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Direito das Sucessões

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87 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 DOI 1033242rbdc201903005 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES SUCCESSION PLANNING DEFINITION ARRANGEMENTS AND RESTRICTIONS Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP Doutora e LivreDocente pela Faculdade de Direito da USP Coordenadora Titular e Professora Titular do Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Direito da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo Fadisp Coordenadora e Professora do Programa de PósGraduação Lato Sensu em Direito Civil da Escola Paulista de Direito EPD Patronesse do curso online de Direito de Família e Sucessões da Escola Brasileira de Direito Ebradi Autora de diversas obras Palestrante e Conferencista no Brasil e no exterior Advogada Árbitra Consultora Jurídica e Parecerista Flávio Tartuce Doutor em Direito Civil e Graduado pela USP Mestre em Direito Civil Comparado e Especialista em Direito Contratual pela PUCSP Professor Titular permanente dos Programas de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito Fadisp Coordenador e Professor dos cursos de PósGraduação Lato Sensu da Escola Paulista de Direito EPD São Paulo Patrono do curso online de Direito Negocial e Imobiliário da Escola Brasileira de Direito Ebradi Autor entre outras obras da coleção Direito civil em seis volumes pela GENForense Advogado Consultor Jurídico Parecerista e Árbitro Resumo O presente artigo escrito a quatro mãos procura analisar em termos gerais o planejamento sucessório Aborda o seu conceito os seus mecanismos e suas limitações retiradas de duas regras de ouro Procura também abordar de maneira crítica mecanismos tidos como tradicionais e como novos para a sua efetivação propondo ao final a alteração da legislação brasileira para que sérios entraves existentes quanto ao instituto sejam retirados Palavraschave Direito civil Direito das sucessões Planejamento sucessório Limites e possibilidades Abstract This article written by four hands seeks to analyze in general terms the inheritance planning Its addresses its concept its respective functions and its limitations taken from two golden rules In addition it seeks to address through a critical way mechanisms considered as traditional and the new ones for its effectiveness proposing at the end the amendment of Brazilian legislation in order to serious obstacles to the institute can be eliminated Keywords Civil law Succession law Inheritance planning Limits and possibilities Sumário 1 Conceito de planejamento sucessório e alguns de seus mecanismos 2 Das duas regras de ouro do planejamento sucessório 3 Mecanismos tradicionais para a efetivação do planejamento sucessório 4 Novos mecanismos para a efetivação do planejamento sucessório MIOLORBDCivil21indd 87 20092019 111652 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 88 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 1 Conceito de planejamento sucessório e alguns de seus mecanismos Nos últimos anos temse falado muito em planejamento sucessório como instrumento preventivo e supostamente eficiente para evitar conflitos entre her deiros bem como para almejar uma distribuição da herança conforme a vontade do morto prestigiando a sua autonomia privada Mas o que seria o planejamento sucessório Quais suas possibilidades e principais instrumentos Quais suas premissas básicas quais regras de ouro devem ser respeitadas para que tais ins trumentos sejam válidos e eficazes perante o direito Quais seriam as principais limitações jurídicas para a sua efetivação Sobre o seu conceito Daniele Teixeira define o planejamento sucessório como o instrumento jurídico que permite a adoção de uma estratégia voltada para a transferência eficaz e eficiente do patrimônio de uma pessoa após a sua morte1 Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho consiste o plane jamento sucessório em um conjunto de atos que visa a operar a transferência e a manutenção organizada e estável do patrimônio do disponente em favor dos seus sucessores2 Em suma podese afirmar que o planejamento sucessório é o conjunto de atos e negócios jurídicos efetuados por pessoas que mantêm entre si alguma relação jurídica familiar ou sucessória com o intuito de idealizar a divisão do patrimônio de alguém evitando conflitos desnecessários e procurando concretizar a última vontade da pessoa cujos bens formam o seu objeto Alguns dos instrumentos de planejamento sucessório merecem ser destaca dos muitos deles retirados dos trabalhos citados a saber a escolha por um ou outro regime de bens no casamento ou na união estável até além do rol previsto no Código Civil regime atípico misto e com previsões específicas b constituição de sociedades caso das holdings familiares para administração e até partilha de bens no futuro c formação de negócios jurídicos especiais como acontece no trust d realização de atos de disposição em vida como doações com ou reser va de usufruto e post mortem caso de testamentos inclusive com as cláusulas restritivas de incomunicabilidade impenhorabilidade e inalienabilidade e efetiva ção de partilhas em vida e de cessões de quotas hereditárias após o falecimento f celebrações prévias de contratos onerosos como de compra e venda e cessão 1 TEIXEIRA Daniele Noções prévias do direito das sucessões sociedade funcionalização e planejamento sucessório In TEIXEIRA Daniele Chaves Coord Arquitetura do planejamento sucessório Belo Horizonte Fórum 2018 p 35 2 GAGLIANO Pablo Stolze PAMPLONA FILHO Rodolfo Novo curso de direito civil direito das sucessões 3 ed São Paulo Saraiva 2016 v 7 p 404 MIOLORBDCivil21indd 88 20092019 111652 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 89 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 de quotas dentro das possibilidades jurídicas do sistema g eventual inclusão de negócios jurídicos processuais nos instrumentos de muitos desses mecanismos h pacto parassocial como se dá em acordos antecipados de acionistas ou só cios e i contratação de previdências privadas abertas seguros de vida e fundos de investimento Apesar dessas múltiplas opções não se pode negar que nos últimos anos o planejamento sucessório tem sido utilizado com o intuito de praticar fraudes buscando muitas vezes a malfadada blindagem patrimonial especialmente de devedores contumazes Tal preocupação não passou despercebida por Mário Luiz Delgado e Jânio Urbano Marinho Júnior que citam as holdings familiares muitas vezes utilizadas como fachada por sócios de fato para desvios patrimoniais e de finalidade da pessoa jurídica visando a fraude a execução ou em face de credores Segundo eles a proliferação de situações como essas de mau uso do planejamen to sucessório por profissionais inescrupulosos com intuito de fraude compromete e enfraquece essa importante ferramenta na medida em que se põe sob suspeita diversos atos e negócios jurídicos rea lizados em vida pelo autor da herança e resultando nas maiores controvérsias sucessórias levadas ao Poder Judiciário A segurança jurídica que seria propiciada pelo planejamento sucessório dando lugar a imbróglios intermináveis os quais não raro implicam em deterioração do acervo hereditário3 De fato na nossa experiência na advocacia consultiva temos visto nos úl timos anos atos de blindagem patrimonial e de suposto planejamento com claro intuito fraudatório como transações permutas e dações em pagamento despro porcionais realizadas entre marido e mulher ou entre pais e filhos de maneira simulada com o intuito de excluir filhos havidos fora do casamento Para que o planejamento sucessório não se desvie dos seus fins lícitos é preciso observar as duas regras de ouro que permitem a sua efetivação e de que passamos a tratar no tópico seguinte 3 DELGADO Mário Luiz MARINHO JÚNIOR Janio Urbano Fraudes no planejamento sucessório In TEIXEIRA Daniele Chaves Coord Arquitetura do planejamento sucessório Belo Horizonte Fórum 2018 p 222 MIOLORBDCivil21indd 89 20092019 111652 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 90 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 2 Das duas regras de ouro do planejamento sucessório A primeira regra de ouro do planejamento sucessório é relacionada a prote ção da quota dos herdeiros necessários ou reservatários denominada legítima e que corresponde no atual sistema jurídico nacional a cinquenta por cento do patrimônio do autor da herança art 1846 do Código Civil de 2002 Essa prote ção já constava da codificação anterior do Código Civil de 1916 por força do seu art 1721 in verbis O testador que tiver descendente ou ascendente sucessível não poderá dispor de mais da metade de seus bens a outra pertencerá de pleno direito ao descendente e em sua falta ao ascendente dos quais constitui a legítima segundo o disposto neste Código Pontuese que no atual sistema sucessório brasileiro pela dicção expressa do art 1845 do Código Civil são herdeiros necessários os descendentes os ascendentes e o cônjuge Temos a visão doutrinária em comum no sentido de que no rol deve ser incluído o companheiro por correta interpretação da decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade do art 1790 da própria codificação de terminando a inclusão do convivente na ordem de sucessão legítima do art 1829 ao lado do cônjuge cf publicação no Informativo nº 864 da Corte O amparo da legítima remonta ao direito romano que reconhecia a figura dos herdeiros necessários como bem lembra Eduardo de Oliveira Leite Segundo as suas lições o testamento estruturava o sistema romano de transmissão causa mortis Nesse contexto na ótica romana o testador que despojava sua família sem justa causa faltava com o dever de solidariedade officium pietatis dever de piedade e o testamento podia ser anulado como se tratasse da obra de um louco através da querela inofficiosi testamenti contes tação do testamento que faltou com seus deveres A nulidade podia ser evitada se o legatário liberasse ao herdeiro parente próximo do defunto o quarto daquilo que herdaria ab intestat e que se passou a chamar quarta legítima também chamada legítima ou a quarta Falcídia nome decorrente de uma lei Falcídia A legítima traduzia o dever moral post mortem em que pesava sobre um parente em rela ção aos mais próximos4 4 LEITE Eduardo de Oliveira Comentários ao novo Código Civil Rio de Janeiro Forense 2003 v XXI p 264 MIOLORBDCivil21indd 90 20092019 111652 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 91 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Segundo Moreira Alves ao tratar da chamada sucessão necessária de acordo com os textos jurídicos romanos o testador ao fazer o testamento não tinha liberdade absoluta para dispor de seus bens Ao contrário estava ele em face de preceitos do ius ciuile e do ius honorarium limitado a dois tipos de restrições a uma de caráter formal que os pandectistas alemães denominaram sucessão neces sária formal formelles Noterbrecht consistia na necessidade de o testador mencionar no testamento alguns herdeiros legítimos quer para instituílos herdeiros testamentários quer para deserdálos e b outra de caráter material que os pandectistas alemães denomina ram sucessão necessária material materielles Noterbrecht consis tia na necessidade de o testador instituir no testamento herdeiros testamentários a certos herdeiros legítimos atribuindolhes determi nada quota de bens portio legitima ou portio debita quota legítima ou quota devida5 Ainda no tocante as fontes romanas explica Beviláqua que a parte disponível no direito romano era dois terços dos bens se o testador deixasse até quatro filhos e a metade se deixasse mais de quatro em favor dos outros descen dentes assim como os ascendentes a reserva hereditária variava da metade a um terço da sua parte ab intestato segundo essa parte se elevava ou não a um quarto da herança quando o herdeiro era pessoa torpe Cód 3 28 1 276 Aderindo as fontes romanas o sistema jurídico português antigo consolida do nas Ordenações do Reino acabou por adotar essa última ideia de tutela de dois terços do patrimônio do falecido no caso de deixar herdeiros considerados necessários Tanto isso é verdade que o testador somente poderia dispor sobre a terça de seus bens em detrimento de seus filhos o que é retirado do Livro IV das Ordenações Filipinas Título LXXXII com a seguinte expressão Quando no testamento o pai não faz menção ao filho ou o filho do pai e dispõem somente da terça 5 ALVES José Carlos Moreira Direito romano 17 ed Rio de Janeiro Forense 2016 p 755 6 BEVILÁQUA Clóvis Direito das sucessões Edição histórica Rio de Janeiro Rio 1983 p 748 MIOLORBDCivil21indd 91 20092019 111653 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 92 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Foi a Lei Feliciano Pena Decreto nº 1839 de 1907 que reduziu no Brasil a proteção da legítima de dois terços para metade dos bens do falecido estabele cendo o seu art 2º que o testador que tiver descendente ou ascendente suces sível só poderá dispor de metade dos seus bens constituindo a outra metade a legítima daqueles observada a ordem legal A redução para a metade foi mantida tanto pelo Código Civil de 1916 quanto pelo Código Civil de 2002 sendo regra até agora consolidada do direito sucessório brasileiro Relata Clóvis Beviláqua que na tramitação do projeto do Código Civil de 1916 a regra da plena liberdade de testar sem qualquer proteção da legíti ma chegou a ser aprovada no Senado tendo sido rejeitada na Câmara dos Deputados o que ele denominava como desastrosa inovação7 O clássico juris ta na sequência demonstra os principais argumentos de ordem moral e jurídica para essa plena liberdade repelindoos um a um o que representa debate sobre a função social da herança e que deve ser travado no âmbito deste projeto de lei Vejamos os argumentos pelo fim da legítima e os contraargumentos de Beviláqua a fim de enriquecer a discussão Como primeiro argumento o direito de testar seria uma simples aplicação do direito de livre disposição atribuído ao proprietário do bem Em suma haveria um legítimo exercício da autonomia privada O doutrinador procura afastar esse argumento com base no fato de não ser o direito a propriedade absoluto tendo em vista principalmente a sua função social Sobre a constatação de que a Constituição Federal da época assegurava o exercício do direito da propriedade de maneira plena Beviláqua insiste nas limitações existentes a respeito desse direito subjetivo inclusive no Texto Superior Em resumo sustenta ser esse um argumento sem valor8 Como segundo argumento contra a legítima a herança forçada seria uma in justa restrição a liberdade individual A suposta injustiça é afastada por Beviláqua pelos fundamentos de proteção da família contra o arbítrio do indivíduo contra um impulso momentâneo talvez que sacrifica o bemestar senão a vida de entes que o testador tinha a obrigação de sustentar9 O terceiro argumento é no sentido de que a liberdade de testar serviria para consolidar a autoridade paterna porque o pai tem o direito de transmitir o seu patrimônio ao filho mais digno de sua estima Para Beviláqua tal argumento é uma ilusão pois a hipocrisia a intriga e a ganância afastam a boafé dos pais lançando discórdia entre os irmãos 7 BEVILÁQUA Clóvis Direito das sucessões Edição histórica Rio de Janeiro Rio 1983 p 751 8 BEVILÁQUA Clóvis Direito das sucessões Edição histórica Rio de Janeiro Rio 1983 p 752 9 BEVILÁQUA Clóvis Direito das sucessões Edição histórica Rio de Janeiro Rio 1983 p 753 MIOLORBDCivil21indd 92 20092019 111653 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 93 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Por fim a liberdade de testar desenvolve a iniciativa individual porque quando o sujeito sabe que não pode contar com a herança procura desempenhar atividades para buscar o devido sustento De outra forma haveria um efeito no inconsciente coletivo pela necessidade do trabalho e da labuta diária Beviláqua aponta ser esse o argumento mais valioso o que está na linha da nossa opinião mas que para ele deve ser afastado diante de outras considerações de maior peso a educação convenientemente dirigida obterá a mesma vantagem de desenvolver a capacidade de direção da vida sem as funestas con sequências da liberdade de testar entre as quais avultam a inflação do egoísmo que é retrocesso a animalidade e a dispersão do grupo familial que impede o cultivo de afeições que somente no circuito familiar se podem desenvolver E esta falha prejudica enormemente o aperfeiçoamento moral do homem10 Expostas as argumentações contra e a favor da proteção da legítima pensa mos ser o momento de debater a sua redução talvez para um montante menor em 25 do patrimônio do falecido abrindo uma maior possibilidade jurídica a efetivação do planejamento sucessório Isso porque a legítima deve assegurar apenas o mínimo existencial ou o patrimônio mínimo da pessoa humana na linha da tese desenvolvida pelo Ministro Luiz Edson Fachin não devendo incentivar o ócio exagerado dos herdeiros Tal redução talvez terá o condão de aumentar o desenvolvimento social e econômico do Brasil colocando na mente de todos a necessidade de busca pelo trabalho que tanto engrandece o ser humano nos planos pessoal e social De todo modo apesar dessa nossa proposta de lege ferenda a verda de é que a tutela da legítima hoje em cinquenta por cento do patrimônio do de cujus representa entrave para a efetivação plena do planejamento sucessório Eventualmente caso seja celebrada uma doação ainda em vida pelo autor da herança e que ultrapasse o patrimônio reservado aos herdeiros necessários há de ser reconhecida a sua nulidade parcial naquilo que exceda a citada proteção nos termos do art 549 do Código Civil em vigor segundo o qual nula é tam bém a doação quanto a parte que exceder a de que o doador no momento da liberalidade poderia dispor em testamento Se tal transbordamento patrimonial se der por testamento temse a ineficácia parcial da disposição com a redução 10 BEVILÁQUA Clóvis Direito das sucessões Edição histórica Rio de Janeiro Rio 1983 p 754 MIOLORBDCivil21indd 93 20092019 111653 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 94 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 da disposição testamentária nos moldes do art 1967 da própria codificação11 Como se pode perceber as soluções dadas pelo sistema jurídico são distintas a doação que excede a proteção da legítima é inválida no excesso o testamento meramente ineficaz Além desses negócios jurídicos de lesão direta a legítima também não po dem prevalecer os negócios que trazem desrespeito indireto ou implícito a quota reservada o que demanda uma análise mais apurada do aplicador do direito Fala se assim em negócio jurídico indireto instrumento pelo qual se pratica a fraude a lei ou seja o ato praticado pelas partes para por meio do resultado típico do negócio obter uma outra finalidade Advirtase que nem todo negócio jurídico indi reto é ilícito A título de ilustração o negócio fiduciário pelo qual alguém aliena um bem não para transferilo ao adquirente mas para conceder a este uma garantia é hipótese de negócio jurídico indireto lícito Tullio Ascarelli em obra clássica so bre o instituto após apontar que o negócio indireto pode ser lícito reconhece que geralmente é ele utilizado como instrumento de fraude a lei A distinção entre o negócio indirecto e o negócio simulado conside rada nas páginas anteriores não deve é óbvio levar a conclusão de que o primeiro é sempre válido Os fins visados pelas partes podem ser ilícitos o negócio indirecto será então ilícito e portanto nulo A ilicitude não recai nesta hipótese sobre a causa típica do negócio adoptado pelas partes mas sobre o objetivo último por estas visado e ganha portanto relevância jurídica nos limites em que podem ser anulados os negócios cujos motivos comuns a todas as partes se jam ilícitos Há com efeito normas jurídicas que não se limitam a dis ciplinar um determinado acto mas têm em conta o resultado prático visado pelas partes quaisquer que sejam os meios por elas escolhi dos para conseguilo por isso devese na aplicação de tais normas tomar em consideração o fim visado pelas partes e não sòmente a causa Há outras ao contrário que só têm em vista determinado procedimento jurídico sem curar dos fins para que é utilizado no caso concreto A validade do negócio quanto aos seus fins indirectos deve ser examinada a luz das normas da primeira categoria Uma casuística muito rica no campo dos negócios indirectos fraudulentos 11 CC art 1967 As disposições que excederem a parte disponível reduzirseão aos limites dela de con formidade com o disposto nos parágrafos seguintes 1º Em se verificando excederem as disposições testamentárias a porção disponível serão proporcionalmente reduzidas as quotas do herdeiro ou herdei ros instituídos até onde baste e não bastando também os legados na proporção do seu valor 2º Se o testador prevenindo o caso dispuser que se inteirem de preferência certos herdeiros e legatários a redução farseá nos outros quinhões ou legados observandose a seu respeito a ordem estabelecida no parágrafo antecedente MIOLORBDCivil21indd 94 20092019 111653 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 95 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 é constituída pelos negócios com que as partes visam frustrar o in terdito da estipulação dos juros ou o seu limite eventualmente em vigor em determinada legislação Entre estes negócios encontramos vendas a prazo seguidas de revendas a dinheiro por um preço inferior e viceversa vendas com preço indeterminado e multa determinada e assim por diante para não falar das confissões de haver obtido por empréstimo gratis et amore Dei como se lê nos documentos marse lheses publicados por Blancard uma soma efetivamente superior a recebida Portanto em cada sistema positivo os negócios indirectos quanto a validade devem ser considerados do ponto de vista duma fraude a lei e será este o elemento decisivo que também deveremos ter presente na investigação do direito moderno12 Imaginese a título de exemplo a hipótese fática do autor de uma herança considerável que constitui uma pessoa jurídica caso de uma fundação para ano a ano e sucessivamente esvaziar o seu patrimônio com o intuito de retirar dos seus herdeiros necessários os seus bens e atribuir a outras pessoas com quem alegadamente mantêm uma relação de profunda confiança Por vezes surgirá o argumento de que se trata de um planejamento sucessório lícito que deve ser valorizado como exercício pleno da autonomia privada Na situação descrita é a partir da análise da finalidade buscada pelo agente que se pode verificar a fraude a lei no caso a fraude a legítima Nesse sentido vejamos as precisas lições de Pontes de Miranda A violação da lei cogente ainda pode ter importância nulificante quan do se trate de fraude a lei que se dá quando pelo uso de outra categoria jurídica ou de outro disfarce se tenta alcançar o mesmo resultado jurídico que seria excluído pela regra jurídica cogente proibi tiva O agere contra legem não se confunde com o agere in fraudem legis um infringe a lei ferea violaa diretamente o outro respei tandoa usa de maquinação para que ela não incida transgride a lei com a própria lei A interpretação há de mostrar que só se quis obter o que pelo caminho proibido não se obteria O que importa é o conteúdo do negócio jurídico não a forma13 Embora o Código Civil de 1916 em seu art 145 não contemplasse expres samente a fraude a lei como hipótese ensejadora da invalidade do ato nunca 12 ASCARELLI Tullio O negócio jurídico indirecto Lisboa Jornal do Fôro 1965 p 3338 13 PONTES DE MIRANDA Francisco Cavalcanti Tratado de direito privado 3 ed Rio de Janeiro Borsoi 1970 t IV p 200 MIOLORBDCivil21indd 95 20092019 111653 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 96 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 existiram dúvidas de que sua prática deveria conduzir a nulidade absoluta do negó cio jurídico por meio do qual foi ela perpetrada Assim o Código Civil de 2002 em seu art 166 inc VI nada mais fez do que explicitar uma regra que já fazia parte da interpretação dos juristas e julgadores da legislação anterior A segunda regra de ouro a ser considerada para o planejamento sucessório é a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina retirada do art 426 do Código Civil em vigor segundo o qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva A hipótese é de nulidade absoluta virtual situada na segunda parte do art 166 inc VII da própria codificação privada vigente uma vez que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção A norma tem origem romana diante de suposta imoralidade que havia na fusão dos atos contratuais e testamentários entre outros argumentos14 Talvez aqui esteja o principal óbice jurídico para muitos atos de organização sucessória praticados no nosso meio Aplicando a norma da realidade jurispru dencial temse entendido pela nulidade de transações que digam respeito a he ranças ainda não recebidas por um dos transatores A título de exemplo Acórdão recorrido que manteve a nulidade de cessão de direitos he reditários em que os cessionários dispuseram de direitos a serem futuramente herdados expondo motivadamente as razões pelas quais entendeu que o negócio jurídico em questão não dizia respeito a adiantamento de legítima e sim de vedada transação envolvendo herança de pessoa viva Embora se admita a cessão de direitos hereditários esta pressupõe a condição de herdeiro para que possa ser efetivada A disposição de herança seja sob a forma de cessão dos direitos hereditários ou de renúncia pressupõe a abertura da su cessão sendo vedada a transação sobre herança de pessoa viva15 14 Como pontua José Fernando Simão explicando as suas raízes A grande razão trazida pela doutrina é de cunho moral e seus efeitos perante a sociedade É o chamado votum alicujus mortis O contrato que transfere a herança de pessoa viva só produz efeitos após a morte daquele que tem o bem ou bens transferidos Assim despertase o desejo de morte ou de antecipação de morte daquele de quem a herança se trata Um segundo motivo é a possível pressão a que se sujeitaria o herdeiro Se ele puder com o autor da herança ainda vivo dispor da herança em momento de dificuldade financeira momentânea estaria tentado a cedêla onerosamente Há um outro motivo de ordem lógicojurídica Não há herança de pessoa viva Simplesmente antes da morte de certa pessoa existe o sujeito titular de um patrimônio Herança pressupõe o fato jurídico morte Se meu pai está vivo herança não há Há patrimônio apenas SIMÃO José Fernando Repensando a noção de pacto sucessório de lege ferenda Carta Forense 2 fev 2017 Disponível em httpwwwcartaforensecombrconteudocolunasrepensandoanocaode pactosucessoriodelegeferenda17320 Acesso em 21 maio 2019 15 STJ 4ª T Ag Int no REsp nº 1341825SC Rel Min Raul Araújo j 15122016 MIOLORBDCivil21indd 96 20092019 111653 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 97 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Na mesma linha concluiuse como nula a partilha de bens realizada em processo de separação amigável que atribui ao cônjuge varão promessa de transferência de direitos sucessórios ou doação sobre imóvel pertencente a terceiros seja por impossível o objeto seja por vedado contrato sobre herança de pessoas vivas16 Merece ser também citado o remoto aresto superior que entendeu pela nu lidade absoluta de cláusula que previa a destinação dos rendimentos produzidos pelos ativos líquidos de uma sociedade após a morte dos fiduciantes pois estava condicionada a sua inclusão no testamento destes17 Por esses julgados não se pode negar que o art 426 do Código Civil re presenta outro sério entrave para muitos instrumentos que são buscados por herdeiros ou mesmo por pessoas que querem antecipar a divisão patrimonial de seus bens evitando conflitos futuros Por isso existem propostas para que sejam incluídas exceções a essa regra ou mesmo que o comando seja revogado contratualizandose definitivamente o direito das sucessões brasileiro Propondo uma mitigação José Fernando Simão no seu texto aqui antes cita do sugere a inclusão de um parágrafo único no comando passando a prever que por meio de pacto antenupcial os nubentes podem convencionar que em caso de dissolução do casamento por morte a partilha se faça por qualquer dos regimes previstos no Código Civil ainda que distinto daquele convencionado18 Segundo ele tal regra possibilitaria que os cônjuges tivessem uma dupla faculdade a adotar um regime restritivo como forma de se proteger de eventual divórcio e b garantir uma proteção ao viúvo ou viúva que em caso de morte do seu consor te passaria a ter direito a meação19 A proposta é louvável sendo interessante incluir regra semelhante para a união estável e o contrato de convivência Também no sentido de relativizar o comando Rolf Madaleno sugere que mesmo no sistema em vigor não se aplica o art 426 do CC2002 a renúncia prévia da herança pelo cônjuge ou companheiro especialmente por meio de pacto antenupcial ou por contrato de convivência por dois motivos Primeiro porque se 16 STJ 4ª T REsp nº 300143SP Rel Min Aldir Passarinho Junior j 21112006 17 STJ 4ª T Ag Rg no Ag nº 375914RJ Rel Min Sálvio de Figueiredo Teixeira j 18122001 18 SIMÃO José Fernando Repensando a noção de pacto sucessório de lege ferenda Carta Forense 2 fev 2017 Disponível em httpwwwcartaforensecombrconteudocolunasrepensandoanocaodepacto sucessoriodelegeferenda17320 Acesso em 21 maio 2019 19 SIMÃO José Fernando Repensando a noção de pacto sucessório de lege ferenda Carta Forense 2 fev 2017 Disponível em httpwwwcartaforensecombrconteudocolunasrepensandoanocaodepacto sucessoriodelegeferenda17320 Acesso em 21 maio 2019 MIOLORBDCivil21indd 97 20092019 111653 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 98 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 trata de renúncia abdicativa e não aquisitiva como temiam os romanos com a pacta corvina Segundo porque o herdeiro concorrente é herdeiro irregular e credor de um benefício ex lege e não de uma herança universal a que o cônjuge ou o convivente sobrevivos só têm direito quando vocacionados em terceiro lugar nos termos do art 1829 do Código Civil20 Com o devido respeito acreditamos que a renúncia a herança antecipada por cônjuge ou companheiro especialmente por meio de um contrato ainda não é possível no atual sistema Vale lembrar que o art 1655 do Código Civil estabe lece que será nula de pleno direito a previsão inserida no pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta em lei entendida a violação de normas cogentes ou de ordem pública afirmação que também vale para os contratos de convivên cia Não se pode negar nesse contexto que ao vedar os pactos sucessórios o art 426 da própria codificação privada encerra norma de ordem pública Por isso concluímos que a renúncia prévia a herança pelo cônjuge ou com panheiro somente será possível se houver a efetiva alteração do sistema legal brasileiro a exemplo do que ocorreu recentemente em Portugal a respeito do casa mento Naquele país está em vigor desde setembro de 2018 a Lei nº 482018 Com a nova redação dada ao art 1700 item 1 da codificação portuguesa a convenção antenupcial pode conter c renúncia recíproca a condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge Sem prejuízo de outras previsões foi inserido um item 3 no dispositivo passando a estabelecer que a estipulação referida na alínea c do n 1 apenas é admitida caso o regime de bens convencional ou imperativo seja o da separação Em suma somente no regime da separação total de bens seja legal ou convencional é possível essa renúncia prévia o que demonstra uma aplicação bem restrita 3 Mecanismos tradicionais para a efetivação do planejamento sucessório No presente tópico abordaremos quatro instrumentos tidos como tradicio nais para a efetivação do planejamento sucessório a saber a a escolha por um ou outro regime de bens no casamento ou na união estável b a realização de atos de disposição em vida de doações c a elaboração de testamentos e d a partilha em vida Anotese que se utiliza o termo tradicionais pelo fato de estarem essas categorias consolidadas na teoria e na prática do direito privado brasileiro havendo previsão quanto a elas já na codificação anterior de 1916 20 MADALENO Rolf Renúncia de herança em pacto antenupcial Revista de Direito das Famílias e Sucessões Belo Horizonte n 27 p 957 2018 MIOLORBDCivil21indd 98 20092019 111653 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 99 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 A escolha por um ou outro regime de bens ganhou notável importância su cessória no Código Civil de 2002 pelo fato de influenciar na concorrência do cônjuge e agora também do companheiro no mesmo preceito em relação aos descendentes do falecido Conforme a dicção literal do seu art 1829 a sucessão legítima deferese na ordem seguinte I aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão univer sal ou no da separação obrigatória de bens art 1640 parágrafo único ou se no regime da comunhão parcial o autor da herança não houver deixado bens particulares Pela literalidade da norma não haverá concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro com os descendentes nos seguintes regimes de bens a comu nhão universal de bens b separação obrigatória ou legal imposta pela norma jurídica nos termos do art 1641 da codificação c comunhão parcial de bens não havendo bens particulares Por exclusão haverá concorrência sucessória nas hipóteses relativas aos regimes não mencionados no dispositivo a saber a par ticipação final nos aquestos b separação convencional de bens decorrente de pacto antenupcial ou contrato de convivência e c comunhão parcial de bens havendo bens particulares situação mais comum na prática Sabese que intensos foram os debates no âmbito da jurisprudência superior a respeito das duas últimas hipóteses justamente porque se chegou a entender no Superior Tribunal de Justiça que a escolha do regime de bens geraria efeitos não só em vida mas também após a morte Essa solução jurisprudencial antes adotada potencializava a escolha pelo regime como instrumento de planejamento sucessório e acabava por baralhar os contratos representados pelos regimes de bens e as heranças em afronta indireta ao art 426 do Código Civil de 2002 Nesse contexto cumpre lembrar que a Corte Superior em um primeiro julga do relatado pela Ministra Nancy Andrighi entendia que no regime da separação convencional de bens não haveria concorrência sucessória pois o regime da separação obrigatória de bens previsto no art 1829 inc I do CC2002 é gênero que congrega duas espécies i separa ção legal ii separação convencional Uma decorre da lei e outra da vontade das partes e ambas obrigam os cônjuges uma vez estipu lado o regime da separação de bens a sua observância Não rema nesce para o cônjuge casado mediante separação de bens direito a MIOLORBDCivil21indd 99 20092019 111654 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 100 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 meação tampouco a concorrência sucessória respeitandose o regi me de bens estipulado que obriga as partes na vida e na morte Nos dois casos portanto o cônjuge não é herdeiro necessário21 Esse entendimento contudo acabou por ser superado pelo próprio Tribunal da Cidadania que consolidou posição totalmente contrária em sua Segunda Seção Nos termos do acórdão de superação e pacificação a respeito do assunto quem determina a ordem da vocação hereditária é o legislador que pode construir um sistema para a separação em vida diverso do da separação por morte E ele o fez estabelecendo um sistema para a partilha dos bens por causa mortis e outro sistema para a separação em vida decorrente do divórcio Se a mulher se separa se divorcia e o marido morre ela não herda Esse é o sistema de partilha em vida Contudo se ele vier a morrer durante a união ela herda porque o Código a elevou a categoria de herdeira São como se vê coisas dife rentes Ademais se a lei fez algumas ressalvas quanto ao direito de herdar em razão do regime de casamento ser o de comunhão univer sal ou parcial ou de separação obrigatória não fez nenhuma quando o regime escolhido for o de separação de bens não obrigatório de forma que nesta hipótese o cônjuge casado sob tal regime bem como sob comunhão parcial na qual não haja bens comuns é exa tamente aquele que a lei buscou proteger pois em tese ele ficaria sem quaisquer bens sem amparo já que segundo a regra anterior além de não herdar em razão da presença de descendentes ainda não haveria bens a partilhar Essa aliás é a posição dominante hoje na doutrina nacional embora não uníssona22 Seguiuse portanto a linha adotada pelo legislador codificado no sentido de que se o cônjuge e agora também o companheiro meia ele não herda se herda não meia A frase foi cunhada pelo Professor e Desembargador do Tribunal Paulista Claudio Luiz Bueno de Godoy explicando muito bem o sistema sucessó rio nacional sendo repetida com claro intuito didático por outros professores e doutrinadores Apesar de parecer plausível e até baseada em um suposto bom senso a afirmação de que na separação convencional não deve haver concorrên cia sucessória entra em conflito com as balizas estruturais do sistema sucessório previsto no Código Civil de 2002 Para corrigir este suposto equívoco apontado muitas vezes na prática há a necessidade de uma profunda reforma legislativa 21 STJ 3ª T REsp nº 992749MS Rel Min Nancy Andrighi j 1122009 22 STJ REsp nº 1382170SP Rel p acórdão Min João Otávio de Noronha j 2242015 MIOLORBDCivil21indd 100 20092019 111654 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 101 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Pelas mesmas premissas também houve polêmica e debate no âmbito da jurisprudência superior quanto a concorrência sucessória do cônjuge com os des cendentes na comunhão parcial de bens havendo bens particulares do falecido Como se retira do decisum que levantou a divergência novamente relatado pela Ministra Nancy Andrighi preservase o regime da comunhão parcial de bens de acordo com o postulado da autodeterminação ao contemplar o cônjuge sobrevi vente com o direito a meação além da concorrência hereditária sobre os bens comuns mesmo que haja bens particulares os quais em qualquer hipótese são partilhados apenas entre os descendentes23 Essa forma de julgar também foi reparada posteriormente no âmbito da Segunda Seção do Tribunal concluindose na linha do Enunciado nº 270 da III Jornada de Direito Civil e da doutrina majoritária nos termos do art 1829 I do Código Civil de 2002 o cônjuge sobre vivente casado no regime de comunhão parcial de bens concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares A referida concorrência darseá exclusiva mente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus24 Desse modo nas duas pacificações jurisprudenciais houve uma diminuição dos efeitos para o planejamento sucessório da escolha de um ou outro regime de bens não podendo esse exercício da autonomia privada por si só e sem amparo nas preferências do legislador influenciar totalmente na concorrência do cônjuge e agora também do companheiro em relação aos descendentes Como segundo instrumento tradicional de planejamento sucessório e talvez o mais utilizado em nosso país na atualidade destaquese a doação ato de libe ralidade por excelência definido pelo art 538 do Código Civil como o contrato em que uma pessoa por liberalidade transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra Com relação a tal negócio jurídico muitas são as possibilidades de sua utilização como forma de concretizar a partilha em vida facilitando a divi são posterior dos bens Vejamos apenas três delas 23 STJ 3ª T REsp nº 1117563SP Rel Min Nancy Andrighi j 17122009 24 STJ 2ª S REsp nº 1368123SP Rel p acórdão Min Raul Araújo j 2242015 MIOLORBDCivil21indd 101 20092019 111654 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 102 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 A primeira delas e mais comum é a doação com reserva de usufruto ou doação com usufruto deducto Esse mecanismo geralmente é utilizado em casos de vasto patrimônio imobiliário em que um dos cônjuges falece Estabelecese então a divisão equânime desse patrimônio em lotes de imóveis realizando um sorteio e atribuindo a nua propriedade aos filhos O cônjuge sobrevivente fica com o usufruto sobre todo o monte Sucessivamente com o seu falecimento esse usufruto é extinto não havendo a necessidade de abrir um novo inventário pois os bens já se encontram divididos entre os seus herdeiros Não se pode admitir que algum entrave tributário vede essa forma de planejamento sucessório sendo possível atribuir a fração de 13 ao monte representado pelo usufruto e 23 sobre a nua propriedade para fins de incidência de impostos Com isso o equilíbrio na partilha é mantido sem que haja oficiosidade ou seja afronta a quota dos herdeiros necessários Outra forma de doação que pode ser utilizada como forma de planejamento sucessório é a doação com cláusula de reversão prevista no art 547 do Código Civil Conforme o seu teor o doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio se sobreviver ao donatário É possível conciliar essa cláusula com a reserva de usufruto completando o mecanismo sucessório ora citado retornan do o patrimônio ao cônjuge sobrevivente caso haja a morte de seus filhos para uma nova partilha Não se pode esquecer contudo que a cláusula de retorno é personalíssima para o doador não prevalecendo em favor de terceiro parágrafo único do art 547 Tratase de hipótese de nulidade absoluta por afronta a proibi ção do art 426 da própria codificação Vedada está assim a doação sucessiva pois para gerar efeitos a ela similares existem o testamento e as formas de substituição testamentária Como terceiro instrumento de liberalidade a ser citado o art 551 do Código Civil trata da doação conjuntiva que pode ser estabelecida em favor de dois filhos por exemplo ou para um filho e o seu cônjuge Prevê o comando citado que salvo declaração em contrário a doação em comum a mais de uma pessoa entendese distribuída entre elas por igual Há assim a presunção relativa de divisão iguali tária entre os donatários concursu partes fiunt o que pode ser afastado pelo teor do ato de liberalidade Em complemento o mesmo diploma enuncia em seu parágrafo único que se os donatários em tal caso forem marido e mulher subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo Há no comando um direito de acrescer legal entre os donatários se eles forem casados existindo debate sobre se a norma se aplica ou não aos companheiros A priori a nossa opinião doutrinária é negativa pelo fato de ser a norma de cunho especial e afeita ao direito contratual A nossa interpretação sobre o decisum do STF aqui antes comentado é que ele repercute apenas para o plano sucessório A afirmação de MIOLORBDCivil21indd 102 20092019 111654 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 103 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 ser o companheiro herdeiro necessário contudo não tem o condão de atingir a regra da doação conjuntiva Por fim o testamento também é um importante e tradicional mecanismo de planejamento sucessório Talvez seja um dos mais eficientes por fugir do entrave da segunda regra de ouro constante do art 426 do Código Civil Além da possibili dade de ter um conteúdo patrimonial o Código Civil em vigor é expresso ao prever as disposições testamentárias de caráter não patrimonial art 1857 2º A títu lo de exemplo das últimas é possível reconhecer um filho por ato de última von tade constituir uma fundação com o nome do falecido nomear administradores e atualizadores de obras ou criações intelectuais determinar o destino de material genético ou de embriões fazer recomendações de caráter ético e comportamental aos filhos e netos tratar do uso de conteúdo digital post mortem entre outras previsões com grandes repercussões práticas na contemporaneidade Apesar de um aumento nos últimos anos das elaborações de testamento motivado por um incremento de uma consciência patrimonial e pelos problemas sucessórios criados pelo Código de 2002 a verdade é que o brasileiro pouco testa Como já destacou a primeira autora deste texto o brasileiro não gosta em princípio de falar a respeito da morte e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada como se isso servisse para afastar maus fluidos e más agruras Assim por exemplo não se encontra arraigado em nossos costumes o há bito de adquirir por antecipação o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura bem como não temos de modo mais amplamente di fundido o hábito de contratar seguro de vida assim como ainda não praticamos em escala significativa a doação de órgãos para serem utilizados após a morte Parece que essas atitudes no dito popular atraem o azar25 Sem falar que o brasileiro não é muito afeito a planejamentos movido so cialmente pelo popular jeitinho e deixando a resolução de seus problemas para a última hora No caso da morte cabe ressaltar a última hora já passou Entendemos que é preciso superar esses antigos costumes negativos de não planejar o futuro e de deixar para os herdeiros a divisão de bens e as muitas vezes intermináveis disputas sucessórias Não se pode negar contudo a per sistência de paredes burocráticas em relação aos atos de última vontade que deveriam ser facilitados como com a possibilidade de realização de manifesta ções de vontade pela via digital Com isso talvez esse mecanismo tradicional de 25 HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes Direito das sucessões 4 ed São Paulo RT 2012 p 263264 MIOLORBDCivil21indd 103 20092019 111654 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 104 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 planejamento seja incrementado nos próximos anos quebrandose a afirmação de que o brasileiro não testa Como último mecanismo tradicional para a efetivação do planejamento su cessório temse a partilha em vida que segundo Paulo Lôbo pode assumir três formas a testamentária a doação e a partilha inter vivos26 Sobre a última aponta o doutrinador tratarse da legítima partilha em vida sendo certo que essa modalidade genuína de partilha em vida com finalidade de antecipação da partilha da herança mas sem antecipação das titu laridades não é exclusiva nada impedindo que ela se dê também mediante doação única aos herdeiros com identificação de suas par tes com ou sem reserva de usufruto ao autor no que igualmente se realizaria a função social da norma27 E sobre a sua utilização para os fins que ora estamos tratando arremata a partilha em vida tem sido utilizada para o chamado planejamento sucessório notadamente quando o interessado é titular da participa ção em atividades empresariais É também meio lícito para afastar a sucessão concorrente do cônjuge ou do companheiro Dias 2008 p 145 para que os filhos não tenham correspondente desfalque na herança28 Além desses mecanismos de planejamento sucessório tidos como tradicio nais existem outros tidos como novos que passamos a analisar no próximo tópico 4 Novos mecanismos para a efetivação do planejamento sucessório Como mecanismos contemporâneos para a efetivação do planejamento su cessório serão brevemente analisados a holding familiar e o trust Sobre o primeiro explica Rodrigo Toscano de Brito que o verbo to hold signifi ca segurar manter controlar guardar sendo a holding familiar uma sociedade ou empresa individual de sociedade limitada Eireli que detém participação societária 26 LÔBO Paulo Direito civil sucessões 5 ed São Paulo Saraiva 2019 v 6 p 315 27 LÔBO Paulo Direito civil sucessões 5 ed São Paulo Saraiva 2019 v 6 p 316317 28 LÔBO Paulo Direito civil sucessões 5 ed São Paulo Saraiva 2019 v 6 p 317 MIOLORBDCivil21indd 104 20092019 111654 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 105 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 em outra pessoa jurídica com a finalidade de controlar o patrimônio da família para fins de organização patrimonial diminuição de custo tributário e planejamen to sucessório29 Ainda segundo o autor a constituição pode se dar por meio de uma sociedade simples ou empresária o que é definido pelos próprios membros da família Entre as suas funções e utilidades destaca a maior possibilidade de conter os conflitos entre os membros da família sem afetar a sociedade controla da que continua produzindo riquezas mantendo os seus funcionários e pagando os tributos30 Apesar das palavras de incentivo do jurista que vê no instituto um importan te instrumento de planejamento sucessório a verdade é que a categoria esbarra na segunda regra de ouro aqui antes apontada qual seja a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina retirada do art 426 do Código Civil Conforme esse preceito repisese não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva Reiterese que a situação é de nulidade absoluta virtual situada na segunda parte do art 166 inc VII da própria codificação privada uma vez que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção O próprio Rodrigo Toscano de Brito acaba por reconhecer esse sério entrave apesar de não se filiar a ele Por um lado teríamos que admitir que se as pessoas se reúnem em sociedade cujo objeto principal é a detenção e administração de todo patrimônio da família por exemplo e ali se planeja a sucessão não haveria como negar a priori a afronta a regra da vedação do pacto sucessório se analisado de modo pontual apenas a luz do art 426 do Código Civil Esse é um viés relevante em relação ao tema aqui tratado mas se assim admitirmos todos os atos praticados no Brasil com essas características seriam nulos E não são poucos Preferi mos pensar diferente De fato é possível se organizar em sociedade ou por meio de outras formas de constituição de pessoas jurídicas dentro dos limites da autonomia privada e desde que não se afronte a legítima que é segunda regra que não se pode perder de vista Assim parecenos que todos os contratos existentes dentro dos limites das normas sucessórias são válidos e eficazes inclusive de constituição 29 BRITO Rodrigo Toscano de Planejamento sucessório por meio de holdings limites e suas principais fun ções In PEREIRA Rodrigo da Cunha DIAS Maria Berenice Coord Família e sucessões polêmicas ten dências e inovações Belo Horizonte IBDFAM 2018 p 672 30 BRITO Rodrigo Toscano de Planejamento sucessório por meio de holdings limites e suas principais fun ções In PEREIRA Rodrigo da Cunha DIAS Maria Berenice Coord Família e sucessões polêmicas ten dências e inovações Belo Horizonte IBDFAM 2018 p 672 MIOLORBDCivil21indd 105 20092019 111654 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 106 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 de holdings para fins de planejamento sucessório diante de uma interpretação conforme a harmonização das regras sobre liberdade e as limitações aqui referidas presentes no Código Civil31 Com o devido respeito como têm sido estabelecidos no Brasil tais negócios jurídicos podem ser tidos como nulos de pleno direito Se são muitos como cons ta do texto transcrito então há uma realidade jurídica e social em que a nulidade absoluta acabou por ser propagada de maneira continuada em nosso país sob o manto do planejamento sucessório Se há uma sociedade que tem natureza contratual instituída com o objetivo de administrar os bens de alguém ou de uma família e de dividir esses mesmos bens em caso de falecimento a afronta ao art 426 do Código Civil parecenos clara Esse argumento independe da existência de fraude ou simulação na cons tituição da sociedade o que pode ensejar a invalidade ou ineficácia por outros argumentos a depender do vício presente no ato No caso da fraude a lei da presença do citado negócio jurídico indireto ilícito o fundamento da nulidade está no art 166 inc VI do Código Civil Quanto a simulação o art 167 da própria codificação material estabelece a invalidade por nulidade textual32 E não se ol vide conforme o Enunciado nº 152 aprovado na III Jornada de Direito Civil que toda simulação inclusive a inocente é invalidante No campo prático a própria jurisprudência superior já reconheceu a viabilidade de debater o vício da simulação no caso de instituição de uma holding COMERCIAL CIVIL E PROCESSO CIVIL USUFRUTO CONSERVAÇÃO DA COISA DEVER DO USUFRUTUÁRIO NULIDADE SIMULAÇÃO LEGITIMI DADE TERCEIRO INTERESSADO REQUISITOS OPERAÇÃO SOCIE TÁRIA ANULAÇÃO LEGITIMIDADE CONDIÇÕES DA AÇÃO ANÁLISE TEO RIA DA ASSERÇÃO APLICABILIDADE DISPOSITIVOS LEGAIS ANA LISADOS ARTS 168 DO CC02 E 3º 6º E 267 VI DO CPC 2 Recurso Especial que discute a legitimidade do nuproprietário de quotas sociais de holding familiar para pleitear a anulação de ato societário praticado por empresa pertencente ao grupo econômico 31 BRITO Rodrigo Toscano de Planejamento sucessório por meio de holdings limites e suas principais funções In PEREIRA Rodrigo da Cunha DIAS Maria Berenice Coord Família e sucessões polêmicas tendências e inovações Belo Horizonte IBDFAM 2018 p 671 32 CC2002 Art 167 É nulo o negócio jurídico simulado mas subsistirá o que se dissimulou se válido for na substância e na forma 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando I aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas as quais realmente se conferem ou trans mitem II contiverem declaração confissão condição ou cláusula não verdadeira III os instrumentos particulares forem antedatados ou pósdatados 2º Ressalvamse os direitos de terceiros de boafé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado MIOLORBDCivil21indd 106 20092019 111654 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 107 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 sob a alegação de ter sido vítima de simulação tendente ao esvazia mento do seu patrimônio pessoal 3 O usufruto Direito real transitório de fruir temporariamente de bem alheio como se proprietário fosse Pressupõe a obrigação de preservar a substância da coisa sem qual quer influência modificativa na nuapropriedade cabendo ao usufrutuá rio a conservação da coisa como bonus pater famílias restituindoa no mesmo estado em que a recebeu 4 As nulidades decorrentes de simulação podem ser suscitadas por qualquer interessado assim entendido como aquele que mantenha frente ao responsável pelo ato nulo uma relação jurídica ou uma situação jurídica que venha a sofrer uma lesão ou ameaça de lesão em virtude do ato questionado 5 Ain da que como regra a legitimidade para contestar operações internas da sociedade seja dos sócios hão de ser excepcionadas situações nas quais terceiros estejam sendo diretamente afetados exatamente como ocorre na espécie em que a administração da sócia majoritária uma holding familiar é exercida por usufrutuário fazendo com que os nuproprietários das quotas tenham interesse jurídico e econômico em contestar a prática de atos que estejam modificando a substância da coisa dada em usufruto no caso pela diluição da participação da pró pria holding familiar em empresa por ela controlada 33 Citese ainda situação de maior gravidade analisada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em que se reconheceu que a holding familiar foi utilizada com intuito de desvio de dinheiro público caracterizando improbidade administrativa AÇÃO CIVIL PÚBLICA Improbidade administrativa Itapetininga Hos pital Regional Gestão terceirizada Oscip Fraude Holding familiar Patrimônio Origem Desvio de dinheiro público Fortes indícios In disponibilidade de bens Possibilidade Cabível a indisponibilidade de bens quando presentes fortes indícios de que o patrimônio da socie dade constituída como holding familiar proveio do desvio de dinheiro público34 Demonstrados esses entraves e a possibilidade de configuração de fraudes no que diz respeito ao trust como aponta Milena Donato Oliva a categoria é co mum nos países do sistema da common law tendo instrumentos compatíveis com os ordenamentos da família romanogermânica A autora demonstra o tratamento 33 STJ 3ª T REsp nº 1424617RJ Rel Min Nancy Andrighi DJe 16 jun 2014 34 TJSP 10ª Câmara de Direito Público Agravo de Instrumento nº 21108970820168260000 Rel Des Teresa Ramos Marques j 472016 MIOLORBDCivil21indd 107 20092019 111655 GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA FLÁVIO TARTUCE 108 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 constante da Convenção de Haia que reconhece na figura a presença de um patrimônio em separado estruturado da seguinte forma Nessa esteira a Convenção de Haia estabelece que i os bens em trust constituem patrimônio separado que não se confunde com o patrimônio pessoal do trustee ii a titularidade dos bens em trust fica em nome do trustee iii o trustee tem o poder e o dever do qual deve prestar constas de administrar gerir ou dispor dos bens de acordo com os termos do trust e com os deveres específicos que lhe são impostos por lei iv os credores pessoais do trustee não podem excutir os bens em trust v os bens em trust não serão arrecadados na hipótese da insolvência ou falência do trustee e vi os bens em trust não integram o patrimônio da sociedade conjugal nem o espólio do trustee35 Esclareçase na linha das lições colacionadas que o trustee é quem recebe a titularidade das situações jurídicas conferidas em trust sendo proprietário des ses direitos e responsável pela sua administração Existem ainda duas figuras envolvidas sendo a primeira delas o seu instituidor que é o settlor A segunda é o cestui que trust que é o beneficiário da instituição sendo o destinatário de todos os benefícios econômicos que derivam do trust Como conclui a jurista por último citada o trust não é equiparável a qualquer instituto jurídico do ordenamento jurídico brasileiro36 A compreensão da estrutura descrita já demonstra uma série de problemas que podem surgir na realidade jurídica brasileira notadamente diante da existên cia de autonomia entre o patrimônio em trust e os bens pessoais do trustee Em uma realidade social na qual prosperam mecanismos jurídicos utilizados com in tuito de fraude e a busca de sofisticados meios de blindagem patrimonial criados para que os interessados se furtem de dívidas antes constituídas a instituição do trust não pode e não deve resistir perante as alegações de simulação fraude contra credores fraude a execução ou mesmo diante da possibilidade de aplica ção do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em qualquer uma de suas modalidades seja a regular art 50 do CC2002 ou a inversa art 133 2º do CPC2015 35 OLIVA Milena Donato Trust In TEIXEIRA Daniele Chaves Coord Arquitetura do planejamento sucessó rio Belo Horizonte Fórum 2018 p 367368 36 OLIVA Milena Donato Trust In TEIXEIRA Daniele Chaves Coord Arquitetura do planejamento sucessó rio Belo Horizonte Fórum 2018 p 367368 MIOLORBDCivil21indd 108 20092019 111655 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO CONCEITO MECANISMOS E LIMITAÇÕES 109 Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Eventualmente caso haja lesão aos bens que compõem a quota dos her deiros necessários podese falar ainda em fraude a legítima e em um negócio jurídico indireto ilícito presente a nulidade absoluta da sua instituição por lesão a preceitos de ordem pública havendo o objetivo de fraude a lei imperativa art 166 inc VI do CC Ademais parecenos que muitas vezes a instituição do trust como mecanis mo de planejamento sucessório tem como objetivo a gestão e a divisão futura de bens de uma pessoa ainda viva entrando em conflito com o teor do antes citado art 426 do Código Civil Haveria assim problema similar ao que ocorre com a holding familiar e que ora descrevemos Como palavras finais sobre o tema como conclusão definitiva para este artigo pensamos que é necessário alterar a legislação brasileira mitigandose a regra relativa as vedações dos pactos sucessórios prevista na codificação privada no seu art 426 Esse é o melhor caminho para que o planejamento sucessório seja concretizado na realidade jurídica brasileira prestigiandose a autonomia pri vada e a possibilidade de as famílias buscarem as melhores estratégias para a divisão futura de seus bens Outro aspecto que merece ser revisto é a proteção da legítima reduzindoa a patamar inferior como desenvolvemos oportunamente Informação bibliográfica deste texto conforme a NBR 60232018 da Associação Brasileira de Normas Técnicas ABNT HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes TARTUCE Flávio Planejamento sucessório conceito mecanismos e limitações Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil Belo Horizonte v 21 p 87109 julset 2019 Recebido em 13062019 1º parecer em 11072019 2º parecer em 05082019 MIOLORBDCivil21indd 109 20092019 111655