o reconheci mento de sua finitude essencial levará a consciência a se abrir à alteridade e a novas experiências 4 Prefácio à 2a edição traduzida da I a tradução parcial de VM Paris Le Seuil 1976 p 14 7 2 H ERM EN ÊUTICA 5 A FUSÃO DOS HORIZONTES E SUA APLICAÇÃO Segundo essa consciência que se dá conta de sua fini tude o entendimento aparecerá menos como uma ati vidade do sujeito do que como um advir decorrente do trabalho da história 0 próprio entender deve ser pensado menos como uma ação da subjetividade do que como uma inserção em um acontecimento de tradição no qual se mediatizam cons tantemente o passado e o presente Eis o que se deve reconhecer na teoria hermenêutica que é muito mais dominada pelas ideias de procedimento e de método5 Essa constante mediação do passado e do presente está na raiz da ideia gadameriana de uma fusão de horizontes Entender o passado não é sair do horizon te do presente e de seus préjuízos para se transpor para o horizonte do passado É na realidade traduzir o passado na linguagem do presente onde se fundem os horizontes do passado e do presente Desse modo a fusão é tão bemsucedida que não se consegue mais distinguir o que provém do passado nem o que resulta do presente de onde a ideia de fusão Mas essa fusão do presente e do passado também é mais fundamen talmente a do intérprete com aquilo que ele entende Como já vimos no caso da experiência da arte o en tendimento é uma experiência tão fusional que não se pode mais distinguir facilmente o que provém do obje 5 VM 312 GW 1295 Ver meu estudo sobre La fusion des horizonts Archives de philosophie 68 2005401418 GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 3 to e o que deriva do sujeito que entende Os dois então se fundem em um encontro bemsucedido do sujeito com o objeto onde podemos reconhecer a versão gada meriana da adasquatio rei et intellectus da adequação da coisa ao pensamento que constitui a definição clás sica da verdade Se há fusão com o presente é porque o entendimento sempre encerra uma parte de aplicação No momento em que entende o intérprete insere algo de seu mas esse seu é também o de sua época de sua linguagem e de seus questionamentos Sempre interpretamos uma obra a partir de questionamentos frequentemente im perceptíveis de nosso tempo Entender é pois apli car um sentido ao presente Gadamer se vincula aqui à antiga subtilitas applicandi que ainda fazia parte no pietismo do século XVIII da tarefa essencial da herme nêutica Para um pastor essa aplicação se operava na homilia que buscava aplicar o entendimento do texto sagrado à situação real dos fiéis Gadamer lhe confere uma amplitude sem precedentes afirmando que o en tendimento nada mais é que a aplicação de um sentido ao presente Aqui Gadamer se opõe ao ideal metódico e reconstrutor de Schleiermacher e de Dilthey que quer excluir a intervenção do presente percebida como uma ameaça à objetividade Podemos realmente entender perguntase Gadamer sem fazer parte do entendimen to sem que o presente esteja nele implicado A tradução oferece um belo exemplo daquilo que Gada mer entende por aplicação traduzir um texto é fazêlo falar em outra língua Claro que os recursos de nossa língua são então aplicados 0 sentido estrangeiro só 7 4 H ERM EN ÊUTICA pode ser vertido para outra língua se formos capazes de entender Ao transpor o sentido para outra língua o texto traduzido vem se fundir no melhor dos casos com aquele que acaba de traduzilo Diante isso uma tradução é tanto mais bemsucedida quando não se tem a sensação de estar lendo uma tradução Vemos com isso sobretudo que a aplicação comporta seu ri gor e sua verdade não se pode traduzir um texto de qualquer jeito É o texto estrangeiro que se trata de tra duzir mas isso só é possível quando se aplicam os re cursos de nossa língua Por isso é equivocado associar a aplicação do intérprete a uma forma de arbitrário subjetivo Esse modelo de tradução não é qualquer um dado que ressalta o elemento lingüístico de todo en tendimento com o qual Verdade e método se concluirá 6 A LINGUAGEM OBJETO E ELEMENTO DA REALIZAÇÃO HERMENÊUTICA Entender é traduzir um sentido ou ser capaz de tradu zilo Essa tradução implica exprimir linguisticamente o sentido Gadamer chega à conclusão de que o proces so do entendimento e seu objeto são essencialmente lingüísticos Temos aqui duas teses A primeira é que o entendimento é sempre um processo lingüístico Sob um aspecto negativo não há entendimento que não seja de certa maneira expressão lingüística Entender é ser interpelado por um sentido poder traduzilo em uma linguagem que é sempre necessariamente a nossa Temos aqui fusão entre o processo do entendimento e GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 5 sua expressão lingüística A ideia de Gadamer é que a linguagem não é a tradução segunda de um processo intelectual que a precederia e que poderia se desenvol ver sem linguagem Não Todo pensamento já é busca de linguagem Não existe pensamento sem linguagem Mas aqui se trata de uma evidência que o pensamento ocidental teria teimado em menosprezar desde Platão ao atribuir à linguagem um estatuto segundo em com paração com o pensamento autônomo Aqui Gadamer denuncia um esquecimento da linguagem que teria atravessado toda a nossa tradição ocidental e à qual ele só conhece uma exceção a ideia entrevista por Agos tinho de uma identidade de essência fundamental entre o pensamento o logos e sua manifestação lin güística sua encarnação Essa linguagem do entendimento pode abarcar todo ser suscetível de ser entendido Portanto ela não está restrita a sua própria perspectiva a de uma língua ou de uma comunidade específica A condição lingüística de nossa experiência do mundo não significa um pers pectivismo que excluiria outras perspectivas6 A insis tência não recai portanto sobre o limite perspectivista que geraria o caráter lingüístico de nosso entendimen to mas ao contrário sobre a abertura que ele implica a linguagem entendida a partir do diálogo pode se abrir a tudo o que pode ser entendido e a outros horizontes lingüísticos que venham ampliar os nossos A tradução e o diálogo em princípio são sempre possíveis Isso não quer dizer que nossa linguagem não conheça limites nossas palavras são com frequência bem impotentes 6 VM 472 GW 1452 7 6 H ERM EN ÊUTICA para exprimir tudo o que sentimos Mas os limites da linguagem são então também os limites de nosso en tendimento Toda crítica aos limites da linguagem só pode ser feita propriamente no seio da linguagem Des se modo a linguagem absorve todas as objeções que se pudesse querer levantar contra sua competência Por isso é que Gadamer dirá que a universalidade da lingua gem vai pari et passu com a universalidade da razão7 ela mesma se articula em uma linguagem capaz de ser entendida e permanece impensável sem linguagem Mas se podemos falar de uma universalidade e de uma racionalidade dialógica da linguagem para designar sua abertura a todo sentido que possa ser entendido é por que a linguagem é a luz do próprio ser É daí que surge a segunda grande tese de Gadamer não apenas a realiza ção do entendimento é uma expressão pela linguagem como o objeto do entendimento é ele mesmo lingüísti co Esse é o sentido do famoso adágio de Gadamer 0 ser que pode ser entendido é linguagem Isso se aplica claramente aos textos mas segundo Gadamer o mundo que eu entendo é sempre um mundo orientado para a linguagem 0 mundo só se apresenta a mim em lingua gem Sempre Essa parede esse médico essa angústia não se oferecem inicialmente a meu olhar como reali dades físicas às quais acrescentarei depois designações Não 0 que vejo são uma parede uma casa e é uma an gústia que me estrangula Tudo o que pode ser entendi do é um ser que se articula em linguagem Quando tento entender o que é determinada coisa busco um ser que já é linguagem e que pode então ser entendido 7 VM 424 GW 1405 GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 7 É fundamental ver que a insistência de Gadamer não recai sobre a expressão lingüística do mundo por um sujeito como na concepção de Humboldt que faz da linguagem uma visão do mundo ou na de Cassirer que faz da linguagem uma forma simbólica de nos sa apreensão do mundo A ideia central de Gadamer é mais fundamentalmente ainda que é a linguagem que faz o ser do mundo aparecer porque é ela que permite desdobrar a linguagem das próprias coisas Dessa ma neira a linguagem encarna a luz do ser na qual o ser das coisas se dá a entender Muito marcados pelo pensamento moderno os intérpre tes nem sempre apreenderam bem o alcance dessa tese de Gadamer Seu propósito não consiste em dizer que o real é sempre apropriado pela linguagem que seria o real de uma língua ou de uma cultura histórica e que consequentemente o ser propriamente dito seria in cognoscível Ao contrário ele diz que é a linguagem que nos permite conhecer o sér das coisas Gadamer critica severamente a ideia moderna de Humboldt e de Cassi rer mas que remonta a Kant segundo a qual o real não receberia sua inteligibilidade a não ser de nossa lingua gem de nossa visão do mundo ou de nossas categorias 0 sujeito doador de sentido não se encontra em face de um mundo de objetos que seria inicialmente privado de sentido e que só viria a receber sentido a partir de de terminada linguagem Gadamer denuncia aqui uma con cepção nominalista e instrumental da linguagem que faz da linguagem um instrumento nas mãos do sujeito Gadamer sustenta que a linguagem já é a articulação do próprio ser das coisas Não se trata de um instrumento 7 8 H ERM EN ÊUTICA do qual dispomos Tratase muito mais do elemento uni versal no seio do qual se banham o ser e o entendimento Esse elemento universal da dimensão lingüística do sentido do ser e do entendimento habilita a herme nêutica a alimentar uma pretensão de universalidade Desse modo a hermenêutica ultrapassa o horizonte de uma reflexão sobre as ciências humanas para vir a ser uma reflexão filosófica universal sobre o caráter lingüís tico de nossa experiência do mundo e do próprio mundo g a d a m e r u m a h e r m e n ê u t i c a d o a c o n t e c i m e n t o d o b n t e n d i m e n t o 79 capítulo VI HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS I A REAÇÃO METODOLÓGICA DE B e TTI rT endo vindo a confirmar a posteriori sua con cepção do trabalho da história a hermenêu tica de Gadamer suscitou vivas discussões fi losóficas que contribuíram para ressaltar seu sentido e alcance A primeira reação proveio do jurista italiano EmilioJtetji 18901968 que apresentara uma con cepção rigorosamente metodológica da hermenêutica em sua volumosa Teoria geral da interpretação de 1955 Milão Giuffrè Editori Ela se situava na tradição de Schleiermacher e Dilthey mas a síntese magistral de Betti era muito mais desenvolvida e hierarquizada do que os esboços de seus dois grandes antecessores A Teoria generale de 1000 páginas não há dúvida foi bem pouco lida mas Betti redigiu em alemão dois pan fletos polêmicos nos quais resumia o essencial de seu pensamento e que tiveram muito mais repercussão a Fundação de uma teoria geral da interpretação de 1954 e o ensaio de 1962 A hermenêutica como meto HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 1 dologia geral das ciências humanas1 No primeiro pan fleto ele ainda não está evidentemente se defrontando com Gadamer mas Betti investe ali contra as doutrinas heréticas de Heidegger e de Bultmann que querem ver no préentendimento uma condição da interpre tação Betti defende com ardor a doutrina clássica segundo a qual o préentendimento é mais prejudicial que benfazejo ao correto entendimento Ele censura Heidegger por ter invertido o vínculo teleológico natu ral entre a interpretação e o entendimento fazendo da interpretação o desdobramento do entendimento 0 ensaio de 1962 desfecha a primeira réplica impor tante contra Verdade e método seguindo uma linha de ataque previsível mas que permitirá a Gadamer de finir o sentido de sua hermenêutica em suas respos tas especialmente no prefácio à 2a edição de Verdade e método e em seu ensaio de 1965 Hermenêutica e historicismo2 Betti se concentra especialmente na concepção da aplicação defendida por Gadamer cen surandoo de confundir a significação Bedeutung de uma obra ou seja seu sentido original do ponto de vis ta de seu autor com a significância Bedeutsamkeit que ela possa ter para o intérprete atual Segundo ele a tarefa essencial da hermenêutica não é aplicar um sen tido ao presente o que levaria ao subjetivismo mas de reconstruir a intenção do autor Betti condena a meto dologia hermenêutica que Gadamer parecia estar pro pondo e que consistiria em se desfazer do método e em 1 E Betti Zur Grundlegung einer allgemeinen Auslegungslehre 1954 reed Tübingen Mohr Siebeck 1988 Die Hermeneutik ais allgemeine Methodik der Geisteswissenschaften Tübingen Mohr Siebeck 1988 2 Em HG Gadamer Vart de comprendre 111982 pp 4987 8 2 H ERM EN ÊUTICA se remeter a seus próprios préjuízos É claro não há dúvida queBetti pensava que Gadamer tinha a mesma concepção metodológica de hermenêutica que ele Gadamer viu nessas críticas uma divergência com suas verdadeiras intenções Seu objetivo não era propor uma nova metodologia sobretudo não a metodolo giaque Betti lhe imputava mas fazer uma jeflexão sobre a experiência de verdade das ciências humanas f que busca justamente ultrapassar o quadro de uma metodologia ainda excessivamente enfeudada nas ci ências exatas Ele atenuava o alcance da distinção en tre a significação foriginal e ajsignificância atual de uma obra perguntandose se a significação do passado j podia realmente ser entendida independentemente do j sentido que ela tenha para nós e que adquiriu no de correr do trabalho da história Mas foi outro o debate que contribuiu para se chegar a conhecer melhor a hermenêutica o debate que opôs Gadamer a Habermas 2 A CONTRIBUIÇÃO DE GAD AM ER s e g u n d o H a b e r m a s No decorrer dos anos 1960 Jürgen Habermas nascido em 1929 trabalhava em uma lógica das ciências sociais que um pouco como Gadamer fizera com as ciências humanas tentava justificar a contribuição de verdade j específica das ciências sociais Sua magistral Lógica das i ciências sociais 1967 foi inicialmente um artigo publi HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 3 cado em uma revista editada por Gadamer a Philoso phische Rundschau Em 1961 aliás sabendo que ele es tava em posição vulnerável em Frankfurt Gadamer aco lheu o jovem Habermas sob sua proteção confiandolhe um lugar de professor na Universidade de Heildelberg A Lógica das ciências sociais assume a forma de uma lon ga resenha crítica das principais contribuições à epis temologia das ciências sociais Proveniente da Escola ide FrankftnJra intenção de Habermas é mostrar que as ciências são animadas por um interesse de conheci mento emancipador que as habilita a criticar a socie ídade existente Habermas está em luta especialmente contra os sociólogos que sucumbem a uma concepção puramente positivista de sua disciplina Segundo eles as ciências sociais teriam a ver com dados empíricos mensuráveis e seus resultados seriam desprovidos de qualquer interesse de conhecimento porque isso poria em risco sua pretensão de objetividade Em sua justi ficativa do tipo de conhecimento das ciências sociais Habermas pôde se inspirar em Gadamer mas também não deixou de criticálo Como a crítica talvez tenha se tornado mais famosa que a solidariedade entre os dois pensadores é necessário evocar seu acordo de base a Habermas começa por se solidarizar inteiramente com a crítica gadameriana do entendimento obje tivista que as ciências humanas tradicionais têm e si mesmas Se o homem de ciência procede a uma interpretação mantendose preso a seu ponto de partida hermenêu tico seguese que a objetividade do entendimento não pode ser assegurada pela suspensão dos préjuízos mas 8 4 H ERM EN ÊUTICA apenas por uma reflexão sobre o contexto histórico de tradições que desde sempre vincula os sujeitos cognos centes a seus objetos3 Daí Habermas extrai a lição de que o pesquisador social é implicado por seu objeto do qual ele faz parte e que ele só tem a ganhar ao tomar consciência dos préjuízos segundo ele emancipadores que orientam sua pesquisa b Habermas também aprendeu muito com a concep ção gadameriana da linguagem É claro que não se pode entender o ágir social fazendo abstração da linguagem na qual o agir se articula se enten de mas também se reflete sobre si mesmo Mas há algo de mais importante ainda que ele descobriu em Gadamer especialmente a ideia segundo a qual a linguagem não constitui um universo fechado como na teoria wittgenstginiana dos jogos de lin guagem que Habermas criticará com o auxílio de Gadamer A linguagem se encontra investida es pecialmente de uma capacidade a se transcender a si mesma Prova disso é que sempre é possível tra duzir um conteúdo de sentido estrangeiro como Gadamer o demonstrou Desse modo a linguagem pode se abrir a todos os horizontes de sentidos possíveis e superar os limites de um quadro lin güístico dado Os círculos lingüísticos não são mo nadicamente fechados sobre si mesmos mas po rosos abertos tanto para o exterior quanto para o interior4 Para o exterior enquanto podem acolher 3 J Habermas La preténtion à 1universalité de 1herméneutique in Logique des sciences sociales Paris PUF 1987 pp 245246 4 Idem ibidem p 190 HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 5 todo conteúdo estrangeiro e traduzilo mas tam bém para o interior na medida em que a linguagem é capaz de transcender suas próprias expressões de matizálas e de encontrar novas expressões para aquilo que quer ser entendido Essa abertura ates ta aos olhos de Habermas o potencial de raciona lidade inerente à própria linguagem5 A razão ele dirá posteriormente assentase na linguagem na medida em que ela é capaz de se transcender a si mesma Impressionante recepção e aplicação da hermenêutica gadameriana da parte de Haber mas mas que se duplica em uma crítica severa 3 A c r í t i c a a G a d a m e r p o r H a b e r m a s Mesmo que Gadamer tenha descoberto 0 potencial de j uma racionalidade comunicativa capaz de vencer os limites de uma linguagem dada ele teria comprometi do 0 alcance de sua descoberta segundo Habermas ao defender que 0 entendimento se fundava na tradição ou no acordo preexistente que uma comunidade dada carrega Ora é possível transcender esse acordo pree xistente por uma crítica das ideologias Seu propósito é justamente questionar a ideologia reinante em dada sociedade ou em um grupo como uma forma sistemati camente distorcida de comunicação distorcida porque desvia a comunicação de seu fim natural que é 0 acor do entre os interlocutores Essa crítica é feita então em nome de uma situação de comunicação ideal irreal sem 5 Idem ibidem p 185 8 6 I H ERM EN ÊUTICA dúvida mas que não deixaria de ser antecipada em todo ato de fala desde que acreditemos que o ato de fala é animado por uma vontade de comunicação Assim como o psicanalista deve diagnosticar um bloqueio co municacional em um paciente o terapeuta social pode desmascarar o pseudoconsenso que dada sociedade ali menta como uma forma de falsa consciência Mas ao pôr em questão o acordo preexistente em dada comu nidade sairíamos do campo da hermenêutica para en trar no campo da crítica das ideologias Afastandose graças ao trabalho de reflexão do quadro da tradição ela elaboraria um sistema de referência normativo6 que lhe permitiria livrarse da pertença irrefletida à tradi ção como o confirma mais uma vez a psicanálise uma tradição trazida à consciência pela reflexão deixaria de nos determinar Por isso Habermas critica Gadamer por erigir as tradições culturais como absolutas7 Só quando consideramos a crítica de Habermas mais de perto é que nos damos conta de que ele também tenta pensar com Gadamer contra Gadamer8 Porque é exatamente a concepção gadameriana de linguagem e sua capacidade de autotranscendência que ele brande contra a concepção gadameriana da tradição Mas podemos realmente falar de uma absolutização das tradições culturais em Gadamer Não estamos cer tos disso Gadamer reconhece perfeitamente que é pos 6 Logique des sciences sociales p 215 0 direito da reflexão reclama a autolimitação da abordagem hermenêutica Ele demanda um sistema de referência que ultrapasse o contexto da tradição enquanto tal 7 Ibidem p 218 8 Ibidem p 215 HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 7 sível transcender os limites digamos ideológicos de uma linguagem ou de uma situação determinada Por sinal não é esse o grande mérito que Habermas reco nhece à concepção gadameriana de linguagem Além disso Gadamer já destacara em Verdade e método que a autoridade de uma tradição nada tinha de autoritário mas que ela se baseava em um ato de reconhecimento e da razão9 por ser antes de tudo o reconhecimento de uma superioridade Portanto em Gadamer não se trata de fazer da tradição um critério absoluto Por si nal Gadamer o reiterou em sua resposta a Habermas resposta evocadoramente intitulada Retórica herme nêutica e crítica das ideologias Pareceme falso dizer que fazemos aqui da tradição cultural um absoluto10 A dissensão incide especialmente sobre a questão de saber se ao transcender os limites de uma tradição dada em nome da crítica das ideologias realmente saí mos do universo hermenêutico e se a tomada de cons ciência de uma tradição pela reflexão suspende com pletamente a determinação da tradição É incontestável que a reflexão frequentemente pode quebrar ou suspender a força de uma tradição dis torcida Quando me dou conta de que sou vítima de um preconceito deformante ele pode deixar de me paralisar a partir do momento em que é refletido Mas 9 VM 300 GWl 284 10 HG Gadamer Herméneutique et philosophie Paris Beauchesne 1999 pp 9798 Ricoeur compreendeu perfeitamente Temps et récit t 3 Paris Le Seuil 1985 p 320 Fazer das tradições uma avaliação positiva não é ainda fazer da tradição um critério hermenêutico da verdade 8 8 H ERM EN ÊUTICA Gadamer também reconhecia muito claramente isso quando escrevia que a tarefa crítica da hermenêutica era elaborar préjuízos conformes à coisa11 Ocorre que a reflexão também não dissolve toda pertinência à tra dição A reflexão crítica de uma tradição inscrevese em um trabalho da história Não posso questionar uma tra dição exceto a partir de outra mesmo que não me dê conta expressamente disso 0 questionamento de uma tradição não se faz em virtude de um sistema de refe rência que seria independente do trabalho da história Mesmo reconhecendo ser possível ultrapassar os limi tes de uma tradição cultural Gadamer duvida de que o abandono do acordo existente possa se fazer a partir do ponto de equilíbrio de uma crítica das ideologias que pretenda diagnosticar as patologias da socieda de Essa transposição do modelo psicanalítico para as patologias de uma sociedade parece mais problemá tica aos olhos de Gadamer 0 papel do psicoterapeuta é muito diferente do papel do sociólogo Em uma cura psicanalítica você está diante de um doente que solicita a reconhecida competência de um terapeuta Mas não seria presunçoso da parte do investigador social pre tender que uma parte da sociedade está radicalmente doente e se arrogar uma competência de terapeuta social Temos aqui um paciente e uma competência terapêutica bem reconhecidos Não deixamos o universo hermenêutico quando nos consagramos à crítica das ideologias 0 ultrapassamen to do acordo existente não se opera a partir do sistema 11 VM 288 298 GW1272 281282 HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 9 de referência de uma crítica das ideologias segura de si mesma e se dizendo apartada da tradição Ele se realiza sempre no seio do entendimento e do diálogo herme nêuticos quando os participantes se dão conta de seus limites e chegam a uma melhor compreensão Pelo fato de ser um entendimento e de se desdobrar em uma i linguagem capaz de ser entendida a reflexão resulta 1 então uma vez mais da hermenêutica e se inscreve em um advir de tradições í 0 próprio Habermas se situa no seio de uma tradição i mais ou menos consciente e mais ou menos rompida j pela reflexão Aliás o melhor modo de mostrálo é evo car com mais de uma geração de recuo o contexto po lítico e social que formava claramente o pano de fundo da crítica de Habermas o da revolta estudantil de 1968 e seu questionamento cego de toda autoridade baseada na tradição Em um contexto político tão pesado Gada mer só podia aparecer como o conservador que ele jamais quis nem pretendeu ser enquanto Habermas evocando a força emancipadora da crítica marxista das ideologias e da psicanálise outorgavase o belo papel do progressista A ironia gritante quando se pensa nis so era a seguinte aquele que defendia com mais ardor o ponto de vista da crítica das ideologias talvez fosse aquele cujo discurso era o mais evidentemente ideo logizado Como Gadamer murmurou bem mais tarde o que talvez faltasse à crítica das ideologias fosse uma pequena dose de crítica das ideologias12 começando pelas próprias 12 Entrevista com C Barkhausen em Sprache und Literatur in Wissens chaft und Unterricht Paderborn W Fink 1986 p 97 9 0 H ERM EN ÊUTICA Habermas terá reconhecido isso a sua maneira Depois de seu épico debate com Gadamer ele foi renunciando cada vez mais à retórica da crítica das ideologias e a sua ideia de uma psicanálise ampliada à ordem social dedicando todos os seus esforços à elaboração de uma Teoria do agir comunicativo 1981 cujo núcleo é uma ética do discurso fundada na capacidade da linguagem de se transcender a si mesma Intuição hermenêutica se é que existe alguma visto que ela repousa na ideia gadameriana segundo a qual a linguagem visa primei ramente o acordo com o outro Ora intenção de acordo defende Habermas com razão é impensável sem deter minado engajamento ético da parte dos interlocutores ela pressupõe efetivamente certo ideal de reciprocida de de autenticidade e uma vontade de se render à força do melhor argumento Ao deixar de buscar fundar es sas normas em uma crítica das ideologias ou na anteci pação de uma situação de comunicação ideal mas sim no uso pragmático da linguagem podemos dizer que o último Habermas se reaproximou de Gadamer HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 9 1 capítulo VII vs PAUL RICGEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO DIANTE DO CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES i U m p e r c u r s o a r b o r e s c e n t e yX V ada mais injusto do que abordar a contri buição de Ricceur depois das contribuições J l n de Gadamer e de Habermas Se decidimos fazer assim é unicamente porque Ricceur fundou uma de suas intervenções hermenêuticas sobre uma tenta tiva de conciliação dos pensamentos de Gadamer e de Habermas1 Mas ele vinculava o conflito entre a herme nêutica e a crítica das ideologias a uma distinção entre dois tipos de hermenêutica a hermenêutica da confian ça e a hermenêutica da suspeita que distinguira muito ãntes do célebre confronto entre Gadamer e Habermas 1 Herméneutique et critique des idéologies 1973 in Du texte à lac tion TA Paris Le Seuil 1986 p a u l r i c c e u r u m a h e r m e n ê u t i c a d o s i h i s t ó r i c o 93 A ideia de Ricceur e talvez a ideia fundamental de sua hermenêutica é que é preciso penxsar coniuntamente essas duas hermenêuticas aquela que se apropria do sentido tal qual eíe se dá à consciência na expectativa de orientação e aquela que se distancia da experiência imediata do sentido para reconduzila a uma economia mais secreta Ricoeur chegou a essa ideia seguindo uma trajetória bem distinta da trajetória de Gadamer Ela é até mesmo completamente independente da de Gadamer Seus fun damentos foram lançados nas obras publicadas no cor rer dos anos 1950 e 1960 como A filosofia da vontade 1950 1960 Da interpretação 1965 e 0 conflito das interpretações 1969 nas quais a presença de Gadamer não é de todo sensível Por sinal ela permanecerá muito discreta nas obras posteriores de Ricoeur Contudo to dos os dois haurem da mesma tradição hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey Bultmann e Heidegger mas em graus diferentes e com intenções diferentes Gada mer é certamente muito mais crítico de Dilthey e mais próximo de Heidegger com sua hermenêutica universal tentando ultrapassar o paradigma metodológico da her menêutica Ricoeur por sua vez jamais quis se afastar da problemática metodológica e epistemológica da herme nêutica Poderíamos então dizer que ele está mais pró ximo de Dilthey mas isso seria uma simplificação Realmente o percurso de Ricoeur é muito mais complexo que isso procedendo de outras fontes e talvez resistindo mais a se deixar reduzir apenas à tradição hermenêutica do que o percurso de Gadamer Seu trajeto se desenvol veu no fio de vários grandes livros que se estendem por 9 4 H ERM EN ÊUTICA um período de quase sessenta anos de 1947 a 2004 en quanto a hermenêutica de Gadamer concentrase em um único livro que apresenta uma teoria mais sistemática e que talvez tenha dado origem a debates hermenêuticos mais expressivos que a de Ricoeur As obras de Ricoeur se interessam por uma florescente diversidade de discipli nas filosofia da existência de onde ele partiu e onde estava mais perto de autores como Gabriel Mareei e Karl Jaspers do que de Heidegger teoria do conhecimen to histórico interpretação da Bíblia psicanálise teoria lingüística teoria da ação fenomenologia do tempo fe nomenologia da memória e do reconhecimento teoria da narrativa e ética Em cada um de seus livros Ricoeur esboça vastos afrescos históricos que tentam reconci liar as abordagens mais diversas Esse é o traço secre tamente hegeliano desse pensamento que contudo resiste à ideia de uma síntese totalizante um título de um importante capítulo de Tempo e narrativa dirá que é preciso Renunciar a Hegel em nome do inacabamento da vida e da finitude humana O oposto dessa riqueza é que por vezes pode parecer difícil delimitar o núcleo de sua concepção hermenêutica A unidade é o único pro blema suscitado por esse pensamento hermenêutico Problema porém completamente relativo porque ele é o resultado de uma superabundância Mas há unidade nesse pensamento E como Podemos compreendêla a partir dos primeiros impulsos do per curso de Ricoeur Eles devem ser buscados na tradição francesa da filosofia reflexiva aquela que remonta a Ravaisson Lachelier e Bergson e que é continuada por autores próximo a Ricoeur como Nabert e Marcel A fi P A U L r i c c e u r u m a h e r m e n ê u t i c a d o s i h i s t ó r i c o 95 losofia reflexiva parte da autorreflexão do ego na tra dição do conhecete a ti mesmo de Sócrates e das me ditações de Descartes Essa tradição logo atraiu Ricoeur para o existencialismo de Jaspers e a fenomenologia de Husserl curvada sobre um ego transcendental que busca justificar sua experiência Encantado pela filosofia da existência e sua radicaliza ção da problemática ética dado que o sujeito é pensado por ela como tarefa de si mesmo Ricceur começou que rendo ampliar a análise fenomenológica de Husserl ao fenômeno da vontade na primeira parte de sua Filosofia da vontade 1950 A hermenêutica está ausente dessa obra mas surge com toda a força no segundo tomo Fi nitude e culpabilidade 1960 e mais especialmente no segundo volume do livro dedicado à Simbólica do mal É aqui que se desencadeia sua virada hermenêutica ou aquilo que mais tarde virá a ser chamado de seu enxer to da hermenêutica na fenomenologia Seu motivo fundamental é que o ego não pode se co nhecer diretamente por introspecção ele não pode se entender exceto pela via indireta da interpretação dos grandes símbolos Adão e Eva Jó o orfismo etc que se esforçam para dar um sentido ao problema do mal Segundo aquilo que Ricoeur mais tarde veio a cha mar de sua primeira definição da hermenêutica ela era à época expressamente concebida como uma de cifração dos símbolos eles mesmos entendidos como expressões de duplo sentido2 Nessa perspectiva a in terpretação é o trabalho de pensamento que consiste 2 P Ricoeur Refléxion faite Autobiographie intellectuelle Esprit 199531 9 6 H ERM EN ÊUTICA em decifrar o sentido oculto no sentido aparente em desdobrar os níveis de significação implicados na sig nificação literal3 Esse é o primeiro sentido de seu desvio hermenêuti co bem diferente do desvio de Heidegger e de Gada mer Se o desvio pelo lado objetai das experiências lhe foi inspirado por Nabert4 o termo hermenêutica remete a Dilthey e a Bultmann para os quais a herme nêutica era a teoria da interpretação das manifestações vitais fixadas por escrito É claro que Ricoeur não desconhecia que Heidegger tinha querido suplantar Dilthey mas ele sempre quis resistir à ontologização heideggeriana da hermenêu tica ou seja à confusão entre a hermenêutica e a rea lização fundamental da existência Segundo ele essa veemência ontológica perderia de vista a orientação epistemológica e consequentemente crítica da her menêutica de Dilthey5 2 U m a f e n o m e n o l o g i a TORNADA HERMENÊUTICA Apesar de sua resistência à hermenêutica de Heideg ger o próprio Ricoeur defende a ideia de uma virada hermenêutica da fenomenologia Mas com um sentido 3 P Ricoeur Le conflit des interprétations Paris Le Seuil 1969 p 16 4 P Ricoeur Parcours de la reconnaissance Paris Stock 2004 p 142 5 P Ricoeur TA 95 Ver J Greisch Paul Ricoeur Uitinérance du sens Grenoble Jérôme Millon sd p 140 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 9 7 diferente daquele que tem em Heidegger Essa virada se justifica em Ricoeur a partir da impossibilidade de um acesso direto aos fenômenos e ao próprio ego A seus olhos o que a hermenêutica arruinou não foi a fenomenologia mas uma de suas interpretações a sa ber sua interpretação idealista pelo próprio Husserl6 0 que a hermenêutica arruinou foi mais especialmente a o ideal husserliano de cientificidade orientado para uma fundamentação última b a primazia da intúição como via de acesso aos fenô menos c o primado cartesiano e husserliano de uma ima nência do sujeito a si mesmo d o estatuto de princípio último que então se reco nhece ao sujeito e a concepção ainda excessivamente teórica da au torreflexão no seio da fenomenologia husserliana dado o ato imediatamente responsável de si a to mada de consciência do sujeito desenvolve implica ções éticas que a seqüência do percurso de Ricoeur aprofundará cada vez mais Contra o pano de fundo dessa crítica Ricoeur propõe desenvolver por sua vez uma fenomenologia herme nêutica que tome o caminho das objetivações como o desvio obrigatório para o conhecimento de si Notemos que a hermenêutica vem aqui qualificar a fenomeno logia Era um pouco o contrário em Gadamer que pro punha uma hermenêutica fenomenológica isto é uma hermenêutica que retornava ao fenômeno do entendi 6 TA 39 9 8 H ERM EN ÊUTICA mento aliviandoo de seu jugo metodológico Podemos então falar em Ricceur de uma virada hermenêutica da fenomenologia e em Gadamer de uma virada feno menológica da hermenêutica7 Mesmo que Ricoeur insista na inflexão hermenêutica da fenomenologia não se deveriam esquecer segundo ele os pressupostos ainda fenomenológicos da her menêutica O primeiro é que toda questão incidente sobre um ente qualquer é uma questão sobre o senti do desse ente Mas esse sentido está à primeira vista dissimulado opaco e deve ser trazido à luz por um es forço hermenêutico A escolha do sentido é então o pressuposto mais geral de toda hermenêutica Só que isso não implica de maneira alguma que uma subje tividade transcendental tenha o soberano domínio do sentido rumo ao qual ela se dirige Ao contrário a feno menologia pode ser empurrada na direção oposta a saber para o lado da preeminência do sentido sobre a consciência de si8 0 segundo pressuposto fenomeno lógico é que a hermenêutica deve justificar a experiên cia do distanciamento se a consciência se caracteriza inicialmente por sua pertença ao sentido esse sentido pode ser posto à distância e interpretado 0 terceiro pressuposto é que a hermenêutica reconhece como Husserl o caráter derivado da ordem lingüística com relação aos sentidos e às coisas Aqui Ricoeur parece se afastar de Gadamer Mas isso não é completamente ver dadeiro porque Gadamer também defendia para falar 7 Ver meu estudo sobre essa questão em Le tournant herméneutique de la phénoménologie Paris PUF 2003 pp 84102 8 TA 57 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 9 9 como Habermas a ideia de uma porosidade essencial da linguagem aberta a toda coisa e capaz de se trans cender a si mesma Ricoeur chega à conclusão de que a ordem lingüística não é autônoma e de que ela remete a uma experiência de mundo Mas essa experiência só se dá por meio de uma hermenêutica que se dedica à interpretação das objetivações de sentido 3 O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES A HERMENÊUTICA DA CONFIANÇA E DA SUSPEITA Mas como interpretar as objetivações de sentido Essa era um pouco a questão da hermenêutica clássica e será a questão de Ricoeur Podemos nos abandonar à imediatidade dò sentido tal como ela se dá segundo 0 que parece ser a orientação fundamental da exegese bíblica e que Ricoeur ainda seguia na virada hermenêu tica de Simbólica do mal de 1960 Se a questão se apre senta com tamanha acuidade é porque Ricoeur depois de ter concluído essa obra viuse confrontado com ou tras interpretações mais redutoras que questionam justamente a leitura ingênua do sentido Foi assim que vieram a se destacar duas formas distintas de interpre tação aparentemente incompatíveis a A primeira provém de uma hermenêutica da con fiança ou da recolecção do sentido ela assume 0 sentido tal como se propõe ao entendimento e tal como ele orienta a consciência sentido no qual se revela uma verdade mais profunda e que pertence a uma hermenêutica amplificadora a explorar Ri 1 0 0 H ERM EN ÊUTICA coeur fala aqui de uma teleologia do sentido Essa hermenêutica cujos paradigmas são a exegese bí blica e a fenomenologia da consciência está votada ao entendimento do sentido ao sentido pleno que Dilthey lhe dava ela se abre às possibilidades de sentido e à experiência que se dá a entender para além das expressões b A ela vem contudo se opor uma hermenêutica da suspeita que desconfia do sentido tal como ele se oferece porque ele pode abusar da consciência 0 que aparece como verdade pode não passar de um erro útil de uma mentira ou de uma deformação cuja arqueologia subterrânea a hermenêutica da suspeita se propõe reconstruir Essa arqueologia pode ser ideológica social pulsional e estrutural É uma hermenêutica defendida pelos mestres da suspeita Feuerbach Marx Nietzsche Freud e o estruturalismo À hermenêutica amplificadora te leológica da confiança vem responder uma inter pretação redutora consagrada não ao entendimen to mas à explicação dos fenômenos da consciência reconduzidos a uma economia secreta e recalcada que se inspira claramente em modelos de explica ção extraídos das ciências exatas Por ser proveniente da filosofia reflexiva e do existen cialismo poderíamos suspeitar de que Ricoeur está mais próximo da fenomenologia e da hermenêutica da con fiança Mas esse não é o caso Em seus livros dos anos 1960 realmente ele se dedicou aos mestres da suspeita especialmente a Freud em Da interpretação 1965 e ao estruturalismo em O conflito das interpretações 1969 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 1 Ricoeur preconiza nessas obras uma abordagem extra ordinariamente conciliatória que não renega nada da hermenêutica redutora da suspeita Sua ideia diretriz é que é preciso ir à escola da suspeita se se quiser des truir as ilusões da consciência ingênua Essa destruição se apresenta como salutar para a consciência que chega então a se entender melhor a si mesma Se o eu se perde na hermenêutica da suspeita é justamente para melhor se reencontrar libertado de suas ilusões Ao reconhecer desse modo iguais direitos às duas grandes estratégias interpretativas Ricceur dá prova de conservar um sentido aguçado das objetivações e das construções de sentido que é preciso interpretar É isso o que leva a resistir à tentativa heideggeriana de subordinar tudo a uma hermenêutica ontológica do entendimento9 bem como à tentativa gadameriana de questionar a primazia da perspectiva metódica Para Gadamer entender não é se encontrar diante de uma objetivação que é necessário decodificar é sertomado é serhabitado pelo sentido Gadamer falava desde en tão de uma fusão entre o sentido e aquele que o enten de É esse evento de entendimento que a hermenêutica devia se esforçar para justificar Ricceur desconfia por sua vez dessa fusão e começa situando o entendimento diante das objetivações que as abordagens objetivan tes da psicanálise e do estruturalismo viriam nos aju dar a decodificar Mas não seriam elas a deter a última palavra porque é sempre uma consciência que tenta se entender melhor Seguindo a divisa de Ricoeur nessa época Explicar mais é entender melhor 9 TA 33 1 0 2 H ERM EN ÊUTICA 4 U m a n o v a h e r m e n ê u t i c a DA EXPLICAÇÃO E DO ENTENDIMENTO INSPIRADA NA NOÇÃO DE TEXTO Desse modo Ricoeur renova a compreensão da distin ção feita por Dilthey entre a explicação das ciências exatas e o entendimento das ciências humanas Mas não se trata exatamente de uma distinção metodológi ca em Ricoeur entre dois tipos de ciência mas sim de duas operações complementares da consciência naqui lo que ele chamará sempre mais de arco hermenêutico da interpretação ou seja o conjunto das operações en trelaçadas que compõem o esforço hermenêutico Uma consciência crítica deve desconfiar da evidência ime diata do sentido que ela entende e da qual se apropria naturalmente Ela deve aceitar que esse sentido possa ser posto à distância pelo desvio decapante de uma ex plicação que denuncie as ilusões da consciência Compreendese perfeitamente que Ricoeur tenha que rido associar Habermas a uma hermenêutica do dis tanciamento e Gadamer a uma hermenêutica da per tença Sob essas novas designações reconhecemos sem esforço as hermenêuticas da suspeita e da confiança se Gadamer acentua a pertença do entendimento ao sen tido transmitido pela tradição a crítica das ideologias põe em guarda contra a ideologização que essa com preensão talvez encerre A consciência hermenêutica logo a consciência refletida segundo Ricoeur não pode ria se permitir ignorar as lições de uma hermenêutica da desapropriação Uma consciência desapropriada de suas ilusões não se apropria melhor de si mesma PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 3 Ao aprofundar essa didática do explicar e do entender um tema novo veio à luz no itinerário de Ricceur no iní cio dos anos 1970 tema que podemos associar à noção de texto Ele levou a uma ampliação de sua primeira concepção da hermenêutica a hermenêutica não esta rá mais voltada apenas para a decifração dos símbolos de duplo sentido ela terá a ver com todo o conjunto de sentidos capaz de ser entendido e que podemos chamar de um texto10 Mas como interpretar os textos Aqui mais uma vez Ricceur foi muito marcado pelas aborda gens estruturais e semióticas especialmente a de Grei mas que consideram o texto como uma unidade autor referencial encerrada sobre si mesma Levar em conta essas interpretações encarna aos olhos de Ricoeur a primeira etapa necessária no arco da interpretação Uma nova época da hermenêutica se abriu com o suces so da análise estrutural a explicação é a partir de então o caminho obrigatório do entendimento11 Mas a análise estrutural não seria a única É que o mun do de um texto nunca é fechado sobre si mesmo ele abre um mundo que a consciência pode habitar A no ção de texto remete aliás por si mesma a um ato de leitura pelo qual o mundo do texto se vê apropriar por um leitor que dessa maneira vem a se entender me lhor A partir de então é na leitura que se realizará a hermenêutica amplificadora do sentido 1 A interpretação de um texto se realiza na interpretação de si de um sujeito que doravante se entende melhor se 10 P Ricoeur Questce quun texte TA 137159 11 TA 110 1 0 4 H ERM EN ÊUTICA entende de outro modo ou até mesmo começa a se en tender12 A tarefa essencial da hermenêutica será portanto du pla tratase de reconstruir a dinâmica interna do texto e de restituir a capacidade da obra de se projetar para fora na represen tação de um mundo que eu poderia habitar13 Essa dialética da explicação que põe à distância e do entendimento que o mundo do texto desdobra leva a uma concepção mais ampla da hermenêutica A dialética nova enfrentava duas operações o explicar e o entender que W Dilthey opusera fortemente no começo do século Ora o tratamento dessa situação conflitual pro vocava um remanejamento de minha concepção anterior da hermenêutica que permanecera até então solidária com a noção de símbolo entendida como expressão de du plo sentido e encontrara seu estilo conflituoso na concor rência entre interpretação redutora e interpretação ampli ficadora A dialética entre explicar e entender desdobra da no nível do texto enquanto unidade maior que a frase tornavase a grande questão da interpretação e constituía a partir de então o tema e a aposta da hermenêutica14 Em Do texto à ação Ricoeur passa a adotar a seguinte definição da hermenêutica ela é a teoria das operações do entendimento em sua relação com a interpretação dos textos15 12 TA 152 13 TA 32 14 Réflexion faite 49 15 TA 75 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 5 Aqui o que mais fascinou Ricoeur foi a extensão quase infinita de que se pode beneficiar a noção de texto Tudo o que é capaz de ser entendido pode ser consi derado como um texto não apenas os escritos claro mas também a ação humana e a história tanto indivi dual quanto coletiva só são compreensíveis na medida em que possam ser lidas como texto A ideia que de corre daí é que o entendimento da realidade humana é construído por meio dos textos e das narrativas Desse modo a identidade humana deve ser entendida como uma identidade essencialmente narrativa A teoria da narrativa histórica desenvolvida nos anos 1980 per mitirá contribuir com uma nova resposta à pergunta diretriz de toda filosofia reflexiva quem sou eu 5 A HERMENÊUTICA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA Ricoeur diz muito frequentemente que o si que se des taca das hermenêuticas da suspeita e do distanciamen to é muito certamente um cogito quebrado Ele deve renunciar ao ideal de uma transparência integral mas não pode se entender a partir de objetivações de senti do de grandes textos literários filosóficos e religio sos transmitidos pela história da humanidade e nos quais se configura sua experiência radical da tempora lidade Foi em Tempo e narrativa 19821985 que Paul Ricoeur apresentou essa nova concepção de hermenêu tica Ela se situa em continuidade com a nova ampli dão que ele reconheceu à noção de texto e de leitura 1 0 6 H ERM EN ÊUTICA em sua hermenêutica do explicar e do entender mas se encontra mais diretamente posta a serviço de uma fenomenologia de nossa temporalidade essencial o si não pode dar um sentido a sua experiência radical e insuperável do tempo exceto pela interpretação da configuração narrativa 0 si quebrado e que se sabe tal pode então se dar conta de suas modestas mas reais capacidades de reconfigurar seu próprio mun do A hermenêutica narrativa de Ricceur enfatizará co rajosamente os dois aspectos o caráter trágico da con dição humana que nunca alcançará um entendimento totalizante de si mesma mas igualmente a resposta do homem a essa aporia a parte de iniciativa que compete a ele apesar de tudo enquanto homem capaz No último volume de Tempo e narrativa os dois mo mentos se entrecruzam em uma hermenêutica da consciência histórica A fórmula evoca Gadamer e sua ideia de uma hermenêutica da consciência do trabalho da história Ricoeur reconhece a Gadamer justamente o mérito de ter insistido no serafetadopelopassado Não somos os agentes da história somos apenas seus pacientes porque nós nunca estamos na posição ab soluta de inovadores mas sempre e em princípio na si tuação de herdeiros Essa condição provém inicialmen te como em Gadamer de nossa condição lingüística A linguagem é a grande instituição a instituição das instituições que sempre nos precedeu a todos En quanto seres falantes somos não apenas dependentes do sistema da língua sobre o qual insistem as aborda gens estruturais mas também das coisas já ditas en tendidas e recebidas 0 mundo tal qual o experimen PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 7 tamos é portanto um mundo que se exprime em uma linguagem e por meio de uma identidade histórica que são recebidos antes É por isso que diz agora Ricoeur o distanciamento a liberdade em relação aos conteúdos transmitidos não podem ser a atitude primeira16 Aqui Ricoeur se aproxima muito de Gadamer aliás talvez mais do que em qualquer outra parte de sua obra Todavia mais uma vez ele está menos preocupado em conter a distância metódica objetivante do que em integrála à hermenêutica da consciência histórica Se gundo Ricceur o próprio Gadamer teria reconhecido a necessidade dessa integração quando insistiu na no ção de aplicação e na ideia de que o entendimento era sempre o resultado de uma fusão de horizontes entre o passado e o presente 0 presente tem uma palavra a di zer no acontecimento de tradição que é o entendimen to mas se trata de uma resposta que se esboça contra o pano de fundo de um pertencimento primordial Nessa altura Ricoeur classifica de lamentável17 a polêmica que opusera a hermenêutica à crítica das ideologias Ocorre que as posições de Gadamer e as de Habermas procederiam de dois lugares diferentes a reinterpre tação dos textos recebidos da tradição em um e a crí tica das formas ideológicas de comunicação distorcida no outro Não se poderia então superpor sem mais o que Gadamer chama de préjuízo no sentido de pré juízo favorável e o fenômeno ideológico que interessa a Habermas isto é a distorção da comunicação 16 Temps et récit t iii 313320321 324 17 Temps et récit t iii 314 Ricoeur sopesa então o juízo que fizera em 1973 quando falava de uma dialética essencial entre a hermenêutica e a crítica das ideologias 1 0 8 H ERM EN ÊUTICA Desse modo se nós somos os herdeiros da tradição a identidade narrativa que herdamos da história nunca é estável nem fechada Ela também depende da respos ta que nós podemos lhe dar A insistência recai aqui na capacidade de resposta e de iniciativa que a distingue 0 que se descobre aqui é a dimensão ética do homem capaz Esse será o último ponto central das reflexões hermenêuticas de Ricceur A pergunta da filosofia refle xiva quem sou eu dará lugar à pergunta não menos hermenêutica que ética Que posso eu 6 U m a f e n o m e n o l o g i a HERMENÊUTICA DO HOMEM CAPAZ Não somos apenas os herdeiros passivos da histó ria Um espaço de iniciativa nos está reservado Uma hermenêutica da consciência histórica deve dessa forma levar a uma fenomenologia dos poderes do homem capaz Ao desenvolver uma filosofia her menêutica da ipseidade o último Ricceur reata com aquilo que ele chama uma de suas mais antigas con vicções a saber 0 si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico cuja hipocrisia e ingenuidade foram denunciadas pelas hermenêuticas da suspeita O si do conhecimento de si é o fruto de uma vida examinada segundo a palavra de Sócrates na Apologia Uma vida examinada é em grande medida uma vida depurada esclarecida pelos efeitos catárticos das narrativas tanto históricas quanto fictícias veiculadas por nossa cultura Dessa maneira a ipseidade PAUL RICOEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 9 é a de um si instruído pelas obras da cultura que ele se aplicou a si mesmo18 A identidade narrativa variará portanto de acordo com as comunidades mas também segundo os indivíduos Nos dois casos o si pode reconfigurar em certa medi da sua identidade narrativa Em sua fenomenologia do homem capaz cujas grandes linhas ele evocou em seu Percurso do reconhecimento publicado um ano antes de sua morte Ricoeur parte dos principais usos segundo os quais se diz eu posso19 Eu posso falar eu posso agir eu posso contar eu posso me responsabilizar por meus atos permitir que eles me sejam imputados como seu verdadeiro autor Esses quatro usos abrem respectiva mente os campos da filosofia da linguagem da filosofia da ação da teoria narrativa e da filosofia moral Mas o título geral do projeto filosófico de Ricoeur con tinua a ser o de uma hermenêutica do si20 A fórmula chega quase a lembrar a ideia heideggeriana de uma hermenêutica da facticidade Isso porque aqui a herme nêutica não incide mais sobre símbolos ou textos se gundo as duas primeiras concepções da hermenêutica de Ricoeur mas incide sobre o próprio si A hermenêu tica assume aqui a forma de uma ontologia fundamen tal que dá preferência às noções de ato de potência e de possibilidade diferentemente da acepção substan cialista que teria prevalecido na filosofia clássica21 A 18 Temps et récit t iii p 356 19 Parcours de la reconnaissance Paris Stock pp 137163 20 Soimême comme un autre Paris Le Seuil 1990 p 345 Parcours de la reconnaissance p 137 21 La mémoire 1histoire etVoubli p 639 1 1 0 H ERM EN ÊUTICA essa altura Ricceur parece atenuar a crítica à veemên cia ontológica que ainda caracterizava suas primeiras intervenções hermenêuticas Se a ontologia é para Hei degger um ponto de partida ela será para Ricceur um ponto de chegada Podemos ver nessa ontologia hermenêutica do homem capaz o completamento de todo o percurso de Ricoeur assim como um retorno à problemática reflexiva de sencadeado por seu desvio pela hermenêutica Essa hermenêutica do si vem lembrar utilmente que o ser afetadopelopassado no qual Gadamer insistira não é a única determinação da consciência 0 homem ser de possibilidades pode reconfigurar seu mundo as sim como seu passado pela memória pelo perdão pelo reconhecimento Tendo tirado lições essenciais da escola da suspeita essa hermenêutica abandona de uma vez por todas a falsa ilusão de uma plena posse de si pela reflexão mas essa destruição não poderia conduzir a uma resignação fatalista diante do destino implacável do trabalho da história Ao contrário ela nos ajuda a redescobrir os recursos éticos do si capaz diante do mal e da injustiça reais que o rodeiam 0 alcance ético dessa hermenêutica do si cai sob o sen tido Por sinal Si mesmo como um outro desenvolveu uma pequena ética22 que se empenha em delimitar a tensão ética fundamental ao dizer que ela se caracteri za pela intenção da vida boa com e para os outros em instituições justas Mas esse senso da justiça e da vida boa não cai do céu Enquanto seres históricos somos 22 Soimême comme un autre p 202 PAUL RICOEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 1 1 os herdeiros de promessas fundadoras23 portanto de esperanças das quais a hermenêutica do si pretende ser a memória Dessamaneira Ricoeur nos permite ver que se uma hermenêutica sem ética permanece vazia uma ética sem hermenêutica é cega 23 Parcours de Ia reconnaissance p 197 1 1 2 H ERM EN ÊUTICA capítulo VIII HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO I DESCONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO EM ÜERRIDA O hoje célebre encontro entre HansGeorg Ga damer e Jacques Derrida 19302004 deu origem a um verdadeiro confronto entre uma hermenêutica da confiança e uma hermenêutica da suspeita Esse encontro aconteceu em Paris em 198Í Contudo diferentemente dos conflitos de interpreta ção que frequentemente opõem as hermenêuticas da confiança e da suspeita os dois pensadores tinham ori gens comuns como Gadamer Derrida também partira do programa hermenêutico de Heidegger em Ser e tempo mas tendo retido sobretudo o caráter destrui dor ou seja sua intenção de pôr a descoberto os pres supostos metafísicos da tradição ocidental Derrida retoma muito especialmente a ideia heidegge riana segundo a qual o pensamento ocidental ou me tafísico entendamos com isso o pensamento que de Platão a Hegel aspirava a uma explicação totalizante do HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 3 ser seria regido por uma determinação do ser como presença1 o ser é aquele que se oferece a um olhar que lhe é imposto por sua intenção de dominação Benefi ciandose nesse sentido de uma formação estrutura lista Derrida aplica essa intuição à compreensão dos signos o que o leva a questionar a concepção qualifica da de metafísica do sentido e da própria verdade Na lingüística de Ferdinand de Saussure a noção de senti do se exprime mediante o par significantesignificado 0 significante ou o signo remete então a uma pre sença significada que encarnaria uma presença plena da coisa ou da referência Mas a partir do momento em que tentamos pensar esse significado damonos con ta de que só podemos fazêlo na ordem dos signos ou do discurso O sentido permanece portanto diferido para sempre pelo jogo daquilo que Derrida chama a différance onde é preciso entender ao mesmo tem po a diferença pretendida entre o signo e o sentido e a transcrição infinita de sua realização fato pelo qual jamais sairíamos do império dos signos Desse modo Derrida reconhece um papel preponde rante à constituição lingüística do entendimento o que poderia aproximálo de Gadamer Mas aqui a distância não há dúvida é mais considerável aos olhos de Derrida do que a proximidade patente Derrida realmente de monstra ser muito mais estruturalista que Gadamer ou até mesmo que Heidegger enquanto para Gadamer e Heidegger é o ser que a linguagem traz à fala o ser para Derrida não será mais que um efeito da différon 1 Ver J Derrida La structure le signe et le jeu dans les discours des sciences humaines in Üécriture et la différence Paris Le Seuil 1967 p 411 1 1 4 H ERM EN ÊUTICA ce visto que ele permaneceria inatingível fora dos sig nos que o exprimem Em um texto frequentemente ci tado Derrida escreverá que não existe fora do texto2 Aqui podemos nos perguntar e essa será uma das críti cas de Gadamer se essa desconstrução a sua maneira não sucumbe ao nominalismo do pensamento moderno ao se concentrar exclusivamente na ordem dos signos e das oposições lingüísticas Nesse sentido o próprio Derrida seria vítima de uma metafísica da presença no caso da presença dos próprios signos A destruição da metafísica de Heidegger assume en tão em Derrida a forma de uma desconstrução da ló gica do pensamento que nos leva a acreditar na ideia de uma presença real do sentido fora dos signos que suscitam sua miragem mas que só veriam sempre a si mesmos Essa radicalização do projeto destruidor de Heidegger obriga Derrida a demonstrar uma suspeição certa diante do próprio projeto hermenêutico Se ele lhe parece suspeito é porque ele o identifica a um projeto de inteligibilidade e de decifração que busca um sen tido último por trás dos signos concepção que talvez lhe tenha sido transmitida por Ricoeur e por sua her menêutica recuperadora do sentido Não apenas se trata para Derrida de uma ilusão metafísica como ele não deixará de denunciar nela um desígnio imperial de apropriação A destruição heideggeriana se casa aqui com a crítica da vontade de entendimento em Lévinas que necessariamente violentaria a alteridade que ela buscaria possuir impondolhe seu projeto totalizan te Para Derrida o imperativo não é entender o outro 2 De la grammatologie Paris Minuit 1967 p 227 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 5 mas interromper justamente a vontade de entendimen to tida como emblemática da metafísica Em um sentido que não escapou aos comentadores Der rida também não defende uma concepção que podería mos qualificar de panhermenêutica porque ela nega justamente a possibilidade de encontrar um sentido fora do discurso dado que toda relação com o ser derivaria do jogo das interpretações Diante dessa universalida de da linguagem Derrida distingue cuidadosamente duas estratégias possíveis ou duas interpretações da interpretação da estrutura do signo e do jogo a Uma tenta decifrar sonha decifrar uma verdade ou uma origem que escapam ao jogo e à ordem do sig no e vive a necessidade da interpretação como um exílio Aqui Derrida está pensando na hermenêu tica clássica ainda metafísica que busca apreender senão perceber um sentido esperado como uma presença viva por trás dos signos Podese pensar aqui em autores como Heidegger Ricoeur e Gada mer Derrida opõe a ela bravamente outra interpre tação da interpretação b 0 outro que não está mais virado para a origem afirma o jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo com o nome do homem sendo o nome daquele ser que no decorrer da história da metafísica ou da ontoteologia isto é do todo de sua história sonhou a presença plena o fundamento assegurador a origem e o fim do jogo Essa ideia de uma presença plena e imediata não é mais pos sível a partir do estruturalismo avalia Derrida É a face triste dessa segunda interpretação mas ela 1 1 6 H ERM EN ÊUTICA também comporta uma vertente libertadora e lúdi ca em sua renúncia à ideia de uma verdade coagen te Derrida afirma que foi Nietzsche quem indicou o caminho dessa segunda interpretação da inter pretação e é com ela que Derrida se solidariza com um entusiasmo certo Voltada para a presença perdida ou impossível da ori gem ausente essa temática estruturalista da imediati dade rompida é então a face triste negativa nostálgi ca culpável rousseauista do pensamento do jogo cuja outra face seria a afirmação nietzschiana a afirmação jubilosa do jogo do mundo e da inocência do futuro a afirmação de um mundo de signos sem falta sem ver dade sem origem oferecido a uma interpretação ativa3 Desde 1967 Derrida dava a entender que essas duas interpretações da interpretação eram absolutamente inconciliáveis sendo seu propósito agudizar sua irre dutibilidade E um pouco eram essas duas interpreta ções da interpretação que iriam se encontrar por oca sião de um debate público organizado entre Gadamer e Derrida no Instituto Goethe de Paris em abril de 1981 2 O ENCONTRO DE DERRIDA e G a d a m e r e m P a r i s Apesar de seus vários pontos de partida comuns se pensarmos em sua descendência heideggeriana em sua crítica ao cientismo mas especialmente em sua tese comum mesmo que diferente a respeito da uni 3 J Derrida VÉcriture et Ia différence p 427 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 7 versalidade da linguagem o encontro de 1981 terá sem dúvida sido um fracasso na medida em que terá dado lugar a um diálogo de surdos4 Mas é justamente nesse sentido que esse encontro poderá ter sido instru tivo até mesmo fecundo Ele terá sido pelo menos um acontecimento cuja importância foi se ampliando com o passar dos anos Gadamer começou apresentando uma conferência so bre 0 desafio hermenêutico5 Nela ele fazia alusão ao desafio que seu pensamento hermenêutico quisera destacar assim como ao desafio que significava para ele o encontro com Derrida cuja obra lhe era muito familiar a recíproca talvez fosse menos verdadeira Em certa medida Gadamer podia se reconhecer no projeto derridiano que visa desconstruir a linguagem conceituai da metafísica Mas o mestre da hermenêu tica referiase com isso especialmente ao vocabulário esclerosado do pensamento aquele que se afastara do diálogo vivo do qual procede toda verdadeira língua a destruição na acepção positiva consiste para ele em reinscrever um conceito tornado vazio na língua do 4 Os textos apresentados por ocasião do encontro foram publicados na Revue internationale de philosophie n 151 1984 Uma documenta ção mais completa pode ser encontrada na coletânea organizada por D Michelfelder e R Palmer Dialogue and Desconstruction The Gadamer Derrida Encounter Albany Sunny Press 1989 Ver ainda a coletânea alemã organizada por P Forget Text und Interpretation Paderbòrn Fink Verlag 0 texto apresentado por Derrida figura apenas nas edições americana e alemã 5 Notese que o texto de Gadamer publicado pela Revue internationale de philosophie RIPJ tinha apenas oito páginas quando contava 32 na edição alemã A versão mais longa desse texto cujo título se transfor mou em Texto e interpretação encontrase em Lart de comprendre t 2 Paris Aubier 1991 pp 193234 1 1 8 H ERM EN ÊUTICA qual ele proveio e que lhe dá todo o sentido6 Mas é justamente essa constante remissão do pensamento ao diálogo da língua viva que o levava a questionar a ideia de que havia uma linguagem fechada da metafísica Minha ideia própria me parece a seguinte não existe linguagem conceituai nem mesmo a da metafísica que possa circunscrever o pensamento de modo definitivo por pouco que o pensador se abandone à linguagem o que implica que ele aceita o diálogo com outros pensa dores que pensam diferentemente dele7 Ao lembrar que sua concepção da linguagem brotava da experiência do diálogo vivo e de sua promessa de autotranscendência Gadamer também evocava em um espírito benevolente as esperanças que depositava no diálogo que achava poder desenvolver com Derrida Gadamer exemplificava essa experiência hermenêutica do diálogo partindo da experiência da arte e da histó ria da filosofia na qual o intérprete entra em diálogo com aquilo que o interpela mas não sem sair do diálo go transformado Ora o que nos é dito em uma obra de arte insistia Gadamer jamais pode ser conceitualmen te esgotado 0 inacabamento da experiência de sentido faz parte essencial da finitude humana Gadamer que ria ressaltar com isso seu acordo com a ideia derridia na de uma différance infinita do sentido 6 RIP 336 Gadamer retomará frequentemente em seus escritos posteriores especialmente em Destruction et déconstruction e Dé construction herméneutique ambos publicados em La philosophie herméneutique Paris PUF 1996 esse sentido primeiro da destruição heideggeriana que teria escapado a Derrida 7 RIP 1984 334335 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 9 Tendo sido evocados esses elementos comuns Gada mer explica então por que esse encontro com a cena francesa representa todo um desafio para ele É que Derrida apesar de sua dívida com a ideia de destrui ção acusa Heidegger de logocentrismo pelo fato de ele ter persistido em levantar a questão do sentido ou da verdade do ser pensando o sentido como um dado que se poderia encontrar em qualquer parte Para Derrida aqui Nietzsche seria mais radical com sua ideia segun do a qual a interpretação não seria a descoberta de um sentido mas a aquiescência com o jogo das perspecti vas e das máscaras É nesse sentido que seria criticada a leitura heideggeriana de Nietzsche na França Nietzs che não seria aquele que teria trazido a metafísica a seu ápice pensando o ser como valor mas sobretudo aquele que possibilitaria ultrapassála melhor que Heidegger afirmando o jogo infinito das interpretações 0 debate aos olhos de Gadamer incidia sobre a questão de saber quem entre Heidegger ou Nietzsche era o mais radical Nessa questão Gadamer punha todas as suas fichas marcando sua solidariedade em Heidegger Heideg ger vai muito além de Nietzsche Gadamer censura os herdeiros franceses de Nietzsche por não apreciarem em sua justa medida o caráter exploratório e sedutor de seu pensamento Isso é que os levaria a pensar que a experiência do ser de Heidegger seria menos radi cal que o extremismo de Nietzsche8 Segundo Gada mer esse não é o caso A superioridade de Heidegger provém do fato de que ele conseguiu inscrever a noção 8 RIP 1984338 Ver HG Gadamer VHerméneutique en rétrospective Paris Vrin 2005 pp 162178 1 2 0 I H ERM EN ÊUTICA nietzschiana de valor na continuidade da metafísica ocidental É esse pensamento metafísico do valor e a aporia de um pensamento que quer promover uma transmutação dos valores que Heidegger teria supe rado pensando uma experiência do ser que não se re duz a sua manifestação mensurável logo um ser que nunca se entrega inteiramente mas que resguarda uma parte de seu mistério Ele iria por isso mais lon ge que Nietzsche visando a um ser que não se limita a seu valor contábil e a sua utilidade técnica Essa é uma intuição que Gadamer diz ter retomado com convicção não sem lhe dar um aspecto derridia no Foi por isso que eu sempre me esforcei para man ter em mente o limite imposto a toda experiência her menêutica do sentido9 A hermenêutica reconheceria perfeitamente que o ser não pode nunca ser objeto de um entendimento totalizante como aquele que é criti cado por Heidegger e Derrida Ao reconhecer o limite de toda interpretação do sentido a hermenêutica con vidava a partir de então a se abrir ao outro à poten cialidade da alteridade Antes mesmo de ter tomado a palavra para replicar ele nos ajuda por sua simples presença a descobrir a estrei teza de nossos préjuízos e a fazêlos explodir10 Essa abertura ao outro parecia dar testemunho de sua disposição para dialogar com Derrida e para aprender com ele 9 RIP 1984 338 10 RIP 1984 340 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 1 A grande surpresa do encontro de 1981 foi que nada parecia apontar para uma disposição parecida da parte de Derrida Depois da exposição de Gadamer Derrida fez sua conferência sobre a assinatura em Heidegger e Nietzsche mas na qual não fazia nenhuma alusão a Gadamer Não haverá quem pense reproválo por isso mas a assimetria era gritante especialmente porque o mestre da hermenêutica era ali o mais velho A fim de possibilitar uma aparência de diálogo os organizado res então convidaram Derrida a fazer algumas per guntas a Gadamer no dia posterior ao de sua conferên cia As três pequenas mas muito boas perguntas que ele fez a Gadamer alimentaram todo o debate entre a hermenêutica e a desconstrução A primeira pergunta de Derrida retomava o apelo à boa vontade do qual Gadamer falara Essa pergunta pare cia à primeira vista muito insólita porque na verdade ela não estava no centro de sua conferência Gadamer só a invocara para enfatizar a ideia banal a seus olhos segundo a qual aqueles que se engajam em um diálo go buscam se entender e dão prova de um mínimo de abertura Gadamer não via ali nada mais que uma de monstração do senso comum Ora é a demonstração dessa demonstração que Der rida questionava Ele perguntava esse axioma incon dicional não supunha que a vontade continua a ser a forma dessa incondicionalidade o recurso absoluto a determinação de última instância11 É a referência a Heidegger que dava a essa pergunta todo o seu alcance 11 RIP 1984342 1 2 2 H ERM EN ÊUTICA Será que essa determinação de última instância não per tenceria àquilo que Heidegger chama justamente de de terminação do ser do ente como vontade ou como subje tividade voluntária Será que o discurso em sua própria necessidade não pertence a uma época a de uma meta física da vontade Em sua segunda pergunta Derrida tentou limitar a pretensão dessa boa vontade recorrendo à psicanálise mas também a Nietzsche Derrida dá então a entender que sua concepção da interpretação talvez estivesse mais próxima da interpretação de tipo nietzschiano do que de outra tradição hermenêutica Espontaneamen te pensaremos na segunda interpretação da interpre tação que A escritura e a diferença exaltava àquele que afirma jubilosamente o jogo infinito dos signos sem verdade que renuncia por isso à ideia de uma deci fração última Nesse contexto Derrida foi tocado pela alusão de Gadamer à ideia de um diálogo vivo que ele vinculava a uma busca de sistema Ontem à tarde tivemos um dos momentos mais decisivos e em meu entender dos mais problemáticos de tudo o que nos foi dito sobre a coerência contextual coerência sistemática ou não sistemática porque toda coerência não é necessariamente a forma de um sistema Consequentemente Derrida associava a hermenêutica à ideia de sistema quer dizer de uma vontade de enten dimento que para ele confina com um apetite de do minação e de totalização entender não é integrar o ou tro em um sistema totalizante É na medida em que se opõe a essa vontade de dominação que o pensamento de Derrida pode ser qualificado de antihermenêutico HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 3 A terceira pergunta por sinal focalizava o debate sobre o próprio termo entendimento Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen en tendimento longe de ser o continuum da relação como foi dito ontem não é a interrupção da relação uma certa relação de interrupção a suspensão de toda mediação Derrida identifica aqui o entendimento com uma forma de violência infligida ao outro a vontade de entender não obriga o outro a se dobrar a se conformar aos esque mas de pensamento que lhe imponho e que passam jus tamente por isso ao largo de sua especificidade Pergun tando de outro modo a abertura ao outro não decorre necessariamente de um esforço de entendimento Po demos exprimir essa suspeita sob a forma de um parado xo será que entendo o outro quando eu o compreendo A primeira reação de Gadamer foi marcada pela incom preensão O que o contrariava era que Derrida parecia estar minando a própria possibilidade do encontro ao questionar as próprias noções de boa vontade de diá logo e de entendimento Gadamer se empenhou em de fender que sua proposta se encontrava a mil léguas de toda metafísica e que ele estava simplesmente aludindo à vontade elementar de entendimento que é a daquele que abre a boca para ser entendido e os ouvidos para entender o outro De nada adiantou Em tais bases o entendimento com Derrida parecia simplesmente im possível Ora o debate fundamental incidia exatamente sobre a própria possibilidade de entendimento e é isso o que torna o fracasso do acordo tão interessante nesse caso 1 2 4 H ERM EN ÊUTICA particular É que para Gadamer o entendimento é sem pre pelo menos possível ao passo que para Derrida ele nunca é verdadeiramente possível 0 entendimento é sempre possível para Gadamer porque a busca de sen tido investe toda a linguagem mas isso não quer dizer porém que ela jamais seja satisfeita Talvez seja essa insatisfação do esforço de entendimento que anime a busca de verdade a abertura a um sentido mas que se difere sempre para retomar a terminologia de Derri da É essa diferença que incita Derrida a desconfiar da vontade de entendimento 0 entendimento realmente alcança o outro Não permanece prisioneiro a despei to de si mesmo de sistemas de estruturas e de signos que funcionam como tapadeira para o que está enter rado sob os signos e que nunca chega a ser dito O dis curso poderíamos dizer é um pouco o pior inimigo do dizer assim como o entendimento é o pior inimigo do sentido que se deveria entender 3 OS DESDOBRAMENTOS DO ENCONTRO Um encontro de verdade sempre transforma seus in terlocutores Mesmo que a primeira atitude de Gada mer tenha sido de estupefação as objeções de Derrida talvez não tenham caído em ouvidos moucos Depois do encontro de 1981 Gadamer retomou muitas vezes seu debate com Derrida12 Se 0 desafio posto por Der 12 Ver os textos mais recentes Romantisme herméneutique et déconstruction 1987 e Sur la trace de 1herméneutique 1994 ín Uherméneutique en retrospective pp 161219 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 5 rida levou Gadamer a destacar algumas das diferenças essenciais entre seu projeto hermenêutico e o da des construção talvez ele também o tenha levado a rever tacitamente algumas das teses de sua hermenêutica A crítica que Derrida fazia à metafísica da vontade ia um pouco longe demais mas talvez ela tenha levado Gada mer a atenuar o aspecto um pouco apropriador do con ceito de entendimento que ele apresentara em Verdade e método 0 entendimento efetivamente surgia ali como uma forma de aplicação e de apropriação entender um sentido estrangeiro é tornálo seu por meio de uma apli cação ou de uma tradução para nossa língua Ora essa noção de entendimento não obedece a uma vontade um pouco hegeliana de apropriação Será que entendo o sentido estrangeiro em sua especificidade quando o apli co a minha situação Não se poderia dizer exatamente se a crítica de Derrida foi determinante ou não mas parece que o último Gadamer corrigiu levemente essa concep ção de entendimento Temos um testemunho discreto disso em uma notinha que ele acrescentou em 1986 ao capítulo de Verdade e método dedicado à distância tem poral que precede o capítulo sobre a aplicação Aqui arriscamonos sempre no entendimento a nos apro priar do que é outro e de negligenciar sua alteridade13 Texto curtíssimo mas que nesse contexto preciso quase eqüivale a uma autocrítica É claro que Gadamer nunca voltou a questionar expressamente a ideia de que o enten dimento comporta uma parte de aplicação mas em 1986 ele se mostra mais atento ao risco de um entendimento 13 VM 321 GW1305 Vherméneutíque en rétrospective pp 167 1 2 6 H ERM EN ÊUTICA que ao se apropriar do outro talvez faça violência a sua alteridade Mesmo não tendo falado diretamente da noção de aplicação é exatamente ela que Derrida tinha em mente quando se interrogava sobre a metafísica da vontade que estaria subjacente ao pensamento hermenêutico Dessa forma o encontro da hermenêutica com a desconstrução talvez não tenha sido tão estéril como sempre se diz E ainda encontramos uma última confirmação disso em uma definição da hermenêutica que o último Gadamer não parou de evocar Em seus últimos escritos Gadamer ressaltou de bom grado que a alma da hermenêutica consistia em reconhecer que talvez seja o outro quem tem razão14 Aqui o entendimento comparece menos como apropriação do que como uma abertura ao outro e a suas razões Da mesma maneira em seus últimos es critos Gadamer falou muito menos da universalidade da linguagem do que dos limites da linguagem diante de tudo o que pode ser dito A experiência fundamental de uma hermenêutica da finitude não é mais simples mente a da condição lingüística do entendimento mas ao mesmo tempo a dos limites da linguagem diante de tudo o que deveria poder ser dito15 Não é de todo impossível que essas novas inflexões da hermenêutica gadameriana sobre a abertura à alteridade do outro e sobre os limites da linguagem sejam fruto do encontro entre a desconstrução e a hermenêutica 14 Ver Un entretien avec HansGeorg Gadamer Le Monde 3 de janeiro de 1995 Vhéritage de VEurope Paris Rivages 1996 p 141 15 Ver o ensaio de 1985 sobre Les limites du langage in La philosophie herméneutique pp 168184 e UEurope et Yoikoumene onde podemos ler p 230 que o princípio supremo da hermenêutica filosófica é que nunca conseguimos dizer o que gostaríamos de dizer HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 7 4 O ÚLTIMO DIÁLOGO ENTRE D e r r i d a e G a d a m e r Durante muito tempo se acreditou que Gadamer fora o único a dar seguimento a seu diálogo interior com Derri da Ora depois da morte de Gadamer no dia 13 de março de 2002 Derrida confessou que esse diálogo também não deixou de acompanhálo nunca No dia 15 de fevereiro de 2003 Derrida fez uma conferência à memória de Gada mer na Universidade de Heildeberg intitulada Bélíers Le dialogue ininterrompu entre deux infinis le poème16 O título da conferência que propunha uma leitura ma gistral de um poema de Celan já retomava uma ideia cara a Gadamer a do diálogo Mas o paradoxo é que Derrida fala de um diálogo ininterrupto no momento exato em que a morte veio interrompêlo Contudo para Derrida essa morte faz intimamente parte do diálogo que se estabelece entre dois amigos A lei implacável da amizade é que um dos amigos sobreviverá à morte do outro cabendo então ao sobrevivente carregar seu amigo em si mesmo O diálogo ininterrupto é aquele que Derrida se sabe condenado a prosseguir sozinho carregando o outro em si levando o outro em si se guindo o leitmotiv que ele extrai do verso de Celan O mundo se foicabe a mim agora te levar Tudo se passa como se Derrida quisesse responder com isso à ideia de um diálogo vivo evocada por Gadamer em 1981 com a ideia de um diálogo póstumo no qual o sobrevivente deve permitir falar em si a voz de um amigo defunto 16 J Derrida Béliers Le dialogue ininterrompu entre deux infinis Paris Galilée 2003 1 2 8 H ERM EN ÊUTICA A ideia de um diálogo ininterrupto também faz eco ao papel mantido pela noção de interrupção por ocasião do confronto de 1981 A terceira pergunta de Derrida indagava se a ideia de entendimento já não devia ser entendida mais a partir da ideia de interrupção do que da de continuidade Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen en tendimento longe de ser o continuum da relação como foi dito ontem não é a interrupção da relação uma certa relação de interrupção a suspensão de toda mediação Essa noção de ruptura talvez tenha algo a ver aliás com aquilo que Derrida afirma a respeito do caráter testa mentário de toda fala ela é um legado que sobrevive a seu autor e que o amigo deve levar em si quando um dos dois se extingue Derrida deu outro testemunho dessa amizade em um texto que publicou em alemão apenas duas semanas depois da morte de Gadamer intitulado Comme il avait raison Mon Cicérone HansGeorg Gadamer Ele ti nha toda razão Meu Cícero HansGeorg Gadamer17 Nesse texto Derrida revelava a terna admiração que sempre alimentara por Gadamer esse bon vivant que amava tanto viver e cuja capacidade de afirmar a vida ele invejava capacidade da qual Derrida se dizia priva do Por isso confessa Derrida Não acredito na morte de Gadamer Não consigo Desen volvi o hábito se posso assim me expressar de achar 17 Em G Leroux C Lévesque e G Michaud orgs II y aura ce j o u r À la mémoire de Jacques Derrida Montréal À 1impossible 2005 pp 53 56 reimpresso na revista Contrejour 9 2006 8791 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 9 que Gadamer nunca morreria Que ele não era homem de morrer Desde 1981 data de nosso primeiro en contro tudo o que me chegava dele me dava uma serenidade que eu tinha a impressão de que era o pró prio Gadamer em pessoa que a comunicava a mim por uma espécie de contágio ou de irradiação filosófica Eu gostava tanto de vêlo viver falar rir andar até mancar e comer e beber Tão mais que eu Eu invejava a força que afirmava nele a vida Ela parecia invencível Eu chegava a ponto de me convencer de que Gadamer merecia não morrer porque nós tínhamos necessidade desse teste munho absoluto daquele que assiste e participa de to dos os debates filosóficos do século É então porque Gadamer merecia não morrer nunca que Derrida pensava poder levar infinitamente adian te o diálogo com seu pensamento ao qual ele confessa ter se furtado um pouco em 1981 A morte brutal de Derrida no dia 9 de outubro de 2004 terá interrompido esse diálogo póstumo A seus amigos é que incumbe a tarefa de dar seqüência a essa conversação entre dois infinitos a hermenêutica e a desconstrução 1 3 0 H ERM EN ÊUTICA capítulo IX HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO T Í iferentemente de Derrida Richard Rorty JJ 19312007 e Gianni Vattimo 19312007 J1 J reivindicaram expressamente o pensamento hermenêutico mas para lhe dar uma inflexão de sentido mais relativista ou pósmoderna Os dois se apoiam na célebre fórmula de Gadamer O ser que pode ser enten dido é linguagem mas para chegar à conclusão de que é ilusório pretender que nosso entendimento incida sobre uma realidade objetiva que poderia ser atingida por nos sa linguagem É porque tudo decorre em última instância da linguagem que seria preciso renunciar à ideia de uma adequação do pensamento ao real É isso o que leva Ror ty ao pragmatismo e Vattimo a um niilismo feliz i R o r t y a d e s p e d i d a p r a g m a t i s t a DA NOÇÃO DE VERDADE Em sua obra Filosofia e o espelho da natureza publi cada em 1979 Rorty promove uma nova aliança entre HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 1 o pragmatismo norteamericano e a hermenêutica da obediência gadameriana Sua intenção é mostrar por que a filosofia deve fazer o luto de um conhecimento que se pretendia um simples espelho do real onde Rorty vê não mais que uma simples metáfora ou um efeito de linguagem Ele também questiona a ideia do minante no mundo anglosaxão segundo a qual a filo sofia deveria ser uma teoria do conhecimento ou uma epistemologia cuja tarefa seria explicar como nosso conhecimento se reporta à realidade Em si essa crítica do positivismo ou do empirismo ine rente à epistemologia anglosaxônica não é original Ela fora inaugurada pelo pragmatismo de Quine e sua denúncia dos dogmas do empirismo entre os quais o dogma da referência ao mundo real mas também pelo trabalho do historiador da ciência Thomas Kuhn que mostrara em sua célebre obra sobrei estrutura das re voluções científicas 1962 que a aceitação das teorias científicas devia muito mais à linguagem à retórica e a crenças que derivam menos da prova científica do que dos paradigmas em vigor e que definem as normas da racionalidade científica de uma época dada A originalidade de Rorty reside no fato de que ele se afilia claramente ao pensamento de Gadamer até então pouco conhecido no mundo anglófono mas sobretudo em sua convicção segundo a qual a própria disciplina da epistemologia deve ser substituída por um pensamento hermenêutico 0 capítulo VII leva por sinal o título Da epistemologia à hermenêutica Mesmo assim o erro se ria acreditar que a hermenêutica deve substituir a epis temologia porque sua concepção seria mais adequada ou 1 3 2 H ERM EN ÊUTICA mais conforme ao real Não 0 interesse da hermenêutica é para ele o de renunciar a essa ideia e de avançar a ideia de uma cultura humana completamente outra Meu propósito não é apresentar a hermenêutica como uma disciplina que seria a herdeira da epistemologia como se ela visasse satisfazer o vazio cultural que era preenchido em seu tempo pela filosofia centrada na teoria do conhe cimento Na interpretação que vou propor a hermenêuti ca é apenas o nome de uma disciplina ou de um método considerado capaz de nos possibilitar êxito ali onde a teo ria do conhecimento fracassou assim como ela também não é o nome de um programa de pesquisa Ao contrário a hermenêutica é a expressão da esperança de que o espa ço cultural aberto pelo declínio da epistemologia não será preenchido ela é a expressão da esperança de que nossa cultura se transformará em uma cultura na qual a exigência de restrição e de confrontação não será mais sentida1 Aos olhos de Rorty a hermenêutica não oferece método ou um método melhor para alcançar a verdade ela nos ensina apenas a viver sem a ideia de verdade entendi da no sentido da correspondência com o real A busca da verdade pode então ser substituída por uma cultura que exalte sobretudo os ideais da edificação e da con versação Rorty se apoia aqui na ideia de Bildung cul tura em Verdade e método Gadamer a evocara a fim de mostrar que o saber das ciências humanas não era um saber metódico ou à distância mas de formação que im plicava uma transformação dos próprios agentes Rorty extrai daqui conseqüências mais relativistas 1 R Rorty Lhomme spéculaire Paris Le Seuil 1990 p 349 Philosophy and the Mirror ofNature New Jersey Princeton University Press 1979 p 315 HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 3 Gadamer inicia Verdade e método com uma discussão so bre o papel da tradição humanista que deu à noção de Bildung o sentido de algo que seria seu próprio fim para si mesmo Para que tal noção assuma todo o seu sentido é indispensável darse conta da relatividade de todo dis curso descritivo em comparação com as épocas as tradi ções e os acidentes históricos dos quais ele provém Ora é isso o que a tradição humanista pode fazer em educa ção mas é o que uma formação que siga os resultados das ciências exatas não poderia realizar2 Seguindo esse ideal de formação a tarefa da filosofia não seria propor descrições mais justas do real e sim promover a busca da conversação entre os humanos Isso porque o conhecimento jamais transcenderia a or dem da conversação para alcançar um mundo de reali dade ou de essências Mesmo que a obra de Rorty que pretendia operar uma transformação hermenêutica da filosofia analítica te nha contribuído muito para levar a conhecer melhor o pensamento hermenêutico no mundo anglosaxônico esse é um de seus méritos inegáveis ele o orientou em um sentido relativista que era completamente alheio a Gadamer difícil de pensar que um autor que intitula sua obra principal Verdade e método pretenda renun ciar à ideia de verdade Rorty voltou a louvar as virtudes da hermenêutica tal qual ele a entende em uma conferência que pronunciou no dia 12 de fevereiro de 2000 em Heidelberg por oca sião do centenário de Gadamer Nessa ocasião ele invo 2 Ibidem 398 Philosophy p 362 1 3 4 I H ERM EN ÊUTICA cou o emblemático adagio O ser que pode ser entendi do é linguagem mas para lhe dar um sentido puramente nominalista que ele caracteriza da seguinte maneira Entendo por nominalismo a ideia segundo a qual to das as essências são nominais e todas as necessidades de dicto próprias ao discurso Isso eqüivale a dizer que nenhuma descrição é mas verdadeira ou mais conforme à natureza do objeto do que qualquer outra descrição3 Dessa forma um nominalista coerente insistirá em dizer que o suces so do vocabulário corpuscular no plano da predição e da explicação não tem a menor incidência sobre seu estatu to ontológico e que a própria ideia de um estatuto onto lógico deve ser abandonada Esse abandono da ontologia também é especialmente estranho para Gadamer 0 título da última parte de Ver dade e método anuncia justamente uma inflexão onto lógica da hermenêutica sob o fio condutor da lingua gem Para Gadamer a linguagem não é anteparo do ser mas exatamente ao contrário o elemento no qual o ser se revela a si mesmo Aqui não se deveria falar de nomi nalismo porque a linguagem é para Gadamer a lingua gem das coisas antes de ser a linguagem de nosso pen samento Toda a crítica gadameriana a propósito do esquecimento da linguagem no pensamento ocidental visa por sinal denunciar a concepção instrumentalista e nominalista que faz da linguagem um instrumento do 3 R Rorty Being That Can Be Understood is Language London Re view ofBooks 16 de março de 2000 pp 2325 HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 5 pensamento soberano em face de um real que sem ela seria privado de sentido Ora é justamente esse nomi nalismo que Rorty tenta reabilitar Nós nunca entendemos algo a não ser por meio de uma descrição mas não existem descrições privilegiadas Não há meio algum de retroceder para além de nossa linguagem descritiva rumo ao objeto tal qual ele é em si mesmo e não porque nossas faculdades sejam limitadas mas porque a distinção entre o para nós e o em si é uma relíquia de um vocabulário descritivo o vocabulá rio da metafísica que perdeu sua utilidade4 Mesmo que Rorty tente se valer de uma nova cultura gadameriana é difícil não reconhecer aqui o apogeu do construtivismo moderno para o qual o mundo se reduz à concepção que nós façamos dele É esse no minalismo que entende a linguagem de maneira pura mente instrumental que Gadamer critica duramente O adágio o ser que pode ser entendido é linguagem não deve ser entendido em Gadamer em um sentido nomi nalista pelo qual o ser se reduz à descrição que faze mos dele mas em um sentido ontológico é o próprio ser que vem se dizer em linguagem e é sua linguagem que nos permite corrigir as descrições inadequadas que propomos dele Se Rorty interpreta a hermenêutica de maneira tão an tiontológica e nominalista Vattimo extrai dela conse qüências não menos relativistas mas que o conduzem a defender a ideia de uma ontologia niilista 4 Ibidem 1 3 6 H ERM EN ÊUTICA 2 V a t t i m o p o r u m n i i l i s m o h e r m e n ê u t i c o Vattimo fala de maneira absolutamente positiva da vocação niilista da hermenêutica Essa tese se faz acompanhar nele de uma crítica a Gadamer que não se encontra verdadeiramente em Rorty Realmente Vat timo avalia que a hermenêutica não desenvolveu para si mesma a ontologia niilista para a qual secretamente tende Sem essa ontologia mais radical e mais conse qüente a hermenêutica permaneceria sendo a coiné do pensamento contemporâneo mas uma coiné exces sivamente ecumênica e sem contundência real que se limitaria a dizer que tudo é uma questão de interpreta ção5 A significação filosófica da hermenêutica estaria então diluída Essa crítica procede de uma leitura assí dua de Heidegger e de Nietzsche que falaram muito de niilismo o que não é exatamente o caso de Gadamer 0 niilismo quer dizer aqui que nada pode ser dito do ser porque toda verdade provém da interpretação da tradição e da linguagem Uma hermenêutica conseqüente deveria desembocar segundo Vattimo em uma ontologia niilista o ser em si mesmo não é nada reduzindose a nossa linguagem e a nossas interpretações Essa tese é claro se expõe à ob jeção de não passar ela própria de uma interpretação Como justificála Só podemos fazêlo avalia Vattimo quando reconhecemos que a hermenêutica pretende 5 G Vattimo La vocation nihiliste de lherméneutique Audelà de Vinterprétation La signification de Vherméneutíque pour Ia philosophie Bruxelas Éditions de Bosck pp 922 HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 7 ser uma resposta à história do ser interpretado como advento do niilismo Desse modo podese ver no niilis mo uma atenuação interminável do discurso sobre do ser6 que teria caracterizado a história de nossa mo dernidade e que justificaria o bemfundado da herme nêutica como coiné universal Se quiser ser coerente a hermenêutica só pode se apresentar como a mais con vincente interpretação filosófica possível de uma situa ção de uma época e logo necessariamente de uma proveniência Ao se apresentar como o coroamento coerente de uma história e de uma proveniência a hermenêutica justifi caria sua própria pretensão à universalidade 0 adágio de Gadamer o ser que pode ser entendido é linguagem deve então ser entendido em um sentido radicalmente niilista próximo daquele que Rorty lhe conferia Essa frase Vattimo avalia não tem simplesmente o sentido banal de identificar o campo do entendimento com essa espécie de ser que se apresenta como linguagem Contra essa leitura muito atenuada Vattimo propõe uma leitura ontológica radical a da identificação do ser e da linguagem tese que Gadamer não teria pen sado até o fim mas que seria a única conseqüência propriamente rigorosa de seu pensamento7 Nessa perspectiva o ser se encontra tragado pela linguagem 6 Ibidem p 21 7 G Vattimo Histoire cTune virgule Gadamer et le sens de 1être Re vue International de philosophie n 213 2000 pp 502505 1 3 8 H ERM EN ÊUTICA e pela perspectiva que o encerra Mesmo que se apre sente como pósmoderna essa leitura é inteiramente conforme ao espírito da modernidade que remete todo sentido a uma subjetividade com a diferença de que essa subjetividade se sabe agora histórica Ora é em sentidos opostos que iam a hermenêutica e a ontologia de Gadamer não é o ser que é tragado pela lin guagem mas nossa linguagem que é apreendida pelo ser sendo a linguagem inicialmente a luz do próprio ser Para ver bem a diferença entre as hermenêuticas pode ser útil conceder atenção ao papel particular desempenhado por autores como Nietzsche e Heidegger para os herdeiros pósmodernos de Gadamer tanto Vattimo quanto Rorty mas também Derrida O Nietzsche que importa a seus olhos é aquele que estipula que não existem fatos mas apenas interpretações e seu heideggerianismo se inspira especialmente na última filosofia de Heidegger que de fende que nosso entendimento é determinado de parte a parte pelo quadro globalizante da história do ser pensada como o advento do niilismo Os autores pósmodernos as sociaram espontaneamente essa perspectiva nietzschiana e heideggeriana ao pensamento de Gadamer especial mente a sua crítica ao objetivismo em ciências humanas e a sua insistência no papel dos préjuízos e no caráter lingüístico de nosso entendimento Ao destacar esses as pectos do pensamento gadameriano eles acharam que a hermenêutica levava à rejeição da noção clássica de verda de compreendida como adequação ao ser Essa perspectiva nietzschiana contudo levouos a per der de vista o alcance ainda ontológico da hermenêu HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 9 tica Para o pensamento de Gadamer Nietzsche não é realmente um aliado mas aquele que levou a seu ápice o nominalismo do pensamento moderno que reduz o ser àquilo que ele significa para o pensamento ou para a vontade sendo a linguagem apenas um instrumento do sujeito Num contexto desses no qual tudo depende do sujeito é claro que não há verdade objetiva nem va lores coagentes Mas essa ausência de valor e de verda de só subsiste observa Gadamer se nos mantivermos no interior do quadro do pensamento moderno para o qual o mundo não tem significação nem ordem sem a subjetividade doadora de sentido Ora é justamente essa ideia de um sujeito soberano que se encontraria em face de um mundo sem forma e que se presume privado de sentido que a hermenêutica nos permite questionar Desse modo a hermenêutica nos auxilia a redescobrir o ser e a superar o niilismo 1 4 0 H ERM EN ÊUTICA conclusão FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA M esmo que a hermenêutica represente a coi né de nosso tempo ela oferece uma face mais contrastada do que geralmente se su põe Enquanto filosofia a hermenêutica pretende in tervir na componente universal de nossa experiência de mundo mas essa universalidade pode ser enten dida de maneira muito diferente Podemos mostrála partindo do adágio mais elementar para exprimir essa universalidade Tudo é uma questão de interpreta ção Os diferentes sentidos que podem ser atribuídos a essa fórmula podem ser associados aos grandes repre sentantes da hermenêutica mas também aos herme neutas anônimos que defendem essa tese mas sem se vincular propriamente à tradição hermenêutica Vere mos que cada uma dessas interpretações tem conse qüências para a concepção da verdade 1 A fórmula tudo é uma questão de interpretação pode ser inicialmente lida em um sentido nietzs chiano o de um perspectivismo da vontade de po FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 1 tência ideia certamente antecipada pelos sofistas do tempo de Platão Não existem fatos existem apenas interpretações Num contexto desses não existe verdadeiramente verdade no sentido de adequação à coisa Nietzsche acrescenta cruelmente que a ver dade é apenas essa espécie de erro sem a qual uma espécie de seres bem determinados não poderia vi ver Aquilo que se tem como verdade não passa de uma perspectiva entre outras secretamente ditada por uma vontade de potência que busca se impor A dificuldade dessa teoria perspectivista é que existem realmente fatos erros e aberrações abundantes É um fato e não uma interpretação dizer que Paris e não Marselha é a capital da França que uma molécula de água se compõe de um átomo de oxigênio e de dois e não três de hidrogênio e que eu nunca fui a Plutão 2 0 perspectivismo pode ser entendido em um senti do mais epistemológico a tese quer então dizer que não existe conhecimento do mundo sem esquema prévio sem paradigma de interpretação segundo a tese de Thomas Kuhn em A estrutura das revolu ções científicas1 Segundo Kuhn toda ciência opera com base em representações gerais do mundo que recortam um quadro de inteligibilidade e de coerên cia no interior do qual podemos distinguir a verdade da falsidade Mas esse quadro é ele próprio variá vel e está sujeito às revoluções científicas que vêm 1 Em 1962 Kuhn ignorava completamente a tradição hermenêutica mas ele a evoca concordantemente em seu último livro A tensão essen cial tradição e mudança nas ciências São Paulo Unesp 2001 1 4 2 I H ERM EN ÊUTICA alterar os parâmetros recebidos Um paradigma consegue então destronar outro A verdade aqui é concebível mas depende de um paradigma dado a questão da verdade dos próprios paradigmas tam bém é objeto de discussão em epistemologia 3 A tese tudo é interpretação pode receber um sen tido mais genericamente histórico toda interpreta ção é filha de seu tempo Essa visão corresponde àquilo que podemos chamar de historicismo É ele que a hermenêutica clássica e metodológica Dil they mais frequentemente buscava conter mas que o relativismo pósmoderno frequentemente saúda como uma libertação ele nos livraria da con cepção da verdade como adequação sendo a ver dade não mais que uma perspectiva útil Em um regime historicista a verdade permanece possível mas interpretar verdadeiramente um fenômeno quer dizer entendêlo a partir de seu contexto Uma verdade não contextual parece excluída 4 0 adágio pode ser entendido de uma maneira mais ideológica nesse caso ele significa que toda visão de mundo seria guiada por interesses mais ou me nos declarados Podemos pensar aqui em Marx Freud na crítica das ideologias e em todos aque les que Ricceur cJassifica de os mestres da suspeita Essa suspeição dá origem a uma hermenêutica das profundezas que suscita uma fortíssima pretensão de verdade mas que permanece um pouco ideal quando não escatológica ela não apenas se man tém como o apanágio do teórico ele mesmo inicia do na verdade última dos fenômenos como seu objeto não será capaz de conhecêla plenamente FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 3 exceto quando for libertado da ideologia que atual mente deforma sua consciência É essa verdade ideal que o teórico antecipa quando critica o estado existente de uma sociedade ou de uma consciência Essas são as formas absolutamente atuais e pertinen tes da ubiquidade hermenêutica mas os principais representantes da tradição hermenêutica defenderam concepções mais definidas dessa universalidade 5 Para Heidegger a universalidade da hermenêutica comporta sobretudo um sentido existencial pelo fato de ser uma interrogação para si mesmo o ho mem é de início um ser votado à interpretação Ele tem necessidade de interpretação e vive desde sempre no seio de interpretações mas que ele pode contudo elucidar Essa dramatização um pouco agostiniana da hermenêutica transformaa em uma filosofia universal da facticidade humana que visa livrála do esquecimento de si no qual ela se abisma de tamanho bom grado Aqui a verdadecorrespon dência é seguramente preservada Heidegger ressal ta por sinal que a tarefa primeira da interpretação é elaborar seus projetos de entendimento diretamen te sobre as próprias coisas Mas isso quer dizer que é possível esboçar projetos que sejam conformes ao que a existência pode ser quando se assume a si mesma Se for preciso destruir as más interpreta ções as que são inadequadas ou sobrepostas porque nos afastam de nossa finitude isso deve ser feito pela medida de um ideal de autenticidade 6 Para um autor como Gadamer assim como para muitos outros a universalidade da hermenêuti 1 4 4 HERM ENÊUTICA ca deve ser entendida sobretudo em um sentido lingüístico toda interpretação toda relação com o mundo pressupõe o elemento da linguagem visto que a realização e o objeto do entendimento são necessariamente lingüísticos Nesse universo a verdadecorrespondência também é possível mas tratase sempre de uma adequação das próprias coisas à linguagem Desse modo é possível revisar nossas interpretações confrontandoas àquilo que é dito pelas próprias coisas portanto a sua lingua gem Esse modo de falar é menos curioso do que parece Se podemos dizer que a tese segundo a qual o sol gira em torno da terra é falsa é porque ela vem refutar aquilo que diz o próprio real sua evidência Desse modo uma concepção científi ca ou filológica sempre pode ser refutada por um mais adequado entendimento que apele para a lin guagem do próprio real tendo como evidência as coisas mesmo que tal entendimento só compareça por meio da linguagem Essa linguagem é inicial mente para Gadamer a linguagem das próprias coi sas antes de ser a linguagem de nossa mente a qual a recebe sobretudo das coisas Essa concepção da universalidade da linguagem não é a única que é defendida em hermenêutica 7 A tese mais difundida é sem dúvida a que vai no sentido pósmoderno no caso muito moderno que vê na linguagem especialmente uma forma lização do real esquematização que faria cadu car a própria ideia de uma realidade com a qual nossas interpretações poderiam ser classificadas FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 5 como em conformidade sendo a própria realida de constituída por nossas interpretações Essa tese pósmoderna se apoia de bom grado nos sen tidos perspectivista cognitivo histórico ideoló gico existencial que acabamos de distinguir e a cada vez para contestar a ideia julgada quimérica de uma adequação ao real Podemos associar essa hermenêutica ao perspectivismo da vontade de potência evocado acima 1 mas o pensamento pósmoderno se distingue por sua ideia segundo a qual o sentido seria circunscrito por um quadro interpretativo globalizante mais ou menos rígido proveniente ora da história da metafísica Derri da ora da episteme geral de uma época Foucault ora da tradição Vattimo ou do quadro de utilidade geral determinado por nossa cultura Rorty Aqui também não há mais adequação a não ser no seio de uma ordem dada mas o apagamento de toda referência extralinguística possibilita uma nova to lerância acerca da pluralidade das interpretações Se essa caridade é bastante louvável a dissolução da noção de verdade se revela singularmente fatal para essa concepção da hermenêutica por que essa teoria seria mais verdadeira que qualquer outra Ora se a hermenêutica é verdadeiramente universal é inicialmente porque somos seres que vivem à primei ra vista no elemento insuperável do sentido de um sentido que nós nos esforçamos para entender e que pressupomos desde então necessariamente Mas esse sentido é sempre o sentido das próprias coisas daqui lo que elas querem dizer um sentido que certamente 1 4 6 H ERM EN ÊUTICA ultrapassa nossas pobres interpretações e o horizonte limitado mas graças a Deus sempre ampliável de nos sa linguagem2 2 É essa hermenêutica que tentei desenvolver modestamente em meus trabalhos especialmente em Luniversalité de Vherméneutique 1993 onde o objeto da hermenêutica é compreendido a partir da ideia de um sentido interior inesgotável que buscamos interpretar por meio de suas expressões externas e em Du sens de la vie Montréal Bellarmin 2003 que desenvolve a ideia de que o sentido que tentamos entender é antes de mais o da própria vida FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 7 1 The text is not clearly visible or distinguishable in the image BIBLIOGRAFIA AGOSTINHO La doctrine chrétienne Paris Institut détudes agustinien nes 1997 ed br A doutrina cristã São Paulo Paulus 2002 BULTMANN R Le problème de lherméneutique 1950 in Foi etcom préhension Paris Le Seuil 1970 599626 ed b r Crer e compre ender São Leopoldo Sinodal 2001 DERRIDA J Vécriture et la différence Paris Le Seuil 1967 ed br A escritura e a diferença São Paulo Perspectiva 2009 Questions à Gadamer Revue internationale de philosophie n 151 1984 341343 Béliers Le dialogue ininterrompu entre deux infinis Paris Galilée 2003 DILTHEY W Origines et développement de lherméneutique 1900 in Le monde de Yesprit Paris Aubier 194711 313340 Védification du monde historique dans les sciences de Vesprit Paris Le Cerf 1988 ed br A construção do mundo histórico nas ciências humanas São Paulo Editora da UNESP 2010 GADAMER HG Vérité et méthode 1960 VM Paris Le Seuil 1996 ed br Verdade e método 2 vols Petrópolis Vozes 2012 Lartde comprendre Écrits I Paris Aubier 1982 Écrits II Paris Aubier 1991 Langage et vérité Paris Gallimard 1995 La philosophie herméneutique Paris PUF 1996 Herméneutique et philosophie Paris Beauchesne 1999 Le chemins de Heidegger 1983 Paris Vrin 2002 Esquisses herméneutiques 2000 Paris Vrin 2004 Vherméneutique en rétrospective 1995 Paris Vrin 2005 ed br Hermenêutica em retrospectiva 5 vols Petrópolis Vozes 2007 GREISCH J Herméneutique etgrammatologie Paris Éd du CNRS 1977 Paul Ricceur Uitinérance du sens Paris Miilon 2001 Le cogito herméneutique Paris Vrin 2003 GR0NDIN Uuniversalité de 1 herméneutique Paris PUF 1993 Vhorizon herméneutique de la pensée contemporaine Paris Vrin 1993 Introduction à HansGeorg Gadamer Paris Le Cerf 1999 BIBLIOGRAFIA 1 4 9 G r o n d i n J Le tournant herméneutique de la phénoménologie Paris PUF 2003 Du sens de la vie Montréal Bellarmin 2003 HABERMAS J Lapproche herméneutique in La logique des sciences sociales 1967 Paris PUF 1987184215 ed br A lógica das ci ências sociais Petrópolis Vozes 2009 HEIDEGGER M Être et temps 1927 Paris Gallimard 1986 ed br Ser e tempo Petrópolis Vozes 2006 Acheminementverslaparole 1959 Paris Gallimard 1976 ed br A caminho da linguagem Petrópolis Vozes 2010 RICCEUR P Philosophie de la volonté t II Finitude et culpabilité Paris Aubier 1960 De Tinterprétation Essai sur Freud Paris Le Seuil 1965 ed br Da interpretação ensaio sobre Freud Rio de Janeiro Imago 1977 Le conflit des interprétations Paris Le Seuil 1969 ed port 0 con flito das interpretações Lisboa RES Editora 1989 La métaphore vive Paris Le Seuil 1975 ed br A metáfora viva São Paulo Loyola 2000 Temps et récit 3 t Paris Le Seuil 19821985 ed br Tempo e nar rativa São Paulo Martins Fontes 2011 Du texte à 1action Paris Le Seuil 1986 Soimême comme un autre Paris Le Seuil 1990 ed br Si mesmo como um outro Campinas Papirus 1991 Réflexionfaite Autobiographie intellectuelle Paris Esprit 1995 La mémoire Thistoire Toubli Paris Le Seuil 2000 ed br A memó ria a história o esquecimento Trad A François Campinas Edito ra da UNICAMP 2008 Parcours de la reconnaissance Paris Stock 2004 ed br Percurso do reconhecimento São Paulo Loyola 2006 RORTY R Philosophy and the Mirror of Nature Princeton Princeton University Press 1979 tr fr Lhomme spéculaire Paris Le Seuil 1990 ed br A filosofia e o espelho da natureza Rio de Janeiro RelumeDumará 1994 Being That Can Be Understood Is Language London Review of Books 16 de março de 2000 2325 SCHLEIERMACHER F Herméneutique Paris Labor Fides 1988 Le Cerf 1989 ed br Hermenêutica arte e técnica da interpretação Petrópolis Vozes 2010 VATTIMO G Lafin de la modernité nihilisme et herméneutique dans la culture postmoderne Paris Le Seuil 1987 ed br Ofim da moder nidade niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna São Paulo Martins Fontes 2002 Éthique de Tinterprétation Paris La Découverte 1991 Audelá de Tinterprétation La signification de Vherméneutique pour la philosophie Bruxelas Éd De Boeck 1997 ISO H ERM EN ÊUTICA nota da editora DIGA NÃO À CÓPIA pratique essa ideia v Quando você copia uma obra está contribuindo para que nos próximos anos os alunos não tenham mais o que copiar porque 1 Não haverá autores interessados em produzir textos A produção de um livro demanda muito tempo formação específica e dedicação e eles precisam trabalhar para viver 2 Também não haverá editoras interessadas em investir em uma obra que ficará estocada especialmente quando se tratar de obras traduzidas Os alunos do futuro terão de ler as obras na língua em que foram editadas 3 E mais você está contribuindo para acabar com o emprego de funcionários de gráficas editoras para o fechamento de livrarias para o empobrecimento da cultura do país além é claro de violar a lei de direitos autorais Lei n 961098 praticando um CRIME previsto no artigo 184 do Código Penal sem prejuízo de ter que reparar o dano causado E para que isso A cópia custa em média R 010 por página Este livro r o1o po r q u e e n t ã o n ã o têlo Além do mais cópias se perdem ao longo do tempo O livro não Ele é para sempre pode ser repassado a outras pessoas é fundamental para a formação de todo profissional que se pretenda competente Todo bom profissional precisa de uma biblioteca própria Para isso a Parábola Editorial contribui pondo no mercado livros com qualidade gráfica e de conteúdo a melhor preço que a cópia DIGA NÃO À CÓPIA Pratique essa ideia Quando você diz não à cópia está dizendo não à violência e à falta de ética Pode não parecer mas quando copia uma obra na qual se empenhou tanto trabalho para que ela virasse um livro e chegasse ao mercado você está colaborando com a corrupção que alimenta nosso crônico atraso
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HERMENÊUTICA Jean Grondin O que vem a ser a hermenêutica No sentido clássico a hermenêutica desig nava outrora a arte de interpretar os tex tos sobretudo no seio das disciplinas liga das à interpretação dos textos sagrados ou canônicos a teologia o direito e a filologia No sentido mais estrito a hermenêuti ca serve atualmente para caracterizar o pensamento de autores como Gadamer e Ricoeur 19132005 que desenvolveram uma filosofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa experiência de mundo A terceira grande concepção faz da herme nêutica uma filosofia universal da interpre tação quando a hermenêutica se vê posta a serviço de uma filosofia da existência Pas samos aqui de uma hermenêutica de textos para uma hermenêutica da existência Ao assumir a forma de uma filosofia uni versal do entendimento a hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma re flexão sobre as ciências e por criar uma pretensão universal Veremos aqui que essa universalidade pode assumir várias formas Tradução M arcos M arcionilo Jean Grondin desenvolve neste livro uma concepção da her menêutica fundada na ideia de que o sentido que buscamos entender é sempre o sentido das próprias coisas daquilo que elas querem dizer um sen tido que certamente ultrapassa nossas parcas interpretações e o horizonte limitado mas sempre ampliável de nossa linguagem O autor apresenta muito clara mente as diferentes concepções da hermenêutica Heidegger Bultmann Gadamer Ricoeur Rorty e Vattimo bem como as conexões com a desconstrução Derrida e a crítica das ideolo gias Habermas levando muito em conta a herança da reflexão sobre as ciências sociais Dil they da fenomenològia Hus serl e da leitura de Nietzsche Encontramse aqui as diversas acepções do termo a partir das interrogações iniciais dos pen sadores relativamente ao en tendimento dos textos da arte da linguagem da existência da história para finalmen te aportar na ideia do alcan ce universal da hermenêutica Esse percurso inscreve então a hermenêutica na problemáti ca geral do conhecimento com conseqüências filosóficas e epis temológicas notáveis porque a hermenêutica sempre quis ser uma doutrina da verdade no campo da interpretação EPISTEME 6 editora afiliada ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM CAMBRIA CORPO 1 1 1 5 E IM PRESSA PELA GRÁFICA PAYM EM PAPEL OFFWHITE PARA A PARÁBOLA EDITORIAL EM OUTUBRO DE 2012 J ean G rondin 1955 é fi lósofo e professor canadense especialista nos pensamentos de Kant Gadamer e Heidegger Suas pesquisas concentramse principalmente na hermenêutica na fenomenologia na filosofia clássica alemã e na história da metafísica Ele leciona na Universidade de Montreal des de 1991 e doutorouse com uma tese sobre o conceito de verdade em hermenêutica na Universidade deTübingen em 1982 Ele pode ser considerado o principal sucessor da obra de Gadamer e de Ricoeur no campo da hermenêutica con temporânea Entre suas obras ainda figuram Uuniversalité de 1herméncutique PUF e Le toumant herméneutique de la phénoménologie PUF i V V s cA p qv sV m cf v E p i s t e m e 1 Foucault a coragem da verdade Frédéric Gros org 2 Diversidade cultural e mundialização Armand Mattelart Jjq 3 0 Círculo de Viena Mélika Ouelbani 4 Filosofia da linguagem Sylvain Auroux 5 A lógica Pierre Wagner 6 Hermenêutica Jean Grondin Tradução Marcos Marcionilo V A m H i t í t T T áto0 Título original LHerméneutique Presses Universitaires de France 2006 Traduzido da 2a edição atualizada outubro de 2008 ISBN 9782130570875 E O IÇ Ã O BRASILEIRA E d it o r Marcos M arcionilo C a p a e p r o je to g rAf ic o Andréia Custódio Karina M ota Ana Stahl Zilles Unisinos Angela Paiva Dionisio UFPE Carlos Alberto Faraco UFPR Egon de Oliveira Rangel PUCSP Gilvan Müller de Oliveira UFSC Ipol Henrique Monteagudo Univ de Santiago de Compostela Kanavillil Rajagopalan Unicamp Marcos Bagno UnB Maria Marta Pereira Scherre UFES Rachel Gazolla de Andrade PUCSP Roxane Rojo Unicamp Salma Tannus Muchail PUCSP Stella Maris BortoniRicardo UnB CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ G913h Grondin Jean Hermenêutica Jean Grondin tradutor Marcos Marcionilo São Paulo Parábola Editorial2012 21 cm Epísteme Tradução de lHerméneutique Inclui bibliografia ISBN 9788579340178 1Hermenêutica2Teoria do conhecimentoiTítulollSérie 124866 CDD121 CDU 16 Direitos reservados à PARÁBOLA EDITORIAL Rua Dr M ário Vicente 3 94 Ipiranga 04270000 São Paulo SP pabx 11 50619262 50611522 j fax l1 2 5 89 92 6 3 hom e page w w w parabolaeditorialcom br em ail parabola parabolaeditorialcom br Todos os direitos reservados Nenhum a parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meibs eletrônico ou mecânico inciuindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda R e v is ã o C o n s e l h o e d it o r ia l ISBN 9788579340178 desta edição Parábola Editorial São Paulo outubro de 2012 Â memória de meu pai Dr Pierre Grondin 19252006 SUMARIO introdução 0 QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 9 A coiné relativista de nosso tempo 9 Três possíveis grandes acepções da hermenêutica 11 capítulo i Con cepção clássica da h e r m e n ê u t ic a 17 capítulo II E m erg ên c ia d e um a h e r m en êu t ic a m ais u n iv er sa l no século XIX 2 3 1 Friedrich Schleiermacher 1 7 6 8 1 8 3 4 23 2 Wilhelm Dilthey 1 8 3 3 1 9 1 1 32 capítulo iii Vira d a ex is t e n c ia l da h e r m e n ê u t ic a em h e id eg g er 3 7 1 Uma hermenêutica da facticidade 38 2 0 estatuto da hermenêutica em S er e tem po 42 3 Uma nova hermenêutica do entender 46 4 Do círculo do entendimento 50 5 A última hermenêutica de Heidegger 51 capítulo iv Contribuição d e Bultmann ao avanço da h erm en êu tica 5 5 capítulo v Ha n sGeorg Ga d a m e r um a h e r m e n ê u t ic a do ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 1 1 Uma hermenêutica não metodológica das ciências humanas 61 2 O modelo da arte o acontecimento do entendimento 65 3 Os préjuízos condições do entendimento a reabilitação da tradição 67 4 O trabalho da história e sua consciência 70 5 A fusão dos horizontes e sua aplicação 73 6 A linguagem objeto e elemento da realização hermenêutica 75 sumário I 7 capítulo VI He r m e n ê u t ic a e c rítica das id e o l o g ia s 8 1 1 A reação metodológica de Betti 81 2 A contribuição de Gadamer segundo Habermas 83 3 A crítica a Gadamer por Habermas 86 capítulo vil Pau l Ricceur um a h e r m e n ê u t ic a do si histórico d ia n te do co n flito das in t e r p r e t a ç õ e s 9 3 1 Um percurso arborescente 93 2 Uma fenomenologia tornada hermenêutica 97 3 0 conflito das interpretações a hermenêutica da confiança e da suspeita100 4 Uma nova hermenêutica da explicação e do entendimento inspirada na noção de texto103 5 A hermenêutica da consciência histórica106 6 Uma fenomenologia hermenêutica do homem capaz109 capítulo viu He r m e n ê u t ic a e d esco n stru çã o1 1 3 1 Desconstrução hermenêutica e interpretação em Derrida 113 2 O encontro de Derrida e Gadamer em Paris117 3 Os desdobramentos do encontro 125 4 O último diálogo entre Derrida e Gadamer128 capítulo ix HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 1 1 Rorty a despedida pragmatista da noção de verdade131 2 Vattimo por um niilismo hermenêuticor137 conclusão FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA1 4 1 BIBLIOGRAFIA1 4 9 8 H ERM EN ÊUTICA introdução O QUE PODE SERA HERMENÊUTICA A COINÉ RE LATI VISTA DE NOSSO TEM PO az algum tempo Jean Bricmont e Alan Sokal montaram uma farsa a fim de denunciar o char latanismo que segundo eles frequentemente grassa nas ciências humanas Eles submeteram um ar tigo coalhado de absurdos à revista americana Social Text título que sugere um pouco que toda produção cultural ou científica pode ser considerada como um simples texto social logo como uma interpretação ou uma construção ideológicas 0 artigo pretendia de monstrar que a física quântica apesar de sua pretensão à objetividade não passava de uma construção social Apinhado de referências às equações de Einstein mas também aos mais eminentes mestres da desconstru ção entre os quais Lacan e Derrida o artigo foi acei to e publicado Os autores imediatamente divulgaram a fraude que provocou numerosas reações no mundo1 1 J Bricmont e A Sokal Imposturas intelectuais Rio de Janeiro Record 2006 O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 9 Se essa polêmica pode nos servir aqui de ponto de parti da é unicamente porque o termo hermenêutica figura va no título do artigo submetido à revista Transgredir fronteiras rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica Estejamos certos a ideia ininteli gível de uma hermenêutica transformativa não reme te a nada de muito preciso Mas ao se valerem do ter mo hermenêutica os autores retomavam um termo da moda que às vezes serve para descrever o pensamento contemporâneo pósmoderno e relativista justamente aquele que Bricmont e Sokal buscavam denunciar Pois é então justamente esse um dos sentidos possí veis do termo hermenêutica designar um espaço inte lectual e cultural onde não há verdade porque tudo é uma questão de interpretação Essa universalidade do reino interpretativo encontrou sua primeira expressão na afirmativa fulminante de Nietzsche Não há fatos só interpretações2 É dessa hermenêutica relativista que Gianni Vattimo pôde dizer que ela era a coiné a língua comum de nosso tempo3 Mesmo assim como lembraremos todo o tempo essa concepção se encontra nos antípodas daquilo que a hermenêutica sempre quis ser uma doutrina da ver dade no campo da interpretação A hermenêutica clás sica realmente quis propor regras a fim de combater a arbitrariedade e o subjetivismo nas disciplinas que têm a ver com a interpretação Uma hermenêutica votada à 2 F Nietzsche A vontade de poder n 481 3 G Vattimo Lherméneutique comme nouvelle koinè in Éthique de Vinterprétation Paris La Découverte 1991 pp 4558 1 0 H ERM EN ÊUTICA arbitrariedade e ao relativismo encarna consequente mente o mais completo dos contrassensos Contudo o percurso que leva da concepção clássica à hermenêuti ca pósmoderna não é destituído de lógica Ele segue paralelamente a certa ampliação do campo da inter pretação mas do qual não se tem certeza se ele leva necessariamente ao relativismo pósmoderno T r ê s p o s s í v e i s g r a n d e s a c e p ç õ e s DA HERMENÊUTICA No sentido mais restrito e mais usual do termo a herme nêutica serve atualmente para caracterizar o pensamen to de autores como HansGeorg Gadamer 19002002 e Paul Ricoeur 19132005 que desenvolveram uma filo sofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa xperiência de mundo De um lado esses pensamentos marcaram grande parte dos maiores debates intelec tuais que balizaram a segunda metade do século XX es truturalismo crítica das ideologias desconstrução pós modernismo recepções que fazem parte daquilo que podemos chamar de o pensamento hermenêutico con temporâneo De outro os pensamentos de Gadamer Ri cceur e de seus herdeiros frequentemente se vinculam à tradição mais antigk da hermenêutica quando ela ainda não designava uma filosofia universal da interpretação e sim simplesmente a arte de interpretar corretamente os textos Mas como essa concepção mais antiga é sem pre pressuposta e discutida pela hermenêutica mais re cente é preciso levála em conta em uma apresentação O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 1 1 de conjunto da hermenêutica Desse modo podemos distinguir três grandes acepções possíveis da herme nêutica que se sucederam nõ decorrer da história mas que se mantêm integralmente como concepções abso lutamente atuais e defensáveis da tarefa hermenêutica 1 No sentido clássico do termo a hermenêutica desig nava outrora a arte de interpretar os textos Essa arte se desenvolveu sobretudo no seio das disciplinas liga das à interpretação dos textos sagrados ou canônicos a teologia que elaborou uma hermeneutica sacra o direito hermeneutica iuris e a filologia hermeneutica profana A hermenêutica desempenhava então uma função auxiliar no sentido de que vinha secundar uma prática da interpretação que tinha necessidade sobre tudo de um socorro hermenêutico quando tinha de en frentar passagens ambíguas ambigua ou chocantes Ela possuía um objetivo essencialmente normativo propunha regras preceitos ou cânones que permitis sem bem interpretar os textos A maioria dessas regras eram tomadas de empréstimo da retórica uma das ci ências fundamentais do trivium ao lado da gramática e da dialética e no seio da qual encontravamse com fre quência reflexões hermenêuticas sobre a arte de inter pretar É esse o caso de Quintiliano 30100 que trata da exegesis enarratio em seu De institutione oratoria 1 9 mas especialmente Agostinho 354430 que compilou regras para a interpretação dos textos em seu tratado sobrei doutrina cristã 396426 que marcou toda a história da hermenêutica4 Essa tradição passou 4 Agostinho La doctrine chrétienne Paris Institut détudes augusti niennes 1997 1 2 H ERM EN ÊUTICA por uma importante renovação no protestantismo que deu origem a vários tratados de hermenêutica em sua maioria inspirados na Rhetorica 1519 de Melanchton 14971560 Essa tradição que faz da hermenêutica uma disciplina auxiliar e normativa nas ciências que praticam a interpretação persistiu até Friedrich Sch leiermacher 17681834 Mesmo que ele ainda faça parte dessa tradição seu projeto de uma hermenêu tica mais universal anuncia uma segunda concepção da hermenêutica que será inaugurada sobretudo por Wilhelm Dilthey 18331911 2 Dilthey conhece bem a tradição mais clássica da hermenêutica e sempre a pressupõe sem deixar de enriquecêla com uma nova tarefa se a hermenêutica se inclina sobre as regras e os métodos das ciências do entendimento ela poderia servir de fundamento meto dológico a todas as ciências humanas letras história teologia filosofia e aquilo que hoje se chama de as ci ências sociais A hermenêutica se torna assim uma reflexão metodológica sobre a pretensão de verdade e o estatuto científico das ciências humanas Essa reflexão se eleva contra o pano de fundo do desenvolvimento pelo qual passaram as ciências puras no século XIX su cesso amplamente atribuído ao rigor de seus métodos diante dos quais as ciências humanas parecem muito deficientes Se as ciências humanas quiserem se tornar ciências respeitáveis devem basearse em uma meto dologia que cabe à hermenêutica fazer surgir 3 A terceira grande concepção nasceu muito clara mente em reação a essa compreensão metodológica da hermenêutica Ela assume a forma de uma filosofia uni O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 1 3 versai da interpretação Sua ideia fundamental prefi gurada no último Dilthey é que o entendimento e a in terpretação não são apenas métodos encontráveis nas ciências humanas mas processos fundamentais que podemos encontrar no próprio núcleo da vida A inter pretação surge então cada vez mais como uma carac terística essencial de nossa presença no mundo Essa ampliação do sentido da interpretação é responsável pelo avanço do qual a hermenêutica do século XX se beneficiou Esse avanço pode invocar dois padrinhos um padrinho anônimo Nietzsche anônimo porque ele não falou muito de hermenêutica e sua filosofia uni versal da interpretação e um padrinho mais evidente em Heidegger mesmo que ele defenda uma concepção bem particular da hermenêutica em ruptura com a hermenêutica clássica e metodológica para ele a her menêutica não tem inicialmente a ver com textos mas com a própria existência que já é penetrada por inter pretações que a hermenêutica pode esclarecer A her menêutica se vê então posta a serviço de uma filosofia da existência chamada a um autodespertar Passamos aqui de uma hermenêutica de textos para uma her menêutica da existência A maior parte dos grandes representantes da herme nêutica contemporânea Gadamer Ricoeur e seus her deiros situamse na trilha de Heidegger mas não se guiram realmente sua via direta de uma filosofia da existência Eles preferiram retomar o diálogo com as ciências humanas mais ou menos negligenciado por Heidegger Desse modo reataram com a tradição de Schleiermacher e Dilthey sem com isso subscrever a 1 4 H ERM EN ÊUTICA ideia de que a hermenêutica estava por princípio in vestida de uma função metodológica Seu objetivo era especialmente desenvolver uma melhor hermenêutica das ciências humanas aliviada do paradigma exclusi vamente metodológico que faz mais justiça à dimen são lingüística e histórica do entendimento humano Ao assumir a forma de uma filosofia universal do en tendimento essa hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma reflexão sobre as ciências para criar uma pretensão univenal Veremos aqui que essa uni versalidade pode assumir várias formas O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA 1 5 capítulo I CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA O termo hermeneutica só veio a lume no século XVII quando o teólogo estraburguense Jo hann Conrad Dannhauer o inventou para no mear o que se chamava antes dele de Auslegungslehre Auslegekunst ou a arte da interpretação Dannhauer foi também o primeiro a utilizar o termo no título de uma obra em sua Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum de 1564 título que resume por si só o sentido clássico da disciplina a hermenêutica sagrada ou seja o método para inter pretar exponere expor explicar os textos sacros Se há necessidade de um método desses é porque o senti do das Escrituras nem sempre é tão claro quanto o dia A interpretação exponere interpretari é aqui o méto do ou a operação que permite alcançar o entendimento do sentido o intelligere É importante gravar bem esse vínculo de finalidade entre a interpretação e o entendi mento porque os termos às vezes assumirão sentidos muito diversos na tradição hermenêutica posterior es pecialmente em Heidegger CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA 1 7 0 termo interpretação vem do verbo grego hermeneuein que tem dois sentidos importantes o termo designa ao mesmo tempo o processo de elocução enunciar dizer afirmar algo e o da interpretação ou de tradução Nos dois casos estamos diante de uma transmissão de sen tido que pode se operar em duas direções ela pode 1 ir do pensamento para o discurso ou 2 remontar do discurso para o pensamento Atualmente só falamos de interpretação para caracterizar o segundo processo que remonta do discurso para o pensamento que se en contra por trás mas os gregos já pensavam a elocução como um processo hermenêutico de mediação de sen tido designado então pela expressão ou pela tradução do pensamento em palavras O termo hermeneia serve portanto para nomear o enunciado que afirma algo 0 segundo livro do Organon de Aristóteles dedicado ao enunciado é um Peri hermeneias que foi traduzido em latim por De interpretatione Não se trata é claro da interpretação no sentido em que nós a entendemos ou seja como a explicação do discurso que retorna a sua vontade de sentido mas ao contrário das componentes da própria elocução já en tendida como transmissão de sentido Mas se a compre ensão grega do termo é esclarecedora é porque ela nos ajuda a ver que o processo de interpretação deve nem mais nem menos inverter a ordem da elocução ordem que vai do pensamento ao discurso do discurso inte rior logos endiathetos ao discurso exteriorlogos prophorikos como o dirão soberbamente os estoicos Podemos então distinguir aqui o esforço hermenêutico de explicação do sentido que remonta do discurso ex 1 8 I H ERM EN ÊUTICA terior para seu interior do esforço retórico de expres são que antecede a tarefa propriamente hermenêutica e lhe dá todo o seu sentido não se pode querer inter pretar uma expressão a fim de compreender seu senti do exceto porque se pressupõe que ela quer dizer algo que ela é a expressão de um discurso interior Então não é por acaso que as principais regras herme nêuticas foram frequentemente extraídas da retórica a arte do bem dizer que se funda na ideia de que o pen samento que se procura comunicar deve ser apresen tado de maneira eficaz no discurso É especialmente o caso da importante regra hermenêutica do todo e das partes segundo a qual as partes de um escrito devem ser entendidas a partir do todo constituído por um dis curso e por sua intenção geral que é a inversão daquilo que Platão apresenta como uma regra de composição retórica em seu Fedro 264 c um discurso deve ser composto como um organismo vivo no qual as partes estão ordenadas a serviço do todo É claro que o her meneuta deve conhecer perfeitamente bem as grandes figuras do discurso os tropos da retórica se quiser interpretar corretamente os textos Os grandes teóri cos da concepção clássica da hermenêutica quase sem pre foram professores de retórica É o caso de santo Agostinho profundamente marcado pela retórica de Cícero Antes de ser o teórico da inter pretação ele foi seu praticante Encontramos em san to Agostinho várias interpretações expositiones dos textos sagrados especialmente das Epístolas e do Gê nesis e já em suas Confissões cujos três últimos livros propõem uma interpretação dos primeiros versículos CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA 1 9 do Gênesis Em seu comentário literal do Gênesis ele retoma a doutrina clássica que remonta a Orígenes c 185254 e a Fílon de Alexandria c 1354 segundo a qual as Escrituras comportariam um quádruplo sen tido Em todos os livros santos importa distinguir as verdades eternas que são inculcadas aeterna os fatos que são narrados facta os acontecimentos futuros futura as regras para as ações agenda que são pres critas ou aconselhadas1 Mas para entender essas verdades esses fatos os acon tecimentos que virão e as máximas de ação há neces sidade de algumas regras prsecepta de interpretação que Agostinho apresenta em seu De doctrina christiana Seu princípio fundamental é que toda ciência tem a ver ou com coisas res ou com signos signa Claro que é necessário reconhecer uma prioridade à coisa sobre os signos dado que o conhecimento dos signos pressupõe necessariamente o conhecimento da coisa por eles de signada 0 primeiro livro da Doctrina christiana tam bém será dedicado à exposição da coisa que quer ser apresentada no texto bíblico a saber o relato da criação fundada no Deus trinitário e a salvação que ele propõe Agostinho distingue então dois tipos de coisas aquelas das quais fruímos por elas mesmas frui que têm seu fim em si mesmas e aquelas que utilizamos utí para outro fim Apenas as coisas eternas oferecem uma fruição real e o conhecimento delas corresponde ao Soberano Bem ao summum bonum Segundo Agostinho o fim da Encar 1 Agostinho La Genèse au sens littéral t i Paris Desclée 1972 p 83 2 0 H ERM EN ÊUTICA nação era exatamente ensinar essa diferença que se ex prime no princípio do amor que é em primeiro lugar o amor de Deus por sua criatura Daí Agostinho extrai um primeiro princípio hermenêutico é preciso interpretar todos os textos em função desse mandamento de amor que remete tudo o que é cambiante ao que é imutável Os dieta ditos e signa signos das Escrituras devem ser entendidos em vista dessa res essencial Mas para entender em que os signos remetem a essa res é pre ciso estudar as ciências particularmente a gramática e a retórica A retórica também nos ensina a discernir os tropos as figuras de estilo da Bíblia e a distinguir o sentido próprio do sentido figurado As regras de inspiração retórica da Doctrina christiana serviram de fundamento a toda a exegese medieval Amplamente retomadas pelos primeiros grandes teóricos da herme nêutica protestante Melanchton Flácio Dannhauer elas foram mantidas até Schleiermacher quando a her menêutica começa a adquirir nova abrangência CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA 2 1 capítulo II EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX i F r i e d r i c h S c h l e i e r m a c h e r 17 6 8 18 3 4 C ontemporâneo dos grandes pensadores do idealismo alemão Fichte Hegel e Schelling e mais próximo do romantismo de Friedri ch Schlegel Schleiermacher foi ao mesmo tempo um grande filólogo um teólogo expressivo um filósofo e um teórico da hermenêutica Em sua posição de filólo go ele traduziu os diálogos de Platão na íntegra para 0 alemão para os quais redigiu introduções fundamen tais que marcam os estudos platônicos até hoje Mas foi antes de tudo no campo da teologia que ele fez car reira Depois de ter publicado seus poderosos discur sos Sobre a religião em 1799 onde defende a ideia de que a fé exprime um sentimento de dependência total segundo uma leitura subjetivista que por sinal irá ca racterizar sua teologia e também sua hermenêutica ele foi nomeado professor de teologia em Halle em 1804 antes de se tornar em 1810 o primeiro decano EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 2 3 da Faculdade de Teologia da nova Universidade de Ber lim Ele publicou uma importante obra de dogmática sobre A fé cristã em 18211822 Mas Schleiermacher também deu cursos de filosofia foram publicadas pos tumamente sua Dialética 1839 sua Ética 1836 e sua Estética 1842 Mas ele só nos interessa aqui enquanto hermeneuta É importante saber que Schleiermacher se formou em Halle que fora um grande centro de hermenêutica no sé culo XVIII e onde se sucederam antes dele grandes mes tres da hermenêutica racionalista e pietista Schleier macher propriamente nunca publicou uma exposição sistemática de sua hermenêutica Durante sua vida ele publicou apenas o texto dos dois discursos que pronun ciou na Academia de Berlim em 1829 Sobre o conceito da hermenêutica a partir das sugestões de F A Wolf e do tratado de Ast Mas ao longo do tempo em que le cionou em Halle e em Berlim Schleiermacher dedicou vários cursos à hermenêutica Inspirandose em ma nuscritos de seu mestre seu aluno Lücke publicou em 1838 um apanhado das ideias de Schleiermacher sob o título Hermenêutica e crítica sobretudo em vista do Novo Testamento título que o inscreve na tradição clássica da hermenêutica crítica designa aqui a disciplina filoló gica que se interessa pela edição crítica dos textos A exemplo de todos os grandes teóricos da hermenêu tica Schleiermacher inspirase em grande medida na tradição retórica Já no princípio de sua hermenêuti ca realmente lemos que todo ato de entendimento é a inversão de um ato de discurso em virtude da qual deve ser trazido à consciência o pensamento que se en 2 4 I H ERM EN ÊUTICA contra na base do discurso1 Se é verdade que todo discurso baseiase em um pensamento anterior2 não resta dúvida de que a primeira tarefa do entender é reconduzir a expressão à vontade de sentido que a anima Buscase no pensamento a mesma coisa que o autor quis exprimir A hermenêutica pode ser compre endida então como a inversão da retórica Desse modo a tarefa é entender o sentido do discurso a partir da língua Tudo o que se deve pressupor em hermenêutica dirá Schleiermacher em um adágio vo tado a uma grande posteridade é a linguagem3 Des tinada à linguagem a hermenêutica se divide em duas grandes partes a interpretação gramatical que enten de todo discurso a partir de uma língua dada e de sua sintaxe e a interpretação psicológica eventualmente chamada de técnica que vê no discurso sobretudo a expressão de uma alma individual Se o intérprete deve sempre partir do quadro global da língua não é me nos claro que as pessoas nem sempre pensam a mesma coisa sob as mesmas palavras o que é verdadeiro es pecialmente das criações geniais que enriquecem o te souro da língua Do contrário tudo seria decorrência da gramática suspira Schleiermacher A interpretação psicológica encarna sem dúvida a con tribuição mais original de Schleiermacher Gadamer insistirá nisso mas para criticar o que ele classificará 1 F Schleiermacher Hermeneutik und Kritik HuK M Frank org Frankfurt Suhrkamp 1977 p 76 Herméneutique M Simon trad Pa ris Labor Fides p 101 trad C Berner Paris Le Cerf p 114 2 HuK 78 trad Simon p 102 trad Berner p 115 3 Herméneutique trad Simon p 57 trad Berner p 21 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX 2 5 de deriva psicologizante que levaria a perder de vista a intenção de verdade do entendimento Se o próprio Schleiermacher deulhe desde o princípio o nome de interpretação técnica é porque ela busca entender a arte techné bem específica de um autor sua virtuosi dade característica A esperança de Schleiermacher é desenvolver uma hermenêutica universal que ainda não existia A her menêutica como arte do entender ainda não existe sob uma forma geral mas existem apenas várias herme nêuticas especiais4 0 objetivo aqui é uma hermenêu tica geral que não se limitaria a um setor restrito como é o caso das hermenêuticas especiais do Novo Testa mento ou do direito E se a hermenêutica deve adquirir um estatuto universal é enquanto arte geral do enten der Kunst frequentemente Kunstlehre des Verstehens A tônica reservada ao entender é absolutamente inédi ta Até então a hermenêutica era mais encarada como uma arte da interpretação ars interpretandi Auslegun gslehre que devia conduzir ao entendimento Agora é o próprio ato de entender que tem necessidade de ser assegurado por uma arte insistência na qual podemos reconhecer o momento subjetivo já visível na teologia do sentimento de Schleiermacher Essa ênfase segue paralelamente a uma temática típica de Schleiermacher a da universalização do fenômeno do desentendimento possível O que é que nos permi te dizer que determinado entendimento é justo Nesse 4 HuK 75 trad Simon p 99 trad Berner p 113 2 6 H ERM EN ÊUTICA sentido Schleiermacher distingue duas compreensões bem distintas da interpretação a Uma prática distensa que parte da ideia segundo a qual o entendimento se produz por si mesmo Nessa prática o desentendimento é sobretudo a exceção Essa prática da hermenêutica exprime o propósito negativamente é preciso evitar o erro de entendimento Reconhecemos aqui a concepção clássica da hermenêutica que fazia dela uma ciên cia auxiliar à qual só se recorria para interpretar passagens ambíguas b Uma prática estrita partiria ao contrário do fato de que o desentendimento se produz por si mesmo e que o entendimento deve ser querido e buscado para cada ponto5 Essa distinção provoca conseqüências maiores A prá tica distensa da interpretação encontrase aqui assimi lada a uma prática intuitiva que não obedece a regra alguma nem a arte alguma Ora ela pressupõe que o entendimento se produz espontaneamente E se o de sentendimento fosse algo natural que se devesse com bater a todo momento Essa será a pressuposição de Schleiermacher O entendimento deverá então pro ceder em todos os pontos seguindo as regras estritas de uma arte 0 trabalho da hermenêutica não deve in tervir apenas quando a compreensão se torna incerta mas desde os primeiros começos de todo empreendi mento que visa compreender um discurso 5 HuK 92 trad Simon p 111112 trad Berner p 122123 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 2 7 Dirá Schleiermacher que a hermenêutica carece por tanto de mais método die hermeneutischen RegeJn müssen mehr Methode werderi6 Desse modo Schleier macher abre caminho para uma compreensão mais resolutamente metódica da hermenêutica que Gada mer também criticará a fim de conter o perigo do de sentendimento potencialmente universal A partir de então a hermenêutica deixará de ocupar uma função auxiliar para se tornar a condição sine qua non de todo entendimento digno desse nome No sentido estrito ela passará a ser uma Kunstiehre a doutrina de uma arte do entender É por isso que a operação fundamental da hermenêu tica ou do entendimento assumirá a forma de uma re construção A fim de bem entender um discurso e de conter a deriva constante do desentendimento tenho de poder reconstruílo a partir de seus elementos como se eu fosse seu autor A tarefa da hermenêutica será dessa maneira enten der o discurso de início tão bem e posteriormente melhor que seu autor seguindo uma máxima frequen temente retomada por Schleiermacher com varian tes Essa máxima sem dúvida foi usada pela primeira vez por Kant que dizia em sua Crítica da razão pura Nada de surpreendente há em se poder entender Pla tão melhor do que ele mesmo se entendeu inclusive porque ele próprio determinou insuficientemente seu conceito A 314 B 370 Schleiermacher fará disso 6 HuK 84 acréscimo não traduzido por M Simon p 106 nem por Berner p 118 2 8 H ERM EN ÊUTICA um princípio geral de sua hermenêutica que seguirá a via de uma explicação genética a partir de então en tender quer dizer reconstruir a gênese de vertente genética e psicologizante que caracterizará aliás as interpretações que começarão a florescer no século XIX A ideia vem do idealismo alemão entendemos algo quando apreendemos sua gênese a partir de um primeiro princípio Para o romântico Schleiermacher esse primeiro princípio é a decisão germinal do escri tor Dessa maneira Schleiermacher confere um aspec to psicológico à hermenêutica Em seus discursos de 1829 ele dirá que a tarefa da hermenêutica consiste em reproduzir o mais perfeitamente possível todo o processo da atividade de composição do escritor7 Mantendose fiel a sua vocação clássica dedicada à interpretação de textos a hermenêutica adquire com Schleiermacher um alcance mais universal Um primeiro momento de universalidade se anuncia no projeto de uma hermenêutica geral que deveria preceder a título de arte do entender as hermenêuti cas especiais consagradas a tipos de textos definidos é essa versão da universalidade a que Schleiermacher defende Mas uma segunda forma de universalidade atualizase na ideia segundo a qual a hermenêutica deve poder ser aplicada a todo justo entendimento Seguindo a prática rigorosa da interpretação que ele preconiza Schleiermacher enquanto romântico que sabe que alguém sempre pode ficar prisioneiro de suas próprias representações universaliza aqui o risco do 7 HuK 321 Simon 186 Berner 167 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX j 2 9 desentendimento possível É ele que leva a uma com preensão mais metódica e mais reconstrutora da tarefa v hermenêutica Um terceiro elemento de universalidade pode ser discernido na ideia desenvolvida no discurso de 1829 segundo a qual a hermenêutica não deve se limitar apenas aos textos escritos mas também deve poder ser aplicada a todos os fenômenos de entendi mento A hermenêutica não deve estar simplesmente limitada às produções literárias porque eu quase sem pre me surpreendo no decorrer de uma conversa fami liar fazendo operações hermenêuticas a solução do problema para o qual buscamos justamente uma teoria não está de maneira alguma ligada ao fato de o discurso ser fixado para os olhos pela escrita mas surgirá em to dos os lugares onde venhamos a perceber pensamentos ou sucessões de pensamento por meio das palavras8 A partir daí tudo pode se tornar objeto de hermenêu tica Essa universalização avança paralelamente com uma ampliação da estranheza Se o discurso falado não fazia parte da alçada da hermenêutica clássica era jus tamente porque ele era contemporâneo imediatamen te presente e portanto diretamente inteligível Apenas o discurso escrito e mais especialmente o dos autores antigos e remotos comportava um elemento de estra nheza que requeria uma mediação hermenêutica Schleiermacher universaliza essa dimensão o discurso de outros mesmo que seja meu contemporâneo en cerra sempre um momento de estranheza A primeira condição da hermenêutica é efetivamente que algo de 8 HuK 314 Simon 177 Berner 159 3 0 H ERM EN ÊUTICA estranho deve ser entendido segundo uma ideia que Schleiermacher toma emprestada de Ast Essa pro blemática para não dizer essa aporia leva Schleier macher a abordar a questão do círculo do todo e das partes que mais tarde dará nascimento ao círculo hermenêutico Schleiermacher conhecia bem essa re gra simultaneamente retórica e hermenêutica do todo e das partes mas ele se pergunta expressamente até onde se pode ir na utilização dessa regra9 Isso porque ela pode ser ampliada a horizontes de sentido sem pre mais englobantes uma frase deve ser entendida a partir de seu contexto o contexto deve ser entendido a partir do todo de um livro todo que deve ser enten dido a partir da obra e da biografia de um autor que por sua vez deve ser entendido a partir de sua época histórica época que só pode ser entendida a partir da história em seu conjunto Pouco antes de Schleierma cher o hermeneuta Ast10 aluno de Schelling realmente reconhecera uma extensão infinita a essa regra é ne jj cessário entender o Espírito de uma época se se quiser interpretar uma obra Sçhleiermacher se mostrará por sua vez preocupado em limitar a potencialização do círculo do todo e das partes Ele estabelecerá seus mar cos objetivos e subjetivos Do ponto de vista objetivo dirá ele a obra deve ser inicialmente entendida a partir do gênero literário do qual faz parte Mas do ponto de vista subjetivo uma obra também é o feito de seu autor ela faz parte do todo de sua vida cujo conhecimento deve esclarecer o entendimento de sua obra 9 HuK 330 Simon 194 Berner 174 10 F Ast Les príncipes fondamentaux de la grammaire de Vherméneu tique et de Ia critique Landshut 1808 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 3 1 2 W ilh e lm D i l t h e y 18 3 3 1 9 1 1 A hermenêutica que ainda era amplamente considera da como uma disciplina filológica em Schleiermacher receberá um sentido mais metodológico em Dilthey A essa altura entendemos por metodologia uma reflexão 5 sobre os métodos constitutivos de um tipo de ciência 0 problema de uma justificação metodológica das ciências humanas ainda não existia para Schleiermacher Ele só veio a se tornar urgente na segunda metade do século XIX diante do prodigioso impulso pelo qual passaram as ciências exatas cuja metodologia teria sido proposta por Kant Kant é então amplamente tido como aquele que teria aplicado um golpe mortal à metafísica tradicional ciência impossível do suprassensível e que teria trans formado a filosofia em uma metodologia das ciências exatas Mas o que se passava com as ciências humanas especialmente a história e a filologia que conheceram um inegável desenvolvimento no século XIX Se elas fo rem realmente ciências devem se basear em métodos que fundamentem seu rigor É essa reflexão metodo lógica que Dilthey espera poder fazer sob a palavra de ordem de inspiração kantiana de uma crítica da razão histórica Dilthey apresentou 0 projeto dessa crítica no primeiro tomo de sua Introdução às ciências humanas de 1883 que foi 0 único volume a ser publicado durante sua vida Ao se situar sob 0 patrocínio de uma crítica da ra zão histórica cem anos depois da Crítica da razão pura de Kant Dilthey se propõe a expor ali uma fundamenta ção lógica epistemológica e metodológica das ciências humanas Ela se propõe a fundar as ciências do enten dimento sobre categorias que lhes sejam próprias lógi 3 2 H ERM EN ÊUTICA ca sobre uma teoria do conhecimento epistemologia e sobre uma teoria do método específico Nessa época Dilthey está em luta contra dois grandes adversários de um lado contra o positivismo empírico de Auguste Comte ou de John Stuart Mill que afirmam que não exis tem métodos específicos às ciências humanas e que elas devem replicar a metodologia das ciências da natureza se quiserem ser ciências de outro contra a metafísica da história da filosofia idealista e de Hegel em especial que pretendia reconstruir a priori o curso da história se gundo as exigências de seu sistema filosófico Mais ou menos o que Kant fizera lutando contra o ceticismo em pírico de Hume e contra a metafísica visionária Dilthey buscará conduzir o navio da razão histórica por entre os dois escolhos do positivismo e do idealismo Em vista de fundar a especificidade metodológica das ci ências humanas Dilthey se inspira na distinção do histo riador Droysen 18081884 entre o explicar Erkláren e o entender Verstehen Enquanto as ciências puras tentam explicar os fenômenos a partir de hipóteses e de leis gerais as ciências humanas querem entender uma individualidade histórica a partir de suas manifestações externas A metodologia das ciências humanas será des sa forma uma metodologia do entendimento Geralmente lembramos que o termo entendimento e a ideia de uma teoria geral do entender detinham um papel fundamental em Schleiermacher Entre seus muitos méri tos Dilthey era um fino conhecedor da obra de Schleier macher Depois de ter defendido uma tese de doutorado sobre a ética schleiermacheriana em 1864 e redigido um estudo fundamental sobre o sistema hermenêutico de EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 3 3 Schleiermacher que permaneceu inédito até 1966 Dil they publicou uma volumosa biografia de Schleiermacher em 1870 Mesmo que a hermenêutica tenha ficado abso lutamente ausente de sua Introdução às ciências humanas de 1883 ela ocupa um lugar de primeira grandeza em um estudo definitivo de 1900 que abre o século da herme nêutica sobre A origem da hermenêutica Dilthey esbo ça ali em grandes traços a história de uma disciplina ain da muito amplamente desconhecida do grande público e da qual Schleiermacher terá sido para ele o maior teórico mas ele lhe confere uma nova função ligada ao grande problema da metodologia das ciências humanas Tratase agora de resolver a questão do conhecimento científico dos indivíduos e até mesmo das grandes for mas da existência humana singular em geral Um conhe cimento desses é possível e que meios temos para che gar a ele E se as ciências morais sistemáticas as ciências humanas extraem leis gerais dessa apre ensão do singular os processos de entendimento e de interpretação também não deixam de estar em sua base Do mesmo modo sua certeza tanto quanto a da história depende da questão de saber se a compreensão do sin gular pode adquirir uma validade universal11 É essa a questão a que a hermenêutica procura responder entendendose hermenêutica como a arte da interpreta ção das manifestações vitais fixadas por escrito O obje tivo da interpretação é entender a individualidade a par tir de seus sinais exteriores Chamamos entendimento o processo pelo qual conhecemos um interior pelo auxílio 11 W Dilthey Origines et développement de lherméneutique 1900 Le monde de lesprit Paris Aubier 1 9 4 7 11 p 313 3 4 H ERM EN ÊUTICA de sinais percebidos desde o exterior por nossos senti dos Esse interior que se trata de entender corresponde ao sentimento vivido Erlebnis pelo autor sentimento que não é acessível diretamente mas apenas por seus si nais exteriores O processo de entendimento consiste em recriar em si o sentimento vivido pelo autor partindo de suas expressões Remontando de uma expressão à Er lebnis do exterior a seu interior o entendimento inverte aqui o processo criador do mesmo modo como a tarefa hermenêutica da interpretação podia ser vista como a inversão do ato de expressão retórica A tríade da expe riência da expressão e do entendimento aparece desde então como constitutiva da hermenêutica das ciências humanas Se assim é a hermenêutica poderia ser investi da de uma nova tarefa sugere Dilthey 0 papel essencial da hermenêutica será estabelecer teoricamente contra a intrusão constante do arbitrário romântico e do subjeti vismo cético no campo da história a validade universal da interpretação base de toda certeza histórica12 Essa meta subsistirá amplamente como um programa na obra de Dilthey mas a ideia segundo a qual ela po deria servir de base metodológica às ciências humanas conferiu à hermenêutica uma pertinência e uma visibi lidade que antes dele ela realmente nunca conhecera Até o dia de hoje destacados pensadores como Emilio Betti e E D Hirsch ainda veem na hermenêutica uma reflexão metodológica sobre o estatuto científico das ciências humanas Para eles uma hermenêutica que renunciasse a essa tarefa perderia toda a razão de ser 12 Idem ibidem pp 332333 EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX 3 5 Mas há ainda outra ideia na última obra de Dilthey que iria propulsionar o essencial da herança hermenêu tica em uma direção muito distinta Tratase da ideia segundo a qual o entendimento que se desdobra nas ciências humanas é justamente o prolongamento de uma busca de entendimento e de formulação que dis tingue de antemão a vida humana e histórica como tal A própria vida se articula dirá Dilthey através das várias formas de expressão que as ciências humanas buscam entender recriando a experiência da qual elas brotam Instalada sobre uma filosofia universal da vida histórica a intuição fundamental de Dilthey prenhe de conseqüências é que o entendimento e a interpretação não são apenas métodos característicos das ciências humanas mas traduzem uma busca de sentido e de ex pressão ainda mais originária da própria vida Esse caráter hermenêutico da própria vida era con firmado pelas ideias quase simultaneamente desenvol vidas pelo último Nietzsche em sua filosofia universal da vontade de potência para a qual não existem fatos e sim apenas interpretações 0 que se perfila em Nietzsche assim como nos últimos trabalhos de Dilthey é então um novo rosto da universalidade da hermenêutica ou do reino interpretativo mas que parece questionar justamente o sonho diltheyano de uma fundamentação epistemológica das ciências humanas Para a maioria dos herdeiros de Dilthey Heidegger e Gadamer esse sonho parecerá incompatível com o caráter essencial mente histórico da vida no qual desembocam os últi mos trabalhos de Dilthey Ele confrontará a hermenêu tica com novas tarefas 3 6 H ERM EN ÊUTICA capítulo III VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER V epois de ter sido até o século XVIII uma arte II da interpretação de textos depois uma meto J dologia das ciências humanas no século XIX a hermenêutica se transformará em algo completamen te diferente no século XX uma filosofia mas também um termo cada vez mais em voga É o que ocorre ini cialmente no seio da escola de Dilthey onde seu aluno Georg Misch se empenha em desenvolver uma lógica hermenêutica que quer demonstrar que as categorias fundamentais da lógica e da ciência afundam suas raí zes em uma busca de entendimento da própria vida Tratase de uma lógica que Misch apresentou em seus cursos mas tais cursos permaneceram inéditos até pouco tempo1 e desempenharam um modesto papel na transmissão do pensamento hermenêutico 1 Georg Misch Der Aufbau der Logik aufdem Boden der Philosophie des Lebens Gôttinger Vorlesungen uber Logik und Einleitung ín die Theo ríe des Wissens München Karl Alber Freiburg 1994 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 3 7 Sem ser o único o espírito do tempo também fez sua obra Martin Heidegger 18891976 terá sido o prin cipal artífice da transformação filosófica da hermenêu tica transformada em uma forma de filosofia autôno ma Com Heidegger a hermenêutica mudará de objeto de vocação e de estatuto Primeiramente ela mudará de objeto deixando de incidir sobre os textos ou sobre as ciências interpretativas para incidir sobre a própria existência Podemos falar então de uma virada existen cial da hermenêutica Ela também mudará de vocação porque a hermenêutica deixará de ser entendida de ma neira técnica normativa ou metodológica Ela passará a ter uma função mais fenomenológica mais destruido ra no sentido libertador do termo que decorre de sua mudança de estatuto ela será não apenas uma reflexão que incide sobre a interpretação ou seus métodos ela será também a realização de um processo de interpre tação que se confundirá com a própria filosofia i U m a h e r m e n ê u t i c a d a f a c t i c i d a d e Não se insiste muito nisso mas Heidegger será de fato o primeiro a fazer da hermenêutica o título de uma fi losofia quando apresentar seu pensamento no título de um de seus cursos que ele citará em Ser e tempo e também em 1959 como uma hermenêutica da factici dade A facticidade designa aqui a existência concreta e individual que inicialmente não é para nós um objeto e sim uma aventura na qual somos projetados e para a qual podemos despertar de maneira expressa ou não 3 8 I H ERM EN ÊUTICA A ideia de uma hermenêutica da facticidade como a de uma hermenêutica da existência em Ser e tempo de 1927 comporta um duplo sentido precioso conforme o duplo sentido do genitivo no sentido em que o genitivo o medo dos inimigos metus hostiurrí pode designar tanto o medo que temos dos inimigos genitivo objetivo quanto o medo que os inimigos têm de nós genitivo subjetivo No sentido objetivo a hermenêutica da facticidade quer dizer que a filosofia tem como objeto a existência hu mana entendida de maneira radical como ens herme neuticum como um ser hermenêutico Essa concepção bastante ampla da hermenêutica provém de três fontes a Ela provém parcialmente de Dilthey e de sua ideia segundo a qual a vida é em si mesma intrinseca mente hermenêutica ou seja levada por uma inter pretação de si mesma b Ela também terá sido marcada pela concepção da intencionalidade em Husserl segundo a qual a consciência vive inicialmente no elemento da in tenção de sentido percebendo sempre o mundo na perspectiva de um entendimento constituinte c Sua inspiração vem em última instância da filosofia cristã de Kierkegaard que falara da escolha diante da qual se encontrava situada a existência que deve decidir a orientação de seu ser escolha que pressu põe ser a existência um ser de interpretação Mas no sentido subjetivo do genitivo o projeto de uma hermenêutica da facticidade sugere que essa inter pretação deve ser efetuada pela própria existência Em outros termos o filósofo ou o autor da hermenêutica VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 3 9 da facticidade não tem como se substituir à própria existência No máximo ele pode elaborar indicações formais que permitirão à existência se apropriar de suas próprias possibilidades de existência Mas é a própria existência que cabe elaborar a hermenêutica de sua própria facticidade e que em certo sentido ela pratica de maneira mais ou menos inconsciente pelo fato de já viver no interior de algumas interpretações Essa possibilidade de elucidação se funda sobré o que é a existência quer dizer um espaço aberto que não é inteiramente regulado pela ordem dos instintos mas que pode determinar sua orientação vital fundamental e se libertar das interpretações alienantes de seu ser Dessa maneira a facticidade designa em Heidegger o caráter de ser fundamental da existência humana e daquilo que ele também chamará de Dasein digamos o serqueélançadoaí esse ser que e CA LCl da oportu nidade meu que de início não é para mim apenas um objeto que se encontra diante de mim mas uma rela ção consigo ao modo da preocupação e da inquietude radical Para abordar essa facticidade o termo herme nêutica não foi escolhido por acaso Ele se funda na própria facticidade ressalta Heidegger É desse modo que a facticidade é simultaneamente a capaz de interpretação b está em expectativa e necessita de interpretação c é desde sempre vivida no interior de determinada interpretação de seu ser Simplesmente a facticidade o esquece facilmente esquecendose assim de si mesma A tarefa de uma 4 0 H ERM EN ÊUTICA hermenêutica da facticidade no sentido do genitivo objetivo será então lembrar a facticidade a si mesma arrancála de seu esquecimento de si A hermenêutica é de ataque visando à facticidade de cada um A her menêutica tem como tarefa tornar cada Daseirt atento a seu próprio ser comunicálo a ele expulsar a alienação de si que assola o Daseiri2 Em outros termos tratase de despertar a existência para si mesma O tema da hermenêutica é então o Da sein de cada um questionado de maneira hermenêu tica quanto a seu caráter de ser a fim de elaborar um despertar radical a propósito de si mesmo Medimos aqui a distância que separa Heidegger da hermenêu tica clássica a hermenêutica não tem mais a ver com textos e sim com a existência individual de cada um a fim de contribuir para se despertar a si mesma Visto que se trata de abalar a existência é preciso des truir as interpretações que a mantêm em seu estado de sonolência A hermenêutica realiza sua tarefa uni camente pelo viés da destruição3 Há necessidade de uma destruição porque a existência tenta evitarse a si mesma Transpassada pelo cuidado de si ela tem a preocupação de se aliviar dessa inquietude radical que ela é para si mesma A existência busca se apaziguar a si mesma busca se evitar sucumbindo assim à tendên cia ao aviltamento que a segue como sua sombra4 É 2 M Heidegger Herméneutique de Ia facticité CEuvres complètes GA t 63 Klostermann 1998 p 15 3 Idem ibidem p 32 4 Cf M Heidegger lnterprétations phénoménologiques dAristote 1992 TERRepress 1992 pp 1923 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 1 dessa forma que a existência sucumbe por si mesma à mediocridade ditada pelo se sujeito indeterminado e pela opinião pública Ressaltemos que Heidegger não tem realmente um mo delo mais edificante a propor à existência concreta Ele simplesmente lembra à existência que ela deixa de ser um pouco aí quando se deixa levar e não cuida de se assumir a si mesma Heidegger opõe a essa existência inautêntica o ideal de autenticidade que já habita a exis tência enquanto espaço aberto capaz de determinar a interpretação de seu ser Não se trata então de propor uma nova moral mas de convidar o Dasein para ser o que ele é um ser que pode ser aí onde caem as de cisões fundamentais quanto a seu ser mas que muito frequentemente está noutro lugar distraído longe de si 2 O ESTATUTO DA HERMENÊUTICA em S e r e te m po 0 programa hermenêutico de 1923 será retomado na obra mestra de 1927 mas dessa vez nosto a serviço do novo projeto de uma ontologia fundamental Nesse quadro a filosofia é efetivamente concebiaa como ontologia por que sua questão primeira é a do ser Segundo Heidegger a questão é prioritária e isso em vários sentidos a Inicialmente ela aparece como fundamental em ci ência porque todo conhecimento e toda relação com um objeto repousam sobre certa compreensão do ser de que se está tratando o ser é um pouco a pressuposi 4 2 H ERM EN ÊUTICA ção de toda pesquisa científica mas que cabe propria mente à filosofia trazer à luz b Mais fundamentalmente ainda a questão do ser se confirma como urgente para a própria existência se é verdade que a existência se caracteriza pelo fato de que vai a seu ser por seu próprio ser Portanto não há na filosofia questão mais essencial 0 que ocorre é que a questão hoje caiu no esquecimento declara a primeira linha do livro de 1927 É preciso então franquear um novo acesso a ela Para tanto Heidegger propõe seguir o método fenomenológi co gue inicialmente supõe um sentido proibitivo tudo o que será dito dos fenômenos deverá ser objeto de uma legitimação direta Ora a dificuldade com o ser é que ele não se mostra e a questão foi atualmente abandonada tendo ficado recoberta pela problemática da teoria do co nhecimento Aquilo que a fenomenologia deverá fazer ver dirá Heidegger é aquilo que não se mostra à primeira vis ta mas que tem necessidade de ser posto em evidência 0 que é que a fenomenologia deve fazer ver Mani festamente aquilo que à primeira vista justamente não je mostra aquilo que com relação ao que se mostra logo de cara e mais frequentemente está retraído mas que ao mesmo tempo pertence essencialmente proporcionan do sentido e fundamento ao que se mostra à primeira vista e o mais frequentemente5 Desse modo a fenomenologia será o caminho que per mite acesso ao ser inclusive como fenômeno funda 5 Être et temps trad Martineau 47 trad Vezin 62 SZ 35 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 3 mental mas que não se mostra por conta do esqueci mento do ser Mas como fazer ver aquilo que não se mostra aquilo que constitui o objeto da ontologia Heidegger resolve o dilema apelando à hermenêutica bem entendido à hermenêuti ca da existencia A fenomenologia fará então uma virada hermeneutica Os desenvolvimentos que Heidegger con sagra as noções de fenomenologia e de hermenêutica sugerem fortemente que a dissimulação do fenômeno do ser é o resultado de um recobrimento que nada tem de inocente Esse recobrimento se funda realmente em uma autodissimulação da existência que ao ocultar o tema do ser busca sobretudo esquivarse de seu ser fini to e mortal A tarefa de uma hermenêutica da existência será então reconquistar redespertar dizia o curso de 1923 a existência e seu tema fundamental o ser contra riamente a sua tendência de se ocultar a si mesma Tratase aqui de enfrentar um duplo esquecimento mas um duplo esquecimento que se sistematizou o esquecimento da própria existência isto é o esqueci f mento de si mesma como tarefa e como projeto e o esquecimento do ser como tema fundamental da filo sofia Nos dois casos o esquecimento supõe uma des truição ou seja pôr a descoberto os motivos que pre sidiram à instauração de um pensamento que oblitera o ser como tema fundamental da existência e da filo sofia Na introdução a Ser e tempo a insistência incide sobre o esquecimento do ser mas a seqüência da obra estabelecerá claramente que esse esquecimento se ali cerça em um esquecimento de si da existência e de sua finitude que é fundamental 4 4 H ERM EN ÊUTICA Em vista de suprimir esse duplo esquecimento há ne cessidade de uma hermenêutica ou seja de uma des coberta destruidora que sempre deve ser entendida no sentido positivo do desencapamento que busca pôr a nu o fenômeno que foi encoberto de um lado de uma hermenêutica da própria existência que a tire de seu autorrecobrimento de outro de uma hermenêuti ca do esquecimento filosófico do ser que se anuncia sob onome de uma destruição da história da ontologia Ser e tempo fará então em uma página muito densa SZ 37 uma caracterização concisa e condensada daqui lo que convém entender por hermenêutica 0 sentido metódico da descrição fenomenológica será resultado da hermenêutica no sentido preciso de que a descrição derivará de um trabalho de interpretação Auslegung voltaremos daqui a pouco a este termo crucial 0 cará ter hermenêutico da fenomenologia vem ressaltar que as duas coisas devem ser anunciadas à compreensão do ser que é a de nossa existência a o sentido autêntico do ser b as estruturas fundamentais de seu próprio ser Mas para comunicar o sentido autêntico e fundamental do ser e as estruturas do ser que é o nosso temos de partir de uma explicitação expressa do ser da existên cia que constituirá o sentido filosoficamente primei ro da hermenêutica em Ser e tempo Se esse sentido é chamado de primeiro é porque ele constituirá o fun damento verdadeiro da ontologia fenomenológica que Heidegger quer propor a fim de redespertar a questão do ser é necessário partir de uma interpretação expli VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 4 5 citante do entendimento de ser mais ou menos expres sa que é a da própria existência Tendo em vista essa problemática entre todas a mais fundamental é apenas de modo derivado diz Heidegger que podemos entender por hermenêutica uma meto dologia das ciências históricas do espírito Heidegger afastase assim da concepção diltheyana da herme nêutica mas em nome de um pensamento que vincula a hermenêutica à própria existência seguindo algumas das intuições do último Heidegger 3 U m a n o v a h e r m e n ê u t i c a d o e n t e n d e r í É desse modo que a hermenêutica promete recordar à existência as estruturas essenciais de seu ser às quais Heidegger dará 0 nome de existenciais Se é verda de que a existência é habitada por um entendimento preocupado de si consequentemente 0 entendi mento formará um existencial absolutamente funda mental e ao qual Heidegger dará um novo sentido de terminante para a hermenêutica posterior Já sabemos que a existência é hermenêutica por ser ela um ser de entendimento Mas o que quer dizer enten der Mais uma vez Heidegger rompe com a tradição anterior vendo nela menos uma intelecção intelligere ou um conhecimento e mais um poder uma capacida de um saber fazer ou uma habilidade Nesse sentido ele recorre à locução alemã sich auf etwas verstehen que quer dizer entenderse sobre algo ser capaz de 4 6 H ERM EN ÊUTICA algo 0 entenderse sobre é aqui um verbo pronomi nal que me implica em seu exercício porque é sempre uma possibilidade de mim mesmo que se desdobra e que também se arrisca no entendimento Entender portanto é poder algo e o que é podido nes se poder é sempre uma possibilidade de si mesmo um seentender Ancorado na existência e em sua inquietude funda mental a propósito de si mesmo tpdo entendimento terá a estrutura de um projeto Ou seja o entendimento se dá no seio de uma estrutura de antecipação de uma antecipação de significatividade regida pela existência e por sua necessidade de orientação Mas essa antecipação não decorre necessariamente de um projeto consciente Ela é o resultado de um projeto lançado lançado na existência o entendimento se nu tre de projetos de entendimento que são tantas outras possibilidades de se livrar de embaraços no mundo Mas é possível esclarecer esse serprojetado trazer à luz essas antecipações e assim apropriarse de seus projetos de entendimento Esse esclarecimento do en tender se realizará por meio daquilo que Heidegger chama de Ausiegung Heidegger esta recorrendo aqui ao conceito que de fine a tarefa clássica da hermenêutica a tarefa de in terpretação mas conferindolhe um sentido inédito A interpretação é exatamente dirá ele a explicitação do entendimento Heidegger está jogando aqui com o ter mo alemão Ausiegung que quer dizer interpretação na linguagem corrente mas cuja construção evoca a ideia VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 7 de um desbastamento ou de uma explicitação de onde a preferência dos tradutores por esse termo quando se trata de verter Ausiegung Dois deslocamentos maiores são operados aqui com relação à problemática clássica da interpretatio a 0 que se trata de trazer à luz não é inicialmente o sentido do texto ou a intenção do autor mas a in tenção que habita a própria existência o sentido de seu projeto Esse deslocamento tem tudo a ver com a virada existencial da hermenêutica em Heidegger que abandona o paradigma da interpretação dos textos mas sem deixar de ter repercussões sobre ela como o reconhecerão os herdeiros de Heideg ger que serão Bultmann Gadamer e Ricoeur b A interpretação deixa aqui de ser o procedimento que permite atingir o entendimento seguindo a estru tura teleológica da interpretação e do entendimento que prevaleceu na concepção clássica da hermenêuti ca Não a interpretação é sobretudo o esclarecimen to crítico de um entendimento que a precede Primei ro vem o entendimento depois sua interpretação na qual o entendimento vem a se entender a si mesmo a se apoderar de suas antecipações 0 entendimento é dotado de uma tríplice estrucura que vem a ser esclarecida naquilo que Heidegger chama a Ausiegung ou a interpretação explicitante Todo en tendimento possui a um présaber Vorhabe um horizonte a partir do qual ele entende b uma prévisão Vorsicht porque ele se efetua em uma certa intenção ou em uma certa visada 4 8 H ERM EN ÊUTICA c uma préapropriação Vorgriff dado que ela se desdobra no seio de uma conceitualidade que an tecipa o que há para ser entendido e que talvez não seja inocente 0 propósito da interpretação explicitante é destacar jpara si mesma enquanto tal ou qual a estrutura de antecipação e aquilo que ela implica Heidegger aqui está claramente animado por uma intenção de Aufklárung ou de elucidação que será um pouco tem perada por seu aluno Gadamer Em Ser e tempo Hei degger não pensa de início nos modos filológicos da interpretação e do entendimento ele pensa sobretudo em dois tipos de antecipação que estão na expectativa de explicitação ou de destruição a a antecipação de determinada concepção do ser como presença subsistente o que é é o que se es tende em uma presença permanente sob um olhar dominador concepção que teria dominado toda a história da metafísica b a antecipação de determinada concepção da exis tência o homem como coisa pensante ou animal rationale A questão de Heidegger aqui é a seguinte mas de onde vêm esses préentendimentos Eles nunca foram elu cidados por si mesmos Ser e tempo se propõe a fazê lo aplicando à questão do ser e do homem a estrutura do entendimento e da explicação que já é a estrutura da existência Dessa forma a obra pratica no plano fi losófico a hermenêutica do ser e da existência que já se opera no seio da existência Voltamos a perceber a distância que pode separar Heidegger da hermenêuti VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 4 9 ca clássica não se trata de interpretar o sentido de um texto ou o pensamento de um autor mas de elucidar o préentendimento da existência a fim de determinar se ela provém de uma apreensão autêntica ou não 4 Do c í r c u l o d o e n t e n d i m e n t o s Segundo Heidegger todo entendimento se eleva contra 1 0 fundo de algumas antecipações ditadas pelo cuidado da existência consigo mesma A existência se entende então a partir de certo saber de certa intenção e se gundo determinada çonceitualidade Tratase de outra maneira de dizer que não existe tabula rasa do entendi mento Ora contudo é esse ideal da tabula rasa do en tendimento que a metodologia científica quis impor à hermenêutica do século XIX especialmente em Dilthey a hermenêutica passa a ser entendida como a discipli na que deve rejeitar o subjetivismo da interpretação a fim de fundar a pretensão da objetividade das ciências humanas Aqui se pressupõe que não se pode entender objetivamente a não ser que sejam descartados os pressupostos do intérprete e de sua época De acordo com esse ideal de objetividade a concepção heideggeriana do entender e da interpretação parece levar a um círculo que dá todas as mostras de ser vi cioso É que parece não mais existir interpretação ob jetiva neutra com toda interpretação parecendo nada mais que a elaboração de um entendimento prévio Daí é que vem 0 problema pelo qual mais ou menos se defi nia a hermenêutica clássica como sair desse círculo de 5 0 H ERM EN ÊUTICA danação Como chegar a uma interpretação que seria enfim independente das preconcepções do intérprete Querer sair desse círculo seria aos olhos de Heidegger manter a esperança de chegar a um entendimento que deixaria de brotar da existência Mas não só nada dis so existe como manter uma ilusão dessas seria passar completamente ao largo do que é o entender saber uma busca de inteligibilidade que é sempre movida pelas ex pectativas da existência preocupada consigo mesma O que é decisivo clamará Heidegger não é sair do círculo mas entrar nele da maneira conveniente SZ 153 Para ele isso quer dizer que a tarefa primeira da interpreta ção é não a de ceder a preconceitos arbitrários mas a de elaborar a estrutura de antecipação do entender a partir das próprias coisas com isso Heidegger dá a en tender que não renuncia de modo algum à concepção clássica da verdade como adequação à coisa A máxima hermenêutica de Heidegger consiste então em destacar a estrutura de antecipação do entendi mento em vez de fazer como se ela não existisse É en tão a um exercício de rigor ou seja de autocrítica que Heidegger convida a interpretação É a esse exercício que é consagrado todo o projeto de Ser e tempo que se interroga sobre os pressupostos hermenêuticos da compreensão dominante do ser e da existência 5 A ÚLTIMA HERMENÊUTICA DE H EIDEGGER Essa explicação crítica terá seqüência na última filoso fia de Heidegger isto é em sua última hermenêutica VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER 5 1 que assumirá a forma de uma explicação com a histó ria da metafísica e de sua concepção dominante do ser como presença disponível Mesmo sendo verdade que o último Heidegger quase não fala mais de hermenêuti ca ele radicaliza sua exigência dedicando todos os seus esforços à atualização dos pressupostos do pensamen to metafísico que agora ele considera o responsável pelo esquecimento do ser Em Ser e tempo esse esquecimento era amplamente 1 imputado à existência inautêntica que esquecia sua questão essencial 0 segundo Heidegger verá nele so bretudo a conseqüência do destino da metafísica oci dental ao submeter o ser à perspectiva da racionalida J1 de nada é sem razão a metafísica teria apagado o mistério original do ser seu surgimento gratuito sem porquê Essa metafísica da racionalidade encontraria sua realização na essência da técnica nela o ser não passaria de um dado disponível e compatibilizável f Heidegger está à espreita de outra compreensão do ser p menos imperial menos regida pelo princípio de ra zão Seu pensamento visa dessa maneira preparar um novo começo e a superar assim o pensamento metafí sico que tende a sujeitar o ser à perspectiva do homem ao exigir que ele preste contas Essa hermenêutica pro longa a visada de SZ no sentido de que seu propósito é destacar os pressupostos da concepção metafísica do ser em nome de outro pensamento mais original mais atento ao surgimento do ser Heidegger esboçou esse outro pensamento dispensan do uma atenção renovada e absolutamente hermenêu tica ao fenômeno da linguagem e da linguagem poética 5 2 H ERM EN ÊUTICA Ser e tempo já dissera que a tarefa da hermenêutica era anunciar à existência o sentido do ser Ora esse anún cio já não é o próprio fato da linguagem no qual o ser sempre assomou à fala Não é essa capacidade de enten der a linguagem e com isso de estar aberto ao mistério do ser que runda nosso Dasein nosso seraínalingua gem Portanto não é de admirar que todo o último Hei degger em suas reflexões sobre a linguagem pensada como a morada do ser tenha podido dizer que era a fala que dava voz à relação hermenêutica fundamen tal a relação do ser e do homem6 Além disso Heidegger o fez em uma entrevista retrospectiva publicada em 1959 na qual ele retoma nostalgicamente seu projeto de uma hermenêutica da facticidade e em que ele cita pela primeira vez em trinta anos textos de Schleiermacher e de Dilthey Ele quis com isso marcar sua solidariedade com a herança da hermenêutica que o precedera mas afirmando que a linguagem era o elemento da relação hermenêutica ele também antecipou os desenvolvi mentos da hermenêutica de seus herdeiros 6 M Heidegger Dun entretien de ia parole Acheminement vers Ia pa role 1959 Paris Gallimard 1967 pp 118120126 VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 5 3 capítulo IV CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA O mínimo que se pode dizer é que Heidegger propôs uma concepção bastante herética da hermenêutica Preso à questão dõser e da existência seu projeto à primeira vista não tem lá muito a ver com a concepção clássica da hermenêu i tica entendida como arte de interpretar os textos ou j como metodologia das ciências humanas Tal projeto parece tão distanciado das preocupações tradicionais i da hermenêutica que vários historiadores da herme i nêutica podem se permitir ignorálo ou enxergar nele um risco mortal essejyyá o caso de Betti Mas para aqueles que podemos chamar dé os descendentes de j Heidegger Bultmann Gadamer Ricoeur Vattimo et j alií são exatamente suas reflexões revolucionárias sobre o entendimento a interpretação e a linguagem que deviam provocar conseqüências para o pensamen to hermenêutico dedicado à interpretação dos textos e à justificação da pretensão de verdade das ciências i humanas Podemos dizer que o cuidado desses auto W CONTRIBUIÇÃO DB BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA 5 5 ires concentrouse em aplicar cada um a sua maneira j as lições da hermenêutica existencial às questões mais í tradicionais da hermenêutica 0 primeiro pensador de envergadura a ter mostrado como a concepção heideggeriana podia ser posta a serviço das questões mais clássicas da interpretação de textos foi sem dúvida o teólogo Rudolf Bultmann 18841976 Antes mesmo de conhecer Heidegger Bultmann já era um eminente exegeta do Novo Testa mento Em sua História da tradição sinótica de 1921 ele dera uma contribuição de primeira plana à leitura históricocrítica do texto bíblico insistindo nos estilos e nos gêneros literários do texto sagrado Ele se tornou professor em Marburgo em 1921 onde desenvolveu toda a sua carreira e onde manteve relações muito es treitas com Heidegger que também foi professor em Marburgo de 1923 a 1928 mas também com Gadamer que passou vinte anos em Marburgo de 1919 a 1939 Bultmann sempre achou que a interpretação existen i ciai proposta por Heidegger oferecia uma descrição neutra da existência humana da qual o teólogo po dia se servir em seu trabalho de interpretação Desse modo ele terá sido o primeiro hermeneuta a fazer as ideias de Heidegger frutificarem no campo da exegese Isso é especialmente evidente no ensaio que ele pu blicou em 1950 sobre O problema da hermenêutica Esse texto foi publicado muito tardiamente na obra de r Bultmann mas é importante porque ajuda a delimitar aquilo que permanecerá para autores como Gadamer e Ricoeur como sendo o problema hermenêutico 5 6 H ERM EN ÊUTICA Bultmann expõe aquilo que ele chama o problema da hermenêutica apoiandose no ensaio de Dilthey sobre A origem da hermenêutica publicado cinqüenta anos an tes Mas começa criticando a concepção tremendamente restritiva excessivamente genética que Dilthey tinha do entendimento o entendimento é justamente a re efetuação dos fenômenos internos que se desenvolve ram em seu autor Não é ele exatamente a recriação do acontecimento criador interno do qual eles provêm1 Nesse ponto Bultmann está estigmatizando a orienta ção psicologizante de Dilthey Segundo ele ela mascara o próprio sentido do esforço de entendimento focali zado sobretudo na coisa a ser entendida e a partir da pergunta fundamental que é a do intérprete Um entendimento uma interpretação está sempre orientada por uma pergunta determinada por uma in tenção precisa Isso implica que ela jamais existe sem uma pressuposição ou para falar mais exatamente que ela é sempre guiada por um préentendimento da coisa sobre a qual ela interroga o texto2 Para Bultmann o entendimento está sempre voltado para a coisa Sache do texto para sua aposta e não para a psicologia do autor Mas esse entendimento da coisa não pode deixar de ser guiado por um préenten dimento do intérprete Por sua vez esse préentendi mento se funda na vida daquele que entende A pergunta fundamental procede de um interesse que se funda na vida daquele que questiona 0 pressuposto de 1 R Bultmann Le problème de 1herméneutique 1950 Foi et com prehension 11 Paris Le Seuil 1970 pp 599626 aqui p 603 2 Idem ibidem p 604 CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA 5 7 toda interpretação compreensiva é que o interesse do qual falamos está de uma maneira ou de outra vivo no texto a ser interpretado e funda a comunicação entre o texto e o intérprete3 Assim dirá Bultmann só podemos entender participan j do daquilo que é dito Bultmann fala aqui de um teilneh mendes Verstehen de um entendimento participativo entender é ter parte com aquilo que entendo Bultmann também dirá não posso entender Platão a não ser filo sofando com ele Bultmann insiste nessa ideia de par ticipação para criticar uma concepção excessivamente estetizante do entendimento segundo a qual o sen tido a entender seria inicialmente a expressão de uma individualidade Não diz Bultmann entender é sobre tudo apreender uma possibilidade de existência Essa possibilidade de existência que está no centro do problema da hermenêutica manifesta nos dois polos do entendimento que se tornam a partir daí uma questão de diálogo entendo sempre a partir de minha existên cia e aquilo que entendo é também uma possibilidade de existência revelada pelo texto Paul Ricoeur que terá sido muito marcado pelo pensamento de Bultmann dirá pos teriormente que o entendimento incide sobre o mundo que a obra abre para mim e no qual me permite habitar 0 préentendimento do intérprete não deve ser elimi nado em nome de um ideal metódico de hermenêutica ele deve antes ser elaborado para si mesmo e questiona do Não se trata de eliminar o préentendimento mas 3 Idem ibidem p 605 5 8 H ERM EN ÊUTICA de eleválo ao nível consciente4 E tornálo consciente Bultmann esclarece é proválo pelo texto fazer com que o entendimento possa ser questionado pelo texto e que dessa maneira ele possa ouvir sua reivindicação Ans pruch Uma revisão do préentendimento é sempre pos sível e é ela o produto do trabaího de interpretação Se com isso Bultmann demonstra ter apreendido per feitamente a estreita ligação entre o entendimento e a interpretaçãoexplicitante em Heidegger seu mérito é o de ter sido o primeiro a aplicar expressamente a concepção heideggeriana do círculo hermenêutico às questões mais tradicionais da hermenêutica desen volvendo e praticando uma hermenêutica existencial dos textos Heidegger se limitara explicitamente a uma hermenêutica da existência e da metafísica Ao afir mar que o entendimento baseavase em um interesse fundado na vida ele antecipava a concepção do en tendimento própria da hermenêutica filosófica de Ga damer o entendimento como aplicação e de Ricceur o entendimento como abertura de um mundo Des se modo antes de Gadamer ele se opunha à concep ção ainda excessivamente estetizante e reconstrutora do entendimento em Dilthey Sua concepção partici pativa do entender abria a partir daí caminho para a compreensão do entendimento como um diálogo 0 retorno dahermenêutica a suas questões mais antigas tornavase possível desde um solo heideggeriano 4 Idem ibidem p 618 CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA 5 9 capítulo v HANSGEORG GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO i U m a h e r m e n ê u t i c a n ã o m e t o d o l ó g i c a DAS CIÊNCIAS HUMANAS esmo que Heidegger já tivesse proposto uma concepção filosófica da hermenêutica é apenas coniGadamer que o termo herme nêutica começou a realmente se impor à consciência geral Em 1960 Gadamer submeteu a seu editor um longo manuscrito intitulado As grandes linhas de uma hermenêutica filosófica Contudo o editor avaliou que o termo hermenêutica talvez fosse muito esotérico e trouxesse o risco de espantar os leitores Solicitado a trocálo por algo mais atrativo Gadamer pensou ini cialmente em Entendimento e acontecimento antes de chegar ao título Verdade e método Foi essa obra que catapultou a hermenêutica aq centro dos debates filo sóficos a ponto de o editor insistir para que o termo GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 1 hermenêutica figurasse no título de uma coletânea de ensaios que Gadamer viria a publicar em 1967 Apesar de Gadamer ter sido alunode Heidegger e de ter se inspirado muito nele a transição da hermenêutica de Heidegger para a de Gadamer não é automática Gada mer não retomou diretamente a hermenêutica da exis tência de seu mestre Ele tentou repensar a partir dela a problemática mais diltheyana de uma hermenêutica das ciências humanas mesmo que Gadamer vá acabar indo além desse horizonte ao esboçar uma hermenêu tica universal da linguagem 0 que o impressionou em Heidegger foi menos o projeto de uma hermenêutica direta da existência ou de uma retomada da questão do ser e mais a nova compreensão do círculo hermenêuti co que não é mais para ser entendido segundo o ideal objetivista de uma tabula rasa A ideia fundamental de Heidegger dizia que era absurdo esperar alcançar um entendimento expurgado de toda antecipação logo fi nalmente objetivo porque entender para um ser fini to é ser movido por algumas antecipações Sem anteci pações constitutivas o entendimento perde toda razão de ser toda pertinência Por isso não existe interpreta ção que não seja guiada por um entendimento Heidegger afirmava tudo isso claro na perspectiva de uma hermenêutica da existência as antecipações da existência foram elaboradas de maneira autêntica a partir da finitude de nosso ser ou não Por sua vez Gadamer aplicará a valorização mais positiva do círcu lo hermenêutico à problemática de uma hermenêutica das ciências humanas A concepção de Heidegger não deve ter conseqüências para uma hermenêutica que 6 2 H ERM EN ÊUTICA se propõe fazer justiça à pretensão de verdade das ci ências humanas Gadamer parte então de Heidegger mas para renovar a compreensão do problema de Dil they Mesmo reatando com a interrogação de Dilthey Gadamer questiona a premissa de Dilthey segundo a qual apenas uma metodologia poderia dar conta da ver dade das ciências humanas Esse é um pouco o senti do do título Verdade e método a verdade não é apenas uma questão de método 0 método se funda sobre a distância do observador com relação a seu objeto Ora esse modelo de entendimento a distância é realmente apropriado às ciências humanas O espectador não está sempre comprometido de certa maneira Essa concep ção do entendimento vem diretamente de Heidegger entender é um se entender a si mesmo Mas ela tam bém evoca o entendimento participante de Bultmann 0 propósito inicial de Gadamer é justificar a experiência de verdade das ciências humanas e do entendimento em geral partindo da concepção participativa do entendi mento Ela é constitutiva daquilo que ele chama na pri meira linha de sua obra de o problema hermenêutico1 Mas esse problema fora encoberto segundo ele pela concepção excessivamente metodológica da hermenêu tica proposta por Dilthey A ideia de Gadamer é que Dil j they sucumbe a uma concepção da verdade inspirada na metodologia das ciências exatas que declara anátema todo envolvimento da subjetividade Em vez de seguir cegamente essa metodologia por sinal quase em desacordo com sua prática real as ci 1 HG Gadamer Vérité etméthode VM Paris Le Seuil 1996 p 11 CEuvres complètes GW 111 GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 3 ências humanas fariam melhor se se inspirassem na tradição um pouco esquecida do humanismo do qual por sinal as ciências humanas extraem o próprio nome humaniora A reconquista do problema hermenêuti co começará portanto por uma vigorosa reabilitação da concepção humanista do saber nas primeiras seções de Verdade e método 0 traço característico do huma nismo é que ele não visa inicialmente produzir resulta dos objetiváveis e mensuráveis como no caso das ciên cias metódicas da natureza Ele espera especialmente contribuir para a formação Bildung e para a educa ção dos indivíduos desenvolvendo sua capacidade de julgar Nesse ideal de formação no qual se forma um senso comum um senso comum a todos e um sentido do que é comum e justo se produz uma elevação ao universal mas que não é o universal da lei científica Ele corresponde sobretudo a um ultrapassamento de nossa particularidade que nos abre para outros hori zontes e que nos ensina a reconhecer humildemente nossa própria finitude Não se vê aqui um modo de co nhecimento que implica o indivíduo e que pode servir de modelo para as ciências humanas Se esse modelo perdeu para nós sua força coagente é porque o posi tivismo científico impôs um modelo único de saber o modelo do conhecimento metódico independente do intérprete Gadamer não tem nada contra o saber metódico enquanto tal ele reconhece toda a sua legi timidade mas avalia que sua imposição como o único modelo de conhecimento tende a nos tornar cegos a outros modos de saber Uma reflexão que quisesse fa zer justiça à verdade das ciências humanas reflexão decorrente daquilo que podemos chamar uma herme nêutica não seria necessariamente uma metodologia 6 4 I H ERM EN ÊUTICA 2 O MODELO DA ARTE O ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO Em busca de outro modelo de saber diferente do modelo da ciência metódica Gadamer vai se inspirar na primei ra parte de Verdade e método na experiência da arte A obra de arte não oferece apenas uma fruição estética ela é num primeiro momento um encontro de verdade afir ma firmemente Gadamer Reduzir a obra de arte a uma questão puramente estética é fazer o jogo da consciência metódica que reivindica um monopólio sobre a noção de verdade limitada à ordem daquilo que é cientificamente cognoscível Não dirá Gadamer é preciso também reco nhecer que a obra de arte tem sua verdade Essa amplia ção da noção de verdade permitirá mais tarde fazer justi ça ao modo de conhecimento das ciências humanas A fim de pensar esse encontro com a verdade Gadamer propõe partir da noção de jogo entender uma obra de arte é deixarse levar por seu jogo Nesse jogo somos menos aqueles que dirigem e mais aqueles que são le vados encantados pela obra que nos leva a participar de uma verdade superior 0 jogo não tem nada de pura mente subjetivo para Gadamer Bem ao contrário aque le que joga se encontra sobretudo transportado para uma realidade que o ultrapassa Aquele que participa de um jogo se dobra à autonomia do jogo o jogador de tênis responde à bola que lhe é enviada o dançarino se gue o ritmo da música aquele que lê um poema ou um romance é tomado por aquilo que está lendo Esse modelo é importante porque a subjetividade se encontra bastante implicada aqui mas ela é importan GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 5 te ao justamente se dobrar àquilo que a obra em toda a sua objetividade lhe impõe o sujeito se encontra enga jado em um encontro que o transforma Se se tratar de uma obra de arte o jogo se condensa em uma figura em uma obra que cativa e que descobre para mim algo de essencial a propósito do que é mas também a propó sito de mim mesmo A propósito do que é porque é um acréscimo de realidade que vem se apresentar em uma obra isto é uma realidade mais poderosa e ainda mais reveladora que a própria realidade que ela representa mas que ela me permite conhecer melhor por si mesma Desse modo é o quadro Dos de Mayo de Goya mostran do pobres camponeses espanhóis fuzilados à queima roupa pelas tropas francesas que descobre para mim o que é a realidade da ocupação da Espanha por Napoleão Esse encontro com a verdade encarna ao mesmo tem po um encontro consigo Há aí uma verdade da qual eu participo será inevitável pensar mais uma vez em Bultmann porque a obra me interpela sempre de maneira única Por isso é que há tanta variação nas interpretações das obras de arte Mas a ideia forte de Gadamer é que essa variação é essencial para o pró prio sentido Seria perversidade querer erradicála da interpretação A experiência de verdade não decorre tanto de minha perspectiva de mim mesmo decorre antes de tudo da própria obra que me abre os olhos para o que é É preciso distinguir a verdade de que fala Gadamer da concepção pragmatista que reduz a ver dade ao que ela pode ter de útil para mim não é a obra que deve se dobrar a minha perspectiva mas ao con trário minha perspectiva que deve se amplificar ou até se metamorfosear em presença da obra 6 6 H ERM EN ÊUTICA Há também na experiência da obra de arte um jogo rigoroso ritmado entre o acréscimo de ser que se apresenta a mim a modo de revelação ou até de um áiktat e a resposta que é a minha ninguém pode ficar indiferente diante de uma obra de arte que nos suspen de ante sua verdade Essa revelação que transforma a realidade transfigurada e reconhecida em uma obra de arte também nos transforma A obra de arte sempre me diz Você tem de mudar de vida É esse modelo da obra de arte e do rigor único que é o seu que Gadamer aplicará às ciências humanas Se gundo Gadamer a verdade das ciências humanas de corre mais do acontecimento que se apodera de nós e nos faz descobrir a realidade do que do método Nesse sentido é revelador que Gadamer tenha queri do inicialmente dar a sua obra o título Entendimento e acontecimento Com isso ele queria enfatizar que tal vez chegue muito tarde aquele que quiser impor a essa insigne experiência de verdade uma metodologia que lhe garantisse a objetividade Não estaríamos ceden do a um ideal metódico de conhecimento legítimo em si mesmo mas que deforma a experiência de verdade de que dão testemunho as ciências humanas e que a experiência da arte nos ajuda a redescobrir 3 OS PRÉJUÉZOS CONDIÇÕES DO ENTENDIMENTO A REABILITAÇÃO DA TRADIÇÃO A velha receita para fundar a verdade das ciências huma nas consistia em excluir os préjuízos do entendimen GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 7 to em nome de uma concepção da objetividade herdada das ciências exatas De uma maneira muito provocante Gadamer verá nos préjuízos sobretudo condições do entendimento Aqui ele invoca a análise da estrutura de antecipação do entender em Heidegger que demons trara que a projeção de sentido era não uma tara mas uma componente essencial de todo entendimento dig no desse nome É nesse mesmo sentido que Bultmann defendera que não havia interpretação sem préen tendimento da parte do intérprete Tanto em Heideg ger como em Bultmann contudo essa concepção não abria completamente as portas ao subjetivismo porque se tratava justamente de desenvolver antecipações que fossem adequadas à coisa a ser entendida Com efeito a interpretação era precisamente nos dois autores um convite a um exame crítico de seus préjuízos 0 próprio Gadamer começará sua análise muito já se in sistiu nisso enfatizando o processo de revisão constante que caracteriza o esforço de interpretação uma inter pretação justa deve se precaver contra o arbitrário dos preconceitos e voltar seu olhar para as próprias coisas2 Portanto assim como Heidegger Gadamer não é inimigo da ideia de adequação 0 que ele especialmente questio na é o ideal proveniente do Iluminismo de um entendi mento que seria inteiramente desprovido de préjuízos A sutileza da análise de Gadamer é mostrar que essa ob sessão com préjuízos procede de um préconceito não questionado especialmente de um préconceito contra os préjuízos A cruzada iluminista contra os préjuízos 2 VM 287288 GW I 271272 6 8 H ERM EN ÊUTICA alicerçase efetivamente sobre a ideia segundo a qual só pode ser reconhecido como verdadeiro aquilo que foi fundado na razão com base em uma primeira certeza É esse o princípio que leva o Iluminismo a desvalorizar todo conhecimento fundado na tradição e na autoridade Mas isso é desconhecer que também podem existir pré juízos legítimos préjuízos fecundos que nos são lega dos pela tradição Gadamer acredita que a oposição entre a razão e a tradição é abstrata ela mesma tributária de uma tradição cartesiana que rechaça toda verdade que não tenha sido fundada de maneira última Mas será que existe mesmo algo assim Gadamer se pergunta uma ver dade que não deveria estritamente nada à tradição e que seria então inteiramente separada da linguagem Gadamer não está pensando aqui em uma tradição defi nida o que faria dele o tradicionalista que ele não é ele está pensando especialmente no trabalho da histó ria que vai sendo tramado acima do entendimento Des se modo a tradição representa o que não é objetivável em um entendimento mas que o determina impercepti velmente 0 entendimento se opera a partir de algumas expectativas e objetivos que ela herda do passado e de seu presente mas que nem sempre pode pôr em pers pectiva Mesmo que Gadamer mantenha o ideal clássi co e heideggeriano de um exame crítico dos préjuízos parecelhe ilusório orientar a verdade do entendimento para um ideal de um conhecimento desprovido de todo préconceito Esse ideal não faz justiça segundo ele à historicidade constitutiva do esforço de entendimento Em Gadamer é também essa historicidade que permite ter a expectativa de resolver a questão crítica da herme GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 6 9 nêutica como distinguir os préjuízos legítimos aque les que tornam possível o entendimento daqueles que não são legítimos e que cabe à razão crítica superar3 Ele dirá com frequência é o recuo no tempo a distância temporal que permite fazer a triagem entre os bons e os maus préjuízos Vemos isso por exemplo na arte con temporânea mas também em filosofia como distinguir as contribuições importantes e originais daquelas que o são menos Aqui só o recuo no tempo oferece algum socorro permitindo aos grandes progressos emergirem e se fazerem valer Solução mais ou menos satisfatória porque mantém intacta a questão da ponderação das obras contemporâneas quando colapsa a distância tem poral mas não toda forma de distanciamento crítico mas também porque ela rejeita sem dúvida instâncias nas quais a distância temporal pode obnubilar grandes obras e interpretações importantes Mesmo tendo in sistido naquilo que a tradição pode ter de descobrido ra e com razão talvez Gadamer não tenha enfatizado suficientemente o que ela podia ter de recobridora e às vezes de repressiva Mas é verdade que essa crítica pressupõe um conceito muito moderno de tradição justamente aquele que Gadamer pretende relativizar 4 O TRABALHO DA HISTÓRIA E SUA CONSCIÊNCIA O conceito fundamental da hermenêutica de Gadamer é 0 de Wirkungsgeschichte 0 termo alemão que já existia 3 Ibidem 298 320 GW I 304 7 0 H ERM EN ÊUTICA antes de Gadamer designa em sua acepção mais cor rente a história da recepção ou mais simplesmente a posteridade das obras através da história É assim por exemplo que podemos distinguir a obra de Cervantes de sua posteridade a Revolução Francesa de sua influên cia sobre a história Uma vez que esse termo designa um operar da história e Gadamer enfatizará sua produtivi dade podemos falar aqui de um trabalho da história A disciplina da Wirkungsgeschichte foi desenvolvida no século XIX por historiadores orgulhosos de sua cons ciência histórica e interessados em estudar por si mesma a posteridade das grandes obras o historiador que quiser estudar o pensamento de Platão por si mes mo terá o cuidado de se distinguir de sua posteridade e de seus préjuízos Desse modo a consciência históri ca do trabalho da história devia permitir escapar a sua insidiosa determinação para o maior bem de uma in terpretação objetiva do passado tal qual ele realmente foi antes de a história lhe conferir novos sentidos Gadamer se pergunta se esse ideal de entendimento que busca manter a Wirkungsgeschichte à distância faz justiça ao trabalho da história 0 fato de estudar a posteridade por si mesma implica que justamente por isso nos subtraiamos a sua eficácia Não se tem certeza disso porque a própria interpretação que pretende objetivar o trabalho da história se faz em nome de préjuízos e de um ideal de objetividade que são propriamente o fruto de um trabalho subterrâneo da história no caso do positivismo Aos olhos de Ga damer parece menos importante objetivar esse traba lho da história tarefa impossível porque ela pretende GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 1 i se tomar senhora de todas as suas determinações do que reconhecer que todo entendimento se inscreve em um trabalho da história emanando das próprias obras mas do qual ela só teve uma consciência parcial Todo o propósito filosófico de Gadamer é desenvolver uma consciência adequada desse trabalho da história De início pode se tratar como em Heidegger e em Bult mann de uma consciência que se esforça para iluminar o trabalho da história dentro do qual ela se mantém a fim de esclarecer sua própria situação hermenêutica Isso é perfeitamente legítimo no seio da pesquisa histó rica mas aos olhos de Gadamer é fundamental tomar consciência dos limites desse esclarecimento Isso por que o trabalho da história continua a determinar nossa consciência para além da consciência que temos disso Uma consciência finita jamais será senhora de todas as suas determinações Em uma ambigüidade essencial e voluntária a consciência do trabalho da história de signa simultaneamente como o afirma o prefácio à 2a edição francesa de Verdade e método a a consciência lapidada e trabalhada pela história b a tomada de consciência desse serdeterminado e dos limites que ele impõe ao ideal de uma consci ência inteiramente transparente a si mesma4 A expectativa de Gadamer é exatamente o reconheci mento de sua finitude essencial levará a consciência a se abrir à alteridade e a novas experiências 4 Prefácio à 2a edição traduzida da I a tradução parcial de VM Paris Le Seuil 1976 p 14 7 2 H ERM EN ÊUTICA 5 A FUSÃO DOS HORIZONTES E SUA APLICAÇÃO Segundo essa consciência que se dá conta de sua fini tude o entendimento aparecerá menos como uma ati vidade do sujeito do que como um advir decorrente do trabalho da história 0 próprio entender deve ser pensado menos como uma ação da subjetividade do que como uma inserção em um acontecimento de tradição no qual se mediatizam cons tantemente o passado e o presente Eis o que se deve reconhecer na teoria hermenêutica que é muito mais dominada pelas ideias de procedimento e de método5 Essa constante mediação do passado e do presente está na raiz da ideia gadameriana de uma fusão de horizontes Entender o passado não é sair do horizon te do presente e de seus préjuízos para se transpor para o horizonte do passado É na realidade traduzir o passado na linguagem do presente onde se fundem os horizontes do passado e do presente Desse modo a fusão é tão bemsucedida que não se consegue mais distinguir o que provém do passado nem o que resulta do presente de onde a ideia de fusão Mas essa fusão do presente e do passado também é mais fundamen talmente a do intérprete com aquilo que ele entende Como já vimos no caso da experiência da arte o en tendimento é uma experiência tão fusional que não se pode mais distinguir facilmente o que provém do obje 5 VM 312 GW 1295 Ver meu estudo sobre La fusion des horizonts Archives de philosophie 68 2005401418 GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 3 to e o que deriva do sujeito que entende Os dois então se fundem em um encontro bemsucedido do sujeito com o objeto onde podemos reconhecer a versão gada meriana da adasquatio rei et intellectus da adequação da coisa ao pensamento que constitui a definição clás sica da verdade Se há fusão com o presente é porque o entendimento sempre encerra uma parte de aplicação No momento em que entende o intérprete insere algo de seu mas esse seu é também o de sua época de sua linguagem e de seus questionamentos Sempre interpretamos uma obra a partir de questionamentos frequentemente im perceptíveis de nosso tempo Entender é pois apli car um sentido ao presente Gadamer se vincula aqui à antiga subtilitas applicandi que ainda fazia parte no pietismo do século XVIII da tarefa essencial da herme nêutica Para um pastor essa aplicação se operava na homilia que buscava aplicar o entendimento do texto sagrado à situação real dos fiéis Gadamer lhe confere uma amplitude sem precedentes afirmando que o en tendimento nada mais é que a aplicação de um sentido ao presente Aqui Gadamer se opõe ao ideal metódico e reconstrutor de Schleiermacher e de Dilthey que quer excluir a intervenção do presente percebida como uma ameaça à objetividade Podemos realmente entender perguntase Gadamer sem fazer parte do entendimen to sem que o presente esteja nele implicado A tradução oferece um belo exemplo daquilo que Gada mer entende por aplicação traduzir um texto é fazêlo falar em outra língua Claro que os recursos de nossa língua são então aplicados 0 sentido estrangeiro só 7 4 H ERM EN ÊUTICA pode ser vertido para outra língua se formos capazes de entender Ao transpor o sentido para outra língua o texto traduzido vem se fundir no melhor dos casos com aquele que acaba de traduzilo Diante isso uma tradução é tanto mais bemsucedida quando não se tem a sensação de estar lendo uma tradução Vemos com isso sobretudo que a aplicação comporta seu ri gor e sua verdade não se pode traduzir um texto de qualquer jeito É o texto estrangeiro que se trata de tra duzir mas isso só é possível quando se aplicam os re cursos de nossa língua Por isso é equivocado associar a aplicação do intérprete a uma forma de arbitrário subjetivo Esse modelo de tradução não é qualquer um dado que ressalta o elemento lingüístico de todo en tendimento com o qual Verdade e método se concluirá 6 A LINGUAGEM OBJETO E ELEMENTO DA REALIZAÇÃO HERMENÊUTICA Entender é traduzir um sentido ou ser capaz de tradu zilo Essa tradução implica exprimir linguisticamente o sentido Gadamer chega à conclusão de que o proces so do entendimento e seu objeto são essencialmente lingüísticos Temos aqui duas teses A primeira é que o entendimento é sempre um processo lingüístico Sob um aspecto negativo não há entendimento que não seja de certa maneira expressão lingüística Entender é ser interpelado por um sentido poder traduzilo em uma linguagem que é sempre necessariamente a nossa Temos aqui fusão entre o processo do entendimento e GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 5 sua expressão lingüística A ideia de Gadamer é que a linguagem não é a tradução segunda de um processo intelectual que a precederia e que poderia se desenvol ver sem linguagem Não Todo pensamento já é busca de linguagem Não existe pensamento sem linguagem Mas aqui se trata de uma evidência que o pensamento ocidental teria teimado em menosprezar desde Platão ao atribuir à linguagem um estatuto segundo em com paração com o pensamento autônomo Aqui Gadamer denuncia um esquecimento da linguagem que teria atravessado toda a nossa tradição ocidental e à qual ele só conhece uma exceção a ideia entrevista por Agos tinho de uma identidade de essência fundamental entre o pensamento o logos e sua manifestação lin güística sua encarnação Essa linguagem do entendimento pode abarcar todo ser suscetível de ser entendido Portanto ela não está restrita a sua própria perspectiva a de uma língua ou de uma comunidade específica A condição lingüística de nossa experiência do mundo não significa um pers pectivismo que excluiria outras perspectivas6 A insis tência não recai portanto sobre o limite perspectivista que geraria o caráter lingüístico de nosso entendimen to mas ao contrário sobre a abertura que ele implica a linguagem entendida a partir do diálogo pode se abrir a tudo o que pode ser entendido e a outros horizontes lingüísticos que venham ampliar os nossos A tradução e o diálogo em princípio são sempre possíveis Isso não quer dizer que nossa linguagem não conheça limites nossas palavras são com frequência bem impotentes 6 VM 472 GW 1452 7 6 H ERM EN ÊUTICA para exprimir tudo o que sentimos Mas os limites da linguagem são então também os limites de nosso en tendimento Toda crítica aos limites da linguagem só pode ser feita propriamente no seio da linguagem Des se modo a linguagem absorve todas as objeções que se pudesse querer levantar contra sua competência Por isso é que Gadamer dirá que a universalidade da lingua gem vai pari et passu com a universalidade da razão7 ela mesma se articula em uma linguagem capaz de ser entendida e permanece impensável sem linguagem Mas se podemos falar de uma universalidade e de uma racionalidade dialógica da linguagem para designar sua abertura a todo sentido que possa ser entendido é por que a linguagem é a luz do próprio ser É daí que surge a segunda grande tese de Gadamer não apenas a realiza ção do entendimento é uma expressão pela linguagem como o objeto do entendimento é ele mesmo lingüísti co Esse é o sentido do famoso adágio de Gadamer 0 ser que pode ser entendido é linguagem Isso se aplica claramente aos textos mas segundo Gadamer o mundo que eu entendo é sempre um mundo orientado para a linguagem 0 mundo só se apresenta a mim em lingua gem Sempre Essa parede esse médico essa angústia não se oferecem inicialmente a meu olhar como reali dades físicas às quais acrescentarei depois designações Não 0 que vejo são uma parede uma casa e é uma an gústia que me estrangula Tudo o que pode ser entendi do é um ser que se articula em linguagem Quando tento entender o que é determinada coisa busco um ser que já é linguagem e que pode então ser entendido 7 VM 424 GW 1405 GADAMER UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO 7 7 É fundamental ver que a insistência de Gadamer não recai sobre a expressão lingüística do mundo por um sujeito como na concepção de Humboldt que faz da linguagem uma visão do mundo ou na de Cassirer que faz da linguagem uma forma simbólica de nos sa apreensão do mundo A ideia central de Gadamer é mais fundamentalmente ainda que é a linguagem que faz o ser do mundo aparecer porque é ela que permite desdobrar a linguagem das próprias coisas Dessa ma neira a linguagem encarna a luz do ser na qual o ser das coisas se dá a entender Muito marcados pelo pensamento moderno os intérpre tes nem sempre apreenderam bem o alcance dessa tese de Gadamer Seu propósito não consiste em dizer que o real é sempre apropriado pela linguagem que seria o real de uma língua ou de uma cultura histórica e que consequentemente o ser propriamente dito seria in cognoscível Ao contrário ele diz que é a linguagem que nos permite conhecer o sér das coisas Gadamer critica severamente a ideia moderna de Humboldt e de Cassi rer mas que remonta a Kant segundo a qual o real não receberia sua inteligibilidade a não ser de nossa lingua gem de nossa visão do mundo ou de nossas categorias 0 sujeito doador de sentido não se encontra em face de um mundo de objetos que seria inicialmente privado de sentido e que só viria a receber sentido a partir de de terminada linguagem Gadamer denuncia aqui uma con cepção nominalista e instrumental da linguagem que faz da linguagem um instrumento nas mãos do sujeito Gadamer sustenta que a linguagem já é a articulação do próprio ser das coisas Não se trata de um instrumento 7 8 H ERM EN ÊUTICA do qual dispomos Tratase muito mais do elemento uni versal no seio do qual se banham o ser e o entendimento Esse elemento universal da dimensão lingüística do sentido do ser e do entendimento habilita a herme nêutica a alimentar uma pretensão de universalidade Desse modo a hermenêutica ultrapassa o horizonte de uma reflexão sobre as ciências humanas para vir a ser uma reflexão filosófica universal sobre o caráter lingüís tico de nossa experiência do mundo e do próprio mundo g a d a m e r u m a h e r m e n ê u t i c a d o a c o n t e c i m e n t o d o b n t e n d i m e n t o 79 capítulo VI HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS I A REAÇÃO METODOLÓGICA DE B e TTI rT endo vindo a confirmar a posteriori sua con cepção do trabalho da história a hermenêu tica de Gadamer suscitou vivas discussões fi losóficas que contribuíram para ressaltar seu sentido e alcance A primeira reação proveio do jurista italiano EmilioJtetji 18901968 que apresentara uma con cepção rigorosamente metodológica da hermenêutica em sua volumosa Teoria geral da interpretação de 1955 Milão Giuffrè Editori Ela se situava na tradição de Schleiermacher e Dilthey mas a síntese magistral de Betti era muito mais desenvolvida e hierarquizada do que os esboços de seus dois grandes antecessores A Teoria generale de 1000 páginas não há dúvida foi bem pouco lida mas Betti redigiu em alemão dois pan fletos polêmicos nos quais resumia o essencial de seu pensamento e que tiveram muito mais repercussão a Fundação de uma teoria geral da interpretação de 1954 e o ensaio de 1962 A hermenêutica como meto HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 1 dologia geral das ciências humanas1 No primeiro pan fleto ele ainda não está evidentemente se defrontando com Gadamer mas Betti investe ali contra as doutrinas heréticas de Heidegger e de Bultmann que querem ver no préentendimento uma condição da interpre tação Betti defende com ardor a doutrina clássica segundo a qual o préentendimento é mais prejudicial que benfazejo ao correto entendimento Ele censura Heidegger por ter invertido o vínculo teleológico natu ral entre a interpretação e o entendimento fazendo da interpretação o desdobramento do entendimento 0 ensaio de 1962 desfecha a primeira réplica impor tante contra Verdade e método seguindo uma linha de ataque previsível mas que permitirá a Gadamer de finir o sentido de sua hermenêutica em suas respos tas especialmente no prefácio à 2a edição de Verdade e método e em seu ensaio de 1965 Hermenêutica e historicismo2 Betti se concentra especialmente na concepção da aplicação defendida por Gadamer cen surandoo de confundir a significação Bedeutung de uma obra ou seja seu sentido original do ponto de vis ta de seu autor com a significância Bedeutsamkeit que ela possa ter para o intérprete atual Segundo ele a tarefa essencial da hermenêutica não é aplicar um sen tido ao presente o que levaria ao subjetivismo mas de reconstruir a intenção do autor Betti condena a meto dologia hermenêutica que Gadamer parecia estar pro pondo e que consistiria em se desfazer do método e em 1 E Betti Zur Grundlegung einer allgemeinen Auslegungslehre 1954 reed Tübingen Mohr Siebeck 1988 Die Hermeneutik ais allgemeine Methodik der Geisteswissenschaften Tübingen Mohr Siebeck 1988 2 Em HG Gadamer Vart de comprendre 111982 pp 4987 8 2 H ERM EN ÊUTICA se remeter a seus próprios préjuízos É claro não há dúvida queBetti pensava que Gadamer tinha a mesma concepção metodológica de hermenêutica que ele Gadamer viu nessas críticas uma divergência com suas verdadeiras intenções Seu objetivo não era propor uma nova metodologia sobretudo não a metodolo giaque Betti lhe imputava mas fazer uma jeflexão sobre a experiência de verdade das ciências humanas f que busca justamente ultrapassar o quadro de uma metodologia ainda excessivamente enfeudada nas ci ências exatas Ele atenuava o alcance da distinção en tre a significação foriginal e ajsignificância atual de uma obra perguntandose se a significação do passado j podia realmente ser entendida independentemente do j sentido que ela tenha para nós e que adquiriu no de correr do trabalho da história Mas foi outro o debate que contribuiu para se chegar a conhecer melhor a hermenêutica o debate que opôs Gadamer a Habermas 2 A CONTRIBUIÇÃO DE GAD AM ER s e g u n d o H a b e r m a s No decorrer dos anos 1960 Jürgen Habermas nascido em 1929 trabalhava em uma lógica das ciências sociais que um pouco como Gadamer fizera com as ciências humanas tentava justificar a contribuição de verdade j específica das ciências sociais Sua magistral Lógica das i ciências sociais 1967 foi inicialmente um artigo publi HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 3 cado em uma revista editada por Gadamer a Philoso phische Rundschau Em 1961 aliás sabendo que ele es tava em posição vulnerável em Frankfurt Gadamer aco lheu o jovem Habermas sob sua proteção confiandolhe um lugar de professor na Universidade de Heildelberg A Lógica das ciências sociais assume a forma de uma lon ga resenha crítica das principais contribuições à epis temologia das ciências sociais Proveniente da Escola ide FrankftnJra intenção de Habermas é mostrar que as ciências são animadas por um interesse de conheci mento emancipador que as habilita a criticar a socie ídade existente Habermas está em luta especialmente contra os sociólogos que sucumbem a uma concepção puramente positivista de sua disciplina Segundo eles as ciências sociais teriam a ver com dados empíricos mensuráveis e seus resultados seriam desprovidos de qualquer interesse de conhecimento porque isso poria em risco sua pretensão de objetividade Em sua justi ficativa do tipo de conhecimento das ciências sociais Habermas pôde se inspirar em Gadamer mas também não deixou de criticálo Como a crítica talvez tenha se tornado mais famosa que a solidariedade entre os dois pensadores é necessário evocar seu acordo de base a Habermas começa por se solidarizar inteiramente com a crítica gadameriana do entendimento obje tivista que as ciências humanas tradicionais têm e si mesmas Se o homem de ciência procede a uma interpretação mantendose preso a seu ponto de partida hermenêu tico seguese que a objetividade do entendimento não pode ser assegurada pela suspensão dos préjuízos mas 8 4 H ERM EN ÊUTICA apenas por uma reflexão sobre o contexto histórico de tradições que desde sempre vincula os sujeitos cognos centes a seus objetos3 Daí Habermas extrai a lição de que o pesquisador social é implicado por seu objeto do qual ele faz parte e que ele só tem a ganhar ao tomar consciência dos préjuízos segundo ele emancipadores que orientam sua pesquisa b Habermas também aprendeu muito com a concep ção gadameriana da linguagem É claro que não se pode entender o ágir social fazendo abstração da linguagem na qual o agir se articula se enten de mas também se reflete sobre si mesmo Mas há algo de mais importante ainda que ele descobriu em Gadamer especialmente a ideia segundo a qual a linguagem não constitui um universo fechado como na teoria wittgenstginiana dos jogos de lin guagem que Habermas criticará com o auxílio de Gadamer A linguagem se encontra investida es pecialmente de uma capacidade a se transcender a si mesma Prova disso é que sempre é possível tra duzir um conteúdo de sentido estrangeiro como Gadamer o demonstrou Desse modo a linguagem pode se abrir a todos os horizontes de sentidos possíveis e superar os limites de um quadro lin güístico dado Os círculos lingüísticos não são mo nadicamente fechados sobre si mesmos mas po rosos abertos tanto para o exterior quanto para o interior4 Para o exterior enquanto podem acolher 3 J Habermas La preténtion à 1universalité de 1herméneutique in Logique des sciences sociales Paris PUF 1987 pp 245246 4 Idem ibidem p 190 HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 5 todo conteúdo estrangeiro e traduzilo mas tam bém para o interior na medida em que a linguagem é capaz de transcender suas próprias expressões de matizálas e de encontrar novas expressões para aquilo que quer ser entendido Essa abertura ates ta aos olhos de Habermas o potencial de raciona lidade inerente à própria linguagem5 A razão ele dirá posteriormente assentase na linguagem na medida em que ela é capaz de se transcender a si mesma Impressionante recepção e aplicação da hermenêutica gadameriana da parte de Haber mas mas que se duplica em uma crítica severa 3 A c r í t i c a a G a d a m e r p o r H a b e r m a s Mesmo que Gadamer tenha descoberto 0 potencial de j uma racionalidade comunicativa capaz de vencer os limites de uma linguagem dada ele teria comprometi do 0 alcance de sua descoberta segundo Habermas ao defender que 0 entendimento se fundava na tradição ou no acordo preexistente que uma comunidade dada carrega Ora é possível transcender esse acordo pree xistente por uma crítica das ideologias Seu propósito é justamente questionar a ideologia reinante em dada sociedade ou em um grupo como uma forma sistemati camente distorcida de comunicação distorcida porque desvia a comunicação de seu fim natural que é 0 acor do entre os interlocutores Essa crítica é feita então em nome de uma situação de comunicação ideal irreal sem 5 Idem ibidem p 185 8 6 I H ERM EN ÊUTICA dúvida mas que não deixaria de ser antecipada em todo ato de fala desde que acreditemos que o ato de fala é animado por uma vontade de comunicação Assim como o psicanalista deve diagnosticar um bloqueio co municacional em um paciente o terapeuta social pode desmascarar o pseudoconsenso que dada sociedade ali menta como uma forma de falsa consciência Mas ao pôr em questão o acordo preexistente em dada comu nidade sairíamos do campo da hermenêutica para en trar no campo da crítica das ideologias Afastandose graças ao trabalho de reflexão do quadro da tradição ela elaboraria um sistema de referência normativo6 que lhe permitiria livrarse da pertença irrefletida à tradi ção como o confirma mais uma vez a psicanálise uma tradição trazida à consciência pela reflexão deixaria de nos determinar Por isso Habermas critica Gadamer por erigir as tradições culturais como absolutas7 Só quando consideramos a crítica de Habermas mais de perto é que nos damos conta de que ele também tenta pensar com Gadamer contra Gadamer8 Porque é exatamente a concepção gadameriana de linguagem e sua capacidade de autotranscendência que ele brande contra a concepção gadameriana da tradição Mas podemos realmente falar de uma absolutização das tradições culturais em Gadamer Não estamos cer tos disso Gadamer reconhece perfeitamente que é pos 6 Logique des sciences sociales p 215 0 direito da reflexão reclama a autolimitação da abordagem hermenêutica Ele demanda um sistema de referência que ultrapasse o contexto da tradição enquanto tal 7 Ibidem p 218 8 Ibidem p 215 HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 7 sível transcender os limites digamos ideológicos de uma linguagem ou de uma situação determinada Por sinal não é esse o grande mérito que Habermas reco nhece à concepção gadameriana de linguagem Além disso Gadamer já destacara em Verdade e método que a autoridade de uma tradição nada tinha de autoritário mas que ela se baseava em um ato de reconhecimento e da razão9 por ser antes de tudo o reconhecimento de uma superioridade Portanto em Gadamer não se trata de fazer da tradição um critério absoluto Por si nal Gadamer o reiterou em sua resposta a Habermas resposta evocadoramente intitulada Retórica herme nêutica e crítica das ideologias Pareceme falso dizer que fazemos aqui da tradição cultural um absoluto10 A dissensão incide especialmente sobre a questão de saber se ao transcender os limites de uma tradição dada em nome da crítica das ideologias realmente saí mos do universo hermenêutico e se a tomada de cons ciência de uma tradição pela reflexão suspende com pletamente a determinação da tradição É incontestável que a reflexão frequentemente pode quebrar ou suspender a força de uma tradição dis torcida Quando me dou conta de que sou vítima de um preconceito deformante ele pode deixar de me paralisar a partir do momento em que é refletido Mas 9 VM 300 GWl 284 10 HG Gadamer Herméneutique et philosophie Paris Beauchesne 1999 pp 9798 Ricoeur compreendeu perfeitamente Temps et récit t 3 Paris Le Seuil 1985 p 320 Fazer das tradições uma avaliação positiva não é ainda fazer da tradição um critério hermenêutico da verdade 8 8 H ERM EN ÊUTICA Gadamer também reconhecia muito claramente isso quando escrevia que a tarefa crítica da hermenêutica era elaborar préjuízos conformes à coisa11 Ocorre que a reflexão também não dissolve toda pertinência à tra dição A reflexão crítica de uma tradição inscrevese em um trabalho da história Não posso questionar uma tra dição exceto a partir de outra mesmo que não me dê conta expressamente disso 0 questionamento de uma tradição não se faz em virtude de um sistema de refe rência que seria independente do trabalho da história Mesmo reconhecendo ser possível ultrapassar os limi tes de uma tradição cultural Gadamer duvida de que o abandono do acordo existente possa se fazer a partir do ponto de equilíbrio de uma crítica das ideologias que pretenda diagnosticar as patologias da socieda de Essa transposição do modelo psicanalítico para as patologias de uma sociedade parece mais problemá tica aos olhos de Gadamer 0 papel do psicoterapeuta é muito diferente do papel do sociólogo Em uma cura psicanalítica você está diante de um doente que solicita a reconhecida competência de um terapeuta Mas não seria presunçoso da parte do investigador social pre tender que uma parte da sociedade está radicalmente doente e se arrogar uma competência de terapeuta social Temos aqui um paciente e uma competência terapêutica bem reconhecidos Não deixamos o universo hermenêutico quando nos consagramos à crítica das ideologias 0 ultrapassamen to do acordo existente não se opera a partir do sistema 11 VM 288 298 GW1272 281282 HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 8 9 de referência de uma crítica das ideologias segura de si mesma e se dizendo apartada da tradição Ele se realiza sempre no seio do entendimento e do diálogo herme nêuticos quando os participantes se dão conta de seus limites e chegam a uma melhor compreensão Pelo fato de ser um entendimento e de se desdobrar em uma i linguagem capaz de ser entendida a reflexão resulta 1 então uma vez mais da hermenêutica e se inscreve em um advir de tradições í 0 próprio Habermas se situa no seio de uma tradição i mais ou menos consciente e mais ou menos rompida j pela reflexão Aliás o melhor modo de mostrálo é evo car com mais de uma geração de recuo o contexto po lítico e social que formava claramente o pano de fundo da crítica de Habermas o da revolta estudantil de 1968 e seu questionamento cego de toda autoridade baseada na tradição Em um contexto político tão pesado Gada mer só podia aparecer como o conservador que ele jamais quis nem pretendeu ser enquanto Habermas evocando a força emancipadora da crítica marxista das ideologias e da psicanálise outorgavase o belo papel do progressista A ironia gritante quando se pensa nis so era a seguinte aquele que defendia com mais ardor o ponto de vista da crítica das ideologias talvez fosse aquele cujo discurso era o mais evidentemente ideo logizado Como Gadamer murmurou bem mais tarde o que talvez faltasse à crítica das ideologias fosse uma pequena dose de crítica das ideologias12 começando pelas próprias 12 Entrevista com C Barkhausen em Sprache und Literatur in Wissens chaft und Unterricht Paderborn W Fink 1986 p 97 9 0 H ERM EN ÊUTICA Habermas terá reconhecido isso a sua maneira Depois de seu épico debate com Gadamer ele foi renunciando cada vez mais à retórica da crítica das ideologias e a sua ideia de uma psicanálise ampliada à ordem social dedicando todos os seus esforços à elaboração de uma Teoria do agir comunicativo 1981 cujo núcleo é uma ética do discurso fundada na capacidade da linguagem de se transcender a si mesma Intuição hermenêutica se é que existe alguma visto que ela repousa na ideia gadameriana segundo a qual a linguagem visa primei ramente o acordo com o outro Ora intenção de acordo defende Habermas com razão é impensável sem deter minado engajamento ético da parte dos interlocutores ela pressupõe efetivamente certo ideal de reciprocida de de autenticidade e uma vontade de se render à força do melhor argumento Ao deixar de buscar fundar es sas normas em uma crítica das ideologias ou na anteci pação de uma situação de comunicação ideal mas sim no uso pragmático da linguagem podemos dizer que o último Habermas se reaproximou de Gadamer HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS 9 1 capítulo VII vs PAUL RICGEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO DIANTE DO CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES i U m p e r c u r s o a r b o r e s c e n t e yX V ada mais injusto do que abordar a contri buição de Ricceur depois das contribuições J l n de Gadamer e de Habermas Se decidimos fazer assim é unicamente porque Ricceur fundou uma de suas intervenções hermenêuticas sobre uma tenta tiva de conciliação dos pensamentos de Gadamer e de Habermas1 Mas ele vinculava o conflito entre a herme nêutica e a crítica das ideologias a uma distinção entre dois tipos de hermenêutica a hermenêutica da confian ça e a hermenêutica da suspeita que distinguira muito ãntes do célebre confronto entre Gadamer e Habermas 1 Herméneutique et critique des idéologies 1973 in Du texte à lac tion TA Paris Le Seuil 1986 p a u l r i c c e u r u m a h e r m e n ê u t i c a d o s i h i s t ó r i c o 93 A ideia de Ricceur e talvez a ideia fundamental de sua hermenêutica é que é preciso penxsar coniuntamente essas duas hermenêuticas aquela que se apropria do sentido tal qual eíe se dá à consciência na expectativa de orientação e aquela que se distancia da experiência imediata do sentido para reconduzila a uma economia mais secreta Ricoeur chegou a essa ideia seguindo uma trajetória bem distinta da trajetória de Gadamer Ela é até mesmo completamente independente da de Gadamer Seus fun damentos foram lançados nas obras publicadas no cor rer dos anos 1950 e 1960 como A filosofia da vontade 1950 1960 Da interpretação 1965 e 0 conflito das interpretações 1969 nas quais a presença de Gadamer não é de todo sensível Por sinal ela permanecerá muito discreta nas obras posteriores de Ricoeur Contudo to dos os dois haurem da mesma tradição hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey Bultmann e Heidegger mas em graus diferentes e com intenções diferentes Gada mer é certamente muito mais crítico de Dilthey e mais próximo de Heidegger com sua hermenêutica universal tentando ultrapassar o paradigma metodológico da her menêutica Ricoeur por sua vez jamais quis se afastar da problemática metodológica e epistemológica da herme nêutica Poderíamos então dizer que ele está mais pró ximo de Dilthey mas isso seria uma simplificação Realmente o percurso de Ricoeur é muito mais complexo que isso procedendo de outras fontes e talvez resistindo mais a se deixar reduzir apenas à tradição hermenêutica do que o percurso de Gadamer Seu trajeto se desenvol veu no fio de vários grandes livros que se estendem por 9 4 H ERM EN ÊUTICA um período de quase sessenta anos de 1947 a 2004 en quanto a hermenêutica de Gadamer concentrase em um único livro que apresenta uma teoria mais sistemática e que talvez tenha dado origem a debates hermenêuticos mais expressivos que a de Ricoeur As obras de Ricoeur se interessam por uma florescente diversidade de discipli nas filosofia da existência de onde ele partiu e onde estava mais perto de autores como Gabriel Mareei e Karl Jaspers do que de Heidegger teoria do conhecimen to histórico interpretação da Bíblia psicanálise teoria lingüística teoria da ação fenomenologia do tempo fe nomenologia da memória e do reconhecimento teoria da narrativa e ética Em cada um de seus livros Ricoeur esboça vastos afrescos históricos que tentam reconci liar as abordagens mais diversas Esse é o traço secre tamente hegeliano desse pensamento que contudo resiste à ideia de uma síntese totalizante um título de um importante capítulo de Tempo e narrativa dirá que é preciso Renunciar a Hegel em nome do inacabamento da vida e da finitude humana O oposto dessa riqueza é que por vezes pode parecer difícil delimitar o núcleo de sua concepção hermenêutica A unidade é o único pro blema suscitado por esse pensamento hermenêutico Problema porém completamente relativo porque ele é o resultado de uma superabundância Mas há unidade nesse pensamento E como Podemos compreendêla a partir dos primeiros impulsos do per curso de Ricoeur Eles devem ser buscados na tradição francesa da filosofia reflexiva aquela que remonta a Ravaisson Lachelier e Bergson e que é continuada por autores próximo a Ricoeur como Nabert e Marcel A fi P A U L r i c c e u r u m a h e r m e n ê u t i c a d o s i h i s t ó r i c o 95 losofia reflexiva parte da autorreflexão do ego na tra dição do conhecete a ti mesmo de Sócrates e das me ditações de Descartes Essa tradição logo atraiu Ricoeur para o existencialismo de Jaspers e a fenomenologia de Husserl curvada sobre um ego transcendental que busca justificar sua experiência Encantado pela filosofia da existência e sua radicaliza ção da problemática ética dado que o sujeito é pensado por ela como tarefa de si mesmo Ricceur começou que rendo ampliar a análise fenomenológica de Husserl ao fenômeno da vontade na primeira parte de sua Filosofia da vontade 1950 A hermenêutica está ausente dessa obra mas surge com toda a força no segundo tomo Fi nitude e culpabilidade 1960 e mais especialmente no segundo volume do livro dedicado à Simbólica do mal É aqui que se desencadeia sua virada hermenêutica ou aquilo que mais tarde virá a ser chamado de seu enxer to da hermenêutica na fenomenologia Seu motivo fundamental é que o ego não pode se co nhecer diretamente por introspecção ele não pode se entender exceto pela via indireta da interpretação dos grandes símbolos Adão e Eva Jó o orfismo etc que se esforçam para dar um sentido ao problema do mal Segundo aquilo que Ricoeur mais tarde veio a cha mar de sua primeira definição da hermenêutica ela era à época expressamente concebida como uma de cifração dos símbolos eles mesmos entendidos como expressões de duplo sentido2 Nessa perspectiva a in terpretação é o trabalho de pensamento que consiste 2 P Ricoeur Refléxion faite Autobiographie intellectuelle Esprit 199531 9 6 H ERM EN ÊUTICA em decifrar o sentido oculto no sentido aparente em desdobrar os níveis de significação implicados na sig nificação literal3 Esse é o primeiro sentido de seu desvio hermenêuti co bem diferente do desvio de Heidegger e de Gada mer Se o desvio pelo lado objetai das experiências lhe foi inspirado por Nabert4 o termo hermenêutica remete a Dilthey e a Bultmann para os quais a herme nêutica era a teoria da interpretação das manifestações vitais fixadas por escrito É claro que Ricoeur não desconhecia que Heidegger tinha querido suplantar Dilthey mas ele sempre quis resistir à ontologização heideggeriana da hermenêu tica ou seja à confusão entre a hermenêutica e a rea lização fundamental da existência Segundo ele essa veemência ontológica perderia de vista a orientação epistemológica e consequentemente crítica da her menêutica de Dilthey5 2 U m a f e n o m e n o l o g i a TORNADA HERMENÊUTICA Apesar de sua resistência à hermenêutica de Heideg ger o próprio Ricoeur defende a ideia de uma virada hermenêutica da fenomenologia Mas com um sentido 3 P Ricoeur Le conflit des interprétations Paris Le Seuil 1969 p 16 4 P Ricoeur Parcours de la reconnaissance Paris Stock 2004 p 142 5 P Ricoeur TA 95 Ver J Greisch Paul Ricoeur Uitinérance du sens Grenoble Jérôme Millon sd p 140 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 9 7 diferente daquele que tem em Heidegger Essa virada se justifica em Ricoeur a partir da impossibilidade de um acesso direto aos fenômenos e ao próprio ego A seus olhos o que a hermenêutica arruinou não foi a fenomenologia mas uma de suas interpretações a sa ber sua interpretação idealista pelo próprio Husserl6 0 que a hermenêutica arruinou foi mais especialmente a o ideal husserliano de cientificidade orientado para uma fundamentação última b a primazia da intúição como via de acesso aos fenô menos c o primado cartesiano e husserliano de uma ima nência do sujeito a si mesmo d o estatuto de princípio último que então se reco nhece ao sujeito e a concepção ainda excessivamente teórica da au torreflexão no seio da fenomenologia husserliana dado o ato imediatamente responsável de si a to mada de consciência do sujeito desenvolve implica ções éticas que a seqüência do percurso de Ricoeur aprofundará cada vez mais Contra o pano de fundo dessa crítica Ricoeur propõe desenvolver por sua vez uma fenomenologia herme nêutica que tome o caminho das objetivações como o desvio obrigatório para o conhecimento de si Notemos que a hermenêutica vem aqui qualificar a fenomeno logia Era um pouco o contrário em Gadamer que pro punha uma hermenêutica fenomenológica isto é uma hermenêutica que retornava ao fenômeno do entendi 6 TA 39 9 8 H ERM EN ÊUTICA mento aliviandoo de seu jugo metodológico Podemos então falar em Ricceur de uma virada hermenêutica da fenomenologia e em Gadamer de uma virada feno menológica da hermenêutica7 Mesmo que Ricoeur insista na inflexão hermenêutica da fenomenologia não se deveriam esquecer segundo ele os pressupostos ainda fenomenológicos da her menêutica O primeiro é que toda questão incidente sobre um ente qualquer é uma questão sobre o senti do desse ente Mas esse sentido está à primeira vista dissimulado opaco e deve ser trazido à luz por um es forço hermenêutico A escolha do sentido é então o pressuposto mais geral de toda hermenêutica Só que isso não implica de maneira alguma que uma subje tividade transcendental tenha o soberano domínio do sentido rumo ao qual ela se dirige Ao contrário a feno menologia pode ser empurrada na direção oposta a saber para o lado da preeminência do sentido sobre a consciência de si8 0 segundo pressuposto fenomeno lógico é que a hermenêutica deve justificar a experiên cia do distanciamento se a consciência se caracteriza inicialmente por sua pertença ao sentido esse sentido pode ser posto à distância e interpretado 0 terceiro pressuposto é que a hermenêutica reconhece como Husserl o caráter derivado da ordem lingüística com relação aos sentidos e às coisas Aqui Ricoeur parece se afastar de Gadamer Mas isso não é completamente ver dadeiro porque Gadamer também defendia para falar 7 Ver meu estudo sobre essa questão em Le tournant herméneutique de la phénoménologie Paris PUF 2003 pp 84102 8 TA 57 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 9 9 como Habermas a ideia de uma porosidade essencial da linguagem aberta a toda coisa e capaz de se trans cender a si mesma Ricoeur chega à conclusão de que a ordem lingüística não é autônoma e de que ela remete a uma experiência de mundo Mas essa experiência só se dá por meio de uma hermenêutica que se dedica à interpretação das objetivações de sentido 3 O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES A HERMENÊUTICA DA CONFIANÇA E DA SUSPEITA Mas como interpretar as objetivações de sentido Essa era um pouco a questão da hermenêutica clássica e será a questão de Ricoeur Podemos nos abandonar à imediatidade dò sentido tal como ela se dá segundo 0 que parece ser a orientação fundamental da exegese bíblica e que Ricoeur ainda seguia na virada hermenêu tica de Simbólica do mal de 1960 Se a questão se apre senta com tamanha acuidade é porque Ricoeur depois de ter concluído essa obra viuse confrontado com ou tras interpretações mais redutoras que questionam justamente a leitura ingênua do sentido Foi assim que vieram a se destacar duas formas distintas de interpre tação aparentemente incompatíveis a A primeira provém de uma hermenêutica da con fiança ou da recolecção do sentido ela assume 0 sentido tal como se propõe ao entendimento e tal como ele orienta a consciência sentido no qual se revela uma verdade mais profunda e que pertence a uma hermenêutica amplificadora a explorar Ri 1 0 0 H ERM EN ÊUTICA coeur fala aqui de uma teleologia do sentido Essa hermenêutica cujos paradigmas são a exegese bí blica e a fenomenologia da consciência está votada ao entendimento do sentido ao sentido pleno que Dilthey lhe dava ela se abre às possibilidades de sentido e à experiência que se dá a entender para além das expressões b A ela vem contudo se opor uma hermenêutica da suspeita que desconfia do sentido tal como ele se oferece porque ele pode abusar da consciência 0 que aparece como verdade pode não passar de um erro útil de uma mentira ou de uma deformação cuja arqueologia subterrânea a hermenêutica da suspeita se propõe reconstruir Essa arqueologia pode ser ideológica social pulsional e estrutural É uma hermenêutica defendida pelos mestres da suspeita Feuerbach Marx Nietzsche Freud e o estruturalismo À hermenêutica amplificadora te leológica da confiança vem responder uma inter pretação redutora consagrada não ao entendimen to mas à explicação dos fenômenos da consciência reconduzidos a uma economia secreta e recalcada que se inspira claramente em modelos de explica ção extraídos das ciências exatas Por ser proveniente da filosofia reflexiva e do existen cialismo poderíamos suspeitar de que Ricoeur está mais próximo da fenomenologia e da hermenêutica da con fiança Mas esse não é o caso Em seus livros dos anos 1960 realmente ele se dedicou aos mestres da suspeita especialmente a Freud em Da interpretação 1965 e ao estruturalismo em O conflito das interpretações 1969 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 1 Ricoeur preconiza nessas obras uma abordagem extra ordinariamente conciliatória que não renega nada da hermenêutica redutora da suspeita Sua ideia diretriz é que é preciso ir à escola da suspeita se se quiser des truir as ilusões da consciência ingênua Essa destruição se apresenta como salutar para a consciência que chega então a se entender melhor a si mesma Se o eu se perde na hermenêutica da suspeita é justamente para melhor se reencontrar libertado de suas ilusões Ao reconhecer desse modo iguais direitos às duas grandes estratégias interpretativas Ricceur dá prova de conservar um sentido aguçado das objetivações e das construções de sentido que é preciso interpretar É isso o que leva a resistir à tentativa heideggeriana de subordinar tudo a uma hermenêutica ontológica do entendimento9 bem como à tentativa gadameriana de questionar a primazia da perspectiva metódica Para Gadamer entender não é se encontrar diante de uma objetivação que é necessário decodificar é sertomado é serhabitado pelo sentido Gadamer falava desde en tão de uma fusão entre o sentido e aquele que o enten de É esse evento de entendimento que a hermenêutica devia se esforçar para justificar Ricceur desconfia por sua vez dessa fusão e começa situando o entendimento diante das objetivações que as abordagens objetivan tes da psicanálise e do estruturalismo viriam nos aju dar a decodificar Mas não seriam elas a deter a última palavra porque é sempre uma consciência que tenta se entender melhor Seguindo a divisa de Ricoeur nessa época Explicar mais é entender melhor 9 TA 33 1 0 2 H ERM EN ÊUTICA 4 U m a n o v a h e r m e n ê u t i c a DA EXPLICAÇÃO E DO ENTENDIMENTO INSPIRADA NA NOÇÃO DE TEXTO Desse modo Ricoeur renova a compreensão da distin ção feita por Dilthey entre a explicação das ciências exatas e o entendimento das ciências humanas Mas não se trata exatamente de uma distinção metodológi ca em Ricoeur entre dois tipos de ciência mas sim de duas operações complementares da consciência naqui lo que ele chamará sempre mais de arco hermenêutico da interpretação ou seja o conjunto das operações en trelaçadas que compõem o esforço hermenêutico Uma consciência crítica deve desconfiar da evidência ime diata do sentido que ela entende e da qual se apropria naturalmente Ela deve aceitar que esse sentido possa ser posto à distância pelo desvio decapante de uma ex plicação que denuncie as ilusões da consciência Compreendese perfeitamente que Ricoeur tenha que rido associar Habermas a uma hermenêutica do dis tanciamento e Gadamer a uma hermenêutica da per tença Sob essas novas designações reconhecemos sem esforço as hermenêuticas da suspeita e da confiança se Gadamer acentua a pertença do entendimento ao sen tido transmitido pela tradição a crítica das ideologias põe em guarda contra a ideologização que essa com preensão talvez encerre A consciência hermenêutica logo a consciência refletida segundo Ricoeur não pode ria se permitir ignorar as lições de uma hermenêutica da desapropriação Uma consciência desapropriada de suas ilusões não se apropria melhor de si mesma PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 3 Ao aprofundar essa didática do explicar e do entender um tema novo veio à luz no itinerário de Ricceur no iní cio dos anos 1970 tema que podemos associar à noção de texto Ele levou a uma ampliação de sua primeira concepção da hermenêutica a hermenêutica não esta rá mais voltada apenas para a decifração dos símbolos de duplo sentido ela terá a ver com todo o conjunto de sentidos capaz de ser entendido e que podemos chamar de um texto10 Mas como interpretar os textos Aqui mais uma vez Ricceur foi muito marcado pelas aborda gens estruturais e semióticas especialmente a de Grei mas que consideram o texto como uma unidade autor referencial encerrada sobre si mesma Levar em conta essas interpretações encarna aos olhos de Ricoeur a primeira etapa necessária no arco da interpretação Uma nova época da hermenêutica se abriu com o suces so da análise estrutural a explicação é a partir de então o caminho obrigatório do entendimento11 Mas a análise estrutural não seria a única É que o mun do de um texto nunca é fechado sobre si mesmo ele abre um mundo que a consciência pode habitar A no ção de texto remete aliás por si mesma a um ato de leitura pelo qual o mundo do texto se vê apropriar por um leitor que dessa maneira vem a se entender me lhor A partir de então é na leitura que se realizará a hermenêutica amplificadora do sentido 1 A interpretação de um texto se realiza na interpretação de si de um sujeito que doravante se entende melhor se 10 P Ricoeur Questce quun texte TA 137159 11 TA 110 1 0 4 H ERM EN ÊUTICA entende de outro modo ou até mesmo começa a se en tender12 A tarefa essencial da hermenêutica será portanto du pla tratase de reconstruir a dinâmica interna do texto e de restituir a capacidade da obra de se projetar para fora na represen tação de um mundo que eu poderia habitar13 Essa dialética da explicação que põe à distância e do entendimento que o mundo do texto desdobra leva a uma concepção mais ampla da hermenêutica A dialética nova enfrentava duas operações o explicar e o entender que W Dilthey opusera fortemente no começo do século Ora o tratamento dessa situação conflitual pro vocava um remanejamento de minha concepção anterior da hermenêutica que permanecera até então solidária com a noção de símbolo entendida como expressão de du plo sentido e encontrara seu estilo conflituoso na concor rência entre interpretação redutora e interpretação ampli ficadora A dialética entre explicar e entender desdobra da no nível do texto enquanto unidade maior que a frase tornavase a grande questão da interpretação e constituía a partir de então o tema e a aposta da hermenêutica14 Em Do texto à ação Ricoeur passa a adotar a seguinte definição da hermenêutica ela é a teoria das operações do entendimento em sua relação com a interpretação dos textos15 12 TA 152 13 TA 32 14 Réflexion faite 49 15 TA 75 PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 5 Aqui o que mais fascinou Ricoeur foi a extensão quase infinita de que se pode beneficiar a noção de texto Tudo o que é capaz de ser entendido pode ser consi derado como um texto não apenas os escritos claro mas também a ação humana e a história tanto indivi dual quanto coletiva só são compreensíveis na medida em que possam ser lidas como texto A ideia que de corre daí é que o entendimento da realidade humana é construído por meio dos textos e das narrativas Desse modo a identidade humana deve ser entendida como uma identidade essencialmente narrativa A teoria da narrativa histórica desenvolvida nos anos 1980 per mitirá contribuir com uma nova resposta à pergunta diretriz de toda filosofia reflexiva quem sou eu 5 A HERMENÊUTICA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA Ricoeur diz muito frequentemente que o si que se des taca das hermenêuticas da suspeita e do distanciamen to é muito certamente um cogito quebrado Ele deve renunciar ao ideal de uma transparência integral mas não pode se entender a partir de objetivações de senti do de grandes textos literários filosóficos e religio sos transmitidos pela história da humanidade e nos quais se configura sua experiência radical da tempora lidade Foi em Tempo e narrativa 19821985 que Paul Ricoeur apresentou essa nova concepção de hermenêu tica Ela se situa em continuidade com a nova ampli dão que ele reconheceu à noção de texto e de leitura 1 0 6 H ERM EN ÊUTICA em sua hermenêutica do explicar e do entender mas se encontra mais diretamente posta a serviço de uma fenomenologia de nossa temporalidade essencial o si não pode dar um sentido a sua experiência radical e insuperável do tempo exceto pela interpretação da configuração narrativa 0 si quebrado e que se sabe tal pode então se dar conta de suas modestas mas reais capacidades de reconfigurar seu próprio mun do A hermenêutica narrativa de Ricceur enfatizará co rajosamente os dois aspectos o caráter trágico da con dição humana que nunca alcançará um entendimento totalizante de si mesma mas igualmente a resposta do homem a essa aporia a parte de iniciativa que compete a ele apesar de tudo enquanto homem capaz No último volume de Tempo e narrativa os dois mo mentos se entrecruzam em uma hermenêutica da consciência histórica A fórmula evoca Gadamer e sua ideia de uma hermenêutica da consciência do trabalho da história Ricoeur reconhece a Gadamer justamente o mérito de ter insistido no serafetadopelopassado Não somos os agentes da história somos apenas seus pacientes porque nós nunca estamos na posição ab soluta de inovadores mas sempre e em princípio na si tuação de herdeiros Essa condição provém inicialmen te como em Gadamer de nossa condição lingüística A linguagem é a grande instituição a instituição das instituições que sempre nos precedeu a todos En quanto seres falantes somos não apenas dependentes do sistema da língua sobre o qual insistem as aborda gens estruturais mas também das coisas já ditas en tendidas e recebidas 0 mundo tal qual o experimen PAUL RICCEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 7 tamos é portanto um mundo que se exprime em uma linguagem e por meio de uma identidade histórica que são recebidos antes É por isso que diz agora Ricoeur o distanciamento a liberdade em relação aos conteúdos transmitidos não podem ser a atitude primeira16 Aqui Ricoeur se aproxima muito de Gadamer aliás talvez mais do que em qualquer outra parte de sua obra Todavia mais uma vez ele está menos preocupado em conter a distância metódica objetivante do que em integrála à hermenêutica da consciência histórica Se gundo Ricceur o próprio Gadamer teria reconhecido a necessidade dessa integração quando insistiu na no ção de aplicação e na ideia de que o entendimento era sempre o resultado de uma fusão de horizontes entre o passado e o presente 0 presente tem uma palavra a di zer no acontecimento de tradição que é o entendimen to mas se trata de uma resposta que se esboça contra o pano de fundo de um pertencimento primordial Nessa altura Ricoeur classifica de lamentável17 a polêmica que opusera a hermenêutica à crítica das ideologias Ocorre que as posições de Gadamer e as de Habermas procederiam de dois lugares diferentes a reinterpre tação dos textos recebidos da tradição em um e a crí tica das formas ideológicas de comunicação distorcida no outro Não se poderia então superpor sem mais o que Gadamer chama de préjuízo no sentido de pré juízo favorável e o fenômeno ideológico que interessa a Habermas isto é a distorção da comunicação 16 Temps et récit t iii 313320321 324 17 Temps et récit t iii 314 Ricoeur sopesa então o juízo que fizera em 1973 quando falava de uma dialética essencial entre a hermenêutica e a crítica das ideologias 1 0 8 H ERM EN ÊUTICA Desse modo se nós somos os herdeiros da tradição a identidade narrativa que herdamos da história nunca é estável nem fechada Ela também depende da respos ta que nós podemos lhe dar A insistência recai aqui na capacidade de resposta e de iniciativa que a distingue 0 que se descobre aqui é a dimensão ética do homem capaz Esse será o último ponto central das reflexões hermenêuticas de Ricceur A pergunta da filosofia refle xiva quem sou eu dará lugar à pergunta não menos hermenêutica que ética Que posso eu 6 U m a f e n o m e n o l o g i a HERMENÊUTICA DO HOMEM CAPAZ Não somos apenas os herdeiros passivos da histó ria Um espaço de iniciativa nos está reservado Uma hermenêutica da consciência histórica deve dessa forma levar a uma fenomenologia dos poderes do homem capaz Ao desenvolver uma filosofia her menêutica da ipseidade o último Ricceur reata com aquilo que ele chama uma de suas mais antigas con vicções a saber 0 si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico cuja hipocrisia e ingenuidade foram denunciadas pelas hermenêuticas da suspeita O si do conhecimento de si é o fruto de uma vida examinada segundo a palavra de Sócrates na Apologia Uma vida examinada é em grande medida uma vida depurada esclarecida pelos efeitos catárticos das narrativas tanto históricas quanto fictícias veiculadas por nossa cultura Dessa maneira a ipseidade PAUL RICOEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 0 9 é a de um si instruído pelas obras da cultura que ele se aplicou a si mesmo18 A identidade narrativa variará portanto de acordo com as comunidades mas também segundo os indivíduos Nos dois casos o si pode reconfigurar em certa medi da sua identidade narrativa Em sua fenomenologia do homem capaz cujas grandes linhas ele evocou em seu Percurso do reconhecimento publicado um ano antes de sua morte Ricoeur parte dos principais usos segundo os quais se diz eu posso19 Eu posso falar eu posso agir eu posso contar eu posso me responsabilizar por meus atos permitir que eles me sejam imputados como seu verdadeiro autor Esses quatro usos abrem respectiva mente os campos da filosofia da linguagem da filosofia da ação da teoria narrativa e da filosofia moral Mas o título geral do projeto filosófico de Ricoeur con tinua a ser o de uma hermenêutica do si20 A fórmula chega quase a lembrar a ideia heideggeriana de uma hermenêutica da facticidade Isso porque aqui a herme nêutica não incide mais sobre símbolos ou textos se gundo as duas primeiras concepções da hermenêutica de Ricoeur mas incide sobre o próprio si A hermenêu tica assume aqui a forma de uma ontologia fundamen tal que dá preferência às noções de ato de potência e de possibilidade diferentemente da acepção substan cialista que teria prevalecido na filosofia clássica21 A 18 Temps et récit t iii p 356 19 Parcours de la reconnaissance Paris Stock pp 137163 20 Soimême comme un autre Paris Le Seuil 1990 p 345 Parcours de la reconnaissance p 137 21 La mémoire 1histoire etVoubli p 639 1 1 0 H ERM EN ÊUTICA essa altura Ricceur parece atenuar a crítica à veemên cia ontológica que ainda caracterizava suas primeiras intervenções hermenêuticas Se a ontologia é para Hei degger um ponto de partida ela será para Ricceur um ponto de chegada Podemos ver nessa ontologia hermenêutica do homem capaz o completamento de todo o percurso de Ricoeur assim como um retorno à problemática reflexiva de sencadeado por seu desvio pela hermenêutica Essa hermenêutica do si vem lembrar utilmente que o ser afetadopelopassado no qual Gadamer insistira não é a única determinação da consciência 0 homem ser de possibilidades pode reconfigurar seu mundo as sim como seu passado pela memória pelo perdão pelo reconhecimento Tendo tirado lições essenciais da escola da suspeita essa hermenêutica abandona de uma vez por todas a falsa ilusão de uma plena posse de si pela reflexão mas essa destruição não poderia conduzir a uma resignação fatalista diante do destino implacável do trabalho da história Ao contrário ela nos ajuda a redescobrir os recursos éticos do si capaz diante do mal e da injustiça reais que o rodeiam 0 alcance ético dessa hermenêutica do si cai sob o sen tido Por sinal Si mesmo como um outro desenvolveu uma pequena ética22 que se empenha em delimitar a tensão ética fundamental ao dizer que ela se caracteri za pela intenção da vida boa com e para os outros em instituições justas Mas esse senso da justiça e da vida boa não cai do céu Enquanto seres históricos somos 22 Soimême comme un autre p 202 PAUL RICOEUR UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO 1 1 1 os herdeiros de promessas fundadoras23 portanto de esperanças das quais a hermenêutica do si pretende ser a memória Dessamaneira Ricoeur nos permite ver que se uma hermenêutica sem ética permanece vazia uma ética sem hermenêutica é cega 23 Parcours de Ia reconnaissance p 197 1 1 2 H ERM EN ÊUTICA capítulo VIII HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO I DESCONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO EM ÜERRIDA O hoje célebre encontro entre HansGeorg Ga damer e Jacques Derrida 19302004 deu origem a um verdadeiro confronto entre uma hermenêutica da confiança e uma hermenêutica da suspeita Esse encontro aconteceu em Paris em 198Í Contudo diferentemente dos conflitos de interpreta ção que frequentemente opõem as hermenêuticas da confiança e da suspeita os dois pensadores tinham ori gens comuns como Gadamer Derrida também partira do programa hermenêutico de Heidegger em Ser e tempo mas tendo retido sobretudo o caráter destrui dor ou seja sua intenção de pôr a descoberto os pres supostos metafísicos da tradição ocidental Derrida retoma muito especialmente a ideia heidegge riana segundo a qual o pensamento ocidental ou me tafísico entendamos com isso o pensamento que de Platão a Hegel aspirava a uma explicação totalizante do HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 3 ser seria regido por uma determinação do ser como presença1 o ser é aquele que se oferece a um olhar que lhe é imposto por sua intenção de dominação Benefi ciandose nesse sentido de uma formação estrutura lista Derrida aplica essa intuição à compreensão dos signos o que o leva a questionar a concepção qualifica da de metafísica do sentido e da própria verdade Na lingüística de Ferdinand de Saussure a noção de senti do se exprime mediante o par significantesignificado 0 significante ou o signo remete então a uma pre sença significada que encarnaria uma presença plena da coisa ou da referência Mas a partir do momento em que tentamos pensar esse significado damonos con ta de que só podemos fazêlo na ordem dos signos ou do discurso O sentido permanece portanto diferido para sempre pelo jogo daquilo que Derrida chama a différance onde é preciso entender ao mesmo tem po a diferença pretendida entre o signo e o sentido e a transcrição infinita de sua realização fato pelo qual jamais sairíamos do império dos signos Desse modo Derrida reconhece um papel preponde rante à constituição lingüística do entendimento o que poderia aproximálo de Gadamer Mas aqui a distância não há dúvida é mais considerável aos olhos de Derrida do que a proximidade patente Derrida realmente de monstra ser muito mais estruturalista que Gadamer ou até mesmo que Heidegger enquanto para Gadamer e Heidegger é o ser que a linguagem traz à fala o ser para Derrida não será mais que um efeito da différon 1 Ver J Derrida La structure le signe et le jeu dans les discours des sciences humaines in Üécriture et la différence Paris Le Seuil 1967 p 411 1 1 4 H ERM EN ÊUTICA ce visto que ele permaneceria inatingível fora dos sig nos que o exprimem Em um texto frequentemente ci tado Derrida escreverá que não existe fora do texto2 Aqui podemos nos perguntar e essa será uma das críti cas de Gadamer se essa desconstrução a sua maneira não sucumbe ao nominalismo do pensamento moderno ao se concentrar exclusivamente na ordem dos signos e das oposições lingüísticas Nesse sentido o próprio Derrida seria vítima de uma metafísica da presença no caso da presença dos próprios signos A destruição da metafísica de Heidegger assume en tão em Derrida a forma de uma desconstrução da ló gica do pensamento que nos leva a acreditar na ideia de uma presença real do sentido fora dos signos que suscitam sua miragem mas que só veriam sempre a si mesmos Essa radicalização do projeto destruidor de Heidegger obriga Derrida a demonstrar uma suspeição certa diante do próprio projeto hermenêutico Se ele lhe parece suspeito é porque ele o identifica a um projeto de inteligibilidade e de decifração que busca um sen tido último por trás dos signos concepção que talvez lhe tenha sido transmitida por Ricoeur e por sua her menêutica recuperadora do sentido Não apenas se trata para Derrida de uma ilusão metafísica como ele não deixará de denunciar nela um desígnio imperial de apropriação A destruição heideggeriana se casa aqui com a crítica da vontade de entendimento em Lévinas que necessariamente violentaria a alteridade que ela buscaria possuir impondolhe seu projeto totalizan te Para Derrida o imperativo não é entender o outro 2 De la grammatologie Paris Minuit 1967 p 227 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 5 mas interromper justamente a vontade de entendimen to tida como emblemática da metafísica Em um sentido que não escapou aos comentadores Der rida também não defende uma concepção que podería mos qualificar de panhermenêutica porque ela nega justamente a possibilidade de encontrar um sentido fora do discurso dado que toda relação com o ser derivaria do jogo das interpretações Diante dessa universalida de da linguagem Derrida distingue cuidadosamente duas estratégias possíveis ou duas interpretações da interpretação da estrutura do signo e do jogo a Uma tenta decifrar sonha decifrar uma verdade ou uma origem que escapam ao jogo e à ordem do sig no e vive a necessidade da interpretação como um exílio Aqui Derrida está pensando na hermenêu tica clássica ainda metafísica que busca apreender senão perceber um sentido esperado como uma presença viva por trás dos signos Podese pensar aqui em autores como Heidegger Ricoeur e Gada mer Derrida opõe a ela bravamente outra interpre tação da interpretação b 0 outro que não está mais virado para a origem afirma o jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo com o nome do homem sendo o nome daquele ser que no decorrer da história da metafísica ou da ontoteologia isto é do todo de sua história sonhou a presença plena o fundamento assegurador a origem e o fim do jogo Essa ideia de uma presença plena e imediata não é mais pos sível a partir do estruturalismo avalia Derrida É a face triste dessa segunda interpretação mas ela 1 1 6 H ERM EN ÊUTICA também comporta uma vertente libertadora e lúdi ca em sua renúncia à ideia de uma verdade coagen te Derrida afirma que foi Nietzsche quem indicou o caminho dessa segunda interpretação da inter pretação e é com ela que Derrida se solidariza com um entusiasmo certo Voltada para a presença perdida ou impossível da ori gem ausente essa temática estruturalista da imediati dade rompida é então a face triste negativa nostálgi ca culpável rousseauista do pensamento do jogo cuja outra face seria a afirmação nietzschiana a afirmação jubilosa do jogo do mundo e da inocência do futuro a afirmação de um mundo de signos sem falta sem ver dade sem origem oferecido a uma interpretação ativa3 Desde 1967 Derrida dava a entender que essas duas interpretações da interpretação eram absolutamente inconciliáveis sendo seu propósito agudizar sua irre dutibilidade E um pouco eram essas duas interpreta ções da interpretação que iriam se encontrar por oca sião de um debate público organizado entre Gadamer e Derrida no Instituto Goethe de Paris em abril de 1981 2 O ENCONTRO DE DERRIDA e G a d a m e r e m P a r i s Apesar de seus vários pontos de partida comuns se pensarmos em sua descendência heideggeriana em sua crítica ao cientismo mas especialmente em sua tese comum mesmo que diferente a respeito da uni 3 J Derrida VÉcriture et Ia différence p 427 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 7 versalidade da linguagem o encontro de 1981 terá sem dúvida sido um fracasso na medida em que terá dado lugar a um diálogo de surdos4 Mas é justamente nesse sentido que esse encontro poderá ter sido instru tivo até mesmo fecundo Ele terá sido pelo menos um acontecimento cuja importância foi se ampliando com o passar dos anos Gadamer começou apresentando uma conferência so bre 0 desafio hermenêutico5 Nela ele fazia alusão ao desafio que seu pensamento hermenêutico quisera destacar assim como ao desafio que significava para ele o encontro com Derrida cuja obra lhe era muito familiar a recíproca talvez fosse menos verdadeira Em certa medida Gadamer podia se reconhecer no projeto derridiano que visa desconstruir a linguagem conceituai da metafísica Mas o mestre da hermenêu tica referiase com isso especialmente ao vocabulário esclerosado do pensamento aquele que se afastara do diálogo vivo do qual procede toda verdadeira língua a destruição na acepção positiva consiste para ele em reinscrever um conceito tornado vazio na língua do 4 Os textos apresentados por ocasião do encontro foram publicados na Revue internationale de philosophie n 151 1984 Uma documenta ção mais completa pode ser encontrada na coletânea organizada por D Michelfelder e R Palmer Dialogue and Desconstruction The Gadamer Derrida Encounter Albany Sunny Press 1989 Ver ainda a coletânea alemã organizada por P Forget Text und Interpretation Paderbòrn Fink Verlag 0 texto apresentado por Derrida figura apenas nas edições americana e alemã 5 Notese que o texto de Gadamer publicado pela Revue internationale de philosophie RIPJ tinha apenas oito páginas quando contava 32 na edição alemã A versão mais longa desse texto cujo título se transfor mou em Texto e interpretação encontrase em Lart de comprendre t 2 Paris Aubier 1991 pp 193234 1 1 8 H ERM EN ÊUTICA qual ele proveio e que lhe dá todo o sentido6 Mas é justamente essa constante remissão do pensamento ao diálogo da língua viva que o levava a questionar a ideia de que havia uma linguagem fechada da metafísica Minha ideia própria me parece a seguinte não existe linguagem conceituai nem mesmo a da metafísica que possa circunscrever o pensamento de modo definitivo por pouco que o pensador se abandone à linguagem o que implica que ele aceita o diálogo com outros pensa dores que pensam diferentemente dele7 Ao lembrar que sua concepção da linguagem brotava da experiência do diálogo vivo e de sua promessa de autotranscendência Gadamer também evocava em um espírito benevolente as esperanças que depositava no diálogo que achava poder desenvolver com Derrida Gadamer exemplificava essa experiência hermenêutica do diálogo partindo da experiência da arte e da histó ria da filosofia na qual o intérprete entra em diálogo com aquilo que o interpela mas não sem sair do diálo go transformado Ora o que nos é dito em uma obra de arte insistia Gadamer jamais pode ser conceitualmen te esgotado 0 inacabamento da experiência de sentido faz parte essencial da finitude humana Gadamer que ria ressaltar com isso seu acordo com a ideia derridia na de uma différance infinita do sentido 6 RIP 336 Gadamer retomará frequentemente em seus escritos posteriores especialmente em Destruction et déconstruction e Dé construction herméneutique ambos publicados em La philosophie herméneutique Paris PUF 1996 esse sentido primeiro da destruição heideggeriana que teria escapado a Derrida 7 RIP 1984 334335 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 1 9 Tendo sido evocados esses elementos comuns Gada mer explica então por que esse encontro com a cena francesa representa todo um desafio para ele É que Derrida apesar de sua dívida com a ideia de destrui ção acusa Heidegger de logocentrismo pelo fato de ele ter persistido em levantar a questão do sentido ou da verdade do ser pensando o sentido como um dado que se poderia encontrar em qualquer parte Para Derrida aqui Nietzsche seria mais radical com sua ideia segun do a qual a interpretação não seria a descoberta de um sentido mas a aquiescência com o jogo das perspecti vas e das máscaras É nesse sentido que seria criticada a leitura heideggeriana de Nietzsche na França Nietzs che não seria aquele que teria trazido a metafísica a seu ápice pensando o ser como valor mas sobretudo aquele que possibilitaria ultrapassála melhor que Heidegger afirmando o jogo infinito das interpretações 0 debate aos olhos de Gadamer incidia sobre a questão de saber quem entre Heidegger ou Nietzsche era o mais radical Nessa questão Gadamer punha todas as suas fichas marcando sua solidariedade em Heidegger Heideg ger vai muito além de Nietzsche Gadamer censura os herdeiros franceses de Nietzsche por não apreciarem em sua justa medida o caráter exploratório e sedutor de seu pensamento Isso é que os levaria a pensar que a experiência do ser de Heidegger seria menos radi cal que o extremismo de Nietzsche8 Segundo Gada mer esse não é o caso A superioridade de Heidegger provém do fato de que ele conseguiu inscrever a noção 8 RIP 1984338 Ver HG Gadamer VHerméneutique en rétrospective Paris Vrin 2005 pp 162178 1 2 0 I H ERM EN ÊUTICA nietzschiana de valor na continuidade da metafísica ocidental É esse pensamento metafísico do valor e a aporia de um pensamento que quer promover uma transmutação dos valores que Heidegger teria supe rado pensando uma experiência do ser que não se re duz a sua manifestação mensurável logo um ser que nunca se entrega inteiramente mas que resguarda uma parte de seu mistério Ele iria por isso mais lon ge que Nietzsche visando a um ser que não se limita a seu valor contábil e a sua utilidade técnica Essa é uma intuição que Gadamer diz ter retomado com convicção não sem lhe dar um aspecto derridia no Foi por isso que eu sempre me esforcei para man ter em mente o limite imposto a toda experiência her menêutica do sentido9 A hermenêutica reconheceria perfeitamente que o ser não pode nunca ser objeto de um entendimento totalizante como aquele que é criti cado por Heidegger e Derrida Ao reconhecer o limite de toda interpretação do sentido a hermenêutica con vidava a partir de então a se abrir ao outro à poten cialidade da alteridade Antes mesmo de ter tomado a palavra para replicar ele nos ajuda por sua simples presença a descobrir a estrei teza de nossos préjuízos e a fazêlos explodir10 Essa abertura ao outro parecia dar testemunho de sua disposição para dialogar com Derrida e para aprender com ele 9 RIP 1984 338 10 RIP 1984 340 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 1 A grande surpresa do encontro de 1981 foi que nada parecia apontar para uma disposição parecida da parte de Derrida Depois da exposição de Gadamer Derrida fez sua conferência sobre a assinatura em Heidegger e Nietzsche mas na qual não fazia nenhuma alusão a Gadamer Não haverá quem pense reproválo por isso mas a assimetria era gritante especialmente porque o mestre da hermenêutica era ali o mais velho A fim de possibilitar uma aparência de diálogo os organizado res então convidaram Derrida a fazer algumas per guntas a Gadamer no dia posterior ao de sua conferên cia As três pequenas mas muito boas perguntas que ele fez a Gadamer alimentaram todo o debate entre a hermenêutica e a desconstrução A primeira pergunta de Derrida retomava o apelo à boa vontade do qual Gadamer falara Essa pergunta pare cia à primeira vista muito insólita porque na verdade ela não estava no centro de sua conferência Gadamer só a invocara para enfatizar a ideia banal a seus olhos segundo a qual aqueles que se engajam em um diálo go buscam se entender e dão prova de um mínimo de abertura Gadamer não via ali nada mais que uma de monstração do senso comum Ora é a demonstração dessa demonstração que Der rida questionava Ele perguntava esse axioma incon dicional não supunha que a vontade continua a ser a forma dessa incondicionalidade o recurso absoluto a determinação de última instância11 É a referência a Heidegger que dava a essa pergunta todo o seu alcance 11 RIP 1984342 1 2 2 H ERM EN ÊUTICA Será que essa determinação de última instância não per tenceria àquilo que Heidegger chama justamente de de terminação do ser do ente como vontade ou como subje tividade voluntária Será que o discurso em sua própria necessidade não pertence a uma época a de uma meta física da vontade Em sua segunda pergunta Derrida tentou limitar a pretensão dessa boa vontade recorrendo à psicanálise mas também a Nietzsche Derrida dá então a entender que sua concepção da interpretação talvez estivesse mais próxima da interpretação de tipo nietzschiano do que de outra tradição hermenêutica Espontaneamen te pensaremos na segunda interpretação da interpre tação que A escritura e a diferença exaltava àquele que afirma jubilosamente o jogo infinito dos signos sem verdade que renuncia por isso à ideia de uma deci fração última Nesse contexto Derrida foi tocado pela alusão de Gadamer à ideia de um diálogo vivo que ele vinculava a uma busca de sistema Ontem à tarde tivemos um dos momentos mais decisivos e em meu entender dos mais problemáticos de tudo o que nos foi dito sobre a coerência contextual coerência sistemática ou não sistemática porque toda coerência não é necessariamente a forma de um sistema Consequentemente Derrida associava a hermenêutica à ideia de sistema quer dizer de uma vontade de enten dimento que para ele confina com um apetite de do minação e de totalização entender não é integrar o ou tro em um sistema totalizante É na medida em que se opõe a essa vontade de dominação que o pensamento de Derrida pode ser qualificado de antihermenêutico HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 3 A terceira pergunta por sinal focalizava o debate sobre o próprio termo entendimento Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen en tendimento longe de ser o continuum da relação como foi dito ontem não é a interrupção da relação uma certa relação de interrupção a suspensão de toda mediação Derrida identifica aqui o entendimento com uma forma de violência infligida ao outro a vontade de entender não obriga o outro a se dobrar a se conformar aos esque mas de pensamento que lhe imponho e que passam jus tamente por isso ao largo de sua especificidade Pergun tando de outro modo a abertura ao outro não decorre necessariamente de um esforço de entendimento Po demos exprimir essa suspeita sob a forma de um parado xo será que entendo o outro quando eu o compreendo A primeira reação de Gadamer foi marcada pela incom preensão O que o contrariava era que Derrida parecia estar minando a própria possibilidade do encontro ao questionar as próprias noções de boa vontade de diá logo e de entendimento Gadamer se empenhou em de fender que sua proposta se encontrava a mil léguas de toda metafísica e que ele estava simplesmente aludindo à vontade elementar de entendimento que é a daquele que abre a boca para ser entendido e os ouvidos para entender o outro De nada adiantou Em tais bases o entendimento com Derrida parecia simplesmente im possível Ora o debate fundamental incidia exatamente sobre a própria possibilidade de entendimento e é isso o que torna o fracasso do acordo tão interessante nesse caso 1 2 4 H ERM EN ÊUTICA particular É que para Gadamer o entendimento é sem pre pelo menos possível ao passo que para Derrida ele nunca é verdadeiramente possível 0 entendimento é sempre possível para Gadamer porque a busca de sen tido investe toda a linguagem mas isso não quer dizer porém que ela jamais seja satisfeita Talvez seja essa insatisfação do esforço de entendimento que anime a busca de verdade a abertura a um sentido mas que se difere sempre para retomar a terminologia de Derri da É essa diferença que incita Derrida a desconfiar da vontade de entendimento 0 entendimento realmente alcança o outro Não permanece prisioneiro a despei to de si mesmo de sistemas de estruturas e de signos que funcionam como tapadeira para o que está enter rado sob os signos e que nunca chega a ser dito O dis curso poderíamos dizer é um pouco o pior inimigo do dizer assim como o entendimento é o pior inimigo do sentido que se deveria entender 3 OS DESDOBRAMENTOS DO ENCONTRO Um encontro de verdade sempre transforma seus in terlocutores Mesmo que a primeira atitude de Gada mer tenha sido de estupefação as objeções de Derrida talvez não tenham caído em ouvidos moucos Depois do encontro de 1981 Gadamer retomou muitas vezes seu debate com Derrida12 Se 0 desafio posto por Der 12 Ver os textos mais recentes Romantisme herméneutique et déconstruction 1987 e Sur la trace de 1herméneutique 1994 ín Uherméneutique en retrospective pp 161219 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 5 rida levou Gadamer a destacar algumas das diferenças essenciais entre seu projeto hermenêutico e o da des construção talvez ele também o tenha levado a rever tacitamente algumas das teses de sua hermenêutica A crítica que Derrida fazia à metafísica da vontade ia um pouco longe demais mas talvez ela tenha levado Gada mer a atenuar o aspecto um pouco apropriador do con ceito de entendimento que ele apresentara em Verdade e método 0 entendimento efetivamente surgia ali como uma forma de aplicação e de apropriação entender um sentido estrangeiro é tornálo seu por meio de uma apli cação ou de uma tradução para nossa língua Ora essa noção de entendimento não obedece a uma vontade um pouco hegeliana de apropriação Será que entendo o sentido estrangeiro em sua especificidade quando o apli co a minha situação Não se poderia dizer exatamente se a crítica de Derrida foi determinante ou não mas parece que o último Gadamer corrigiu levemente essa concep ção de entendimento Temos um testemunho discreto disso em uma notinha que ele acrescentou em 1986 ao capítulo de Verdade e método dedicado à distância tem poral que precede o capítulo sobre a aplicação Aqui arriscamonos sempre no entendimento a nos apro priar do que é outro e de negligenciar sua alteridade13 Texto curtíssimo mas que nesse contexto preciso quase eqüivale a uma autocrítica É claro que Gadamer nunca voltou a questionar expressamente a ideia de que o enten dimento comporta uma parte de aplicação mas em 1986 ele se mostra mais atento ao risco de um entendimento 13 VM 321 GW1305 Vherméneutíque en rétrospective pp 167 1 2 6 H ERM EN ÊUTICA que ao se apropriar do outro talvez faça violência a sua alteridade Mesmo não tendo falado diretamente da noção de aplicação é exatamente ela que Derrida tinha em mente quando se interrogava sobre a metafísica da vontade que estaria subjacente ao pensamento hermenêutico Dessa forma o encontro da hermenêutica com a desconstrução talvez não tenha sido tão estéril como sempre se diz E ainda encontramos uma última confirmação disso em uma definição da hermenêutica que o último Gadamer não parou de evocar Em seus últimos escritos Gadamer ressaltou de bom grado que a alma da hermenêutica consistia em reconhecer que talvez seja o outro quem tem razão14 Aqui o entendimento comparece menos como apropriação do que como uma abertura ao outro e a suas razões Da mesma maneira em seus últimos es critos Gadamer falou muito menos da universalidade da linguagem do que dos limites da linguagem diante de tudo o que pode ser dito A experiência fundamental de uma hermenêutica da finitude não é mais simples mente a da condição lingüística do entendimento mas ao mesmo tempo a dos limites da linguagem diante de tudo o que deveria poder ser dito15 Não é de todo impossível que essas novas inflexões da hermenêutica gadameriana sobre a abertura à alteridade do outro e sobre os limites da linguagem sejam fruto do encontro entre a desconstrução e a hermenêutica 14 Ver Un entretien avec HansGeorg Gadamer Le Monde 3 de janeiro de 1995 Vhéritage de VEurope Paris Rivages 1996 p 141 15 Ver o ensaio de 1985 sobre Les limites du langage in La philosophie herméneutique pp 168184 e UEurope et Yoikoumene onde podemos ler p 230 que o princípio supremo da hermenêutica filosófica é que nunca conseguimos dizer o que gostaríamos de dizer HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 7 4 O ÚLTIMO DIÁLOGO ENTRE D e r r i d a e G a d a m e r Durante muito tempo se acreditou que Gadamer fora o único a dar seguimento a seu diálogo interior com Derri da Ora depois da morte de Gadamer no dia 13 de março de 2002 Derrida confessou que esse diálogo também não deixou de acompanhálo nunca No dia 15 de fevereiro de 2003 Derrida fez uma conferência à memória de Gada mer na Universidade de Heildeberg intitulada Bélíers Le dialogue ininterrompu entre deux infinis le poème16 O título da conferência que propunha uma leitura ma gistral de um poema de Celan já retomava uma ideia cara a Gadamer a do diálogo Mas o paradoxo é que Derrida fala de um diálogo ininterrupto no momento exato em que a morte veio interrompêlo Contudo para Derrida essa morte faz intimamente parte do diálogo que se estabelece entre dois amigos A lei implacável da amizade é que um dos amigos sobreviverá à morte do outro cabendo então ao sobrevivente carregar seu amigo em si mesmo O diálogo ininterrupto é aquele que Derrida se sabe condenado a prosseguir sozinho carregando o outro em si levando o outro em si se guindo o leitmotiv que ele extrai do verso de Celan O mundo se foicabe a mim agora te levar Tudo se passa como se Derrida quisesse responder com isso à ideia de um diálogo vivo evocada por Gadamer em 1981 com a ideia de um diálogo póstumo no qual o sobrevivente deve permitir falar em si a voz de um amigo defunto 16 J Derrida Béliers Le dialogue ininterrompu entre deux infinis Paris Galilée 2003 1 2 8 H ERM EN ÊUTICA A ideia de um diálogo ininterrupto também faz eco ao papel mantido pela noção de interrupção por ocasião do confronto de 1981 A terceira pergunta de Derrida indagava se a ideia de entendimento já não devia ser entendida mais a partir da ideia de interrupção do que da de continuidade Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen en tendimento longe de ser o continuum da relação como foi dito ontem não é a interrupção da relação uma certa relação de interrupção a suspensão de toda mediação Essa noção de ruptura talvez tenha algo a ver aliás com aquilo que Derrida afirma a respeito do caráter testa mentário de toda fala ela é um legado que sobrevive a seu autor e que o amigo deve levar em si quando um dos dois se extingue Derrida deu outro testemunho dessa amizade em um texto que publicou em alemão apenas duas semanas depois da morte de Gadamer intitulado Comme il avait raison Mon Cicérone HansGeorg Gadamer Ele ti nha toda razão Meu Cícero HansGeorg Gadamer17 Nesse texto Derrida revelava a terna admiração que sempre alimentara por Gadamer esse bon vivant que amava tanto viver e cuja capacidade de afirmar a vida ele invejava capacidade da qual Derrida se dizia priva do Por isso confessa Derrida Não acredito na morte de Gadamer Não consigo Desen volvi o hábito se posso assim me expressar de achar 17 Em G Leroux C Lévesque e G Michaud orgs II y aura ce j o u r À la mémoire de Jacques Derrida Montréal À 1impossible 2005 pp 53 56 reimpresso na revista Contrejour 9 2006 8791 HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO 1 2 9 que Gadamer nunca morreria Que ele não era homem de morrer Desde 1981 data de nosso primeiro en contro tudo o que me chegava dele me dava uma serenidade que eu tinha a impressão de que era o pró prio Gadamer em pessoa que a comunicava a mim por uma espécie de contágio ou de irradiação filosófica Eu gostava tanto de vêlo viver falar rir andar até mancar e comer e beber Tão mais que eu Eu invejava a força que afirmava nele a vida Ela parecia invencível Eu chegava a ponto de me convencer de que Gadamer merecia não morrer porque nós tínhamos necessidade desse teste munho absoluto daquele que assiste e participa de to dos os debates filosóficos do século É então porque Gadamer merecia não morrer nunca que Derrida pensava poder levar infinitamente adian te o diálogo com seu pensamento ao qual ele confessa ter se furtado um pouco em 1981 A morte brutal de Derrida no dia 9 de outubro de 2004 terá interrompido esse diálogo póstumo A seus amigos é que incumbe a tarefa de dar seqüência a essa conversação entre dois infinitos a hermenêutica e a desconstrução 1 3 0 H ERM EN ÊUTICA capítulo IX HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO T Í iferentemente de Derrida Richard Rorty JJ 19312007 e Gianni Vattimo 19312007 J1 J reivindicaram expressamente o pensamento hermenêutico mas para lhe dar uma inflexão de sentido mais relativista ou pósmoderna Os dois se apoiam na célebre fórmula de Gadamer O ser que pode ser enten dido é linguagem mas para chegar à conclusão de que é ilusório pretender que nosso entendimento incida sobre uma realidade objetiva que poderia ser atingida por nos sa linguagem É porque tudo decorre em última instância da linguagem que seria preciso renunciar à ideia de uma adequação do pensamento ao real É isso o que leva Ror ty ao pragmatismo e Vattimo a um niilismo feliz i R o r t y a d e s p e d i d a p r a g m a t i s t a DA NOÇÃO DE VERDADE Em sua obra Filosofia e o espelho da natureza publi cada em 1979 Rorty promove uma nova aliança entre HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 1 o pragmatismo norteamericano e a hermenêutica da obediência gadameriana Sua intenção é mostrar por que a filosofia deve fazer o luto de um conhecimento que se pretendia um simples espelho do real onde Rorty vê não mais que uma simples metáfora ou um efeito de linguagem Ele também questiona a ideia do minante no mundo anglosaxão segundo a qual a filo sofia deveria ser uma teoria do conhecimento ou uma epistemologia cuja tarefa seria explicar como nosso conhecimento se reporta à realidade Em si essa crítica do positivismo ou do empirismo ine rente à epistemologia anglosaxônica não é original Ela fora inaugurada pelo pragmatismo de Quine e sua denúncia dos dogmas do empirismo entre os quais o dogma da referência ao mundo real mas também pelo trabalho do historiador da ciência Thomas Kuhn que mostrara em sua célebre obra sobrei estrutura das re voluções científicas 1962 que a aceitação das teorias científicas devia muito mais à linguagem à retórica e a crenças que derivam menos da prova científica do que dos paradigmas em vigor e que definem as normas da racionalidade científica de uma época dada A originalidade de Rorty reside no fato de que ele se afilia claramente ao pensamento de Gadamer até então pouco conhecido no mundo anglófono mas sobretudo em sua convicção segundo a qual a própria disciplina da epistemologia deve ser substituída por um pensamento hermenêutico 0 capítulo VII leva por sinal o título Da epistemologia à hermenêutica Mesmo assim o erro se ria acreditar que a hermenêutica deve substituir a epis temologia porque sua concepção seria mais adequada ou 1 3 2 H ERM EN ÊUTICA mais conforme ao real Não 0 interesse da hermenêutica é para ele o de renunciar a essa ideia e de avançar a ideia de uma cultura humana completamente outra Meu propósito não é apresentar a hermenêutica como uma disciplina que seria a herdeira da epistemologia como se ela visasse satisfazer o vazio cultural que era preenchido em seu tempo pela filosofia centrada na teoria do conhe cimento Na interpretação que vou propor a hermenêuti ca é apenas o nome de uma disciplina ou de um método considerado capaz de nos possibilitar êxito ali onde a teo ria do conhecimento fracassou assim como ela também não é o nome de um programa de pesquisa Ao contrário a hermenêutica é a expressão da esperança de que o espa ço cultural aberto pelo declínio da epistemologia não será preenchido ela é a expressão da esperança de que nossa cultura se transformará em uma cultura na qual a exigência de restrição e de confrontação não será mais sentida1 Aos olhos de Rorty a hermenêutica não oferece método ou um método melhor para alcançar a verdade ela nos ensina apenas a viver sem a ideia de verdade entendi da no sentido da correspondência com o real A busca da verdade pode então ser substituída por uma cultura que exalte sobretudo os ideais da edificação e da con versação Rorty se apoia aqui na ideia de Bildung cul tura em Verdade e método Gadamer a evocara a fim de mostrar que o saber das ciências humanas não era um saber metódico ou à distância mas de formação que im plicava uma transformação dos próprios agentes Rorty extrai daqui conseqüências mais relativistas 1 R Rorty Lhomme spéculaire Paris Le Seuil 1990 p 349 Philosophy and the Mirror ofNature New Jersey Princeton University Press 1979 p 315 HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 3 Gadamer inicia Verdade e método com uma discussão so bre o papel da tradição humanista que deu à noção de Bildung o sentido de algo que seria seu próprio fim para si mesmo Para que tal noção assuma todo o seu sentido é indispensável darse conta da relatividade de todo dis curso descritivo em comparação com as épocas as tradi ções e os acidentes históricos dos quais ele provém Ora é isso o que a tradição humanista pode fazer em educa ção mas é o que uma formação que siga os resultados das ciências exatas não poderia realizar2 Seguindo esse ideal de formação a tarefa da filosofia não seria propor descrições mais justas do real e sim promover a busca da conversação entre os humanos Isso porque o conhecimento jamais transcenderia a or dem da conversação para alcançar um mundo de reali dade ou de essências Mesmo que a obra de Rorty que pretendia operar uma transformação hermenêutica da filosofia analítica te nha contribuído muito para levar a conhecer melhor o pensamento hermenêutico no mundo anglosaxônico esse é um de seus méritos inegáveis ele o orientou em um sentido relativista que era completamente alheio a Gadamer difícil de pensar que um autor que intitula sua obra principal Verdade e método pretenda renun ciar à ideia de verdade Rorty voltou a louvar as virtudes da hermenêutica tal qual ele a entende em uma conferência que pronunciou no dia 12 de fevereiro de 2000 em Heidelberg por oca sião do centenário de Gadamer Nessa ocasião ele invo 2 Ibidem 398 Philosophy p 362 1 3 4 I H ERM EN ÊUTICA cou o emblemático adagio O ser que pode ser entendi do é linguagem mas para lhe dar um sentido puramente nominalista que ele caracteriza da seguinte maneira Entendo por nominalismo a ideia segundo a qual to das as essências são nominais e todas as necessidades de dicto próprias ao discurso Isso eqüivale a dizer que nenhuma descrição é mas verdadeira ou mais conforme à natureza do objeto do que qualquer outra descrição3 Dessa forma um nominalista coerente insistirá em dizer que o suces so do vocabulário corpuscular no plano da predição e da explicação não tem a menor incidência sobre seu estatu to ontológico e que a própria ideia de um estatuto onto lógico deve ser abandonada Esse abandono da ontologia também é especialmente estranho para Gadamer 0 título da última parte de Ver dade e método anuncia justamente uma inflexão onto lógica da hermenêutica sob o fio condutor da lingua gem Para Gadamer a linguagem não é anteparo do ser mas exatamente ao contrário o elemento no qual o ser se revela a si mesmo Aqui não se deveria falar de nomi nalismo porque a linguagem é para Gadamer a lingua gem das coisas antes de ser a linguagem de nosso pen samento Toda a crítica gadameriana a propósito do esquecimento da linguagem no pensamento ocidental visa por sinal denunciar a concepção instrumentalista e nominalista que faz da linguagem um instrumento do 3 R Rorty Being That Can Be Understood is Language London Re view ofBooks 16 de março de 2000 pp 2325 HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 5 pensamento soberano em face de um real que sem ela seria privado de sentido Ora é justamente esse nomi nalismo que Rorty tenta reabilitar Nós nunca entendemos algo a não ser por meio de uma descrição mas não existem descrições privilegiadas Não há meio algum de retroceder para além de nossa linguagem descritiva rumo ao objeto tal qual ele é em si mesmo e não porque nossas faculdades sejam limitadas mas porque a distinção entre o para nós e o em si é uma relíquia de um vocabulário descritivo o vocabulá rio da metafísica que perdeu sua utilidade4 Mesmo que Rorty tente se valer de uma nova cultura gadameriana é difícil não reconhecer aqui o apogeu do construtivismo moderno para o qual o mundo se reduz à concepção que nós façamos dele É esse no minalismo que entende a linguagem de maneira pura mente instrumental que Gadamer critica duramente O adágio o ser que pode ser entendido é linguagem não deve ser entendido em Gadamer em um sentido nomi nalista pelo qual o ser se reduz à descrição que faze mos dele mas em um sentido ontológico é o próprio ser que vem se dizer em linguagem e é sua linguagem que nos permite corrigir as descrições inadequadas que propomos dele Se Rorty interpreta a hermenêutica de maneira tão an tiontológica e nominalista Vattimo extrai dela conse qüências não menos relativistas mas que o conduzem a defender a ideia de uma ontologia niilista 4 Ibidem 1 3 6 H ERM EN ÊUTICA 2 V a t t i m o p o r u m n i i l i s m o h e r m e n ê u t i c o Vattimo fala de maneira absolutamente positiva da vocação niilista da hermenêutica Essa tese se faz acompanhar nele de uma crítica a Gadamer que não se encontra verdadeiramente em Rorty Realmente Vat timo avalia que a hermenêutica não desenvolveu para si mesma a ontologia niilista para a qual secretamente tende Sem essa ontologia mais radical e mais conse qüente a hermenêutica permaneceria sendo a coiné do pensamento contemporâneo mas uma coiné exces sivamente ecumênica e sem contundência real que se limitaria a dizer que tudo é uma questão de interpreta ção5 A significação filosófica da hermenêutica estaria então diluída Essa crítica procede de uma leitura assí dua de Heidegger e de Nietzsche que falaram muito de niilismo o que não é exatamente o caso de Gadamer 0 niilismo quer dizer aqui que nada pode ser dito do ser porque toda verdade provém da interpretação da tradição e da linguagem Uma hermenêutica conseqüente deveria desembocar segundo Vattimo em uma ontologia niilista o ser em si mesmo não é nada reduzindose a nossa linguagem e a nossas interpretações Essa tese é claro se expõe à ob jeção de não passar ela própria de uma interpretação Como justificála Só podemos fazêlo avalia Vattimo quando reconhecemos que a hermenêutica pretende 5 G Vattimo La vocation nihiliste de lherméneutique Audelà de Vinterprétation La signification de Vherméneutíque pour Ia philosophie Bruxelas Éditions de Bosck pp 922 HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 7 ser uma resposta à história do ser interpretado como advento do niilismo Desse modo podese ver no niilis mo uma atenuação interminável do discurso sobre do ser6 que teria caracterizado a história de nossa mo dernidade e que justificaria o bemfundado da herme nêutica como coiné universal Se quiser ser coerente a hermenêutica só pode se apresentar como a mais con vincente interpretação filosófica possível de uma situa ção de uma época e logo necessariamente de uma proveniência Ao se apresentar como o coroamento coerente de uma história e de uma proveniência a hermenêutica justifi caria sua própria pretensão à universalidade 0 adágio de Gadamer o ser que pode ser entendido é linguagem deve então ser entendido em um sentido radicalmente niilista próximo daquele que Rorty lhe conferia Essa frase Vattimo avalia não tem simplesmente o sentido banal de identificar o campo do entendimento com essa espécie de ser que se apresenta como linguagem Contra essa leitura muito atenuada Vattimo propõe uma leitura ontológica radical a da identificação do ser e da linguagem tese que Gadamer não teria pen sado até o fim mas que seria a única conseqüência propriamente rigorosa de seu pensamento7 Nessa perspectiva o ser se encontra tragado pela linguagem 6 Ibidem p 21 7 G Vattimo Histoire cTune virgule Gadamer et le sens de 1être Re vue International de philosophie n 213 2000 pp 502505 1 3 8 H ERM EN ÊUTICA e pela perspectiva que o encerra Mesmo que se apre sente como pósmoderna essa leitura é inteiramente conforme ao espírito da modernidade que remete todo sentido a uma subjetividade com a diferença de que essa subjetividade se sabe agora histórica Ora é em sentidos opostos que iam a hermenêutica e a ontologia de Gadamer não é o ser que é tragado pela lin guagem mas nossa linguagem que é apreendida pelo ser sendo a linguagem inicialmente a luz do próprio ser Para ver bem a diferença entre as hermenêuticas pode ser útil conceder atenção ao papel particular desempenhado por autores como Nietzsche e Heidegger para os herdeiros pósmodernos de Gadamer tanto Vattimo quanto Rorty mas também Derrida O Nietzsche que importa a seus olhos é aquele que estipula que não existem fatos mas apenas interpretações e seu heideggerianismo se inspira especialmente na última filosofia de Heidegger que de fende que nosso entendimento é determinado de parte a parte pelo quadro globalizante da história do ser pensada como o advento do niilismo Os autores pósmodernos as sociaram espontaneamente essa perspectiva nietzschiana e heideggeriana ao pensamento de Gadamer especial mente a sua crítica ao objetivismo em ciências humanas e a sua insistência no papel dos préjuízos e no caráter lingüístico de nosso entendimento Ao destacar esses as pectos do pensamento gadameriano eles acharam que a hermenêutica levava à rejeição da noção clássica de verda de compreendida como adequação ao ser Essa perspectiva nietzschiana contudo levouos a per der de vista o alcance ainda ontológico da hermenêu HERMENÊUTICA PÓSMODERNA RORTY E VATTIMO 1 3 9 tica Para o pensamento de Gadamer Nietzsche não é realmente um aliado mas aquele que levou a seu ápice o nominalismo do pensamento moderno que reduz o ser àquilo que ele significa para o pensamento ou para a vontade sendo a linguagem apenas um instrumento do sujeito Num contexto desses no qual tudo depende do sujeito é claro que não há verdade objetiva nem va lores coagentes Mas essa ausência de valor e de verda de só subsiste observa Gadamer se nos mantivermos no interior do quadro do pensamento moderno para o qual o mundo não tem significação nem ordem sem a subjetividade doadora de sentido Ora é justamente essa ideia de um sujeito soberano que se encontraria em face de um mundo sem forma e que se presume privado de sentido que a hermenêutica nos permite questionar Desse modo a hermenêutica nos auxilia a redescobrir o ser e a superar o niilismo 1 4 0 H ERM EN ÊUTICA conclusão FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA M esmo que a hermenêutica represente a coi né de nosso tempo ela oferece uma face mais contrastada do que geralmente se su põe Enquanto filosofia a hermenêutica pretende in tervir na componente universal de nossa experiência de mundo mas essa universalidade pode ser enten dida de maneira muito diferente Podemos mostrála partindo do adágio mais elementar para exprimir essa universalidade Tudo é uma questão de interpreta ção Os diferentes sentidos que podem ser atribuídos a essa fórmula podem ser associados aos grandes repre sentantes da hermenêutica mas também aos herme neutas anônimos que defendem essa tese mas sem se vincular propriamente à tradição hermenêutica Vere mos que cada uma dessas interpretações tem conse qüências para a concepção da verdade 1 A fórmula tudo é uma questão de interpretação pode ser inicialmente lida em um sentido nietzs chiano o de um perspectivismo da vontade de po FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 1 tência ideia certamente antecipada pelos sofistas do tempo de Platão Não existem fatos existem apenas interpretações Num contexto desses não existe verdadeiramente verdade no sentido de adequação à coisa Nietzsche acrescenta cruelmente que a ver dade é apenas essa espécie de erro sem a qual uma espécie de seres bem determinados não poderia vi ver Aquilo que se tem como verdade não passa de uma perspectiva entre outras secretamente ditada por uma vontade de potência que busca se impor A dificuldade dessa teoria perspectivista é que existem realmente fatos erros e aberrações abundantes É um fato e não uma interpretação dizer que Paris e não Marselha é a capital da França que uma molécula de água se compõe de um átomo de oxigênio e de dois e não três de hidrogênio e que eu nunca fui a Plutão 2 0 perspectivismo pode ser entendido em um senti do mais epistemológico a tese quer então dizer que não existe conhecimento do mundo sem esquema prévio sem paradigma de interpretação segundo a tese de Thomas Kuhn em A estrutura das revolu ções científicas1 Segundo Kuhn toda ciência opera com base em representações gerais do mundo que recortam um quadro de inteligibilidade e de coerên cia no interior do qual podemos distinguir a verdade da falsidade Mas esse quadro é ele próprio variá vel e está sujeito às revoluções científicas que vêm 1 Em 1962 Kuhn ignorava completamente a tradição hermenêutica mas ele a evoca concordantemente em seu último livro A tensão essen cial tradição e mudança nas ciências São Paulo Unesp 2001 1 4 2 I H ERM EN ÊUTICA alterar os parâmetros recebidos Um paradigma consegue então destronar outro A verdade aqui é concebível mas depende de um paradigma dado a questão da verdade dos próprios paradigmas tam bém é objeto de discussão em epistemologia 3 A tese tudo é interpretação pode receber um sen tido mais genericamente histórico toda interpreta ção é filha de seu tempo Essa visão corresponde àquilo que podemos chamar de historicismo É ele que a hermenêutica clássica e metodológica Dil they mais frequentemente buscava conter mas que o relativismo pósmoderno frequentemente saúda como uma libertação ele nos livraria da con cepção da verdade como adequação sendo a ver dade não mais que uma perspectiva útil Em um regime historicista a verdade permanece possível mas interpretar verdadeiramente um fenômeno quer dizer entendêlo a partir de seu contexto Uma verdade não contextual parece excluída 4 0 adágio pode ser entendido de uma maneira mais ideológica nesse caso ele significa que toda visão de mundo seria guiada por interesses mais ou me nos declarados Podemos pensar aqui em Marx Freud na crítica das ideologias e em todos aque les que Ricceur cJassifica de os mestres da suspeita Essa suspeição dá origem a uma hermenêutica das profundezas que suscita uma fortíssima pretensão de verdade mas que permanece um pouco ideal quando não escatológica ela não apenas se man tém como o apanágio do teórico ele mesmo inicia do na verdade última dos fenômenos como seu objeto não será capaz de conhecêla plenamente FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 3 exceto quando for libertado da ideologia que atual mente deforma sua consciência É essa verdade ideal que o teórico antecipa quando critica o estado existente de uma sociedade ou de uma consciência Essas são as formas absolutamente atuais e pertinen tes da ubiquidade hermenêutica mas os principais representantes da tradição hermenêutica defenderam concepções mais definidas dessa universalidade 5 Para Heidegger a universalidade da hermenêutica comporta sobretudo um sentido existencial pelo fato de ser uma interrogação para si mesmo o ho mem é de início um ser votado à interpretação Ele tem necessidade de interpretação e vive desde sempre no seio de interpretações mas que ele pode contudo elucidar Essa dramatização um pouco agostiniana da hermenêutica transformaa em uma filosofia universal da facticidade humana que visa livrála do esquecimento de si no qual ela se abisma de tamanho bom grado Aqui a verdadecorrespon dência é seguramente preservada Heidegger ressal ta por sinal que a tarefa primeira da interpretação é elaborar seus projetos de entendimento diretamen te sobre as próprias coisas Mas isso quer dizer que é possível esboçar projetos que sejam conformes ao que a existência pode ser quando se assume a si mesma Se for preciso destruir as más interpreta ções as que são inadequadas ou sobrepostas porque nos afastam de nossa finitude isso deve ser feito pela medida de um ideal de autenticidade 6 Para um autor como Gadamer assim como para muitos outros a universalidade da hermenêuti 1 4 4 HERM ENÊUTICA ca deve ser entendida sobretudo em um sentido lingüístico toda interpretação toda relação com o mundo pressupõe o elemento da linguagem visto que a realização e o objeto do entendimento são necessariamente lingüísticos Nesse universo a verdadecorrespondência também é possível mas tratase sempre de uma adequação das próprias coisas à linguagem Desse modo é possível revisar nossas interpretações confrontandoas àquilo que é dito pelas próprias coisas portanto a sua lingua gem Esse modo de falar é menos curioso do que parece Se podemos dizer que a tese segundo a qual o sol gira em torno da terra é falsa é porque ela vem refutar aquilo que diz o próprio real sua evidência Desse modo uma concepção científi ca ou filológica sempre pode ser refutada por um mais adequado entendimento que apele para a lin guagem do próprio real tendo como evidência as coisas mesmo que tal entendimento só compareça por meio da linguagem Essa linguagem é inicial mente para Gadamer a linguagem das próprias coi sas antes de ser a linguagem de nossa mente a qual a recebe sobretudo das coisas Essa concepção da universalidade da linguagem não é a única que é defendida em hermenêutica 7 A tese mais difundida é sem dúvida a que vai no sentido pósmoderno no caso muito moderno que vê na linguagem especialmente uma forma lização do real esquematização que faria cadu car a própria ideia de uma realidade com a qual nossas interpretações poderiam ser classificadas FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 5 como em conformidade sendo a própria realida de constituída por nossas interpretações Essa tese pósmoderna se apoia de bom grado nos sen tidos perspectivista cognitivo histórico ideoló gico existencial que acabamos de distinguir e a cada vez para contestar a ideia julgada quimérica de uma adequação ao real Podemos associar essa hermenêutica ao perspectivismo da vontade de potência evocado acima 1 mas o pensamento pósmoderno se distingue por sua ideia segundo a qual o sentido seria circunscrito por um quadro interpretativo globalizante mais ou menos rígido proveniente ora da história da metafísica Derri da ora da episteme geral de uma época Foucault ora da tradição Vattimo ou do quadro de utilidade geral determinado por nossa cultura Rorty Aqui também não há mais adequação a não ser no seio de uma ordem dada mas o apagamento de toda referência extralinguística possibilita uma nova to lerância acerca da pluralidade das interpretações Se essa caridade é bastante louvável a dissolução da noção de verdade se revela singularmente fatal para essa concepção da hermenêutica por que essa teoria seria mais verdadeira que qualquer outra Ora se a hermenêutica é verdadeiramente universal é inicialmente porque somos seres que vivem à primei ra vista no elemento insuperável do sentido de um sentido que nós nos esforçamos para entender e que pressupomos desde então necessariamente Mas esse sentido é sempre o sentido das próprias coisas daqui lo que elas querem dizer um sentido que certamente 1 4 6 H ERM EN ÊUTICA ultrapassa nossas pobres interpretações e o horizonte limitado mas graças a Deus sempre ampliável de nos sa linguagem2 2 É essa hermenêutica que tentei desenvolver modestamente em meus trabalhos especialmente em Luniversalité de Vherméneutique 1993 onde o objeto da hermenêutica é compreendido a partir da ideia de um sentido interior inesgotável que buscamos interpretar por meio de suas expressões externas e em Du sens de la vie Montréal Bellarmin 2003 que desenvolve a ideia de que o sentido que tentamos entender é antes de mais o da própria vida FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA 1 4 7 1 The text is not clearly visible or distinguishable in the image BIBLIOGRAFIA AGOSTINHO La doctrine chrétienne Paris Institut détudes agustinien nes 1997 ed br A doutrina cristã São Paulo Paulus 2002 BULTMANN R Le problème de lherméneutique 1950 in Foi etcom préhension Paris Le Seuil 1970 599626 ed b r Crer e compre ender São Leopoldo Sinodal 2001 DERRIDA J Vécriture et la différence Paris Le Seuil 1967 ed br A escritura e a diferença São Paulo Perspectiva 2009 Questions à Gadamer Revue internationale de philosophie n 151 1984 341343 Béliers Le dialogue ininterrompu entre deux infinis Paris Galilée 2003 DILTHEY W Origines et développement de lherméneutique 1900 in Le monde de Yesprit Paris Aubier 194711 313340 Védification du monde historique dans les sciences de Vesprit Paris Le Cerf 1988 ed br A construção do mundo histórico nas ciências humanas São Paulo Editora da UNESP 2010 GADAMER HG Vérité et méthode 1960 VM Paris Le Seuil 1996 ed br Verdade e método 2 vols Petrópolis Vozes 2012 Lartde comprendre Écrits I Paris Aubier 1982 Écrits II Paris Aubier 1991 Langage et vérité Paris Gallimard 1995 La philosophie herméneutique Paris PUF 1996 Herméneutique et philosophie Paris Beauchesne 1999 Le chemins de Heidegger 1983 Paris Vrin 2002 Esquisses herméneutiques 2000 Paris Vrin 2004 Vherméneutique en rétrospective 1995 Paris Vrin 2005 ed br Hermenêutica em retrospectiva 5 vols Petrópolis Vozes 2007 GREISCH J Herméneutique etgrammatologie Paris Éd du CNRS 1977 Paul Ricceur Uitinérance du sens Paris Miilon 2001 Le cogito herméneutique Paris Vrin 2003 GR0NDIN Uuniversalité de 1 herméneutique Paris PUF 1993 Vhorizon herméneutique de la pensée contemporaine Paris Vrin 1993 Introduction à HansGeorg Gadamer Paris Le Cerf 1999 BIBLIOGRAFIA 1 4 9 G r o n d i n J Le tournant herméneutique de la phénoménologie Paris PUF 2003 Du sens de la vie Montréal Bellarmin 2003 HABERMAS J Lapproche herméneutique in La logique des sciences sociales 1967 Paris PUF 1987184215 ed br A lógica das ci ências 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esquecimento Trad A François Campinas Edito ra da UNICAMP 2008 Parcours de la reconnaissance Paris Stock 2004 ed br Percurso do reconhecimento São Paulo Loyola 2006 RORTY R Philosophy and the Mirror of Nature Princeton Princeton University Press 1979 tr fr Lhomme spéculaire Paris Le Seuil 1990 ed br A filosofia e o espelho da natureza Rio de Janeiro RelumeDumará 1994 Being That Can Be Understood Is Language London Review of Books 16 de março de 2000 2325 SCHLEIERMACHER F Herméneutique Paris Labor Fides 1988 Le Cerf 1989 ed br Hermenêutica arte e técnica da interpretação Petrópolis Vozes 2010 VATTIMO G Lafin de la modernité nihilisme et herméneutique dans la culture postmoderne Paris Le Seuil 1987 ed br Ofim da moder nidade niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna São Paulo Martins Fontes 2002 Éthique de Tinterprétation Paris La Découverte 1991 Audelá de Tinterprétation La signification de Vherméneutique pour la philosophie Bruxelas Éd De Boeck 1997 ISO H ERM EN ÊUTICA nota da editora DIGA NÃO À CÓPIA pratique essa ideia v Quando você copia uma obra está contribuindo para que nos próximos anos os alunos não tenham mais o que copiar porque 1 Não haverá autores interessados em produzir textos A produção de um livro demanda muito tempo formação específica e dedicação e eles precisam trabalhar para viver 2 Também não haverá editoras interessadas em investir em uma obra que ficará estocada especialmente quando se tratar de obras traduzidas Os alunos do futuro terão de ler as obras na língua em que foram editadas 3 E mais você está contribuindo para acabar com o emprego de funcionários de gráficas editoras para o fechamento de livrarias para o empobrecimento da cultura do país além é claro de violar a lei de direitos autorais Lei n 961098 praticando um CRIME previsto no artigo 184 do Código Penal sem prejuízo de ter que reparar o dano causado E para que isso A cópia custa em média R 010 por página Este livro r o1o po r q u e e n t ã o n ã o têlo Além do mais cópias se perdem ao longo do tempo O livro não Ele é para sempre pode ser repassado a outras pessoas é fundamental para a formação de todo profissional que se pretenda competente Todo bom profissional precisa de uma biblioteca própria Para isso a Parábola Editorial contribui pondo no mercado livros com qualidade gráfica e de conteúdo a melhor preço que a cópia DIGA NÃO À CÓPIA Pratique essa ideia Quando você diz não à cópia está dizendo não à violência e à falta de ética Pode não parecer mas quando copia uma obra na qual se empenhou tanto trabalho para que ela virasse um livro e chegasse ao mercado você está colaborando com a corrupção que alimenta nosso crônico atraso