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OBRAS INCOMPLETAS DE SIGMUND FREUD Freud O INFAMILIAR DAS UNHEIMLICHE O HOMEM DA AREIA DE E T A HOFFMANN Ernani Chaves Pedro Heliodoro Tavares Romero Freitas autêntica ANIMISMO E INDETERMINAÇÃO EM DAS UNHEIMLICHE Christian Ingo Lenz Dunker Das Unheimliche o pequeno artigo de 1919 que agora o leitor tem em mãos em versão bilíngue pode ser considerado uma verdadeira encruzilhada de três caminhos no interior da obra freudiana Ele retoma e ajusta contas com a antropologia expressa em Totem e tabu cujo problema central é o papel do totemismo e do animismo Ele também antecipa a nova teoria das pulsões marcada pela acentuação do papel da repetição e da angústia que virá à luz um ano depois em Além do princípio do prazer Finalmente ele é um ancestral metodológico do texto sobre A negação de 1925 no qual Freud faz a análise discursiva das negações e dos tipos de juízo existencial e valorativo Em carta a Ferenczi de 12 de maio de 1919 Freud relata que retomou um antigo manuscrito do fundo do baú De fato uma nota de rodapé de O infamiliar indica que o problema do unheimlich já fazia parte das intelecções freudianas antes mesmo da redação de Totem e tabu entre 1911 e 1914 O tema sintetiza literariamente a ampla gama de fenômenos mágicos místicos semirreligiosos e sobrenaturais que ocupou parte decisiva da colaboração e da dissensão com Jung O infamiliar é assim um reexame do paradigma do modo animista em geral de pensar mas também uma interrogação sobre o estatuto da verdade e da realidade em psicanálise bem como um exemplo maior do todo afeto de uma moção de sentimento de qualquer espécie transformase em angústia por meio do recalque entre os casos que provocam angústia deve haver então um grupo no qual se mostra que esse angustiante é algo recalcado que retorna p 85 A disciplina que primeiro dedicouse a esse problema não foi a psicologia mas a estética enquanto doutrina de nossas qualidades de sentir Fühlen Um sentimento difere de uma reação emocional como o terror Schreckhaft e da individualização expressa pelos afetos como a angústia Angst Um sentimento não é uma disposição para a ação ou para a reação como o humor por exemplo de tipo maníaco ou depressivo Graueneregenden Um sentimento aproximase mais de uma forma de abertura receptividade ou espera Erwartung Se a infamiliaridade é antes de tudo um sentimento ele pertence ao mesmo circuito do sentimento de realidade e do sentimento de si também chamado de autoestima Selbstgefühl Se entendemos os sentimentos como uma experiência intersubjetiva ou social de reconhecimento compartilhado de afetos pulsões ou estímulos a familiaridade constitui um paradigma dos sentimentos em geral O texto de Freud começa pelo estudo comparativo dos termos heimlich e unheimlich levando em conta a recorrência de usos e sentidos em diferentes línguas e etimologias Se heimlich nos conduz a casa ou lar Heim o seu contrário é diverso e indeterminado Seu campo semântico heterogêneo envolve suspeito latim estrangeiro grego sinistro inglês lúgubre francês desconfiado espanhol Aqui se agrupam três gramáticas diferentes a relação de apropriação com o lugar a dimensão de proximidade ou distância com outro e o modo de estar ou pertencer ao mundo Destas decorrem respectivamente relações de hospitalidade e reconhecimento dimensões de segredo e ocultamento e finalmente o modo de interpenetração entre público e privado Unheimlich pertence a esse pequeno círculo de palavras fundadoras da psicanálise que tem por característica o prefixo negativo Un como Unbewusst inconsciente e Unbehagen malestar São elas que nos mostram como a negação de um conceito determinado como consciência bewusst ou bemestar behagen cria sentidos completamente diferentes do que se espera pela mera oposição inversora Nesses casos não estamos diante apenas de negações determinadas como entre antônimos nem de negação indeterminada na qual a oposição não tem valor correlacional Uma decorrência disso é a indeterminação relativa entre o sentido adjetivo de propriedade ou efeito de algo unheimlich e sua condição substantiva ou sistêmica Das Unheimliche É por isso que a negação da familiaridade heimlich não corresponde nem ao estrangeiro como negação positiva do familiar nem ao estranho como alheio ou indiferente correspondente ao caso da negação indeterminada Para Freud o Unheimliche diz respeito a dois círculos de representações os quais sem serem opostos são de fato alheios uns aos outros neste volume p 45 ou seja tratase de uma oposição parcial e não de toda alheiedade Tomemos a série de oposições Familiar Heimlich Infamiliar Unheimlich Casa intimidade ou privacidade Floresta ou Rua estrangeiro ou público Confiança manter próximo Desconfiança manter à distância Oculto pertence a alguns Revelado pertence a todos Vivo Animado Humano Morto Inanimado Coisa Inumano Os cruzamentos examinados por Freud mostram que não conseguimos verificar o efeito de unheimlich sem que pelo menos um elemento de cada uma das séries em oposição atravesse para o lado oposto indeterminando assim a negação A solução pragmática encontrada por Freud para esse empecilho definicional apoiase em Schelling que designa o Unheimliche por meio do movimento envolvendo a transformação o que deveria permanecer oculto mas veio à tona p 87 Esse efeito surpresa desconcerto ou iluminação já fora descrito como traço linguístico do chiste FREUD 1905 Aqui ele reaparece invertido em sombreamento incredulidade e ocultação mas ainda assim decorrente da divergência entre sentido esperado e sentido encontrado No começo do ensaio o Unheimliche parece ser um sentimento substantivo definido pela relação a um estado de coisas da realidade mas à medida que o texto progride ganha força a ideia de que se trata de um efeito da transformação da realidade como processo Ao final emerge a noção de sentido comum definido pela partilha de certos pressupostos também chamado de chão da realidade comum Boden der gemeinen Realitäti É preciso a experiência de comunidade discursiva ou partilha de linguagem para que algo surja como revelação fracasso ou enigma de reconhecimento A experiência de infamiliaridade depende assim de três indeterminações A primeira estabelece um nexo entre novidade Neuartigen e estranheza A segunda expressa incerteza intelectual ou conflito judicativo A terceira envolve desorientação perda do sentimento de pertencimento ou de crença na realidade Especialmente no início do ensaio a suscetibilidade ao sentimento de infamiliaridade parece constituir um indicador psicopatológico uma vez que quanto mais uma pessoa se orienta por aquilo que se encontra a sua volta menos é atingida pela impressão de infamiliaridade p 33 Essas três indeterminações possuem uma hierarquia clara Elas caminham do infantil para o adulto do neurótico para a superação do animismo narcísico e do familiar para o infamiliar Essa orientação parece replicar a tese que Freud importa do filólogo Abel em O sentido antitético das palavras primitivas segundo a qual significações contrárias se unem para formar um composto que tem a significação de um apenas de seus dois termos velhojovem longeperto ligarcortar foradentro apesar da diferença significam somente jovem perto ligar e dentro respectivamente Assim como na história das línguas o sentido original e positivo de uma palavra passa por uma espécie de negação continuada que inverte seu sentido na história da criança o sentido inicial da familiaridade vertese gradualmente em infamiliaridade familiar heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolveu segundo uma ambivalência até se fundir enfim com seu oposto o infamiliar unheimlich Infamiliar é de certa forma um tipo de familiar p 4749 Por que heimlich seria o caso original e genérico e unheimlich o caso específico e derivado e não o contrário Isso parece óbvio se olhamos para as coisas do ponto de vista de que o familiar é originário conforme o prefixo ur presente em conceitos como Urvater pai primitivo Urverdrängung recalque originário e Urphantasie fantasia primária Ao final do ensaio Freud metaforiza esse caráter originário da familiaridade por referência ao corpo materno O órgão genital feminino é infamiliar para os homens pois ele é a porta de entrada para o antigo lar assim como o amor é saudade do lar Heimweh p 95 Assim como o infamiliar é o outro o estrangeiro a morte ou o lugar para onde vamos o originário é a identidade o lugar de origem e de onde viemos O nós antecede o eles Para o totemismo ao contrário do animismo sempre sabemos quem somos nós Contudo algo novo pode estar acontecendo em O infamiliar Totem e tabu apresenta um tratamento bastante dissímétrico entre duas estruturas antropológicas que são respectivamente o totemismo e o animismo Enquanto o totemismo é uma espécie de matriz arcaica da socialização humana responsável pela exogamia pelo surgimento da lei e dos rituais o animismo é uma forma provisória e menor de pensamento infantil que será superada quando nos desvencilharmos de crenças narcísicas O totemismo sobrevive no neurótico ainda que superado Aufhebung resolvido Lösung ou em declínio Untergang Junto com o complexo paterno ele integra nossas estruturas de reconhecimento social O animismo ao contrário deve ser inteiramente abandonado e substituído pela crença na realidade desencantada tal como a visão científica de mundo nos propõe Enquanto o totemismo regula nossas interdições sociais no limite derivadas da proibição do incesto o animismo se resolveria por uma apreensão deflacionada das crenças na realidade A hierarquia entre totemismo e animismo se vê referendada pelo esquema de progresso da razão de extração comteana que estabelece fases evolutivas do pensamento humano primeiro o animismo mágico depois as religiões monoteístas finalmente a ciência Como o ideal de organização científica da sociedade é um mito rigorosamente afastado por Freud resta que o totemismo funciona ainda como um organizador social e o animismo não Quem ao contrário conseguiu se livrar absoluta e definitivamente dessas crenças animistas não experimenta esse tipo de infamiliar A mais clara concordância entre desejo e satisfação a mais enigmática repetição das mesmas vivências no mesmo lugar ou na mesma data as mais ilusórias percepções visuais os mais suspeitos ruídos não o enganarão não lhe provocarão nenhum medo que pudêssemos caracterizar como medo do infamiliar neste volume p 103 Enquanto a referência ao totemismo integra um sistema de transmissão da lei simbólica ao animismo resta a relação deficitária e présimbólica entre pensamento realidade e mundo É sob esse fundo que se formará a série problemática que liga o pensamento mágico da criança com as manifestações da psicose e com o funcionamento mental dos povos primitivos A primazia do totemismo encontra em O infamiliar alguns motivos para ser ao menos relativizada Isso ocorre porque a solidez da experiência identitária baseada na familiaridade e na convicção de quem somos nós é abalada pela problemática do unheimlich Como alguns antropólogos contemporâneos CASTRO 2002 têm assinalado a diferença entre totemismo e animismo não pode ser reduzida ao fato de que o segundo seria um capítulo do primeiro uma vez que ambos propõem modelos de laço social e dinâmicas de sacrifício e restituição que podem coabitar de forma não complementar em uma mesma sociedade Se o totemismo se caracteriza por manter a ontologia fixa e a epistemologia variável implicando um sistema de nomeações e renomeações simbólicas que replica os sistemas de parentesco filiação e genealogia o animismo especialmente em sua forma perspectivista baseiase em um sistema de ontologias móveis ou também chamado de múltiplas naturezas Dessa forma o animismo não seria apenas um déficit cognitivo uma forma fetichista ou metonímica de lidar com a relação entre palavras e coisas valores de uso e valores de troca mas outra maneira de usar a função nomeadora da linguagem Por exemplo quando Freud argumenta em O homem Moisés e a religião monoteísta que Moisés era egípcio ele também admite indiretamente que o estrangeiro e infamiliar pode preceder e determinar a noção de familiaridade nesse caso constitutiva do povo de Israel A análise do conto de E T A Hoffmann O Homem da Areia organiza séries clássicas freudianas a cena de infância e sua repetição no adulto Na primeira cena o vilão Coppelius enfrenta o pai sob o fundo do mito do homem que vem jogar areia nos olhos das crianças que não querem dormir Na cena adulta o fabricante de lunetas e o construtor de autômatos se desentendem tendo ao fundo o mito de Olímpia a boneca por quem o protagonista se apaixona Nessa fusão de mundos e interpenetração de narrativas o passado se repete e de certa forma elucidase pelo futuro A angústia e a explosão da infância são reeditadas pelos estados confusionais e delirantes da cena da torre do relógio O tema do duplo a relação entre narcisismo e Supereu bem como o desenvolvimento do sentimento de si a partir do desamparo e da repetição de angústias infantis seriam o caso óbvio para a reedição das teses freudianas contidas em Totem e tabu notadamente a ideia de um retorno do totemismo infantil como matriz do complexo paterno Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann 17761882 foi um jurista escritor teatrólogo e aluno de Kant em Königsberg Ele tinha como uma de suas assinaturas literárias contos nos quais o autor aparece como personagem Ele tinha como inspiração mas também como rival o norteamericano Nathaniel Hawthorne 18041864 que se notabilizou por textos que exploram a poética da morada como Musgos do velho solar 1846 ou A casa das sete torres 1851 Talvez isso estivesse presente na escolha do nome do protagonista de O Homem da Areia ao qual ele teria in traduzido uma pequena modificação substituindo o i por a cujo resultado é Nathanael com a Ocorre que Freud como que a corrigir a hipotética deformação introduzida por Hoffmann cita incorretamente o personagem como se ele se chamasse de fato Nathaniel com i exatamente como o duplo literário de Hoffmann Além disso modificou seu nome próprio aliás como Freud introduzindo em homena gem a Mozart o prenome Amadeus ou seja a mesma vogal deformada e contradeformada por Freud de Nathaniel para Nathanael Considerando que a literatura é um discurso que está em exterioridade ao mundo do qual ela fala e do qual ela é uma expressão a intrusão calculada do autor como personagem coloca um problema diegético ou seja do tipo de realidade criada ou exigida por um determinado discurso que não é indiferente como veremos ao problema de Freud em torno do sentimento de familiarestranheza Freud define o narcisismo como um animismo ou seja um dispositivo de crenças em espíritos humanos su pervalorização de si onipotência de pensamentos técnica mágica inversão coisaspessoas e pessoascoisas além da criação de realidades paralelas ou alternativas O animismo envolve uma série de temas envolvendo a morte o corpo e o lugar bem como uma teoria da causalidade determinada pelo pensamento ou pelos desejos O animismo narcísico seria especialmente refratário a admitir a realidade simbólica de certos eventos tais como a comunalidade e a mortalidade das pessoas A proposição todos os homens devem morrer é pa rafraseada de fato nos livros didáticos de lógica como modelo de uma afirmação universal mas ninguém a esclarece e nosso inconsciente tem agora tão pouco espaço como antes para a representação da própria mortalidade p 87 Aqui ocorre um caso raro no qual não se consegue decidir de imediato se a crença é uma expressão do retor no narcísico do animismo ou se ela é uma incompletude provisória do saber científico Nossa biologia ainda não pode decidir se a morte é o destino necessário de todo ser vivo ou apenas um incidente regular talvez um evitável acaso no interior da vida p 87 Novamente a introdução do fator tempo torna o as sunto indecidível confundindo o critério de separação entre animismo e realismo em uma esfera de indeterminação que compreende os dois casos como possíveis A persistência do animismo seria o equivalente neurótico da permanên cia de crenças infantis envolvendo por exemplo a expe riência do próprio corpo O problema teórico representa do por um narcisismo originário Urnarzissmus tornase assim dependente de uma explicação sobre a gênese do animismo que se aprofunda no testo em questão como uma investigação sobre a origem do duplo representação do duplo não declina necessariamente junto com esse protonarcisismo dos primórdios pois a partir de um desenvolvimento posterior do Eu ele pode ganhar novo conteúdo p 71 Assim como o retorno do totemismo na infância ori gina fobias infantis e acentua o complexo paterno como um complexo de castração o retorno do animismo na infância desenvolve a consciência moral a autocrítica e o sentido de autoobservação A gênese do Supereu parece depender nesse sentido do cruzamento entre o legado totemista e a superação do narcisismo animista Esse duplo retorno expli ca em última instância as duas variedades do infamiliar o retorno do recalcado como saber sobre a castração e o retorno do recalcado como cancelamento da crença na realidade Quando o infamiliar da fantasiaficção professa aber tamente a suposição das crenças animistas isso não nos afeta da mesma maneira como a infamiliaridade vivida na realidade material ou na realidade comum Freud percebe assim que o animismo não pode ser pensado apenas como um problema de crenças verdadeiras ou falsas referidas a uma realidade inerte A vivência de realidade exige uma reflexão sobre a natureza de nossa experiência de mundo real ou irreal Para isso Freud examina uma variedade de casos nos quais o fenômeno do infamiliar é comparativa mente abordado Podemos agrupar essa pequena casuística do Unheimlich em quatro grupos O primeiro grupo de infamiliaridades resulta da ne gação da realidade da mortalidade ou da finitude Ela se mostra por meio de acessos de convulsão loucura ou delí rio de Nathanael O duplo foi na origem uma segurança contra o sepultamento do Eu um enérgico desmentido Dementierung do poder da morte p 69 Há uma perda de realidade decorrente da alienação da consciência perda entendida como não inclusão de algo na fantasia Há uma divisão do eu IchTeilung na qual se repete uma ruptura da identidade entre sentir e vivenciar Isso se mostra narrativamente pela negação da inversão ao contrário entre vida e morte tal como ocorre na figura do mortovivo do zumbi ou do enterrado vivo Nesse caso predomina o alheamento e o sentimento de mundo que nos é revelado nas síndromes melancólicas nos delírios de Cotard ou pelos estados de desamparo depressivos A segunda série de infamiliaridades definese pela negação da oposição entre animado e inanimado entre coisas e pessoas como no caso da mesa em forma de crocodilo que ganha vida A mesa não estava nem viva nem morta mas apenas representava uma criatura viva na forma da madeira Esse é o caso das figuras inertes de cera das bonecas e dos autômatos como Olímpia A fantasia nega a realidade por multiplicação como no texto de Freud sobre A cabeça de Medusa ou como na narrativa repetitiva do roubo dos olhos no conto O Homem da Areia O Eu funciona por duplicação IchVerdopplung daí a aparição de pessoas que por seu aspecto idêntico devemse considerar iguais induzindo um efeito alternado de terror e indiferença como em Josef Montfort de Albrecht Schaeffer Há uma fragmentação do corpo como na história da mão decepada de Hauff ou no encontro inusitado de Freud com sua própria imagem não reconhecida no espelho do trem o invasor era a minha própria imagem refletida no espelho sei ainda que essa aparição me deixou no fundo descontente Mas em vez de ficarmos atemorzados com o duplo ambos Mach e eu não o haviam simplesmente reconhecido p 105 A perda do sentimento de unidade do mundo das unidades simbólicas às quais se pertence ou até mesmo do corpo próprio incide como fracasso do reconhecimento ou como perturbação da síntese de representações não como déficit de integração simbólica Poderíamos aproximar esse grupo das síndromes esquizoides do autismo e das patologias do reconhecimento do mesmo como a Síndrome de Capgras O terceiro tipo de infamiliaridade descrito por Freud caracterizase por uma espécie de violação do pacto entre realidade e fantasia cujo afeto fundamental é o horror Seus limites são borrados como na compulsão à repetição por um mesmo destino que atravessa gerações ou pela iteração de atos como em O anel de Polícrates O retorno do mesmo Wiederkehr des Gleichen é exemplificado por Freud quando em seu passeio por Nápoles ele recorrentemente volta à mesma zona de prostituição sem que isso constituisse uma intenção premeditada No conto de Hoff mann essa violação está representada pelas crianças que não querem dormir na hora No caso do Homem dos Ratos é o tema do olho gordo e a superstição em torno da inveja Mais genericamente entre os neuróticos o tema da casa povoada por fantasmas e das dívidas ou da justiça que eles tendem a voltar a fim de resgatar O quarto grupo de exemplos aborda o infamiliar pela incerteza e pelo medo quanto à natureza de um objeto como em Os elixires do diabo e como no caso do amigo de Freud Ewald Hering Aqui o animismo opera por permutação do eu IchVertauschung Há o transporte de aspectos de uma pessoa para outra tal como se exemplifica nas inúmeras correlações entre os personagens infantis e os personagens da cena na torre do relógio do conto de Hoff mann Nesse caos o estranho invade o familiar como um vampiro e rapta ou seduz crianças desobedientes Incluemse aí os casos de adivinhação do futuro descritos por exemplo pelo Homem dos Ratos mais exatamente pelo pensamento oxalá ele tenha um ataque realmente acontecido 14 dias depois Podese incluir aqui as síndromes superegoicas como a paranoia de autopunição e a neurose de destino Este rápido agrupamento dos inúmeros exemplos trazidos no ensaio de Freud mostra que no fenômeno da infamiliaridade o totemismo paterno e o animismo narcisista atuam de modo combinado Eles podem envolver tanto a perda da unidade simbólica do mundo ou do corpo como a perda da experiência de si e a alienação da identidade Eles podem se associar com a violação de leis simbólicas ou com a intrusão de objetos que perturbam a relação de inclusão e congruência entre realidade e fantasia Tanto pela introdução do devir como condição lógica para o reconhecimento da infamiliaridade quanto pela revisão do animismo como retorno do narcisismo Freud parece enriquecer seu entendimento sobre a realidade Esta não é mais definida pela paridade entre consciência e percepção pela comensurabilidade do presente ao passado ou pelo ajuste entre coisa e representação mas pela produção pois o Unheimliche acontece quando as fronteiras entre fantasia e realidade são apagadas quando algo real considerado como fantástico surge diante de nós quando um símbolo assume a plena realização e o significado do simbolizado e coisas semelhantes p 93 Temos então três tempos da produção do infamiliar Primeiro tempo a fronteira entre fantasia e realidade Wirklichkeit é apagada Segundo tempo a ambivalência ou indeterminação produzida entre familiaridade e infamiliaridade faz com que algo novo surja ou se revele Isso é chamado de real Real vor uns hintritt O real aparece quando algo que deveria permanecer oculto como um segredo vem à luz e se torna sabido No terceiro tempo o símbolo assume sua realização Leistung e significa bedeutet o simbolizado symbolisiert Esses três tempos retomam as modalidades de negação antes apresentadas Apagar as fronteiras é negar a separação determinada por esta confundindo fantasia e realidade Temos aqui uma indeterminação que é falta de determinação ou seja déficit de fronteira Desse apagamento tomado como ambivalência Ambivalenz decorre o surgimento de alguma coisa ou seja uma indeterminação que produz um novo efeito efeito real Finalmente no terceiro tipo de negação o símbolo determina e realiza o simbolizado e quando ele o faz ele nega o simbolizado ao compreendêlo em uma nova forma Temos então essa ideia de que um símbolo pode ser realizado ou irrealizado assim como o que ele significa pode ser simbolizado de modo verdadeiro ou falso O real em contraste com a realidade possui essa característica de ser não crível ou seja desafiar a nossa crença por meio de um conflito de juízos Ele emerge de uma contradição e não apenas de um déficit de nossa percepção ou de nossa faculdade representativa Convém insistir que se o infamiliar é um efeito de emergência do Real isso depende de um certo plano de consideração sobre a realidade Wirklichkeit como processo e não do mundo considerado como uma coleção de objetos constituídos ou de leis predeterminadas Se o infamiliar é o retorno do recalcado e como escolha do material nem todo retorno do recalcado gera infamiliaridade Fórmula que antecipa a ideia de que se o retorno do recalcado é inconsciente nem todo inconsciente é recalcado Essa parece ser a senha para o exame da diferença entre a realidade vivida e a realidade ficcionalliterária Os contos maravilhosos jogam com mundos possíveis mas não causam nenhuma infamiliaridade A distinção entre o vivido e o representado assim como os signos distintivos do silêncio da solidão e da escuridão passam a integrar a semiologia do infamiliar A prova de realidade como verificação da realidade material aplicase tanto ao animismo narcísico das crenças infantis quanto ao retorno do totemismo paterno Elas se aproveitam de vivências reais infrequentes e do retorno do recalcado para manter a não superação da crença na realidade criando assim uma separação entre conteúdo representativo e crença na realidade Mas esse caso teria de ser diferenciado do infamiliar derivado da experiência com a ficção na criação literária e a fantasia na criação literária não é infamiliar muito daquilo que o seria se ocorresse na vida e que na criação literária existem muitas possibilidades de atingir efeitos do infamiliar que não se aplicam à vida p 107 Isso renova o conceito de animismo não mais restrito à realização de desejos forças misteriosas onipotência de pensamento ou vivificação dos inanimados mas dependente de uma nova condição necessária ao fenômeno do infamiliar o conflito de julgamentos Tudo se passa como se Freud estivesse admitindo a existência de ontologias variáveis entre a ficção e o documentário entre o mundo possível e o mundo necessário sem fixar este último no critério ontológico da ciência Isso ocorre pela introdução da chave temporal que inclui o futuro como condição possível para definir um determinado mundo Essa indeterminação perspectiva envolve a comparação entre gêneros narrativos com o conto maravilhoso a literatura romântica de horror mas também a realidade material ou psíquica A superação completa das crenças animistas como ultrapassagem do retorno do narcisismo não se confunde assim com a incerteza própria da limitação de nossos saberes sobre o mundo e seu porvir Confirmase aqui a ideia de que o infamiliar ocorre quando surge algo que não se esperava Por isso também o infamiliar desaparece quando atingimos os pressupostos dessa realidade poética p 109 Se a superação do animismo infantil depende da aceitação da maturidade da razão a entrada no animismo perspectivo implica a realização simbólica e subjetiva da realidade poética Esse segundo tipo de infamiliar depende de uma condição semelhante à que encontramos no umbigo do sonho ou seja o desconhecimento unbekannt É esse desconhecimento dos pressupostos que nos faz experimentar o infamiliar em tragédias como Júlio César Macbeth ou Hamlet Nelas o escritor se coloca no interior da realidade comum o que as situaria no plano do que hoje chamaríamos de documentário Uma vez estabelecida essa realidade comum entre o leitor e o discurso do texto pode acontecer a transição para o fantástico Assim animismo narcísico superado e animismo perspectivo não superado convivem na experiência subjetiva do leitor como o desejo de acordar e o desejo de dormir convivem no sonhador O texto se encerra com o reconhecimento desse elemento obscuro a fonte e raiz que liga o infamiliar à repetição de experiências e à busca dessas mesmas experiências Um trabalho de negação criativa que antecipa a formulação da pulsão de morte no ano seguinte e que se expressa aqui pelo reconhecimento de fontes que não são nem totemistas nem animistas para a angústia Sobre a solidão o silêncio e a escuridão nada mais podemos dizer a não ser que esses são realmente os fatores ligados à angústia infantil que não desaparece por completo na maioria das pessoas p115 Abrese aqui o espaço para um tipo de angústia que não responde à gramática do retorno Wiederkehr seja ele totêmico ou animista mas corresponde ao caso maior e mais fundamental da repetição Wiederholung Por isso seria preciso acrescentar aos fenômenos que justificam a introdução do conceito de pulsão de morte em psicanálise além da repetição traumática e da reação terapêutica negativa a infamiliaridade Fusão e desfusăo das pulsaőes de vida e da pulsaő de morte problema central de Além do princípio do prazer aparecem assim como casos combinados da lógica da indeterminaçăo que Freud descreveu para o Unheimliche REFERÊNCIAS ADORNO Theodor W O ensaio como forma In Notas de Literatura I Traduçăo de Jorge de Almeida São Paulo Editora 34 2003 Espírito Crítico CASTRO Eduardo Viveiros de A inconsciância da alma selvagem São Paulo Cosac Naify 2002 FREUD Sigmund A significaçăo antitética das palavras primitivas In Neurose psicose perversăo Traduçăo de Maria Rita Salzano Moraes Belo Horizonte Autêntica 2016 p 5971 Republicado no presente volume p xxxx FREUD Sigmund Das Unheimliche In Sigmund Freud Studienausgabe v IV Frankfurt am Main Fischer 1919 FREUD Sigmund Der Mann Moses und die monotheistische Religion Sigmund Freud Studienausgabe v IV Frankfurt am Main Fischer 1938 FREUD Sigmund Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten Sigmund Freud Studienausgabe V II Frankfurt am Main Fischer 1905 FREUD Sigmund 1925 Die Verneinung Sigmund Freud Studienausgabe V III Frankfurt am Main Fischer 1973 Republicado no presente volume p Xxxx FREUD Sigmund 1920 Jenseits des Lustprinzips Sigmund Freud Studienausgabe V VII Frankfurt am Main Fischer 1973 FREUD Sigmund 1913 Totem und Tabu Sigmund Freud Studienausgabe V V Frankfurt am Main Fischer 1973 OS CONTOS HANS CHRISTIAN ANDERSEN HANS CHRISTIAN ANDERSEN Os Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersens Eventyr Portugal 2012 11 Estava tão bonito o campo Era Verão o trigo era dourado a aveia verde e o feno amon toado em medas nos prados verdes Por aí andava a cegonha com as suas longas pernas vermelhas falando egípcio uma lín gua que aprendeu com a sua mãe Em redor dos campos e dos prados havia grandes bosques e no meio deles profundos lagos Sim estava tão bonito o campo No meio iluminado pelo Sol viase um velho solar rodeado por profundos canais Dos muros e para baixo até à água cresciam grandes folhas de bardanas tão altas que as crianças podiam pôrse de pé por baixo das maiores Era tão intricado aí como no bosque mais espesso e lá no meio encontravase uma pata no seu ninho Devia chocar os ovos pois esperava patinhos mas estava cansada porque demorava muito tempo e raramente recebia visitas As outras patas gostavam mais de nadar nos canais do que correr lá acima e sentaremse sob uma folha de bardana para grasnarem com ela Por fim rebentou um ovo após outro Pi Pi diziam os pa tinhos recémnascidos Todas as gemas de ovo se tornaram cria turas vivas mal punham a cabeça de fora Vá Vá disse ela e os patinhos apressaramse quanto podiam e olhavam para todos os lados sob as folhas verdes E a mãe deixava os olhar as vezes que quisessem pois o verde é bom para os olhos O Patinho Feio Den grimme Ælling 1843 12 HANS CHRISTIAN ANDERSEN Como o mundo é tão grande disseram os filhotes Pois na verdade tinham agora bem mais espaço do que quando se encontravam dentro do ovo Não julguem que isto é o mundo todo disse a mãe Estendese muito para além do outro lado do jardim bem para dentro da quinta do Padre Mas nunca estive aí Estais pois todos juntos disse levantandose Não não estão todos O ovo maior ainda está ali Quanto tempo vai demorar Estou a começar a ficar cansada E voltou a deitarse Então como vai isso perguntou uma velha pata que vinha fazerlhe uma visita Está tão demorado este ovo disse a pata que chocava Não há meio de furálo Mas vê os outros São os patinhos mais bonitos que vi Parecemse todos com o pai esse malvado que nem vem visitarme Deixame ver o ovo que não quer rebentar pediu a velha Podes crer que é um ovo de peru Também fui enganada uma vez e tive muitos aborrecimentos com os meus filhotes pois devo dizerte ficaram com medo da água Não consegui leválos até lá Eu grasnei e deilhes bicadas mas não serviu de nada Deixame ver o ovo É realmente um ovo de peru Deixao ficar aí e ensina os outros filhotes a nadar Quero ainda chocálo um bocado Estive deitada tanto tempo que não me custa nada descontar um pouco do meu lazer Como quiseres afirmou a velha pata e foise embora Finalmente o ovo grande rebentou Pi Pi disse o filhote deixandose tombar para fora Era tão grande e tão feio A pata olhou para ele Mas é um patinho terrivelmente grande exclamou Nenhum dos outros se parece assim Espero que não venha a ser um peruzinho 13 O PATINHO FEIO Bem em breve vamos ver isso Para a água terá de ir nem que eu tenha de arrastálo às bicadas No dia seguinte fazia um tempo maravilhoso O Sol brilhava sobre todas as bardanas verdes A mãe dos patinhos com toda a família avançou para baixo em direcção ao canal Chape e saltou para a água Vá Vá disse ela e os patinhos deixaram se cair uns atrás dos outros Ficaram com a cabeça debaixo de água mas vieram logo ao de cima e flutuaram deliciosamente As pernas andavam por si próprias e todos lá estavam O filhote feio e cinzento também nadava Não não é nenhum peru exclamou ela Vê como mexe tão bem as pernas como se mantém direito É mesmo meu filho No fundo é bastante bonito quando se o observa bem Vá Vá Venham agora todos comigo Vou leválos para o mundo e apresentálos no pátio dos patos mas andem sempre ao pé de mim para que ninguém os pise e tenham muito cuidado com o gato E entraram assim no pátio dos patos Havia um barulho ter rível lá dentro porque duas famílias lutavam pela posse de uma cabeça de enguia mas aproveitando a confusão foi o matreiro do gato que a apanhou Vejam como se passam as coisas no mundo disse a mãe dos patinhos lambendo o bico pois também lhe apetecia a cabeça de enguia Mexam agora as pernas continuou ela Vejam se podem grasnar e fazer uma cortesia com o pescoço diante daquela pata velha É a mais distinta de todas aqui É de sangue espanhol portanto é pesada Vejam como tem um trapo vermelho em volta da perna É algo de extraordinariamente belo e a maior distinção que uma pata pode receber Significa muito que não se querem desembaraçar dela e que deve ser reconhecida por animais e homens Mexamse Não com as pernas para dentro Um patinho bemcriado põe as pernas bem 14 HANS CHRISTIAN ANDERSEN afastadas uma da outra como o pai e a mãe Assim Façam uma cortesia com a cabeça e digam quá E assim fizeram Mas as outras patas à volta olharam para eles e disseram bem alto Vejam Vamos ter agora mais aquela ninhada Como se não fôssemos já bastantes Hui Que aspecto tem aquele patinho Não podemos tolerar isso E logo esvoaça ram uma pata atrás da outra para o morder na nuca Deixemno disse a mãe Não fez mal nenhum a nin guém Sim mas é demasiado grande e demasiado estranho disse a pata que o mordeu E por isso tem de ser tosado São bonitos os filhotes que a mãe tem disse a pata velha com o trapo na perna Todos bonitos excepto um que não teve êxito Gostaria que ela pudesse refazêlo Não serve de nada Vossa Mercê disse a mãe dos pati nhos Ele não é bonito mas tem bom feitio e nada tão bem como qualquer um dos outros Sim ouso mesmo dizer um pouco melhor Penso que vai tornarse bonito e com o tempo ficará mais pequeno Ficou demasiado tempo no ovo e por isso não recebeu a forma correcta no corpo E passoulhe o bico na nuca alisandolhe as penas Além disso é um pato disse ela por isso não tem muita importância Confio que venha a ter boas forças e vai vencer de certeza Os outros patinhos são engraçadinhos ripostou a velha Façam como se estivessem em casa e se encontrarem uma cabeça de enguia podem trazerma Sentiamse como se estivessem em sua casa Mas o pobre patinho que saíra em último lugar do ovo e que tinha um aspecto tão feio foi mordido tosado e dele escar neceram Tanto as patas como as galinhas É demasiado grande diziam todos e o peru que nasceu com esporas e que julgava por isso ser imperador inchou todo como um barco de 15 O PATINHO FEIO velas enfunadas foi direito a ele e gorgolejou ficando todo ver melho na cabeça O pobre patinho não sabia onde havia de meterse Estava muito desolado por ter assim um aspecto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos Assim se passou no primeiro dia e depois tornouse cada vez pior O pobre patinho era perseguido por todos até mesmo os irmãos eram maus para ele e diziam sempre Se ao menos o gato te levasse feia criatura E a mãe acrescentava Quem me dera que fosses para longe E as patas mordiamno as galinhas picavamno e a rapariga que distribuía a comida aos animais davalhe pontapés Então elevouse e voou para fora da sebe Os passarinhos nos arbustos fugiram espavoridos É porque sou feio pensou o patinho e fechou os olhos mas continuou a correr até chegar ao grande pântano onde moravam os patosbravos Ali ficou toda a noite Estava muito cansado e aflito De manhã os patosbravos levantaram voo e olharam para o novo camarada De que espécie és tu perguntaram eles e o pa tinho voltouse para todos os lados e saudouos o melhor que sabia É extraordinariamente feio disseram os patosbravos Mas para nós é o mesmo desde que não cases na nossa família Pobrezinho Não pensava de certeza em casarse Pudesse apenas ter autorização para se deitar nos juncos e beber um pouco de água do pântano Ali ficou durante dois dias inteiros Então vieram dois gan sosbravos dois machos Não fora há muito que haviam saído do ovo e por isso eram tão atrevidos Ouve camarada disseram eles Tu és tão feio que até gosto de ti Queres vir connosco e ser ave de arribação Num outro pântano há umas patasbravas encantadoras todas meni nas que sabem dizer quá Estás em condições de fazer a tua feli cidade tão feio és 16 HANS CHRISTIAN ANDERSEN Pum Pum ouviuse naquele momento os dois gansos bravos caíram mortos nos juncos e a água tornouse vermelha de sangue Pum Pum voltou a ouvirse Todo o bando de gansos bravos voou dos juncos Troou ainda mais uma vez Era uma grande caçada Os caçadores estavam à volta do pântano Sim alguns encontravamse mesmo sentados nos ramos das árvores que se estendiam sobre os juncos O fumo azul subia como nuvens entre as árvores sombrias e suspendiase sobre a água Pelo lodo vieram os cães de caça platch platch Juncos e canas abanavam por todos os lados Era terrível para o pobre patinho que virou a cabeça para a pôr debaixo da asa e precisamente nesse momento apareceu junto dele um cão terrivelmente grande com a língua pendendo fora da boca e os olhos a brilhar horríveis Pôs o focinho mesmo contra o patinho mostrou os dentes aguçados e platch platch lá se foi sem pegar nele Deus seja louvado sussurrou o patinho Sou tão feio que nem mesmo o cão quer morderme E assim ficou completamente quieto enquanto as chum badas sibilavam nos juncos e estoiravam tiro após tiro Só mais para o fim do dia é que se fez silêncio mas o pobre patinho não ousou levantarse Esperou algumas horas mais antes de olhar à volta e depois apressouse a sair do pântano o mais rápido que pôde Havia vento forte e teve grandes dificul dades para sair dali Perto da noite chegou a uma pequena e pobre casa de cam poneses Era tão miserável que ela própria não sabia para que lado havia de cair Tanto assim que era melhor ficar de pé O vento sibilava de tal modo à volta do patinho que este tinha de apoiarse na cauda para o enfrentar e cada vez soprava com mais força Então observou que a porta tinha saído de um dos gonzos e ficado suspensa para um dos lados permitindo que ele se pudesse introduzir pela abertura Foi o que fez 17 O PATINHO FEIO Na casa morava uma velha senhora com o seu gato e a sua galinha O gato a quem ela chamava Filhinho sabia corcovar a espinha e bufar Quando se eriçava até fazia faísca sendo então necessário passarlhe a mão pelo pêlo em sentido contrário A galinha tinha umas pernas pequenas muito baixas e por isso se chamava Franganinha Perna Curtinha Punha bons ovos e a mu lher gostava dela como se fosse sua filha De manhã logo que se deu pela presença do estranho pati nho o gato começou a corcovar a espinha e a galinha a cacarejar Que é isto disse a velha olhando à volta mas como não via bem julgou que o patinho era uma pata gorda que se perdera É um achado continuou Agora posso ter ovos de pata se não for um pato Temos de ver isso E o patinho foi posto à experiência durante três semanas Mas não apareceu nenhum ovo O gato que era o senhor da casa e a galinha a senhora diziam sempre Nós e o mundo pois acreditavam que eram metades deste e a melhor parte Ao patinho parecialhe que se podia ter outra opinião mas isso não suportava a galinha Sabes pôr ovos perguntou ela Não Bem então cala o bico E o gato dizia Sabes corcovar a espinha bufar e fazer faíscas Não Então não deves ter opiniões quando fala gente razoável O patinho sentavase a um canto e ficava deprimido Então sucedeulhe pensar no ar livre e na luz do Sol Ficou com um tal anseio maravilhoso de flutuar na água que por fim não podia aguentar Tinha de dizêlo à galinha Que se passa contigo perguntou ela Não tens nada para fazer por isso te vêm essas fantasias à cabeça Põe ovos ou bufa que assim te passarão 18 HANS CHRISTIAN ANDERSEN Mas é tão belo flutuar na água disse o patinho Tão belo pôr a cabeça debaixo dela e mergulhar até ao fundo Sim é um grande prazer disse a galinha Ficaste bas tante maluco Pergunta ao gato é o mais inteligente que co nheço se gosta de flutuar na água ou mergulhar nela Não quero falar de mim Pergunta mesmo à nossa dona que mais inteligente do que ela não há no mundo Crês que tem vontade de flutuar na água ou de pôr a cabeça debaixo dela Não me compreendem disse o patinho Bem se não te compreendemos quem te compreenderá Certamente não pretendes ser mais inteligente que o gato e a mu lher para não falar de mim Não sejas presunçoso criança E agradece ao Criador por tudo de bom que fez por ti Não vieste para uma casa quente e não tens um ambiente onde podes apren der alguma coisa Tu és um disparatado e não é divertido falar con tigo Acredita É para teu bem que te digo estas coisas desagradáveis e é nisso que se reconhecem os verdadeiros amigos Vê apenas se consegues pôr ovos e aprendes a bufar ou a fazer faíscas Creio que me vou embora por esse mundo fora disse o patinho Vai pois retorquiu a galinha E o patinho foi Flutuou na água mergulhou nela mas por todos os animais foi desdenhado pela sua fealdade Chegou então o Outono As folhas nos bosques ficaram amarelas e castanhas o vento pegou nelas de tal modo que dan çavam à roda e lá em cima no céu parecia fazer frio As nuvens suspendiamse pesadas carregadas de granizo e de geada e na sebe estava o corvo que gritava ai ai transido de frio Podiase ficar completamente enregelado só de pensar nisso O pobre patinho na verdade não passava nada bem Uma tardinha em que houve um lindo pôr do Sol saiu das moitas um bando de aves grandes e belas O patinho nunca vira 19 O PATINHO FEIO nenhumas tão bonitas Eram de um branco brilhante com pes coços longos e flexíveis Eram cisnes Lançaram um som estra nhamente bonito abriram as asas largas e belas e voaram para fora das regiões frias para terras mais quentes para os lagos abertos Subiram alto bem alto e o patinho feio sentiuse muito esquisito Pôsse a andar à volta na água como uma roda esten deu o pescoço grande para o ar na direcção deles lançou um grito tão alto e estranho que ele próprio ficou com medo Oh Não podia esquecer as belas aves as aves felizes e assim que as deixou de ver mergulhou até ao fundo e quando voltou estava como fora de si Não sabia como se chamavam as aves nem para onde voavam mas ficou a gostar delas como nunca tinha gosta do de alguém Não as invejava de modo algum pois como podia desejar uma tal beleza Já se contentaria se fosse tolerado entre os patos o pobre animalzinho feio E o Inverno ficou tão frio tão frio O patinho tinha de nadar à volta na água para evitar que esta gelasse completamente Mas cada noite que passava o buraco em que ele nadava tornavase cada vez vais pequeno Gelou de tal modo que até a crosta estala va O patinho tinha de estar sempre a mexer as pernas para que a água não se fechasse Por fim extenuado parou e ficou com pletamente colado ao gelo De manhã cedo passou um camponês Viuo e foi direito a ele Bateu com o tamanco no gelo partindoo em pedaços e levouo para casa para a mulher Voltou depois à vida As crianças queriam brincar com ele mas o patinho julgou que lhe queriam fazer mal e fugiu com medo para dentro da malga do leite de tal forma que este salpicou as paredes da casa A mulher gritou e agitou os braços no ar Então voou dali para den tro da selha onde estava a manteiga depois para dentro do barril da farinha e seguidamente veio para cima Ui Como ele estava E a mulher gritava e corria atrás dele para lhe bater com a tenaz do 20 HANS CHRISTIAN ANDERSEN fogão e as crianças corriam atrás uma da outra atropelandose para apanhar o patinho e riam e gritavam Foi bom que a porta estivesse aberta Correu para fora por entre os arbustos para a neve recémcaída e aí ficou como que entorpecido Mas seria demasiado triste contar todas as necessidades e misérias por que passou no Inverno rigoroso Estava no pân tano entre as canas quando o Sol começou a brilhar quente de novo As cotovias cantavam como era bela a Primavera Então ergueu as asas que se agitaram fortemente como nunca antes acontecera e elevaramno com grande impulso E antes que desse por isso encontrouse num grande jardim onde as macieiras floriam os lilases perfumavam o ar e se suspendiam nos longos ramos verdes que acompanhavam as cur vas serpenteantes dos canais Oh Ali era tão belo de uma frescu ra tão primaveril E mesmo à sua frente surgiram vindos das moitas três belos cisnes brancos Armavam as penas e flutuavam tão levemente na água O patinho reconheceu os belos animais e foi tomado por uma estranha tristeza Vou voar para junto deles os animais reais Picarmeão de morte porque eu que sou tão feio ouso aproximarme deles Mas que importa Melhor ser morto por eles do que ser bicado pelas patas espicaçado pelas galinhas levar pontapés da rapari ga que trata do galinheiro e sofrer desgraças no Inverno Voou para a água e nadou ao encontro dos belos cisnes Estes viramno e nadaram ao seu encontro agitando as asas Vá matemme disse o pobre animal curvando a cabeça para a superfície da água à espera da morte mas o que viu ele na água clara Viu a sua própria imagem Já não era mais uma ave desajeitada cinzentaescura feia e horrível Era um cisne Não tem importância nascer num pátio de patos se se foi chocado num ovo de cisne 21 O PATINHO FEIO Sentiuse recompensado pelas misérias e privações por que passara Agora apreciava a felicidade e toda a beleza que lhe sor ria E os cisnes grandes nadavam à sua volta e acariciavamno com o bico Chegaram criancinhas ao jardim lançaram pão e trigo para a água e a mais pequena gritou Há um novo E as outras crianças alegraramse com isso Sim chegou um novo Batiam palmas e dançavam à roda Correram a buscar os pais que lançaram pão e bolos à água E todos disseram O novo é o mais bonito de todos Tão jovem e tão belo E os cisnes velhos curvaramse reverenciandoo Sentiuse então muito envergonhado e escondeu a cabeça debaixo da asa Não sabia o que fazer Estava extraordina rimente feliz mas de modo algum orgulhoso pois um bom coração nunca fica orgulhoso Pensava como fora perseguido e ofendido e ouvia agora todos dizerem que era a mais bela de todas as aves belas Os lilases curvavam os ramos para a água Para ele O Sol brilhava tão quente e tão agradável Então agitou as asas e esticou o seu elegante pescoço e alegrouse de todo o coração Tanta felicidade nunca sonhei quando era o patinho feio RELAÇÃO ENTRE OS TEXTOS OS CONTOS E O INFAMILIAR Os contos de Hans Christian Andersen aborda vários contos de amor para crianças jovens e adultos e também fala detalhes sobre a vida do autor e de suas histórias no Brasil Boa parte das histórias terminam com um final positivo e muitas dessas histórias ficaram famosas e fazem parte da cultura brasileira Nele o autor tenta transmitir os padrões de comportamento que as estruturas sociais de seu tempo deveriam ter absorvido Ele também tentou refletir o conflito entre os que estão no poder e os que estão no poder em suas histórias Hans acreditava firmemente que direitos iguais deveriam governar o mundo e a relação entre as pessoas Suas histórias mais famosas são O Abeto O Patinho Feio A Caixa Surpresa O Sapato Vermelho Cláudio Pequeno e Cláudio Grande Os Protagonistas A Pequena Sereia O Rei Roupa Nova e A Princesa e a Ervilha Nele o autor transmite os padrões de comportamento que a estrutura social de sua época deveria ter absorvido Em sua história ele expõe o conflito entre quem está no poder e quem está empoderado Hans acreditava firmemente que direitos iguais deveriam governar o mundo e a relação entre as pessoas O Infamiliar é uma obra de Freud que aborda aspectos sobre a psicologia na qual ele mostras que através de mecanismos específicos é possível dominála Também é composta de textos auxiliares que trazem um ponto de vista sobre observações do autor que expõe conceitos pela sua área que é a psicanalise Infamiliar de Freud é um ensaio fascinante que explora a natureza a partir de uma perspectiva psicanalítica Nele Freud argumenta que nossa experiência está enraizada em nossa mente inconsciente e geralmente é desencadeada por coisas que nos lembram de traumas ou medos reprimidos Embora o Estranho possa ser inquietante Freud também acredita que pode ser uma fonte de prazer pois nos permite confrontar e aceitar nossas ansiedades mais profundas Ambas as obras abordam assuntos interessantes e tocantes ao longo de suas páginas é trazido histórias que fazem com que sejam lidas e repensadas