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O ser do homem não só não pode ser compreendido sem a loucura como também não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite da sua liberdade Jacques Lacan Um animal louco O homem é um animal louco Na minha vida milenar Mergulhei em milhões de assassinatos A terra está coberta de adubo A terra está coberta de papa De entranhas humanas Nós as raras viventes Nós os raros viventes Andamos sobre um pântano Afastando cadáveres Por toda a parte sob os pés A cada passo Por baixo de nós ossos decompostos Cinza cabelos embaraçados Dentes arrancados crânios abertos Um animal louco Eu sou um animal louco As jaulas serão inúteis Os laços serão inúteis Eu sairei mesmo assim Passando sob todos os muros Através da purina dos pedaços de ossos Vocês verão Peter Weiss Introdução A loucura goza de certo prestígio cultural acreditase que ela promete um universo primordial uma existência selvagem abrindo um horizonte infinito de experiências Na noite da razão supõese que o homem se comunique com as forças geradoras que a natureza recusa ao entendimento Sob essa perspectiva o louco surge como uma figura quase mística e o delírio se metamorfoseia em ato criador Essa fascinação da loucura como experiência espiritual como demolição de sistemas opostos como rejeição radical só se pode exacerbar pelas condições de vida reais e mediocres de cada pessoa ela se inscreve como a religião no âmbito da ilusão Ceder ao fascínio da sedução estética da loucura é desconhecer o que se libera na loucura E sucumbir à tentação idealista É preciso quanto a isso evitar romantizar a vivência ou as experiências dos doentes mentais Diz o poeta André Henry Sei bem que está muito na moda em certos círculos imitar a doença mental e promover por meio de drogas delírios mais ou menos coletivos como se promoviam festassurpresa Esses jogos paradoxais só podem ser vistos como caricaturas irrisórias e dolorosas pelos que procuraram entender os doentes mentais e com isso adquiriram consciência do milagre permanente que constitui entre a maioria dos homens o seu equilíbrio mental relativo¹ ¹ In Poètes maudits daujourdhui 19461977 Paris Seghers 1978 Parafraseando os conselhos de Baudelaire a um jovem que lhe havia perguntado se o ópio faria dele melhor poeta o etno psiquiatra Georges Devereux dizia Nem o ópio nem a loucura pode trazer à luz aquilo que o homem já não tenha em si Seria porém errôneo fazer da loucura um registro unicamente negativo como o fazem tanto a psiquiatria como o senso comum Com efeito os discursos eruditos sobre a loucura descrevem mais comumente o louco não só como um frustrado do tipo pessoal normal equilibrado e correto e como um frustrado do grupo tanto do grupo familiar como de toda a coletividade da qual ele é o bode expiatório mas deixam também entrever ao mesmo tempo que o louco é fundamentalmente um frustrado da espécie razão pela qual uma imagística de monstro paira no discurso psiquiátrico Essa imagística com a alteridade radical que supõe tende a excluir o louco da comunidade humana Tende também a nos fazer esquecer que alguma coisa se manifesta através da loucura alguma coisa que com frequência nos recusamos a ouvir para preservar um equilíbrio precário ou uma ordem familiar ou social gangrenada É certo como observa Maud Mannoni que em nossa cultura as pessoas têm cada vez mais dificuldade em colocar a verdade em suas palavras e quando se põem a dizer o que é verdadeiro sobre nossa sociedade e nós mesmos tudo se passa como se nas estruturas que lhes oferecemos não houvesse para elas outra opção salvo a loucura Pois o alienado é também um homem que a sociedade não quis ouvir e que procurou impedir que dissesse verdades insuportáveis como disse Antonin Artaud O louco lembranos que alguma coisa está errada na racionalidade dominante que atrás da fachada escondese uma outra realidade implicitamente ele contesta nossas certezas e nos diz coisas inoportunas e escandalosas que não queremos ouvir Em todos os tempos escreveu Freud os que tinham alguma coisa a dizer e não o podiam fazer sem perigo adotavam o hábito de passar por loucos De certa maneira podese dizer que a loucura é um ritual da rebelião esclarecendo porém que se trata de um ritual falhado O psicótico não é nunca um revolucionário é um revoltado que não consegue expressar sua revolta A expressão de sua revolta na forma de psicodrama o dispensa de realizála Na verdade seria errado ver nos sintomas da doença mental por mais profundos e crônicos que sejam apenas os trágicos restos humanos deixados pelo terrível holocausto do desmoronamento psíquico Esses sintomas plenos de sentido fervilhantes de uma energia inesgotada devem ser considerados pelo terapeuta e esclareço que somos todos terapeutas de nossos semelhantes pois é bem verdade que o homem é sempre o remédio do homem não como restos inertes mas como manifestações de um intenso esforço embora com freqüência inconsciente para libertarse de formas de relações mortíferas conhecidas na infância com os que estavam próximos e que continuam sendo mantidas seja por fidelidade para com os pais seja por falta de aprendizado de outra linguagem de outra maneira de ser no mundo Quanto a isso os doentes mentais dão com freqüência a impressão de ter crescido trazendo sempre presente no espírito um mapa que não tem senão uma relação muito remota com o mundo que iriam descobrir e esse mapa deformado levaos a se comportar de maneira estranha e a desperdiçar sua energia em empresas insensatas Esse preâmbulo nos induz em conseqüência a insistir num aspecto importante da loucura a falta de ser a perda da unidade pessoal a fragmentação dos estados afetivos aquele estado doloroso de insegurança ontológica e de privação de liberdade que inevitavelmente provoca nos outros reações de pânico e tentativas irrisórias por vezes de teorização Esse preâmbulo nos leva igualmente a dizer como o psiquiatra italiano Giovanni Jervis que a loucura não é fundamentalmente diferente das experiências que quase todos nós temos em nossa vida e que com poucas exceções não desejamos repetir a experiência do desespero e ao mesmo tempo da autopunição e da angústia paralisante da perda de uso e prazeres do corpo a experiência da confusão e do pânico os pesadelos de uma noite de febre a exaltação enganosa da embriaguez as ciladas de um ambiente indecifrável e hostil de pedagogias destrutivas de mensagens contraditórias ou de erros que se repetem a paralisia a solidão o sentimento de morte e a incapacidade de comunicação enfrentada pelos que são presas desses elementos quando duram demasiado e suscitam nos outros na melhor das hipóteses uma tolerância desenvolta ou paternalista ou na pior delas humilhações desprezo ou rejeição De certa maneira a loucura é para cada um de nós uma tentação e um perigo permanentes e se ela nos assusta tanto nos outros é sem dúvida porque reativa nossos próprios recalques Por isso preferimos excluir a sermos excluídos Contanto que certos psiquiatras executem o trabalho sujo que podem realizar graças à sua condição de médicos e às técnicas de que dispõem desde os neurolépticos à lobotomia com a consciência tranqüila e a certeza de uma bela impunidade A propósito da exclusão da rejeição social será conveniente perguntar se toda coletividade não tem necessidade de loucos de desviantes de delinqüentes para manifestar a sua negatividade As vítimas sacríficos os papéis malditos não serão necessários para que uma linha divisória possa ser traçada entre a razão e a nãorazão entre o permitido e o proibido entre o conveniente e o indecente entre o que tranqüiliza e o que ameaça A loucura suscita como se vê questões ao mesmo tempo psiquiátricas sociológicas filosóficas e políticas Não é fácil quando se procura esclarecer os problemas por ela levantados adotar uma atitude neutra científica Lembremos a esse propósito que se encontramos uma discordância relativamente reduzida entre os homens de ciência quanto às teorias fisiológicas bioquímicas ou físicas fundamentais o mesmo não acontece em psiquiatria disciplina que se parece mais com a religião ou a política do que com a ciência O que nada tem de surpreendente digase de passagem pois a loucura não é um fato uma entidade natural mas um problema Não se pode portanto e Roger Bastide muitas vezes insistiu neste ponto descobrir sua significação senão recolocandoa numa filosofia do homem no mundo mundo biológico ou social a fim de lhe poder dar indiretamente já que não o podemos fazer diretamente um valor semântico qualquer Esclarecerei por fim que embora o conceito de doença mental não compreenda apenas e simplesmente o da loucura utilizarei indiferentemente as duas expressões A idéia de assimilar a loucura a uma enfermidade de querer custe o que custar que ela seja semelhante em seu princípio às outras enfermidades não se pode impor nunca de forma absoluta Em compensação e como os trabalhos de Michel Foucault mostraram a loucura não deixou de evidenciar uma ligação com a razão da qual ela é o outro seja ao contestála seja ao configurar essa certeza da morte essa face das trevas esse apelo do impulso que a razão se esforça por dominar e que não consegue neutralizar Se há uma verdade da loucura esta só pode ser trágica daí a ambigüidade extrema que caracteriza a atitude de todas as sociedades e de todas as culturas para com os loucos São caçados ou exibidos como a imagem daquilo que ameaça a todos São presos e privados de todos os direitos Ou pelo contrário têm a palavra quando esta é negada a todos os outros os bufões dos príncipes e dos reis e em nossas mediocracias modernas os artistas A Loucura e a Sociedade 1 Da Idade Teológica à Idade da Razão É um lugarcomum mas é preciso não desprezálos os cemitérios são lugarescomuns da sociologia e da etnopsiquiatria afirmar que a doença só tem sua realidade e seu valor de doença numa cultura que a reconhece como tal Assim por exemplo o histérico do século XIX que tinha visões e que apresentava estigmas foi sob outros céus e em outras épocas um místico visionário e taumaturgo Há além disso fenômenos da moda na doença mental a grande crise histérica descrita por Charcot não se encontra mais em nossos dias praticamente e a frigidez que era considerada virtude não há muito tempo tornase hoje um mal e um motivo de queixa Os biólogos da psiquiatria enfrentam problemas quando se trata de levar em consideração essas variações históricas e culturais Os sintomas da enfermidade mental opõemse sempre de uma forma ou de outra à norma social a escolha do sintoma é determinada negativamente pelas normas sociais ambientes Como escreve Françoise Laplantine ninguém fica louco por querer a cultura previu tudo No âmago mesmo da elaboração da neurose e da psicose pela qual procuramos fugir dela a cultura vem ainda ao nosso encontro para nos dizer que personalidade substitutiva devemos adotar É efetivamente a sociedade que define as normas do pensamento e do comportamento é ela que determina os limites da loucura Cheio de suas ilusões seguro de seu saber o psiquiatra que se considera independente do contexto social não percebe que com muita frequência é a sociedade que faz o diagnóstico e que ele existe simplesmente para darlhe seu aval As concepções primitivas da loucura constituem uma categoria do sagrado seja do sagrado religioso seja do sagrado demoníaco Ainda no Novo Testamento vemos a loucura considerada como uma possessão pelos maus espíritos que é necessário expulsar do corpo do doente para curálo Roger Bastide observa que ao mesmo tempo em que triunfa o cristianismo triunfa também um esquema maniqueu de delírios e atos insólitos que são o fruto do pecado do lado humano e da luta de Satã contra Deus pelo domínio do mundo É apenas com o Renascimento e a Reforma que uma concepção científica substitui progressivamente uma concepção teológica do mundo Os loucos não serão mais considerados como possuídos pelo demônio mas como pessoas perigosas ou improdutivas tal como os criminosos os debochados e os miseráveis que subsistem graças à mendicância por essa razão serão excluídos da sociedade e internados com as outras categorias e por vezes nos mesmos lugares Se na Idade Teológica ser humano significava adorar a Deus Jesus se ser virtuoso significava ser um cristão de fidelidade a toda prova um santo e se ser mau significava ser herege uma feiticeira na Idade da Razão ser verdadeiramente humano significa adorar a Ciência a Tecnologia o Progresso ser virtuoso significa gozar boa saúde ser feliz e ser mau significa estar mentalmente doente ser infeliz escreve Thomas Szasz professor de psiquiatria da Universidade de Nova York Segundo ele a ideologia da psiquiatria moderna é apenas uma adaptação à era científica da ideologia cristã tradicional O homem já não nasce pecador mas doente neurótico ou psicótico Em lugar de um vale de lágrimas sua permanência na terra se torna um rio de anomalias patológicas E tal como na sua viagem do berço ao túmulo era guiado pelo padre é hoje orientado pelo médico Pareceme escreve Szasz que tal como na Idade da Fé o poder político era monopólio da Igreja e do Estado assim na Idade da Razão ele é monopólio da Ciência e do Estado A Igreja glorificava seus valores edificando catedrais e santuários e con a loucura e a sociedade 17 vertendo autoritariamente os nãocrentes enquanto a Ciência faz o mesmo construindo hospitais e asilos de alienados em suma tratando os loucos autoritariamente Como não ver com efeito que se na Idade da Fé os homens afirmavam a existência e a glória de Deus criando feiticeiras essas criaturas do diabo o que confirmava o poderio divino na Idade da Razão os homens afirmam a existência e a glória da Razão dando origem aos loucos que ameaçando não apenas a segurança ou a saúde mas aquilo pelo que o homem se define ou seja a Razão vão assegurar o seu poder Em outras palavras a ideologia dominante fabrica em todos os casos o seu opositor a Feiticeira o Louco dandose os meios de vencêlo a Inquisição a Psiquiatria e graças a essa vitória a Fogueira o Hospício de fortalecer o seu poder 2 O louco como bode expiatório Como observa o psiquiatra italiano Franco Basaglia a norma social expulsa de si mesma ao identificála com o doente mental a imagem incompreensível e perigosa de uma possibilidade de transformação que a tornaria totalmente outra desordenada O indivíduo são acrescenta Basaglia projeta sobre o indivíduo indefeso uma agressividade que não saberia dirigir a outro objeto e que a todo momento pode destruílo a normalidade de seu ser é assim confirmada pela máscara desumana que fixa no louco recusandose a reconhecerse nele aceita de bom grado a desumanidade de sua subordinação O louco representa bem então o negativo que em contraste faz surgir a normalidade social ou individual Quanto a isso devemos dizer que a perseguição da feiticeira como a do louco mas também a do herege do judeu do negro do homossexual do dissidente político constitui um exemplo de uma prática milenar o sacrifício do bode expiatório A sociedade purificase transferindo para uma imagem mítica e nela fixando os seus temores e contradições Além disso e é quase uma lei sociológica quanto maior a distância entre as prescrições morais e o comportamento social real mais se fará sentir a necessidde de sacrificar os bodes expiatórios para a manutenção do mito social segundo o qual o homem vive de acordo com as éticas que professa oficialmente O etnólogo inglês James Frazer foi o primeiro em fins do século XIX a salientar entre os primitivos qualificativo que permite que nos consideremos sem muita dificuldade como modernos a existência do fenômeno da projeção da exteriorização fora do Eu do mal da infelicidade do pecado O costume do bode expiatório o mais conhecido graças a um texto célebre da Bíblia Levítico XVI 2122 proporcionou a Frazer o conceito que designa o conjunto desses ritos de exteriorização E Aarão colocando suas mãos sobre a cabeça do bode vivo lançará sobre ele todas as iniqüidades dos filhos de Israel e todos os seus crimes segundo todos os seus pecados e os colocará sobre a cabeça do bode e o mandará levar ao deserto O bode levará portanto consigo todas as iniqüidades dos filhos de Israel para uma terra desabitada e o homem soltará o bode no deserto Na Grécia antiga uma dessas cerimônias consistia no sacrifício humano A escolha a designação os cuidados particulares e finalmente a destruição ritual do bode expiatório em grego pharmakós eram a intervenção terapêutica mais importante e mais significativa conhecida pelo homem primitivo Depois que a prática de sacrifícios humanos foi abandonada na Grécia sem dúvida mais ou menos no século VI aC a palavra pharmakós no plural pharmakoi acaba por significar medicamento droga ou veneno Segundo Murray ela encerra literalmente o sentido de medicamento humano ou bode expiatório Martin Nilsson propõe uma explicação ainda mais reveladora O pharmakós era qualquer coisa semelhante à esponja com que se limpa uma mesa e que quando está totalmente impregnada das impurezas que absorveu é destruída para que com ela sejam destruídas as impurezas que contém É posta fora é queimada é lançada no mar Thomas Szasz observa ironicamente que quando os antigos viam um bode expiatório reconheciamno como tal era o pharmakós Quando o homem moderno o vê não o reconhece como tal ou se recusa a reconhecêlo busca ao contrário explicações científicas para justificarse Além disso Szasz propõe uma judiciosa comparação entre as sociedades primitivas canibalescas e as sociedades modernas A sociedade evoluiu sem dúvida ao renunciar ao canibalismo mas o preço dessa evolução é pago pelo bode expiatório que continua sendo a vítima indispensável de nossas sociedades nãocanibais Nas sociedades consideradas primitivas não só os homens comem carne humana pelas suas características simbólicomágicas como atribuem aos animais qualidades humanas e sobrenaturais Nas sociedades consideradas modernas os homens fazem o contrário renunciaram a comer a carne humana e atribuem qualidades animais e subumanas a certas pessoas como as feiticeiras os loucos os judeus etc Segundo Thomas Szasz a tendência talvez devêssemos considerála um reflexo de sacrificar um bode expiatório para salvar o grupo da desintegração e em conseqüência o Eu da dissolução seria parte da natureza profunda do homem Seguese que quando o homem se recusar a sacrificar bodes expiatórios e se mostrar pronto a reconhecer e assumir as cargas e responsabilidades que são suas e de seu grupo terá dado um passo fundamental no caminho do desenvolvimento moral comparável talvez à sua rejeição do canibalismo Enquanto os homens escreve ele puderam denunciar outros como feiticeiros de modo que o feiticeiro podia ser sempre considerado como o Outro e nunca como o Eu a feitiçaria foi um conceito facilmente explicável e a Inquisição uma instituição florescente Só quando o homem deixou de ter fé no poder dos inquisidores e em sua missão religiosa foi possível pôr fim a essa prática de canibalismo simbólico Da mesma forma conclui Szasz enquanto os homens se denunciarem uns aos outros loucos homossexuais drogados como doentes mentais para que o louco seja sempre o Outro e nunca o Eu a doença mental continuará como um conceito facilmente explirável e a psiquiatria coerciva uma instituição florescente 3 O nascimento da psiquiatria A idéia de assimilar a loucura a uma doença a uma doença mental é relativamente recente e só no século XIX trans formouse na psiquiatria como ciência e como prática social Até então a experiência da loucura no mundo ocidental era muito polimorfa Assim até o século XVII deuse no essencial liberdade à loucura ela circula ela faz parte do cenário e da linguagem comum o próprio louco não tem direito a nenhuma consideração especial ele é o simples portador de um enigma tão temível quanto fascinante Há na França em princípios do século XVII como conta Michel Foucault loucos célebres com os quais o público e o público culto gosta de se divertir alguns deles como Bluet dArbères escrevem livros que são publicados e lidos como obras da loucura Até cerca de 1650 a cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a essas formas de experiência Michel Foucault descreveu a profunda transformação ocorrida em meados do século XVII o mundo da loucura transfomouse no mundo da exclusão Como se à medida que se afastava a grande ameaça da lepra o medo da morte desse lugar cada vez mais ao medo da loucura São construídas então em toda a Europa grandes casas de internamento os hospitais gerais que não têm nenhuma especialização médica e que recebem além dos loucos toda uma série de indivíduos bastante diferentes entre si pelo menos segundo os nossos critérios de percepção mendigos pobres inválidos libertinos velhos na miséria portadores de moléstias venéreas pais de famílias dissipadores eclesiásticos liberados de seus votos vagabundos contumazes em suma todos os que em relação à ordem da razão da moral e da sociedade davam mostras de perturbação São levados aos hospitais gerais os que não podem mais ou não devem mais fazer parte da sociedade Na França toda grande cidade terá seu hospital geral Neles impera o trabalho forçado como a fiação a tecelagem a fabricação de objetos diversos que são colocados no mercado a baixos preços para que os lucros permitam o funcionamento do hospital Mas como observou com justeza Michel Foucault a obrigação de trabalhar tem também um papel de sanção e controle moral É que no mundo burguês em via de se constituir o principal vício o pecado por excelência não é mais o orgulho nem a ambição como na Idade Média é a ociosidade A catego ria comum que agrupa todos os que são levados às casas de internação é a incapacidade de participar da produção da circulação ou da acumulação de riquezas seja por sua culpa ou por acidente A exclusão que lhes é imposta está na medida dessa incapacidade e indica o aparecimento no mundo moderno de uma censura que não existia antes O internamento está portanto ligado em suas origens e em seu sentido primordial a essa reestruturação do espaço social Acrescentemos a exemplo de Michel Foucault que nesse espaço de exclusão a loucura criou um parentesco com as culpas morais e sociais que não está talvez pronta a romper A loucura que durante tanto tempo foi evidente e indiscreta durante tanto tempo presente no horizonte desaparece portanto progressivamente no século XVIII A idéia familiar na Idade Média de que a loucura é uma possibilidade aberta a todos perde toda a sua significação Ao mesmo tempo em que se torna objeto da ciência ela entra num período de silêncio de onde só sairá com a descoberta da psicanálise Freud foi com efeito o primeiro a dar novamente ao racional e ao irracional a possibilidade de comunicação ao risco de uma linguagem comum sem renunciar com isso ao objetivo final que atribui à psicanálise o primado do intelecto Durante o século XIX idade de ouro do alienismo os psiquiatras vão buscar a explicação das desordens do comportamento da afetividade e do pensamento em causas físicas como as lesões ou modificações da matéria cerebral O ideal do saber escreve Foucault visa então a fazer coincidir o mapa das doenças mentais com o das perturbações e problemas orgânicos E por vezes a tara hereditária outras vezes a constituição que é responsabilizada Psiquiatras e neurologistas buscam igualmente descobrir quais as lesões que atacam o cérebro e a distinguir espécies anatômicoclínicas rigorosamente delimitadas como a paralisia geral a loucura circular a demência precoce Esse movimento chega com o psiquiatra alemão Kraepelin 18561926 a uma classificação sistemática que foi durante muito tempo a base da psiquiatria É certo que houve mesmo entre os médicos resistências como a do psiquiatra francês Lemoine que em 1862 denunciou a facilidade dessas explicações nada mais fácil escreveu ele que ligar sempre a loucura a uma predisposição inata oculta e dizer que se o indivíduo tivesse outra natureza não teria enlouquecido Ou como Neumann que afirmava em 1859 Achamos que toda classificação da doença mental é artificial e em consequência insatisfatória e não acreditamos que se possa progredir no domínio psiquiátrico enquanto não se lançarem fora todas as classificações Na verdade ao mesmo tempo em que se desenvolve a psiquiatria e se constroem estabelecimentos dedicados exclusivamente ao tratamento dos alienados em 1834 a França conta 10 mil doentes segregados número que cresce rapidamente 16255 em 1844 42077 em 1874 mais de 120 mil hoje1 surge subterraneamente uma corrente antialienista minoritária é certo por vezes perseguida pelas autoridades mas cuja influência não é desprezível Assim por exemplo FranzAnton Mesmer 17341815 esse remoto precursor de Freud e de Reich merece ser considerado como um antipsiquiatra antes mesmo do aparecimento do termo Com efeito ao contrário de Philippe Pinel que defende e edifica com o concurso dos poderes públicos uma psiquiatria em que o alienista é o agente da sociedade da família e do Estado frente ao paciente Mesmer quer colocarse exclusivamente a serviço deste último Em Mesmer ou la révolution thérapeutique2 Franklin Rausky observa que a repressão médica do desvio e da marginalidade não desempenha nenhum papel no sistema mesmeriano mas é essencial para Pinel Mesmer precursor ignorado da antipsiquiatria acrescenta ele quer fechar os hospitais de todos os tipos enquanto Pinel faz do asilo moderno a peça fundamental do grande encerramento descrito por Michel Foucault É incontestavelmente a Michel Foucault que cabe o mérito de ter descrito esse grande encerramento e ter traçado a história da separação incessante e sempre modificada entre a loucura e a razão desde a era clássica estando os médicos e os psiquiatras encarregados mais particularmente depois do século XIX de fiscalizar essa fronteira correspondendo a indicação de doença mental a uma interdição Foucault recusase a acreditar não sem razão que o progresso da psiquiatria poderá fazer desaparecer a doença mental tal como a medicina fez com a lepra e a tuberculose Uma coisa perdurará que é a relação do homem com seus fantasmas seu impossível sua dor sem corpo sua carcaça noturna que uma vez colocado fora de circuito o patológico a sombria vinculação do homem à loucura será a lembrança intemporal de um mal desaparecido em sua forma de doença mas que sobrevive como infelicidade