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COMARCA DE PORTO ALEGRE 1ª VARA DO JURI DO FORO CENTRAL Rua Márcio Veras Vidor 10 OU Av Aureliano de Figueiredo Pinto snº Processo nº 00122000471710 CNJ00474983520208210001 Natureza Homicídio Qualificado Autor Justiça Pública Réu Elissandro Callegaro Spohr Luciano Augusto Bonilha Leao Mauro Londero Hoffmann Marcelo de Jesus dos Santos Juiz Prolator Juiz de Direito Dr Orlando Faccini Neto Data 13122021 VISTOS ETC O caminho percorrido até aqui revelou variados percalços mas concluído o julgamento pelo Júri colhese agora o ensejo para a prolação da decisão com a qual se fixam as penas e dãose as demais diretrizes Na conformidade da votação realizada pelo Conselho de Sentença declaro condenados os réus ELISSANDRO MAURO MARCELO e LUCIANO e como corolário do veredito passo à aplicação das penas i Antes porém uma breve nota se as dificuldades inerentes do caso da Boate Kiss determinariam por si sós uma tramitação mais alargada do processo contribui para a delonga um sistema recursal que máxime nos procedimentos de Júri carece de urgente revisão O Júri nos oitenta anos de vigência do Código de Processo Penal foi muito provavelmente o tipo de procedimento menos alterado a partir das diversas reformas pontuais tendentes à modernização da legislação Ainda que sejam 1 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 relevantes as mudanças conjunturais o certo é que em termos de estrutura o Júri segue sendo o rito que insere sete pessoas da comunidade para após mais ou menos intensa coleta de provas deliberar sobre o mérito da imputação dos crimes dolosos contra a vida bem como das diversas questões a essa correlatas O panorama dos crimes de homicídio que é a rigor o tipo de infração mais expressivamente ligada ao Júri entrementes tornouse bastante diverso subsistindo não obstante o mesmo modelo de julgamento sem que entre as alterações seja possível depreender algo de mais substancial O diagnóstico que se pode haurir dessa constatação não é favorável No ano de 2019 o Conselho Nacional de Justiça empreendeu esforços na formulação de um Diagnóstico das ações penais de competência do Tribunal do Júri cujos resultados apontam para a preponderância de decisões pela extinção da punibilidade o que em seus termos pode dar sinais da ineficiência do procedimento mormente porque em alguns Estados da Federação esse índice qual seja o de decisões meramente extintivas sem efetivação do julgamento chega perto de sessenta por cento sendo a média nacional próxima de trinta e cinco por cento Mais do que isso gira em torno de sete anos o tempo médio de tramitação das ações penais de competência do Júri com situações locais em que esse lapso temporal muitas vezes aproximase de dez anos considerada a baixa do processo potencializando o vexatório paradoxo segundo o qual a violação do bem jurídico mais relevante entre todos como seja a vida implica na mais alongada forma de prestação jurisdicional tudo em ordem a desacreditar o sistema de Justiça e como parece curial sinalizar proteção insuficiente ao direito fundamental tal como definido constitucionalmente Não surpreende neste quadro que em quase sessenta por cento dos casos tenha se afigurado a necessidade de mais de uma sessão plenária de julgamento para a efetivação do Júri havendo Tribunais em que a multiplicidade de sessões até o desfecho efetivo apresentouse em mais de oitenta por cento das situações Nalguns casos razões diversas como a ausência de testemunhas de jurados sequer viabilizam o início das sessões noutros são as efemérides 2 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 corriqueiras ocorridas durante o julgamento que implicam na dissolução de conselhos e consequente frustração dos trabalhos iniciados Tudo isso parece impõe a cogitação de mais substantivas alterações No caso da Boate Kiss isso tudo se mostrou evidente A decisão de pronúncia concernente à mera admissibilidade do julgamento da causa pelo Júri rendeu vastidão de irresignações num percurso que precisamos frisar provavelmente haverá de ser novamente percorrido já agora com a apreciação do mérito pelos Jurados A demonstrar como nosso processo penal alterouse ao longo das últimas décadas vejamos a definição da pronúncia formulada em sua época por ESPÍNOLA FILHO pronúncia é a sentença em que julgada procedente a denúncia ou queixa é o réu considerado indiciado em infração penal provada na sua materialidade para efeito de com o nome lançado no rol dos culpados e sujeito a prisão imediata ser submetido ao julgamento definitivo pelo tribunal do júri1 Decerto se mostra antiquada a admissão do lançamento do nome do acusado em rol dos culpados antes de empreendido o julgamento bem como a cogitação da prisão pela só razão de prolatarse a decisão de pronúncia Porém superados que foram os equívocos de antanho remanesce a pronúncia como imensa fonte de delonga na tramitação dos processos por crimes dolosos contra a vida máxime porque na quadra atual o desfecho dos casos enquadráveis no âmbito do Júri pode depender do julgamento de oito instâncias jurisdicionais Com efeito prolatada a pronúncia há o recurso em sentido estrito e a partir dele a chamada ao caso dos Tribunais Superiores seja pela via recursal seja pela amplitude dos habeas corpus preclusa a pronúncia e com isso concretizado o julgamento pelo Júri novamente já aí a partir da apelação podem ser percorridas as vias jurisdicionais dos tribunais estaduais Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal Tudo a ensejar inescondível contrassenso já assinalado anteriormente os crimes que violam o mais importante dos bens jurídicos como é a vida são os que têm maiores dificuldades de tramitação e portanto consomem mais 1ESPÍNOLA FILHO Eduardo Código de Processo Penal brasileiro anotado Vol IV 6 ed Rio de Janeiro Editora Rio sa p 243 3 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 tempo para serem julgados Tornar simplesmente irrecorrível a decisão de pronúncia não atentaria contra a competência constitucional do Júri antes lhe prestaria homenagem pois como é evidente caberá ao Júri a efetivação do julgamento muitas vezes suprimida na teia imensa dos recursos atualmente previstos na legislação inclusive à conta do advento da prescrição ou outras causas extintivas da punibilidade Quando não sucedem essas apesar disso temse tamanha dilação temporal entre o fato e a culminância de seu desfecho que as finalidades apontadas para a pena criminal se fazem macular o que se soma ao inegável descrédito do sistema de justiça criminal Suplantarse portanto a possibilidade de recurso da pronúncia prestaria reverência ao Júri convocandoo com mais presteza ao cumprimento de sua missão constitucional e se suspeitamos para muitos a assertiva parecer chocante nunca se pode deixar de anotar a perplexidade para a realização de julgamentos alusivos a fatos ocorridos com quase uma década de antecedência O Direito e sobretudo o Direito Penal não há de voltar os olhos apenas àquele que delinquiu senão que lhe cabe a finalidade de ajustar as expectativas normativas da comunidade evitando frustrações e descréditos que afetam a confiança no sistema de Justiça ii Para ingressar propriamente o campo da fixação das penas imperioso é darse destaque à circunstância de que na espécie desde sempre a imputação versou o designado dolo eventual Para a conclusão que se tirará cumpre sobre isso fazerse algumas considerações Qualifica Damásio de JESUS como teoria normativa pura da culpabilidade aquela que retira o dolo da culpabilidade e o coloca no tipo penal o que indicaria que relacionase com a teoria finalista da ação tudo a ensejar a exclusão de todo e qualquer fator psicológico para o âmbito de sua análise2 Isto poderia ser dito em palavras de ESTEFAM sob a perspectiva de que no âmbito do sistema finalista se identificou a natureza puramente normativa da culpabilidade a qual passou a ser composta de imputabilidade possibilidade de compreensão da ilicitude da conduta e de exigir do agente comportamento distinto 2 JESUS Damásio de Direito Penal Parte Geral 31ª ed São Paulo Saraiva 2010 p 5056 4 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 teoria normativa pura da culpabilidade3 Notem como este pensamento que refutaremos é difundido BITENCOURT em sentido equivalente assenta que uma das mais caras contribuições do finalismo foi a extração do âmbito da culpabilidade de todos aqueles elementos subjetivos que a integravam até então e assim dando origem a uma concepção normativa pura da culpabilidade4 Como corolário expõe o autor que a culpabilidade deste modo alvitrada pode ser resumida como a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez o que assim significaria que a reprovação pessoal contra o agente do fato fundamentase na não omissão da ação contrária ao Direito ainda e quando podia havêla omitido5 Do que ficou consignado resulta que sobretudo na doutrina brasileira temse produzido o equivocado alvitre segundo o qual se está a culpabilidade alijada de elementos de ordem subjetiva transportados ao tipo penal como consectário da abordagem finalista a sua avaliação isto é a avaliação da culpabilidade no ensejo da fixação da pena afigurarseá meramente cosmética E não é inusual deveras que em algumas decisões no momento de estabelecimento das sanções e apreciação acerca das diretrizes do artigo 59 do Código Penal leiamos quando se vai tratar da culpabilidade meramente a fórmula de que o agente era imputável tinha consciência da ilicitude e poderia comportarse de outra maneira O que se pretende demonstrar agora é que ao contrário disso no conceito de culpabilidade tendente à fixação da pena incluemse elementos de ordem subjetiva os quais numa linguagem simplificada e observada a dinâmica do presente caso concreto poderíamos tomar como a avaliação acerca da intensidade do dolo desimportando para o efeito o que também será exposto se se está a falar de dolo direto ou de dolo eventual 3 ESTEFAM André Direito Penal Parte Geral São Paulo Saraiva 2010 p 259 4 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Geral 17ª ed São Paulo Saraiva 2012 p 441 5 BITENCOURT Tratado p 4423 5 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 Se bem que na distinção entre dolo eventual e negligência consciente WELZEL remeta à conhecida fórmula de Frank pela qual a indiferença do autor quanto ao resultado antijurídico se mostra um critério de destrinça6 a verdade é que il dolo di Welzel non è meno cieco e meno spechio riflettente di quello classico in quanto entrambi sono privati della loro radice dinamico emozionale7 e como adverte PALMA a compreensão do que seja efetivamente uma expressão objetiva de vontade susceptível de ser a base de imputação de responsabilidade penal háde exigir mais do que a finalidade formal háde exigir um conteúdo susceptível de ser compreendido pelo próprio agente como uma sua decisão8 Sucede assim que o dolo não se estrutura em termos puramente descritivos e não deixa de revelar um estado de indiferença ou de desinteresse frente aos valores comportados pelo Direito Neste contexto ademais a indiferença aparece como um critério a ser tomado em conta para a sempre difícil distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente De maneira que a antiga formulação de ENGISCH9 segundo a qual o grau de indiferença manifestado pelo agente na violação do bem jurídico faz derivar como dolosa a qualificação de sua conduta porque quem age com dolo eventual manifesta sua indiferença quanto ao resultado no sentido de que se não deixou afetar pela possibilidade de seu advento mantém a sua relevância sobretudo em virtude de contribuir para afastar um excesso de discricionariedade judicial em casos limites Tratase de dizer portanto que a ausência de oposição interna do autor frente à lesão do bem jurídico quando essa a lesão afigurase possível encaminha o dolo eventual o que já não sucederá quando essa probabilidade se 6 WELZEL Hans Das Deutsche Strafrecht Eine systematische Darstellung Berlin Walter de Gruyter Co 1965 p 5870 7 MORSELLI Elio Il ruolo dellatteggiamento interiore nella struttura del reato Padova Cedam 1989 p 66 8 PALMA Maria Fernanda Direito Penal Parte Geral Volume II A Teoria Geral da Infracção como Teoria da Decisão Penal Lisboa Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa 2001 p 15 Do mesmo modo Cf PALMA Maria Fernanda Direito Penal Parte Geral A Teoria Geral da Infracção como Teoria da Decisão Penal Lisboa Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa 2013 p 17 9 ENGISCH Karl Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht Reimpressão Aalen Scientia Verlag 1964 p 175186 6 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 mostra reduzida Por isso que FARIA COSTA expõe com precisão que o merecimento de pena nos casos cometidos sob o pálio do dolo eventual não se encontra na atitude de patente hostilidade para com o Direito mas sim na posição moral e na postura ética de acomodação ou indiferença face o resultado proibido ou seja a ordem jurídica parece querer não só que o agente não tenha uma posição de repúdio e de negação para com os valores que a norma penal cristaliza como também não quer que ele assuma uma posição de indiferença face à violação das normas penais10 Assim é que a ordem jurídica ao fazer com que a indiferença axiológica se equipare à própria e assumida negação dos valores dá conta de que o viver em comunidade não pode ser só o andarilhar nas suas margens mas tem de ser também o mergulhar nas suas raízes11 Tudo a colocar em xeque uma concepção de dolo que esteja calcada na vontade como tantas vezes referido nos debates havidos neste plenário do Júri É que nas intermináveis discussões sobre saberse se é o elemento volitivo o critério determinante à distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente o que surge no fundo é a exaltação da discricionariedade da pura opção ou escolha caracterizada nas palavras de GIMBERNAT ORDEIG como uma aleatória definição sobre se el agente tiene aspecto de facineroso o de buena persona12 Não é outra a manifestação de SANTOS quando aponta que a consequência da aplicação judicial do conceito volitivo de dolo tem sido uma evidente incalculabilidade e manipulabilidade de decisões orientadas conforme os pontos de vista mais aleatórios13 de maneira que parece relevante a asserção de PAGLIARO ao indicar a importância de se observar no comportamento do agente um atteggiamento di disprezzo verso quel bene particolare e concreto che viene 10 FARIA COSTA José de Tentativa e dolo eventual ou da relevância da negação em Direito Penal Coimbra Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia 1996 p 31 11 FARIA COSTA Tentativa p 32 12 GIMBERNAT ORDEIG Enrique Acerca del dolo eventual In Estudios de Derecho Penal Madrid Tecnos 1990 p 253 13 SANTOS Humberto Souza Problemas estruturais do conceito volitivo de dolo In Temas de Direito Penal Parte Geral Luís Greco Danilo Lobato Coord Rio de Janeiro São Paulo Recife Renovar 2008 p 287 7 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 offeso dallevento in questione e explicando no que há de consistir este atteggiamento di disprezzo refere ser decisiva la posizione emotiva del soggeto stesso nei confronti dellevento14 Uma linha semelhante é adotada por PORCIÚNCULA ao assentar a desnecessidade de se perguntar por um querer do agente porquanto quando alguém realiza uma ação consciente de seu significado típico poderseia dizer que essa pessoa quer com a sua ação expressar este significado típico Ora assevera PORCIÚNCULA não há como perscrutar o fundo da alma de um sujeito de sorte que é justamente através do externo ou seja através do comportamento do autor e de suas circunstâncias que se faz possível depreender o sentido exteriorizado de sua conduta15 De notarse que mesmo Armin KAUFMANN que preconiza a inadequação de uma doutrina própria ao dolo eventual assentando ao contrário a necessidade de uma perspectiva unitária por meio da qual se possam traçar as fronteiras entre o dolo e a culpa e assim também demarcar o dolo eventual aponta virtudes à assunção para tal desiderato da indiferença pois a medida da indiferença Maß an Gleichgültigkeit que determina o dolo encontrase não somente no dolo eventual mas também e de maneira elevada no dolo direto16 Não deixa de ser interessante que o profligar da vontade como aqui apontado encontrasse já em Galdino SIQUEIRA alguma inspiração dizia o autor que a identificação do dolo com a intenção ou com a vontade não encontra apoio na moderna psychologia criminal e essa assimilação como dizia resultante da falta de clareza na ideia de vontade acabava por ser fonte de todas as dúvidas e incertezas que com prejuízo para a administração da justiça tem reinado secularmente17 14 PAGLIARO Antonio Principi di Diritto Penale parte generale 7 ed Milano Dott A Giuffrè Editore 2000 p 279 15 PORCIÚNCULA José Carlos Lo objetivo y lo subjetivo en el tipo penal Hacia la exteriorización de lo interno Barcelona Atelier Libros Jurídicos 2014 p 3089 16 KAUFMANN Armin Der dolus eventualis im Deliktsaufbau Die Auswirkungender Handlungs und der Schuldlehre auf die Vorsatzgrenze In Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft Berlin Walter de Gruyter Co 1958 p 72 17 SIQUEIRA Galdino Direito Penal Brazileiro Parte geral Rio de Janeiro Jacintho Ribeiro dos Santos Editor 1921 p 297 8 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 Fosse o caso aqui de fazerse uma recolha de decisões brasileiras e tendo em conta que no Brasil é expresso o Código Penal em seu artigo 59 no sentido de ser a culpabilidade critério a ser observado para a definição da pena aplicável dentre as cominadas bem assim da sua quantidade no âmbito das balizas definidas verseia que a admoestação não deixa de ser atual E assim o é porquanto o conceito de culpabilidade com a rearrumação sistemática que lhe foi própria nalguma medida esvaziouse deixando de lado as particularidades do agente exceto para o fim da convocação de uma sua possibilidade de agir de outra maneira De outra parte e aqui convém aludirse a um registro histórico muito breve o anterior e decaído artigo 42 do Código Penal brasileiro estabelecia expressamente que essa fixação da pena a que acabamos de nos referir darseia a partir da análise pelo juiz de fatores entre os quais se incluíam a intensidade do dolo ou o grau de culpa Na formulação atual da lei brasileira todavia tais critérios não foram repetidos e essa é uma das razões por que invariavelmente essa avaliação ou sequer é referida pela doutrina ou tem a sua possibilidade recusada Este é calha referir mais uma vez o influente autor o entendimento de Damásio de JESUS que sob a premissa de não possuir relevo algum o dolo para a culpabilidade dirá que a partir da reforma penal brasileira de 1984 e sendo o dolo deslocado da culpabilidade para o tipo nenhuma influência tem na aplicação da pena concreta18 Nem precisaríamos chegar ao ponto de com MANTOVANI asseverarmos que a vecchia tesi della non gradualità del dolo è smentita dalla realtà essendo il dolo ontologicamente graduabile19 a questão está em que mais além disso associarse ao dolo a ideia de ser puro dolo natural e ao mesmo tempo despojar da culpabilidade qualquer vestígio deste elemento subjetivo esvazia de conteúdo um e outro conceito dessubjetivandoos Estamos certos de que nesta primeira diretriz de avaliação para a fixação das penas qual seja a culpabilidade cumpre isto sim aludirse à intensidade do dolo de maneira que o fato da vida se aproxima do sujeito considerado que nada 18 JESUS Direito Penal p 336 19 MANTOVANI Ferrando Diritto penale Padova CEDAM 2001 p 339 9 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 do que relatado neste feito ocorreu por acaso E o dolo aqui ainda que inequivocamente se cuide do designado dolo eventual foi intenso Cumpre apontar as razões iii A intuição primeira que se poderia haurir de um cotejo entre o dolo direto e o dolo eventual apontaria para um juízo mais desfavorável do primeiro ou seja o dolo direto em relação ao segundo isto é o dolo eventual O objetivo agora é o de afastar este entendimento assinalando que no nível da punição não há nada que determine ou estimule a cogitação de que o dolo direto é só por si necessariamente mais grave do que o dolo eventual Primeiro por uma razão de ordem normativa Nosso Código Penal ao definir o que são os crimes dolosos limitase a indicar que se cuidam daqueles casos em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzilo De modo que no plano da legislação basta o querer o resultado ou a assunção do risco de produzilo para que se configure um crime doloso que como tal receberá a respectiva sanção Nada aponta para um alvitre segundo o qual o dolo direto afigurarseia mais ou menos grave do que o dolo eventual e num caso como o presente é preciso referir que se está diante da morte de mais duzentas e quarenta pessoas circunstância que na órbita do dolo eventual já encerra imensa gravidade ficando até mesmo difícil supor a possibilidade de que fatos assim ocorram sob a modalidade do dolo direto visto que a produção da morte de tão vasto número de indivíduos quando o agente quer diretamente o resultado muitas vezes se convola noutros tipos penais como seja o terrorismo o genocídio e outros envolvendo um conjunto tão plural de vítimas o que quase permitirá dizer que em situações catastróficas e de produção da morte de um expressivo número de pessoas o dolo eventual já é ele mesmo o elemento subjetivo de maior gravidade porquanto se de dolo direto se tratasse muito provavelmente estaríamos diante de outros modelos de crimes Mas não é só Em termos doutrinários mesmo em terras brasileiras já há aqueles que preconizam simplesmente o abandono da categoria do dolo eventual20 e o fazem por razões que este processo bem é capaz de explicar Com 20 MARTELETO FILHO Wagner HÖRNLE Tatjana Apelo para o abandono da categoria do 10 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 efeito grande parte da discussão travada nos Tribunais acerca dos fatos relacionados a este feito disse respeito a saberse sob qual dos elementos subjetivos estaria vinculada a conduta de cada qual dos acusados Em suma a indagação acerca das controvérsias entre o dolo eventual e a culpa consciente manifestaramse mais uma vez e a solução encontrada nunca desfrutou de unanimidade A questão entretanto é que o julgador nenhum julgador será capaz de colocarse na mente de quem atuou criminalmente para daí inferir qual teria sido o seu elemento subjetivo Nas palavras de RAGUÉS I VALLÈS una aplicación estricta de la idea según la cual sólo resulta legítimo condenar a un sujeto por delito doloso cuando consigan averiguarse determinados datos psíquicos que concurrieron en el momento de realización del comportamiento objetivamente típico hace imposible cualquier condena por delito doloso21 Por isso que segundo VIANA e TEIXEIRA a imputação subjetiva não pode ser determinada a rogo de uma hipotética e insondável postura mental sob pena de se abrir para o autor uma porta de possibilidades de manipulação dos fatos e do direito22 Muito ao contrário portanto o dolo vem de fora num juízo de atribuição que se faz a respeito de tal ou qual conduta Como leciona MARTELETO FILHO o dolo é um juízo e não um objeto de valoração de maneira que a imputação do dolo nunca é portanto um simples derivado de processos psicológicos23 PUPPE na mesma direção aponta que a inserção naquilo que se passava internamente nas reflexões do agente é uma quimera de forma que a asserção do juiz no sentido de que o agente aceitou ou não o resultado não pode ser compreendida como a asserção acerca de um fato psicológico É na realidade uma dolo eventual In Revista Brasileira de Ciências Criminais vol 178 vol 29 São Paulo RT 2021 p 79101 21 RAGUÉS I VALLÈS Ramon El dolo y su prueba en el proceso penal Barcelona Jose Maria Bosch Editor 1999 p 520 22 VIANA Eduardo TEIXEIRA Adriano A imputação dolosa no caso do racha em Berlim comentários à decisão do Tribunal de Berlim em 27 de fevereiro de 2017 In Revista do Ministério Público do Estado de Goiás n 36 juldez de 2018 p 90 Acessível em httpwwwmpgogovbrrevistadadosrevista36revista36dados4html 23 MARTELETO FILHO Wagner Dolo e risco no Direito Penal Fundamentos e limites para a normtivização São Paulo Marcial Pons 2020 p 469 11 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 atribuição24 Importante destacar que essas modernas correntes tendentes à análise do dolo com ênfase no que tem de cognitivo indicam com precisão a base de que partem e é essa mesma base que se mostra crucial para este momento de aplicação da pena Vejamos no ponto as lições trazidas por VIANA para o autor o conceito de dolo como conhecer e querer expressa uma proposta conceitual platônica ambígua circular e vinculada a crenças ingênuas ignorando a prática da imputação subjetiva Assim segundo diz a imputação a título de dolo não tem relação com a postura volitiva psíquica do indivíduo pois dolo não é vontade dolo é representação Destarte somente haveria uma modalidade de dolo sendo despicienda a distinção entre dolo direto e eventual No que cumpriria atinar para a distinção entre o dolo e a culpa de modo preponderante apresentarseia o tratamento punitivo que o legislador apresenta para o dolo e para a culpa25 Segue na mesma linha a concepção de XAVIER GOMES ao asseverar que sendo despicienda a busca pela vontade psicológica na forma que contém todos os elementos para a caracterização da modalidade eventual do mesmo modo temos que admitir a sua incidência no dolo direto já que ambas possuem até identidade de escala penal mesma pena prevista nos tipos ou seja mesmo tratamento pelo legislador justamente por isso segue o autor explicando que sequer nos parece possível argumentar que o dolo direto seria uma modalidade mais gravosa em relação ao eventual o que seria aferível na culpabilidade já que ambas podem se revestir de igual severidade26 Ora num sistema jurídico em que a discussão é transportada para integrantes da comunidade leigos e sem estudos aprofundados em Direito Penal como sucede na consagração do Júri parece adquirir ainda maior relevo o 24 PUPPE Ingeborg O dolo eventual e a sua prova In Estudos sobre imputação objetiva e subjetiva no Direito Penal Beatriz Côrrea Camargo Wagner Marteleto Filho coord São Pauolo Marcial Pons 2019 p 65 Para registro o texto original da autora intitulado Der dolus eventualis und sein Beweis está disponível em httpswwwjurauni bonndefileadminFachbereichRechtswissenschaftEinrichtungenLehrstuehlePuppedoluseventual ispdf 25 VIANA Eduardo Dolo como compromisso cognitivo São Paulo Marcial Pons 2017 p 366 26 XAVIER GOMES Enéias Dolo sem vontade psicológica perspectivas de aplicação no Brasil Belo Horizonte DPlácido 2021 p 162 12 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 ponto de vista segundo o qual o conceito de dolo é considerado em um sentido atributivo não se confundindo com qualquer estado mental nem tampouco com um dado psicológico qualquer como o consentimento ou a aprovação o dolo se atribuiadscreve de acordo com a constatação de determinados indicadores e não se determinadescreve27 Numa palavra o dolo é um conceito jurídico que deve ser ajustado à moldura normativa a partir dessa premissa de ratio punitiva28 ou o que é dizer o mesmo trilhando o caminho descortinado por FARIA COSTA o direito penal considera com a mesma censurabilidade as acções praticadas com dolo directo intencional e as levadas a cabo na postura éticojurídica vulgarmente chamada de dolo eventual29 Grande parte dos debates havidos neste Plenário no fundo concentraramse nessa questão escamoteada pelo protagonismo teórico do indecifrável confronto entre dolo eventual e culpa consciente merecem os acusados uma pena mais elevada como o são a dos crimes dolosos ou são merecedores de uma pena diminuta como é característico dos crimes culposos A decisão dos jurados como se viu inclinouse pela primeira posição muito menos por influxo de um ingresso no âmbito interno de cada qual dos acusados para saberem o móvel psicológico que os norteou mas isto sim por uma demanda atributiva de relacionar aos comportamentos descritos uma consequência jurídica que se apresentava variável quanto à ordem de gravidade cumprindo ao decisor uma definição que de resto foi feita Concluindo essa parte então há de ser demarcado que o reconhecimento do dolo eventual como tal descrito desde a denúncia não impõe qualquer cotejo abstrato com uma situação similar mas realizada sob a forma do dolo direto em ordem a que para o dolo eventual o corolário seja menos intenso Num caso com as singularidades do presente já é o dolo eventual forma grave de 27 MARTELETO FILHO Wagner A normativização do dolo entre o princípio epistêmico e o princípio da responsabilidade In Revista de Estudos Criminais Ano XVIII n 76 Porto Alegre Síntese 2020 p 133 28 VIANA Dolo como compromisso p 366 29 FARIA COSTA Tentativa p 42 13 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 consecução do tipo sem impor balizas quanto à análise minudenciada que se fará quanto à diretriz da culpabilidade Ou seja ainda que se vá expor mais detalhadamente as razões fica uma primeira conclusão a culpabilidade dos acusados é elevada porque intenso o elemento subjetivo com que agiram este mesmo sendo o dolo eventual permite um juízo desfavorável no nível da aplicação da pena juízo que não está limitado por uma ideia de que necessariamente haveria de ser menos gravoso do que o oriundo de um caso cometido com dolo direto Não olvidemos que o alcance da moldura normativa não se afasta de uma premissa de ratio punitiva E isto implica outra ordem de considerações iv Não sendo a pena um mero instrumento de controle é na comunicação de seu caráter de desaprovação e rechaço que se situa o reconhecimento da pessoa a que se há de impor a sanção como pessoa moral trata se deveras do reconhecimento de um significado comunicativo da pena eticamente fundado É a lição de FEINBERG para quem a pena traz consigo este significado simbólico expressive function of punishment no sentido de que ela expressa atitudes de ressentimento sofrimento e indignação e de julgamentos de desaprovação e reprovação por parte da própria autoridade punitiva ou daqueles em cujo nome é imposta30 Na síntese de SALDANHA CAVALCANTE a punição transmite uma mensagem para criminosos e vítimas para aqueles comunicase censura e reprovação do comportamento tomado responsabilizandoos pela ofensa causada Para as vítimas e para a comunidade como um todo comunicase que os valores violados realmente importam que o Estado fala sério quando criminaliza e prevê punição para algumas condutas31 A pena deste modo convoca para o ensejo da punição um elemento de reproche um juízo de censura o qual para VON HIRSCH não deixa 30 FEINBERG Joel The Expressive Function of Punishment In Doing Deserving Essays in the Theory of Responsibility By Joel Feinberg Princeton Princeton University Press 1970 p 118 31 SALDANHA CAVALCANTE Daniel Henrique Punição retribuição e comunicação contributo ao estudo da teoria da pena criminal Dissertação de Mestrado no Programa de PósGraduação em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Porto Alegre versão não publicada 2011 p 70 14 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 de referirse à condição da vítima na medida em que faz expressar que ela a vítima foi injustamente violada por conta de um comportamento alheio culpável o que significa que aquilo que lhe foi ocasionado decorreu de um comportamento desaprovado A reprovação além disso representa uma comunicação com o autor do fato ensejandolhe uma mensagem normativa crítica em relação a seu comportamento daí que a neutralidade da reprimenda acabaria por não expressar desaprovação alguma Marginalmente é certo a pena também confere perante terceiros razões normativas para que seja omitido o tipo de comportamento adotado por aquele que se pune o que se conceberia como um tipo de função agregada de índole preventiva consistente na comunicação de uma razão prudencial prudential reason para a não realização de fatos puníveis32 a qual na espécie ostenta grande relevância na perspectiva de que de ora em avante aqueles que se lançarem em atividades lucrativas relacionadas com a presença de pessoas haverão de adotar as cautelas necessárias para garantirlhes as condições adequadas de segurança HÖRNLE neste mesmo sentido aponta que a atribuição de culpabilidade enseja um juízo de desaprovação o qual se apresenta como uma mensagem para a vítima noutras palavras segundo diz a condenação contém um juízo sobre a extensão dos direitos da vítima e sobre a demarcação de sua esfera frente à ação do delinquente assinalando então que a vítima não necessita aceitar a conduta que violou o seu direito33 A autora a partir disso critica um modo de conceber a pena pautado exclusivamente num cálculo instrumental de eficiência ao qual aludem determinadas correntes na medida em que este olvida um cogitável direito da vítima em relação à punição do criminoso34 Por sua vez GÜNTHER acentua a diferença da pena para outras reações alusivas ao cometimento de crimes efetivamente em conta de seu 32 VON HIRSCH Andrew Retribución y prevención como elementos de justificación de la pena In Crítica y justificación del Derecho Penal en el cambio de siglo el análisis crítico de la escuela de Frankfurt Luis Arroyo Zapatero Ulfrid Neumann Adán Nieto Martín Coord Cuenca Ediciones de la Universidad de CastillaLa Mancha 2003 p 1339 33 HÖRNLE Tatjana Determinación de la pena el papel de una perspectiva de la víctima Tradução de Luis Miguel Reyna Alfaro In Determinación de la pena y culpabilidad notas sobre la Teoría de la determinación de la pena en Alemania Buenos Aires FD 2003 p 88 34 HÖRNLE Tatjana Subsidiarität als Begrenzungsprinzip Selbstschutz In Mediating Principles Begrenzungsprinzipien bei der Strafbegründung BadenBaden Nomos Verlaggesellschaft 2006 p 367 15 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 significado simbólico expressivo symbolischexpressive Bedeutung visto que a experiência das vítimas não pode ser reduzida somente às lesões materiais considerados os diversos sentimentos negativos a sensação de desprezo e degradação que originam uma legitimada demanda satisfatória por parte do indivíduo que sofreu o crime de resto nalgumas situações o cometimento do crime compromete o valor que a vítima atribui à própria vida de sorte que a pena haverá de expressar a reprovação moral ao autor do crime sem deixar de refletir algum tipo de compaixão para com a situação do ofendido Apenas assim a vítima ou seus familiares são reconhecidos como alguém que não padeceu de um mero infortúnio ou fatalidade e sim uma conduta ilícita reprovada pela coletividade35 Ou seja importante é que na aplicação da pena e na definição dos critérios de sua fixação não se afastem os interesses do lesado pois diante da multiplicidade de condutas violadoras das pessoas que somos capazes de realizar em muitos casos está presente a degradação ou mesmo o próprio perecimento da vítima Cumpre porém tornar menos abstratas essas reflexões De certo modo é possível dizer que o esforço em racionalizar a atividade punitiva promoveu a neutralização da vítima36 para a qual se de algum modo sempre se conferiu um papel de subalternidade na dinâmica processual no âmbito da delimitação da resposta estatal para com o crime restava praticamente esquecida No limite o espaço reservado às vítimas mostravase circunscrito às pretensões indenizatórias ou reparatórias37 GUIMARÃES NETO assinala que a reação estatal ao delito deveria encerrar o conflito e fazer o sujeito passivo perceber eventuais ações vingativas como desnecessárias Nesta linha a teoria da pena seria entendida como orientada à finalidade de conter as emoções e sentimentos vingativos da vítima38 35 GÜNTHER Klaus Die symbolischeexpressive Bedeutung der Strafe eine neue Straftheorie jenseits von Vergeltung und Prävention In Festschrift für Klaus Lüdersen zum 70 Geburtstag am 2 Mai 2022 BadenBaden Nomos Verlagsgesellschaft 2002 p 206219 36 GUIMARÃES NETO Silvio Leite Uma teoria da pena baseada na vítima a busca pela satisfação do indivíduo vitimado como finalidade da pena São Paulo Marcial Pons 2020 p 25 37 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 26 38 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 156 16 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 Por isso que a pena que não inflige um mal ao autor de uma conduta grave mostrase contraditória e compromete o significado expressivo da condenação ou dizendo o mesmo com outras palavras a pena desprovida de um ônus tangível conflitaria com os interesses dos indivíduos vitimados por crimes graves pois comprometeria a credibilidade da condenação expressa pelo Estado39 É certo que como pressuposto de observação dos interesses da vítima estará a necessidade de perceber os seus anseios punitivos sem que isso se confunda evidentemente com a transferência da missão de julgar ao próprio ofendido Notem as vítimas não julgam mas empreendido que seja o juízo o seu interesse quanto à extensão da reprimenda não é desconhecido dalguma concepção Na tradição americana por exemplo há a possibilidade da assim chamada Victim Allocution por intermédio da qual podem ser apresentados os impactos do crime em relação ao ofendido bem como narrados os seus sentimentos em relação ao fato ocorrido e ao infrator Victim Impact Statement ou seja oralmente ou por escrito essa declaração consiste em uma descrição dos danos físicos psicológicos emocionais e financeiros da vítima e que tenham ocorrido como resultado direto do crime naturalmente após estabelecido o juízo de condenação40 No livro em que com riqueza de detalhes tratase de situação similar à dos autos ocorrida no The Station Nightclub em Rhode Island EUA o autor explica que a sentencing hearing consists of defense counsels argument urging leniency the prosecutors argument for strong punishment and the defendant s own statement should he wish make one In Rhode Island it may also feature victim impact statement an opportuny guaranteed by the Rhode Island Constitution whereby crime victims may describe to the court the crimes impact on their lives41 Não se pode excluir evidentemente que as exigências da vítima alcancem referencial descompassado com a ordem jurídica como aqueles que afetem 39 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 158 40 In httpswwwjusticegovusaoedcavictimwitnessassistancerightsfelonysentencing acesso em 24 de fevereiro de 2021 41 BARYLICK John Killer Show The Station nightclub fire New England University Press of New England 2012 p 164 17 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 direitos indisponíveis do infrator ou mesmo se mostrem inteiramente desproporcionais com o fato praticado a suplantação destes riscos contudo está na adoção de resto usual em nosso país de um critério que seja objetivo capaz de complementar as singularidades do indivíduo violado qual seja a adoção de limites punitivos mínimo e máximo como tal fixados pela lei42 Dentro dessas balizas entretanto importa reconhecer os impactos do crime para a vítima ou mesmo em certas circunstâncias para seus familiares em ordem a que a censura expressa pela condenação não fique alheia a seus interesses Nos casos de perda de entes como no caso presente a pena criminal há de comunicar aos familiares pais e mães enlutados o grau de respeito que lhes devota o Estado de maneira que arriscar o esquecimento destes dramas pessoais gerados pela prática de um crime implicaria justamente no oposto ou seja numa demonstração de que a ordem jurídica não está a compreender a vítima o sujeito violado com o devido respeito e consideração O sempre presente interesse dos familiares que constituíram até mesmo uma Associação e a constante demonstração de seu sofrimento não podem ser olvidados neste momento Um magistrado que atua no Tribunal do Júri acaba se deparando inumeráveis vezes com pais ou mães que comparecem em audiências ou plenários chorando a morte de seus filhos Isto entretanto nunca pode ser naturalizado e mais que isso parece potencializado quando a experiência da morte deixa de ser algo individual para constituirse numa dimensão coletiva Foram mais de duzentos e quarenta mortos e a expressividade do número de vítimas não divide ou arrefece as dores ou tragédias pessoais multiplicaas v E aqui surge uma questão relevante Normalmente após a análise de cada uma das diretrizes do artigo 59 do Código Penal chegase num número à guisa de penabase Este cálculo nunca há de ser matemático e quanto mais a jurisprudência inclinase por sua força aritmética mais se distancia da dimensão axiológica que é fundamento do Direito Penal De todo modo haverei de proceder na indicação precisa dos elementos do artigo 59 do Código Penal que nortearão a fixação da penabase contudo antes para um dado muito significativo 42 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 202 18 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 almejo chamar a atenção Como reagiria cada pai ou mãe enlutado cada familiar que perdeu seus filhos ou filhas se lhes fosse dito que como corolário dessa perda suprimirseá um mês da liberdade dos réus Pois notem são mais de duzentos e quarenta famílias que por anos esperam uma resposta do Estado e a concretização daquele valor abstrato que designamos por JUSTIÇA e numa modelagem legislativa em que é cediça a presença do concurso formal numa modelagem típica que alude ao homicídio sem qualificadoras mesmo um estudante de Direito será capaz de especular que para cada vida perdida não será extirpado muito mais do que um mês da liberdade de cada um dos acusados E isto sem considerar que com o cumprimento de pequena fração da pena já poderão progredir de regime tudo a viabilizar se cogite de uma retomada relativamente rápida de suas vidas com a possibilidade de conviverem com os seus de viajarem de estudarem de trabalharem de conhecerem pessoas de terem as experiências que são tão maravilhosas no curso de nossas vidas e que todavia nenhuma delas as terão as vítimas as mais de duzentos e quarenta vítimas Vejam que o percentual da progressão de regime na espécie variará e o refiro à guisa de obter dictum pois o tema alude à execução penal entre 16 ou 25 se se considerar que o elemento violência a distinguir o patamar de que se trate não é necessariamente inerente ao homicídio bastaria lembrar da hipótese de um homicídio por omissão tudo a demonstrar que o alcance de benefícios da execução penal não se fará tarde Este norte retomemos este guia de comunicar às vítimas a seus familiares de que há compadecimento com a sua situação igualmente direcionará a análise que se inicia acerca do artigo 59 do Código Penal Por meio da punição adequada dos réus conota o Estado aos parentes dos que pereceram bem como aos lesados sobreviventes o ideal da consideração e do respeito vi A culpabilidade dos réus é elevada A viabilidade de fazer tal asserção mesmo estando o caso vertente na modalidade do dolo eventual já foi referida anteriormente e não há razão para repetições Do mesmo modo fica reiterado o alvitre quanto à aquilatação da intensidade do elemento subjetivo viabilizada não obstante mais uma vez 19 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 estejamos a tratar do dolo eventual Importa no ponto assentar a pluralidade de deveres normativos descumpridos pelos acusados na medida em que no caso de ELISSANDRO e MAURO determinaram a instalação em paredes e no teto da boate de espuma altamente inflamável olvidando indicações técnicas de uso que em sua condição empresarial deveriam obedecer Mais do que isso empreenderam a contratação de show musical no qual era cediça a utilização de artefatos similares a fogos de artifício sem prestar a devida informação sobre os riscos associados à conjugação destes dois fatores Portanto contribuíram num grau excepcional com a situação de perigo que culminou na causação dos danos verificados Isto para não dizer do fato que aceitaram sem peias manter a casa noturna com lotação demasiada sem que tivessem atuado no sentido de viabilizar adequadas condições de evacuação em casos de necessidade Tudo no processo ademais corrobora a ideia de que coadunaram com a atuação de funcionários sem os treinamentos obrigatórios e no ensejo dos fatos da denúncia chegaram a ainda que genericamente e no início do desdobramento do evento ordenar aos seguranças para que impedissem a saída de pessoas do recinto acaso não demonstrado o pagamento das despesas de consumo na boate Tal conjunto de atos no somatório tendente ao desfecho intensamente fatal que promoveu encerra elevado grau de censurabilidade Com efeito sendo os acusados imputáveis o que parece óbvio dizer a essa altura demais disso é de notar se que máxime em decorrência de sua condição profissional vale por dizer do fato de que auferiam rendimentos dos lucros da boate eralhes imperativo comportamentos diversos em ordem à garantia da segurança daqueles que frequentavam o local Essa mesma condição cumpre dizer torna indiscutível a consciência da ilicitude do comportamento viabilizando juízo desfavorável sobre essa circunstância No concernente aos acusados MARCELO e LUCIANO igualmente o grau de censura é acentuado Não obstante conhecendo o local do fato onde já haviam atuado acionaram os artefatos pirotécnicos que sabiam ou no mínimo deveriam saber serem destinados a uso em ambientes externos sendo que um destes foi direcionado para o teto da boate de modo leviano e insensível o que deflagrou tout court a queima do revestimento inflamável A importância causal 20 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 desta conduta para a produção de tamanho número de mortes é inequívoca e o peso elevado das consequências deve ser suportado por aqueles cujo comportamento foi mesmo decisivo para a eclosão das mortes Sem contar que teriam saído do local sem alertar o público acerca do fogo e da necessidade de evacuação dando à vida dos frequentadores nenhuma importância e egoisticamente buscando preservar a sua De modo que a reprovabilidade é intensa sendo os acusados imputáveis e sendolhes fortemente exigido comportamento diferente daquele que adotaram por ocasião da efeméride No âmbito dos motivos é verdade que a denúncia assinalou quando de seu oferecimento a existência de motivo torpe para cada qual dos acusados havendo ulterior exclusão em sede recursal Seria indevido no ponto aludir aos motivos na forma em que feito na denúncia se bem que deve ficar consignado não estou de acordo com a asserção de que se apresentaria na espécie algum tipo de bis in idem na consideração de dados para a afirmação do dolo eventual e destes mesmos dados à guisa de qualificadora Tem havido muita confusão a respeito do conceito de bis in idem e parece inequívoco que se determinada pessoa desferir múltiplos e intensos golpes de arma branca noutra dessa unidade de sentido extrairseão tanto a sua intencionalidade ao modo de dolo como também a qualificadora concernente à crueldade do meio Enfim seriam variados os exemplos que antecipariam a ideia de que o ne bis in idem corresponde a uma proibição do exercício irracional do poder punitivo dandose por verificada essa irracionalidade quando esse exercício for redundante43 o que não se confunde com a valoração diversificada de dados do crime máxime num sistema jurídico que aí sim problematicamente aceita tout court a cada vez maior variabilidade das instâncias de punição civil penal administrativa etc De igual modo parece despicienda a aproximação da implicação de qualificadoras em nosso sistema àquilo que como consta do voto condutor de sua recusa alude à indicação por seu intermédio de maior censurabilidade ou 43 LEITE Inês Ferreira Ne Idem Bis in Idem proibição de dupla punição e de duplo julgamento contributos para a racionalidade do poder punitivo público Tomo II Lisboa AAFDL Editora 2016 p 831 21 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 perversidade Como sabido este é o modelo das qualificadoras do homicídio empregado no direito português que à cláusula geral da qualificação prevista no n 1 do artigo 132 do Código Penal de Portugal enuncia na sequência peculiares circunstâncias tendentes à evidenciação desse elevado padrão de censura As discussões havidas na doutrina portuguesa a respeito não carecem de indicação aqui sendo de dizerse entretanto que em nosso caso a legislação não aponta para essa análise consistente na perversão o que convenhamos para o modo asséptico como determinados temas são tratados em terras brasileiras seria altamente dificultoso De todo modo no presente ensejo não se está a repristinar a qualificadora afastada Ainda que razões de política criminal expressas ou não tenham conduzido a seu afastamento e nem parece equivocado fazêlo o certo é que a repercussão e o conteúdo da avaliação dos motivos neste momento adquire outra envergadura Com efeito como qualificadoras importariam em dobrar a pena mínima do crime lançandoa aos cediços doze anos já agora influenciam significativamente menos num quadro em que o balizamento da sanção já está estabelecido legislativamente em padrão inferior Assim é que afirmado e reafirmado que não se está a trazer à tona o que foi rechaçado por decisões superiores cumpre dizer que o motivo do crime desfavorece os acusados Os motivos permitem que se conceda uma explicação para as ações motives may explain actions to us prestandose para interpretálas44 de modo que apresentar um motivo equivale a dizer sob que luz deve a ação ser vista to give a motive is to say something like See the action in this light45 Aludem os motivos não apenas no que diz respeito à causação do resultado mas também importante frisar àquilo que direcionou o agente na tomada de tal ou qual conduta E aqui para os réus ELISSANDRO e MAURO que exerciam atividade profissional relacionada com a Boate Kiss o escopo de beneficiar os lucros em desfavor da segurança de seus clientes ressai evidente Deuse primazia à razão econômica desde a aquisição de materiais até a imposição de dificuldades para a saída das vítimas ao 44 ANSCOMBE Gertrude Elizabeth Margaret Intention Cambridge Massachussetts London Harvard University Press 2000 p 19 45 ANSCOMBE Intention p 21 22 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 aspecto do lucro que naturalmente não é em si repugnante quando almejado num quadro de cumprimento dos deveres normativos na espécie isso contudo não sucedeu Variadas ações individualizadas evidenciaram que os riscos acrescidos à integridade dos frequentadores do estabelecimento foram desconsiderados porquanto destarte seguramente ganharseia menos Da parte dos réus MARCELO e LUCIANO ainda que em menor escala a motivação também passa pela mesma ordem de considerações visto que como se demonstrou teriam adquirido e usado artefato pirotécnico de valor significativamente inferior àquele que se afiguraria mais seguro para utilização num local como a Boate Sem contar que no casos destes acusados há ainda uma expressão de futilidade no arriscar tão avassaladoramente os membros de seu público por uma diversão banal dirseia grosseira como a exibição de pirotecnia num lugar fechado Em suma ainda que com a diversidade própria referente à atuação de cada qual na avaliação dos motivos para todos os réus o que se infere não lhes é favorável Cumpre avaliar as circunstâncias peculiares do evento no que repercutem para a fixação da pena Neste âmbito impõese atenção específica à maneira como vieram a perecer as vítimas fatais Os dados do processo indicam sem qualquer margem para dúvida a presença de intenso sofrimento decorrente das razões pelas quais morreram as vítimas Quem num exercício altruísta por um minuto apenas buscar colocarse no ambiente dos fatos haverá de imaginar o desespero a dor e o padecimento das pessoas que na luta por sua sobrevivência recebiam todavia a falta e a ausência de ar os gritos e a escuridão em termos tão singulares que não seria demasiado qualificarse tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura46 o horror o horror Vejamos a título de exemplo o que disse Tulio Magalhães fls 1154911553 Que o pessoal saiu correndo do palco e caiu aquele teto toda aquela fumaça aquela Aí virou uma bagunça Ninguém avisou nada Lá dentro a gente não conseguiu ouvir nem voz assim porque se pensa numa situação nessa é grito né situação de grito e não sei o quê você não conseguia ouvir voz porque se 46 Refirome ao filme Apocalipse Now e ao livro de Joseph Conrad o Coração das Trevas 23 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 você tentasse falar alguma coisa se você tentasse gritar você se queimava entendeu de vez em quando você ouvia um grito mas era um grito meio de desespero como se fosse uma última tentativa da pessoa puxar ar e logo em seguida você ouvia o barulho de alguém caindo de um corpo desfalecendo similar vale conferir o que assentou Heuri Guedes fls 1118911194 J Tu tava sentindo alguma dor V Sim sim Eu queimei os braços assim J Tu ficou ali muito tempo Tu foi embora depois V Eu não tenho noção de tempo assim o que eu fiquei lá dentro mas foi tempo suficiente pra me causar danos né Eu fiquei um bom tempo hospitalizado e em coma induzido também J Te recorda se nesse trajeto tu foi pisoteado V Fui Fui pisoteado e foi uma batalha ali né Porque era muita gente todo mundo querendo se salvar todo mundo querendo sair não tinha estourou a boiada e todo mundo queria sair para algum lugar e aquela fumaça foi cada vez ficando mais quente foi cada vez pior né Aí era gente querendo ir pro banheiro gente querendo sair não tinha um rumo certo pra ir não tinha um rumo certo que dizia saída aqui Eu não tinha essa noção sabe Dr Joel Em quantos amigos mais ou menos vocês estavam lá V Uns dez Dr Joel Desse pessoal que tava contigo todos sobreviveram V Não um monte eu perdi Dr Joel Quando tu tava saindo tu disse que tu lembra de ter pisado em algumas pessoas é isso V Pisei Dr Joel Tu tem ideia assim de onde tu começou a pisar nessas pessoas V Da parede de vidro essa que eu estava eu andei até a metade disso eu tenho consciência eu andei até a metade do bar que é próximo à saída a partir daí então eu caí Aí eu já caí em cima de pessoas Acho que isso aí até a porta deve dar uns três quatro metros eu já caí em cima de gente Dr Joel E tu lembra de pessoas caírem em cima de ti V Sim foi a partir dai que eu lembro de ta brigando pra sair Aí eu me agarrava não tinha o que fazer Dr Joel Em que momento que tu sentiu se tu sentiu que começou a te queimar V Desde o início que eu percebi que era fogo Que eu botava o braço no rosto pra eu tentar não respirar aquilo aí foi queimando aqui o próprio calor já queimava A intensidade do sofrimento é circunstância peculiar dos crimes e o seu reconhecimento sequer há de estar adstrito à cobertura do elemento subjetivo com que atuaram os agentes quem deflagra o processo causal ou seja realiza as 24 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 condutas aptas à eclosão de determinado resultado há de suportar os dados colaterais que lhe sejam respectivos pois se assim não fosse as particularidades e singularidades dos crimes correriam por conta das próprias vítimas e elas são vítimas Em seu livro a respeito do que sucedeu na Boate Kiss ARBEX apontou as imensas dificuldades enfrentadas pelos próprios socorristas relatando o caso de um médico que quando examinou a boca de uma das vítimas uma garota levou um susto uma fumaça preta saía de sua garganta Os olhos estavam completamente brancos queimados e segue jovens morriam na frente de todos uma cena insuportável até mesmo para quem fora treinado para enfrentar situações limite47 O horror o horror Apontase que o tempo de morte estimado dentro da Kiss foi de três a cinco minutos depois de o incêndio ter começado48 e mostrase inexprimível em palavras o tipo de sensação a que foram submetidas as vítimas na antessala de suas próprias mortes misto de desespero com sufocamento misto de desalento e dor Outra circunstância a ser considerada concerne à idade dos mortos e mortas na sua grande maioria pessoas na faixa de seus vinte e poucos anos cheios de expectativas de anseios e sonhos tolhidos e interrompidos à conta dos fatos suprimidos de tudo aquilo que a experiência humana pelo mundo pode proporcionar Importante este aspecto máxime se cotejado com aquilo que dos acusados será retirado em decorrência de suas condutas Todos os réus seguramente terão ainda tempo para cultivar as suas famílias desenvolver as suas amizades viajar conhecer pessoas participar de festas eventos amores e desamores nessa trajetória cheia de mistérios e maravilhas que é a vida Nada disso caberá às vítimas Sequer é possível um cálculo instrumental sobre a idade de cada qual e a expectativa de vida que teriam para chegarmos ao quanto de tempo lhes foi subtraído Basta dizer que é muito e este muito cumpre enfatizar isso não lhes foi 47 ARBEX Daniela Todo dia a mesma noite a história não contada da Boate Kiss Rio de Janeiro Intrínseca 2018 p 20 48 ARBEX Todo dia a mesma noite p 163 25 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 retirado por obra do acaso por um raio um terremoto um tufão ou furacão tratouse de obra humana a exigir do Estado o chamamento à consequente responsabilidade ARBEX no ponto indica tratarse de mais de 9 mil anos potenciais de vida perdidos considerandose a expectativa de vida do brasileiro em torno de 75 anos49 Do mesmo modo são gravíssimas as consequências Primeiro para a própria comunidade de Santa Maria que é fato público e notório resultou deveras abalada em sua estrutura social a partir dos fatos narrados na denúncia Há um luto perene dificilmente reversível e que se expressa no olhar triste de pais e mães que em busca de respostas massivamente compareceram na sessão de julgamento Muito a este respeito poderia ser abordado com o que revelado nos autos Os depoimentos estão aí e transcrevêlos agora parece despiciendo fica a referência de que estão sendo considerados Estarseia a refugir dos padrões de uma decisão judicial se a poesia fosse chamada Suponho que não e neste ponto das consequências trago a música de Chico Buarque citada em plenário durante os debates Pedaço de Mim Oh pedaço de mim Oh metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu Na descrição empreendida por ARBEX muitos pais que reconheceram os filhos mortos no chão frio do Centro Desportivo Municipal perderam a capacidade de trabalho passaram a fazer uso contínuo de remédios ou de álcool e a sofrer de doenças mentais Cinco faleceram posteriormente com problemas de saúde Casais se separaram depois que um dos dois desencontrouse de si mesmo50 As consequências foram pesadas para as vítimas sobreviventes componentes no quadro da imputação veiculada na denúncia do quadro alusivo às tentativas de homicídio Vejam alguns exemplos citados aqui para documentação Ao ser ouvida JÉSSICA DUARTE DA ROSA fl 11769 referiu A A senhora esse seu esclarecimento me fez lembrar o seguinte a senhora teve algum prejuízo 49 ARBEX Todo dia a mesma noite p 104 50 ARBEX Todo dia a mesma noite p 185 26 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 material com medicação internação hospitalar Muito Ainda tenho né Porque eu tenho muitos problemas respiratórios fora todas as queimaduras que eu tenho né então assim gasto Gastei no começo porque como eu disse eu fiquei 30 dias UTI então depois que eu saí ninguém nunca me perguntou se eu precisei de ajuda se eu não vou precisar se eu precisava de remédio então assim gasto ainda com muito remédio respiratório muito antibiótico tomo a cada dois meses eu preciso tomar antibiótico tenho um tratamento todo por trás disso fora as queimaduras assim que eu precisei usar e o hospital do pelo SUS eu consigo assim cirurgias essas coisas eu to conseguindo aos poucos fazer mas eu precisei de órteses pro meu braço tudo isso foi por conta minha e são coisas caras então assim muita gente muita gente mesmo de fora me ajudou inclusive minha faculdade com bolsa com auxílio me ajuda bastante porque eu tenho bastante gasto JAIRO DA SILVA LIMA por sua vez relatou fls 1046710470 Dr Não tem problema o senhor não sabe não tem problema Pra concluir me diga uma coisa que tipo de tratamento o senhor precisou se submeter ou se ainda está se submetendo algum tratamento médico Psicológico pós o incêndio V Eu tive já eu tive lá no CAPS ali na Borges e tudo né porque a gente fica assim com uma coisa que a pessoa carrega pra vida inteira esses fatos que acontecem assim né No caso o tratamento fica muito dificultoso ou a pessoa trabalha e larga de não a vida social dela porque é a realidade é uma né Que se eu fosse uma pessoa que não trabalhasse não tivesse nada não teria condições nem de ter vindo aqui Essa é a verdade que todo mundo acha que é assim então eu acho assim que após o fato tudo que aconteceu alguma coisa foi deixada de lado Seria a parte dos sobreviventes isso foi meio deixado de lado que tem que veja eu acho alguém vai ter que ver isso dá parte dos sobreviventes Porque ninguém disse nada ninguém vai tratar ninguém cinco anos disponível se no caso fosse uma coisa simples né Isso aí é uma realidade que não é uma coisa simples acredito eu Tomara que não mas futuramente ainda acho que alguém que teve lá que teve contato com a fumaça com os gases tóxicos vá a vir quem sabe até falecer Ou ter algumas sequelas maiores disso mas na realidade isso foi um fato que tão deixando de lado e vão deixar até mais V Olha eu fiquei sete dias em casa fazendo tratamento e de atestado já fui várias vezes no PEA e 27 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 coisa tudo Na semana retrasada e na outra já tive duas vezes na mesma semana consultando Faço fisioterapia tomo remédio pra poder respirar o antialérgico a universidade me deu um medicamento que me deram só um dia Só uma vez me deram que seria uma bombinha Até no comercio tá custando 72 reais Se fosse fazer mesmo o tratamento e tudo o que teria que fazer ia ser muito grande justamente seria uma escolha muito difícil de fazer Ou trabalha ou faz o tratamento No caso serviço nenhum se não tive trabalhando direitinho não prestar teu serviço tu sempre tem outro disponível Há narrativas semelhantes em muitas outras declarações como as de THAIS MARDIELI CZAPLA fls 1118011185 e UILIAM DA SILVA VIEIRA fls 1118911194 bem como naquilo que foi colhido na instrução do próprio Plenário do Júri observado por todos Na sessão plenária ademais a vítima sobrevivente KÁTIA PACHECO evidenciou as dores físicas que se abateram sobre si a exigir utilização de morfina bem como as diversas cirurgias que fez para o efeito de colocação de pele dada a extensão das queimaduras os enxertos nalguns casos recusados pela incompatibilidade obrigaram à extração de pele de suas próprias costas em parte não queimada para viabilizar na medida do possível sua recomposição física Muito contundente na mesma linha as declarações de KELLEN FERREIRA cujo corpo traz as marcas dos fatos da denúncia em braços cicatrizados e uma das pernas amputadas na altura do joelho sem contar as múltiplas operações realizadas para enxerto de pele assim como expressivamente o que foi relatado por DELVANI ROSSO cuja manifestação da intensidade da dor sentida não pode ser olvidada e cujo relato de que enquanto desfalecia mentalmente despediase da família e amigos pedindo perdão por qualquer coisa que tivesse feito assinalam a dimensão dramática dos fatos Igualmente exacerbada as consequências advindas ao aspecto físico daqueles que sobreviveram como a título de exemplo pode ser verificado pela passagem seguinte da já citada obra de ARBEX Cara a tua pele está caindo Não cara isto aqui é a minha camisa que deve ter rasgado durante o tumulto Não cara tu estás sem camisa A angústia daquele rapaz fez Gustavo prestar atenção em si mesmo Próximo a um poste de luz conseguiu se enxergar pela 28 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 primeira vez percebendo que a pele de seu braço estava presa apenas pelo pulso51 Num outro livro publicado como corolário dos fatos em apreço há diversos depoimentos de pessoas que se encontravam no local entre os quais o de uma das vítimas que sobre seu caso asseverou fiquei internado 25 dias 10 em coma no HPS Já fiz umas sete oito cirurgias No momento optei por não fazer mais teria mais duas a recuperação é dolorosaA recuperação é meio traumática tive 39 do corpo queimado52 Nesta mesma obra a dimensão das consequências se apresenta insofismável dada a necessidade revelada de prestação de auxílio e suporte aos profissionais que atuaram em benefício das vítimas e familiares vale por dizer os profissionais da saúde nas suas variadas atuações careceram eles também de auxílio profissionalizado considerada a envergadura do drama com que estavam a lidar A atividade consistiu em oferecer suporte teórico e técnico aos profissionais que realizavam o cuidado direto aos sujeitos afetados pelo incêndio incluindo sobreviventes familiares trabalhadores e população em geral53 A avaliação concernente ao comportamento das vítimas exige neste caso duas considerações a primeira do ponto de vista das expectativas que elas as vítimas nutriam ao ingressar no local da denúncia Em algumas declarações feitas em plenário e em oitivas anteriores ficou evidenciada a despreocupação que as vítimas tinham quanto ao grau de segurança envolvido na Boate Kiss Tudo aliás muito natural É que na busca de alguma diversão noturna apresentase o assim designado princípio da confiança vale por dizer supõese que o local em que se está a ingressar esteja conforme as regras tanto que como corolário disso realizase o comportamento de ingresso pelo qual em alguma medida fica o sujeito entregue àquilo que a pessoa ou local que o recepcionam deveriam fazer Dáse o mesmo por exemplo quando adentramos num avião quanto à sua manutenção quiçá num elevador e de certa maneira no âmbito do próprio tráfego viário pois pensemos se não confiássemos no cumprimento das normas pelos demais motoristas o grande 51 ARBEX Todo dia a mesma noite p 25 52 MAFACIOLI Gilson e outros org A integração do cuidado diante do incêndio na Boate Kiss Curitiba CRV Editora 2016 p 19 53 MAFACIOLI A integração do cuidado p 181 29 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 risco aí envolvido muito provavelmente nos impediria de dirigir veículos Nesta linha de argumentação o que se apresentou na espécie na linha primeira do comportamento das vítimas foi a defraudação de legítima expectativa que possuíam no sentido de que cada qual dos acusados na órbita própria de suas incumbências atuasse na conformidade das regras próprias Num outro nível já agora comparativo o comportamento já agora nobre de algumas vítimas implica juízo desfavorável para os acusados Vejam que mesmo no plenário e ainda mais em diversas referências feitas no processo algumas das vítimas pereceram pela circunstância de após terem conseguido sair do local para lá retornaram com o objetivo nada menos que heroico de buscar salvar da morte seus semelhantes tal comportamento no cotejo com aquele adotado pelos réus e mais que isso decorrente de toda a efeméride derivada do comportamento dos acusados faz pungente a necessidade de considerarse aqui como desfavorável aos acusados o comportamento que foi adotado pelas vítimas o seu ingresso no estabelecimento foi motivado por expectativas defraudadas ou como se queira sua confiança foi rompida e ainda aturam com grau de nobreza e verdadeiro heroísmo que no que comparados com o modo de atuação dos acusados torna a conduta destes réus no ponto individualista e portanto egoísta Finalmente uma palavra acerca da circunstância judicial alusiva à personalidade Realmente há uma refração que reputo indevida sobre a indecifrabilidade do que expresso no artigo 59 do Código Penal a este respeito mas convenhamos não é esta a sede adequada para desenvolver argumentos tendentes a refutar entendimento predominante e por isso fica no âmbito da neutralidade essa avaliação Cabe contudo adicionar uma referência Como dito alhures houve nos Estados Unidos já neste século XXI caso semelhante ao presente em que na boate The Station morreram cem pessoas havendo mais de duzentos feridos Apesar de ter havido uma das espécies de acordo vigente no sistema americano plea deal entre a acusação os proprietários do local e o empresário da banda que ali se apresentava e que usando artefatos pirotécnicos ensejou a tragédia coube ao magistrado fixar as penas que vale dizer alcançaram o patamar de quinze anos para dois dos acusados embora com a possibilidade de suspensão após quatro anos de 30 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 cumprimento efetivo Enfim o que importa aqui gizar é que para o sancionamento de um dos acusados principais levou o juiz em conta que este had handwritten individual letters of condolence and apology to each victims family54 A expressão de compadecimento para com as famílias enlutadas por certo distingue traço de personalidade a ser sopesado no ensejo da sentença como se deu na hipótese enunciada Não se está repitase a valorar o inverso no concernente aos réus do processo mas é inolvidável a necessidade de registrar que em todas as páginas em todas as suas manifestações parecem colocarse como destituídos de compaixão por aqueles que faleceram por aqueles que se feriram fazendo preponderar os seus próprios interesses contra qualquer sinal de arrependimento altruísmo remorso empatia ou compaixão Parafraseando COMTE SPONVILLE partilhar o sofrimento do outro não é aproválo e nem compartilhar as suas razões tratase de recusar considerar um sofrimento seja ele qual for como um fato indiferente e um ser vivo seja ele qual for como uma coisa55 Seja como for a personalidade dos acusados não será considerada No quadro normativo delineado pelo artigo 59 do Código Penal temse como desfavoráveis as diretrizes concernentes à culpabilidade motivos consequências circunstâncias aditandose a defraudação da confiança alusiva ao modo como trabalhado o comportamento das vítimas Acusados sem antecedentes com conduta social abonada exsurgindo sem análise a personalidade Estou longe como disse daqueles que preconizam critérios matemáticos para o cálculo das penas visto que há variação de peso em cada caso concreto no que descrito no artigo 59 do Código Penal Isto é pode se apresentar um caso em que a quantidade de antecedentes de um réu é tão expressiva que no limite dada a neutralidade de todas as demais diretrizes equiparálo a outro acusado que possua um ou outro registro que preencha o conceito de maus antecedentes será um equívoco Este é apenas um exemplo entre tantos mas que se faz registrar visto que mais claramente evidencia o argumento Seja como for estimado que fosse o intervalo numérico da pena do 54 BARYLICK John Killer Show p 166 55 COMTESPONVILLE André Pequeno tratado das grandes virtudes Tradução de maria Bragança Lisboa Editorial Presença 1995 p 115 31 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 homicídio em quatorze anos dado o mínimo de seis e o máximo de vinte anos cominados numa conta simplificada cada qual das circunstâncias judiciais equivaleria a algo como um ano e nove meses Repito tudo aqui aproximadamente e observandose que o Direito Penal não é operado por máquinas e nem se dirige a elas No que se seguiria a um cálculo matematizado havendo cinco circunstâncias judiciais desfavoráveis isto implicaria uma pena próxima aos quatorze anos e nove meses A matemática todavia não se afigura a melhor conselheira Devem ser referidas neste momento as constantes decisões do Bundesgerichtshof BGH que desde o ano de 195456 vem de adotar a assim chamada teoria das margens de jogo Spielraumtheorie a qual em linhas gerais assinala que o juiz na fixação da pena atentará fundamentalmente à finalidade de retribuição da culpabilidade57 resultando a sanção do sopesamento dessa diretriz a outros indicativos também calcados numa vertente secundária de prevenção De notarse que a Spielraumtheorie compreende que a fixação da pena é tarefa predominantemente cabível ao juiz do processo58 compreendendo aceitáveis sanções estabelecidas dentro de determinadas margens de jogo o que em nosso país adquire enorme relevância porque implica no fim numa limitação ao poder de reforma da decisão neste ponto pelos tribunais Parece evidente que uma insistente atividade de mudanças das decisões de primeiro grau pelos tribunais ainda que para o efeito de reduzir ou aumentar penas em patamares pouco significativos cria uma expectativa de vantagem ao manejo de recursos estimulando que em suma de toda e qualquer decisão judicial sejam interpostas variáveis e infindáveis irresignações Quadro similar não é experimentado noutras plagas e como corolário os sistemas respectivos atuam no sentido de privilegiar e não infirmar a decisão tomada pelas instâncias inferiores máxime aquelas que mais de perto 56 BGHSt 728 57 STOCO Tatiana Culpabilidade e medida da pena uma contribuição à teoria de aplicação da pena proporcional ao fato São Paulo Marcial Pons 2019 p 43 58 TEIXEIRA Adriano Teoria da aplicação da pena fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato São Paulo Marcial Pons 2015 p 43 32 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 atuaram na colheita de provas para o processo Em última análise assim associando essas duas perspectivas quais sejam a de fixação de um peso prévio a cada qual das circunstâncias judiciais com a vertente de uma certa margem para a avaliação casuística pelo juiz do processo o que se tem é a necessidade de o ensejo de aplicação da pena observar uma escala valorativa que passe pela singularidade do fato sem olvidar as dimensões envolvidas dos infratores e das vítimas bem como que essa pena se situada dentro de uma aceitável margem de jogo ou seja dentro de uma entre várias fração numérica congruente com os parâmetros do caso seja respeitada pelas instâncias recursais as quais evidentemente manterão o seu poder de sindicar e alterar aquelas penas que para mais ou para menos estiverem fora da fração fora da margem de jogo alvitrada como concernente à situação concreta No caso dos autos de tudo quanto foi avaliado e tomandose em linha de conta as próprias funções da pena em sua dimensão de retribuição e prevenção afiguraseme que a pena base do réu ELISSANDRO considerada a maior expressividade de sua atuação na Boate a revelar culpabilidade mais exacerbada há de ser fixada em 15 anos de reclusão sendo a do acusado MAURO dada a sua atuação menos intensa nada perto de irrelevante ou de menor importância apenas menos intensa é o que estou a dizer fixada em 13 anos de reclusão sendo essa a mesma pena base para cada qual das tentativas de homicídio Para os acusados MARCELO e LUCIANO as penas dos homicídios vão fixadas na especificidade de sua situação considerado o artigo 59 do Código Penal em 12 anos de reclusão patamar que se fixa em termos equivalentes para cada uma das tentativas de homicídio As diversas tentativas de homicídio apresentaram dissonâncias quanto à proximidade para com a consumação mas a asserção tão corriqueira de que é essa a relação com a consumação vale por dizer o tanto que se haja avançado no iter criminis o único critério tendente à fixação da minoração de pena carece de alguma rediscussão A adoção desse alvitre com efeito no que exclusivamente observa o aspecto objetivo relacionado com a proximidade da consumação atrela o critério da pura sorte para a determinação da pena final ao acusado Aquele que 33 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 efetuasse tão somente um disparo de arma de fogo com baixo calibre e acertasse o pé de seu alvo acabaria por ser mais gravemente punido que o indivíduo que munido de um fuzil efetuasse diversos tiros não acertando contudo nenhum deles Não parece razoável o acolhimento apenas desse critério objetivo o qual aliás não se extrai da lei senão de uma construção jurisprudencial sedimentada no tempo e todavia há muito não discutida Vejase que a explicar o critério adotado na análise do crime na forma tentada Zaffaroni e Pierengeli59 possuem entendimento mais consistente pois assinalam que a diminuição da imputação da tentativa caminha sempre numa relação proporcional à imputação que seria dada ao delito se perfeito fosse e em relação à qualidade e quantidade da própria tentativa A qualidade determina o grau maior ou menor da força moral da tentativa a quantidade grau da força física Podese apontar portanto a insuficiência de aludirmos unicamente ao risco de consumação empreendido ao bem jurídico para fins de atenuação de pena a observação deve abranger a potencialidade do ato para a realização típica em sua inteireza e dirseia que a culpabilidade em seu sentido mais profundo de reprovabilidade da conduta deve aparecer como critério adicional para fins do cálculo da pena a partir da incidência dessa peculiar causa de diminuição Vale dizer destarte que mesmo a tentativa branca em certos casos pode implicar numa redução mínima pensemos na pluralidade de tiros de fuzil direcionados a alguém que não é atingido ao passo que o risco extremado de morte pode igualmente levar à máxima redução suponhamos um disparo de arma de fogo apenas que não obstante atinja a perna da vítima levea a uma complexa cirurgia cuja probabilidade de óbito seja imensa A tentativa em suma não deixa de trazer a discussão filosófica sobre a sorte para o centro do Direito Penal Há poucos registros sobre o estudo da sorte em termos de Direito Penal VILLAR em monografia inteiramente dedicada ao tema assinala para o que se afigura relevante neste caso que en este sentido lo 59 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Da tentativa Doutrina e Jurisprudência 6ª ed São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2000 p 129 34 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 que separa la tentativa acabada de la consumación es la suerte por lo cual la distribución de castigo penal se basa en essa diferencia El fundamento del castigo es para este autor la peligrosidad de la conducta que se refleja en el merecimento de pena E prossegue para dizer que Esta surte moral por los resultados puede eliminarse con una reconstrucción del mundo no del sujeto como pretendem los subjetivistas la aplicación de contrafáctos a través del recurso a mundos posibles más cercanos al actual permite reconecer los juicios de imputación que se encuentran influidos por la suerte en los resultados y depurarlos adecuadamente para no castigar al agente parcialmente inocente60 Portanto o que se quer assentar é a necessidade de se incrementar o critério jurisprudencial em voga no país em ordem a não se limitar a avaliação do quantum de redução de pena da tentativa ao grau de proximidade da consumação o qual ademais em certas hipóteses não deixa de consistir em pura especulação Os demais elementos tendentes à fixação da pena base máxime a culpabilidade possuem capacidade de rendimento no sentido de serem implicados na análise da tentativa sobretudo pela circunstância já aí normativa de que a pena deve cumprir as funções de prevenção e repressão do crime os quais devem ser atendidos outrossim quando da fixação da pena final No caso concreto mostrase inolvidável que nas mesmas condições em que alguns dos homicídios não ultrapassaram a fase do conatus mais de duzentos e quarenta pessoas pereceram tudo a indicar a gravidade do risco a que foram submetidas as vítimas sobreviventes sendo de somarse a isso ainda a avaliação já realizadas quanto à culpabilidade dos réus Com isso para todos os acusados a causa de redução da pena da tentativa no concernente a cada um dos homicídios que não atingiram a consumação darseá na base de um terço menor fração possível aqui aplicada em conta das considerações precedentes Com isso para o réu ELISSANDRO a pena de cada uma das tentativas de homicídio vai fixada em 10 anos de reclusão para o acusado MAURO a pena de cada uma das tentativas de homicídio vai fixada em 08 anos 08 meses de reclusão e para os réus 60 VILLAR Mario Surte penal un estudio acerca de la interferencia de la suerte en los sistemas de imputación 1ª ed Buenos Aires Didot 2016 p140 e 210 35 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 MARCELO e LUCIANO a pena de cada uma das tentativas vai fixada em 08 anos de reclusão Os crimes aqui versados homicídios e tentativas de homicídio foram cometidos inequivocamente sob o pálio do concurso formal no modo como instituído pelo artigo 70 do Código Penal Isto impõe que se aplique apenas a mais grave das penas com o acréscimo previsto na lei cuja variação depende do número de infrações cometidas Na espécie tudo autoriza que o aumento se dê no patamar máximo qual seja o da metade considerados o expressivo número de vítimas fatais e a elevada quantidade de tentativas de homicídio Assim alcançamse as penas definitivas que para o réu ELISSANDRO vai fixada em 22 anos e 06 meses de reclusão para o réu MAURO serão de 19 anos e 06 meses de reclusão ao passo que para os acusados MARCELO e LUCIANO serão de 18 anos de reclusão Notem que num sistema de execução das penas como o brasileiro não se está a estabelecer nenhuma demasia Sendo a condenação por crimes que não ostentam a designação de qualificados como assentei anteriormente com 16 ou 25 das penas consoante o entendimento a ser adotado pelo juízo das execuções acerca do elemento violência na forma da redação atual do artigo 112 da Lei de Execução Penal poderão os acusados ora condenados alcançaram progressão de regime restabelecendo o convívio social em algo que variará entre 2 anos 10 meses e 21 dias na mais branda das hipóteses patamar de 16 para a menor pena aqui fixada e 05 anos 07 meses e 17 dias na hipótese mais gravosa isto é considerada a mais elevada das reprimendas e o percentual mais elevado de 25 para a progressão sem contar em qualquer caso benefícios prisionais como a remição com capacidade de diminuírem em praticamente um terço cada qual destes patamares Logo tratase de resposta punitiva que se pretende racionalizada equilibrando os riscos de excessos sem olvidar a perniciosidade equivalente de redundar em pura brandura O regime inicial de cumprimento das penas há de ser o fechado em vista dos patamares aqui fixados vii Fixadas as penas de cada qual dos réus exsurge tema de 36 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 singular relevância concernente à viabilização de decretação da prisão dos acusados até então em condição de liberdade na medida em que condenados pelo Tribunal do Júri Na espécie tudo pareceria simplificado levandose em conta as penas fixadas numa leitura textual do artigo 492 I e do Código de Processo Penal segundo o qual em caso de condenação o juiz no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 quinze anos de reclusão determinará a execução provisória das penas com expedição do mandado de prisão se for o caso sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos Na mesma esteira somase a normatiza que estabelece para tais casos que o apelo do condenado ostente exclusivamente o efeito devolutivo não o suspensivo Não é suficiente contudo a exposição do ditame legal Cabe explicar o seu fundamento e deixar demarcado o porquê neste caso como em vários outros de julgamento pelo Júri ainda antes do advento deste dispositivo legal sempre entendi pela execução provisória da condenação exarada pelo Tribunal popular Para começar a condenação aqui estabelecida sabese tem via de apelo estreita porquanto a decisão proferida pelo Júri é inalterável só podendo ensejar quando muito um novo julgamento dada a natureza constitucional de sua instituição e a soberania dos veredictos Sobretudo quando da decisão de pronúncia houve recurso pela Defesa o qual ao manter a remessa do acusado a Plenário intuitivamente revelou presentes indícios de autoria parece certo que com a condenação e já sendo firme o juízo do Tribunal sobre os indícios de autoria tanto que mantida a pronúncia pelo mérito qualquer recurso não ensejará provimento O contrário desvirtuaria a lógica Noutros termos e voltados os olhos a este caso concreto é seguro dizer por imperativo lógico que nenhum Tribunal poderá confrontar a decisão dos jurados no que assentado o dolo eventual na conduta dos réus do mesmo modo desembaraçar a autoria afirmada é algo que exsurge interditado no exame de recursos pela singular circunstância de que acerca destes temas houve decisão categórica do Júri órgão constitucionalmente competente para o efeito decisão essa precedida de avaliações do Tribunal de Justiça e do próprio Superior Tribunal de Justiça os quais para além 37 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 dos limites cognitivos impostos pela atribuição constitucional do Júri adstringemse àquilo que eles próprios no momento oportuno decidiram Numa palavra se foi dito haver indícios de autoria indícios de tipificação dolosa e isso tudo é afirmado pelo Júri seria um contrassenso terrível afirmarse que em alguma medida a decisão dos Jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos Não é sem razão que em julgamento recente por maioria de votos a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 118770 relator para o acórdão o Ministro Roberto Barroso desenvolveu a tese de que sendo a rigor inalterável a decisão condenatória do Tribunal do Júri poderseia a partir de então deflagrarse a execução da pena com a prisão do acusado em Plenário Há muitos anos repito sustento a imediata execução da pena após a condenação pelo Júri entendimento agora balizado pela lei e pelo Supremo Tribunal Federal embora deva ser dito que tal qual ocorreu no caso concreto se me afigure como premissa para tanto tenha havido recurso da decisão de pronúncia o que só por si no tangente à viabilidade da autoria terá passado pelo duplo grau de jurisdição Conforme referido alhures num outro enfoque é preciso também na linha do entendimento de HÖRNLE compreender que a atribuição de culpa enseja um juízo de desaprovação que outrossim se apresenta como uma mensagem para a vítima ou para seus familiares o que digo eu estará jungido não somente ao resultado dos julgamentos mas também às providências que lhe são correlatas Ou seja a condenação contém um juízo sobre a extensão dos direitos da vítima e sobre a demarcação de sua esfera frente à ação do ofensor assinalando então que a vítima não necessita aceitar a conduta que violou um direito seu61 HÖRNLE a partir disso critica um modo de conceber a pena pautado exclusivamente num cálculo instrumental de eficiência na medida em que este 61 HÖRNLE Tatjana Die Opferperspektive bei der Strafzumessung In Die Stellung des Opfers im Strafrechtssystem Neue Entwicklungen in Deutschland und in den USA Bernd Schünemann und Markus Dirk Dubber Hrsg Köln Berlin Bonn München Carl Heymanns Verlag KG 2000 p 175200 38 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 olvida um cogitável direito da vítima em relação à punição do delinquente62 ESER igualmente refere que o delito se deve compreender não apenas como uma lesão geral ao Direito senão como ademais uma violação de interesses concretos de maneira que a correspondente sanção necessita mais além de finalidades estatais genéricas atender à reparação individual consoante o ponto de vista da vítima que pois mostrarseia como parte essencial da sanção penal63 Na medida em que proferido juízo condenatório de estreita possibilidade de modificação pelo Júri contraria a intuição elementar e portanto as expectativas fundadas do lesado e de seus familiares a potencial extração em favor dos réus da mesma condição que eles familiares ostentavam ao ingressar no Plenário de julgamento qual seja a da liberdade Inexplicável pois para o senso comum que o acusado condenado pelo Júri mormente quando a pena é expressiva tenha para si nenhuma consequência após o julgamento como se nenhum julgamento tivesse havido Isto para não dizer de modo sintético e como puro obter dictum que a ciência dos réus quanto à condenação e à margem quase nenhuma para a sua mudança implicam à guisa de id quod plerumcque accidit um risco inescondível de evasão ou fuga que se não pode desconsiderar Por tudo isso merece referência mais uma vez a decisão preferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 118770 Ementa DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL HABEAS CORPUS DUPLO HOMICÍDIO AMBOS QUALIFICADOS CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI SOBERANIA DOS VEREDICTOS INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA POSSIBILIDADE 1 A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida art 5º inciso XXXVIII d Prevê ademais a soberania dos veredictos art 5º inciso XXXVIII c a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular 2 Diante disso não viola o princípio da presunção de inocência ou 62 HÖRNLE Subsidiarität p 367 63 ESER Albin Rechtsgut und Opfer zur Überhöhnung des einen auf Kosten des anderen Sonderdruck aus Ulrich ImmengaWernhard Möschel Dieter Heuter Hrsg Festchrift für Ernst Joachim Mestmäcker BadenBaden NomosVerlag 1996 p 1023 39 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral no ARE 964246RG Rel Min Teori Zavascki já que também no caso de decisão do Júri o Tribunal não poderá reapreciar os fatos e provas na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri 3 Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos hipóteses incomuns o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso 4 Habeas corpus não conhecido ante a inadequação da via eleita Não concessão da ordem de ofício Tese de julgamento A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri ainda que sujeita a recurso não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou nãoculpabilidade Não desconheço as discussões que se seguiram ao precedente bem como por evidente não estou a olvidar o tratamento que o tema vem recebendo em decisões do Superior Tribunal de Justiça as quais embora num sentido diverso merecem todo respeito De dizerse contudo que num exame não exauriente de variadas decisões em muitos casos o que se colhe é a asserção de que embora deveras imodificável pelo mérito as decisões do Júri isto não inibiria o reconhecimento de nulidades processuais a impedir então a concretização da prisão Ora data venia o argumento da nulidade está colocado erradamente porque a rigor nulidade corresponde ao descumprimento das normas legais e neste aspecto a presunção que se estabelece é a de que o magistrado ou magistrada condutor de processos de Júri atuou em conformidade com os ditames normativos e não os afrontando Quando se diz que pela virtualidade de um processo ser nulo não se pode dar a devida consequência à decisão no fundo instituise ainda que involuntariamente um desprestígio exacerbado à atuação da magistratura de primeiro grau como se propendesse na regra ao cometimento de nulidades e não ao esforço tendente à efetiva marcha de seus processos Parecem muito importantes as linhas traçadas pelo Ministro Luís Roberto Barroso no voto que proferiu no RE 1235340 em que a matéria vem sendo discutida no Supremo Tribunal Federal É de se notar que para o Ministro Barroso sequer se haveria de cogitar da baliza imposta qual seja a de a condenação 40 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 suplantar os quinze anos para viabilizarse a execução provisória das decisões do Júri In verbis 42 Conquanto as modificações introduzidas pelo Pacote Anticrime reforcem as conclusões centrais desenvolvidas neste voto sobre a exequibilidade das condenações do júri e a ausência como regra geral de efeito suspensivo ao recurso de apelação não há como negar que a nova redação do art 492 do CPP impôs limitação indevida 15 anos de reclusão para que seja possível dar concreção à soberania do Júri 43 A redação original do Projeto de Lei nº 8822019 apresentado pelo Poder Executivo não estabelecia qualquer tipo de limitação temporal à observância das decisões do Júri Ao contrário disso teve como objetivo central fazer inserir na legislação processual penal a orientação jurisprudencial adotada por esta Corte a partir do HC 118770 para o qual fui designado redator para o acórdão julgado pela Primeira Turma em 07032017 No ponto específico a proposição legislativa levou em consideração a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e a usual gravidade em concreto dos crimes por ele julgados e que justificam um tratamento diferenciado Todavia ao final do processo legislativo na forma de substitutivo ao Projeto de Lei 10372A de 2018 fezse inserir na nova redação do art 492 do CPP o limite mínimo de 15 anos de reclusão para a execução da pena em que pese desacompanhada da respectiva justificativa 44 A ideia de restringir a execução imediata das deliberações do corpo de jurados ao quantum da resposta penal representa em última análise a relativização da própria soberania que a Constituição Federal conferiu aos veredictos do Tribunal popular Se de fato são soberanas as decisões do Júri não cabe à lei limitar a concretização e o alcance dessas mesmas deliberações Limitar ou categorizar as decisões do Júri além de contrariar a vontade objetiva da Constituição caracteriza injustificável ofensa ao princípio da isonomia conferindo tratamento diferenciado a pessoas submetidas a situações equivalentes 46 Em síntese o fundamento da exequibilidade das decisões tomadas pelo corpo de jurados não está no montante da pena aplicada pelo 41 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 respectivo Juizpresidente mas na soberania conferida aos veredictos do Tribunal popular por vontade expressa do texto originário da Constituição Por esse conjunto de razões deve ser conferida interpretação conforme à Constituição com redução de texto para excluir a limitação de quinze anos de reclusão contida nos seguintes dispositivos do art 492 do CPP na redação da Lei nº 139642019 i alínea e do inciso I ii parte final do 4º iii parte final do inciso II do 5º Embora convirja para o alvitre de que o balizamento da pena é mesmo equivocado não o reputo afastado do nível das opções legislativas e mais ainda como já frisado entendo que ter havido recurso da decisão de pronúncia se afigura como um critério importante para fazer despoletar a segregação após a decisão do Tribunal do Júri Seja como for neste mesmo RE há o importante voto do Ministro Dias Toffoli que a par de concluir que entendo desde sempre que nos crimes julgados pelo tribunal do júri em razão da estatura constitucional desse órgão do Judiciário mormente a soberania dos vereditos a condenação deve ser imediatamente cumprida ainda acentuou que no caso dos crimes dolosos contra a vida mais notoriamente nos de homicídio a celeridade da resposta penal é indispensável para que a Justiça cumpra o seu papel de promover segurança jurídica dar satisfação social e cumprir sua função de prevenção geral É de geral sabença que este julgamento no Supremo Tribunal Federal ainda não se concluiu havendo voto em sentido contrário do Ministro Gilmar Mendes Eis o quadro desde sempre este subscritor entendeu pela exequibilidade das decisões do Júri máxime já tendo havido desprovimento de recurso da pronúncia há lei expressa viabilizando a execução da condenação superior a quinze anos como na espécie nos casos do procedimento de Júri há precedente do Supremo Tribunal Federal neste sentido e na discussão mais recente em RE dois votos favoráveis à tese já foram proferidos constituindo até essa altura maioria Presumese a constitucionalidade das leis Há de se prestar 42 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 reverência às vítimas e aos familiares dos que pereceram conferindo mínima efetividade a um julgamento que acontece muitos anos após os fatos Até quando esperar se refutado este ponto de vista A trilha recursal das múltiplas instâncias brasileiras já foi percorrida após a conclusão da primeira fase do procedimento e sê loá novamente parece induvidoso mormente se o manejo de recursos for a garantia de que durante a sua tramitação os acusados não sofrerão quaisquer consequências Isto tudo não se pode aceitar Cumprir a lei presumila constitucional seguir precedente do Supremo Tribunal estar de acordo com votos de Ministros tratar vítimas familiares e sobreviventes com consideração e respeito reputando justa a sua reivindicação por algum grau de punição tudo isso não se pode afigurar desarrazoado O processo penal não pode servir exclusivamente àqueles que claudicam que delinquem que violam as leis Dadas todas essas considerações estou determinando a imediata execução das penas impostas aos acusados de maneira que em seu desfavor devem ser expedidos os competentes mandados de prisão Presos que sejam os réus formemse os PECs provisórios Observase que não é necessário o uso de algemas na prisão dos acusados os quais deverão ser tratados com dignidade Após o trânsito em julgado lancese o nome dos réus no rol de culpados formemse os PECs preenchase e enviese o BIE e comuniquese a condenação ao TRE Ao término da leitura dessa decisão recebi a notícia acerca da concessão da liminar em habeas corpus preventivo impetrado pela Defesa de ELISSANDRO estendendose os efeitos aos demais réus MAURO MARCELO e LUCIANO de modo que mantenho a decisão porém suspendo a execução da pena Publicada na Sessão com os presentes intimados Porto Alegre 10 de dezembro de 2021 ORLANDO FACCINI NETO JuizPresidente 43 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 A sentença em tela referese ao emblemático caso da Boate Kiss ocorrido em 2013 o qual julgou e condenou os réus Elissandro Callegaro Spohr Mauro Londero Hoffmann Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão pelo crime de homicídio qualificado pela morte de 240 pessoas na tragédia de Santa Maria O julgamento se deu pelo Tribunal do Júri sendo a sentença de natureza condenatório resultado do julgamento do órgão aplicando as respectivas penas O texto do juiz além de tratar da condenação em si faz uma crítica substancial ao sistema judiciário brasileiro especialmente ao Tribunal do Júri já que para o magistrado o procedimento do Júri que em crimes de homicídio doloso é obrigatório é um dos menos alterados desde a criação do Código de Processo Penal em 1941 fazendo uma critica ao sistema recursal e coloca lentidão a prestação jurisdicional como ocorreu com a decisão de pronúncia no presente caso que durou 7 anos para que viesse a julgamento pelo Júri A crítica central é que em casos de homicídio o bem jurídico mais importante a vida é também o que enfrenta maior dificuldade de julgamento de modo se faz necessário uma revisão no procedimento do Júri sugerindo que a pronúncia a decisão que admite o julgamento pelo Tribunal do Júri deveria ser irrecorrível para acelerar o processo e garantir uma resposta mais célere à sociedade Conforme ensina Aury Lopes Jr em Direito Processual Penal O sistema recursal brasileiro é sem dúvida um dos mais permissivos do mundo permitindo que um processo penal se arraste por anos ainda que a prova da materialidade e autoria seja clara Esse excesso de garantias muitas vezes subverte o sentido de justiça já que favorece a impunidade ou no mínimo a ineficiência do Estado em prover uma resposta rápida ao delito LOPES JR Aury Direito Processual Penal São Paulo Saraiva 2014 Em complemento Nucci afirma O recurso em sentido estrito especialmente em casos de pronúncia muitas vezes serve apenas para prolongar o processo e postergar o julgamento pelo Júri sem que haja uma real violação aos direitos do réu A revisão desse ponto se faz necessária para assegurar maior celeridade no julgamento de crimes dolosos contra a vida NUCCI Guilherme de Souza Código de Processo Penal Comentado São Paulo Revista dos Tribunais 2020 A decisão é uma verdade exposição crítica ao sistema recursal brasileiro do qual o magistrado expõe a vontade de alteração legislativa a fim de que a decisão de pronúncia seja irrecorrível O juiz também aborda o conceito de dolo eventual fundamental para a condenação dos réus explicando que ao contrário do dolo direto no dolo eventual o agente não deseja diretamente o resultado mas assume o risco de sua ocorrência sendo que no caso da Boate Kiss ficou claro que os réus agiram com dolo eventual pois mesmo cientes dos riscos como a instalação de materiais inflamáveis e a realização de shows pirotécnicos em ambiente fechado não tomaram as devidas precauções resultando na tragédia Para Rogério Grecco No dolo eventual o agente não quer diretamente o resultado mas assume o risco de produzilo Há portanto uma postura de indiferença em relação ao bem jurídico tutelado que pode em determinados casos se equiparar em termos de reprovabilidade ao dolo direto GRECCO Rogério Curso de Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro Impetus 2015 A culpabilidade dos réus e intimamente ligada à intensidade do dolo mesmo sendo eventual como elevado o que justifica uma pena mais severa já que a postura dos acusados como proprietários e responsáveis pelo evento foi de indiferença quanto ao risco de morte de centenas de pessoas Além disso menciona que embora o motivo torpe tenha sido afastado em sede recursal os atos dos réus foram motivados por interesses econômicos em detrimento da segurança dos frequentadores O juiz também discorre sobre o papel da pena na comunicação de reprovação social tanto para o ofensor quanto para as vítimas e a sociedade levando a crer que a aplicação da pena adequada é fundamental para transmitir aos familiares das vítimas e à comunidade que o Estado valoriza e protege os direitos violados Outro ponto central da sentença é a avaliação da culpabilidade dos réus que é considerada elevada pelo juiz conforme o artigo 59 do Código Penal para a fixação da pena e no caso da Boate Kiss o magistrado enfatiza que os réus agiram com grave desprezo pela segurança e pelo bemestar das pessoas que frequentavam o estabelecimento No caso dos sócios da boate Elissandro e Mauro o juiz destaca que a busca pelo lucro sobrepôsse às exigências mínimas de segurança já que a instalação de materiais inflamáveis a superlotação do espaço e a falta de treinamentos adequados para os funcionários indicam um desrespeito às normas de segurança que deveriam ter sido seguidas com rigor Além disso a decisão de manter a casa noturna aberta mesmo cientes dos riscos agrava a culpabilidade dos empresários No que diz respeito a Marcelo e Luciano o juiz também critica a conduta irresponsável dos músicos Mesmo conhecendo as características do ambiente eles utilizaram artefatos pirotécnicos inadequados para o local o que foi um fator direto no desencadeamento do incêndio A decisão de deixar o local sem alertar o público para o perigo e a necessidade de evacuação também contribuiu para a condenação dos réus A qualificadora de motivo torpe foi afastada considerando que o lucro financeiro foi o principal motor de ação dos réus priorizando o ganho econômico sendo que tal motivação não é considerada motivo torpe mas padrão para a fixação da pena A sentença também aborda a função expressiva da pena indo além do simples caráter punitivo O juiz argumenta que a pena deve comunicar uma mensagem de reprovação social tanto para os réus quanto para a sociedade como um todo já que a punição segundo o magistrado deve expressar a indignação e o sofrimento das vítimas e de seus familiares além de reafirmar os valores violados pelo crime A decisão cita teorias de juristas como Joel Feinberg e Klaus Günther que defendem que a pena deve ter uma função simbólica transmitindo ao criminoso e à sociedade uma mensagem de desaprovação pela violação dos direitos das vítimas inclusive como alerta para empresários e gestores de estabelecimentos para que adotem todas as precauções necessárias para garantir a segurança de seus clientes A sentença se mostrou um julgamento além da própria função da sentença ou seja de fixar a pena mas também uma exposição de motivos crítica elaborada pelo magistrado que estava evidentemente irresignado com o deslinde do caso em torno do sistema penal brasileiro
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COMARCA DE PORTO ALEGRE 1ª VARA DO JURI DO FORO CENTRAL Rua Márcio Veras Vidor 10 OU Av Aureliano de Figueiredo Pinto snº Processo nº 00122000471710 CNJ00474983520208210001 Natureza Homicídio Qualificado Autor Justiça Pública Réu Elissandro Callegaro Spohr Luciano Augusto Bonilha Leao Mauro Londero Hoffmann Marcelo de Jesus dos Santos Juiz Prolator Juiz de Direito Dr Orlando Faccini Neto Data 13122021 VISTOS ETC O caminho percorrido até aqui revelou variados percalços mas concluído o julgamento pelo Júri colhese agora o ensejo para a prolação da decisão com a qual se fixam as penas e dãose as demais diretrizes Na conformidade da votação realizada pelo Conselho de Sentença declaro condenados os réus ELISSANDRO MAURO MARCELO e LUCIANO e como corolário do veredito passo à aplicação das penas i Antes porém uma breve nota se as dificuldades inerentes do caso da Boate Kiss determinariam por si sós uma tramitação mais alargada do processo contribui para a delonga um sistema recursal que máxime nos procedimentos de Júri carece de urgente revisão O Júri nos oitenta anos de vigência do Código de Processo Penal foi muito provavelmente o tipo de procedimento menos alterado a partir das diversas reformas pontuais tendentes à modernização da legislação Ainda que sejam 1 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 relevantes as mudanças conjunturais o certo é que em termos de estrutura o Júri segue sendo o rito que insere sete pessoas da comunidade para após mais ou menos intensa coleta de provas deliberar sobre o mérito da imputação dos crimes dolosos contra a vida bem como das diversas questões a essa correlatas O panorama dos crimes de homicídio que é a rigor o tipo de infração mais expressivamente ligada ao Júri entrementes tornouse bastante diverso subsistindo não obstante o mesmo modelo de julgamento sem que entre as alterações seja possível depreender algo de mais substancial O diagnóstico que se pode haurir dessa constatação não é favorável No ano de 2019 o Conselho Nacional de Justiça empreendeu esforços na formulação de um Diagnóstico das ações penais de competência do Tribunal do Júri cujos resultados apontam para a preponderância de decisões pela extinção da punibilidade o que em seus termos pode dar sinais da ineficiência do procedimento mormente porque em alguns Estados da Federação esse índice qual seja o de decisões meramente extintivas sem efetivação do julgamento chega perto de sessenta por cento sendo a média nacional próxima de trinta e cinco por cento Mais do que isso gira em torno de sete anos o tempo médio de tramitação das ações penais de competência do Júri com situações locais em que esse lapso temporal muitas vezes aproximase de dez anos considerada a baixa do processo potencializando o vexatório paradoxo segundo o qual a violação do bem jurídico mais relevante entre todos como seja a vida implica na mais alongada forma de prestação jurisdicional tudo em ordem a desacreditar o sistema de Justiça e como parece curial sinalizar proteção insuficiente ao direito fundamental tal como definido constitucionalmente Não surpreende neste quadro que em quase sessenta por cento dos casos tenha se afigurado a necessidade de mais de uma sessão plenária de julgamento para a efetivação do Júri havendo Tribunais em que a multiplicidade de sessões até o desfecho efetivo apresentouse em mais de oitenta por cento das situações Nalguns casos razões diversas como a ausência de testemunhas de jurados sequer viabilizam o início das sessões noutros são as efemérides 2 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 corriqueiras ocorridas durante o julgamento que implicam na dissolução de conselhos e consequente frustração dos trabalhos iniciados Tudo isso parece impõe a cogitação de mais substantivas alterações No caso da Boate Kiss isso tudo se mostrou evidente A decisão de pronúncia concernente à mera admissibilidade do julgamento da causa pelo Júri rendeu vastidão de irresignações num percurso que precisamos frisar provavelmente haverá de ser novamente percorrido já agora com a apreciação do mérito pelos Jurados A demonstrar como nosso processo penal alterouse ao longo das últimas décadas vejamos a definição da pronúncia formulada em sua época por ESPÍNOLA FILHO pronúncia é a sentença em que julgada procedente a denúncia ou queixa é o réu considerado indiciado em infração penal provada na sua materialidade para efeito de com o nome lançado no rol dos culpados e sujeito a prisão imediata ser submetido ao julgamento definitivo pelo tribunal do júri1 Decerto se mostra antiquada a admissão do lançamento do nome do acusado em rol dos culpados antes de empreendido o julgamento bem como a cogitação da prisão pela só razão de prolatarse a decisão de pronúncia Porém superados que foram os equívocos de antanho remanesce a pronúncia como imensa fonte de delonga na tramitação dos processos por crimes dolosos contra a vida máxime porque na quadra atual o desfecho dos casos enquadráveis no âmbito do Júri pode depender do julgamento de oito instâncias jurisdicionais Com efeito prolatada a pronúncia há o recurso em sentido estrito e a partir dele a chamada ao caso dos Tribunais Superiores seja pela via recursal seja pela amplitude dos habeas corpus preclusa a pronúncia e com isso concretizado o julgamento pelo Júri novamente já aí a partir da apelação podem ser percorridas as vias jurisdicionais dos tribunais estaduais Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal Tudo a ensejar inescondível contrassenso já assinalado anteriormente os crimes que violam o mais importante dos bens jurídicos como é a vida são os que têm maiores dificuldades de tramitação e portanto consomem mais 1ESPÍNOLA FILHO Eduardo Código de Processo Penal brasileiro anotado Vol IV 6 ed Rio de Janeiro Editora Rio sa p 243 3 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 tempo para serem julgados Tornar simplesmente irrecorrível a decisão de pronúncia não atentaria contra a competência constitucional do Júri antes lhe prestaria homenagem pois como é evidente caberá ao Júri a efetivação do julgamento muitas vezes suprimida na teia imensa dos recursos atualmente previstos na legislação inclusive à conta do advento da prescrição ou outras causas extintivas da punibilidade Quando não sucedem essas apesar disso temse tamanha dilação temporal entre o fato e a culminância de seu desfecho que as finalidades apontadas para a pena criminal se fazem macular o que se soma ao inegável descrédito do sistema de justiça criminal Suplantarse portanto a possibilidade de recurso da pronúncia prestaria reverência ao Júri convocandoo com mais presteza ao cumprimento de sua missão constitucional e se suspeitamos para muitos a assertiva parecer chocante nunca se pode deixar de anotar a perplexidade para a realização de julgamentos alusivos a fatos ocorridos com quase uma década de antecedência O Direito e sobretudo o Direito Penal não há de voltar os olhos apenas àquele que delinquiu senão que lhe cabe a finalidade de ajustar as expectativas normativas da comunidade evitando frustrações e descréditos que afetam a confiança no sistema de Justiça ii Para ingressar propriamente o campo da fixação das penas imperioso é darse destaque à circunstância de que na espécie desde sempre a imputação versou o designado dolo eventual Para a conclusão que se tirará cumpre sobre isso fazerse algumas considerações Qualifica Damásio de JESUS como teoria normativa pura da culpabilidade aquela que retira o dolo da culpabilidade e o coloca no tipo penal o que indicaria que relacionase com a teoria finalista da ação tudo a ensejar a exclusão de todo e qualquer fator psicológico para o âmbito de sua análise2 Isto poderia ser dito em palavras de ESTEFAM sob a perspectiva de que no âmbito do sistema finalista se identificou a natureza puramente normativa da culpabilidade a qual passou a ser composta de imputabilidade possibilidade de compreensão da ilicitude da conduta e de exigir do agente comportamento distinto 2 JESUS Damásio de Direito Penal Parte Geral 31ª ed São Paulo Saraiva 2010 p 5056 4 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 teoria normativa pura da culpabilidade3 Notem como este pensamento que refutaremos é difundido BITENCOURT em sentido equivalente assenta que uma das mais caras contribuições do finalismo foi a extração do âmbito da culpabilidade de todos aqueles elementos subjetivos que a integravam até então e assim dando origem a uma concepção normativa pura da culpabilidade4 Como corolário expõe o autor que a culpabilidade deste modo alvitrada pode ser resumida como a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez o que assim significaria que a reprovação pessoal contra o agente do fato fundamentase na não omissão da ação contrária ao Direito ainda e quando podia havêla omitido5 Do que ficou consignado resulta que sobretudo na doutrina brasileira temse produzido o equivocado alvitre segundo o qual se está a culpabilidade alijada de elementos de ordem subjetiva transportados ao tipo penal como consectário da abordagem finalista a sua avaliação isto é a avaliação da culpabilidade no ensejo da fixação da pena afigurarseá meramente cosmética E não é inusual deveras que em algumas decisões no momento de estabelecimento das sanções e apreciação acerca das diretrizes do artigo 59 do Código Penal leiamos quando se vai tratar da culpabilidade meramente a fórmula de que o agente era imputável tinha consciência da ilicitude e poderia comportarse de outra maneira O que se pretende demonstrar agora é que ao contrário disso no conceito de culpabilidade tendente à fixação da pena incluemse elementos de ordem subjetiva os quais numa linguagem simplificada e observada a dinâmica do presente caso concreto poderíamos tomar como a avaliação acerca da intensidade do dolo desimportando para o efeito o que também será exposto se se está a falar de dolo direto ou de dolo eventual 3 ESTEFAM André Direito Penal Parte Geral São Paulo Saraiva 2010 p 259 4 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Geral 17ª ed São Paulo Saraiva 2012 p 441 5 BITENCOURT Tratado p 4423 5 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 Se bem que na distinção entre dolo eventual e negligência consciente WELZEL remeta à conhecida fórmula de Frank pela qual a indiferença do autor quanto ao resultado antijurídico se mostra um critério de destrinça6 a verdade é que il dolo di Welzel non è meno cieco e meno spechio riflettente di quello classico in quanto entrambi sono privati della loro radice dinamico emozionale7 e como adverte PALMA a compreensão do que seja efetivamente uma expressão objetiva de vontade susceptível de ser a base de imputação de responsabilidade penal háde exigir mais do que a finalidade formal háde exigir um conteúdo susceptível de ser compreendido pelo próprio agente como uma sua decisão8 Sucede assim que o dolo não se estrutura em termos puramente descritivos e não deixa de revelar um estado de indiferença ou de desinteresse frente aos valores comportados pelo Direito Neste contexto ademais a indiferença aparece como um critério a ser tomado em conta para a sempre difícil distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente De maneira que a antiga formulação de ENGISCH9 segundo a qual o grau de indiferença manifestado pelo agente na violação do bem jurídico faz derivar como dolosa a qualificação de sua conduta porque quem age com dolo eventual manifesta sua indiferença quanto ao resultado no sentido de que se não deixou afetar pela possibilidade de seu advento mantém a sua relevância sobretudo em virtude de contribuir para afastar um excesso de discricionariedade judicial em casos limites Tratase de dizer portanto que a ausência de oposição interna do autor frente à lesão do bem jurídico quando essa a lesão afigurase possível encaminha o dolo eventual o que já não sucederá quando essa probabilidade se 6 WELZEL Hans Das Deutsche Strafrecht Eine systematische Darstellung Berlin Walter de Gruyter Co 1965 p 5870 7 MORSELLI Elio Il ruolo dellatteggiamento interiore nella struttura del reato Padova Cedam 1989 p 66 8 PALMA Maria Fernanda Direito Penal Parte Geral Volume II A Teoria Geral da Infracção como Teoria da Decisão Penal Lisboa Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa 2001 p 15 Do mesmo modo Cf PALMA Maria Fernanda Direito Penal Parte Geral A Teoria Geral da Infracção como Teoria da Decisão Penal Lisboa Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa 2013 p 17 9 ENGISCH Karl Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht Reimpressão Aalen Scientia Verlag 1964 p 175186 6 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 mostra reduzida Por isso que FARIA COSTA expõe com precisão que o merecimento de pena nos casos cometidos sob o pálio do dolo eventual não se encontra na atitude de patente hostilidade para com o Direito mas sim na posição moral e na postura ética de acomodação ou indiferença face o resultado proibido ou seja a ordem jurídica parece querer não só que o agente não tenha uma posição de repúdio e de negação para com os valores que a norma penal cristaliza como também não quer que ele assuma uma posição de indiferença face à violação das normas penais10 Assim é que a ordem jurídica ao fazer com que a indiferença axiológica se equipare à própria e assumida negação dos valores dá conta de que o viver em comunidade não pode ser só o andarilhar nas suas margens mas tem de ser também o mergulhar nas suas raízes11 Tudo a colocar em xeque uma concepção de dolo que esteja calcada na vontade como tantas vezes referido nos debates havidos neste plenário do Júri É que nas intermináveis discussões sobre saberse se é o elemento volitivo o critério determinante à distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente o que surge no fundo é a exaltação da discricionariedade da pura opção ou escolha caracterizada nas palavras de GIMBERNAT ORDEIG como uma aleatória definição sobre se el agente tiene aspecto de facineroso o de buena persona12 Não é outra a manifestação de SANTOS quando aponta que a consequência da aplicação judicial do conceito volitivo de dolo tem sido uma evidente incalculabilidade e manipulabilidade de decisões orientadas conforme os pontos de vista mais aleatórios13 de maneira que parece relevante a asserção de PAGLIARO ao indicar a importância de se observar no comportamento do agente um atteggiamento di disprezzo verso quel bene particolare e concreto che viene 10 FARIA COSTA José de Tentativa e dolo eventual ou da relevância da negação em Direito Penal Coimbra Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia 1996 p 31 11 FARIA COSTA Tentativa p 32 12 GIMBERNAT ORDEIG Enrique Acerca del dolo eventual In Estudios de Derecho Penal Madrid Tecnos 1990 p 253 13 SANTOS Humberto Souza Problemas estruturais do conceito volitivo de dolo In Temas de Direito Penal Parte Geral Luís Greco Danilo Lobato Coord Rio de Janeiro São Paulo Recife Renovar 2008 p 287 7 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 offeso dallevento in questione e explicando no que há de consistir este atteggiamento di disprezzo refere ser decisiva la posizione emotiva del soggeto stesso nei confronti dellevento14 Uma linha semelhante é adotada por PORCIÚNCULA ao assentar a desnecessidade de se perguntar por um querer do agente porquanto quando alguém realiza uma ação consciente de seu significado típico poderseia dizer que essa pessoa quer com a sua ação expressar este significado típico Ora assevera PORCIÚNCULA não há como perscrutar o fundo da alma de um sujeito de sorte que é justamente através do externo ou seja através do comportamento do autor e de suas circunstâncias que se faz possível depreender o sentido exteriorizado de sua conduta15 De notarse que mesmo Armin KAUFMANN que preconiza a inadequação de uma doutrina própria ao dolo eventual assentando ao contrário a necessidade de uma perspectiva unitária por meio da qual se possam traçar as fronteiras entre o dolo e a culpa e assim também demarcar o dolo eventual aponta virtudes à assunção para tal desiderato da indiferença pois a medida da indiferença Maß an Gleichgültigkeit que determina o dolo encontrase não somente no dolo eventual mas também e de maneira elevada no dolo direto16 Não deixa de ser interessante que o profligar da vontade como aqui apontado encontrasse já em Galdino SIQUEIRA alguma inspiração dizia o autor que a identificação do dolo com a intenção ou com a vontade não encontra apoio na moderna psychologia criminal e essa assimilação como dizia resultante da falta de clareza na ideia de vontade acabava por ser fonte de todas as dúvidas e incertezas que com prejuízo para a administração da justiça tem reinado secularmente17 14 PAGLIARO Antonio Principi di Diritto Penale parte generale 7 ed Milano Dott A Giuffrè Editore 2000 p 279 15 PORCIÚNCULA José Carlos Lo objetivo y lo subjetivo en el tipo penal Hacia la exteriorización de lo interno Barcelona Atelier Libros Jurídicos 2014 p 3089 16 KAUFMANN Armin Der dolus eventualis im Deliktsaufbau Die Auswirkungender Handlungs und der Schuldlehre auf die Vorsatzgrenze In Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft Berlin Walter de Gruyter Co 1958 p 72 17 SIQUEIRA Galdino Direito Penal Brazileiro Parte geral Rio de Janeiro Jacintho Ribeiro dos Santos Editor 1921 p 297 8 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 Fosse o caso aqui de fazerse uma recolha de decisões brasileiras e tendo em conta que no Brasil é expresso o Código Penal em seu artigo 59 no sentido de ser a culpabilidade critério a ser observado para a definição da pena aplicável dentre as cominadas bem assim da sua quantidade no âmbito das balizas definidas verseia que a admoestação não deixa de ser atual E assim o é porquanto o conceito de culpabilidade com a rearrumação sistemática que lhe foi própria nalguma medida esvaziouse deixando de lado as particularidades do agente exceto para o fim da convocação de uma sua possibilidade de agir de outra maneira De outra parte e aqui convém aludirse a um registro histórico muito breve o anterior e decaído artigo 42 do Código Penal brasileiro estabelecia expressamente que essa fixação da pena a que acabamos de nos referir darseia a partir da análise pelo juiz de fatores entre os quais se incluíam a intensidade do dolo ou o grau de culpa Na formulação atual da lei brasileira todavia tais critérios não foram repetidos e essa é uma das razões por que invariavelmente essa avaliação ou sequer é referida pela doutrina ou tem a sua possibilidade recusada Este é calha referir mais uma vez o influente autor o entendimento de Damásio de JESUS que sob a premissa de não possuir relevo algum o dolo para a culpabilidade dirá que a partir da reforma penal brasileira de 1984 e sendo o dolo deslocado da culpabilidade para o tipo nenhuma influência tem na aplicação da pena concreta18 Nem precisaríamos chegar ao ponto de com MANTOVANI asseverarmos que a vecchia tesi della non gradualità del dolo è smentita dalla realtà essendo il dolo ontologicamente graduabile19 a questão está em que mais além disso associarse ao dolo a ideia de ser puro dolo natural e ao mesmo tempo despojar da culpabilidade qualquer vestígio deste elemento subjetivo esvazia de conteúdo um e outro conceito dessubjetivandoos Estamos certos de que nesta primeira diretriz de avaliação para a fixação das penas qual seja a culpabilidade cumpre isto sim aludirse à intensidade do dolo de maneira que o fato da vida se aproxima do sujeito considerado que nada 18 JESUS Direito Penal p 336 19 MANTOVANI Ferrando Diritto penale Padova CEDAM 2001 p 339 9 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 do que relatado neste feito ocorreu por acaso E o dolo aqui ainda que inequivocamente se cuide do designado dolo eventual foi intenso Cumpre apontar as razões iii A intuição primeira que se poderia haurir de um cotejo entre o dolo direto e o dolo eventual apontaria para um juízo mais desfavorável do primeiro ou seja o dolo direto em relação ao segundo isto é o dolo eventual O objetivo agora é o de afastar este entendimento assinalando que no nível da punição não há nada que determine ou estimule a cogitação de que o dolo direto é só por si necessariamente mais grave do que o dolo eventual Primeiro por uma razão de ordem normativa Nosso Código Penal ao definir o que são os crimes dolosos limitase a indicar que se cuidam daqueles casos em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzilo De modo que no plano da legislação basta o querer o resultado ou a assunção do risco de produzilo para que se configure um crime doloso que como tal receberá a respectiva sanção Nada aponta para um alvitre segundo o qual o dolo direto afigurarseia mais ou menos grave do que o dolo eventual e num caso como o presente é preciso referir que se está diante da morte de mais duzentas e quarenta pessoas circunstância que na órbita do dolo eventual já encerra imensa gravidade ficando até mesmo difícil supor a possibilidade de que fatos assim ocorram sob a modalidade do dolo direto visto que a produção da morte de tão vasto número de indivíduos quando o agente quer diretamente o resultado muitas vezes se convola noutros tipos penais como seja o terrorismo o genocídio e outros envolvendo um conjunto tão plural de vítimas o que quase permitirá dizer que em situações catastróficas e de produção da morte de um expressivo número de pessoas o dolo eventual já é ele mesmo o elemento subjetivo de maior gravidade porquanto se de dolo direto se tratasse muito provavelmente estaríamos diante de outros modelos de crimes Mas não é só Em termos doutrinários mesmo em terras brasileiras já há aqueles que preconizam simplesmente o abandono da categoria do dolo eventual20 e o fazem por razões que este processo bem é capaz de explicar Com 20 MARTELETO FILHO Wagner HÖRNLE Tatjana Apelo para o abandono da categoria do 10 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 efeito grande parte da discussão travada nos Tribunais acerca dos fatos relacionados a este feito disse respeito a saberse sob qual dos elementos subjetivos estaria vinculada a conduta de cada qual dos acusados Em suma a indagação acerca das controvérsias entre o dolo eventual e a culpa consciente manifestaramse mais uma vez e a solução encontrada nunca desfrutou de unanimidade A questão entretanto é que o julgador nenhum julgador será capaz de colocarse na mente de quem atuou criminalmente para daí inferir qual teria sido o seu elemento subjetivo Nas palavras de RAGUÉS I VALLÈS una aplicación estricta de la idea según la cual sólo resulta legítimo condenar a un sujeto por delito doloso cuando consigan averiguarse determinados datos psíquicos que concurrieron en el momento de realización del comportamiento objetivamente típico hace imposible cualquier condena por delito doloso21 Por isso que segundo VIANA e TEIXEIRA a imputação subjetiva não pode ser determinada a rogo de uma hipotética e insondável postura mental sob pena de se abrir para o autor uma porta de possibilidades de manipulação dos fatos e do direito22 Muito ao contrário portanto o dolo vem de fora num juízo de atribuição que se faz a respeito de tal ou qual conduta Como leciona MARTELETO FILHO o dolo é um juízo e não um objeto de valoração de maneira que a imputação do dolo nunca é portanto um simples derivado de processos psicológicos23 PUPPE na mesma direção aponta que a inserção naquilo que se passava internamente nas reflexões do agente é uma quimera de forma que a asserção do juiz no sentido de que o agente aceitou ou não o resultado não pode ser compreendida como a asserção acerca de um fato psicológico É na realidade uma dolo eventual In Revista Brasileira de Ciências Criminais vol 178 vol 29 São Paulo RT 2021 p 79101 21 RAGUÉS I VALLÈS Ramon El dolo y su prueba en el proceso penal Barcelona Jose Maria Bosch Editor 1999 p 520 22 VIANA Eduardo TEIXEIRA Adriano A imputação dolosa no caso do racha em Berlim comentários à decisão do Tribunal de Berlim em 27 de fevereiro de 2017 In Revista do Ministério Público do Estado de Goiás n 36 juldez de 2018 p 90 Acessível em httpwwwmpgogovbrrevistadadosrevista36revista36dados4html 23 MARTELETO FILHO Wagner Dolo e risco no Direito Penal Fundamentos e limites para a normtivização São Paulo Marcial Pons 2020 p 469 11 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 atribuição24 Importante destacar que essas modernas correntes tendentes à análise do dolo com ênfase no que tem de cognitivo indicam com precisão a base de que partem e é essa mesma base que se mostra crucial para este momento de aplicação da pena Vejamos no ponto as lições trazidas por VIANA para o autor o conceito de dolo como conhecer e querer expressa uma proposta conceitual platônica ambígua circular e vinculada a crenças ingênuas ignorando a prática da imputação subjetiva Assim segundo diz a imputação a título de dolo não tem relação com a postura volitiva psíquica do indivíduo pois dolo não é vontade dolo é representação Destarte somente haveria uma modalidade de dolo sendo despicienda a distinção entre dolo direto e eventual No que cumpriria atinar para a distinção entre o dolo e a culpa de modo preponderante apresentarseia o tratamento punitivo que o legislador apresenta para o dolo e para a culpa25 Segue na mesma linha a concepção de XAVIER GOMES ao asseverar que sendo despicienda a busca pela vontade psicológica na forma que contém todos os elementos para a caracterização da modalidade eventual do mesmo modo temos que admitir a sua incidência no dolo direto já que ambas possuem até identidade de escala penal mesma pena prevista nos tipos ou seja mesmo tratamento pelo legislador justamente por isso segue o autor explicando que sequer nos parece possível argumentar que o dolo direto seria uma modalidade mais gravosa em relação ao eventual o que seria aferível na culpabilidade já que ambas podem se revestir de igual severidade26 Ora num sistema jurídico em que a discussão é transportada para integrantes da comunidade leigos e sem estudos aprofundados em Direito Penal como sucede na consagração do Júri parece adquirir ainda maior relevo o 24 PUPPE Ingeborg O dolo eventual e a sua prova In Estudos sobre imputação objetiva e subjetiva no Direito Penal Beatriz Côrrea Camargo Wagner Marteleto Filho coord São Pauolo Marcial Pons 2019 p 65 Para registro o texto original da autora intitulado Der dolus eventualis und sein Beweis está disponível em httpswwwjurauni bonndefileadminFachbereichRechtswissenschaftEinrichtungenLehrstuehlePuppedoluseventual ispdf 25 VIANA Eduardo Dolo como compromisso cognitivo São Paulo Marcial Pons 2017 p 366 26 XAVIER GOMES Enéias Dolo sem vontade psicológica perspectivas de aplicação no Brasil Belo Horizonte DPlácido 2021 p 162 12 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 ponto de vista segundo o qual o conceito de dolo é considerado em um sentido atributivo não se confundindo com qualquer estado mental nem tampouco com um dado psicológico qualquer como o consentimento ou a aprovação o dolo se atribuiadscreve de acordo com a constatação de determinados indicadores e não se determinadescreve27 Numa palavra o dolo é um conceito jurídico que deve ser ajustado à moldura normativa a partir dessa premissa de ratio punitiva28 ou o que é dizer o mesmo trilhando o caminho descortinado por FARIA COSTA o direito penal considera com a mesma censurabilidade as acções praticadas com dolo directo intencional e as levadas a cabo na postura éticojurídica vulgarmente chamada de dolo eventual29 Grande parte dos debates havidos neste Plenário no fundo concentraramse nessa questão escamoteada pelo protagonismo teórico do indecifrável confronto entre dolo eventual e culpa consciente merecem os acusados uma pena mais elevada como o são a dos crimes dolosos ou são merecedores de uma pena diminuta como é característico dos crimes culposos A decisão dos jurados como se viu inclinouse pela primeira posição muito menos por influxo de um ingresso no âmbito interno de cada qual dos acusados para saberem o móvel psicológico que os norteou mas isto sim por uma demanda atributiva de relacionar aos comportamentos descritos uma consequência jurídica que se apresentava variável quanto à ordem de gravidade cumprindo ao decisor uma definição que de resto foi feita Concluindo essa parte então há de ser demarcado que o reconhecimento do dolo eventual como tal descrito desde a denúncia não impõe qualquer cotejo abstrato com uma situação similar mas realizada sob a forma do dolo direto em ordem a que para o dolo eventual o corolário seja menos intenso Num caso com as singularidades do presente já é o dolo eventual forma grave de 27 MARTELETO FILHO Wagner A normativização do dolo entre o princípio epistêmico e o princípio da responsabilidade In Revista de Estudos Criminais Ano XVIII n 76 Porto Alegre Síntese 2020 p 133 28 VIANA Dolo como compromisso p 366 29 FARIA COSTA Tentativa p 42 13 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 consecução do tipo sem impor balizas quanto à análise minudenciada que se fará quanto à diretriz da culpabilidade Ou seja ainda que se vá expor mais detalhadamente as razões fica uma primeira conclusão a culpabilidade dos acusados é elevada porque intenso o elemento subjetivo com que agiram este mesmo sendo o dolo eventual permite um juízo desfavorável no nível da aplicação da pena juízo que não está limitado por uma ideia de que necessariamente haveria de ser menos gravoso do que o oriundo de um caso cometido com dolo direto Não olvidemos que o alcance da moldura normativa não se afasta de uma premissa de ratio punitiva E isto implica outra ordem de considerações iv Não sendo a pena um mero instrumento de controle é na comunicação de seu caráter de desaprovação e rechaço que se situa o reconhecimento da pessoa a que se há de impor a sanção como pessoa moral trata se deveras do reconhecimento de um significado comunicativo da pena eticamente fundado É a lição de FEINBERG para quem a pena traz consigo este significado simbólico expressive function of punishment no sentido de que ela expressa atitudes de ressentimento sofrimento e indignação e de julgamentos de desaprovação e reprovação por parte da própria autoridade punitiva ou daqueles em cujo nome é imposta30 Na síntese de SALDANHA CAVALCANTE a punição transmite uma mensagem para criminosos e vítimas para aqueles comunicase censura e reprovação do comportamento tomado responsabilizandoos pela ofensa causada Para as vítimas e para a comunidade como um todo comunicase que os valores violados realmente importam que o Estado fala sério quando criminaliza e prevê punição para algumas condutas31 A pena deste modo convoca para o ensejo da punição um elemento de reproche um juízo de censura o qual para VON HIRSCH não deixa 30 FEINBERG Joel The Expressive Function of Punishment In Doing Deserving Essays in the Theory of Responsibility By Joel Feinberg Princeton Princeton University Press 1970 p 118 31 SALDANHA CAVALCANTE Daniel Henrique Punição retribuição e comunicação contributo ao estudo da teoria da pena criminal Dissertação de Mestrado no Programa de PósGraduação em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Porto Alegre versão não publicada 2011 p 70 14 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 de referirse à condição da vítima na medida em que faz expressar que ela a vítima foi injustamente violada por conta de um comportamento alheio culpável o que significa que aquilo que lhe foi ocasionado decorreu de um comportamento desaprovado A reprovação além disso representa uma comunicação com o autor do fato ensejandolhe uma mensagem normativa crítica em relação a seu comportamento daí que a neutralidade da reprimenda acabaria por não expressar desaprovação alguma Marginalmente é certo a pena também confere perante terceiros razões normativas para que seja omitido o tipo de comportamento adotado por aquele que se pune o que se conceberia como um tipo de função agregada de índole preventiva consistente na comunicação de uma razão prudencial prudential reason para a não realização de fatos puníveis32 a qual na espécie ostenta grande relevância na perspectiva de que de ora em avante aqueles que se lançarem em atividades lucrativas relacionadas com a presença de pessoas haverão de adotar as cautelas necessárias para garantirlhes as condições adequadas de segurança HÖRNLE neste mesmo sentido aponta que a atribuição de culpabilidade enseja um juízo de desaprovação o qual se apresenta como uma mensagem para a vítima noutras palavras segundo diz a condenação contém um juízo sobre a extensão dos direitos da vítima e sobre a demarcação de sua esfera frente à ação do delinquente assinalando então que a vítima não necessita aceitar a conduta que violou o seu direito33 A autora a partir disso critica um modo de conceber a pena pautado exclusivamente num cálculo instrumental de eficiência ao qual aludem determinadas correntes na medida em que este olvida um cogitável direito da vítima em relação à punição do criminoso34 Por sua vez GÜNTHER acentua a diferença da pena para outras reações alusivas ao cometimento de crimes efetivamente em conta de seu 32 VON HIRSCH Andrew Retribución y prevención como elementos de justificación de la pena In Crítica y justificación del Derecho Penal en el cambio de siglo el análisis crítico de la escuela de Frankfurt Luis Arroyo Zapatero Ulfrid Neumann Adán Nieto Martín Coord Cuenca Ediciones de la Universidad de CastillaLa Mancha 2003 p 1339 33 HÖRNLE Tatjana Determinación de la pena el papel de una perspectiva de la víctima Tradução de Luis Miguel Reyna Alfaro In Determinación de la pena y culpabilidad notas sobre la Teoría de la determinación de la pena en Alemania Buenos Aires FD 2003 p 88 34 HÖRNLE Tatjana Subsidiarität als Begrenzungsprinzip Selbstschutz In Mediating Principles Begrenzungsprinzipien bei der Strafbegründung BadenBaden Nomos Verlaggesellschaft 2006 p 367 15 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 significado simbólico expressivo symbolischexpressive Bedeutung visto que a experiência das vítimas não pode ser reduzida somente às lesões materiais considerados os diversos sentimentos negativos a sensação de desprezo e degradação que originam uma legitimada demanda satisfatória por parte do indivíduo que sofreu o crime de resto nalgumas situações o cometimento do crime compromete o valor que a vítima atribui à própria vida de sorte que a pena haverá de expressar a reprovação moral ao autor do crime sem deixar de refletir algum tipo de compaixão para com a situação do ofendido Apenas assim a vítima ou seus familiares são reconhecidos como alguém que não padeceu de um mero infortúnio ou fatalidade e sim uma conduta ilícita reprovada pela coletividade35 Ou seja importante é que na aplicação da pena e na definição dos critérios de sua fixação não se afastem os interesses do lesado pois diante da multiplicidade de condutas violadoras das pessoas que somos capazes de realizar em muitos casos está presente a degradação ou mesmo o próprio perecimento da vítima Cumpre porém tornar menos abstratas essas reflexões De certo modo é possível dizer que o esforço em racionalizar a atividade punitiva promoveu a neutralização da vítima36 para a qual se de algum modo sempre se conferiu um papel de subalternidade na dinâmica processual no âmbito da delimitação da resposta estatal para com o crime restava praticamente esquecida No limite o espaço reservado às vítimas mostravase circunscrito às pretensões indenizatórias ou reparatórias37 GUIMARÃES NETO assinala que a reação estatal ao delito deveria encerrar o conflito e fazer o sujeito passivo perceber eventuais ações vingativas como desnecessárias Nesta linha a teoria da pena seria entendida como orientada à finalidade de conter as emoções e sentimentos vingativos da vítima38 35 GÜNTHER Klaus Die symbolischeexpressive Bedeutung der Strafe eine neue Straftheorie jenseits von Vergeltung und Prävention In Festschrift für Klaus Lüdersen zum 70 Geburtstag am 2 Mai 2022 BadenBaden Nomos Verlagsgesellschaft 2002 p 206219 36 GUIMARÃES NETO Silvio Leite Uma teoria da pena baseada na vítima a busca pela satisfação do indivíduo vitimado como finalidade da pena São Paulo Marcial Pons 2020 p 25 37 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 26 38 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 156 16 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 Por isso que a pena que não inflige um mal ao autor de uma conduta grave mostrase contraditória e compromete o significado expressivo da condenação ou dizendo o mesmo com outras palavras a pena desprovida de um ônus tangível conflitaria com os interesses dos indivíduos vitimados por crimes graves pois comprometeria a credibilidade da condenação expressa pelo Estado39 É certo que como pressuposto de observação dos interesses da vítima estará a necessidade de perceber os seus anseios punitivos sem que isso se confunda evidentemente com a transferência da missão de julgar ao próprio ofendido Notem as vítimas não julgam mas empreendido que seja o juízo o seu interesse quanto à extensão da reprimenda não é desconhecido dalguma concepção Na tradição americana por exemplo há a possibilidade da assim chamada Victim Allocution por intermédio da qual podem ser apresentados os impactos do crime em relação ao ofendido bem como narrados os seus sentimentos em relação ao fato ocorrido e ao infrator Victim Impact Statement ou seja oralmente ou por escrito essa declaração consiste em uma descrição dos danos físicos psicológicos emocionais e financeiros da vítima e que tenham ocorrido como resultado direto do crime naturalmente após estabelecido o juízo de condenação40 No livro em que com riqueza de detalhes tratase de situação similar à dos autos ocorrida no The Station Nightclub em Rhode Island EUA o autor explica que a sentencing hearing consists of defense counsels argument urging leniency the prosecutors argument for strong punishment and the defendant s own statement should he wish make one In Rhode Island it may also feature victim impact statement an opportuny guaranteed by the Rhode Island Constitution whereby crime victims may describe to the court the crimes impact on their lives41 Não se pode excluir evidentemente que as exigências da vítima alcancem referencial descompassado com a ordem jurídica como aqueles que afetem 39 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 158 40 In httpswwwjusticegovusaoedcavictimwitnessassistancerightsfelonysentencing acesso em 24 de fevereiro de 2021 41 BARYLICK John Killer Show The Station nightclub fire New England University Press of New England 2012 p 164 17 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 direitos indisponíveis do infrator ou mesmo se mostrem inteiramente desproporcionais com o fato praticado a suplantação destes riscos contudo está na adoção de resto usual em nosso país de um critério que seja objetivo capaz de complementar as singularidades do indivíduo violado qual seja a adoção de limites punitivos mínimo e máximo como tal fixados pela lei42 Dentro dessas balizas entretanto importa reconhecer os impactos do crime para a vítima ou mesmo em certas circunstâncias para seus familiares em ordem a que a censura expressa pela condenação não fique alheia a seus interesses Nos casos de perda de entes como no caso presente a pena criminal há de comunicar aos familiares pais e mães enlutados o grau de respeito que lhes devota o Estado de maneira que arriscar o esquecimento destes dramas pessoais gerados pela prática de um crime implicaria justamente no oposto ou seja numa demonstração de que a ordem jurídica não está a compreender a vítima o sujeito violado com o devido respeito e consideração O sempre presente interesse dos familiares que constituíram até mesmo uma Associação e a constante demonstração de seu sofrimento não podem ser olvidados neste momento Um magistrado que atua no Tribunal do Júri acaba se deparando inumeráveis vezes com pais ou mães que comparecem em audiências ou plenários chorando a morte de seus filhos Isto entretanto nunca pode ser naturalizado e mais que isso parece potencializado quando a experiência da morte deixa de ser algo individual para constituirse numa dimensão coletiva Foram mais de duzentos e quarenta mortos e a expressividade do número de vítimas não divide ou arrefece as dores ou tragédias pessoais multiplicaas v E aqui surge uma questão relevante Normalmente após a análise de cada uma das diretrizes do artigo 59 do Código Penal chegase num número à guisa de penabase Este cálculo nunca há de ser matemático e quanto mais a jurisprudência inclinase por sua força aritmética mais se distancia da dimensão axiológica que é fundamento do Direito Penal De todo modo haverei de proceder na indicação precisa dos elementos do artigo 59 do Código Penal que nortearão a fixação da penabase contudo antes para um dado muito significativo 42 GUIMARÃES NETO Uma teoria da pena p 202 18 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 almejo chamar a atenção Como reagiria cada pai ou mãe enlutado cada familiar que perdeu seus filhos ou filhas se lhes fosse dito que como corolário dessa perda suprimirseá um mês da liberdade dos réus Pois notem são mais de duzentos e quarenta famílias que por anos esperam uma resposta do Estado e a concretização daquele valor abstrato que designamos por JUSTIÇA e numa modelagem legislativa em que é cediça a presença do concurso formal numa modelagem típica que alude ao homicídio sem qualificadoras mesmo um estudante de Direito será capaz de especular que para cada vida perdida não será extirpado muito mais do que um mês da liberdade de cada um dos acusados E isto sem considerar que com o cumprimento de pequena fração da pena já poderão progredir de regime tudo a viabilizar se cogite de uma retomada relativamente rápida de suas vidas com a possibilidade de conviverem com os seus de viajarem de estudarem de trabalharem de conhecerem pessoas de terem as experiências que são tão maravilhosas no curso de nossas vidas e que todavia nenhuma delas as terão as vítimas as mais de duzentos e quarenta vítimas Vejam que o percentual da progressão de regime na espécie variará e o refiro à guisa de obter dictum pois o tema alude à execução penal entre 16 ou 25 se se considerar que o elemento violência a distinguir o patamar de que se trate não é necessariamente inerente ao homicídio bastaria lembrar da hipótese de um homicídio por omissão tudo a demonstrar que o alcance de benefícios da execução penal não se fará tarde Este norte retomemos este guia de comunicar às vítimas a seus familiares de que há compadecimento com a sua situação igualmente direcionará a análise que se inicia acerca do artigo 59 do Código Penal Por meio da punição adequada dos réus conota o Estado aos parentes dos que pereceram bem como aos lesados sobreviventes o ideal da consideração e do respeito vi A culpabilidade dos réus é elevada A viabilidade de fazer tal asserção mesmo estando o caso vertente na modalidade do dolo eventual já foi referida anteriormente e não há razão para repetições Do mesmo modo fica reiterado o alvitre quanto à aquilatação da intensidade do elemento subjetivo viabilizada não obstante mais uma vez 19 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 estejamos a tratar do dolo eventual Importa no ponto assentar a pluralidade de deveres normativos descumpridos pelos acusados na medida em que no caso de ELISSANDRO e MAURO determinaram a instalação em paredes e no teto da boate de espuma altamente inflamável olvidando indicações técnicas de uso que em sua condição empresarial deveriam obedecer Mais do que isso empreenderam a contratação de show musical no qual era cediça a utilização de artefatos similares a fogos de artifício sem prestar a devida informação sobre os riscos associados à conjugação destes dois fatores Portanto contribuíram num grau excepcional com a situação de perigo que culminou na causação dos danos verificados Isto para não dizer do fato que aceitaram sem peias manter a casa noturna com lotação demasiada sem que tivessem atuado no sentido de viabilizar adequadas condições de evacuação em casos de necessidade Tudo no processo ademais corrobora a ideia de que coadunaram com a atuação de funcionários sem os treinamentos obrigatórios e no ensejo dos fatos da denúncia chegaram a ainda que genericamente e no início do desdobramento do evento ordenar aos seguranças para que impedissem a saída de pessoas do recinto acaso não demonstrado o pagamento das despesas de consumo na boate Tal conjunto de atos no somatório tendente ao desfecho intensamente fatal que promoveu encerra elevado grau de censurabilidade Com efeito sendo os acusados imputáveis o que parece óbvio dizer a essa altura demais disso é de notar se que máxime em decorrência de sua condição profissional vale por dizer do fato de que auferiam rendimentos dos lucros da boate eralhes imperativo comportamentos diversos em ordem à garantia da segurança daqueles que frequentavam o local Essa mesma condição cumpre dizer torna indiscutível a consciência da ilicitude do comportamento viabilizando juízo desfavorável sobre essa circunstância No concernente aos acusados MARCELO e LUCIANO igualmente o grau de censura é acentuado Não obstante conhecendo o local do fato onde já haviam atuado acionaram os artefatos pirotécnicos que sabiam ou no mínimo deveriam saber serem destinados a uso em ambientes externos sendo que um destes foi direcionado para o teto da boate de modo leviano e insensível o que deflagrou tout court a queima do revestimento inflamável A importância causal 20 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 desta conduta para a produção de tamanho número de mortes é inequívoca e o peso elevado das consequências deve ser suportado por aqueles cujo comportamento foi mesmo decisivo para a eclosão das mortes Sem contar que teriam saído do local sem alertar o público acerca do fogo e da necessidade de evacuação dando à vida dos frequentadores nenhuma importância e egoisticamente buscando preservar a sua De modo que a reprovabilidade é intensa sendo os acusados imputáveis e sendolhes fortemente exigido comportamento diferente daquele que adotaram por ocasião da efeméride No âmbito dos motivos é verdade que a denúncia assinalou quando de seu oferecimento a existência de motivo torpe para cada qual dos acusados havendo ulterior exclusão em sede recursal Seria indevido no ponto aludir aos motivos na forma em que feito na denúncia se bem que deve ficar consignado não estou de acordo com a asserção de que se apresentaria na espécie algum tipo de bis in idem na consideração de dados para a afirmação do dolo eventual e destes mesmos dados à guisa de qualificadora Tem havido muita confusão a respeito do conceito de bis in idem e parece inequívoco que se determinada pessoa desferir múltiplos e intensos golpes de arma branca noutra dessa unidade de sentido extrairseão tanto a sua intencionalidade ao modo de dolo como também a qualificadora concernente à crueldade do meio Enfim seriam variados os exemplos que antecipariam a ideia de que o ne bis in idem corresponde a uma proibição do exercício irracional do poder punitivo dandose por verificada essa irracionalidade quando esse exercício for redundante43 o que não se confunde com a valoração diversificada de dados do crime máxime num sistema jurídico que aí sim problematicamente aceita tout court a cada vez maior variabilidade das instâncias de punição civil penal administrativa etc De igual modo parece despicienda a aproximação da implicação de qualificadoras em nosso sistema àquilo que como consta do voto condutor de sua recusa alude à indicação por seu intermédio de maior censurabilidade ou 43 LEITE Inês Ferreira Ne Idem Bis in Idem proibição de dupla punição e de duplo julgamento contributos para a racionalidade do poder punitivo público Tomo II Lisboa AAFDL Editora 2016 p 831 21 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 perversidade Como sabido este é o modelo das qualificadoras do homicídio empregado no direito português que à cláusula geral da qualificação prevista no n 1 do artigo 132 do Código Penal de Portugal enuncia na sequência peculiares circunstâncias tendentes à evidenciação desse elevado padrão de censura As discussões havidas na doutrina portuguesa a respeito não carecem de indicação aqui sendo de dizerse entretanto que em nosso caso a legislação não aponta para essa análise consistente na perversão o que convenhamos para o modo asséptico como determinados temas são tratados em terras brasileiras seria altamente dificultoso De todo modo no presente ensejo não se está a repristinar a qualificadora afastada Ainda que razões de política criminal expressas ou não tenham conduzido a seu afastamento e nem parece equivocado fazêlo o certo é que a repercussão e o conteúdo da avaliação dos motivos neste momento adquire outra envergadura Com efeito como qualificadoras importariam em dobrar a pena mínima do crime lançandoa aos cediços doze anos já agora influenciam significativamente menos num quadro em que o balizamento da sanção já está estabelecido legislativamente em padrão inferior Assim é que afirmado e reafirmado que não se está a trazer à tona o que foi rechaçado por decisões superiores cumpre dizer que o motivo do crime desfavorece os acusados Os motivos permitem que se conceda uma explicação para as ações motives may explain actions to us prestandose para interpretálas44 de modo que apresentar um motivo equivale a dizer sob que luz deve a ação ser vista to give a motive is to say something like See the action in this light45 Aludem os motivos não apenas no que diz respeito à causação do resultado mas também importante frisar àquilo que direcionou o agente na tomada de tal ou qual conduta E aqui para os réus ELISSANDRO e MAURO que exerciam atividade profissional relacionada com a Boate Kiss o escopo de beneficiar os lucros em desfavor da segurança de seus clientes ressai evidente Deuse primazia à razão econômica desde a aquisição de materiais até a imposição de dificuldades para a saída das vítimas ao 44 ANSCOMBE Gertrude Elizabeth Margaret Intention Cambridge Massachussetts London Harvard University Press 2000 p 19 45 ANSCOMBE Intention p 21 22 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 aspecto do lucro que naturalmente não é em si repugnante quando almejado num quadro de cumprimento dos deveres normativos na espécie isso contudo não sucedeu Variadas ações individualizadas evidenciaram que os riscos acrescidos à integridade dos frequentadores do estabelecimento foram desconsiderados porquanto destarte seguramente ganharseia menos Da parte dos réus MARCELO e LUCIANO ainda que em menor escala a motivação também passa pela mesma ordem de considerações visto que como se demonstrou teriam adquirido e usado artefato pirotécnico de valor significativamente inferior àquele que se afiguraria mais seguro para utilização num local como a Boate Sem contar que no casos destes acusados há ainda uma expressão de futilidade no arriscar tão avassaladoramente os membros de seu público por uma diversão banal dirseia grosseira como a exibição de pirotecnia num lugar fechado Em suma ainda que com a diversidade própria referente à atuação de cada qual na avaliação dos motivos para todos os réus o que se infere não lhes é favorável Cumpre avaliar as circunstâncias peculiares do evento no que repercutem para a fixação da pena Neste âmbito impõese atenção específica à maneira como vieram a perecer as vítimas fatais Os dados do processo indicam sem qualquer margem para dúvida a presença de intenso sofrimento decorrente das razões pelas quais morreram as vítimas Quem num exercício altruísta por um minuto apenas buscar colocarse no ambiente dos fatos haverá de imaginar o desespero a dor e o padecimento das pessoas que na luta por sua sobrevivência recebiam todavia a falta e a ausência de ar os gritos e a escuridão em termos tão singulares que não seria demasiado qualificarse tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura46 o horror o horror Vejamos a título de exemplo o que disse Tulio Magalhães fls 1154911553 Que o pessoal saiu correndo do palco e caiu aquele teto toda aquela fumaça aquela Aí virou uma bagunça Ninguém avisou nada Lá dentro a gente não conseguiu ouvir nem voz assim porque se pensa numa situação nessa é grito né situação de grito e não sei o quê você não conseguia ouvir voz porque se 46 Refirome ao filme Apocalipse Now e ao livro de Joseph Conrad o Coração das Trevas 23 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 você tentasse falar alguma coisa se você tentasse gritar você se queimava entendeu de vez em quando você ouvia um grito mas era um grito meio de desespero como se fosse uma última tentativa da pessoa puxar ar e logo em seguida você ouvia o barulho de alguém caindo de um corpo desfalecendo similar vale conferir o que assentou Heuri Guedes fls 1118911194 J Tu tava sentindo alguma dor V Sim sim Eu queimei os braços assim J Tu ficou ali muito tempo Tu foi embora depois V Eu não tenho noção de tempo assim o que eu fiquei lá dentro mas foi tempo suficiente pra me causar danos né Eu fiquei um bom tempo hospitalizado e em coma induzido também J Te recorda se nesse trajeto tu foi pisoteado V Fui Fui pisoteado e foi uma batalha ali né Porque era muita gente todo mundo querendo se salvar todo mundo querendo sair não tinha estourou a boiada e todo mundo queria sair para algum lugar e aquela fumaça foi cada vez ficando mais quente foi cada vez pior né Aí era gente querendo ir pro banheiro gente querendo sair não tinha um rumo certo pra ir não tinha um rumo certo que dizia saída aqui Eu não tinha essa noção sabe Dr Joel Em quantos amigos mais ou menos vocês estavam lá V Uns dez Dr Joel Desse pessoal que tava contigo todos sobreviveram V Não um monte eu perdi Dr Joel Quando tu tava saindo tu disse que tu lembra de ter pisado em algumas pessoas é isso V Pisei Dr Joel Tu tem ideia assim de onde tu começou a pisar nessas pessoas V Da parede de vidro essa que eu estava eu andei até a metade disso eu tenho consciência eu andei até a metade do bar que é próximo à saída a partir daí então eu caí Aí eu já caí em cima de pessoas Acho que isso aí até a porta deve dar uns três quatro metros eu já caí em cima de gente Dr Joel E tu lembra de pessoas caírem em cima de ti V Sim foi a partir dai que eu lembro de ta brigando pra sair Aí eu me agarrava não tinha o que fazer Dr Joel Em que momento que tu sentiu se tu sentiu que começou a te queimar V Desde o início que eu percebi que era fogo Que eu botava o braço no rosto pra eu tentar não respirar aquilo aí foi queimando aqui o próprio calor já queimava A intensidade do sofrimento é circunstância peculiar dos crimes e o seu reconhecimento sequer há de estar adstrito à cobertura do elemento subjetivo com que atuaram os agentes quem deflagra o processo causal ou seja realiza as 24 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 condutas aptas à eclosão de determinado resultado há de suportar os dados colaterais que lhe sejam respectivos pois se assim não fosse as particularidades e singularidades dos crimes correriam por conta das próprias vítimas e elas são vítimas Em seu livro a respeito do que sucedeu na Boate Kiss ARBEX apontou as imensas dificuldades enfrentadas pelos próprios socorristas relatando o caso de um médico que quando examinou a boca de uma das vítimas uma garota levou um susto uma fumaça preta saía de sua garganta Os olhos estavam completamente brancos queimados e segue jovens morriam na frente de todos uma cena insuportável até mesmo para quem fora treinado para enfrentar situações limite47 O horror o horror Apontase que o tempo de morte estimado dentro da Kiss foi de três a cinco minutos depois de o incêndio ter começado48 e mostrase inexprimível em palavras o tipo de sensação a que foram submetidas as vítimas na antessala de suas próprias mortes misto de desespero com sufocamento misto de desalento e dor Outra circunstância a ser considerada concerne à idade dos mortos e mortas na sua grande maioria pessoas na faixa de seus vinte e poucos anos cheios de expectativas de anseios e sonhos tolhidos e interrompidos à conta dos fatos suprimidos de tudo aquilo que a experiência humana pelo mundo pode proporcionar Importante este aspecto máxime se cotejado com aquilo que dos acusados será retirado em decorrência de suas condutas Todos os réus seguramente terão ainda tempo para cultivar as suas famílias desenvolver as suas amizades viajar conhecer pessoas participar de festas eventos amores e desamores nessa trajetória cheia de mistérios e maravilhas que é a vida Nada disso caberá às vítimas Sequer é possível um cálculo instrumental sobre a idade de cada qual e a expectativa de vida que teriam para chegarmos ao quanto de tempo lhes foi subtraído Basta dizer que é muito e este muito cumpre enfatizar isso não lhes foi 47 ARBEX Daniela Todo dia a mesma noite a história não contada da Boate Kiss Rio de Janeiro Intrínseca 2018 p 20 48 ARBEX Todo dia a mesma noite p 163 25 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 retirado por obra do acaso por um raio um terremoto um tufão ou furacão tratouse de obra humana a exigir do Estado o chamamento à consequente responsabilidade ARBEX no ponto indica tratarse de mais de 9 mil anos potenciais de vida perdidos considerandose a expectativa de vida do brasileiro em torno de 75 anos49 Do mesmo modo são gravíssimas as consequências Primeiro para a própria comunidade de Santa Maria que é fato público e notório resultou deveras abalada em sua estrutura social a partir dos fatos narrados na denúncia Há um luto perene dificilmente reversível e que se expressa no olhar triste de pais e mães que em busca de respostas massivamente compareceram na sessão de julgamento Muito a este respeito poderia ser abordado com o que revelado nos autos Os depoimentos estão aí e transcrevêlos agora parece despiciendo fica a referência de que estão sendo considerados Estarseia a refugir dos padrões de uma decisão judicial se a poesia fosse chamada Suponho que não e neste ponto das consequências trago a música de Chico Buarque citada em plenário durante os debates Pedaço de Mim Oh pedaço de mim Oh metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu Na descrição empreendida por ARBEX muitos pais que reconheceram os filhos mortos no chão frio do Centro Desportivo Municipal perderam a capacidade de trabalho passaram a fazer uso contínuo de remédios ou de álcool e a sofrer de doenças mentais Cinco faleceram posteriormente com problemas de saúde Casais se separaram depois que um dos dois desencontrouse de si mesmo50 As consequências foram pesadas para as vítimas sobreviventes componentes no quadro da imputação veiculada na denúncia do quadro alusivo às tentativas de homicídio Vejam alguns exemplos citados aqui para documentação Ao ser ouvida JÉSSICA DUARTE DA ROSA fl 11769 referiu A A senhora esse seu esclarecimento me fez lembrar o seguinte a senhora teve algum prejuízo 49 ARBEX Todo dia a mesma noite p 104 50 ARBEX Todo dia a mesma noite p 185 26 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 material com medicação internação hospitalar Muito Ainda tenho né Porque eu tenho muitos problemas respiratórios fora todas as queimaduras que eu tenho né então assim gasto Gastei no começo porque como eu disse eu fiquei 30 dias UTI então depois que eu saí ninguém nunca me perguntou se eu precisei de ajuda se eu não vou precisar se eu precisava de remédio então assim gasto ainda com muito remédio respiratório muito antibiótico tomo a cada dois meses eu preciso tomar antibiótico tenho um tratamento todo por trás disso fora as queimaduras assim que eu precisei usar e o hospital do pelo SUS eu consigo assim cirurgias essas coisas eu to conseguindo aos poucos fazer mas eu precisei de órteses pro meu braço tudo isso foi por conta minha e são coisas caras então assim muita gente muita gente mesmo de fora me ajudou inclusive minha faculdade com bolsa com auxílio me ajuda bastante porque eu tenho bastante gasto JAIRO DA SILVA LIMA por sua vez relatou fls 1046710470 Dr Não tem problema o senhor não sabe não tem problema Pra concluir me diga uma coisa que tipo de tratamento o senhor precisou se submeter ou se ainda está se submetendo algum tratamento médico Psicológico pós o incêndio V Eu tive já eu tive lá no CAPS ali na Borges e tudo né porque a gente fica assim com uma coisa que a pessoa carrega pra vida inteira esses fatos que acontecem assim né No caso o tratamento fica muito dificultoso ou a pessoa trabalha e larga de não a vida social dela porque é a realidade é uma né Que se eu fosse uma pessoa que não trabalhasse não tivesse nada não teria condições nem de ter vindo aqui Essa é a verdade que todo mundo acha que é assim então eu acho assim que após o fato tudo que aconteceu alguma coisa foi deixada de lado Seria a parte dos sobreviventes isso foi meio deixado de lado que tem que veja eu acho alguém vai ter que ver isso dá parte dos sobreviventes Porque ninguém disse nada ninguém vai tratar ninguém cinco anos disponível se no caso fosse uma coisa simples né Isso aí é uma realidade que não é uma coisa simples acredito eu Tomara que não mas futuramente ainda acho que alguém que teve lá que teve contato com a fumaça com os gases tóxicos vá a vir quem sabe até falecer Ou ter algumas sequelas maiores disso mas na realidade isso foi um fato que tão deixando de lado e vão deixar até mais V Olha eu fiquei sete dias em casa fazendo tratamento e de atestado já fui várias vezes no PEA e 27 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 coisa tudo Na semana retrasada e na outra já tive duas vezes na mesma semana consultando Faço fisioterapia tomo remédio pra poder respirar o antialérgico a universidade me deu um medicamento que me deram só um dia Só uma vez me deram que seria uma bombinha Até no comercio tá custando 72 reais Se fosse fazer mesmo o tratamento e tudo o que teria que fazer ia ser muito grande justamente seria uma escolha muito difícil de fazer Ou trabalha ou faz o tratamento No caso serviço nenhum se não tive trabalhando direitinho não prestar teu serviço tu sempre tem outro disponível Há narrativas semelhantes em muitas outras declarações como as de THAIS MARDIELI CZAPLA fls 1118011185 e UILIAM DA SILVA VIEIRA fls 1118911194 bem como naquilo que foi colhido na instrução do próprio Plenário do Júri observado por todos Na sessão plenária ademais a vítima sobrevivente KÁTIA PACHECO evidenciou as dores físicas que se abateram sobre si a exigir utilização de morfina bem como as diversas cirurgias que fez para o efeito de colocação de pele dada a extensão das queimaduras os enxertos nalguns casos recusados pela incompatibilidade obrigaram à extração de pele de suas próprias costas em parte não queimada para viabilizar na medida do possível sua recomposição física Muito contundente na mesma linha as declarações de KELLEN FERREIRA cujo corpo traz as marcas dos fatos da denúncia em braços cicatrizados e uma das pernas amputadas na altura do joelho sem contar as múltiplas operações realizadas para enxerto de pele assim como expressivamente o que foi relatado por DELVANI ROSSO cuja manifestação da intensidade da dor sentida não pode ser olvidada e cujo relato de que enquanto desfalecia mentalmente despediase da família e amigos pedindo perdão por qualquer coisa que tivesse feito assinalam a dimensão dramática dos fatos Igualmente exacerbada as consequências advindas ao aspecto físico daqueles que sobreviveram como a título de exemplo pode ser verificado pela passagem seguinte da já citada obra de ARBEX Cara a tua pele está caindo Não cara isto aqui é a minha camisa que deve ter rasgado durante o tumulto Não cara tu estás sem camisa A angústia daquele rapaz fez Gustavo prestar atenção em si mesmo Próximo a um poste de luz conseguiu se enxergar pela 28 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 primeira vez percebendo que a pele de seu braço estava presa apenas pelo pulso51 Num outro livro publicado como corolário dos fatos em apreço há diversos depoimentos de pessoas que se encontravam no local entre os quais o de uma das vítimas que sobre seu caso asseverou fiquei internado 25 dias 10 em coma no HPS Já fiz umas sete oito cirurgias No momento optei por não fazer mais teria mais duas a recuperação é dolorosaA recuperação é meio traumática tive 39 do corpo queimado52 Nesta mesma obra a dimensão das consequências se apresenta insofismável dada a necessidade revelada de prestação de auxílio e suporte aos profissionais que atuaram em benefício das vítimas e familiares vale por dizer os profissionais da saúde nas suas variadas atuações careceram eles também de auxílio profissionalizado considerada a envergadura do drama com que estavam a lidar A atividade consistiu em oferecer suporte teórico e técnico aos profissionais que realizavam o cuidado direto aos sujeitos afetados pelo incêndio incluindo sobreviventes familiares trabalhadores e população em geral53 A avaliação concernente ao comportamento das vítimas exige neste caso duas considerações a primeira do ponto de vista das expectativas que elas as vítimas nutriam ao ingressar no local da denúncia Em algumas declarações feitas em plenário e em oitivas anteriores ficou evidenciada a despreocupação que as vítimas tinham quanto ao grau de segurança envolvido na Boate Kiss Tudo aliás muito natural É que na busca de alguma diversão noturna apresentase o assim designado princípio da confiança vale por dizer supõese que o local em que se está a ingressar esteja conforme as regras tanto que como corolário disso realizase o comportamento de ingresso pelo qual em alguma medida fica o sujeito entregue àquilo que a pessoa ou local que o recepcionam deveriam fazer Dáse o mesmo por exemplo quando adentramos num avião quanto à sua manutenção quiçá num elevador e de certa maneira no âmbito do próprio tráfego viário pois pensemos se não confiássemos no cumprimento das normas pelos demais motoristas o grande 51 ARBEX Todo dia a mesma noite p 25 52 MAFACIOLI Gilson e outros org A integração do cuidado diante do incêndio na Boate Kiss Curitiba CRV Editora 2016 p 19 53 MAFACIOLI A integração do cuidado p 181 29 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 risco aí envolvido muito provavelmente nos impediria de dirigir veículos Nesta linha de argumentação o que se apresentou na espécie na linha primeira do comportamento das vítimas foi a defraudação de legítima expectativa que possuíam no sentido de que cada qual dos acusados na órbita própria de suas incumbências atuasse na conformidade das regras próprias Num outro nível já agora comparativo o comportamento já agora nobre de algumas vítimas implica juízo desfavorável para os acusados Vejam que mesmo no plenário e ainda mais em diversas referências feitas no processo algumas das vítimas pereceram pela circunstância de após terem conseguido sair do local para lá retornaram com o objetivo nada menos que heroico de buscar salvar da morte seus semelhantes tal comportamento no cotejo com aquele adotado pelos réus e mais que isso decorrente de toda a efeméride derivada do comportamento dos acusados faz pungente a necessidade de considerarse aqui como desfavorável aos acusados o comportamento que foi adotado pelas vítimas o seu ingresso no estabelecimento foi motivado por expectativas defraudadas ou como se queira sua confiança foi rompida e ainda aturam com grau de nobreza e verdadeiro heroísmo que no que comparados com o modo de atuação dos acusados torna a conduta destes réus no ponto individualista e portanto egoísta Finalmente uma palavra acerca da circunstância judicial alusiva à personalidade Realmente há uma refração que reputo indevida sobre a indecifrabilidade do que expresso no artigo 59 do Código Penal a este respeito mas convenhamos não é esta a sede adequada para desenvolver argumentos tendentes a refutar entendimento predominante e por isso fica no âmbito da neutralidade essa avaliação Cabe contudo adicionar uma referência Como dito alhures houve nos Estados Unidos já neste século XXI caso semelhante ao presente em que na boate The Station morreram cem pessoas havendo mais de duzentos feridos Apesar de ter havido uma das espécies de acordo vigente no sistema americano plea deal entre a acusação os proprietários do local e o empresário da banda que ali se apresentava e que usando artefatos pirotécnicos ensejou a tragédia coube ao magistrado fixar as penas que vale dizer alcançaram o patamar de quinze anos para dois dos acusados embora com a possibilidade de suspensão após quatro anos de 30 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 cumprimento efetivo Enfim o que importa aqui gizar é que para o sancionamento de um dos acusados principais levou o juiz em conta que este had handwritten individual letters of condolence and apology to each victims family54 A expressão de compadecimento para com as famílias enlutadas por certo distingue traço de personalidade a ser sopesado no ensejo da sentença como se deu na hipótese enunciada Não se está repitase a valorar o inverso no concernente aos réus do processo mas é inolvidável a necessidade de registrar que em todas as páginas em todas as suas manifestações parecem colocarse como destituídos de compaixão por aqueles que faleceram por aqueles que se feriram fazendo preponderar os seus próprios interesses contra qualquer sinal de arrependimento altruísmo remorso empatia ou compaixão Parafraseando COMTE SPONVILLE partilhar o sofrimento do outro não é aproválo e nem compartilhar as suas razões tratase de recusar considerar um sofrimento seja ele qual for como um fato indiferente e um ser vivo seja ele qual for como uma coisa55 Seja como for a personalidade dos acusados não será considerada No quadro normativo delineado pelo artigo 59 do Código Penal temse como desfavoráveis as diretrizes concernentes à culpabilidade motivos consequências circunstâncias aditandose a defraudação da confiança alusiva ao modo como trabalhado o comportamento das vítimas Acusados sem antecedentes com conduta social abonada exsurgindo sem análise a personalidade Estou longe como disse daqueles que preconizam critérios matemáticos para o cálculo das penas visto que há variação de peso em cada caso concreto no que descrito no artigo 59 do Código Penal Isto é pode se apresentar um caso em que a quantidade de antecedentes de um réu é tão expressiva que no limite dada a neutralidade de todas as demais diretrizes equiparálo a outro acusado que possua um ou outro registro que preencha o conceito de maus antecedentes será um equívoco Este é apenas um exemplo entre tantos mas que se faz registrar visto que mais claramente evidencia o argumento Seja como for estimado que fosse o intervalo numérico da pena do 54 BARYLICK John Killer Show p 166 55 COMTESPONVILLE André Pequeno tratado das grandes virtudes Tradução de maria Bragança Lisboa Editorial Presença 1995 p 115 31 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 homicídio em quatorze anos dado o mínimo de seis e o máximo de vinte anos cominados numa conta simplificada cada qual das circunstâncias judiciais equivaleria a algo como um ano e nove meses Repito tudo aqui aproximadamente e observandose que o Direito Penal não é operado por máquinas e nem se dirige a elas No que se seguiria a um cálculo matematizado havendo cinco circunstâncias judiciais desfavoráveis isto implicaria uma pena próxima aos quatorze anos e nove meses A matemática todavia não se afigura a melhor conselheira Devem ser referidas neste momento as constantes decisões do Bundesgerichtshof BGH que desde o ano de 195456 vem de adotar a assim chamada teoria das margens de jogo Spielraumtheorie a qual em linhas gerais assinala que o juiz na fixação da pena atentará fundamentalmente à finalidade de retribuição da culpabilidade57 resultando a sanção do sopesamento dessa diretriz a outros indicativos também calcados numa vertente secundária de prevenção De notarse que a Spielraumtheorie compreende que a fixação da pena é tarefa predominantemente cabível ao juiz do processo58 compreendendo aceitáveis sanções estabelecidas dentro de determinadas margens de jogo o que em nosso país adquire enorme relevância porque implica no fim numa limitação ao poder de reforma da decisão neste ponto pelos tribunais Parece evidente que uma insistente atividade de mudanças das decisões de primeiro grau pelos tribunais ainda que para o efeito de reduzir ou aumentar penas em patamares pouco significativos cria uma expectativa de vantagem ao manejo de recursos estimulando que em suma de toda e qualquer decisão judicial sejam interpostas variáveis e infindáveis irresignações Quadro similar não é experimentado noutras plagas e como corolário os sistemas respectivos atuam no sentido de privilegiar e não infirmar a decisão tomada pelas instâncias inferiores máxime aquelas que mais de perto 56 BGHSt 728 57 STOCO Tatiana Culpabilidade e medida da pena uma contribuição à teoria de aplicação da pena proporcional ao fato São Paulo Marcial Pons 2019 p 43 58 TEIXEIRA Adriano Teoria da aplicação da pena fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato São Paulo Marcial Pons 2015 p 43 32 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 atuaram na colheita de provas para o processo Em última análise assim associando essas duas perspectivas quais sejam a de fixação de um peso prévio a cada qual das circunstâncias judiciais com a vertente de uma certa margem para a avaliação casuística pelo juiz do processo o que se tem é a necessidade de o ensejo de aplicação da pena observar uma escala valorativa que passe pela singularidade do fato sem olvidar as dimensões envolvidas dos infratores e das vítimas bem como que essa pena se situada dentro de uma aceitável margem de jogo ou seja dentro de uma entre várias fração numérica congruente com os parâmetros do caso seja respeitada pelas instâncias recursais as quais evidentemente manterão o seu poder de sindicar e alterar aquelas penas que para mais ou para menos estiverem fora da fração fora da margem de jogo alvitrada como concernente à situação concreta No caso dos autos de tudo quanto foi avaliado e tomandose em linha de conta as próprias funções da pena em sua dimensão de retribuição e prevenção afiguraseme que a pena base do réu ELISSANDRO considerada a maior expressividade de sua atuação na Boate a revelar culpabilidade mais exacerbada há de ser fixada em 15 anos de reclusão sendo a do acusado MAURO dada a sua atuação menos intensa nada perto de irrelevante ou de menor importância apenas menos intensa é o que estou a dizer fixada em 13 anos de reclusão sendo essa a mesma pena base para cada qual das tentativas de homicídio Para os acusados MARCELO e LUCIANO as penas dos homicídios vão fixadas na especificidade de sua situação considerado o artigo 59 do Código Penal em 12 anos de reclusão patamar que se fixa em termos equivalentes para cada uma das tentativas de homicídio As diversas tentativas de homicídio apresentaram dissonâncias quanto à proximidade para com a consumação mas a asserção tão corriqueira de que é essa a relação com a consumação vale por dizer o tanto que se haja avançado no iter criminis o único critério tendente à fixação da minoração de pena carece de alguma rediscussão A adoção desse alvitre com efeito no que exclusivamente observa o aspecto objetivo relacionado com a proximidade da consumação atrela o critério da pura sorte para a determinação da pena final ao acusado Aquele que 33 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 efetuasse tão somente um disparo de arma de fogo com baixo calibre e acertasse o pé de seu alvo acabaria por ser mais gravemente punido que o indivíduo que munido de um fuzil efetuasse diversos tiros não acertando contudo nenhum deles Não parece razoável o acolhimento apenas desse critério objetivo o qual aliás não se extrai da lei senão de uma construção jurisprudencial sedimentada no tempo e todavia há muito não discutida Vejase que a explicar o critério adotado na análise do crime na forma tentada Zaffaroni e Pierengeli59 possuem entendimento mais consistente pois assinalam que a diminuição da imputação da tentativa caminha sempre numa relação proporcional à imputação que seria dada ao delito se perfeito fosse e em relação à qualidade e quantidade da própria tentativa A qualidade determina o grau maior ou menor da força moral da tentativa a quantidade grau da força física Podese apontar portanto a insuficiência de aludirmos unicamente ao risco de consumação empreendido ao bem jurídico para fins de atenuação de pena a observação deve abranger a potencialidade do ato para a realização típica em sua inteireza e dirseia que a culpabilidade em seu sentido mais profundo de reprovabilidade da conduta deve aparecer como critério adicional para fins do cálculo da pena a partir da incidência dessa peculiar causa de diminuição Vale dizer destarte que mesmo a tentativa branca em certos casos pode implicar numa redução mínima pensemos na pluralidade de tiros de fuzil direcionados a alguém que não é atingido ao passo que o risco extremado de morte pode igualmente levar à máxima redução suponhamos um disparo de arma de fogo apenas que não obstante atinja a perna da vítima levea a uma complexa cirurgia cuja probabilidade de óbito seja imensa A tentativa em suma não deixa de trazer a discussão filosófica sobre a sorte para o centro do Direito Penal Há poucos registros sobre o estudo da sorte em termos de Direito Penal VILLAR em monografia inteiramente dedicada ao tema assinala para o que se afigura relevante neste caso que en este sentido lo 59 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Da tentativa Doutrina e Jurisprudência 6ª ed São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2000 p 129 34 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 que separa la tentativa acabada de la consumación es la suerte por lo cual la distribución de castigo penal se basa en essa diferencia El fundamento del castigo es para este autor la peligrosidad de la conducta que se refleja en el merecimento de pena E prossegue para dizer que Esta surte moral por los resultados puede eliminarse con una reconstrucción del mundo no del sujeto como pretendem los subjetivistas la aplicación de contrafáctos a través del recurso a mundos posibles más cercanos al actual permite reconecer los juicios de imputación que se encuentran influidos por la suerte en los resultados y depurarlos adecuadamente para no castigar al agente parcialmente inocente60 Portanto o que se quer assentar é a necessidade de se incrementar o critério jurisprudencial em voga no país em ordem a não se limitar a avaliação do quantum de redução de pena da tentativa ao grau de proximidade da consumação o qual ademais em certas hipóteses não deixa de consistir em pura especulação Os demais elementos tendentes à fixação da pena base máxime a culpabilidade possuem capacidade de rendimento no sentido de serem implicados na análise da tentativa sobretudo pela circunstância já aí normativa de que a pena deve cumprir as funções de prevenção e repressão do crime os quais devem ser atendidos outrossim quando da fixação da pena final No caso concreto mostrase inolvidável que nas mesmas condições em que alguns dos homicídios não ultrapassaram a fase do conatus mais de duzentos e quarenta pessoas pereceram tudo a indicar a gravidade do risco a que foram submetidas as vítimas sobreviventes sendo de somarse a isso ainda a avaliação já realizadas quanto à culpabilidade dos réus Com isso para todos os acusados a causa de redução da pena da tentativa no concernente a cada um dos homicídios que não atingiram a consumação darseá na base de um terço menor fração possível aqui aplicada em conta das considerações precedentes Com isso para o réu ELISSANDRO a pena de cada uma das tentativas de homicídio vai fixada em 10 anos de reclusão para o acusado MAURO a pena de cada uma das tentativas de homicídio vai fixada em 08 anos 08 meses de reclusão e para os réus 60 VILLAR Mario Surte penal un estudio acerca de la interferencia de la suerte en los sistemas de imputación 1ª ed Buenos Aires Didot 2016 p140 e 210 35 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 MARCELO e LUCIANO a pena de cada uma das tentativas vai fixada em 08 anos de reclusão Os crimes aqui versados homicídios e tentativas de homicídio foram cometidos inequivocamente sob o pálio do concurso formal no modo como instituído pelo artigo 70 do Código Penal Isto impõe que se aplique apenas a mais grave das penas com o acréscimo previsto na lei cuja variação depende do número de infrações cometidas Na espécie tudo autoriza que o aumento se dê no patamar máximo qual seja o da metade considerados o expressivo número de vítimas fatais e a elevada quantidade de tentativas de homicídio Assim alcançamse as penas definitivas que para o réu ELISSANDRO vai fixada em 22 anos e 06 meses de reclusão para o réu MAURO serão de 19 anos e 06 meses de reclusão ao passo que para os acusados MARCELO e LUCIANO serão de 18 anos de reclusão Notem que num sistema de execução das penas como o brasileiro não se está a estabelecer nenhuma demasia Sendo a condenação por crimes que não ostentam a designação de qualificados como assentei anteriormente com 16 ou 25 das penas consoante o entendimento a ser adotado pelo juízo das execuções acerca do elemento violência na forma da redação atual do artigo 112 da Lei de Execução Penal poderão os acusados ora condenados alcançaram progressão de regime restabelecendo o convívio social em algo que variará entre 2 anos 10 meses e 21 dias na mais branda das hipóteses patamar de 16 para a menor pena aqui fixada e 05 anos 07 meses e 17 dias na hipótese mais gravosa isto é considerada a mais elevada das reprimendas e o percentual mais elevado de 25 para a progressão sem contar em qualquer caso benefícios prisionais como a remição com capacidade de diminuírem em praticamente um terço cada qual destes patamares Logo tratase de resposta punitiva que se pretende racionalizada equilibrando os riscos de excessos sem olvidar a perniciosidade equivalente de redundar em pura brandura O regime inicial de cumprimento das penas há de ser o fechado em vista dos patamares aqui fixados vii Fixadas as penas de cada qual dos réus exsurge tema de 36 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 singular relevância concernente à viabilização de decretação da prisão dos acusados até então em condição de liberdade na medida em que condenados pelo Tribunal do Júri Na espécie tudo pareceria simplificado levandose em conta as penas fixadas numa leitura textual do artigo 492 I e do Código de Processo Penal segundo o qual em caso de condenação o juiz no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 quinze anos de reclusão determinará a execução provisória das penas com expedição do mandado de prisão se for o caso sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos Na mesma esteira somase a normatiza que estabelece para tais casos que o apelo do condenado ostente exclusivamente o efeito devolutivo não o suspensivo Não é suficiente contudo a exposição do ditame legal Cabe explicar o seu fundamento e deixar demarcado o porquê neste caso como em vários outros de julgamento pelo Júri ainda antes do advento deste dispositivo legal sempre entendi pela execução provisória da condenação exarada pelo Tribunal popular Para começar a condenação aqui estabelecida sabese tem via de apelo estreita porquanto a decisão proferida pelo Júri é inalterável só podendo ensejar quando muito um novo julgamento dada a natureza constitucional de sua instituição e a soberania dos veredictos Sobretudo quando da decisão de pronúncia houve recurso pela Defesa o qual ao manter a remessa do acusado a Plenário intuitivamente revelou presentes indícios de autoria parece certo que com a condenação e já sendo firme o juízo do Tribunal sobre os indícios de autoria tanto que mantida a pronúncia pelo mérito qualquer recurso não ensejará provimento O contrário desvirtuaria a lógica Noutros termos e voltados os olhos a este caso concreto é seguro dizer por imperativo lógico que nenhum Tribunal poderá confrontar a decisão dos jurados no que assentado o dolo eventual na conduta dos réus do mesmo modo desembaraçar a autoria afirmada é algo que exsurge interditado no exame de recursos pela singular circunstância de que acerca destes temas houve decisão categórica do Júri órgão constitucionalmente competente para o efeito decisão essa precedida de avaliações do Tribunal de Justiça e do próprio Superior Tribunal de Justiça os quais para além 37 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 dos limites cognitivos impostos pela atribuição constitucional do Júri adstringemse àquilo que eles próprios no momento oportuno decidiram Numa palavra se foi dito haver indícios de autoria indícios de tipificação dolosa e isso tudo é afirmado pelo Júri seria um contrassenso terrível afirmarse que em alguma medida a decisão dos Jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos Não é sem razão que em julgamento recente por maioria de votos a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 118770 relator para o acórdão o Ministro Roberto Barroso desenvolveu a tese de que sendo a rigor inalterável a decisão condenatória do Tribunal do Júri poderseia a partir de então deflagrarse a execução da pena com a prisão do acusado em Plenário Há muitos anos repito sustento a imediata execução da pena após a condenação pelo Júri entendimento agora balizado pela lei e pelo Supremo Tribunal Federal embora deva ser dito que tal qual ocorreu no caso concreto se me afigure como premissa para tanto tenha havido recurso da decisão de pronúncia o que só por si no tangente à viabilidade da autoria terá passado pelo duplo grau de jurisdição Conforme referido alhures num outro enfoque é preciso também na linha do entendimento de HÖRNLE compreender que a atribuição de culpa enseja um juízo de desaprovação que outrossim se apresenta como uma mensagem para a vítima ou para seus familiares o que digo eu estará jungido não somente ao resultado dos julgamentos mas também às providências que lhe são correlatas Ou seja a condenação contém um juízo sobre a extensão dos direitos da vítima e sobre a demarcação de sua esfera frente à ação do ofensor assinalando então que a vítima não necessita aceitar a conduta que violou um direito seu61 HÖRNLE a partir disso critica um modo de conceber a pena pautado exclusivamente num cálculo instrumental de eficiência na medida em que este 61 HÖRNLE Tatjana Die Opferperspektive bei der Strafzumessung In Die Stellung des Opfers im Strafrechtssystem Neue Entwicklungen in Deutschland und in den USA Bernd Schünemann und Markus Dirk Dubber Hrsg Köln Berlin Bonn München Carl Heymanns Verlag KG 2000 p 175200 38 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 olvida um cogitável direito da vítima em relação à punição do delinquente62 ESER igualmente refere que o delito se deve compreender não apenas como uma lesão geral ao Direito senão como ademais uma violação de interesses concretos de maneira que a correspondente sanção necessita mais além de finalidades estatais genéricas atender à reparação individual consoante o ponto de vista da vítima que pois mostrarseia como parte essencial da sanção penal63 Na medida em que proferido juízo condenatório de estreita possibilidade de modificação pelo Júri contraria a intuição elementar e portanto as expectativas fundadas do lesado e de seus familiares a potencial extração em favor dos réus da mesma condição que eles familiares ostentavam ao ingressar no Plenário de julgamento qual seja a da liberdade Inexplicável pois para o senso comum que o acusado condenado pelo Júri mormente quando a pena é expressiva tenha para si nenhuma consequência após o julgamento como se nenhum julgamento tivesse havido Isto para não dizer de modo sintético e como puro obter dictum que a ciência dos réus quanto à condenação e à margem quase nenhuma para a sua mudança implicam à guisa de id quod plerumcque accidit um risco inescondível de evasão ou fuga que se não pode desconsiderar Por tudo isso merece referência mais uma vez a decisão preferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 118770 Ementa DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL HABEAS CORPUS DUPLO HOMICÍDIO AMBOS QUALIFICADOS CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI SOBERANIA DOS VEREDICTOS INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA POSSIBILIDADE 1 A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida art 5º inciso XXXVIII d Prevê ademais a soberania dos veredictos art 5º inciso XXXVIII c a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular 2 Diante disso não viola o princípio da presunção de inocência ou 62 HÖRNLE Subsidiarität p 367 63 ESER Albin Rechtsgut und Opfer zur Überhöhnung des einen auf Kosten des anderen Sonderdruck aus Ulrich ImmengaWernhard Möschel Dieter Heuter Hrsg Festchrift für Ernst Joachim Mestmäcker BadenBaden NomosVerlag 1996 p 1023 39 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral no ARE 964246RG Rel Min Teori Zavascki já que também no caso de decisão do Júri o Tribunal não poderá reapreciar os fatos e provas na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri 3 Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos hipóteses incomuns o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso 4 Habeas corpus não conhecido ante a inadequação da via eleita Não concessão da ordem de ofício Tese de julgamento A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri ainda que sujeita a recurso não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou nãoculpabilidade Não desconheço as discussões que se seguiram ao precedente bem como por evidente não estou a olvidar o tratamento que o tema vem recebendo em decisões do Superior Tribunal de Justiça as quais embora num sentido diverso merecem todo respeito De dizerse contudo que num exame não exauriente de variadas decisões em muitos casos o que se colhe é a asserção de que embora deveras imodificável pelo mérito as decisões do Júri isto não inibiria o reconhecimento de nulidades processuais a impedir então a concretização da prisão Ora data venia o argumento da nulidade está colocado erradamente porque a rigor nulidade corresponde ao descumprimento das normas legais e neste aspecto a presunção que se estabelece é a de que o magistrado ou magistrada condutor de processos de Júri atuou em conformidade com os ditames normativos e não os afrontando Quando se diz que pela virtualidade de um processo ser nulo não se pode dar a devida consequência à decisão no fundo instituise ainda que involuntariamente um desprestígio exacerbado à atuação da magistratura de primeiro grau como se propendesse na regra ao cometimento de nulidades e não ao esforço tendente à efetiva marcha de seus processos Parecem muito importantes as linhas traçadas pelo Ministro Luís Roberto Barroso no voto que proferiu no RE 1235340 em que a matéria vem sendo discutida no Supremo Tribunal Federal É de se notar que para o Ministro Barroso sequer se haveria de cogitar da baliza imposta qual seja a de a condenação 40 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 suplantar os quinze anos para viabilizarse a execução provisória das decisões do Júri In verbis 42 Conquanto as modificações introduzidas pelo Pacote Anticrime reforcem as conclusões centrais desenvolvidas neste voto sobre a exequibilidade das condenações do júri e a ausência como regra geral de efeito suspensivo ao recurso de apelação não há como negar que a nova redação do art 492 do CPP impôs limitação indevida 15 anos de reclusão para que seja possível dar concreção à soberania do Júri 43 A redação original do Projeto de Lei nº 8822019 apresentado pelo Poder Executivo não estabelecia qualquer tipo de limitação temporal à observância das decisões do Júri Ao contrário disso teve como objetivo central fazer inserir na legislação processual penal a orientação jurisprudencial adotada por esta Corte a partir do HC 118770 para o qual fui designado redator para o acórdão julgado pela Primeira Turma em 07032017 No ponto específico a proposição legislativa levou em consideração a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e a usual gravidade em concreto dos crimes por ele julgados e que justificam um tratamento diferenciado Todavia ao final do processo legislativo na forma de substitutivo ao Projeto de Lei 10372A de 2018 fezse inserir na nova redação do art 492 do CPP o limite mínimo de 15 anos de reclusão para a execução da pena em que pese desacompanhada da respectiva justificativa 44 A ideia de restringir a execução imediata das deliberações do corpo de jurados ao quantum da resposta penal representa em última análise a relativização da própria soberania que a Constituição Federal conferiu aos veredictos do Tribunal popular Se de fato são soberanas as decisões do Júri não cabe à lei limitar a concretização e o alcance dessas mesmas deliberações Limitar ou categorizar as decisões do Júri além de contrariar a vontade objetiva da Constituição caracteriza injustificável ofensa ao princípio da isonomia conferindo tratamento diferenciado a pessoas submetidas a situações equivalentes 46 Em síntese o fundamento da exequibilidade das decisões tomadas pelo corpo de jurados não está no montante da pena aplicada pelo 41 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 respectivo Juizpresidente mas na soberania conferida aos veredictos do Tribunal popular por vontade expressa do texto originário da Constituição Por esse conjunto de razões deve ser conferida interpretação conforme à Constituição com redução de texto para excluir a limitação de quinze anos de reclusão contida nos seguintes dispositivos do art 492 do CPP na redação da Lei nº 139642019 i alínea e do inciso I ii parte final do 4º iii parte final do inciso II do 5º Embora convirja para o alvitre de que o balizamento da pena é mesmo equivocado não o reputo afastado do nível das opções legislativas e mais ainda como já frisado entendo que ter havido recurso da decisão de pronúncia se afigura como um critério importante para fazer despoletar a segregação após a decisão do Tribunal do Júri Seja como for neste mesmo RE há o importante voto do Ministro Dias Toffoli que a par de concluir que entendo desde sempre que nos crimes julgados pelo tribunal do júri em razão da estatura constitucional desse órgão do Judiciário mormente a soberania dos vereditos a condenação deve ser imediatamente cumprida ainda acentuou que no caso dos crimes dolosos contra a vida mais notoriamente nos de homicídio a celeridade da resposta penal é indispensável para que a Justiça cumpra o seu papel de promover segurança jurídica dar satisfação social e cumprir sua função de prevenção geral É de geral sabença que este julgamento no Supremo Tribunal Federal ainda não se concluiu havendo voto em sentido contrário do Ministro Gilmar Mendes Eis o quadro desde sempre este subscritor entendeu pela exequibilidade das decisões do Júri máxime já tendo havido desprovimento de recurso da pronúncia há lei expressa viabilizando a execução da condenação superior a quinze anos como na espécie nos casos do procedimento de Júri há precedente do Supremo Tribunal Federal neste sentido e na discussão mais recente em RE dois votos favoráveis à tese já foram proferidos constituindo até essa altura maioria Presumese a constitucionalidade das leis Há de se prestar 42 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 reverência às vítimas e aos familiares dos que pereceram conferindo mínima efetividade a um julgamento que acontece muitos anos após os fatos Até quando esperar se refutado este ponto de vista A trilha recursal das múltiplas instâncias brasileiras já foi percorrida após a conclusão da primeira fase do procedimento e sê loá novamente parece induvidoso mormente se o manejo de recursos for a garantia de que durante a sua tramitação os acusados não sofrerão quaisquer consequências Isto tudo não se pode aceitar Cumprir a lei presumila constitucional seguir precedente do Supremo Tribunal estar de acordo com votos de Ministros tratar vítimas familiares e sobreviventes com consideração e respeito reputando justa a sua reivindicação por algum grau de punição tudo isso não se pode afigurar desarrazoado O processo penal não pode servir exclusivamente àqueles que claudicam que delinquem que violam as leis Dadas todas essas considerações estou determinando a imediata execução das penas impostas aos acusados de maneira que em seu desfavor devem ser expedidos os competentes mandados de prisão Presos que sejam os réus formemse os PECs provisórios Observase que não é necessário o uso de algemas na prisão dos acusados os quais deverão ser tratados com dignidade Após o trânsito em julgado lancese o nome dos réus no rol de culpados formemse os PECs preenchase e enviese o BIE e comuniquese a condenação ao TRE Ao término da leitura dessa decisão recebi a notícia acerca da concessão da liminar em habeas corpus preventivo impetrado pela Defesa de ELISSANDRO estendendose os efeitos aos demais réus MAURO MARCELO e LUCIANO de modo que mantenho a decisão porém suspendo a execução da pena Publicada na Sessão com os presentes intimados Porto Alegre 10 de dezembro de 2021 ORLANDO FACCINI NETO JuizPresidente 43 6420012021767307 00122000471710 CNJ0047498 3520208210001 A sentença em tela referese ao emblemático caso da Boate Kiss ocorrido em 2013 o qual julgou e condenou os réus Elissandro Callegaro Spohr Mauro Londero Hoffmann Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão pelo crime de homicídio qualificado pela morte de 240 pessoas na tragédia de Santa Maria O julgamento se deu pelo Tribunal do Júri sendo a sentença de natureza condenatório resultado do julgamento do órgão aplicando as respectivas penas O texto do juiz além de tratar da condenação em si faz uma crítica substancial ao sistema judiciário brasileiro especialmente ao Tribunal do Júri já que para o magistrado o procedimento do Júri que em crimes de homicídio doloso é obrigatório é um dos menos alterados desde a criação do Código de Processo Penal em 1941 fazendo uma critica ao sistema recursal e coloca lentidão a prestação jurisdicional como ocorreu com a decisão de pronúncia no presente caso que durou 7 anos para que viesse a julgamento pelo Júri A crítica central é que em casos de homicídio o bem jurídico mais importante a vida é também o que enfrenta maior dificuldade de julgamento de modo se faz necessário uma revisão no procedimento do Júri sugerindo que a pronúncia a decisão que admite o julgamento pelo Tribunal do Júri deveria ser irrecorrível para acelerar o processo e garantir uma resposta mais célere à sociedade Conforme ensina Aury Lopes Jr em Direito Processual Penal O sistema recursal brasileiro é sem dúvida um dos mais permissivos do mundo permitindo que um processo penal se arraste por anos ainda que a prova da materialidade e autoria seja clara Esse excesso de garantias muitas vezes subverte o sentido de justiça já que favorece a impunidade ou no mínimo a ineficiência do Estado em prover uma resposta rápida ao delito LOPES JR Aury Direito Processual Penal São Paulo Saraiva 2014 Em complemento Nucci afirma O recurso em sentido estrito especialmente em casos de pronúncia muitas vezes serve apenas para prolongar o processo e postergar o julgamento pelo Júri sem que haja uma real violação aos direitos do réu A revisão desse ponto se faz necessária para assegurar maior celeridade no julgamento de crimes dolosos contra a vida NUCCI Guilherme de Souza Código de Processo Penal Comentado São Paulo Revista dos Tribunais 2020 A decisão é uma verdade exposição crítica ao sistema recursal brasileiro do qual o magistrado expõe a vontade de alteração legislativa a fim de que a decisão de pronúncia seja irrecorrível O juiz também aborda o conceito de dolo eventual fundamental para a condenação dos réus explicando que ao contrário do dolo direto no dolo eventual o agente não deseja diretamente o resultado mas assume o risco de sua ocorrência sendo que no caso da Boate Kiss ficou claro que os réus agiram com dolo eventual pois mesmo cientes dos riscos como a instalação de materiais inflamáveis e a realização de shows pirotécnicos em ambiente fechado não tomaram as devidas precauções resultando na tragédia Para Rogério Grecco No dolo eventual o agente não quer diretamente o resultado mas assume o risco de produzilo Há portanto uma postura de indiferença em relação ao bem jurídico tutelado que pode em determinados casos se equiparar em termos de reprovabilidade ao dolo direto GRECCO Rogério Curso de Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro Impetus 2015 A culpabilidade dos réus e intimamente ligada à intensidade do dolo mesmo sendo eventual como elevado o que justifica uma pena mais severa já que a postura dos acusados como proprietários e responsáveis pelo evento foi de indiferença quanto ao risco de morte de centenas de pessoas Além disso menciona que embora o motivo torpe tenha sido afastado em sede recursal os atos dos réus foram motivados por interesses econômicos em detrimento da segurança dos frequentadores O juiz também discorre sobre o papel da pena na comunicação de reprovação social tanto para o ofensor quanto para as vítimas e a sociedade levando a crer que a aplicação da pena adequada é fundamental para transmitir aos familiares das vítimas e à comunidade que o Estado valoriza e protege os direitos violados Outro ponto central da sentença é a avaliação da culpabilidade dos réus que é considerada elevada pelo juiz conforme o artigo 59 do Código Penal para a fixação da pena e no caso da Boate Kiss o magistrado enfatiza que os réus agiram com grave desprezo pela segurança e pelo bemestar das pessoas que frequentavam o estabelecimento No caso dos sócios da boate Elissandro e Mauro o juiz destaca que a busca pelo lucro sobrepôsse às exigências mínimas de segurança já que a instalação de materiais inflamáveis a superlotação do espaço e a falta de treinamentos adequados para os funcionários indicam um desrespeito às normas de segurança que deveriam ter sido seguidas com rigor Além disso a decisão de manter a casa noturna aberta mesmo cientes dos riscos agrava a culpabilidade dos empresários No que diz respeito a Marcelo e Luciano o juiz também critica a conduta irresponsável dos músicos Mesmo conhecendo as características do ambiente eles utilizaram artefatos pirotécnicos inadequados para o local o que foi um fator direto no desencadeamento do incêndio A decisão de deixar o local sem alertar o público para o perigo e a necessidade de evacuação também contribuiu para a condenação dos réus A qualificadora de motivo torpe foi afastada considerando que o lucro financeiro foi o principal motor de ação dos réus priorizando o ganho econômico sendo que tal motivação não é considerada motivo torpe mas padrão para a fixação da pena A sentença também aborda a função expressiva da pena indo além do simples caráter punitivo O juiz argumenta que a pena deve comunicar uma mensagem de reprovação social tanto para os réus quanto para a sociedade como um todo já que a punição segundo o magistrado deve expressar a indignação e o sofrimento das vítimas e de seus familiares além de reafirmar os valores violados pelo crime A decisão cita teorias de juristas como Joel Feinberg e Klaus Günther que defendem que a pena deve ter uma função simbólica transmitindo ao criminoso e à sociedade uma mensagem de desaprovação pela violação dos direitos das vítimas inclusive como alerta para empresários e gestores de estabelecimentos para que adotem todas as precauções necessárias para garantir a segurança de seus clientes A sentença se mostrou um julgamento além da própria função da sentença ou seja de fixar a pena mas também uma exposição de motivos crítica elaborada pelo magistrado que estava evidentemente irresignado com o deslinde do caso em torno do sistema penal brasileiro