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Ética Geral e Profissional

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ÉTICA EMPRESARIAL 4 ed ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS INFORMATIZADOS ÉTICA EMPRESARIAL ROBERT HENRY SROUR 4 ed 2013 Elsevier Editora Ltda Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 190298 Nenhuma parte deste livro sem autorização prévia por escrito da editora poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados eletrônicos mecânicos fotográficos gravação ou quaisquer outros Copidesque Cristine Akemi Sakô Editoração Eletrônica Thomson Digital Revisão Gráfica Lara Alves Elsevier Editora Ltda Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro 111 16o andar 20050006 Centro Rio de Janeiro RJ Brasil Rua Quintana 753 8o andar 04569011 Brooklin São Paulo SP Serviço de Atendimento ao Cliente 08000265340 sacelseviercombr ISBN 9788535264470 ISBN versão eletrônica 9788535264487 Nota Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra No entanto podem ocorrer erros de digitação impressão ou dúvida conceitual Em qualquer das hipóteses solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens originados do uso desta publicação CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ S766e 4ed Srour Robert Henry Ética empresarial Robert Henry Srour 4 ed Rio de Janeiro Elsevier 2013 24 cm ISBN 9788535264470 1 Ética empresarial 2 Comportamento organizacional 3 Ambiente de trabalho I Título 130833 CDD 1744 CDU 1744 050213 070213 042659 Para Ivan Metran Whately exemplo de seriedade moral vii Somente a moralidade das nossas ações pode nos dar a beleza e a dignidade de viver Albert Einstein xiii NOTA DO AUTOR Este livro foi inicialmente publicado em 2000 e já sofreu duas revisões nas edições de 2003 e 2008 Adotado por universidades e empresas conviveu com a pirataria que corre solta em nossas paragens Irônico paradoxo um livro de Ética Empresarial saqueado por quem se interessa pela moralidade Daí a reação ambígua do autor embora indignado sentese lisonjeado por saber que só se copiam bens simbólicos que tenham algum valor Mas por que edições revisadas Porque estudos nunca são definitivos conceitos me recem ser refinados casos atualizados lacunas preenchidas inconsistências depuradas Afinal uma das virtudes da ciência é a humildade intelectual aberta à crítica emendase sensível aos desdobramentos da realidade tornase cada vez mais acurada Eis as razões de mais uma edição A investigação ética necessita de conceitos capazes de alcançar sólido consenso Ferramentas com o corte impecável dos bisturis que permitam desvendar os eventos morais e que estejam imunes às idiossincrasias e às disputas doutrinárias Nesse esforço infindável a Ética Científica disciplina que compõe o arco das ciências sociais se acomoda perfeitamente 1 1 Por que a investigação ética Quem se encanta com o próprio umbigo não vê mal em nada do que faz O PROBLEMA DA VENALIDADE O senso comum propala que há poucos ingênuos nas sociedades contemporâneas Acresce de forma provocadora que as honrosas exceções tão merecedoras de admiração confirmam a regra de que todo mundo tem um preço A generalização porém é abusiva Por quê Porque supõe que a venalidade seja um traço congênito dos homens Ora se muitos prevaricam o mesmo não pode ser dito de todos Afinal as condições históricas não propiciam iguais tentações a cada um de nós De um lado nem todas as sociedades humanas instigam seus agentes a transgredir os padrões morais com a mesma intensidade de outro nem todas as pessoas estão à mercê das mesmas tentações para se corromper Nesse sentido ao incitar ambições e ao aguçar apetites as sociedades em que prevalecem relações mercantis abrigam mais seduções do que as sociedades não mercantis Resumidamente expõem mais as consciências à prova e em consequência contabilizam mais violações dos códigos morais As moedas que costumam subverter as rotinas pervertendo convicções e deturpan do condutas são muitas e de múltiplas naturezas Vão das espúrias às honradas drogas jogos de azar sexo álcool dinheiro passeios de luxo poder fama adrenalina do risco ascensão na carreira apego à posição preservação do patrimônio prestígio garantia de emprego lealdade filial fidelidade aos amigos realização pessoal honra da família perseguição de um ideal e assim por diante Ademais ainda que se aceite que todo mundo tenha um preço a pressuposição só faz sentido em termos virtuais Afinal nem todos estão ao alcance do canto das sereias Dizendo sem rodeio muitos não são corrompidos porque não vale a pena subornálos E isso coloca em xeque a anedota desesperançada do filósofo Diógenes que se achava exilado em Atenas munido de uma lanterna em plena luz do dia procurou em vão um homem honesto Ora convenhamos será que ninguém naquela cidadeestado absolutamente ninguém merecia crédito Não parece lógico é uma fábula que não deve ser levada ao pé da letra Qual então o seu mérito Denunciar a depravação moral que então grassava De qualquer modo ponderemos nem todos os atenienses possuíam cacife o bastante para vender a alma ao diabo Dando uma guinada de 90 avaliemos agora outra presunção a de que os homens estão divididos desde o nascimento em maçãs boasmaçãs podres Bastaria às em presas então separar o joio do trigo distinguir quem presta e quem não presta Outra falácia Abundam relatos sobre gente de bem que acuada pelas circunstâncias ou enfeitiçada pelos mais variados apelos tornase refém de uma espiral de desvios morais É a síndrome de Davi 2 1 Ética EmprEsarial A história bíblica do unificador das 12 tribos de Israel retrata um primeiro deslize e logo a seguir uma escalada de encobrimentos De fato o rei Davi avistou Betsabeia tomando banho Encantado pediu a sua criadagem que lhe trouxesse a mulher Os dois acabaram mantendo relações sexuais e Betsabeia engravidou Como o soldado Urias marido de Betsabeia estava ausente o pai só podia ser Davi Na época a punição de mulher adúltera era a morte por apedrejamento Abalado pela perspectiva de ver sua amada morta Davi apelou para a astúcia Procurou acobertar suas ações ao ordenar ao general Joab que providenciasse uma licença para Urias Feito isso empenhouse em persuadir o soldado a passar alguns dias em casa e dormir com a própria esposa Urias porém recusouse a quebrar o rito da abstinência dos que lutam em guerra santa O rei mandou então reintegrálo às tropas e instruiu Joab para que fosse destacado para uma frente de risco Urias pereceu em combate Ao tomar ciência do fato Davi simulou pesar Depois de breve luto a viúva se casou com o rei No fim Deus castigou Davi por suas ações ceifando a vida de seu primeiro filho com Betsabeia Em outras palavras diante dos ocasos da vida pessoas reconhecidamente corretas podem ser levadas a cometer desatinos Seriam por isso mesmo mauscaracteres desde o nas cimento Indivíduos cuja safadeza esteja inscrita em seu próprio DNA Claro que não Estabeleçamos um paralelo contemporâneo sobre abusos de poder tratase do rumoro so caso de Watergate em que estiveram implicados os principais assessores presidenciais De fato Richard Nixon presidente dos Estados Unidos avalizou um programa de inte ligência política e deu cobertura às ações pouco ortodoxas de seus homens de confiança Durante a campanha eleitoral para a renovação de seu mandato presidencial em 1972 ocorreu o arrombamento do quartelgeneral de seu oponente do Partido Democrata e os agentes encarregados foram surpreendidos pela segurança do condomínio Apesar de conseguir se reeleger por ampla maioria Nixon não escapou ao processo judicial que foi instaurado nem pôde evitar a incriminação de ter obstruído a Justiça Isso fez com que ele renunciasse à presidência em 1974 Em sua velhice no entanto foi bastante requisitado para proferir palestras como se parte considerável da população o houvesse absolvido Isso quer dizer que desde o berço e para todo o sempre Nixon não prestava Afinal quem de nós pode alegar nunca ter cometido alguma travessura ou até maldade Seria o bastante para nos qualificar como pessoa irremediavelmente depravada Vamos devagar com o andor O adágio das maçãs boas e podres poderia ainda ser rechaçado pela outra ponta Basta destacar situações em que gente velhaca se redime por atos de desprendimento e bravura É a reviravolta de Schindler Durante a Segunda Guerra Mundial um arrivista filiado ao Partido Nazista chamado Oskar Schindler aproximouse de altos oficiais da SS oferecendolhes bebidas e mulheres Conseguiu apossarse de uma fábrica de panelas na Polônia invadida e obteve um contrato de fornecimento para o exército alemão Wehrmacht Na falta de força de trabalho utilizou mão de obra escrava que foi recrutada entre os judeus de um campo de concentração vizinho Conseguiu prosperar rapidamente e ampliou a oferta de produtos fabricando munições e obuses para o esforço de guerra alemão Depois da adoção da solução final política de 1942 que determinou a eliminação em massa dos judeus Schindler mudou radicalmente de atitude De início alegou que seus trabalhadores 1 3 por que a investigação ética escravos eram indispensáveis para a produção e evitou que fossem mortos Depois diante das ameaças crescentes subornou os oficiais nazistas e conseguiu com que 1100 judeus fugissem Despendeu parte considerável da fortuna na empreitada Essas ações transformaram Schindler em uma figura ambivalente à semelhança do doutor Jekill o médico e de Mister Hyde o monstro De fato enquanto os aliados vitoriosos o consagraram como um herói desassombrado e humanista os nazistas o tacharam de traidor da pátria e do Partido um pária com objetivos sórdidos O que deduzir Que as pessoas não herdam um caráter inato vivenciam circuns tâncias sob o influxo de múltiplas determinações Como as empresas poderiam então precaverse contra o risco dos desvios de conduta Desde a mais tenra idade os agentes introjetam exigências morais Mas o esforço educativo não silencia a voz dos interesses nem controla o turbilhão das ambições não tutela os acontecimentos nem elimina as tentações logo não assegura uma integridade a toda prova Como as empresas poderiam deixar de ficar à mercê do capricho de seus colaboradores Como incutirlhes o senso de lealdade Quais intervenções previnem o valetudo Uma resposta possível seria implementar intervenções organizacionais como 1 Identificar as áreas da empresa e os postos que possam induzir os agentes a cometer práticas indesejáveis diagnóstico 2 Abrir a caixapreta para desconcentrar as atribuições que um único responsável enfeixa e redesenhar as funções mais sensíveis atalhando assim as oportunidades espúrias tecnologia 3 Estabelecer mecanismos de controle para monitorar as ações e minimizar os malfeitos que eventual discricionariedade propicia prevenção 4 Combater as racionalizações justificadoras demonstrando sua lógica particularista e mistificadora e disseminar sem trégua a necessidade de cumprir políticas normas e procedimentos mostrando os riscos que correm a empresa e os próprios colaboradores pedagogia 5 Sancionar exemplarmente os recalcitrantes que apesar das orientações fornecidas teimam em reincidir responsabilização No combate à falibilidade dos agentes a vigilância nunca pode baixar a guarda Fiarse nas aparências ou confiar na boa disposição dos colaboradores pode ocasionar sérios prejuízos às empresas Os muitos casos conhecidos mostram que em geral as fraudes são cometidas por quem já possui anos de casa está familiarizado com os meandros dos processos e principalmente com suas brechas conhece os limites dos controles internos e dispõe de razoável margem de manobra Exortações sermões e campanhas de esclarecimento têm eficácia limitada diante dos apelos ao consumo da ânsia por enriquecimento do afã de vencer na vida E por quê Por serem não só aspirações consagradas nas sociedades contemporâneas mas fontes de distinção pressões avassaladoras do cotidiano Assim não basta sensibilizar ou conscientizar os colaboradores quanto às implicações morais de seus atos É preciso convencêlos de que é de seu próprio interesse não prejudicar os outros E como corolário que toda transgressão sofrerá sanções Às vezes a investigação ética se cinge a aplacar as dores na consciência das empresas quando elaboram códigos de conduta moral Esforço elogiável sem dúvida mas inócuo principalmente quando tais códigos se reduzem à retórica das cartas de intenções ou a um rol de normas divorciadas da realidade Mais proveitoso seria auscultar a cultura 4 1 Ética EmprEsarial organizacional conhecer os desvãos que as empresas ocultam e propor orientações que possam ser de fato praticadas num prazo razoável Isso significa manter os pés no chão para não desmoralizar as diretrizes que se pretende implantar Significa localizar o leito sinuoso das situações sensíveis e implantar o quanto antes controles que inibam a inidoneidade As empresas que engajam seu pessoal nessa tarefa de forma participativa têm a vantagem de viabilizar o processo porque o legitimam São empresas que conver tem a investigação ética em bússola moral para o dia a dia O conhecimento ético traz à tona questões polêmicas e desenha um leque de opções para enfrentálas Ao ser convertido em pano de fundo das estratégias empresariais evita o conforto da permissividade ou a preguiça da omissão contribui para manter a coesão organizacional e cria um escudo contra as crises Diante da crescente complexidade das atividades empresariais fruto das novas exigências de eficiência inovação e competiti vidade os dilemas e as incertezas se multiplicam e o controle dos riscos tornase cada vez mais difícil O conhecimento ético tem a virtude de oferecer um quadro de referência para as ações corporativas porque exige análise de conjunto mapeia o peso desigual dos públicos de interesse partes interessadas na organização ou stakeholders e traça cenários consistentes para a tomada de decisão Em um mundo globalizado no qual a competição resvala muitas vezes para a con corrência desleal e em que a pressão dos clientes ganha dimensão inédita adotar um posicionamento eticamente orientado reduz a vulnerabilidade das empresas assume o papel de diferencial competitivo e serve de nervura para a perpetuidade do negócio QUESTÕES PARA REFLEXÃO 1 É costume ouvir no Brasil que desde a vinda de Cabral só se vê semvergonhice não há o que fazer Será isso mesmo 2 A questãochave poderia ser resumida assim como falta educação aos brasileiros a solução está em contratar gente de confiança Seria esta uma abordagem válida 3 Ainda que as pessoas nem sempre sejam confiáveis seria possível criar um ambiente de integridade organizacional Como fazêlo 5 2 A Ética como ciência social A Ética é perene a moral pertence ao tempo O QUE ESTUDA A ÉTICA À semelhança de Monsieur Jourdain o bourgeois gentilhomme de Molière que ficou aturdi do ao descobrir que falava em prosa dirigentes de empresas surpreendemse com o fato de que algumas decisões têm implicações éticas Isso significa que desconhecem o papel da autoridade moral em duas situações no exercício do poder e na obtenção da licença social para operar Com efeito a margem de manobra de quem perde a credibilidade é muito estreita quando não nula Por exemplo se descobrirem que um presidente de empresa falsificou suas credenciais acadêmicas ele acabará tendo que se demitir ou se um presidente de país for desmentido ao negar que sua mulher recebeu um empréstimo a juros baixos de um amigo rico ou se for acusado de ter plagiado partes de sua tese de doutorado esse presidente será obrigado a renunciar por ferir o decoro do cargo1 Motivo Quem deixa de desfrutar o respeito dos subordinados ou dos cidadãos perde a faculdade indispensável de comandar sofre de déficit de legitimidade para que suas decisões sejam levadas a cabo ou melhor carece de autoridade moral De forma similar empresas que fraudam a boafé de seus clientes ou de seus usuários como no caso das cooperativas de produtores de leite que acres centaram soda cáustica e água oxigenada ao produto para aumentar sua longevidade2 correm o sério risco de ver debandar a clientela e de fechar as portas porque deixam de possuir a licença social para operar Isso nos leva ao objeto de estudo da Ética e em particular da Ética aplicada aos negócios A Ética é um saber científico que se enquadra no campo das Ciências Sociais É uma disciplina teórica um sistema conceitual um corpo de conhecimentos que torna inteligíveis os fatos morais Mas o que são fatos morais São fatos sociais que implicam escolhas que os agentes fazem entre o bem ou o mal Traduzindo são eventos avaliados pelos agentes com base em juízos de valor certoerrado bomruim superiorinferior melhorpior etc apreciações sobre o que consideram aceitável ou inaceitável à luz dos valores que prezam Por exemplo hoje em dia invadir vagas de estacionamento reservadas a portadores de deficiência ou de idosos é reputado como errado impedir as ocorrências que levam ao fumo passivo é qualificado como bom pessoas que possuem educação formal são vistas como superiores em relação a pessoas analfabetas candidatos do sexo masculino são considerados melhores para empregos que exigem muitas viagens do que as candidatas do sexo oposto 1 Foi o caso respectivamente do CEO da Yahoo Scott Thompson que não cursou a graduação em Ciência da Computação como constava em seu currículo profissional 1352012 do presidente da Alemanha Christian Wulff 1722012 e do presidente da Hungria Pál Schmitt 242012 2 Tal situação ocorreu em outubro de 2007 em Minas Gerais 6 2 Ética EmprEsarial Duas considerações aqui se impõem A primeira é que o conhecimento científico não formula juízos de valor mas juízos de realidade observáveis mensuráveis verificáveis tais como benefícioprejuízo geralespecífico públicoprivado maioriaminoria etc Por exemplo dada decisão governamental beneficiou a maioria dos funcionários do setor público e tem pois caráter específico setorial Esta decisão pode ser descrita medida conferida Assim os conceitos científicos são universais e atemporais Enquanto os juízos de valor divergem entre si em função das condições históricas e culturais os juízos de realidade captam a lógica dos fenômenos morais e facultam a construção do consenso De que forma Apreendendo as regularidades que os eventos apresentam e rastreando padrões que tornam os fenômenos compreensíveis a despeito de sua diversidade histórica Isso permite prever sua ocorrência e intervir sobre a realidade Por exemplo os pés de cada um de nós são diferentes dos das demais pessoas Todavia a indústria de calçados opera com base em padrões ou com base em tamanhos padronizados cuja numeração embora mude de país para país são convertíveis e calçam perfeitamente todo tipo de pé O mesmo acontece com a indústria do vestuário Isto é dada uma situação aparentemente caótica captase a lógica que ordena os fenômenos e agese de forma competente Por conseguinte não cabe confundir os fatos morais que à semelhança dos costumes são relativos no tempo e no espaço e os conceitos abstratos e formais que instrumentam a análise objetiva Ou seja a Ética como disciplina teórica não se confunde com a moralidade que é seu objeto de estudo A segunda consideração é que a relatividade moral é um truísmo sobre o qual não cabe insistir pois basta citar costumes amplamente difundidos e hoje considerados aberrantes por seus efeitos negativos Citemos entre outros a o infanticídio praticado tanto no Império Romano para regular a oferta de alimentos à população quanto na China contemporânea em função da exigência oficial do filho único que provoca a eliminação preferencial de crianças do sexo feminino3 b o canibalismo que foi prati cado por algumas tribos brasileiras que devoravam inimigos derrotados e valorosos à semelhança de muitos outros povos primitivos c os sacrifícios humanos cujo ritual era largamente disseminado na Antiguidade para agradar a algum deus notabilizandose os astecas por utilizálo todos os dias como forma de propiciar o nascimento do sol d o suicídio como ritual por exemplo o seppuku japonês usado para limpar o nome da família ou como ato de violência contra os inimigos citando como exemplos os fundamentalistas muçulmanos que se transformam em homensbomba e os camicases japoneses na Segunda Guerra Mundial e a poligamia largamente difundida entre os povos antigos e que ainda se mantém viva em alguns países muçulmanos Em consequência uma coisa são os conceitos abstratoformais infanticídio canibalismo sacrifícios humanos suicídio poligamia outra coisa são as variadas manifestações concretas desses fenômenos Milhares de exemplos poderiam ser citados extraídos de fontes antropológicas ou jornalísticas Em setembro de 1999 os telespectadores da Tanzânia foram confrontados com imagens de peles humanas ao lado de cadáveres desmembrados dos quais as peles tinham sido retiradas O preço de cada pele variava entre US300 e US500 3 O infanticídio foi praticado do Tahiti à Groenlândia dos aborígines nômades australianos à Grécia antiga ou à China dos mandarins SINGER Peter Ética prática São Paulo Martins Fontes 1993 p 182 2 7 a Ética como ciência social Representantes das polícias de Zâmbia Tanzânia e Maláui se comprometeram a atuar em conjunto para pôr fim ao que qualificaram como uma vergonha para a África Oriental Na região sobretudo no Zaire feiticeiros utilizam as peles para produzir poções mágicas órgãos genitais de crianças convertemse em poções medicinais e a pele da cabeça de homens calvos é um dos insumos para dar sabedoria a quem a consome4 Outra ilustração chocante aos olhos da civilização ocidental é a da circuncisão feminina Entre os muçulmanos africanos a mutilação genital das adolescentes e das meninas entre os 4 e os 8 anos de idade corresponde a um mandamento divino ou a uma obrigação natural Há três formas de mutilação genital feminina a a clitoridectomia em que se extirpa total ou parcialmente o clitóris b a excisão em que se extirpam o clitóris e os lábios menores da vagina total ou parcialmente c a infibulação em que se extirpam todos os genitais e se costura quase todo o orifício genital deixando uma pequena abertura para a passagem da urina e do sangue da menstruação Em mulheres adultas colocamse também argolas de metal ou colchetes ou ainda costurase a genitália sob o pretexto de evitar o ato sexual Quase 15 das mulheres submetidas à mutilação genital morrem durante o ato porque a circuncisão é feita sem anestesia com tesouras cacos de vidro tampas de lata navalhas lâminas facas instrumentos estes que quase nunca são esterilizados Em algumas regiões da África Ocidental cinzas ou fezes de animais são colocadas no ferimento para estancar a sangria o que aumenta a incidência de infecções graves hemorragias abscessos pedras na bexiga e na uretra obstrução do fluxo menstrual e cicatrizes proeminentes Os fundamentalistas muçulmanos argumentam que é indispensável proteger as mulheres das consequências do excessivo desejo sexual e atribuem a Maomé a afirmação de que a circuncisão é uma necessidade no homem e um adorno na mulher Os demais homens e mulheres manifestamse convictos de que remover os genitais femininos externos é questão de respeito e honra garantia de um bom casamento e fortalecimento da união da tribo pois um dos maiores insultos na África Islâmica é chamar alguém de filho de uma mãe não circuncidada A prática é antiquíssima anterior ao cristianismo e ao islamismo datando de pelo menos 2200 anos5 As mulheres ocidentais conscientes de sua especificidade e empenhadas em preservar a dignidade do gênero horrorizamse hoje diante desses relatos Conquistaram direitos no século XX que lhes eram negados no século anterior trabalhar fora de casa matricularse na faculdade comprar e vender imóvel dar queixa na delegacia ações elementares que deixaram de precisar da autorização por escrito do marido Ou ainda votar usar contraceptivos não ser deserdadas pelo pai por ter perdido a virgindade não se manter virgens até a noite de núpcias não ser educadas tão só para casar e ter filhos decidir adotar ou não o sobrenome do marido exigir prazer nas relações sexuais poder fumar e beber sem sofrer desaprovação moral Em poucas palavras questionaram sua situação de menoridade e assumiram sua igualdade de fato 4 SMITH Alex Duval África combate venda de pele humana The Independent reproduzido pela Folha de S Paulo 29 de outubro de 1999 5 LISBOA Luiz Carlos Argolas metálicas para prevenir atos sexuais O Estado de S Paulo 21 de julho de 1996 revista Veja 10 de junho de 1998 FARAH Paulo Daniel Circuncisão afeta 2 milhões de mulheres por ano Folha de S Paulo 1 de janeiro de 1999 IDOETA Carlos Alberto Mulheres mutiladas Folha de S Paulo 8 de março de 1999 8 2 Ética EmprEsarial Naturalmente os diferentes padrões culturais desfrutam de justificações morais que as sociedades lhes conferem Assim as morais são múltiplas e nenhum sistema de normas morais consegue obter o selo da eternidade ou a aura da universalidade Porque os pa drões morais fincam suas raízes na história nos eventos singulares e em fluxo donde seu caráter efêmero transitório provisório passageiro mutável Mas como identificar os fatos morais São fatos sociais que possuem algumas caracterís ticas próprias Quais Afetam objetivamente as pessoas para o bem ou para o mal provocam efeitos positivos ou negativos sobre os agentes sociais geram benefícios ou malefícios Isso significa que muitos fatos sociais são eticamente neutros objetos de estudo da Sociologia não da Ética Por exemplo contatos sociais e atividades profissionais de rotina são etica mente neutros participar de reuniões de trabalho integrar um grupo de estudo fazer uma excursão com parentes tomar uns aperitivos com colegas comprar ingressos no cinema visitar amigos definir com superiores quais tarefas devem ser cumpridas conversar com vizinhos sobre trivialidades torcer em coro pela seleção brasileira num estádio de futebol assistir à televisão com a família trocar amenidades com desconhecidos numa festa etc Imaginemos agora um taxista levando um passageiro e trocando impressões sobre o trânsito insano da capital de São Paulo O diálogo entre os dois constitui sem dúvida um fato social porém neutro do ponto de vista ético o intercâmbio de ideias versa sobre os transtornos causados pelo trânsito nada mais Todavia chegado ao destino o pas sageiro pede um recibo para se ressarcir das despesas junto à empresa na qual trabalha O taxista então lhe pergunta De quanto Neste instante a situação assume caráter moral tornase objeto de estudo da Ética Porque a pergunta do motorista maliciosamente cúmplice lança um dilema força o passageiro a tomar posição O que fazer Lesar sua companhia em benefício próprio ou agir com honestidade A escolha está posta Se o pas sageiro solicitar um recibo correspondente ao valor efetivo da corrida a ação é eticamente positiva pois não prejudica ninguém mas se inflar a despesa para embolsar a diferença a ação é eticamente negativa porque prejudica o empregador e peca pela improbidade No dia 1 de março de 2005 a revista brasileira Quem acontece estampou em sua capa a foto de Chico Buarque de Hollanda beijando uma moça na praia do Leblon no Rio de Janeiro Seria esse um fato moral isto é um objeto de estudo da Ética Aparentemente não porque dois adultos podem se beijar à vontade sem que isso constranja a população Contudo por se tratar de Chico Buarque o ato atrai a atenção de muita gente Mas seria suficiente para justificar tamanho destaque É duvidoso As páginas internas da revista entretanto desvendam o mistério A moça é casada e não é com Chico Estamos diante de um escândalo moral Por quê Porque afeta a vida do marido a dela e a dos dois filhos e põe em xeque a fama de bom moço do famoso compositor e romancista um ícone da cultura brasileira Em resumo porque sugere um adultério A mídia se deliciou com o ocorrido e muitas mulheres suspiraram ansiando pelo lugar de Celina O marido Ricardo porém deu entrevista na Folha de S Paulo e disse com todas as letras o beijo não foi traição foi coisa daquele momento um impulso que a mulher não conseguiu controlar E completou dizendo que o perdão morava em seu coração Ao final pediu que deixassem o casal em paz e que o Chico fosse procurar alguém da idade dele em uma clínica geriátrica Dados os efeitos sobre os envolvidos não resta dúvida a situação teve caráter moral e portanto constitui objeto de estudo da Ética Da mesma forma que o caso da Cisco Systems revelado pela ação conjunta da Receita da Polícia e do Ministério Público todos eles órgãos federais 2 9 a Ética como ciência social Um esquema fraudulento de comércio exterior foi desarticulado em outubro de 2007 O prejuízo em impostos sonegados nos cinco anos anteriores foi estimado em R 15 bilhão e a operação prendeu 40 pessoas da empresa norteamericana Cisco Systems gigante na área de soluções para rede e roteadores Entre eles o presidente da Cisco do Brasil e o expresidente bem como 39 funcionários públicos empresários e funcionários de 30 empresas acusadas de envolvimento com o esquema de fraudes exportadoras importadoras e distribuidoras laranjas O esquema operava em três estados brasileiros São Paulo Rio de Janeiro e Bahia e nos Estados Unidos As acusações contra a Cisco se desdobraram numa lista que impressiona corrupção ativa e passiva contrabando e sonegação de impostos ocultação de patrimônio formação de quadrilha falsificação de documentos e descaminho nas importações De forma similar interessa à Ética o escândalo ocorrido na montadora alemã Volkswagen em julho de 2005 Alguns dos principais gestores foram demitidos sob a acusação de usar o dinheiro e a influência da companhia em proveito pessoal No episódio um gestor denunciou as festinhas organizadas pela subsidiária brasileira que reuniam altos executivos sindicalistas e acompanhantes Em fevereiro de 2008 o executivo Klaus Volkert foi condenado por um tribunal alemão a 33 meses de cadeia por ter aceitado propina e usado o dinheiro da empresa para bancar iniciativas polêmicas tal como o patrocínio de um programa de TV no Brasil cuja apresentadora Adriana Barros era amante dele O caso que envolveu em maio de 2011 o diretorgerente do Fundo Monetário Interna cional Dominique StraussKahn também se converte em assunto de interesse da Ética Acusado de ter estuprado uma camareira ganesa num hotel de Nova York foi preso e depois libertado mediante o pagamento de uma fiança de 1 milhão de dólares As repercussões mundiais foram de tal monta negativas que não lhe restou senão renunciar ao cargo de diretorgerente do FMI E mais embora as pesquisas de intenção de voto o considerassem favorito à presidência da República francesa pelo partido socialista contra o presidente Nicolas Sarkozy perdeu a vez e teve que abandonar quaisquer pretensões eleitorais Para um homem público não há assunto privado que escape ao escrutínio da opinião pública porque desvela disposições incompatíveis com o que se espera de alguém que tem ou que irá assumir responsabilidades de caráter coletivo À luz desses episódios rastreamos três formas que o fato social assume aos olhos da análise ética Pode se apresentar como 1 eticamente neutro ou amoral quando não afeta as pessoas para o bem ou para o mal não é objeto de estudo da Ética6 6 Segundo o dicionário Houaiss como adjetivo amoral significa moralmente neutro nem moral nem imoral que não leva em consideração preceitos morais estranho à moral porém como substantivo significa pessoa destituída de senso moral Por certo esta flutuação provoca certa confusão entre os conceitos de amoralidade e de imoralidade 10 2 Ética EmprEsarial 2 eticamente positivo ou consensual quando exige conduta proativa por parte de um agente que respeita os interesses dos outros e até os beneficia 3 eticamente negativo ou abusivo quando implica satisfação de interesses às expensas dos interesses alheios Vamos exemplificar Alguns funcionários lidam com informações confidenciais e sua função consiste em resguardálas pela discrição não podem comentálas em locais públicos restaurantes elevadores estacionamentos transporte público reuniões nem divulgálas a quem quer que seja de viva voz ou por intermédio de alguma mídia As exigências constam do perfil do cargo de maneira que seu cumprimento é eticamente neutro amoral Contudo se um colega vier a pressionar algum deles para obter in formação reservada no intuito de se valer dela em proveito próprio o funcionário pres sionado terá de solver o seguinte dilema a se atender à solicitação e vazar o sigilo irá ferir as expectativas e os interesses da empresa e deixará de cumprir as exigências do cargo solução abusiva b se resistir e se recusar terminantemente a dar as informações solicitadas e até denunciar o colega à auditoria interna irá corresponder ao comporta mento esperado e beneficiará a empresa solução consensual Assim tirar fotocópias de escritos próprios para uso pessoal é uma prática amoral Em contrapartida tirar fotocópias desses mesmos documentos para dar aula a alunos desprovidos de recursos materiais é uma prática consensual pois gera um bem restrito universalista que não prejudica ninguém Todavia tirar fotocópias de um livro alheio sem o respectivo pagamento dos direitos autorais ou sem o consentimento do autor é uma prática abusiva porque gera um bem restrito particularista ao prejudicar interesses alheios Ou ainda é amoral fabricar produtos para satisfazer as necessidades de clientes ob servando as devidas especificações técnicas Mas é consensual como empresário praticar o consumo consciente não desperdiçar energia água e matériasprimas e não utilizar insumos que degradem o meio ambiente porque beneficia a humanidade como um todo Em contraposição é abusivo agredir o meio ambiente utilizar mão de obra infantil adulterar a composição o peso ou as medidas dos produtos fabricados Por fim é amoral falar ao telefone para tratar de assuntos de seu próprio cotidiano enquanto é consensual utilizar o aparelho para angariar fundos que custeiem entidades beneficentes ou para promover ações humanitárias Em contraste é abusivo bisbilhotar a vida alheia fazendo escuta em linha cruzada Nessa altura faremos uma ponderação Vale a pena observar que certas atividades sociais aparentemente neutras do ponto de vista ético implicam necessariamente a produção de efeitos morais sobre os outros Por exemplo guiar um carro ou uma motoci cleta só pode ser feito estando sóbrio e respeitando as regras de trânsito ou seja agindo de forma responsável caso contrário tratase de condução perigosa e irresponsável que põe em risco a vida das demais pessoas Simetricamente nas relações amorosas ou nas relações de amizade ou se age de forma leal ou de forma desleal Na política também ou se visa ao bem comum ou se satisfazem interesses subalternos a expensas do bem comum Com essas ilustrações fica claro que os conceitos classificatórios de amoralidade ou de neutralidade ética não afeta os outros de consenso ou eticamente positivo interessa a todos e de abuso ou eticamente negativo prejudica outros têm caráter abstratoformal e seu âmbito é atemporal mas as suas expressões existenciais mudam ao sabor dos tempos7 7 Tratase de juízos de realidade ferramentas de classificação à semelhança dos conceitos de externalidades positivas e negativas em economia de eletricidade positiva e negativa em física de corpo saudável e doente em medicina de aliados e inimigos em ciência política de comportamento social e antissocial em psicologia social de processos de cooperação e de competição em sociologia de ato lícito e ilícito em direito etc 2 11 a Ética como ciência social Em outros termos os conceitos éticos como quaisquer conceitos científicos são univer sais operam como uma gramática que traveja todos os discursos Em compensação os fatos morais têm caráter concretoreal e seu âmbito é histórico revestemse de relativismo cultural Qual é então o papel da Ética Aplicar seus conceitos na observação descrição investigação e explicação dos fatos morais Em suma a Ética é uma disciplina teórica que se caracteriza pela generalidade de seus conceitos e que investiga os fenômenos morais objetos singulares e reais estuda portanto a moral praticada pelas coletividades os modos de agir que afetam as pessoas para o bem ou para o mal Dito isso no entanto surge uma dúvida pertinente Como reconhecer o bem ou o mal se do ponto de vista histórico sua percepção é mutável Resposta quando os padrões culturais assim os qualificarem ou quando o consenso científico a respeito for estabelecido Por um lado por exemplo o incremento da tolerância no tocante ao casamento interracial nos Estados Unidos passou de 4 em 1958 para 86 em 2011 mudança dos padrões culturais em função de vários fatores históricos entre os quais a luta dos negros por direitos civis e a crescente liberalização dos costumes8 Por outro lado também o hábito de fumar era considerado uma questão de preferência até os anos 1990 sendo até considerado elegante e charmoso De maneira que era socialmente amoral e era também eticamente neutro porque inexistia o consenso científico a respeito dos males que causava Hoje em dia fumar foi moralizado ou dito de outra forma vem sendo qualificado com base em juízo de valor deixou de ser glamourizado e passou a ser estigmatizado O que mudou Tornaramse irrefutáveis as provas quanto aos efeitos altamente nocivos do tabagismo e diante das evidências os padrões morais foram afetados O juízo de realidade converteuse em juízo de valor ou mais especificamente o conhecimento científico ganhou foro de padrão cultural Muitos fatos sociais são eticamente neutros porque comprovadamente não causam nem bem nem mal Todavia cabe indagar será que muitos fatos sociais são eticamente neutros porque sua moralidade não foi reconhecida nem pela ciência nem pelos agentes sociais ainda que mais tarde se reconheça sua natureza moral A resposta é positiva Aliás a dinâmica histórica servenos de ilustração No Ocidente atual muitas atividades foram amoralizadas passando de defeitos morais a opções de estilos de vida Deixaram de ser portanto objetos da Ética Por exemplo ser mãe e trabalhar fora o divórcio os filhos ilegítimos ser mãe solteira a virgindade o sexo prémarital a masturbação a sodomia o sexo oral a homossexualidade o ateísmo9 o casamento interracial a nudez a multiplicidade de parceiros sexuais o uso de preservativos para evitar uma gravidez indesejada ou as doenças venéreas10 A análise objetiva comprova que deixar de considerálos problemas morais não causa prejuízo social ainda que algumas situações inspirem cuidados Por exemplo o 8 Pesquisa Gallup de 47 de agosto de 2011 reproduzida em httpwwwglobalethicsorg newsline20110912marriages 9 O nível de tolerância do homossexualismo vem crescendo a ponto de obter aceitação de 91 dos espanhóis 87 dos alemães 86 dos franceses e 81 dos britânicos em comparação com 60 dos norteamericanos Ademais o estigma que pesa sobre os ateus considerados imorais por não terem fé no sobrenatural está se desfazendo 85 dos franceses 81 dos espanhóis 80 dos britânicos e 67 dos alemães não acreditam que a crença em Deus seja precondição para que as pessoas sejam morais embora 53 dos norteamericanos ainda persistam em acreditar que sem Deus não possa existir moralidade pesquisa da Pew Reseach Center httpwwwglobalethicsorgnewsline201111 10 Paul Rozin estudou os processos de moralização e de amoralização em laboratório em A Brandt P Rozin eds Morality and Health Nova York Routledge 1997 A pesquisa foi citada por Steven Pinker em Tábula rasa a negação contemporânea da natureza humana São Paulo Companhia das Letras 2004 p 3746 12 2 Ética EmprEsarial relacionamento sexual com múltiplos parceiros impõe a necessidade de praticar sexo seguro com uso de preservativos casamentos desfeitos impõem responsabilidades para com os filhos que resultaram dessas uniões clara definição do poder familiar ou guarda partilhada mães solteiras ou que trabalham fora têm de encontrar meios para que suas crianças recebam a devida atenção creches ou parentes dispostos a cuidar delas etc São questões que exigem equacionamentos competentes mas que não exacerbam mais os ânimos como acontecia outrora como se fossem graves desvios de caráter Em sentido contrário muitas práticas se tornaram problemas morais quer dizer foram moralizadas tornaramse objetos de estudo da Ética à medida que foram cientificamente reconhecidas como tais a publicidade para o público infantil a segu rança dos automóveis e dos produtos de consumo as armas de brinquedo as roupas fabricadas em sweatshops as embalagens descartáveis a comida lixo junk food os refrigerantes o açúcar refinado os aditivos em alimentos o assédio moral e o sexual o tratamento dispensado aos porcos ou frangos nas granjas de criação a forma de abater o gado a exploração madeireira sem manejo florestal as fazendas que usam defensivos agrícolas ou agrotóxicos a pesca predatória com a consequente extinção dos cardumes a pecuária que desmata a mineração descompromissada com a recuperação do meio ambiente a exploração petrolífera com seus riscos de desastres ambientais os casacos de pele as represas hidrelétricas a energia nuclear a violência na televisão o abandono de animais domésticos o foie gras os bônus milionários dos executivos as touradas as piadas racistas a pedofilia o peso das modelos Vale a pena perguntarse então por que certas práticas deixaram de ser problemas morais enquanto outras se tornaram objetos de estudo da Ética A pesquisa deve focalizar de um lado o contexto histórico que favoreceu a mudança dos padrões e de outro o avanço científico realizado Com qual intuito Identificar a natureza das práticas para saber se são anódinas ou se produzem algum impacto sobre outros agentes em termos de benefícios ou de malefícios observáveis A CONTROVÉRSIA DAS ACEPÇÕES O termo ética originase do grego ethos que vem a ser o caráter distintivo os costumes hábitos e valores de uma determinada coletividade ou pessoa Foi traduzido em latim por mos ou mores no plural que significa também conjunto de costumes ou de normas adquiridas por hábito A palavra moral em português deriva daí Ocorre que na linguagem do dia a dia a expressão ética tem sido utilizada em diferentes sentidos11 Um primeiro sentido muito difundido é descritivo ou factual referese aos costumes ou à maneira correta de agir de uma determinada sociedade Vale dizer designa o que se pratica do ponto de vista moral aos usos reconhecidos e socialmente sancionados tal como na expressão falta de ética no lugar de falta de escrúpulos quebra de confiança ou lesão ao bem comum ou como na adjetivação pes soas éticas entendidas como pessoas de bem confiáveis ou de caráter Nesse preciso sentido ética remete à moralidade de uma sociedade específica Um segundo sentido é prescritivo ou normativo indica o conjunto de preceitos que estabelecem e justificam normas e deveres como nas expressões ética protestante ou ética estoica substituem moral protestante e moral estoica Também recobre os códigos de ética das organizações e os códigos de conduta profissional a exemplo das expres sões ética da empresa ou ética médica Este sentido então equivale à moral como 11 MARCONDES Danilo Textos básicos de ética Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 p 10 2 13 a Ética como ciência social sistema de normas que pauta as condutas dos agentes sociais ou ao código de conduta profissional de certas categorias sociais Um terceiro sentido é reflexivo ou teórico reporta ao estudo sistemático dos funda mentos e dos pressupostos da moralidade Diz respeito a às concepções filosóficas da ética ética das virtudes de Aristóteles ou ética dos princípios de Kant ou b às teorias científicas de Max Weber ética da convicção e ética da responsabilidade Em outros termos significa teorias sentido que nos permite categorizar a Ética como ciência da moral ou como estudo dos fatos morais12 A tradição secular que remonta aos gregos mantém certa hegemonia discursiva e confina a Ética a uma área ou a um tema da filosofia Em decorrência constitui uma abordagem que tende a ser normativa e prescritiva e que como todo discurso filosófico é especulativa pois prescinde de provas empíricas Em contraposição a abordagem científica é descritiva investigativa e explicativa e se configura necessariamente como discurso demonstrativo à medida que nenhuma afirmação pode ser feita sem anunciar suas condições de verificação13 De fato enquanto a Ética filosófica reflete sobre a melhor forma de viver uma vida digna ou sobre o dever ser isto é tem por objeto os ideais morais a Ética científica estuda os fatos morais observa descreve investiga e explica o que é ou seja tem por objeto evidências objetivas Do ponto de vista didático e para sermos mais precisos diremos que o senso comum confere à expressão ética três acepções 1 confunde a Ética com a moral sistema de normas morais que deveria pautar a conduta dos agentes de dada coletividade 2 converte a Ética em um valor que serve para qualificar organizações empresa ética indivíduos sujeito ético ou comportamentos conduta ética 3 assimila a Ética ao código de deveres profissionais que determinadas categorias convencionam ética dos administradores ética dos advogados ética dos engenheiros etc Em todos os casos consagra o uso descritivo da Ética e presta uma homenagem ao termo pois na voz corrente ser ético corresponde a agir de maneira íntegra confiável ali nharse com as expectativas sociais obedecer aos preceitos morais vigentes Ocorre que tal sentido embute um grave problema o de associar a Ética à realidade históricoconcreta subtraindolhe o caráter científico que remete a um corpo de conceitos de validade e aplicação universais Dito isso é curioso observar por que o termo ética sobrepujou o termo moral no Brasil E por quê Porque a moral foi desmoralizada Uma das razões de caráter anedótico encontrase nos cursos de Educação Moral e Cívica que foram instaurados e ministrados durante o regime autoritáriomilitar 1964 a 1985 Quem os assistiu cos tuma referirse a eles como tediosos e pouco instrutivos além de ufanistas Outra razão é a confusão que se estabeleceu entre moral e falso moralismo como se a moralidade fosse um jogo de faz de conta em que todos fingem e todos sabem disso fariseus con graçados num baile de máscaras Além do mais nessa substituição dos termos escondese uma razão substantiva ela diz respeito à multiplicidade das morais ou seja ao relativismo moral De fato referirse 12 Assim sendo ética empresarial remete à ética aplicada às empresas ou ao estudo da moral praticada pelas empresas 13 A tradição filosófica remonta a Sócrates Platão e Aristóteles ou seja já dura 25 séculos em contraste com a tradição científica inaugurada por Émile Durkheim e Max Weber no início do século XX 14 2 Ética EmprEsarial ao caráter moral de uma determinada decisão ou ação não assegura que ela tenha valor universal Afinal de contas mafiosos também cultivam um código moral ou um código de honra e os valores e as normas que os inspiram não se coadunam com as diretrizes do restante da sociedade a que pertencem Assim sendo a variabilidade das morais e a existência de morais estranhas à moral oficial colocam o uso da expressão sob suspeita Qual é então a chave de decifração da Ética Diferentemente da Sociologia que estuda as relações sociais em geral a Ética focaliza as ações e as decisões dos agentes sociais apenas e tão somente quando afetam os demais agentes Assim ela se importa em saber se tais ações e decisões respeitam os interesses dos outros ou se ao contrário os desres peitam Em suma se beneficiam os outros ou os prejudicam Vamos citar alguns fatos do cotidiano e enfeixálos sob essas duas rubricas Quando um motorista estaciona o carro em fila dupla diante de uma escola ou de um estabelecimento comercial e com isso tumultua o trânsito está obviamente cometendo uma ação que desrespeita os interesses alheios porque os prejudica E tal fato nada tem de subjetivo pois tratase de constatação objetiva que se pode aferir quantas pessoas foram afetadas e quantos minutos elas perderam no engarrafamento O que caberia então ao motorista fazer Recusarse isso sim a estacionar em fila dupla como medida de respeito aos interesses alheios Quando uma empresa fornecedora suborna o responsável pela área de suprimentos da empresa compradora para obter o pedido de fornecimento de algum produto prejudica obviamente os concorrentes pois lhes faz concorrência desleal Quando alguém cospe na rua urina nos becos picha paredes lança pontas de cigarro no chão usa o celular ao volante grita em recintos fechados cheios de gente arroja garrafas PET nos cursos dágua larga seu lixo em parques públicos acelera sua moto com escapamento aberto durante a madrugada e assim por diante esse alguém comete abusos que provocam danos à coletividade O que lhe caberia fazer Respeitar os interesses dos outros abstendose decididamente de praticar tais atos AS AGÊNCIAS DE CONTROLE Alguns tradicionalistas afirmam que nos tempos atuais os costumes degeneraram a permissividade se espraiou e as pessoas deixaram de ter caráter Curiosamente e num interminável cantochão tais alegações podem ser rastreadas ao longo dos séculos De fato desvios de conduta sempre ocorreram nas economias mercantis motivados pela ganância ou por mil outras razões Uma analogia poderia iluminar a discussão Enquanto as pulsões como a fome a sede o sono e o prazer sexual dispõem de um mecanismo natural de controle que é a saciedade que ocorre pelo menos por um tempo os fetiches sociais nas economias mercantis como a acumulação de riqueza de poder ou de prestígio não têm limites traçados A saber falta um interruptor que trave a ânsia irrefreável dos agentes E nessa cunha que entram as restrições morais e legais Isso equivale a dizer que quando há abuso no uso dos recursos materiais desperdício extrapolação no exercício do mando arbítrio ou manipulação da fama engodo agentes sofrem danos e em consequência podem reagir aos males que lhes são infligidos Eis por que é preciso regular os fatores que perturbam a ordem das coisas este é o motivo de ser das agências sociais de controle Apesar dessa constatação duas observações precisam ainda ser feitas A primeira consiste em reconhecer o enfraquecimento das agências tradicionais de controle social a família a comunidade local a escola a igreja principalmente nas metrópoles em que a atomização dos agentes sociais virou regra Nesta matéria a grita dos tradicionalistas 2 15 a Ética como ciência social encontra respaldo porque alerta contra a perda de referências importantes e sinaliza o crescimento vertiginoso das práticas particularistas cuja natureza consiste em abusar dos interesses alheios a despeito da substituição das antigas agências de controle social por outras Com efeito o turno da vez está sendo cumprido por agências como a as empresas quando orientam ou disciplinam seus colaboradores b o mercado quando os clientes selecionam fornecedores e prestadores de serviços em função de sua competência técnica e cada vez mais de sua idoneidade c a mídia quando expressa a vigilância da sociedade civil contra desmandos de diferentes ordens d o Estado quando consagra legalmente os novos padrões morais e sanciona os infratores Não há como negar entretanto que vivemos um período de transição histórica que põe em xeque valores e normas morais até então consensuais As determinações históricas dessa transfiguração são a a Revolução Digital com sua teia informacional que opera em tempo real graças às telecomunicações via satélite b a globalização econômica com a constituição de uma produção mundial fato histórico inédito e de um capitalismo competitivo de âmbito planetário c a passagem de um capitalismo excludente para um capitalismo social d a redefinição do Estado dirigista em favor de um Estado regulador e a superação de uma sociedade industrial com primazia dos ativos tangíveis para uma sociedade da informação com primazia dos ativos intangíveis economia do conhecimento14 Citemos entre outros alguns fatores que redefiniram a configuração anterior A corrosão da autoridade moral ou o desencanto com os mais velhos políticos governantes juízes policiais religiosos professores jornalistas O crescente aumento dos índices de criminalidade e a banalização da violência sob o influxo de uma urbanização caótica e de um consumismo desenfreado Os novos formatos de relacionamento familiar que há muito já transcenderam a família extensa e agora sobrepujam a própria família nuclear com a múltipla presença de padrastos madrastas e enteados além da união entre pares do mesmo sexo O abalo sísmico representado pelo desemprego tecnológico a acelerada obsolescência das competências técnicas que a Revolução Digital provoca e a aguda falta de oportunidades de trabalho para os jovens idosos portadores de deficiência analfabetos e discriminados de toda sorte A forte rotatividade que assola as empresas reformulando ou esfacelando os laços de lealdade que existiam entre elas e seus colaboradores A segunda observação remete à explosão e à diversificação da mídia com inúmeros canais alternativos privados ou comunitários que não dependem exclusivamente da publicidade paga pelos grandes anunciantes mas se valem de outras fontes de financiamento como as associações e os pequenos negócios e desfrutam do baratea mento dos equipamentos e dos processos de difusão Basta lembrar que a Internet mudou as regras do jogo os blogs por exemplo divulgam não só informações e opiniões mas também policiam a grande imprensa Nessas condições muitos veículos acabam sendo forçados a desenvolver dotes críticos e a revelar sem dó os abusos as mazelas e as trapaças do mundo corporativo Travase então uma disputa entre as mídias e até entre as editorias de um mesmo veículo para colher furos e es tampálos em primeira mão A velha prática de colocar debaixo do tapete tudo o que 14 Ver do autor Poder cultura e ética nas organizações Rio de Janeiro Elsevier 2012 3ª edição revista Introdução e capítulo 1 16 2 Ética EmprEsarial podia afetar a imagem dos principais anunciantes vem sendo revista ou descartada E quem persiste na postura tradicional assume os riscos de comprometer a própria capacidade de competir A história do Dr Jeffrey Wigand cientista e diretor de pesquisas de uma importante empresa fabricante de cigarros foi conhecida em um artigo publicado pela Vanity Fair Ele foi demitido quando seus escrúpulos o levaram a confrontarse com seus empregadores Apesar de estar manietado legalmente por um contrato que o proibia de revelar qualquer informação sobre a empresa já que podia ser multado e até ser processado criminalmente e depois de sobreviver a ameaças e pressões que pretendiam silenciálo Wigand testemunhou diante de um tribunal Denunciou os Sete Anões as sete grandes indústrias do fumo por terem aumentado as doses de nicotina nos cigarros embora soubessem que a substância provocava dependência Seu testemunho desencadeou um dos maiores escândalos na imprensa norteamericana porque desmascarava o cinismo dos executivos que perante uma Comissão em Washington haviam jurado ignorar que a nicotina fosse um fator de dependência Os Sete Anões moveram então uma campanha de desqualificação moral de Wigand Sua boia de salvação foi o produtor do programa jornalístico 60 Minutes da rede de televisão CBS Lowell Bergman que repassou seu depoimento a dois grandes jornais novaiorquinos The New York Times e The Wall Street Journal e também relatou as pressões que o 60 Minutes estava sofrendo para não levar ao ar uma entrevista dele Bastante tempo depois em processo judicial os fabricantes tiveram que desembolsar a Wigand a multa de US 246 milhões15 É fácil verificar que investigações jornalísticas parlamentares e acadêmicas viabilizamse plenamente apenas em sociedades regradas por regimes liberais E por que isso Porque malgrado sua variabilidade essas sociedades dispõem de uma cidadania que preza os direitos das minorias e exige transparência por parte daqueles que lidam com clientes consumidores e usuários Daí o relevo conferido à credibilidade das autoridades e das empresas daí o fato de os escândalos ganharem as manchetes e assombrarem os vivos É verdade no entanto que denúncias reiteradas saturam rapidamente a opinião pública a não ser que ingressem em uma escalada de desfaçatez Depois da indignação inicial a exaustiva repetição de eventos similares banaliza os conteúdos e minimiza os impactos Mas é também verdade que embora algumas empresas escapem às sanções legais suas reputações ficam manchadas e dificilmente recobram seu brilho até mesmo quando as acusações que lhes são imputadas carecem de fundamento Basta citar o famoso caso da Escola de Educação Infantil de Base no bairro da Aclimação na capital de São Paulo Em março de 1994 os donos do estabelecimento foram acusados de maneira infundada de estarem envolvidos em práticas de abuso sexual de crianças Baseado em um único laudo que indicava que uma criança poderia ter sofrido abuso porque tinha pequenas lesões no ânus o delegado encarregado do caso prendeu os pais de um aluno 15 O caso teve uma versão filmada cujo título no Brasil foi O Informante 2 17 a Ética como ciência social e indiciou as duas donas da escola e seus maridos Ocorre que ele havia interrogado as crianças sem auxílio de psicólogos Além do mais e sem deter provas concretas passou informações à mídia juntamente com duas mães de alunos A mídia por sua vez divulgou tudo o que lhe foi passado sem a prévia e necessária checagem O tratamento sensacionalista das denúncias teve uma repercussão devastadora E apesar de se declararem inocentes os acusados chegaram a temer um linchamento Diante da fragilidade das provas a Justiça mandou outro delegado assumir o inquérito Três meses depois as novas investigações provaram que tudo não passou de uma sequência de erros das mães e do delegado assim como da mídia que noticiou a versão e até chegou a incentivar a violência física contra os acusados A casa onde funcionava a escola foi depredada os indiciados perderam seu negócio e tiveram que tomar dinheiro emprestado para reformar o imóvel que era alugado Por fim com as reputações destroçadas tiveram dificuldade para reconstruir suas vidas apesar do fato de o Tribunal de Justiça de São Paulo em 1999 ter fixado uma indenização de R100 mil com juros e correção monetária por dano moral para cada um deles Posteriormente em 2002 a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça STJ reformou a decisão e condenou a Fazenda do Estado de São Paulo a pagar R 250 mil a cada um dos proprietários Alguns afirmam que embora seja um valioso instrumento de vigilância democrática a mídia tem um enorme potencial para causar prejuízos à imagem das empresas e das pessoas quando ignora o princípio da presunção de inocência e quando propaga inves tigações policiais ou administrativas que deveriam se pautar pelo sigilo e pela discrição Decorre daí a indignação contra os abusos da liberdade do pensamento ou do direito à in formação levando a opinião pública a exigir que autores e veículos sejam responsabiliza dos16 A mídia não poderia assim transformarse em tribunal sem apelação pretendendo revelar a verdade para que a opinião pública se converta num juiz sem amarras porque livre das precauções processuais e das regras estritas do contraditório Afinal de contas é difícil ter a garantia de que a busca de elevação dos índices de audiência coincida com a revelação objetiva da verdade17 Em contrapartida outros argumentam que a função da mídia se assemelha à de um promotor público Vale dizer que ela exerce um papel justiceiro informal aplicando penalidades dentro de seu próprio espaço que é o das convicções da opinião pública Seria pior se não as aplicasse apesar dos riscos de injustiça envolvidos porque de certo modo a mídia tem como obrigação presumir a culpa ainda que exageros devam ser evitados ela divulga escândalos que podem ser falsos mas que são plausíveis seu ímpeto acusatório em 90 dos casos está certo e os 10 restantes são atribuíveis ao exagero que se pode corrigir embora nesses casos seja melhor errar por excesso do que por falta E os erros também são notícia18 O debate a esse respeito prossegue e envolve modos diversos de tomar decisões a partir das duas teorias éticas de caráter científico19 Não elude o fato porém de que cabe à mídia a obrigação de conferir o mais criteriosamente possível a procedência das informações que possam atingir a reputação de empresas ou de profissionais Isso significa que a mídia não está isenta de responsabilidade 16 BASTOS Márcio Thomaz Precedente perigoso Folha de S Paulo 10 de agosto de 1996 17 REALE JÚNIOR Miguel Mídia e Justiça O Estado de S Paulo 3 de maio de 2008 18 COELHO Marcelo Imprensa assume o papel de justiceiro Folha de S Paulo 20 de abril de 1994 19 Analisaremos as duas teorias éticas nos capítulos 8 e 9 18 2 Ética EmprEsarial PRÁTICAS EMPRESARIAIS QUESTIONÁVEIS Nesta altura e no intuito de mapear alguns fatos morais que interessam particularmente à Ética aplicada aos negócios cabe indicar algumas práticas empresariais questionáveis entre outras tantas a existência de um caixa 2 a maquiagem dos balanços financeiros os subornos pagos a agentes públicos os conluios em licitações a sonegação fiscal a promiscuidade entre Estado e interesses privados a espionagem industrial ou econômica a manufatura de produtos falsificados a pirataria de bens simbólicos o superfaturamento ou o subfaturamento a venda de produtos ou a prestação de serviços sem nota fiscal o uso de informações privilegiadas as propinas pagas a fiscais policiais ou juízes a especulação nos preços a formação de cartéis a exploração do trabalho infantil a con tratação de funcionários sem carteira assinada a evasão de divisas o contrabando ou o descaminho o tráfico de influência nas esferas públicas os danos ao meio ambiente o desperdício de recursos naturais as fraudes contábeis o assédio moral e o sexual etc Nos países anglosaxônicos onde pontifica uma única moral de âmbito macros social a moral puritana os atos imorais tendem a ser escondidos ou escamoteados do próprio círculo íntimo dos parentes amigos ou colegas a não ser que façam parte do esquema20 Não é o que ocorre nos países latinos em que prevalece uma dupla moral e nos quais as pessoas próximas conferem endosso oficioso a muitas ações que a moral oficial condena Por exemplo pagar o médico ou o dentista sem recibo para gozar de um desconto que a sonegação do imposto viabiliza oferecer um presente a um oficial de recrutamento para que dispense um filho do serviço militar subornar um guarda rodoviário para não ter de pagar uma multa remunerar um fiscal pela assessoria que presta em troca da regularização de livros contábeis Nas quatro situações prevalece o abuso particularista pois há conluio contra os interesses públicos Entretanto o círculo íntimo é quase sempre complacente e acoberta essas ações na contramão dos cânones oficiais Essa permissividade acaba estimulando os deslizes Em decorrência cabe um comentário É sabido que os eventos sociais põem em jogo agentes que interagem cooperam ou se confrontam e submetem seus autores a juízos morais diferentemente dos eventos naturais que não podem ser submetidos a tais juízos uma vez que independem das escolhas ou da vontade das pessoas21 É verdade no entanto que as ações irresponsáveis de uma criancinha ou de um portador de deficiência mental que não têm consciência de si e dos outros não são qualificadas moralmente Simetricamente quando um agente social não for capaz de controlar seus impulsos por exemplo um drogado ou um bêbado um faminto ou um maníaco atenuase o julgamento moral mas não há como descartálo o juízo moral permanece como critério de avaliação Afora essas condições muito peculiares não há como escapar da seguinte evidência as implicações ou as consequências dos atos praticados responsabilizam quem os promove Ora quando muita gente comete ações que a moral oficial condena como adminis trar essa incongruência O que tem mais relevância a moral pública ou os costumes 20 A moral puritana dignifica a honestidade a parcimônia o esforço individual a dedicação à empresa a disciplina racional do trabalho o autocontrole a sobriedade e a moderação ferramentas indispensáveis para a obtenção do sucesso material converte o êxito profissional em signo de diligência virtude e respeitabilidade posto que o indivíduo alcança sua independência por meio da confiança em si mesmo self reliance da iniciativa própria e da ação prática louva a riqueza decorrente do mérito dos riscos assumidos do empenho individual e da ambição legítima porque promove o bemestar da sociedade ao mesmo tempo que despreza a riqueza que não decorra do próprio esforço estigmatiza a preguiça e a inépcia que leva à pobreza ou à dependência dos outros pois proclama que os agentes sociais constroem seu próprio destino 21 Que tipo de interferência é possível ter sobre um furacão um terremoto ou uma erupção vulcânica 2 19 a Ética como ciência social O discurso formal ou as justificações adotadas à socapa Poderia uma coletividade abrigar uma dupla moral A resposta é sem dúvida afirmativa Isso põe na ordem do dia questões delicadas que merecem ser abordadas Na dúbia atmosfera dessas situações muitos agentes sociais anseiam no fundo da alma por respeito probidade e solidariedade Não se pode esperar contudo que tal ambiente caia do céu Sua construção resulta da ação permanente de uma cidadania ativa Em contrapartida do ponto de vista da análise científica é possível qualificar quais quer ações quer desfrutem ou não da legitimidade moral que as coletividades conferem Vamos então nos empenhar em formular uma bateria de conceitos científicos que tornem transparentes toda e qualquer situação que tenha implicações éticas EXERCÍCIO CONHEÇA SEU PERFIL IDEOLÓGICO Antes de irmos adiante o leitor tirará bom proveito se responder ao exercício com o título acima que se encontra no site da Editora Elsevier Anexo I porque no coração de toda ideologia política ou econômica palpita uma moral Nada melhor portanto do que o leitor conhecer o próprio perfil ideológico 21 3 Os conceitos fundamentais No âmbito da Ética dois campos antagônicos se enfrentam o universalismo e o particularismo EGOÍSMO E AUTOINTERESSE Na concepção de Hobbes a natureza humana é fixa e imutável e a busca implacável do interesse egoísta a molda Em tempos remotos presumidamente teria havido um estado natural em que o homem seria o lobo do homem homo homini lupus seguido por um estado social em que os homens teriam estabelecido contratos entre si para garantir a própria sobrevivência Como procedimento heurístico a hipótese de Hobbes tem o mérito de reconhecer o inexorável imperativo de os homens viverem juntos Mas a concepção de um estado de natureza primordial em que os seres humanos se assemelhavam a células isoladas em guerra permanente entre si é pura ficção não condiz com a lenta maturação a extrema vulnerabilidade e muito menos com a enorme interdependência dos Homo sapiens sapiens O altruísmo que daí resulta aliás constitui uma vantagem evolutiva detida pelas espécies gregárias à medida que assegura a coesão grupal a conjugação de esforços e a melhor defesa territorial para a exploração de recursos A espécie humana além do mais agrega ainda as habilidades variadas e a otimização de seu uso assim como a multiplicação da força numérica pela coordenação de complexas ações cooperativas De outra parte a ideia de um egoísmo generalizado contradiz pesquisas antropológicas e psicológicas já que os padrões culturais são mutáveis e o aparelho psíquico não parece embutir uma essência egoísta como se fosse uma pecha congênita Afinal o que os agentes pensam e fazem espelha a estrutura das relações sociais prevalecentes em cada formação histórica Isso nos leva a refletir sobre a diferença crucial entre o autointeresse e o egoísmo dois conceitos que não podem nem devem ser confundidos embora ambos remetam à satis fação dos interesses pessoais Porque é possível realizar tais interesses de duas maneiras opostas Vejamos 1 O autointeresse diz respeito ao indivíduo que para gerar um bem pessoal e afirmar sua individualidade age de forma benigna que não prejudica os outros configurando assim uma prática consensual universalista que todo mundo apoia 2 O egoísmo diz respeito ao indivíduo que para gerar um bem pessoal e afirmar seu exclusivismo age de forma nociva que prejudica os outros configurando assim uma prática abusiva particularista que se efetiva à custa dos outros Não é difícil entender que o egoísmo põe em risco a convivência social uma vez que destrói o senso de civilidade e se opõe ao gregarismo natural dos homens De fato a base sociológica da moralidade decorre das exigências da vida em comum Quais Nenhuma sociedade sobrevive sem 1 Um conjunto de normas convencionadas que pautam seus membros e demarcam comportamentos previsíveis imaginemos o quão impossível seria a convivência 22 Ética EmprEsarial 3 numa coletividade em que cada qual agisse de forma desregrada ou inventasse regras a seu belprazer 2 Uma divisão do trabalho que vincule os agentes sociais numa teia de interdependências e que otimiza o uso das suas respectivas competências a divisão de trabalho entre os gêneros parece constituir a primeira repartição das tarefas entre os membros dos agrupamentos humanos 3 A regulação das atividades coletivas por meio de mecanismos de cooperação e de articulação sociais pensemos no fluxo de veículos numa metrópole que não dispusesse de regulação ou de engenharia do tráfego a circulação simplesmente travaria 4 A partilha de um mesmo universo simbólico na Torre de Babel bíblica a cooperação se tornou impossível quando seus construtores passaram a falar línguas diferentes porque todos deixaram de se entender faltandolhes o indispensável cimento que os unisse numa unidade de decisão e ação 5 A prevalência da razão universalista que interessa a todos os seres humanos e preside em especial a realização do bem comum sem o que teríamos a famosa guerra hobbesiana de todos contra todos Posto isso sublinhamos sim é possível satisfazer interesses pessoais sem prejudicar os interesses alheios É possível gerar um bem restrito de caráter individual que desfrute de plena legitimidade uma vez que não provoca danos aos outros E isso nos reporta ao autointeresse Verifiquemos Os exemplos de autointeresse abundam candidatarse a um emprego participar de um concurso público ou de um concurso interno na empresa inscreverse no vestibular de uma universidade receber a aposentadoria do INSS gozar férias remuneradas em período negociado descansar depois da jornada de trabalho pleitear um aumento salarial fazer jus a bônus por desempenho contratar um segurosaúde requerer equipamento de proteção individual aceitar ou recusar uma promoção e assim por diante Ou também protestar contra violação de direito barrar quem tenta passar na sua frente na fila defenderse contra ladrão e eventualmente ferilo denunciar assédio moral Vale dizer são autointeressadas as reações de autodefesa que resistam a abusos reajam à invasão do próprio espaço vital ou rechacem qualquer desrespeito à própria individualidade Assim as práticas autoin teressadas são ações voltadas para a satisfação de interesses próprios são consensuais e universalistas interessam a todos e não têm por que serem egoístas porque não lesam rivalizam ou excluem os interesses dos demais agentes sociais Embora essas práticas não sejam objeto corrente de estudo da Ética servem de contraponto ao egoísmo Assim sendo o que vem a ser uma prática egoísta Estabeleçamos um contraponto No aguardo da chamada para o embarque aéreo por exemplo ocupar um assento livre que não esteja reservado a portadores de deficiência e guardar a bagagem no chão sem prejudicar o fluxo dos outros passageiros é um comportamento autointeressado satisfaz o interesse pessoal sem prejudicar ninguém Mas colocar a bagagem no assento ao lado e não retirála quando o saguão lota é egoísta porque reduz o número de assentos dis poníveis e portanto impede que alguém possa sentar De forma que confundir a defesa do autointeresse com o egoísmo é no mínimo inapropriado A reportagem da revista Veja SP fotografou um veículo parado diante de duas vagas demarcadas e reservadas para portadores de deficiência física num sábado no Shopping Center Norte A perua simplesmente obstruía o acesso à vaga além de bloquear uma das pistas de rolagem1 1 O teste da caradepau Veja SP 7 de maio de 2008 Os conceitos fundamentais 3 23 Nesse caso as consequências negativas geradas por esse ato são evidentes houve redução de vagas disponíveis para os portadores de deficiência física e prejuízo à fluidez do tráfego no estacionamento Verificase um duplo abuso Assim uma ação individual é egoísta quando causa dano aos outros de modo interesseiro desrespeita os interesses alheios satisfaz interesses pessoais à custa dos interesses de outrem demonstra desdém pelo bemestar dos outros ou seja realiza bem pessoal de forma abusiva particularista A prática egoísta explora a boa vontade alheia consiste em agir como parasita porque parte do pressuposto de que o que vale na vida é cuidar exclusivamente de si mesmo e excluir sistematicamente os outros em seu raio de ação O fundador e presidente da Adelphia Communications John Rigas de 77 anos de idade fraudou sua companhia que atendia 57 milhões de assinantes de TV a cabo e a levou à falência Foi acusado de apropriarse de US100 milhões para uso pessoal e de esconder uma dívida da empresa da ordem de US23 bilhões Acabou sentenciado a 15 anos de cadeia em 2005 em Nova York A título de ilustração e no âmbito da vida cotidiana brasileira podemos listar como práticas egoístas estacionar fora da faixa amarela que demarca os locais para parquear e ocupar abusivamente duas vagas furar filas desrespeitando a ordem de chegada dos interessados jogar papel na rua e sujar a via pública rodar no acostamento das rodovias e menosprezar o fato de que ele se destina às emergências ambulâncias bombeiros carros da polícia guinchos veículos avariados prejudicando os demais agentes e até pondo em risco a vida das pessoas ao atrasar eventual socorro parar nas calçadas e obrigar os passantes a andar na faixa de rolamento urinar nos becos e nas escadarias empesteando o ambiente fumar em recinto fechado e prejudicar a saúde dos não fumantes tocar música alta à noite em condomínios e perturbar o sono alheio buzinar em túneis lotados de carros e provocar poluição sonora cometer plágio ferindo direitos autorais passar trote nos bombeiros e causar prejuízo ao erário público não recolher os excrementos dos animais domésticos nas calçadas etc Simetricamente são práticas egoístas na empresa lançar horas extras não reali zadas trabalhar alcoolizado ou sob o efeito de drogas puxar o tapete dos colegas por meio de artimanhas cobrar diárias de viagem indevidas majorar nota de des pesa para locupletarse assediar moralmente subordinados cobrar uma taxa por fora para saldar faturas devidas apropriarse de ideia alheia sem conferir o devido crédito ao autor exigir bola dos fornecedores ou prestadores de serviços para contratálos dar calote nos credores sonegar aos colegas informações úteis da em presa usar informações privilegiadas ou confidenciais em proveito próprio esconder erros cometidos durante o processo de trabalho utilizar os equipamentos postos à disposição para assuntos pessoais sem a devida autorização maquiar as informações sobre a carreira profissional espalhar fofocas maliciosas a respeito dos colegas e assim por diante Para caracterizar uma prática egoísta cabe então perguntarse embora eu me beneficie o que faço prejudica os outros Se a resposta for sim a ação é egoísta porque a prática é abusiva produz efeitos negativos sobre os outros se a resposta for não a prática pode ser autointeressada ou altruísta2 porque a prática é consensual não prejudica ninguém e pode até produzir efeitos positivos sobre os outros 2 Veremos a questão do altruísmo logo adiante 24 Ética EmprEsarial 3 COMO QUALIFICAR O INTERESSE EMPRESARIAL O que foi dito nos leva a enfrentar a clássica discussão sobre o interesse pessoal como mola propulsora da economia capitalista Seria egoísta a natureza desse interesse De modo algum A economia de mercado capitalista repousa no capital de risco Isto significa que o empresário tanto pode lucrar quanto pode perder seu investimento De um ponto de vista racional o empresário almeja obter o máximo de retorno possível para remunerar seu investimento e simultaneamente reduzir sua margem de exposição ao risco quer minimizar eventuais perdas daí ser o lucro o dínamo do sistema e daí o estímulo para a sua maximização Ocorre que para lucrar o empresário precisa encon trar compradores dispostos a adquirir os produtos ou serviços que ele oferece Para tanto deve satisfazer as necessidades deles caso contrário as vendas não deslancham e os prejuízos se acumulam podendo comprometer todo o investimento feito Nessa equação empresários e clientes apresentam necessidades complementares enquanto uns produzem e vendem outros compram e consomem E as transações se viabilizam à medida que os interesses de ambas as partes guardem compatibilidade sem o que o negócio não se sustenta Assim os empresários não se beneficiam à custa de seus clientes como o supõe uma vã leitura que vê egoísmo em toda parte E por quê Porque eles realizam operações em que se complementam necessidades e se articulam interesses De sorte que para satisfazer os próprios interesses isto é obter lucros os empresários precisam estar sintonizados com as demandas do mercado Opera aqui a mola propulsora do autointeresse que simplesmente reconhece a interdependência das partes tanto dos fornecedores quanto dos clientes Onde reside o equívoco exaustivamente repetido Na confusão entre egoísmo cujo caráter é nocivo e autointeresse cujo caráter é benévolo Isso não significa no entanto que os empresários estejam agindo movidos pelo altruís mo pois suas ações não miram necessariamente o bem comum nem são generosas ou filantrópicas Em contrapartida seu lucro não decorre de perversa ganância como faria uma leitura simplista Intrinsecamente seu negócio consiste em satisfazer as necessidades de uma clientela dada não em atender aos interesses gerais da sociedade3 Entretanto embora as práticas empresariais sejam inicialmente movidas pelo au tointeresse de cada empresário em particular elas podem assumir um caráter parcial e portanto pernicioso quando a geram sobrelucros em situações de monopólio ou cartel o que corresponde a abusos especulativos b demonstram pouco caso pelo destino do planeta ao desdenhar as externalidades negativas que provocam tais como a poluição do meio ambiente ou o desperdício dos recursos naturais c focalizam essencialmente a maximização dos lucros sem atinar para os meios utilizados para tanto Ou seja há parcialismo quando os interesses grupais empresariais ou organizacionais se realizam a expensas dos interesses gerais ou de outros interesses grupais Feitas essas observações insistimos que não se pode afirmar que o interesse pessoal dos empresários seja egoísta porque por dever de ofício leva em consideração os interesses dos clientes e não pode prejudicálos como norma geral de atuação sob risco de sofrer boicote E não só o interesse empresarial não está alheio ao benefício ou ao prejuízo que promove junto a outros públicos de interesse em particular seus colaboradores fornecedores e investidores Assim a realização do interesse pessoal empresarial não ocorre no vácuo mas depende da mediação de interesses alheios sobretudo da sintonia com as expectativas do mercado Tratase em suma de uma conjugação de interesses jamais de um interesse singular voltado para o próprio umbigo 3 A partir dos anos 1990 pressões da cidadania estão forçando as empresas a adotar práticas socialmente responsáveis temperando a lógica do lucro com a lógica da responsabilidade social assunto de que trataremos no capítulo 11 Os conceitos fundamentais 3 25 Há contudo a crença de que o egoísmo é ético na toada da fórmula oitocentista do filósofo holandês Bernard de Mandeville que afirmou que os vícios privados geram benefícios públicos À vista disso bastaria que cada indivíduo agisse de forma egoísta para que o bem de todos fosse atingido Donde a ideia do egoísmo ético Ora poupemonos de frases de efeito por uma questão de clareza Em primeiro lugar o egoísmo é o antípoda do autointeresse e também do altruísmo em segundo lugar as posturas éticas são universalistas por definição Afirmar então que o egoísmo é ético constitui um oximoro uma contradição nos termos A começar pelo fato de que os adeptos da fórmula em pauta confundem autointeresse e egoísmo Ocorre que a satisfação dos interesses pessoais não é necessariamente nociva para os outros a contrapelo da ação egoísta que implica obrigatoriamente o prejuízo de interesses alheios De sorte que para atualizar a fórmula de Mandeville e retratar adequadamente os fatos seria mais apropriado dizer que os interesses privados geram benefícios grupais Não se trata pois de vícios e muito menos de egoísmo mas da busca do lucro legítimo E tampouco se trata de benefícios públicos de caráter inclusivo mas de benefícios restritos a setores determinados da sociedade àqueles que dispuserem de recursos suficientes para adquirir os bens ofertados4 OS ALTRUÍSMOS O senso comum tem classificado o altruísmo como abnegação filantropia amor ao pró ximo renúncia em prol da coletividade assimila o altruísmo à generosidade sem freios ao heroísmo moral ou até a uma espécie de santidade Esse reducionismo todavia sim plifica o conceito porque o limita à peculiar situação dos doadores que fazem sacrifícios para ajudar seus semelhantes bem como aos benfeitores das boas causas ou das ações humanitárias que visam aliviar o sofrimento de pessoas necessitadas De fato esse tipo particular de altruísmo é um altruísmo puro levado às últimas consequências que é bem traduzido por atos abnegados e desprendidos Tratase de um altruísmo extremado que pelo menos retoricamente considera o interesse do próximo como um fim exclusivo e obedece a imperativos tais como viva para os outros e ame o próximo mais do que a si mesmo Todavia e cabe sublinhar isso devemos ponderar e reconhecer que o doador colhe sempre uma contrapartida ainda que não a busque gratificação psicológica reconhecimento pessoal ou prestígio social Há aqui uma via de mão dupla embora sem equivalência entre o bem socialmente gerado pelo doador e o retorno que obtém individualmente pois são grandezas de diferentes naturezas Restringir o uso do conceito do altruísmo a feitos tão nobres como a filantropia a dedicação às boas causas ou a realização de ações humanitárias deixa de lado inúmeras ações de cooperação social que sustentam e operam como arcabouço de toda e qualquer sociedade humana Ademais tamanha restrição não dá conta de inúmeras práticas solidárias e louváveis ainda que menos admiráveis do que aquelas Vejamos um exemplo corriqueiro ao estacionar um veículo em uma garagem que possui vagas livres agir de forma altruísta corresponde a parar o carro de forma a não impedir que à direita e à esquerda outras pessoas possam ocupar as áreas contíguas Isto é a manobra consiste em manter o veículo equidistante das duas faixas amarelas traçadas no chão para assegurar aos demais usuários o espaço indispensável para encostar e poder abrir as respectivas portas Essa preocupação não exige mais do que alguns segundos de atenção mas abriga importantes implicações leva em consideração a existência de 4 Isso não quer dizer que em determinadas circunstâncias os interesses privados não possam gerar benefícios públicos conforme veremos no tópico sobre o ativismo empresarial 26 Ética EmprEsarial 3 outrem procura não prejudicálos e a um só tempo nutre a expectativa de que os demais usuários não irão bloquear o acesso a seu próprio veículo vale dizer presume que haja a contrapartida da reciprocidade Tratase por conseguinte de um ato previdente coo perativo não de um ato desinteressado e generoso Citemos outras práticas altruístas destituídas de caráter extremado prestar os primeirossocorros a vítimas de acidente de trânsito ceder o lugar no metrô ou no ônibus a uma mulher grávida ou a um idoso trocar o pneu furado do carro de uma pessoa com dificuldade para fazêlo sinalizar o local de um acidente rodoviário para manter o tráfego fluindo e garantir a segurança das pessoas envolvidas ajudar um cego a atravessar a rua denunciar anonimamente um sequestro etc Agir de forma altruísta por conseguinte significa preocuparse com o bemestar dos outros Tratase de algo que não exige necessariamente franco desprendimento pois basta adotar uma postura cooperativa atuar junto com outros e solidária partilhar responsabilidade ou exercitar o senso de interdependência Equivale a levar em conta os interesses dos outros para não prejudicálos procurar beneficiálos na medida do possível quer dizer sem deixar de medir e de calcular os riscos5 cuidar de si mesmo e dos demais para induzilos à reciprocidade em suma realizar o bem grupal ou o bem comum de forma consensual ou lançar mão da famosa regra de ouro tratar os outros como gostaria de ser tratado Em um artigo publicado na revista Science os pesquisadores Claus Wedekind e Manfred Milinski descreveram uma experiência feita com oito grupos de jogadores Os 79 componentes não podiam ver uns aos outros e as transações eram feitas por meio de uma máquina A única informação destacada dizia respeito aos empréstimos ofertados a jogadores em dificuldades No final das contas os mais generosos recebiam ajudas mais frequentes ou dito de forma sintética fazer o bem não importa a quem é a melhor maneira de vencer na vida desde que o benfeitor participe da interação A empresa ou pessoa que seguir esse lema desembolsa recursos no início mas se beneficia a longo prazo6 Antes de irmos adiante um importante parêntese precisa ser aberto Quando falamos dos outros a quem especificamente nos referimos Quem são aquelas pessoas cujos interesses levamos em conta Ou dito de outra forma a quem devemos solidariedade quando tomamos uma decisão ou cometemos uma ação Porque superar o egoísmo a referência exclusiva a si mesmo sem importarse com os demais e preocuparse com o impacto que nossos atos provocam nos outros merece esclarecimento Melhor dizendo é imprescindível qualificar esses outros expressão genérica e nada científica A abrangência e a multiplicidade dos grupos organizações ou coletividades são decisivas na análise dos fatos morais Alguém ao dizer que teme que suas ações afetem sua família e seus amigos mais chegados a bem dizer seu círculo íntimo demonstra preocupações altruístas Mas qual é o âmbito de seus cuidados Meia dúzia uma dúzia duas dezenas de pessoas Ou seja embora transcenda a esfera individual o raio de ação se limita à esfera paroquial em que se exercita um tipo particular de solidariedade 5 Nos dias atuais não seria prudente um motorista parar de madrugada nas marginais das grandes cidades para ajudar uma mulher que acena diante de um veículo parado no acostamento pois ele correria o risco de sofrer um assalto Se quiser ajudar o motorista teria de ligar para a polícia e informar o evento 6 WIDEKIND Claus MILINSKI Manfred Cooperation Through Image Scoring in Humans Science v 288 n 5467 p 850852 2000 Os conceitos fundamentais 3 27 Imaginemos todavia que esse mesmo agente explicite melhor seu pensamento e diga temo o impacto das minhas ações sobre todos os grupos aos quais pertenço Suas inquietações agora se estendem a todas as suas filiações à empresa na qual trabalha ao condomínio em que mora à igreja de sua devoção ao clube social que frequenta ao partido político em que milita ao sindicato ao qual está associado ou a outras tantas associações ou comunidades às quais está filiado ou com as quais mantém vínculos Todavia o âmbito de suas preocupações permanece reduzido porque se restringe à esfera corporativa Assim tanto a solidariedade paroquial operante no círculo íntimo quanto a solidariedade corporativa operante no âmbito organizacional não abarcam todas as coletividades componentes da sociedade7 Diferente seria a postura de quem leva em consideração os interesses da so ciedade solidariedade social ou os interesses da humanidade do planeta e das gera ções futuras solidariedade humana8 Haveria superação do bem restrito que satisfaz indivíduos ou grupos em direção ao bem comum que satisfaz todos os seres humanos A partir dessas considerações podemos identificar três tipos de altruísmos 1 O altruísmo restrito voltado para a realização do bem grupal de caráter consensual universalista e que diz respeito à geração de apoio mútuo entre membros de um grupo ou entre grupos 2 O altruísmo extremado voltado para a realização do bem comum e que diz respeito à filantropia âmbito da humanidade 3 O altruísmo imparcial voltado para a realização do bem público res publica e que diz respeito à geração de bens e serviços essenciais âmbito da sociedade Vamos especificar as características de cada tipo de altruísmo O ALTRUÍSMO RESTRITO Nessa análise estamos considerando três tipos de interesses pessoais individuais gru pais famílias círculos íntimos redes informais de poder organizações ou agrupamentos que fazem parte da sociedade e gerais sociedade ou humanidade entendidas como coletividades inclusivas Assim sendo perguntamos é possível gerar o bem restrito voltado para a satisfação de interesses pessoais ou grupais sem fazêlo em detrimento das coletividades maiores Claro que sim a prática é absolutamente legítima Tratase de gerar o bem restrito universalista isto é de produzir um bem que não prejudique interesse alheio um bem que todos aprovam e de que todos gostariam de poder des frutar Tratase pois de agir de forma altruísta restrita Por exemplo produzse bem restrito universalista na órbita do círculo íntimo nas seguintes situações comprar casa para a família oferecer presentes no aniversário de amigos fazer uma viagem de recreio com os filhos convidar parentes para jantar renovar o guardaroupa das crianças enviar o filho para um programa de intercâmbio etc Gerase também altruísmo restrito na órbita da empresa com as seguintes iniciativas ampliar as instalações para melhorar as condições de trabalho obter lucro justo com o uso de meios lícitos beneficiando acionistas e investidores gratificar os gestores que atingem determinadas metas dar aumento real de salários a todos os funcionários investir em 7 É lícito assinalar que a solidariedade paroquial ou corporativa nem sempre é benigna e que pode se revestir de caráter mafioso caso o círculo íntimo ou a organização ajam de forma abusiva prejudicando interesses alheios 8 É importante observar que os interesses nacionais podem se chocar com os interesses humanitários é o caso de um país que se recusa a reconhecer os efeitos do aquecimento global para não prejudicar sua economia doméstica ou que promove uma limpeza étnica em seu próprio território perseguindo e massacrando uma minoria estigmatizada 28 Ética EmprEsarial 3 inovação de produtos repassar aos clientes ganhos de produtividade premiar os de sempenhos bancar o segurosaúde dos funcionários investir em melhoria de processos nos fornecedores fazer recall voluntário de produtos defeituosos capacitar regularmente o pessoal subsidiar a alimentação dos funcionários organizar consórcio de pesquisa tecnológica com concorrentes montar um serviço de atendimento aos clientes financiar cursos de pósgraduação a executivos promover liquidações periódicas formar coo perativas de produção ou de compras exigir condições de trabalho salubres denunciar concorrente por prática de dumping e assim por diante E no âmbito da vida cotidiana temos praticar a carona solidária entre colegas de trabalho integrar voluntariamente uma lista de contribuintes para o casamento de um colega auxiliar um amigo desempregado a encontrar trabalho ajudar um colega a prepararse para uma prova e colocar à sua disposição as próprias anotações de aula integrar cooperativas de crédito ou de consumo solidarizarse com a família vizinha que acabou de ser assaltada participar de mutirões de construção ou de colheita entre vizi nhos auxílio mútuo ajudar seu interlocutor que tropeçou e caiu a se levantar etc Todas essas práticas e muito mais dizem respeito à produção de um bem restrito que não fere interesses alheios e que todos apoiam razão pela qual assume um caráter universalista A Gerdau importante companhia brasileira especializada na produção de aços longos nas Américas depende de mais de 2500 fornecedores para operar suas 19 fábricas na América Latina Ora como essas empresas padecem de várias ineficiências e comprometem sua produção a Gerdau promoveu uma parceria com o Sebrae em 2007 Selecionou 150 fornecedores no Rio Grande do Sul e montou um plano de 24 meses com aulas e consultoria Objetivos Ajudar os fornecedores a resolver seus próprios problemas e consequentemente aumentar a qualidade e a produtividade Queremos capacitálos para crescer conosco Trocar de fornecedor é caro e improdutivo disse o diretor de suprimentos Em 2012 o processo de capacitação integrou mais 300 fornecedores Resultado criouse e ainda se cria valor para todas as partes9 Como se pode observar tratase de um jogo de mão dupla ganham os fornecedores que resolvem gargalos e restrições em suas linhas de produção valorizam seu capital intelectual e aumentam a empregabilidade de seus trabalhadores qualificados e ganha a Gerdau economizando inspetoria de qualidade e assegurando insumos em prazos compatíveis com sua programação É claro que não é possível pensar ingenuamente que a Gerdau agiu por bommocismo Mas é preciso admitir realisticamente que se trata de uma prática altruísta restrita Assim sendo o altruísmo restrito corresponde a práticas de apoio mútuo que benefi ciam um grupo ou alguns grupos práticas comuns a todos os setores sociais inclusive o 2 setor lucrativo10 O bem grupal que é gerado não prejudica os interesses alheios e reforça os laços de afinidade existentes entre os participantes do processo E tratase de bem restrito porque não abarca a sociedade como um todo embora provoque reflexos benéficos 9 Revista Exame 16 de novembro de 2011 10 Há uma leitura ideológica que demoniza as empresas e considera que centradas na busca voraz do lucro só agiriam de forma parcial e danosa ao mercado e à sociedade sendo intrinsecamente incapazes de cometer ações altruístas Tal suposição não corresponde a nenhum exame dos fatos empíricos pois as empresas tanto podem agir de forma parcial quanto de forma altruísta Os conceitos fundamentais 3 29 O PARCIALISMO Caso a geração do bem restrito se efetive à custa de outros agentes individuais ou coletivos11 a expensas da sociedade ou da humanidade mergulharemos nas águas do parcialismo que visa gerar um bem restrito particularista Por exemplo obter ates tado de um médico amigo para não comparecer ao trabalho comprar uma bolsa Louis Vuitton ou um relógio Rolex falsificados atrasar as taxas de condomínio ou a pensão da exmulher comprar e vender sem nota fiscal contratar pessoal sem carteira assinada assinar cheques sem fundos fotocopiar capítulos de livros e vender as apostilas para alunos dar caixinhas aos guardas de trânsito Nessa altura uma ponderação se faz a exemplo do que foi feito com respeito ao autoin teresse caso interesses restritos universalistas sejam feridos é eticamente positivo reagir resistir contraatacar retaliar ainda que os responsáveis pela violação desses interesses sofram danos Quando isso se dá Quando se faz greve ou a guerra para contraporse à violação de direitos humanos quando se multam ou interditam estabelecimentos que desrespeitam a proibição do fumo em locais fechados quando se rechaça com violência a invasão de uma loja por bandidos etc Nessas precisas circunstâncias não estaremos promovendo o parcialismo particularista porque os revides são legítimos à medida que o bem gerado tem caráter universalista Afinal interessa a todos e recebe apoio franco e geral A produção do bem portanto pode assumir três formas 1 Bem restrito particularista que prejudica outrem 2 Bem restrito universalista que interessa a todos os seres humanos porque não prejudica ninguém embora realize interesses particulares 3 Bem comum também universalista que beneficia todos os agentes sociais indistintamente Ora em última instância qual desses bens deveria prevalecer o bem restrito particu larista o bem restrito universalista ou o bem comum É bem provável que todo mundo responda o bem comum em função da enormidade de seu alcance e do peso de sua relevância Infelizmente como veremos esta manifestação não passa de um dito bempensante ou de uma declaração retórica Tanto o altruísmo restrito quanto o parcialismo dizem respeito a práticas que benefi ciam agentes coletivos tais como classes sociais categorias sociais12 comunidades locais organizações públicos clãs ou famílias Ou seja dizem respeito às atividades dos grupos e não das sociedades ou da humanidade coletividades inclusivas Caso um grupo se beneficie em detrimento de outros agentes individuais ou cole tivos estaremos diante de uma situação em que interesses grupais se sobrepõem aos interesses alheios O conceito aplicável aqui é o de parcialismo ou de facciosismo Tratase de um conceito que faz parelha com o egoísmo porque partilha o mesmo desprezo pelos interesses dos outros embora se reporte especificamente ao âmbito grupal e não ao âmbito individual Rigorosamente falando equivale a um altruísmo parcial porque a cooperação e a solidariedade se esgotam nos limites do bem restrito ao grupo com 11 Os agentes coletivos são coletividades agrupamentos ou grupos que se diferenciam por estatutos sociais qualitativamente distintos e que têm a capacidade de intervir sobre a realidade social ou seja constituem forças sociais 12 Agrupamentos que se distinguem por estatutos sociais qualitativamente distintos e abrigam contradições em última análise conciliáveis gêneros confissões religiosas correntes ideológicas etnias categorias ocupacionais nacionalidades regiões de origem estados civis etc 30 Ética EmprEsarial 3 a agravante de que este bem se realiza à custa dos interesses dos demais agentes e se caracteriza como um bem particularista13 Vejamos um exemplo Uma importante indústria sediada no interior do Estado de São Paulo recusavase terminantemente a colocar filtros de ar para eliminar ou minimizar o cheiro enjoativo que suas fábricas exalavam Seus controladores detinham incontrastável poder sobre os prefeitos da região e sobre a mídia local Em razão disso poucas pessoas ousavam pressionar a empresa para que encontrasse uma solução malgrado o malestar da população O discurso do dono da indústria um patriarca bastante irascível era de que milhares de empregados e dependentes lhe deviam o ganhapão e que nessas circunstâncias os interesses da empresa mereciam prevalecer sobre qualquer outra consideração Além do mais para coroar alertava que enquanto pudesse comprar um fiscalzinho da Cetesb14 não colocaria filtros de ar coisa alguma Ocorre que um professor universitário ocupante de importante cargo no governo do Estado foi convidado a ministrar uma palestra na cidade e aspirou o ar malcheiroso Soube também que nenhuma pressão cidadã conseguira demover o dono da indústria Entrou então em contato com o presidente da Cetesb que prontamente lhe prometeu providências Muitos meses após o fato o gerente regional da companhia relatou que nada havia de errado quanto ao cheiro e concluiu seu parecer com uma expressão emblemática que era voz corrente na cidade É normal Restou a suspeita de que o gerente estava no bolso do patriarca encobrindo o abuso O presidente da Cetesb não se deu por achado e acionou o auditorgeral da companhia Logo depois o gerente regional foi demitido E mais com muita relutância e embora alegasse perseguição por parte do governo do Estado o dono da indústria acabou colocando filtros de ar Lavrou a contragosto nas águas do bem comum15 Os argumentos de que o patriarca se valia visavam claramente ao bem restrito da empresa em última instância aos próprios interesses Porém como menosprezavam os interesses da população uma vez que a empresa poluía o ar navegavam em pleno particularismo Se não fosse a intervenção daquele professor que detinha influência governamental na ocasião nada teria sido feito como já vinha acontecendo há anos Desta intervenção inspirada pelo altruísmo imparcial resultou o bem comum16 O parcialismo é o irmão siamês do egoísmo no plano grupal uma postura que no mais das vezes alinha argumentos bastante persuasivos para justificar suas ações Quais os seus caracteres Há parcialismo quando os interesses grupais se realizam em detrimento dos interesses alheios quando causam dano aos outros de modo ganancioso e discriminador quando realizam bem grupal de forma abusiva e portanto particularista Tomemos o exemplo dos utilitários esportivos que representavam na primeira década do século XXI um verdadeiro hit Enquanto os compradores sentiamse poderosos ao volante os acionistas das montadoras apreciavam a confortável margem de lucro Mas então onde reside o problema Esses veículos consomem diesel ou gasolina e 15 O fato se deu nos anos 1999 e 2000 e teve a participação direta do autor 16 O altruísmo imparcial diz respeito a mecanismos indispensáveis para a convivência social como veremos a seguir 14 Companhia de saneamento ambiental do Estado de São Paulo 13 Utilizamos o conceito de altruísmo parcial em outras edições e obras nossas e preferimos abrir mão dele porque a simples menção ao altruísmo desperta simpatia no imaginário social e dificulta a compreensão do lado negativo do parcialismo Os conceitos fundamentais 3 31 são tachados de beberrões Ora que tipos de combustível são esses Derivados do petróleo insumo fóssil e finito altamente poluentes Isso significa que embora os clien tes e os acionistas estivessem satisfeitos o uso desses utilitários afetava negativamente o meio ambiente Sendo assim interesses grupais se sobrepõem aos interesses gerais com os seguintes argumentos uma demanda foi detectada os utilitários esportivos atendem às necessidades dos clientes é função das montadoras lucrar com as oportunidades de mercado e não lhes cabe agir como entidades beneméritas A racionalidade do discurso é irretorquível Concretamente porém o planeta e seus habitantes para não falar das gerações futuras pagam um preço exorbitante por isso a começar pelo aquecimento global Vale dizer a o que interessa aos acionistas e aos clientes põe em risco o bemestar da humanidade b o bem restrito gerado prejudica os interesses gerais e se caracteriza como particularista Vejamos outro exemplo No segundo semestre de 2001 a mídia brasileira batizou como produtos maquiados a alteração de embalagens de vários produtos com redução de pesos ou volumes sem que houvesse o respectivo desconto nem o competente aviso aos consumidores O Ministério da Justiça notificou e multou dezenas de empresas Novas regras foram definidas pelo governo para evitar que alterações promovidas em surdina vingassem Ficou determinado que toda mudança da quantidade dos produtos deveria ser informada na embalagem de forma precisa e ostensiva Isto é avisos deveriam ser colocados com letras de tamanho e cor destacados especificando a quantidade existente naquela embalagem antes e depois da alteração em termos absolutos e percentuais Ou seja a operação de um mercado livre não autoriza fraudar os consumidores ou iludir sua boafé e supõe que eles possam dispor de informações adequadas para fazer escolhas competentes No caso muitas das empresas envolvidas detinham posição proeminente em seus respectivos mercados e o desgaste de imagem sofrido indica o quanto o contexto contemporâneo mudou Os consumidores não toleram mais abusos de quaisquer ordens e a mídia lhes serve de caixa de ressonância Assim não é mais possível fazer negócio como sempre se fez os interesses das empresas necessitam coadunarse com os melhores interesses de seus públicos sem o que sofrem represálias Práticas parciais poderiam ser exemplificadas às pencas poluir o meio ambiente des matar áreas de preservação permanente montar um conluio em licitações e prejudicar os contratantes dar calote em fornecedores aceitar agrados de fornecedores empréstimos pessoais ou fiança de imóveis para dirigir editais e conseguir contratos medir e pagar serviços não realizados ou mal realizados mediante propina receber produtos cujas es pecificações técnicas estão em desacordo com a encomenda mediante suborno comprar produtos pirateados falsificados ou contrabandeados pagar caixinha aos compradores para fazer parte da lista de fornecedores obter privilégios monopólios ou reservas de mercado maquiar balanços manter na empresa um caixa 2 subornar funcionários pú blicos para facilitar operações formar cartéis aliciar fiscal para validar a contabilidade da empresa sonegar impostos para obter uma margem de lucro mais competitiva vender produtos usados como novos pagar diárias de hotel refeições aluguel de carro combustível passagens aéreas passeios a quem fiscaliza os serviços que prestamos clonar produtos desperdiçar recursos como água combustível luz e papel cometer espionagem econômica divulgar publicidade enganosa descartar lixo tóxico sem as devidas cautelas 32 Ética EmprEsarial 3 fazer falsas promoções tolerar o assédio moral ou sexual esconder lucro de correntistas em paraíso fiscal difundir comentários desabonadores sobre concorrentes etc Todas essas práticas são justificadas com racionalizações mistificadoras e desembocam na realização do bem particularista Sublinhemos as práticas parciais privilegiam alguns beneficiários e prejudicam muitos agentes se não a sociedade como um todo Vejamos o caso do conluio em compras ou contratações de serviços Quem ganha As empresas que montam o esquema e natural mente o sujeito da área de suprimentos que está mancomunado com elas Quem perde A empresa contratante é lesada ao comprar produtos ou insumos a preços superiores aos do mercado Resultado terá de repassar esses custos aos clientes e em decorrência perderá capacidade de competir As consequências perniciosas irão repercutir em cascata sobre o restante da sociedade O NÓ GÓRDIO DA DISCRIMINAÇÃO O parcialismo abriga venenos ainda mais letais pelo comportamento faccioso que ins pira à moda da cosa nostra mafiosa Ao inverso do respeito à diversidade social que se baseia no trato equânime das diferenças o parcialismo esculpe identidades hostis entre os grupos instala discriminações preconceitos e divisionismos enrijece e hierarquiza as distinções insufla fúrias incontroláveis nós contra eles Por exemplo muitos agentes sociais juram de pés juntos que fariam qualquer coisa em prol de sua família sacrificariam bens preciosos ou matariam se fosse preciso e pouco se importariam com o destino das demais pessoas Dizem que fariam eventualmente o mesmo em prol de sua tribo17 de seu time predileto de sua empresa de sua categoria ocupacional de seu partido político de sua fé religiosa de sua etnia de sua raça de seu gênero de sua classe social de sua pátria e de outras tantas coletividades cujo caráter reputado como sagrado habita seu imaginário De maneira que o nós parcial se contrapõe aos outros que são diferentes desseme lhantes estranhos forasteiros imigrantes adventícios e por conseguinte anormais intrusos ou agressores potenciais O nós parcial traça linhas divisórias segrega os es paços sociais ergue muros intransponíveis opõe os agentes por clivagens tecidas com os fios da intolerância e do antagonismo O nós parcial não reconhece a humanidade dos outros porque suspeita de seus jeitos bizarros de suas disparidades enigmáticas de suas intenções malignas e assim por diante Eis então uma das fontes dos fanatismos que se convertem em ódios seculares em frias crueldades contra minorias em torturas e execuções de hereges lembremos a In quisição em delírios ferozes contra bodes expiatórios em confrontos ideológicos que acabam em violência nua em sectarismos religiosos que se purificam em autos de fé em perseguições brutais que descambam em pogroms limpezas étnicas deportações em massa expurgos sangrentos campos de extermínio18 Eis uma das razões dos ataques suicidas das guerras santas dos horrores genocidas que mobilizam paixões infames Eis uma das origens das barbáries cometidas sem compaixão contra outros seres humanos mulheres estupradas e cujos braços ou mãos são amputados crianças raptadas e obrigadas a lutar pelos senhores da guerra velhos supliciados e chacinados homens executados ou escravizados 17 Grupo de pessoas que partilham afinidades ocupações interesses laços de amizade e estilo de vida 18 Para visualizar a força cega do fanatismo remetendo a nosso cotidiano brasileiro basta observar o comportamento odioso das torcidas organizadas de futebol ou de algumas seitas religiosas que consideram danadas todas as pessoas que não partilham suas crenças Os conceitos fundamentais 3 33 E qual argumento serve de denominador comum a tantas atrocidades O de que a natureza das criaturas seviciadas difere da natureza de seus algozes a cor da pele o semblante bisonho a região de origem o grupo de pertença as crenças religiosas as convicções políticas as preferências sexuais Ou falando de modo mais direto os traços denunciam taras indeléveis que animalizam essas criaturas e as qualificam como abjetas Eis o cutelo que segrega e mata Diante desse sectarismo insano o egoísmo parece benigno e administrável pois os grupos dispõem de cacife o bastante para incendiar o mundo Mas afinal o que os move Interesses diferenciais que se traduzem em predicados pretensamente su periores que sedimentam castas incomunicáveis credos soberanos deuses supremos destinos grandiosos ideais místicos sangues puros verdades absolutas sagradas es crituras mitos que propalam a supremacia de virtudes únicas Esses agentes predestinados então constituem o sal da terra os eleitos intocáveis os vencedores na selva da vida os mestres do universo que se erguem triunfantes frente aos danados fracassados indesejados inferiores que nada merecem senão a extinção Por via de consequência as bandeiras dos escolhidos tremulam bem alto ao vento pois celebram os encantamentos da Terra Prometida do Reino dos Céus do Reich de Mil Anos do Futuro do Socialismo do Deus TodoPoderoso da Tradição da Propriedade e da Família da Religião da Honra da Lei e da Ordem da Hierarquia e da Disciplina da Superioridade da Raça da Pátria Sagrada da Revolução Social Ora qual seria o antídoto contra a histeria das idolatrias e a perversidade das utopias O combate sem trégua à intolerância e ao pensamento único do totalitarismo Nesse sentido uma linha precisa demarca o campo ético e estabelece um contraponto radical entre o particularismo que assombra vivos e mortos e o universalismo que redime Em síntese e num claro intuito pedagógico a realização do bem grupal ou a satis fação dos interesses grupais pode se efetivar de duas maneiras opostas Se não vejamos 1 O altruísmo restrito ocorre quando o agente atua de forma benevolente e beneficia outros consolidando laços de afinidade e exercitando práticas consensuais e universalistas 2 O parcialismo ocorre quando o agente atua de forma danosa e prejudica outros consolidando o facciosismo e exercitando práticas abusivas e particularistas Alguns comentários agora se fazem necessários Podemos rastrear certas simetrias con ceituais entre egoísmo e parcialismo e entre autointeresse e altruísmo restrito uma vez que os primeiros conceitos remetem a práticas abusivas enquanto os segundos remetem a práticas consensuais Contudo tanto o egoísmo quanto o autointeresse referemse à realização do bem pessoal enquanto o parcialismo e o altruísmo restrito referemse à realização do bem grupal Veemse aí diferenças substantivas que exigem cuidado redo brado Pois é trivial ver referências a países egoístas classes egoístas ou empresas egoístas ao invés de países classes ou empresas parciais como seria mais apropriado A insuficiência teórica é patente pois afinal todo egoísmo remete a ego que por sua vez reporta ao indivíduo e não a coletividades basta abrir qualquer dicionário Além do mais do ponto de vista metodológico é preciso ter cautela com o seguinte fato saber em nome de quem age determinado agente Indivíduos não só agem em seu próprio nome agem também em nome de grupos diretores representam empresas por exemplo Mais ainda grupos não só agem em seu próprio nome mas também agem em nome de coletividades inclusivas governos decidem por nações ou Forças da ONU intervêm em nome da humanidade 34 Ética EmprEsarial 3 E finalmente mencionemos uma ferramenta de trabalho Para qualificar eticamente uma prática é preciso formular duas perguntas 1 Qual agente se beneficia indivíduo grupos ou coletividade inclusiva 2 Qual tipo de bem se realiza particularista prejudica outrem ou universalista interessa a todos Respondidas essas questões teremos uma caracterização competente O ALTRUÍSMO EXTREMADO Num dos polos opostos ao parcialismo o altruísmo extremado se expressa por gestos de solidariedade social às vezes tão generosos que chegam a ser impensáveis é este o tipo de al truísmo que corresponde à definição adotada pelo vocabulário comum Quais atos são esses Em 1991 Tim BernersLee físico inglês que trabalhava no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares CERN em Genebra pôs em operação um sistema de hipertexto para o intercâmbio de textos e gráficos com seus colegas Esse sistema converteuse na internet ou World Wide Web O mais notável é que Tim BernersLee não quis patentear a invenção Disse a quem lhe cobrou a providência Não preciso desses royalties Por isso eu os cedo gratuitamente à humanidade É a minha contribuição à democratização e à universalização da internet Nos dias atuais o inventor da Web é catedrático do MIT e recebeu o título de Sir da Rainha Elizabeth II em 2003 Ora dirão esse sujeito poderia ter sido multibilionário De fato poderia ter sido se o quisesse mas preferiu agir com desprendimento beneficiando a humanidade O que ganhou com isso Reconhecimento internacional notoriedade recursos para suas pes quisas convites para lecionar em centros universitários de renome Vale dizer obteve conquistas que a riqueza nem sempre compra O mesmo pode ser dito de Benjamin Franklin inventou o pararaios os óculos bifocais e o forno Franklin que gera calor em ambientes fechados sem enfumaçálos e se recusou a patentear os inventos para que fossem fabricados por qualquer um Podemos citar ainda entre muitos outros o caso do doutor Albert Sabin desenvolveu nos anos 1950 uma vacina contra a poliomielite que assegura imunidade vitalícia e renunciou aos direitos de patente Sua contribuição foi decisiva para erradicar a doença no mundo Ambas as ações são abnegadas e merecem sem dúvida o reconhecimento geral Por sua vez os doadores de sangue cometem atos de solidariedade humana ações altruístas extremadas porque mergulhados no anonimato nada exigem dos even tuais pacientes cuja vida salvam Nessa esteira embora nem sempre sejam anônimos alinhamse os doadores de medula óssea ou de ossos de quadril e depois da morte os doadores de olhos rim coração ou fígado Atos de filantropia também se inscrevem no altruísmo extremado tais como os donativos ou o tempo de trabalho que voluntários dedicam a agências humanitárias a centros de combate a doenças crônicas ou a organizações beneficentes principalmente quando isso é feito com regularidade para garantir a continuidade dos atendimentos Em meados de 2006 o presidente da empresa de investimentos Berkshire Hathaway Warren Buffet doou a cinco instituições beneficentes US374 bilhões quase 85 de sua fortuna em parcelas Os conceitos fundamentais 3 35 anuais de 5 de suas ações A Fundação Bill e Melinda Gates receberia um total de US30 bilhões desde que Bill Gates19 e sua esposa estivessem vivos e continuassem a administrar a entidade A Fundação gasta anualmente em projetos sociais o mesmo que a Organização Mundial da Saúde e utiliza o dinheiro em programas de saúde mundial combate à pobreza e aprimoramento do acesso à tecnologia em países em desenvolvimento Há também altruísmo extremado nos aplicativos livres criados de forma colaborativa por comunidades de desenvolvedores São softwares compartilhados e distribuídos gratui tamente para todos tais como o sistema operacional Linux a enciclopédia Wikipedia o navegador Mozilla Firefox o servidor Apache da web a linguagem de programação Perl e o pacote de aplicativos OpenOffice Existem ainda os programas online de escritório que são gratuitos e que rodam via internet à disposição nos sites da Google Microsoft e Adobe além de outras centenas de aplicativos para todos os gostos A que corresponde então o altruísmo extremado As práticas em boa parte desinteressa das mas não absolutamente desinteressadas pois há sempre alguma contrapartida nem que seja uma gratificação psicológica uma manifestação de reconhecimento pessoal ou a obtenção de prestígio social Tais práticas supõem sacrifícios ou riscos que doadores ou benfeitores assumem para ajudar seus semelhantes em boas causas ou para aliviar o sofrimento de pessoas necessitadas em programas de ajuda humanitária Tratase da vocação típica do terceiro setor o setor voluntário Resumindo eis alguns exemplos de atos altruístas extremados doar invenções patentes ou softwares sangue ou órgãos fazer filantropia caridosa integrar as Forças de Paz da ONU integrar brigadas de combate a incêndios formar mutirões de serviços comunitários doar remédios a populações carentes organizar uma rede de assistência a refugiados políticos participar de variadas missões de amparo a feridos de guerra de auxílio humanitário contra a fome ou contra as epidemias de socorro a populações atin gidas por calamidades naturais de apoio a flagelados refugiados doentes prisioneiros desabrigados vítimas de violência miseráveis ou pessoas abandonadas Dentre as muitas organizações de ajuda humanitária não governamental destacase a dos Médicos Sem Fronteiras MSF que atua na área da saúde Em 2012 contava com cerca de 22 mil profissionais de diferentes áreas espalhados por 65 países atuando diariamente em situações de desastres naturais fome conflitos epidemias e combate a doenças negligenciadas Sua assistência à saúde não se limitava à assistência de saúde primária em centros de saúde e clínicas móveis mas incluía ações de alimentação e nutrição saúde maternoinfantil campanhas de vacinação diagnóstico tratamento e prevenção de doenças específicas atendimento a feridos e cirurgia de guerra cuidados de saúde mental atendimento a vítimas de violência sexual construção e manutenção de estruturas de água e saneamento revitalização de hospitais e postos de saúde treinamento de profissionais equipe MSF e parceiros de organizações governamentais e não governamentais Patrocinava também uma campanha internacional que visava chamar atenção sobre doenças que considerava negligenciadas como a malária a doença de Chagas e a doença do sono que matam milhões de pessoas a cada ano além de concentrar boa parte de seus esforços no acesso a medicamentos para o tratamento do HIVAids para populações dos países mais atingidos 19 Fundador e um dos donos da Microsoft 36 Ética EmprEsarial 3 E por parte das empresas haveria ações filantrópicas Obviamente sim A Fundação Bradesco por exemplo aplicou em 10 anos o equivalente a R35 bilhões somente na área educacional Em 2011 atendeu 629 mil alunos 112 mil dos quais em escolas pró prias A Fundação Itaú Social por sua vez atua na melhoria da qualidade da educação pública e no fomento às ações complementares à escola para assegurar o ingresso o regresso a permanência e o sucesso de crianças e jovens matriculados na escola pública Transforma as tecnologias sociais desenvolvidas em materiais didáticos e paradidáticos forma educadores e dissemina as melhores práticas educativas Desde 1999 o programa já beneficiou mais de mil municípios e formou cerca de 3500 gestores A Fundação Abrinq organização não governamental empresarial arrecada recursos entre pessoas físicas e jurídicas e os utiliza em ações que a oferecem a crianças e adoles centes o acesso à educação saúde cultura lazer formação profissional e inclusão digital b protegem as crianças e os adolescentes que sofrem violação de seus direitos ou que estão em situação de risco por meio do combate ao trabalho infantil e da proteção de crianças e adolescentes nas diferentes formas de violência c sensibilizam e conscientizam a sociedade o setor público as organizações da sociedade civil e as empresas para que se posicionem e participem das questões da infância e da adolescência Milhões de crianças e adolescentes foram beneficiados com ações desenvolvidas pela Fundação Abrinq e seus parceiros em todo o Brasil Em quase todas essas situações quem se envolve em ações humanitárias o faz de forma voluntária e alguns agentes convertem sua vocação em profissão É o caso dos bombeiros uma carreira essencialmente altruísta extremada E por que isso Porque além de serem combatentes do fogo resgatam ou socorrem gente que se afoga se encontra soterrada sofreu acidente de trânsito está ilhada por enchente ou se vê afetada por um semnúmero de sinistros O tempo todo ademais esses salvadores assumem o risco de se machucar ficar incapacitados ou até morrer A riqueza do altruísmo extremado no entanto nos leva a uma indagação intelectualmen te provocadora será que existem situações em que há coação isto é existiria um altruísmo extremado compulsório Será que a sociedade poderia forçar seus cidadãos a se sacrificar pelo bem público contra a própria vontade Um minuto de reflexão nos mostra que sim É o caso dos mesários nas eleições periódicas dos membros do tribunal do júri dos doentes contagiosos confinados em áreas restritas dos proprietários de imóveis que são desapro priados para a construção de metrô e curiosamente dos condenados a penas alternativas coagidos a prestar serviços comunitários como forma de compensar os danos cometidos Ou seja alguns cidadãos acabam compelidos a se doarem em prol da coletividade maior O ALTRUÍSMO IMPARCIAL Vejamos agora um conceito dos mais relevantes no campo da Ética e sociologicamente decisivo porque diz respeito aos mecanismos de articulação que viabilizam a convivência social Tratase do altruísmo imparcial base da sociabilidade humana e da realização do bem comum Este tipo de altruísmo é recíproco porque conjuga os interesses gerais da sociedade ou da humanidade os interesses grupais das organizações ou de outras coletividades que segmentam a sociedade e os interesses pessoais dos agentes indivi duais Ou seja nas práticas altruístas imparciais há igual consideração dos interesses envolvidos e se alcança o bem comum pela partilha dos benefícios gerados São processos em que todos ganham e ninguém perde De fato os mecanismos de cooperação social as atividades de regulação social as regras de convivência coletiva refletem e corres pondem ao altruísmo imparcial Os conceitos fundamentais 3 37 Ora dirão alguns parece ter sido descoberta a pedra filosofal Acontece que ao obser varmos o cotidiano das coletividades veremos que não se trata de um conto de fadas Peguemos a coleta de lixo em uma cidade qualquer Primeira pergunta é de interesse geral que haja essa coleta Todos responderão que sim E por quê Porque sem ela o lixo irá se degradar o mau cheiro será insuportável os detritos ficarão infestados por insetos e ratos doenças poderão se espalhar pondo em risco a vida coletiva Segunda pergunta é de interesse da empresa que presta o serviço à municipalidade e ganha dinheiro com a operação20 Claro que sim Temos então uma conjugação dos interesses gerais e dos interesses grupais Terceira pergunta é de interesse pessoal de todo e qualquer habitante do município que se tire o lixo defronte da própria casa Novamente sim Agora vemos a confluência dos três tipos de interesses gerais grupais e pessoais em combinação perfeita e mutuamente vantajosa Conclusão o altruísmo imparcial resulta da magia da cooperação social Outro exemplo É de interesse geral que haja um serviço de ambulância É claro que sim pois pode salvar vidas Segunda pergunta é de interesse do hospital que presta o serviço Se for um hospital privado é uma prestação de serviço remunerada se for um hospital público é um serviço que previne maiores complicações aos pacientes Terceira pergunta é de interesse pessoal do paciente transportado Sem dúvida já que pode abreviar seu sofrimento e antecipar graves consequências Conclusão ninguém é con tra todos se beneficiam de um serviço essencial que combina os três tipos de interesses gerais grupais e pessoais Mais uma ilustração Imaginemos a torre de controle de um aeroporto congestionado que autoriza operações de aterragem e decolagem além de organizar o movimento de aeronaves no solo e no espaço aéreo O controlador de voo comunica ao comandante de um avião que se aproxima que ele precisa aguardar a vez de pousar Surpreendentemente o comandante retruca que descerá quando bem entender É possível acreditar nisso Não naturalmente pois se um piloto lunático decidir aterrissar sem autorização haveria certamente uma catástrofe Em consequência é de interesse geral que o comandante se dobre às orientações do controlador de voo Sem sombra de dúvida É de interesse da companhia aérea Evidentemente que sim E é de interesse pessoal de cada um dos pas sageiros Acima de tudo O núcleo explicativo do altruísmo imparcial é a ampla reciprocidade o fato de que todos ganham e ninguém perde Com efeito o conceito expressa em toda a sua plenitude a parceria entre os agentes sociais a vinculação orgânica que se funda em relações de colaboração o jogo de soma positiva que faculta a justa partilha do valor agregado Ilustrações de práticas altruístas imparciais abundam Além dos serviços mencionados nos exemplos anteriores podemos citar a rede de água encanada a prestação de serviços hospitalares a segurança pública a rede escolar as bibliotecas públicas os serviços judi ciários os meios de pagamento os transportes públicos o sistema viário e a engenharia de tráfego as pontes os portos os aeroportos as rodovias as ferrovias as hidrovias os cemitérios e a cremação de corpos as utilidades públicas água e gás encanados energia elétrica rede de esgotos os serviços de telefonia a internet a televisão aberta o rádio os correios os museus os parques públicos o fornecimento de remédios populares os centros de detenção de criminosos etc Empresas também têm desenvolvido práticas de caráter altruísta imparcial tais como gerar eletricidade com bagaço de cana energia eólica ou solar eliminar insumos nocivos 20 Supomos aqui uma licitação realizada de forma lícita Caso contrário estaremos diante de uma situação parcial 38 Ética EmprEsarial 3 ao meio ambiente proibir o fumo em ambiente fechado de uso coletivo atender pacientes por critérios de urgência médica e não por ordem de chegada diminuir o tamanho das embalagens reduzindo insumos contabilizar e reduzir as emissões de gases de efeito estufa e assim por diante Temos aí lado a lado bens ou serviços públicos produzidos por órgãos estatais ou empresas privadas São todos eles mecanismos tão indispensáveis à existência coletiva que seria impossível prescindir deles Como prova imaginemos uma metrópole sem água potável ou sem energia elétrica durante 40 dias a vida urbana não seria inviabilizada Ou imaginemos os mortos empilhados nas ruas durante semanas os hospitais de portas fechadas ou os policiais em greve durantes meses os esgotos entupidos e correndo a céu aberto os serviços de telefonia mudos a rede de internet fora do ar a distribuição de alimentos paralisada porque as rodovias ficaram intransitáveis etc Tais extrapolações se prestam com repercussão desigual aos demais processos altruístas imparciais Uma importante observação agora se impõe à semelhança dos remédios que implicam efeitos colaterais os processos altruístas imparciais não são uma panaceia sem riscos Exemplifiquemos Entre outros malefícios o transporte coletivo sobre pneus polui o ambiente As hidroelétricas inundam imensas áreas para formar reservatórios espantam a fauna porque destroem seu habitat forçam a migração dos antigos habitantes do local Isso significa duas coisas 1 Na relação custobenefício é preciso verificar se os ganhos geração do bem comum são de longe superiores às eventuais perdas consequências negativas sem o que pode não valer a pena introduzir o equipamento ou o serviço 2 Os cidadãos precisam pressionar para que se adotem de forma recorrente medidas que minimizem os custos sociais ou ambientais ainda que o bem comum visado seja muito mais significativo do que os custos incorridos Uma última consideração ainda é pertinente Será que os indivíduos podem promover o altruísmo imparcial quer dizer adotar práticas que gerem o bem comum A resposta é positiva e poderia ser enfeixada sob o título do consumo consciente Por exemplo evitar o desperdício de recursos papel energia elétrica combustível água potável comida e preservar o meio ambiente sem que isso venha a reduzir a qualidade de vida do próprio agente muitas vezes até promove melhora nas condições de vida De forma similar comprar produtos certificados biodegradáveis ou compostos por materiais reciclados plantar árvores para compensar as próprias emissões de gás carbônico andar a pé de bicicleta ou usar o transporte coletivo em vez do carro particular adquirir apenas e tão somente produtos ou serviços de empresas que não usem trabalho infantil ou trabalho forçado que não desmatem ou assoreiem rios Por fim deixar de usar sacolas de plástico trocar lâmpadas incandescentes pelas de luz fria e preocuparse com o lixo sua coleta seletiva sua reciclagem ou reutilização e sobretudo sua destinação final e pressionar vizinhos e órgãos públicos para que adotem as melhores práticas O altruísmo imparcial serve de base à vida social e como veremos contribui decisi vamente para a perenidade empresarial SUMÁRIO Recapitulemos agora os conceitos estudados Sob a égide do particularismo defendemse interesses específicos por meio do egoísmo ou do parcialismo quer dizer realizamse de forma abusiva interesses particulares em detrimento do bem comum e dos demais Os conceitos fundamentais 3 39 interesses Em contraposição sob a égide do universalismo são satisfeitos de forma consensual interesses gerais por meio do altruísmo extremado ou do altruísmo imparcial e viabilizase a ocorrência de interesses pessoais e grupais por meio do autointeresse ou do altruísmo restrito De modo que a perguntachave do ponto de vista coletivo acaba sendo o que nós fazemos prejudica os outros Se a resposta for sim a prática é parcial se a resposta for não a prática é altruísta imparcial extremada ou restrita dependendo de seu conteúdo efetivo Ou seja de forma simplificada vale a pena se indagar tal ou qual prática é particularista ou universalista Se procurarmos ver quem ganha e quem perde com essas práticas veremos que ao agir todo agente individual ou coletivo procura obter um bem para si próprio Contudo os efeitos das suas ações não é anódino porque o benefício obtido pode causar 1 Prejuízo aos outros produzir o mal e nesse caso seriam ações abusivas e particularistas quer egoístas quer parciais 2 Benefício aos outros produzir o bem e nesse caso seriam ações consensuais e universalistas quer autointeressadas quer altruístas Por fim as demarcações são A prática egoísta opera no âmbito do indivíduo beneficia um único agente gera o bem particularista e carece de solidariedade21 A prática autointeressada opera também no âmbito do indivíduo beneficia um único agente gera o bem restrito universalista e reconhece a necessidade da solidariedade A prática parcial opera no âmbito do grupo beneficia poucos agentes gera o bem particularista e nutre uma solidariedade paroquial ou corporativa que é nociva às demais coletividades porque se realiza a suas expensas A prática altruísta restrita opera também no âmbito do grupo beneficia poucos agentes gera o bem restrito universalista e nutre uma solidariedade paroquial ou corporativa que é benevolente porque não prejudica as demais coletividades e é por elas aprovada A prática altruísta imparcial opera no âmbito da sociedade inclusiva beneficia todos os agentes indistintamente gera o bem comum e visa a solidariedade social A prática altruísta extremada opera no âmbito da humanidade beneficia pessoas necessitadas gera o bem comum e cultiva a solidariedade humana A partir disso tudo uma pergunta crucial reponta o que orienta nossas decisões e ações Nisso duas racionalidades se opõem a razão ética discurso fundamentado e a racionalização antiética discurso mistificador Vejamos 1 A razão ética cultiva valores universalistas e orienta práticas pautadas pela lógica da inclusão assim tanto o autointeresse quanto os três altruísmos são consensuais porque o bem gerado interessa a todos os seres humanos 2 A racionalização antiética cultiva valores particularistas e orienta práticas pautadas pela lógica da exclusão assim tanto o egoísmo quanto o parcialismo são abusivos porque o bem de uns causa mal aos outros seres humanos Nessa toada vamos comparar alguns valores contemporâneos cujas lógicas universais se contrapõem embora suas expressões concretas mudem de acordo com o tempo 21 Estritamente o egoísta é egotista só deve lealdade a si mesmo 40 Ética EmprEsarial 3 1 Valores universalistas são integridade justiça dignidade liberdade idoneidade competência privacidade solidariedade equidade pluralidade isenção confiança imparcialidade reciprocidade honestidade impessoalidade individualidade veracidade diligência coerência mérito efetividade prudência transparência credibilidade entre outros 2 Valores particularistas são oportunismo esperteza manha ganância malícia caradurismo mesquinharia jeitinho lábia permissividade desconfiança malandragem egotismo pessoalidade leniência favorecimento hipocrisia artimanha matreirice para sonegar subornar fraudar contrabandear falsificar entre outros Em conclusão a razão ética contribui para a reprodução da vida social e confere legiti midade ética quer dizer universal às práticas inspiradas por ela Transcende assim as contingências históricas a mutabilidade dos padrões sociais e o relativismo moral dos povos e dos tempos Em contrapartida a racionalização antiética mina a coesão social e confere quando muito legitimidade moral quer dizer específica às práticas inspiradas por ela Finca assim suas raízes em contextos históricos bem definidos e reflete os interesses particu laristas dos agentes que se esforçam em justificar seus atos De modo que diante de quaisquer situações notadamente as que pareçam ambíguas é possível socorrerse de uma chave explicativa basta perguntar quem ganha e quem perde com o fato ou basta verificar se a ação resulta objetivamente na geração de um bem particularista ou de um bem universalista comum ou restrito EXERCÍCIO APLICAÇÕES PRÁTICAS Sugerimos ao leitor que responda ao exercício denominado Aplicações práticas à dis posição no site da Editora Elsevier Anexo II Ele tem o mérito de mostrar como investir conceitos num conjunto de situações concretas que deverão ser qualificadas em termos de razão ética universalista ou de racionalização antiética particularista No final comentários esclarecerão as respostas QUESTÕES PARA REFLEXÃO 1 Um país que dispõe de uma alta carga de tributos carece necessariamente de legitimidade ética E caso haja bom uso dos recursos arrecadados e se ofereçam serviços públicos de qualidade como fica 2 Diante de uma distribuição desigual da carga tributária do mau uso dos recursos pelos governantes e da fragilidade dos mecanismos de controle a sonegação fiscal se justifica 3 Muitos homensbomba chegam a considerar seu suicídio como um ato altruísta extremado uma vez que a comunidade fundamentalista à qual pertencem os reverencia como mártires A justificação moral de que desfrutam corresponde a uma legitimação ética de caráter universalista ou seriam eles terroristas 4 É eticamente legítimo que caminhoneiros parem as marginais em São Paulo porque foram proibidos de circular no centro expandido das 5 às 21 horas rodízio de veículos 5 É eticamente legítimo que professores tomem conta da Avenida Paulista em São Paulo que tem 15 hospitais e inúmeras empresas funcionando para chamar atenção para sua greve Os conceitos fundamentais 3 41 6 É eticamente legítima a tolerância zero na ingestão de bebidas alcoólicas por motoristas 7 É eticamente legítimo que o MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra promova invasões e depredações de propriedades privadas e de prédios públicos como táticas regulares de atuação 8 Muitos anúncios de veículos ou de eletroeletrônicos aguçam a taxa de impaciência dos consumidores incapacidade de adiar o desejo de consumir ao apregoar que vale a pena levar agora e pagar depois que as prestações são módicas e cabem no orçamento Esse tipo de publicidade teria legitimidade ética sabendose que raros são os clientes capazes de fazer os cálculos competentes 9 Olhando com isenção é possível dizer que qualquer um de nós seria capaz de agir de forma multifacetada isto é de cometer tanto ações egoístas e parciais como ações autointeressadas ou altruístas E caso essa polivalência seja verdadeira ninguém seria confiável 10 Na luta contra os traficantes dos morros cariocas o que deve prevalecer e por quê ações enérgicas ou execuções sumárias Inteligência policial ou torturas Tropa de elite ou milícia justiceira Conduta irrepreensível ou maleável 11 Traficantes de drogas cuidam de interesses comuns do morro em que operam e ajudam membros da comunidade Ao substituir funções básicas do Estado agiriam de forma altruísta imparcial Ou para impor seu império produziriam eles um bem particularista isto é agiriam de forma parcial 12 Os drones militares veículos aéreos não tripulados utilizados para eliminar lideranças terroristas foram considerados instrumentos de autodefesa por parte do governo norteamericano embora violem a soberania de outros países e realizem execuções planejadas que implicam mortes não desprezíveis de civis geralmente classificadas como danos colaterais Tal postura seria universalista ou mereceria condenação por causa do risco da generalização dessa tecnologia 43 4 Lealdade e moralidade A dificuldade não é distinguir entre o certo e o errado é escolher entre o certo e o certo A QUEM SE DEVE LEALDADE Falar de moral é falar de dilemas de interesses conflitantes de polarizações toda relação moral implica escolhas algumas tão difíceis que nos levam à catatonia Afinal é difícil ser leal a todos indiscriminadamente o tempo todo Em síntese no terreno moral não há neutralidade possível é preciso posicionarse Em termos práticos toda decisão pode beneficiar alguns em detrimento de outros bem particularista beneficiar alguns sem prejudicar outros bem restrito universalista ou ainda pode beneficiar todos bem comum Ora como compatibilizar as variadas lealdades que cultivamos Qual escolha fazer Quem será beneficiado e quem será eventualmente prejudicado Por exemplo um advogado não escolhe seu cliente porque ele fala a verdade ou aparenta ser inocente mas porque na qualidade de cidadão o cliente possui direitos que devem ser protegidos Nesses estritos limites sob a égide da lei o advogado coo pera com o réu única e exclusivamente para garantirlhe um julgamento justo Mas cuidado sublinhemos sua lealdade dirigese ao cidadão não ao cliente em si Da mesma maneira o promotor público defende direitos que o acusado supostamente lesou O promotor então deve lealdade a quem Sob a égide da lei novamente à vítima na sua qualidade de cidadã E a lealdade do juiz se dirige a quem À sociedade como um todo sem discriminar vítimas ou acusados na cega imparcialidade da administração da Jus tiça no estrito cumprimento da lei A rigor nem sempre esses preceitos são observados daí o descrédito que às vezes recai sobre os tribunais e sobre os membros do aparelho judiciário apesar de alguns juízes inovarem sabiamente para sintonizar a lei com o pulsar dos tempos redirecionando a dinâmica jurídica1 Por seu turno uma agência de publicidade deve lealdade a quem À empresa con tratante da campanha publicitária cliente direto dela Ao público que será atingido por sua mensagem e que pode vir a se tornar consumidor do produto ou usuário do serviço Aos seus próprios acionistas A todos ao mesmo tempo Como fazer para conciliar tantos e tão díspares interesses Sem uma reflexão crítica a respeito o trabalho da agência perde o rumo e pode derivar para a mistificação Expliquemos se vier a privilegiar a contratante para não perder o contrato e caso o fizer em detrimento dos usuários finais satisfará apenas os interesses mais diretamente envolvidos na operação os dela e os da contratante e poderá eventualmente contribuir para uma manipulação que seja lesiva aos usuários Assim havendo dúvida razoável a respeito da qualidade do produto ou do serviço a ser anunciado não caberia uma investigação prévia indo ao extremo da sus pensão do lançamento da campanha Afinal haveria como evitar a corresponsabilidade da agência e de seus profissionais tendo em vista o fato de que uma publicidade enganosa 1 É o caso do Supremo Tribunal Federal que decidiu em 2012 que a antecipação do parto de feto anencéfalo não constitui crime de aborto tipificado no Código Penal 44 Ética EmprEsarial 4 possa acarretar prejuízos aos consumidores e por extensão à sociedade como um todo A agência não correria o risco de manchar a própria reputação e comprometer a credibili dade da empresa contratante ainda que esta eventualmente não se importe com o fato O que fazer então Aderir às práticas interesseiras e de curto alcance ou cultivar uma escrupulosa cautela A quem a agência deveria lealdade Às coletividades restritas ou ao mercado consumidor mais amplo e destinatário final Deve gerar bem particularista ou bem universalista Em tese a resposta é óbvia é preciso privilegiar o bem universalista Na prática nem sempre tal escolha prevalece haja vista a ânsia de auferir lucros no curto prazo Os pretextos não faltam Dirão é preciso garantir os empregos o dom quixotismo não paga as contas cabe ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária Conar tomar providências não à agência de publicidade A decisão cabe à agência é claro mas do ponto de vista científico a caracterização está feita Vejamos agora a situação da administração de recursos de terceiros caso sejam geridos por corretora ou por banco não poderia haver algum conflito de interesse entre as ins tituições financeiras e seus clientes É claro que sim à medida que os administradores de recursos podem usar as informações confidenciais de que dispõem em proveito próprio Nessas circunstâncias é costume garantir o sigilo das operações por meio da adoção de uma política conhecida como Chinese Wall Essa analogia com a muralha da China nos remete aos escudos protetores às zonas de confinamento aos mecanismos de monitoramento e às barreiras que impedem ou restringem o fluxo das informações não públicas uma vez que sua difusão constitui fonte potencial de conflitos de interesses entre as instituições financeiras suas áreas internas e seus demais públicos de interesse stakeholders Em última análise tais públicos e em particular os clientes devem poder confiar que as informações sensíveis que lhes digam respeito só serão utilizadas em seu próprio benefício e não em benefício de quaisquer outras partes A política de Chinese Wall consiste então em instituir um espaço de incomunicabilidade que coíba a livre circulação das informações privilegiadas ou restritas Os meios para tanto são a a segregação de espaços atividades e funções b os controles preventivos c as normas de conduta e d a responsabilização dos agentes tendo sempre em vista separar a administração dos recursos de terceiros da gestão dos próprios ativos financeiros Nesse caso e em primeira mão a lealdade dos gestores que proveem os serviços é devida aos investidores e não à instituição financeira que os contrata E por quê Não por razões de bommocismo embora estas também sejam bemvindas mas por razões pragmáticas Pois se forem lesados os investidores poderiam redirecionar suas aplicações para a concorrência causando à corretora ou ao banco sérias perdas E seria uma repre sália absolutamente legítima Assim uma das maneiras práticas de demonstrar lealdade consiste em garantir estrito respeito à confidencialidade das informações dos clientes No primeiro semestre de 2002 a Merryll Lynch foi acusada pelo procurador geral de Nova York Eliot Spitzer de ter acobertado relações promíscuas entre suas divisões de análise e investimentos O procurador acusou os analistas de classificar favoravelmente as ações de empresas que utilizavam os serviços da corretora para colocar ações no mercado Em outras palavras a Merryll Lynch foi denunciada como tendo induzido investidores ao erro com avaliações tendenciosas No mês seguinte ao anúncio da investigação atingida em cheio em sua credibilidade a corretora perdeu US11 bilhões em valor de mercado na Bolsa Assim para pôr fim às acusações do procurador geral a empresa fechou um acordo que implicou pagar uma multa de US100 milhões US48 milhões destinados ao Estado de Nova York e o restante a outros Estados A corretora também se comprometeu a criar um comitê para revisar lealdade e moralidade 4 45 as mudanças nas classificações de ações e foi obrigada a controlar a comunicação entre as áreas de análise e de investimento Isso tudo não colocou a Merryll Lynch ao abrigo das ações coletivas que poderiam ser impetradas na Justiça ou do apelo a tribunais de arbitragem privados por parte de investidores que se considerassem lesados pelas análises viciadas2 Além disso no final de 2002 houve um acordo histórico firmado entre a Procuradoria Geral de Nova York a SEC Securities and Exchange Commission e as maiores cor retoras de Wall Street Citigroup Crédit Suisse First Boston Merrill Lynch Morgan Stanley Goldman Sachs Lehman Brothers Deutsche Bank J P Morgan Bear Stears UBS Paine Webber para arquivar acusações de que iludiram clientes com análises tendenciosas sobre ações negociadas na Bolsa Implicou o desembolso de US1 bilhão em multas além de outros US450 milhões para financiar a distribuição de análises independentes a serem produzidas por empresas que não possuem banco de inves timento3 Fica claro então que a sobrevivência das corretoras depende da lealdade maior aos investidores em geral Pois caso os interesses dos investidores não fossem respeitados não ficaria em xeque o sistema financeiro Em abril de 1994 The New York Times anunciou um escândalo envolvendo o maior banco americano o Citibank O presidente John Reed e Richard Handley exdiretor do banco na América Latina então presidente de uma subsidiária do Citi na Argentina a Citicorp Equity Investiment CEI teriam feito negócios suspeitos na Argentina As operações deram muito dinheiro ao banco mas enriqueceram também amigos de Handley com o conhecimento do presidente Ao se pronunciar porém o Citibank garantiu que tudo foi feito de forma correta A operação começou em 1989 Naquele ano o Citibank tinha US1 bilhão em papéis da dívida argentina O valor desta fortuna era nominal porque os papéis estavam muito desvalorizados O país vivia um processo de hiperinflação e os investidores pagavam apenas 11 centavos por um bônus de 1 dólar do governo argentino Handley convenceu o governo a aceitar os bônus em troca de ações de empresas estatais As ações compradas pelo Citi foram colocadas na Citicorp Equity Investiment CEI empresa criada especialmente para isso Em 1992 depois que o Plano Cavallo trouxe alguma estabilidade à economia argentina o país foi invadido pelos dólares dos investidores estrangeiros a privatização deslanchou e o preço das ações deu um salto enorme A CEI converteuse então na maior holding industrial da Argentina Mas o Citi não era mais o único dono da CEI ocorre que vendeu 60 da empresa justamente quando o negócio estava se valorizando E os compradores foram na maioria amigos de Handley A saber um amigo de infância assumiu 33 das ações pertencentes à holding detalhe significativo os US269 milhões da compra foram financiados pelo próprio Citi dois advogados funcionários da CEI e assessores de Handley ficaram com outros 12 da holding pagando uma parte em dinheiro e o restante em trabalho Ambas as situações levantaram suspeitas 2 Bloomberg e Dow Jones Merryll Lynch paga multa por acusação de induzir investidor Gazeta Mercantil 22 de maio de 2002 3 GASPARINO Charles Acordo de US14 bilhão muda prática de negócios em Wall Street The Wall Street Journal Americas reproduzido por O Estado de S Paulo 23 de dezembro de 2002 Banco pagará multa recorde nos EUA Gazeta Mercantil 23 a 25 de dezembro de 2002 46 Ética EmprEsarial 4 Na época as explicações dadas pareceram razoáveis como os acionistas não recebiam dividendos desde 1991 e como havia pressão do governo norteamericano por causa dos seguidos prejuízos do banco foi preciso vender fatias da subsidiária argentina para incorporar o lucro ao seu balanço e agradar aos acionistas No fim das contas o Citi ganhou US450 milhões livrandose dos títulos da dívida argentina Os acionistas argumentaram no entanto que o Citi deixou de realizar outros US575 milhões com a operação4 A quem deviam lealdade os gestores do Citibank Aos acionistas ora E por quê Por serem seus empregadores e porque formam uma coletividade cuja abrangência é maior do que a rede informal de poder constituída por aqueles que se envolveram na operação E mais como foi administrado o conflito de interesses entre gestores e investidores Tudo indica que foi em benefício próprio dos gestores Clara produção de bem particularista O maior vazamento de petróleo da história americana estimativa de 652 milhões de litros de óleo lançados no litoral do Texas à Flórida mais de 15 vezes os 42 milhões do caso Exxon Valdez Alasca 1989 causou danos imensuráveis à fauna e à economia Aconteceu em 20 de abril de 2010 e provocou a morte de 11 funcionários na explosão da plataforma Seu custo estimado para a British Petroleum BP foi de US 37 bilhões incluindo des pesas com limpeza reparos multas e indenizações além da perda de US 67 bilhões no valor das ações e do grave comprometimento da reputação da companhia Ocorre que o vazamento poderia ter sido evitado se a BP tivesse adquirido um dis positivo de segurança chamado gatilho acústico no valor de 500 mil dólares capaz de vedar o poço em caso de acidente o aparelho fica na superfície e usa ondas sonoras que levam as válvulas do poço a se fechar e a interromper o fluxo no poço Todavia decidiu economizar ao não instalar um equipamento desse tipo Seu uso aliás é obrigatório no Brasil e na Noruega porém não nos Estados Unidos desde 2003 Esse caso mostra que nem sempre a lealdade aos acionistas pode servir de farol con fiável para dirigir o curso da ação pois pode ocasionar prejuízos ao meio ambiente ou à sociedade em geral A economia que a BP fez diminuindo custos e assumindo riscos des medidos foi fatal diante do vazamento de proporções bíblicas que acabou acontecendo Foi uma decisão infeliz de caráter particularista que merecia ser submetida ao seu crivo universalista Apreciados esses casos cabe a pergunta como fazer para superar as inúmeras linhas divisórias que demarcam o espaço social como se definir entre as diferentes lealdades que nos dividem A única saída geral consiste em fazer escolhas que interessem a todos praticar atos que tenham sempre em mente as comunalidades O que são comunalida des Questões que não conhecem fronteiras e envolvem bens públicos globais questões de interesse universal porque afetam a humanidade o planeta e as gerações futuras Citemos fome pragas pobreza epidemias ou doenças infecciosas aquecimento global ou efeito estufa desperdício de recursos naturais excesso de lixo escassez de água de saneamento básico e de energia poluição dos oceanos ou do ar buraco de ozônio terroris mo internacional defesa dos direitos humanos tráfico internacional de drogas perda e preservação da biodiversidade superexploração dos estoques de peixes desmatamento de reservas florestais crescimento demográfico e migrações populacionais catástrofes naturais lixo radioativo alteração do ritmo das estações erosão do solo e desertificação não restauração de áreas degradadas perda e conservação de áreas agriculturáveis desemprego tecnológico redução dos arsenais nucleares e contenção de sua proliferação 4 Veja 27 de abril de 1994 lealdade e moralidade 4 47 Diante de tamanhos desafios se for feita a indagação sobre qual interesse deveria preva lecer novamente todos concordariam de forma retórica que fosse o bem comum Acontece que mesmo quando essas questões são enfrentadas há sempre vozes dis cordantes que se levantam porque seus interesses são feridos Por exemplo nem todos apoiam o respeito aos direitos humanos a começar pelos países totalitários e pelas polícias autoritárias E muitas empresas brasileiras tampouco acatam de bom grado a proibição do uso do gás CFC para preservar o ozônio da atmosfera válida a partir do ano 2000 em respeito ao Protocolo de Montreal de 1987 E isso embora se saiba que sem o escudo estratosférico representado pelo ozônio a humanidade como um todo se torna mais vulnerável ao câncer de pele e à catarata e que o sistema imunológico das pessoas fica prejudicado É preciso então convir que nem sempre é fácil tomar decisões tendo a humanidade por marco de referência Vejamos um caso emblemático Em um lugarejo de nome Vladimir Volynskiy a cerca de 500 quilômetros de Kiev na Ucrânia a família gentia Vavrisevich escondeu sete judeus no período de novembro de 1942 a fevereiro de 1944 Alimentouos e cuidou deles em uma espécie de porão escavado sob o assoalho de sua casa Procurou contraporse à solução final nazista que decidiu eliminar os judeus em campos de extermínio ciente de que poderia ser fuzilada caso fosse denunciada Os membros dessa família não eram guerrilheiros em luta contra o invasor nem eram mais religiosos do que a média da população cristã ortodoxa da aldeia Não tinham tantas posses que pudessem sustentar sem problemas em tempo de guerra sete bocas além das próprias Contudo não eram antissemitas ao contrário da esmagadora maioria de seus conterrâneos Escolheram apenas fazer a coisa justa quando não fazer nada ou fazer a coisa injusta era a coisa certa a fazer do ponto de vista de seus interesses5 Essa família fez o bem quando a banalidade do mal era a regra Ora quantos se atre veriam a tanto No final de novembro do ano 2000 no Rio de Janeiro cerca de 3 mil motoristas auxiliares trabalhadores que pagam uma diária aos donos de táxi bloquearam o trânsito nas principais vias da cidade provocando um verdadeiro caos A manifestação foi organizada pelo movimento Diária Nunca Mais em protesto contra a liminar concedida pela Justiça que sustou os efeitos de uma lei aprovada em junho pela Câmara dos Vereadores e que havia sido sancionada pelo prefeito Esta lei permitia que a Prefeitura fornecesse licenças de táxi aos 13 mil motoristas auxiliares convertendoos em autônomos O pedido de liminar havia sido solicitado pelo Sindicato dos Motoristas Autônomos do Rio de Janeiro já que considerou absurda a entrada de mais concorrentes na praça Em represália os motoristas auxiliares abandonaram centenas de carros nas principais vias de acesso da cidade trancaramnos e levaram as chaves O Batalhão de Choque da Polícia Militar teve de intervir quebrou o vidro de 40 táxis para soltar o freio de mão apreendeu 220 veículos e prendeu 22 manifestantes 5 WEIS Luiz A lista de Vavrisevich O Estado de S Paulo 9 de dezembro de 1997 48 Ética EmprEsarial 4 A tentativa dos motoristas auxiliares de sensibilizar a população carioca para que apoiasse seu movimento saiu pela culatra As lideranças não perceberam que a tática utilizada feria os interesses de centenas de milhares de pessoas que deixaram de circular livremente levandoos a se insurgir contra os baderneiros que transtornam a vida da cidade Embora sua reivindicação visasse obter uma licença de táxi e fosse legítima os meios utilizados foram desastrosos e o resultado não poderia ter sido outro a ação de bloquear os acessos ao Rio de Janeiro deu moralmente ganho de causa aos taxistas E por que isso Porque feriu o bem comum não levou em consideração os interesses daqueles que seriam prejudicados assumiu um caráter exclusivista bem particularista e acabou sendo condenada pela população Em suma como resolver esta questão candente a quem se deve lealdade Sem análises mais sofisticadas diremos a quem quisermos desde que não sejam feridos os interesses dos outros Isso significa que não precisamos nos ater às comunalidades ou tão somente à produção do bem comum solidariedades humana ou social para alcançarmos a legitimidade ética podemos também gerar bem restrito universalista solidariedades corporativa ou paroquial e continuar dentro do marco da legitimidade ética O QUE SÃO AS MORAIS Vamos agora nos deter à questão da moral que diferentemente dos conceitos que são abstratos e formais tem caráter concreto e real O que se entende por uma moral É um sistema de normas culturais que pauta as condutas dos agentes sociais de uma determinada coletividade e lhes diz o que é certo ou não fazer Depende da adesão de seus praticantes aos pressupostos e valores que lhe servem de fundamentos Representa um posicionamento diante das questões polêmicas ou sensíveis e constitui um discurso que justifica interesses coletivos bem determinados Organiza essas expectativas coletivas ao selecionar e definir as melhores práticas a serem observadas Tem natureza simbólica essência histórica e caráter plural e seus cânones variam à medida que espelham as coletividades que os cultivam Existem múltiplas morais diversas no espaço e dinâmicas no tempo porque os padrões culturais estão sujeitos à incessante mutabilidade das condições temporais o tempora o mores diziam os romanos os costumes mudam com os tempos Por exemplo a honra era um valor culturalchave no Brasil latifundiário Corres pondia ao caráter sagrado da reputação familiar a infidelidade conjugal da mulher não só desacreditava o marido como pessoa mas fazia com que perdesse o respeito de seu meio social A honra associavase também ao sentimento de dignidade pessoal e ao valor da palavra empenhada conforme rezavam ditados tradicionais como cabra macho não leva desaforo para casa ou fio da barba vale mais que papel escrito Embora subsistam resquícios desses comportamentos em regiões interioranas essas manifestações no Brasil urbano de hoje são acolhidas com um sorriso de condescendência A rigor raramente alguém mata nos grandes centros porque foi traído e se o fizer não é mais absolvido pela graça da legítima defesa da honra Aliás dada a atual permissividade se assim não fosse teríamos uma hecatombe Por isso mesmo as morais são as nervuras sensíveis das culturas ou dos imagi nários sociais peças de resistência que armam as identidades organizacionais códigos genéticos das condutas sociais requeridas pelas coletividades Assim sendo enquanto as lealdade e moralidade 4 49 morais correspondem às representações mentais que dizem aos agentes sociais o que se espera deles quais comportamentos são recomendados e quais não o são a Ética diz res peito à disciplina teórica e ao estudo sistemático dessas morais e de suas práticas efetivas Agora esmiuçando a questão diremos que as normas que compõem as morais são pautas de ação que ensinam o bem fazer ou o fazer virtuoso a melhor maneira de agir coletivamente são marcos que qualificam o bem e o mal o aceitável e o inaceitável a bondade e a maldade o desejável e o indesejável Expressam portanto valores operam como balizas para guiar o comportamento refletem expectativas coletivas quanto às condutas apropriadas funcionam como fatores de coesão social ou como regras de convivência que viabilizam a coexistência entre interesses díspares Compõem em suma a bússola moral que orienta os agentes em suas decisões e ações no dia a dia Assim cabe indagarse por que as normas sociais são acatadas6 A resposta é por três razões que muitas vezes se conjugam 1 O temor e a submissão dos agentes diante da ameaça representada pelas restrições que a coletividade pode exercer sobre eles é o caso das normas jurídicas cujas transgressões são punidas por sanções legais 2 A adesão motivada pela necessidade de se identificar e pertencer a dada coletividade é o caso das normas de etiqueta cujas transgressões padecem sanções sociais7 3 A consciência de que a vida em sociedade requer que se respeitem regras de interesse comum fruto da socialização ou da reflexão é o caso das normas morais cujas transgressões sofrem sanções simbólicas8 As normas jurídicas leis e regulamentos dispõem de sanções sobre o corpo ou sobre a vontade dos agentes sociais visam a compelir os agentes Correspondem a formas de intimidação multas exclusões reclusões privação de determinados direitos e são res paldadas pelo poder político isto é pelo monopólio da violência que o Estado detém Sua eficácia repousa nos efeitos da coação externa cujo caráter é imperativo e obrigatório É bom que se diga que as normas jurídicas guardam semelhança com as normas adminis trativas que imperam nas empresas e cujas sanções são disciplinares advertências suspensões e demissão O caráter destas últimas também é impositivo e seu propósito consiste em enquadrar os funcionários As demais normas como as morais e de etiqueta9 implicam a aceitação voluntária dos agentes exigem seu consentimento Não carecem todavia de sanções contra quem as desrespeita ainda que estejam destituídas do caráter físico da repressão têm natureza imaginária cultural pois remetem à censura que recai sobre quem transgride suas pautas visando dissuadir os agentes de adotar determinados cursos de ação A eficácia dessas normas reside em boa parte ainda que não exclusivamente na coação interna na disciplina da consciência de seus temores e fantasmas nos padrões inculcados pelos agentes sociais na reflexão que convalida a convivência social A confusão entre as normas jurídicas disposições legais e as morais orientações dese jáveis é porém comum Reconheçamos que ambos os tipos de normas regulamentam as relações sociais postulam condutas esperadas assumem a forma de imperativos e visam 6 FONSECA Eduardo Giannetti da Vícios privados benefícios públicos A ética na riqueza das nações São Paulo Companhia das Letras 1993 pp 8891 7 O estranhamento resultante de comportamentos inadequados provoca preconceitos e afasta os demais agentes 8 O agente transgressor amarga pechas é desaprovado e depreciado socialmente 9 A etiqueta social diz respeito às deferências ou aos protocolos que são adotados em ocasiões formais aos códigos de boas maneiras que estabelecem as condutas convenientes e inconvenientes apropriadas e inapropriadas oportunas e inoportunas Não se deve portanto confundir moral com etiqueta 50 Ética EmprEsarial 4 a garantir a coesão social Entretanto as primeiras tiram seu substrato do princípio da legalidade enquanto as segundas tiram seu substrato do princípio da legitimidade Ou seja enquanto as normas jurídicas dizem respeito à dimensão políticojurídica da realidade social e expressam relações de poder as normas morais dizem respeito à di mensão simbólicocultural da realidade social e derivam de relações de saber A diferença essencial fica clara quando comparamos o código de trânsito com o código de conduta moral de uma empresa qualquer No primeiro as infrações são punidas com medidas e penalidades administrativas como multas retenção remoção ou apreensão do veículo recolhimento da carteira de motorista suspensão do direito de dirigir ou cassação da habilitação e caso haja ação delituosa o infrator fica sujeito a processo judicial com penas como a prestação de serviços à comunidade e a detenção No segundo a violação das normas resulta em censuras medidas educativas de início em advertências formais medidas corretivas caso houver reincidência e conforme a gravidade em sanções administrativas como a demissão medidas punitivas Desse modo podemos ver que aqui lidamos com universos díspares Estabelecer tal distinção não constitui preciosismo acadêmico pois permite desmistificar uma tendência corrente que transforma moralidade e legalidade em sinônimos Com efeito nem tudo que é legal é moral e viceversa Aliás uma simples combinatória pode elucidar a questão Tomemos por parâmetros as leis brasileiras atuais e a moral pública brasileira Assim fatos sociais podem ser Legais e morais como o treinamento de funcionários patrocinado por uma empresa ou a cerimônia de um casamento civil Legais e imorais como a falta de correção da tabela do Imposto de Renda por anos a fio sob a alegação governamental de que fazêlo seria reintroduzir o instituto da correção monetária ou a aceitação da candidatura de políticos processados por improbidade administrativa na falta de sentenças julgadas em última instância a Justiça Eleitoral acolhia a candidatura até a implantação da lei da Ficha Limpa Ilegais e morais como o desrespeito do sinal vermelho pelos motoristas nas grandes cidades e de madrugada pelo receio que eles têm de serem assaltados ou o fato de alguém apostar no jogo do bicho mesmo sendo ele uma contravenção10 Ilegais e imorais como o tráfico de drogas ou as fraudes em licitações públicas De forma simplificada ainda que carregando um pouco nas tintas a diferença entre as duas esferas fica clara ao contrastar o sujeito esperto e o delinquente pois o primeiro comete deslizes e merece censura o segundo comete crimes e merece cadeia ÉTICA FILOSÓFICA OU ÉTICA CIENTÍFICA Reforcemos nossas observações A Ética opera no plano da reflexão ou das investigações tem portanto um caráter abstratoformal As morais ao reverso embora formal ou informalmente codificadas têm um caráter históricoreal são empíricas e observáveis no comportamento dos agentes constituem a matériaprima a ser processada A Ética científica investiga como os agentes sociais são afetados uns pelos outros de forma positiva ou negativa fatos morais e estuda as morais que pretendem conferir recorrência a esses modos de agir Com qual propósito Conhecer os fatos sociais que materializam bondades e maldades virtudes e vícios e apreender os fundamentos dos padrões morais 10 Embora ilegais esses fatos podem ser comentados em público sem que isso denigra a reputação das pessoas lealdade e moralidade 4 51 Desse conhecimento é possível extrair ensinamentos Por exemplo libertar os agentes da prisão do egoísmo e do parcialismo superar as práticas sociais que não se importam com os efeitos nocivos que geram Tais desdobramentos é claro embutem a lógica inclusiva do universalismo que informa tanto a razão ética quanto as teorias éticas de caráter científico pois autointeresse e altruísmo interessam a todos os seres hu manos Há uma razão de peso para isso tudo o que contribui para a reprodução da sociedade ou a continuidade da vida social é positivo benéfico daí a racionalidade universalista e tudo o que põe em risco a convivência coletiva é negativo prejudicial daí a racionalidade particularista Numa analogia simétrica com o corpo humano podemos dizer que as doenças que nos acometem põem em risco nossa existência Em outras palavras o fundamento ético das práticas sociais encontrase no senso de in terdependência dos agentes e na necessidade imperiosa de cooperarem entre si e de serem solidários Ocorre todavia que as morais correspondem a um feixe de normas que os agentes sociais deveriam observar em suas práticas cotidianas e podem assumir quer um caráter altruísta quer um caráter egoísta ou parcial11 Façamos agora uma incursão reflexiva sobre uma preocupação recorrente no imagi nário brasileiro Para que Ética A visão mística costuma perguntar qual é a aposta da existência humana Que tipo de ações são julgadas no tribunal divino após a morte E responde dentre os muitos feitos humanos sobressai a conduta moral julgamse as criaturas humanas a partir de uma espécie de contabilidade celestial foram elas boas e virtuosas ou foram elas más e viciosas A visão secular por sua vez questiona o que distingue as pessoas na vida cotidiana E aí novamente comparece a conduta moral elas respeitam os interesses dos outros ou os desrespeitam Dessas asserções resulta um juízo de mérito haverá uma punição a danação da alma ou o opróbrio social ou uma recompensa o reino dos céus ou a boa reputação De certa forma identificam o bem com as luzes e o mal com as trevas Na visão mística digladiamse forças sobrenaturais Deus e Satã por exemplo na visão secular confrontamse posturas diante da vida respeito e desrespeito pelos outros por exemplo Vemos assim como o discurso social comum está impregnado de inquietações éticas Aliás ao longo da história das doutrinas éticas filosofias morais o que se entendeu pelo bem em sua plenitude ou melhor o supremo bem summum bonum assumiu as mais diversas definições felicidade prazer dever perfeição prudência poder disciplina mental conhecimento autocontrole ascetismo graça de Deus razão prosperidade liber dade igualdade social realização pessoal sucesso Houve portanto um extraordinário leque de hipóteses ou de convicções que apenas reforça o caráter relativista dos valores culturais e como é fácil deduzir confere uma pegada histórica à reflexão teóricofilosófica De fato a Ética filosófica sempre tentou estabelecer princípios constantes e univer salmente válidos para a boa conduta em quaisquer sociedades e épocas Definiu o bem moral como o ideal do melhor agir ou do melhor ser e procurou as fontes da moral nas divindades na natureza ou no pensamento racional Em contrapartida a Ética científica constata o relativismo cultural e o considera pedra angular dos fenômenos morais Dito de outra forma resgata o bem e o mal assim como a virtude e o vício a partir de seus fundamentos sociais e históricos mas não pauta sua análise por eles nem se deixa contaminar por essas avaliações Ou seja aborda as normas que as coletividades consideram válidas sem emitir juízos de valor investiga e explica a razão de ser da pluralidade da dinâmica e da coexistência das morais históricas com base 11 Como veremos a moral brasileira da integridade ensina a agir de forma altruísta enquanto a moral brasileira do oportunismo ensina a agir de forma egoísta 52 Ética EmprEsarial 4 em juízos de realidade Tratase pois de uma matriz conceitual que se apresenta como discurso demonstrativo Por exemplo quando explicita os fundamentos sociológicos dos cursos de ação declara suas cores e torna verificáveis suas asserções diferentemente da filosofia que consiste num pensar sem provas12 Em síntese a Ética filosófica ou filosofia da moral reflete sobre a melhor maneira de viver e tende a ter um caráter normativo e prescritivo ansiosa por estabelecer uma moral universal cujos princípios deveriam inspirar os homens malgrado as contingências de lugar e de tempo Desemboca quando muito na proposição de uma moral conven cionada que deveria ser adotada por consenso pelos povos do planeta13 No polo oposto a Ética científica ou ciência da moral desenvolve um corpo de conceitos de validade universal a partir da observação das regularidades que os fatos morais apresentam e assume um caráter descritivo investigativo e explicativo Centra sua atenção na produção de conhecimentos malgrado a diversidade cultural e a varie dade das disposições normativas Procura prever a ocorrência dos fenômenos morais e com isso faculta intervenções competentes sobre a realidade social EXERCÍCIO PERFIL DAS POSTURAS MORAIS Antes de analisarmos mais a fundo as morais brasileiras convém ao leitor responder ao exercício que se encontra no site da Editora Elsevier com o título anterior Anexo III Certamente ficará interessado em conhecer o próprio perfil moral ainda que de forma impressionista Um gabarito com comentários esclarece os resultados 12 COMTESPONVILLE André Pequeno tratado das grandes virtudes São Paulo Martins Fontes 1995 p 173 13 A exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos ONU 1948 53 5 As raízes da dupla moral brasileira A existência de normas sociais implica a possibilidade de infringilas Ao multiplicaremse as tentações as sociedades contemporâneas são particularmente propícias à transgressão A HIBRIDEZ MORAL BRASILEIRA Existem morais gerais macrossociais que recobrem as sociedades como um todo e que servem de núcleos estruturadores das centenas de morais em vigor tanto as de abrangência setorial mesossocial1 como as de abrangência organizacional micros social2 Estes dois últimos tipos de morais expressam os interesses e as visões de mundo das muitas coletividades que integram as sociedades são conjuntos coerentes de normas paroquiais corporativas profissionais setoriais classistas regionais étnicas ou confessionais São modulações das morais gerais formas particulares de interpretar seus temas são variações singulares de suas pautas espécies de planetas do mesmo sistema solar A exemplo da moral puritana nos Estados Unidos é lícito supor que toda socieda de inclusiva tenha uma única moral macrossocial Não é o que ocorre no Brasil em que à revelia da integridade que se apregoa publicamente viceja forte disposição de locupletarse a expensas dos outros O oportunismo funciona como moral oficiosa calcada no espírito do jogo de soma zero cujo cerne reside na ideia de levar vantagem em tudo De fato a esperteza é louvada e se traduz em jeitinhos ações entre amigos sonegação de impostos uso e abuso de propinas quebragalhos descumprimento da lei e outras tantas malandragens que consistem em passar os outros para trás fingir que não se vê deixar pra lá Quem não adere a essas práticas acaba geralmente achinca lhado com rótulos jocosos ou pejorativos trouxa otário babaca incauto ingênuo crédulo inocente boboca sofre chacotas e está fadado a levar rasteiras O oportunismo enfeixa um conjunto de práticas dissimuladas que vão desde o ilícito mais tolerável jogar no bicho até a corrupção menor dar uma cervejinha a um guar da de trânsito Em tese não se confunde com a corrupção maior lavagem de dinheiro proveniente de drogas concussões e com as práticas criminosas roubos de carga fraudes financeiras extorsões mediante sequestro As fronteiras contudo nem sempre são simples de demarcar entre os jeitos e a corrupção É o caso do consumo pessoal de músicas e de filmes pirateados o pagamento de consultas médicas sem recibo quando o desconto convém ou as construções irregulares avalizadas por fis cais das prefeituras Nesse contexto reponta sempre a pergunta sobre por que o Brasil e os países latinos sofrem dessa duplicidade moral desse dilaceramento que se traduz por manifestações de 1 Morais que expressam o cerne prescritivo do imaginário de determinados setores da sociedade como a classe empresarial a magistratura a categoria médica o Terceiro Setor o funcionalismo público o setor sindical etc 2 Visíveis tão somente em organizações possuidoras de uma cultura organizacional própria o que não é tão comum pois a esmagadora maioria das organizações apenas reproduzem os padrões culturais da sociedade inclusiva 54 Ética EmprEsarial 5 hipocrisia coletiva3 As razões dessas condutas erráticas são várias e derivam de fatores históricos bem precisos Com efeito a maior parte dos brasileiros sofre de ambivalência ora agindo de forma íntegra e se indignando com as condutas espertas que identificam nos outros ora resvalando para atitudes oportunistas e se justificando com a bandalheira geral que afirmam estar campeando no país Em julho de 1997 na abertura de um programa de televisão da Rede Globo denominado Você Decide que tratava de temas polêmicos o apresentador perguntou aos telespectadores Você abriria mão de seus princípios em nome de uma vida melhor Quem quisesse escolher seu final preferido deveria telefonar O anonimato estava assegurado Para espanto do diretor do programa boa parte dos respondentes disse sim O episódio Cobiça colocava uma secretária diante de uma oferta ilícita assumir o papel de laranja em uma conta fantasma A proposta veio do chefe dono de uma corretora de valores que estava envolvido numa fraude financeira A secretária sofreu pressões tanto dele quanto de seu próprio marido que se dizia ameaçado de morte por causa de dívidas de jogo Os telespectadores puderam escolher entre três finais 243 disseram que a secretária deveria denunciar o chefe 272 acharam que deveria pedir demissão e silenciarse sobre o esquema e 485 consideraram que a secretária deveria aproveitar a chance de melhorar de vida e entrar no esquema Foi então colocado no ar o terceiro final4 Se somarmos os telespectadores que mantiveram uma irrepreensível posição de integri dade a denúncia aos que preferiram não se comprometer a omissão com uma pitada de cumplicidade teremos 515 Isso revela a ambiguidade que marca com clareza o imaginário brasileiro uma vez que o restante dos respondentes ou quase metade da amostra simplesmente aderiu ao oportunismo mais descarado As representações mentais brasileiras entretanto vêm sofrendo o impacto de novos e decisivos ventos e tendem a se redefinirem A década de 1990 foi traumática para o Brasil A falência financeira do Estado centro de gravidade do modelo de desenvolvimento protecionista e substitutivo de importações desembocou na abertura comercial que consagrou o fim do sonho de um capitalismo nacional autárquico Adotouse então o modelo de integração competitiva no mercado mundial o que representou um dos mais importantes desafios gerenciais que as empresas já enfrentaram na atualidade Simultaneamente adveio o maremoto da Revolução Digital Os efeitos dessas injunções foram dramáticos muitas empresas faliram e outras tiveram de se reinventar muitas reformularam a organização do trabalho e liberalizaram o exercício do poder interno novas empresas aderiram a uma arquitetura de cunho profissional o processo de globa lização levou à adoção comedida de padrões culturais cosmopolitas Começam a prevalecer nas empresas que integram mercados competitivos a racio nalidade capitalista e a previsibilidade das condutas dois fatores indispensáveis para construir parcerias nos negócios E por quê Porque no contexto de um regime político liberal e de uma mídia crítica as empresas que falham em seus compromissos e frustram seus públicos de interesse sofrem represálias cada vez mais incisivas A credibilidade dos agentes econômicos tornouse foco das preocupações Teimar então em agir de forma oportunista convertese em perigosa miopia No reverso da medalha a efetiva adesão ao 4 Mauricio Stycer Espectador apoia crime financeiro Folha de S Paulo 12 de julho de 1997 3 Os países latinos são Itália França Espanha Portugal e todos os demais das Américas espanhola e portuguesa as raízes da dupla moral brasileira 5 55 profissionalismo e à idoneidade abandonando práticas empresariais duvidosas constitui um virtuoso quebracabeça pressupõe que sejam enfrentadas questões controversas e que se exercitem padrões idôneos de conduta e exige por fim que se estabeleçam sanções para coibir os desvios de conduta Para tanto duas providências se impõem A primeira consiste em identificar as situações que propiciam condições favoráveis à venalidade e que costumam conjugar a o monopólio detido por um agente sobre determinada atividade b a eventual discricionariedade de que este agente dispõe c a ausência de controles externos eficazes sobre ele Exemplo disso é a aprovação de um projeto de segurança contra incêndio em alguns centros urbanos brasileiros somente o Corpo de Bombeiros pode fazêlo e em particular determinado oficial Ocorre que alguns membros da corporação abusam de suas prerrogativas quando só avalizam projetos assinados por engenheiros indicados por eles Na ausência de instrumentos que coíbam expedientes do gênero as extorsões prosperam e muitas empresas privadas acabam compactuando Para deixar de alimentar o círculo vicioso da corrupção seria preciso redesenhar o pro cesso de aprovação dos projetos e redistribuir as atribuições Ora isso é uma tarefa pública que só pode ser viabilizada pelas pressões cidadãs Um dos caminhos mais promissores para tanto é a implantação do chamado governo eletrônico reproduzindo experiências muito bemsucedidas no âmbito privado Essa nova arquitetura governamental põe os cidadãos diretamente em contato com a máquina pública por meio de critérios objetivos e de procedimentos controláveis Uma gama extraordinária de conexões entre as esferas pública e privada se efetiva sem intermediários despachantes ou jeitinhos restringindo fortemente a margem de abusos e de arbitrariedades5 A segunda providência exige o estabelecimento de controles internos nas empresas com o intuito de monitorar a autonomia das áreas sujeitas a pressões espúrias ou a tentações de aliciamento Isso significa reconhecer que em função das próprias ativi dades que exercem e dos assuntos com os quais lidam algumas áreas são mais vulne ráveis do que outras a exemplo das áreas de suprimento comercial e financeira Ficam mais suscetíveis portanto a subornos ou a favorecimentos Donde a necessidade de intervir em seu modo de operar para eliminar as condições objetivas que facultam a ocorrência de ações inidôneas Em consequência a adesão a um posicionamento eticamente orientado obriga a conceber e a implementar novas práticas de gestão que a implicam a ruptura com paradigmas já assentados tarefa hercúlea b embutem riscos inevitáveis na elaboração e na execução além de desvios que os velhos hábitos induzem não existe técnica de intervenção organizacional a toda prova c sofrem as resistências dos interesses miúdos e das lealdades menores que emperram as mudanças provocam às vezes recaídas d significam uma espécie de calvário há um preço a pagar para se livrar das manhas Nessa altura vale a pena lançar um olhar retrospectivo sobre as raízes históricas que à semelhança de outras nações latinoamericanas levaram o Brasil a cultivar uma du pla moral a moral da integridade como código oficial e a moral do oportunismo como 5 Basta citar os serviços informatizados e as operações que envolvem as compras do Estado mediante leilões eletrônicos o pagamento de tributos a emissão de notas fiscais eletrônicas o preenchimento de boletins de ocorrência os cadastramentos e as alterações cadastrais o atendimento de denúncias a obtenção de alvarás atestados carteiras de trabalho identidade ou habilitação as certidões os licenciamentos as inscrições em concursos ou provas as regularizações a atualização de dados a coleta de informações as consultas aos órgãos públicos a emissão de segundas vias de serviços de utilidade pública etc Ilustração notável disso é também o Programa Poupatempo do Estado de São Paulo que reúne em um único local um amplo leque de órgãos e empresas prestadoras de serviços de natureza pública Em 2012 o Programa como um todo já abrangia mais de 400 serviços 56 Ética EmprEsarial 5 código oficioso ambas permeando a sociedade por inteiro As duas morais convivem em um consórcio insólito já que é amplamente contraditório e se reproduzem nos atos mais comezinhos dos agentes e das organizações E como corolário desta ambivalência cultivase uma antológica hipocrisia De fato o malestar moral é bastante comum entre os brasileiros misto de confusão ou de dissimulação Aliás tornouse esporte nacional tecer reclamações e alardear in dignação autêntica ou fingida com o descalabro que reina no país As convicções sociais que constituem a moral do oportunismo formam um discurso lógico internamente coerente que confere a seus adeptos um conjunto articulado de jus tificações para os malfeitos Ou dito em outras palavras o oportunismo não resulta de mero desvio das normas oficiais pois toma corpo em um código consistente e largamente disseminado Suas manifestações porém só se processam de forma clandestina à boca pequena e ao pé do ouvido dos compadres amigos do peito parentes afilhados colegas mais chegados Jamais ocorrem em público à vista de todos E por que isso Por pudor fingimento ou por saber que aquilo que se faz dissimuladamente não pode ser exposto à luz do dia Mas quando situações constrangedoras são desveladas cunhamse eufemis mos verdadeiras joias do imaginário brasileiro não sonegamos impostos tentamos sobreviver não descumprimos normas damos um jeitinho não cometemos falca truas somos induzidos ao erro não temos caixa 2 são recursos não contabilizados não subornamos ninguém pagamos taxas de sucesso A DISJUNÇÃO ENTRE DOUTRINA E PRÁTICAS Enquanto a moral protestante sempre exaltou o trabalho como fonte da acumulação de riquezas e como sinal de eleição por Deus a influência católica não permitiu que se concedesse legitimidade à riqueza a despeito do encanto que todos tinham pelo enriquecimento fácil Tanto é que ao longo da história brasileira os ricos sempre foram demonizados Só eram aplaudidos os poucos ricos que amenizavam o sofrimento dos menos aquinhoados com contribuições a entidades beneficentes Mas ao mesmo tempo abominouse o trabalho como algo aviltante principalmente o trabalho manual e preva leceu até a década de 1960 a ideia de que mais vale o ócio do que o negócio Razões De um lado as tradições aristocráticas do latifúndio baseado na mono cultura de exportação e alicerçado no trabalho compulsório escravos ou no trabalho dependente agregados colonos meeiros terceiros parceiros que acabaram aviltan do todo e qualquer trabalho De outro lado o sistema de colonização de exploração cujo espírito de confisco só se comparava à sanha predadora que animava os desbrava dores Esse sistema contrastava fortemente com a colonização de povoamento da porção norte dos Estados Unidos fundada na pequena propriedade familiar no trabalho livre e na policultura dirigida ao mercado interno da mesma forma que o foi a porção sul do Brasil Por sua vez invertendose as posições a porção sul dos Estados Unidos foi ocupada sob a égide da colonização de exploração Contudo em ambas as situações as porções norte prevaleceram o latifúndio escravista acabou dominante no Brasil enquanto a pequena propriedade familiar depois convertida em propriedade capitalista acabou dominante nos Estados Unidos A moral protestante de base calvinista legitimou o sucesso de uma minoria de ricos fez da riqueza um indício de salvação e estigmatizou a pobreza como sinal de danação No extremo oposto a moral católica sempre pôs a riqueza no índex associou a po breza ao estado de graça e colocou os valores humanos acima dos valores econômicos Enquanto os membros das seitas protestantes calvinistas puritanos huguenotes as raízes da dupla moral brasileira 5 57 franceses reformadores suíços e holandeses consideravam a ajuda aos que não eram bemsucedidos uma violência cometida contra a vontade de Deus os católicos viam na caridade uma das formas para alcançar a graça6 Ao fim e ao cabo o catolicismo fez das boas obras um crédito acumulado para redimir os pecados e para melhorar as pos sibilidades individuais de salvação Assim é que as duas doutrinas ficaram às turras por alguns séculos confrontandose a predestinação calvinista decretum horribile e o livrearbítrio católico Para a primeira Deus predestinou alguns homens à vida eterna à revelia de suas obras e de seus méritos e condenou os outros à morte eterna E uma vez que os desígnios de Deus são impene tráveis e irrevogáveis uma visão apocalíptica acabou segmentando os homens em dois polos eleitos e danados puros e pecadores afortunados e desafortunados vencedores e fracassados Para a doutrina católica do livrearbítrio diversamente o destino dos homens depende de suas ações porque eles dispõem de liberdade de escolha entre o bem e o mal e portanto cada qual será julgado em função de suas obras Decorrem daí os cultos canônicos da pobreza e da santidade o heroísmo a destinação social do dinheiro a crença nos grandes temas da fraternidade universal da justiça social e das virtudes evangélicas do amor cristão No limite esses contrapontos permitem distinguir duas morais uma moral da realização pessoal elitista e excludente de base protestante e uma moral da salvação paternalista e solidária de base católica Acontece que embora as prescrições papais na Idade Média condenassem o enrique cimento certas ordens religiosas recebiam a autorização para dar empréstimos e para cobrar juros e católicos leigos obtinham permissões para dedicarse ao tráfico negreiro e às operações bancárias A tributação papal também assumiu no século XVI uma grande variedade de formas e tornouse odiosa vintém de Pedro dízimo indulgências dispen sas recursos de decisões judiciárias venda de cargos eclesiásticos comissões arrecadadas sobre a renda do primeiro ano de cada bispo ou padre Em razão disso enriqueceram os excepcionados em detrimento de todos os demais fiéis E mais em tempos recentes no recôndito do confessionário a moral lassa do catolicismo ainda tolerava práticas formalmente pecaminosas7 E isso a despeito da encíclica do papa João Paulo II Veritatis Splendor que ataca com rigor o relativismo moral moderno e afirma que a moral cristã é universal e imutável A moral protestante por sua vez também postula um caráter único e universal se es tende às esferas pública e privada e pretende uma conduta impecável que fustiga os des lizes e as ambiguidades É o caso dos puritanos piedosos que não praticavam a usura nem se locupletavam com os erros alheios não pechinchavam nem participavam de espoliações como ocorria no colonialismo político adotavam um comportamento comercial regrado racional objetivo incondicionalmente legal e apoiado em preços fixos desprezavam a ânsia doentia por dinheiro e não favoreciam interpretações frouxas ou uma moral casuística Com a secularização das morais econômicas que a ruptura racionalista do século XVIII trouxe o debate entre catolicismo e protestantismo transferiuse para as ideologias econômicas Surgiram então as clássicas polêmicas entre mercantilismo e laissezfaire protecionismo e livrecambismo intervencionismo e liberismo ou em síntese entre 6 As outras formas de obter a graça eram os jejuns as peregrinações a veneração das relíquias e a invocação dos santos 7 O escritor italiano Giordano Bruno Guerri reuniu em um livro 100 confissões diferentes que foram simuladas em 100 igrejas espalhadas por toda a Itália e obteve uma surpreendente amostragem do que pensam os sacerdotes católicos Foram perdoadas com inesperada compreensão a evasão fiscal a cumplicidade com a Máfia a corrupção e outras atitudes nefandas inventadas por Guerri e por duas assistentes Apenas os pecados da esfera sexual foram tratados como a essência do mal In GUERRI Giordano Bruno Io te assolvo Milano Baldini Castoldi 1993 58 Ética EmprEsarial 5 dirigismo estatal e liberalismo econômico8 No essencial o debate se travou entre uma moral protetora tão bem encarnada pelo aparelho clerical ou estatal que tende para o paternalismo distributivista e uma moral empreendedora e individualista que as leis do mercado fazem prevalecer e que propende para o darwinismo social Mas por que o Brasil e os demais países latinos sofrem dessa duplicidade moral des sa recorrente simulação Uma razão de peso diz respeito à dissociação constrangedora entre o que dizem as escrituras católicas e as práticas clericais Em termos doutrinários o catolicismo sempre criticou a acumulação de riquezas Expressões consagradas como os últimos serão os primeiros e é mais fácil um camelo passar pelo furo de uma agu lha do que um rico adentrar no reino dos céus indicam que riqueza é falta de virtude ou ao inverso pobreza é virtude Essa concepção se contrapõe ao protestantismo que não só legitimou o lucro e estimulou o juro ambos tão respeitáveis quanto a renda do proprietário rural e o salário do trabalhador mas também conferiu nobreza à riqueza adquirida pelo trabalho pela diligência e pela frugalidade Na Baixa Idade Média a doutrina do justo preço condenava o lucro comercial a mais suspeita das atividades e o empréstimo a juros capitulado como usura9 O ganho não podia constituirse como um fim mas como remuneração do trabalho troca entre valores equivalentes cabia tão somente obter o valor correspondente aos meios de subsistência e às matériasprimas e não obter um excedente econômico De forma que as atividades comerciais e bancárias eram interditas Quem as desenvolvia então Aqueles que viviam à margem da sociedade cristã judeus e mouros por exemplo Ora como explicar que decretos papais autorizassem ordens religiosas a emprestar dinheiro a juros e a possuir empreendimentos produtivos e comerciais Como justificar o pagamento de indulgências para absolver pecados como se fossem debêntures celestiais Como entender o fato de a Igreja ser dona de um terço das terras aráveis na Europa medie val Haveria como evitar que mentes informadas estranhassem tamanhas incongruências A título de ilustração é curioso saber que ao tempo de sua expulsão em 1759 a Companhia de Jesus no Brasil ordem de combatentes incondicionalmente obe dientes à autoridade papal possuía como patrimônio engenhos fazendas de criação forjas tanoarias olarias oficinas de tecelagem estaleiros lavouras de subsistência pastagens terras de cultivo aplicações remuneradas com juros prédios urbanos para arrendamento linhas de exportação de especiarias amazônicas assim como colégios seminários hospitais missões indígenas noviciarias e retiros Era uma poderosíssima corporação colonial Em decorrência os descompassos entre falas e atos pregações e práticas discursos e percursos criaram constrangimentos inescapáveis na comunidade dos fiéis e geraram uma ambivalência insidiosa que se consubstanciou no formalismo na permissividade dos costumes e no exercício de uma moralidade casuística celebrizada por um adágio popular Faça o que eu digo não faça o que eu faço A COLONIZAÇÃO DE EXPLORAÇÃO Outra variável de peso nos remete ao sistema de colonização predominante na América Latina Como se sabe dois sistemas foram utilizados na Idade Moderna 9 De forma idêntica segundo a sharia dos muçulmanos a lei religiosa que orienta os preceitos da fé e o dia a dia a cobrança e o recebimento de juros estão proibidos os recursos financeiros devem se destinar a investimentos produtivos e toda especulação é interdita 8 Ver do autor Poder cultura e ética nas organizações op cit o capítulo dedicado às ideologias econômicas as raízes da dupla moral brasileira 5 59 I O sistema de colonização de exploração promoveu um valetudo predatório importava apenas o enriquecimento rápido e fácil movido pelo sonho do transoceanismo que consistia em passar os últimos anos da vida na metrópole alémmar desfrutando do cabedal amealhado Descontados os degredados os que haviam aportado nas terras do Novo Mundo por imigração espontânea vieram sem as respectivas famílias uma vez que não pretendiam se estabelecer nos novos territórios II O sistema de colonização de povoamento assentou excedentes demográficos europeus famílias que haviam fugido de perseguições religiosas políticas ou econômicas tendo sofrido a espoliação de suas terras e do acesso aos bens comunais movimento das tapagens ou enclosures Era uma imigração coagida que rompia com os centros de origem e se deslocava com armas e bagagens Do ponto de vista econômico o sistema de exploração se apoiou em três pilares a grande propriedade rural latifúndio ou plantation a produção monocultora e especializada para exportação economia extrovertida e complementar da europeia e o trabalho compulsório escravidão ou outras formas de trabalho forçado A sociedade resultante foi aristocrática e patriarcal com arraigadas bases oligárquicas e autoritárias e se carac terizou pelo racismo e pela discriminação sexista as mulheres eram consideradas objeto de presa e de prazer seres inferiores a quem se concedia por liberalidade a convivência sob o mesmo teto Esse sistema predominou em todo o Brasil menos na região Sul onde prevaleceu o sistema de povoamento De forma similar porém invertida o Sul dos atuais Estados Unidos foi colonizado pelo sistema de exploração enquanto o Norte o foi pelo sistema de povoamento cuja configuração econômica aponta para a pequena propriedade familiar a produção di versificada voltada para o consumo interno policultura que compete com a produção europeia e o trabalho livre A sociedade nesse caso foi mais aberta e tolerante e nela floresceram organizações com vocação para a cooperação coletiva As mulheres por exemplo ainda que inferiorizadas pelos homens eram vistas como companheiras de labuta ombreandose com eles nos afazeres que asseguravam a subsistência de todos Nessas condições não é nada estranho que tenha eclodido uma cruenta guerra civil en tre o Norte e o Sul 18611865 vencendo o Norte protecionista contra o Sul livrecambista O contrário ocorreu no Brasil já que as rebeliões sulistas foram sanguinariamente es magadas embora tivessem caráter mais federalista do que separatista como a Revo lução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos Rio Grande do Sul 18351845 a República Juliana Santa Catarina 1839 e a Revolução Federalista Rio Grande do Sul 18931895 As famílias de imigrantes europeus que se estabeleceram nas colônias de povoamento levaram consigo haveres e conhecimentos técnicos e visaram construir um novo lar com trabalho duro e espírito poupador De forma diversa os indivíduos isolados que apor tavam nas colônias de exploração não se dispunham a trabalhar com as próprias mãos Estavam à cata de fortuna fácil queriam apenas se apropriar de terras ou de minas lançar mão do trabalho alheio e fazer a América animados por um espírito de pilhagem dilapidação e esbanjamento O modus operandi dos primeiros era laboriosamente colonizador enquanto o dos segundos era rudemente conquistador No primeiro caso incentivavase o trabalho manual e enalteciamse os deveres e as responsabilidades de cada qual viase na pros peridade uma marca do Senhor e introduziamse formas de racionalizar e de contabilizar as atividades do cotidiano No segundo caso aviltavase o trabalho manual conspurcado pelo estigma da escravidão e enalteciamse as prerrogativas e os privilégios viase na 60 Ética EmprEsarial 5 prosperidade uma marca do destino e lidavase com o cotidiano de forma acomodada e improvisada Assim é que os padrões culturais de exploração acabaram servindo de base a ao velho patrimonialismo brasileiro esse sistema de cornucópia em que setores privi legiados se apropriam privadamente de recursos públicos numa ordenha corrupta do Estado b ao dualismo social que segmenta a população em gente distinta e gente simples cada estamento obedecendo a regras próprias os que dispõem de uma rede de compadrio capital de relações sociais tudo podem acima ou à margem da lei enquanto os demais ficam adstritos aos regulamentos e às normas jurídicas A dissolução moral permeou então os costumes até o século XX A partir dos anos 1990 no entanto a exposição do Brasil à concorrência estrangeira e ao choque com pa drões culturais internacionais vem gerando crescente reação a essas tradições Em conclusão é interessante observar que o sistema de colonização de exploração com seu valetudo predatório e sua ânsia de enriquecimento rápido se disfarçou de ação missionária evangelizar os índios e civilizar os negros numa clara dissociação entre as declarações públicas e os atos praticados vindo a constituir uma das bases históricas da dupla moral brasileira O AMÁLGAMA ENTRE A FÉ E O IMPÉRIO Durante quatro séculos a religião e a Igreja foram onipresentes no Brasil Do batismo à morte os atos cruciais da vida foram intermediados pela Igreja Os religiosos zelavam pelos bons costumes alheios ainda que não primassem por praticálos Sua atuação não se cingia aos sacramentos e aos pecados mas abrangia a assistência social aos indigentes velhos enfermos e órfãos abarcava o ensino e a catequese e cuidava da maior parte das festividades e dos divertimentos populares Importante é observar que a Igreja confundiase com a administração civil uma vez que o rei de Portugal dispunha do padroado concedido pelo Papado De fato o rei criava e indicava os bispados construía igrejas e delimitava suas jurisdições territoriais autorizava o estabelecimento de ordens religiosas conventos ou mosteiros E mais reco lhia os dízimos da Ordem de Cristo embora devesse em compensação manter o clero côngruas conferindolhe subvenções pecuniárias Os emolumentos por atos religiosos porém eram diretamente pagos pelos fiéis aos padres e se somavam aos seus proventos A Mesa da Consciência e Ordens era o departamento da administração da Coroa lusitana que supervisionava os negócios eclesiásticos fazendo com que o clero secular e regular se tornasse parte integrante do funcionalismo público A religião apostólica católica aliás foi formalmente estabelecida como religião oficial durante o Primeiro Reinado na Carta Magna de 1824 o que não quer dizer que as demais religiões não fossem permitidas Após a Independência a Igreja mantevese subordinada ao Estado que conservou a prática de preencher os cargos eclesiásticos com a indicação dos sacerdotes e continuou a pagar o clero O mais interessante é que o imperador exercia o beneplácito isto é a faculdade de aprovar ou desaprovar bulas e breves papais coroando sua intervenção nos assuntos da Igreja De sorte que ser padre era menos um sacerdócio e mais uma profissão o que confundiu os universos sagrado e profano as inquietações da alma e os negócios terrenos a obediência a Deus e ao monarca as injunções da Fé e as políticas do Império Isso tudo ensejava malabarismos mentais por parte dos padres e na sua esteira dos fiéis Não é demais frisar que grande parte dos párocos não obtinha adequado preparo religioso nem observava uma moral rígida Esses dois fatores aliás perpassam a famosa as raízes da dupla moral brasileira 5 61 Questão Religiosa do Segundo Reinado quando alguns bispos se opuseram à tentativa do imperador D Pedro II de moralizar o clero Por fim a separação da Igreja e do Estado só se deu após a proclamação da República já em 1890 garantindo a liberdade de todos os cultos bem como a regulamentação do registro e do casamento civil Mesmo assim perduram fortes ecos das crenças religiosas na moral brasileira Haja vista algumas graves polêmicas que dividem os brasileiros a a despeito de ser am plamente praticado de forma clandestina e com todos os riscos assumidos não se aceita moralmente o aborto ainda que a lei o autorize em caso de estupro e de risco de morte da mãe b são estigmatizados o adultério a relação anal a pornografia a nudez pú blica embora ocorram em larga escala c a Igreja condena o uso de contraceptivos e de preservativos embora a população desconheça pragmaticamente essas interdições d a pesquisa científica com célulastronco embrionárias foi motivo de importante atraso e de séria celeuma no Supremo Tribunal Federal até ser liberada em função da controvérsia sobre o início da vida deflagrada pelas crenças católicas Vale dizer que a moral da integridade brasileira está vivendo um processo de secu larização mas convive com questionamentos quer públicos quer sorrateiros o que dá guarida à diversidade dos padrões morais inclusive dos padrões oportunistas O SINCRETISMO RELIGIOSO E CULTURAL A história brasileira é palco de uma confusa mistura de credos heterogêneos com o catolicismo oficial De início tanto as religiões que os escravos negros trouxeram quanto as religiões indígenas plasmaram os cultos afrobrasileiros posteriormente o espiritis mo segundo a codificação de Alan Kardec também foi incorporado Exemplos notórios do sincretismo são a umbanda e o candomblé Dos múltiplos aspectos que poderiam ser alinhados cabe destaque a um expediente usual no Brasil o apelo recorrente a entidades supostamente mediadoras entre os uni versos natural e sobrenatural vistas como conexões indispensáveis para estabelecer comunicação entre dois mundos impermeáveis Nos cultos afrobrasileiros que são religiões de possessão divindades intermediárias ou orixás consentem em abandonar momentaneamente o mundo sobrenatural desde que chamados de forma ritual para se encarnar no corpo dos iniciados cavalos No espiritismo invocamse espíritos principalmente de mortos conhecidos que se comunicam com os seres humanos por meio dos médiuns em uma prática similar ao xamanismo que se vale de variadas as sombrações No catolicismo os anjos os santos as Nossas Senhoras assim como os padres servem de elos entre Deus e os homens entre as luzes e as trevas Tais tradições impregnam a cultura brasileira e se traduzem no plano temporal pelos patronos coronéis patriarcas padrinhos políticos cabos eleitorais e despachantes que servem de pontes entre os mundos privado e público pelos notáveis que intermedeiam as necessidades das clientelas ou dos currais eleitorais junto aos poderosos de plantão Temos aí mais uma fonte de ambiguidade moral com a tentativa de agradar ou de domesticar a vontade de entidades distantes por meio de despachos oficiados pelos pais de santo ou de jeitinhos patrocinados por quem tem influência Assim no luscofusco dos limbos e dos purgatórios existem zonas cinzentas que asseguram a possibilidade de transacionar com quem estiver do outro lado os deuses que reinam nos céus ou os grandes que governam os destinos terrenos Em tese todo mundo pode ser conversado e sensibilizado agradado e abrandado acertado e cooptado Por fim a hibridez cultural brasileira também lança suas raízes na miscigenação coercitiva que os portugueses levaram às últimas consequências com as negras e as índias 62 Ética EmprEsarial 5 e pode ser rastreada na assimilação das culturas imigrantes Tivemos assim múltiplas narrativas morais que permeiam a cultura cabocla ou mameluca em que predomina a matriz indígena a cultura sertaneja que equilibra três matrizes lusa negra indígena a cultura caipira que combina o predomínio português com a influência italiana as culturas de gringos compreendendo os europeus não portugueses alemães italianos poloneses russos franceses ingleses japoneses e árabes a cultura de matutos des cendentes de açorianos e a cultura gaúcha muito próxima dos povos das fronteiras uruguaia e argentina10 A JUSTIÇA MOROSA E O ESTADO FISCALISTA A moralidade casuística prospera também no terreno do desalento e do desamparo quando a Justiça parece deixar de existir diante dos recursos impetrados dos adia mentos reiterados dos custos proibitivos das firulas jurídicas dos expedientes incom preensíveis para quem não pertence ao estrito círculo dos iniciados ou desconfia dos advogados dativos São fatores que contribuem para que os procedimentos judiciários se eternizem e que o Poder Judiciário se converta em uma espécie de grande ausente aos olhos dos menos aquinhoados No Brasil contemporâneo com seus prodígios de formalismo e com seu amplo leque de recursos protelatórios o Código do Processo Civil acabou perenizando processos e adiando de tal modo as punições que muitas chegam a prescrever Qual é a sensação que esses procedimentos passam à sociedade A de que a Justiça opera como uma imensa caixapreta em que interesses escusos se insinuam faculta a impunidade aos que mais podem e beneficia aqueles que dispõem dos meios necessários para fazer valer sua vontade Difundese a percepção de que somos um país esquartejado entre os que têm e os que não têm os que podem e os que não podem entre as pessoas gente distinta e os fulanos gente simples Ou para simplificar um país em que a Justiça é uma madrasta malvada para os pobres e uma mãe prestimosa para os ricos Para agravar o quadro é preciso lembrar as tradições fiscalistas centralizadoras e cartoriais do Estado absolutista lusitano e de seus sucessores pósIndependência No período colonial conjugavamse os interesses da Coroa eminentemente espoliativos com o mandonismo local dos proprietários rurais que só tinham olhos para as riquezas que pretendiam abocanhar A administração colonial era venal discricionária desordenada burocrática e acima de tudo inepta Há como esquecer que as inquietações ou as rebeliões impropriamente rotuladas como movimentos nativistas foram manifestações de repúdio aos abusos do fiscalismo português11 Como deixar de ver que puseram em xeque as arbitrariedades do Pacto Colonial o monopólio metropolitano do comércio e da navegação com sua sequela de restrições estancos proibições e exações Sob a batuta dos poderosos prosperaram o contrabando endêmico a sonegação fiscal mais desbragada e o recorrente desrespeito à lei Mais tarde nos períodos imperial e republicano os fundamentos do arbítrio não sumiram De fato predominaram diversas variantes do Estado autoritário com intervalos 11 A Aclamação de Amador Bueno São Paulo 1641 a Revolta do Rio de Janeiro 16601661 a Revolta contra Mendonça Furtado Pernambuco 16641665 a Revolta de Beckman Maranhão 1684 a Guerra dos Emboabas Minas Gerais 17081709 a Guerra dos Mascates Pernambuco 17101712 e a Revolta de Vila Rica ou de Felipe dos Santos Minas Gerais 1720 Foram prenúncios da Inconfidência Mineira 1789 cujo separatismo denunciava a posição antifiscalista 10 MOTTA Fernando C Prestes CALDAS Miguel P Introdução Cultura organizacional e cultura brasileira In MOTTA Fernando C Prestes e CALDAS Miguel P organizadores Cultura organizacional e cultura brasileira São Paulo Atlas 1997 pp 1521 as raízes da dupla moral brasileira 5 63 liberais após a Segunda Guerra Mundial12 Mesmo assim vale a pena sublinhálo a presença soberana do Estado com seu dirigismo econômico e sua significativa tributação contribuiu consideravelmente para manter as bases estruturais da sonegação fiscal e do contrabando endêmico Em síntese é possível rastrear as seguintes tradições essencialmente perversas na história recente brasileira O legalismo detalhista e o abismo entre o país formal e o país real As inclinações para apropriarse privada ou corporativamente dos recursos públicos convertendo o Estado em refém dos interesses organizados patrimonialismo clientelismo fisiologismo cartorialismo corporativismo O culto à personalidade e à crença em soluções mágicas salvacionismo voluntarismo e populismo Os corporativismos empresariais burocráticos e sindicais As práticas clientelistas coronelistas nepotistas e fisiológicas reforçadas pelas relações pessoais que articulam múltiplas hierarquias parentesco compadrio amizade confiança e desembocam em favoritismos e apadrinhamentos O que temos então Uma sociedade de privilégios com sua ênfase na pessoalidade em detrimento da impessoalidade cidadã contrapondose a uma sociedade de carências em que o grosso da população não tem escolaridade emprego voz teto renda bens Um corpo com fratura exposta em que se proclama a igualdade de todos enquanto interroga ções e desigualdades o dilaceram Um triste país de faz de conta que quando em público bate no peito e clama alto por integridade e logo depois na mesa do bar em meio a risadinhas e piscadelas acerta os detalhes de alguma falcatrua 12 Regime autoritárioautocrático no Primeiro e no Segundo Reinados 18221831 e 18401889 Regime autoritário oligárquico no período Regencial 18311840 na Primeira República 18941930 e com Getulio Vargas 19301937 Regime autoritáriocesarista no início da Velha República 18891894 com os dois marechais Deodoro e Floriano e no Estado Novo com Vargas 19371945 Regime autoritáriomilitar de 1964 a 1985 Quanto aos regimes liberais tivemos a variante liberalpopulista 19461964 com Fernando Collor 19901992 e com Lula e Dilma Roussef 2003 em diante a variante liberalmilitar com José Sarney 19851989 e a variante liberaldemocrática com Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso 19922002 65 6 As morais gerais brasileiras A credibilidade é um ativo volátil laboriosa na conquista veloz na perda O FORMALISMO E AS RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA Há um velho traço cultural brasileiro que subjaz à discussão anterior tratase do formalis mo Temos aí a dissociação entre o discurso e a prática o enunciado e o vivido o país legal e o país real os códigos formalizados de conduta e os expedientes espertos do dia a dia as declarações de boas intenções e o cinismo dos arranjos de conveniência a prevalência da retórica liberal e a vigência dos padrões autoritários Em suma o divórcio entre o que se diz e o que se faz esquizonomia No fluxo do cotidiano urdese uma tessitura de pantomimas e de cumplicidades As incoerências entretanto incomodam poucos porque parecem imperativos naturais imposições da vida em sociedade Daí o paradoxo latente a convivência entre a fórmula edificante das pessoas de bem e a eterna complacência com os jeitinhos subornos pis tolões tramoias infidelidades embustes todos entendidos como dribles indispensáveis para sobreviver no mundo real O filme brasileiro Central do Brasil traduz com perfeição esse formalismo1 Algumas cenas são emblemáticas O menino Josué furta doces em uma venda do sertão nordestino e é severamente advertido pela professora aposentada Dora que recolhe os saquinhos para devolvêlos2 Contudo ao se dirigir às prateleiras em vez de recolocálos no lugar aproveita para encher a bolsa com mantimentos Fica patente a dicotomia entre o dito e o feito a pregação e os atos que a desmentem Na estação ferroviária Central do Brasil Dora reforça seu orçamento escrevendo cartas para analfabetos atormentados pelas agruras da migração e da saudade Nem por isso se condói com o desamparo estampado em seus rostos Bem ao contrário abusa de sua boafé já que não posta as cartas que lhe são confiadas O que faz com elas Passa um olhar vertical no texto rasga a maior parte delas e joga as demais em uma gaveta Quando acolhe em sua própria casa o menino Josué órfão cuja mãe foi atropelada por um ônibus diante da estação seu gesto alivia os espectadores sufocados por tanta desgraça Logo na manhã seguinte porém mancomunada com um segurança da estação de trens Dora vende o menino por mil dólares para traficantes de crianças Além disso deixa pairar a dúvida Josué será adotado por uma família estrangeira ou terá os órgãos comercializados 1 Dirigido por Walter Salles Jr ganhou o Urso de Ouro no Festival Internacional de Berlim em 1998 além do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro conferido pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood 2 Papel desempenhado por Fernanda Montenegro Urso de Prata como melhor atriz 66 Ética EmprEsarial 6 Nas palavras do menino Dora é gente que não presta Aliás uma amiga e vizinha prostituta que também vive de expedientes desconfiou do novo aparelho de televisão em cores e com controle remoto que a professora exibe orgulhosa3 E manifesta suas dúvidas quanto ao destino de Josué Reconhece que ambas não valem nada mas sentencia num grito Dora tudo tem limites Mais tarde tomada pelo arrependimento a professora resgata o menino das mãos da quadrilha e empreende um périplo pelos confins do Nordeste em busca de seu pai desaparecido e alcoólatra O filme retrata o salvese quem puder que impera na paisagem social e que faz da esperteza uma estratégia de sobrevivência ainda que às vezes beire a delinquência Em seu movimento cujas cenas percorrem os cinzentos subúrbios metropolitanos e desembocam num sertão escaldante que se perde no tempo os espectadores torcem por uma nesga de decência É quando desabrocha o milagre da ternura Concluída a missão que impôs a si mesma Dora parece redimirse descobre o afeto pelo menino e vive um atribulado reencontro com a dignidade Ao final os espectadores se emocionam com a generosidade de alguns personagens Pungente conúbio entre as duas morais brasileiras Isso nos abre as portas da cultura brasileira e nos leva a refletir sobre as empresas É comum afirmar que as melhores práticas internacionais em gestão empresarial são in compatíveis com os padrões culturais do país Ora se a hipótese fosse verdadeira toda e qualquer reestruturação organizacional estaria fadada ao desastre Acontece que as formas de gestão capitalistas têm caráter universal mas sua realização se molda aos contextos nacionais É bem verdade que o capitalismo periférico brasileiro com seus traços cartoriais protecionistas e oligopolistas imprimiu suas marcas em todas as organizações Todavia seria o bastante para inviabilizar a absorção de tecnologias ou a adoção de formas de gestão já testadas no Primeiro Mundo De maneira alguma Se assim fosse o Brasil não teria feito uma Revolução Industrial em 40 anos nem estaria vivendo uma Revolução Digital que vem reorganizando celeremente setores econômicos por inteiro a começar pelo agronegócio a siderurgia a petroquímica a indústria auto mobilística a mídia televisiva Havendo relações capitalistas a cultura resiste mas ao fim e ao cabo se dobra ou se adapta O Japão do início do século XXI que o diga depois de uma extraordinária trajetória convertendose na segunda potência econômica do globo amargou na década de 1990 uma persistente estagnação E para tentar sair da crise começou a questionar alguns tabus culturais a o emprego vitalício foi implodido por demissões em massa e pelo fe chamento de fábricas b as promoções por tempo de casa e idade independentemente do desempenho foram substituídas por recompensas e incentivos baseados na performance c o sistema de keiretsu participação acionária de empresas industriais em outras empresas foi posto em xeque com a venda dos ativos4 Para tornar a cultura brasileira inteligível até pelo menos o início do século XXI as chaves sociológicas são duas as relações de dependência e a lógica da proteção que as acompanha Vejamos em que consistem as relações de dependência a têm caráter assimétrico e hierárquico ao irmanar prepotência e subserviência imposição e confor mismo b expressam laços que unem e sujeitam a um só tempo tutores e tutelados c assentamse em vínculos de lealdade e de fidelidade d alimentamse de paternalismo ou seja o patriarca ou o paipatrão protege seus afilhados e agregados e reduzem os 4 GHOSN Carlos Como salvar o negócio sem perder a empresa Harvard Business Review publicado pela revista Exame 7 de abril de 2002 pp 4553 edição especial 3 Papel desempenhado por Marília Pêra as morais gerais brasileiras 6 67 dependentes à menoridade e condenam as clientelas a viver reféns do velho mecanismo da troca de favores De fato os dependentes operam como meros executores de ordens apavoramse com a ideia de perder o beneplácito de seus superiores e não se atrevem a sair da rotina aguardam passivos e acomodados que benesses e proteções lhes sejam concedidas e na eventualidade de resistirem fazemno de forma sorrateira no silêncio do fingimento por fim justificam sua situação com o complexo do coitado que reza que os deserdados merecem dos bemaventurados alguma simpatia compaixão ou caridade porque não são responsáveis pelas circunstâncias desfavoráveis em que se encontram Em última análise as relações de dependência operam uma estranha inclusão social enquanto alguns agentes participam das decisões e das regalias muitos outros se con formam em sua subalternidade Desse modo as relações de dependência embutem uma lógica da dominação associada a um mecanismo de proteção porque em sua submissão os agentes desfrutam de um feixe de garantias Participam de espaços sociais em que prevalecem restrições e regulamentações típicas do sistema da corporação em que são maximizadas as prerrogativas dos integrantes da corporação5 Comparemse as situações de um funcionário público estável e de um celetista contratado por uma empresa privada O primeiro tende a se acomodar sem estímulo para obter resultados crescentes em seu trabalho faltalhe o choque de mercado porque seu emprego não está em risco Bajula então seus superiores converte sua posição em uma sinecura e procura eludir a obsolescência de sua própria qualificação As indicações que os padrinhos fazem pistolões são cooptações porque não é a proficiência que importa na máquina mas o tamanho do cacife político Isso tudo conspira para que o funcionário público adote uma postura de encostado man drião e apaniguado No caso do empregado que não desfruta de estabilidade no emprego sobra incer teza seu futuro depende dos resultados que produz e de seu empenho em se reciclar e aprimorar Afinal de contas sua permanência no quadro funcional está sempre em questão Vive por isso mesmo um clima de insegurança e de tensão contínua aguçado pela competição As disposições típicas do sistema da corporação limitam o desenvolvimento do mercado e o contradizem porque são incompatíveis com a liberdade de escolha e a plenitude do risco Nele as posições sociais são atribuídas e não adquiridas como no sistema do mercado dependem das relações de confiança ou do capital social Vale dizer este sistema está condicionado pelo volume e pela qualidade das relações es tabelecidas entre os agentes pela lealdade que irmana protetor e protegido pela história comum que os faz comungar trajetórias e conivências A regulação da sociedade resulta assim de um complexo sistema de relações particularistas que a se materializam em relações pessoais ou paroquiais parentesco compadrio afinidade amizade vizinhança coleguismo camaradagem b põem em jogo critérios de dedicação antiguidade e fidelidade c demarcam múltiplas hierarquias e inúmeras deferências e d restringem a mobilidade social A escassa ascensão vertical decorre da natureza dos privilégios e dos laços moldados pelas relações de dependência pois reina o patrono no sistema da corporação todos o agradam e lhe prestam homenagem por dever de ofício Cultuamse o tratamento diferenciado a notabilidade dos agentes o favoritismo o nepotismo a troca de favores a ação entre amigos padrões que se traduzem pelo jeitinho e pelas relações de clientela 5 Ver do autor Poder cultura e ética op cit Anexo sobre As formas de gestão localizado no site da Editora Elsevier 68 Ética EmprEsarial 6 Em suma em troca da lealdade oferecida os agentes sociais esperam do patrono ou do padrinho proteção e segurança6 A dupla moral brasileira cujas raízes remontam ao período colonial persistiu na so ciedade capitalista que se formou após a Segunda Guerra Mundial porque a dimensão simbólica possui autonomia relativa em relação às determinações econômicas não é mero epifenômeno Assim enquanto as relações de independência caracterizam a história norteamericana as relações de dependência moldaram o Brasil e somente agora sofrem sérios questionamentos Ao invés de os agentes individuais serem donos do próprio destino regulados por normas universais e por relações contratuais e impessoais vivem submetidos ao apadri nhamento ou à patronagem às hierarquias que perpassem parentelas vizinhanças círculos íntimos clãs e redes informais Daí a crescente expectativa de que a implantação de relações capitalistas sociais e não mais excludentes possa levar ao descarte do figurino tradicio nal das relações pessoais ou paroquiais cerne da hibridez da identidade social brasileira7 No entanto isso não significa que a ruptura venha a prevalecer em todas as dobras da paisagem social Enquanto houver uma economia clandestina e informal das proporções que existem no Brasil8 muitas leis continuarão não pegando a sonegação e o valetudo permanecerão incólumes e a moral do oportunismo continuará operando como escudo para muitos que se valem de expedientes para viver uma vida dupla uma pública outra clandestina Por fim uma cautela se impõe o padrão cultural das relações profissionais não implica o desaparecimento das relações pessoais ao contrário muitas carreiras em empresas competitivas podem iniciar seu voo graças ao cabedal das relações pessoais Mas é útil res salvar que essas relações estão sendo redefinidas pelo modelo norteamericano do network rede de contatos profissionais A diferença entre ambos os tipos é que na racionalidade de um capitalismo globalizado a competência técnica e a capacidade de agregar valor são fatores centrais ou seja os critérios objetivos do mérito não se subordinam aos critérios subjetivos da confiança pessoal De forma contrastante as relações pessoais tradicionais sempre funcionaram no Brasil como chavesmestras sobrepondo se a quaisquer outros critérios Os agentes sociais per correm os escalões organizacionais guindados pelas asas de seus padrinhos mesmo quando desprovidos da capacitação técnica necessária para o desempenho das funções requeridas ALGUNS TRAÇOS DA CULTURA BRASILEIRA Na análise dos traços da cultura brasileira que costumam ser citados como obstáculos à assimilação dos padrões vigentes nos países hegemônicos sobressaem as relações de dependência Entretanto se os parâmetros do sistema do mercado vierem definitivamente 8 Segundo pesquisa do IBREFGV e ETCO a economia subterrânea foi estimada em 21 do PIB em 2003 e embora tivesse caído para 172 do PIB em 2011 ainda equivalia a nada menos do que R 6534 bilhões Ver wwwetcoorgbr 6 É interessante lembrar que no candomblé religião africana tão bem enraizada no Brasil o Exu é uma divindade farsante e maliciosa que abre caminhos e faz intermediação entre o Céu e a Terra É preciso recorrer a Exu para conseguir um emprego ou uma promoção uma conquista amorosa ou uma demanda difícil Mas para chegar a Exu é preciso passar pelo pai de santo isto é pela hierarquia formal Fernando C Prestes Motta cita dois autores LAPLANTINE E e OLIVENSTEIN C Cultura e organizações no Brasil In MOTTA Fernando C Prestes e CALDAS Miguel P organizadores op cit pp 2537 7 Ao ampliar fortemente a base social da apropriação dos lucros e ao multiplicar consideravelmente o número de investidores o capitalismo social contrasta com o capitalismo excludente em que a apropriação se cinge a um grupo restrito Os exemplos mais significativos do fenômeno são os fundos de pensão de muitas categorias ocupacionais e a miríade de pequenos investidores que detêm ações de grandes corporações Ver do autor Poder cultura e ética op cit pp 5662 as morais gerais brasileiras 6 69 a prevalecer há boas probabilidades para que sejam instituídas relações de independência ou relações de interdependência Isso superaria de vez o nó górdio da lógica da proteção e das relações que lhe dão substância Facultaria também a vigência de formas de gestão liberais no seio das empresas9 Eis os traços seculares que serviram de arcabouço à identidade social brasileira A informalidade a cordialidade a afetividade a descontração a alegria a espontaneidade a amabilidade a improvisação a plasticidade a compaixão a benevolência o sentimentalismo a simpatia e a impontualidade O peso estratégico das relações pessoais ou paroquiais articuladas por múltiplas hierarquias e que se reflete tanto no anseio por proximidade quanto no calor humano que aquece os relacionamentos A procura ansiosa por receber um tratamento personalizado e a institucionalização do jeitinho e da troca de favores como atalhos para romper as amarras burocráticas e desqualificar as normas universais e impessoais das leis O reconhecimento da abissal distância que discrimina gente distinta e gente simples dando respeitabilidade ao dualismo social que configura uma espécie de apartheid Os privilégios exclusivos desfrutados por categorias sociais portadoras de poder de barganha que servem de esteios ao corporativismo e ao cartorialismo A leniência no tocante à apropriação privada ou corporativa dos recursos dos cargos e dos benefícios públicos clássica expressão do patrimonialismo A tradição de colher frutos sem plantar de recolher recompensas imediatas em obediência à lei do mínimo esforço10 A não assertividade nas relações interpessoais e o adesismo opção preferencial pelos vencedores O formalismo ou a dissociação entre normas prescritas e condutas pragmáticas na luta pela vida num mimetismo à brasileira dos padrões estrangeiros ideias fora do lugar O conservadorismo nos costumes a busca sôfrega em evitar a incerteza a aversão ao risco e aos conflitos e a baixa disposição em assumir responsabilidades A fúria cartorial pelas firmas reconhecidas pelos documentos autenticados e pelo legalismo de fachada em franco descompasso com as práticas costumeiras que um famoso ditado traduz o que não é proibido é permitido O mandonismo o clientelismo o nepotismo o favoritismo e o paternalismo que asseguram a fidelidade dos subalternos e conferem sentido à máxima manda quem pode obedece quem tem juízo A religiosidade de pompa e circunstância a reverência aos doutores a submissão dos séquitos a retórica bacharelesca e o gosto pelas festas O fascínio pelos guias carismáticos pelos homens providenciais e pelos cultos à personalidade donde a crença voluntarista em soluções salvacionistas e o comportamento de torcida Acontece que os padrões culturais não pairam no ar sem vínculos com as relações de poder Primeira indagação os traços que foram descritos correspondem a qual contexto além do nacional Um só relance nos indica que muitos deles são expressões legítimas das formas de gestão autoritárias notadamente latinas Dedução nas empresas assim 9 Sobre o conteúdo das relações coletivas e as formas de gestão ver Poder cultura e ética op cit Anexo sobre As formas de gestão localizado no site da Editora Elsevier 10 Não é à toa que se celebram as aspirações de ficar à toa por aí ficar na maior folga ou ficar de papo para o ar 70 Ética EmprEsarial 6 geridas não existe cidadania organizacional pois as cúpulas não se submetem às regras formais e não respeitam as liberdades ou direitos dos funcionários Consequentemente as iniciativas internas são tolhidas e a criatividade se esteriliza Segunda indagação nessa situação há como exercitar práticas de gestão mais avan çadas Ainda predominam no Brasil as tecnologias de produção em massa de baixo valor agregado em contraste com as tecnologias de produção flexível e de alto valor agregado vigentes no Primeiro Mundo Por isso mesmo os principais controles sobre a força de trabalho assumem caráter político pois prevalecem estratégias que visam a disciplinar os trabalhadores e não estratégias que buscam obter seu consentimento Nas formas de gestão liberais os controles são introjetados pelos agentes sociais e funcionam simbolicamente Isto significa que as formas de gestão autoritárias são coativas e se apoiam no poder e na legalidade enquanto as formas de gestão liberais são persuasivas e se apoiam no saber e na legitimidade Isso posto devemos reconhecer que a sociedade brasileira autoritária discriminató ria patriarcal hierarquizada centralizadora predatória e desperdiçadora espelha seus traços de maneira capilar nas organizações que a compõem Nem por isso o desafio da implantação de formas de gestão que assegurem competitividade tornase insuperável Paradoxo Absolutamente não Porque nem mesmo a doutrina católica tradicional que santifica a pobreza e estigmatiza o lucro colocando a acumulação de riquezas no índex constitui barreira intransponível Os sucessos contemporâneos da França da Itália e da Espanha católicas o atestam com brilhantismo apesar dos muitos percalços E mais demonstram a viabilidade de um capitalismo social no bojo da Revolução Digital a despeito dos padrões culturais latinos supostamente inadequados É interessante lembrar que no Brasil imperial do latifúndio escravista quando o trabalho era considerado aviltante novas formas de gestão foram introduzidas nas casas comissárias que comercializavam o café do Vale do Paraíba e nas fábricas nacionais que tinham isenção de tarifas para a importação de matériasprimas O controle da força de trabalho outrora em mãos dos feitores totalitários dos engenhos de açúcar passou para as mãos de gestores autoritários Mas formas de gestão totalitárias conviveram per feitamente com formas de gestão autoritárias no século XIX No século seguinte porém as formas de gestão autoritárias predominaram contestadas apenas recentemente por formas de gestão liberais Isso corrobora uma velha constatação há clara conexão entre formas de gestão e relações de propriedade e sem ter clareza a respeito é difícil explicar a extraordinária variedade de organizações existentes no Brasil De fato o país dispõe de uma miríade de organizações que atualizam praticamente todos os possíveis históricos contemporâneos e que atestam o quão plásticas são as formas de gestão justamente porque coexistem múltiplas relações de propriedade11 Uma listagem exaustiva é dispensável Algumas ilustrações todavia podem delimitar o imenso leque de exemplos que abrange desde organizações totalitárias e autoritárias matriz de poder de exceção até organizações liberais e democráticas matriz de poder de direito os partidos comunistas as organizações tradicionalistas como a TFP e o movi mento monarquista as comunidades anarquistas a Igreja Católica os centros espíritas e as igrejas evangélicas as tendas de umbanda e os terreiros de candomblé os movimentos sociais defensores do meio ambiente das mulheres dos negros dos homossexuais dos 11 Para uma análise das relações de propriedade ver os livros do autor SROUR Robert Henry Modos de produção elementos da problemática Rio de Janeiro Edições Graal 1978 segunda parte e Classes regimes ideologias São Paulo Ática 1987 Capítulos 16 a 18 Ambas as obras já esgotadas estão disponíveis em books googlecombr as morais gerais brasileiras 6 71 menores de rua ou dos idosos as associações profissionais e as sociedades de bairro as empresas de ponta e as que não passam de modorrentas repartições públicas os cen tros de pesquisa avançada e as penitenciárias de segurança máxima etc Essa riqueza de formatos organizacionais não é privilégio brasileiro Pode ser rastrea da mutatis mutandis na maior parte dos países de economias avançadas E põe em xeque as insuficiências do raciocínio circular de cunho eminentemente ideológico que projeta para São Nunca a possibilidade de as empresas brasileiras se equipararem às empresas de classe mundial e que só vê futuro se o povo for educado ou se for magicamente eliminada a semvergonhice dos brasileiros Ora não estaria esse raciocínio passando ao largo da questão central Não estariam as chaves do desafio no tipo de propriedade prevalecente nas formas de gestão que lhe correspondem e na capacidade de controlar as condições ambientais Um exemplo clássico clarifica o problema Na década de 1980 comentavase com espanto uma situação aparentemente paradoxal os usuários do metrô da capital de São Paulo comportavamse de maneira ordeira embora instantes antes de embarcar tivessem se conduzido como vândalos na linha de trens suburbanos da qual haviam baldeado De fato a antiga Companhia Brasileira de Trens Urbanos prestava um péssimo serviço e sofria repetidas depredações de estações e composições12 Os vagões apresentavamse sempre superlotados e pichados com tinta spray colorida os vidros viviam quebrados e as portas estavam quase sempre emperradas surfistas suicidas se encarrapitavam nos tetos e pingentes penduravamse nas laterais a frequência dos trens era irregular e ocorriam seguidos acidentes na via férrea pululavam molestadores de mulheres e batedores de carteira papéis ficavam jogados por toda parte nas estações Em contrapartida o metrô deslizava com portas acionadas automaticamente vidros inteiros vagões reluzentes trens circulando a intervalos regulares estações limpas seguranças policiando o trânsito dos passageiros e para coroar raríssimos acidentes Vale dizer dependendo da modalidade de transporte a população usuária se comportava de maneira radicalmente distinta no mesmo dia na mesma hora Onde ficava a falta de educação da população em uma situação e na outra Tudo depende da forma como se administra o transporte da segurança e da limpeza que se oferecem da manutenção preventiva e corretiva que se adota da competência técnica e gerencial que se imprime Em suma do modo como se controlam as condições ambientais Porque os agentes sociais respondem aos estímulos e aos condicionamentos do ambiente em que se movem se forem tratados como gado mugem se forem tratados como seres humanos agem como cidadãos As urgências que as empresas brasileiras sofrem têm a ver com as formas adotadas para gerilas e não com impedimentos míticos e insuperáveis Evocam a necessidade de se debruçar sobre as experiências bemsucedidas nos centros dinâmicos do capitalismo mundial e ensinam que no momento atual as dificuldades para realizar mudanças são eminentemente políticas Isso não quer dizer que a dimensão cultural não deva ser administrada pelo contrário Mas é preciso transfigurar as formas de gestão que inibem a competição inovadora o quanto antes O mesmo vale quando se pretende enfrentar a delicada questão da moralidade nas em presas brasileiras Os agentes estão imbuídos de oportunismo por formação o que fazer 12 A empresa deixou de ser federal e é hoje estadual Companhia Paulista de Trens Metropolitanos CPTM 72 Ética EmprEsarial 6 Sentarse na calçada e lamentar o caso perdido Jogar por debaixo do tapete evidências e suspeitas Acreditar piamente que um façase divino irá iluminar os gestores da empresa Não Mais do que uma revelação as empresas precisam de instrumentos de controle que permitam administrar os padrões morais sem apelar para intervenções meramente repressivas Necessitam de discernimento lucidez obstinação e inteligência ética ALGUMAS PRELIMINARES Uma pesquisa empírica radiografou a cabeça do brasileiro13 e desembocou no clássico contraponto entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno Concluiu que o Brasil arcaico da baixa escolaridade apoia o jeitinho é hierárquico patrimonialista e fatalista não confia nas pessoas não tem espírito público defende a lei do talião é contra o liberalis mo sexual apoia o intervencionismo do Estado na economia é a favor da censura e é tolerante com a corrupção Com respeito à asserção Se alguém é eleito para um cargo público deve usálo em benefício próprio as respostas foram as seguintes concordaram 40 dos analfabetos 31 dos que tinham escolaridade até a 4ª série 17 dos que tinham da 5ª à 8ª série 5 dos que tinham cursado o Ensino Médio e apenas 3 dos que tinham nível superior ou mais O que fica evidente Que as manifestações se depuram à medida que a escolaridade formal aumenta E ao contrário quanto menor a escolaridade maior a propensão dos respondentes em aceitar a corrupção Ressaltemos todavia estamos lidando aqui com opiniões e não com a observação das condutas efetivamente praticadas porquanto os agentes podem pensar algo e agir de modo diverso Ao se depararem com esta outra asserção É certo recorrer ao jeitinho para resolver problemas como o de se livrar de uma multa os respondentes concordaram de forma mais ambígua de acordo com o grau de escolaridade apresentado no parágrafo anterior foram respectivamente 57 51 58 48 e 33 E diante da frase a ser interpretada como sendo apenas um favor Um funcionário público receber um presente de uma empresa que ajudou a ganhar um contrato do governo as respostas afirmativas foram 57 41 34 22 e 5 Ou seja quanto maior a escolaridade maior a consciência do ilícito quanto menor a escolaridade maior a legitimidade conferida a atos de caráter patrimonialista Isso vem corroborar duas pesquisas de âmbito nacional feitas pelo Ibope em 1992 e em 1993 Nelas 64 dos entrevistados consideraram que no Brasil quando uma pessoa tem a oportunidade de conseguir uma vantagem fazendo algo errado e sabe ter poucas chances de ser descoberta acaba agindo ilegalmente E mais 65 acreditavam que o povo brasileiro é desonesto 81 diziam que se os supermercados não vigiassem as prateleiras sofreriam muito mais roubos 93 afirmavam que a maioria dos brasileiros tenta dar uma caixinha para se livrar de multa 82 consideravam que a maioria das leis não é obedecida 86 achavam que existem certas pessoas que mesmo que façam coisas erradas nunca serão punidas pela Justiça 80 acreditavam que as leis só existem para os pobres e que a Justiça brasileira não trata os pobres e os ricos da mesma maneira 59 estavam convencidos de que os advogados não são pessoas honestas 64 diziam o mesmo dos policiais 63 afirmavam que a maioria dos guardas rodoviários deixa de multar quando recebe uma boa 13 ALMEIDA Alberto Carlos A Cabeça do Brasileiro Rio de Janeiro Editora Record 2007 as morais gerais brasileiras 6 73 caixinha 64 diziam o mesmo dos fiscais No entanto 78 dos entrevistados responderam que todos deveriam cumprir a lei independentemente da opinião que tivessem a respeito14 O tempo passa e no campo empresarial as condutas se reiteram A Justiça Federal condenou o empresário Ricardo Nunes sócio da Máquina de Vendas fusão entre Ricardo Eletro e Insinuante a três anos e quatro meses de prisão por corrupção ativa Nunes segundo denúncia da Procuradoria da República teria pago propina a um auditor fiscal da Receita para que a Ricardo Eletro não fosse autuada A ação corre sob segredo de Justiça A base do processo foi a prisão em flagrante do auditor Einar de Albuquerque Pismel Júnior em setembro de 2010 agentes da Polícia Federal o detiveram na posse de R 50 mil e mais US 4 mil em dinheiro vivo quando se retirava do escritório da Ricardo Eletro em Indianópolis zona sul da cidade de São Paulo Condenado a quatro anos de prisão por corrupção passiva Einar continua detido por causa do flagrante A investigação revela que a Eletro foi alvo de fiscalização da Receita entre junho e agosto de 2008 Durante quase três meses os balanços e livros da empresa foram pesquisados Para não ser autuado Nunes teria combinado o pagamento da propina para o auditor15 Depois desse inquietante retrato em que vemos empresários e auditores mancomunados em práticas parciais a condenação constitui uma ação pública de caráter altruísta impar cial consensual universalista pois objetiva preservar os interesses gerais e promover o bem comum A MORAL DA INTEGRIDADE Vejamos agora em que consiste a moral da integridade Tratase do sistema de normas morais que corresponde ao imaginário oficial brasileiro e que configura o comportamento considerado decente e virtuoso Esta moral é ensinada nas escolas e nas igrejas está embutida nos códigos de leis e orienta a mídia mais responsável Tratase de um hino à inteireza pois faz a apologia da virtude enumera as qualidades que moldam as pes soas de bem distingue as que possuem caráter daquelas que não têm vergonha na cara enaltece as que se conformam às normas morais e que por isso mesmo são sérias escrupulosas e dignas de confiança A moral da integridade obedece à razão ética e tem caráter altruísta porque adota os imperativos do bem comum quando ensina a cumprir as obrigações sociais É um código público que não transige com valores como a honestidade ser honrado e não roubar em circunstância alguma a idoneidade construir um bom nome pela conduta sempre reta realizar transações justas a lealdade ser fiel aos compromissos assumidos e defender quem confia em nós sobretudo nos contratempos a confiabilidade ser digno de crédito e honrar a palavra empenhada a veracidade falar sempre a verdade a legalidade observar rigorosamente as leis o respeito ao próximo levar as necessidades e os interesses alheios em conta e agir de forma consequente a lisura no trato da coisa pública zelar pelos recursos coletivos e cuidar dos interesses gerais a obediência aos costumes vigentes manter o decoro 14 Veja 2 de dezembro de 1992 e O Estado de S Paulo 7 de junho de 1993 15 Exame News Sócio da Máquina de Vendas é condenado à prisão 9 de agosto de 2011 74 Ética EmprEsarial 6 Quando praticados esses valores demarcam o que faz de alguém um sujeito digno subordinam os interesses pessoais ao bem universalista restrito e comum quer dizer conferem primazia aos interesses de caráter universal enaltecem a probidade como imperativo categórico não toleram a desonestidade o engodo a fraude o blefe a manipulação da inocência dos outros Tratase de uma concepção de corte dogmático rígida dicotômica e maniqueísta é preciso cumprir os deveres sociais sem pestanejar como se fossem mandamentos não se toleram meias medidas pois ninguém é meio honesto ou de vez em quando confiável da mesma forma que não há pureza com máculas veniais Na volta das férias de uma família formada por um casal uma filha e um filho mais novo o menino não parecia se sentir bem e o time preferido da família jogava a final o que induziu o pai a pisar mais fundo no acelerador De repente dois policiais vindos do nada mandaram o carro encostar O pai saiu do veículo e entregou os documentos para um dos policiais certo de que iria receber uma multa por excesso de velocidade O policial no entanto insinuou que poderia haver um acerto sem o que ele teria de multálo Por questão de princípio o pai não costumava subornar quem quer que fosse Mas diante da doença aparente do filho e ansioso por ver o jogo de futebol a situação não seria excepcional Cedeu então à tentação e procurou a carteira Porém nesta hora foi surpreendido pelos dois filhos que haviam saído do carro e lhe perguntaram vai demorar Envergonhado com a possibilidade de os filhos terem desconfiado de seu gesto o pai desistiu do suborno e disse que fizesse o que bem entendesse O policial então lavrou a multa Quais exemplos poderiam ser alinhados de ações íntegras Exigir nota fiscal nas com pras do dia a dia e contribuir para o combate à sonegação delatar vizinho traficante por meio do Disque Denúncia avisar o garçom que se esqueceu de cobrar uma bebida recusarse a assinar um balanço maquiado declinar o convite de um fornecedor cujo contrato gerenciamos para evitar qualquer presunção de favorecimento detalhar a um investidor os riscos de dada aplicação recusarse a ser o mala preta da empresa ou o aliciador de fiscais Nesta toada um caso singelo merece reflexão Em seu primeiro emprego um recémformado de 23 anos foi encarregado de comprar material de rotina para abastecer o escritório da firma Fez a cotação e escolheu o fornecedor pelos critérios de melhor preço e qualidade Quando foram fechar o negócio o vendedor lhe perguntou E como eu te pago os 10 Que 10 perguntou o rapaz O vendedor explicou que pela praxe ele tinha direito à comissão por têlo escolhido O novato entre aturdido e ofendido pediu que aplicasse o desconto no preço da compra enquanto o vendedor o olhava com a expressão de quem constata estar diante de um trouxa A compra dava R 35 mil O rapaz ganhava R 1 mil por mês A comissão representava três meses e meio de salário Até que deu vontade de pegar confessou depois o garoto mas ele não pegou O que dá para deduzir Que o rapaz agiu de forma ingênua demonstrando não conhecer a praxe do mercado Não teve coragem de fazer o que tinha vontade de fazer indício de que é mau caráter porém mal resolvido psicologicamente Não percebeu que todo mundo faz isso e que só os espertos se dão bem na vida Ou agiu de forma moralmente correta procurando não prejudicar a empresa em que trabalha A última asserção obviamente diz respeito à moral da integridade as demais são racionalizações antiéticas as morais gerais brasileiras 6 75 A MORAL DO OPORTUNISMO Vejamos agora o que vem a ser a segunda moral brasileira a moral do oportunismo É o sistema de normas morais que corresponde ao imaginário oficioso brasileiro obedece à racionalização antiética e advoga o particularismo cada um por si e ninguém por todos Traduz por isso mesmo uma postura eminentemente egoísta É um código difundido nas ruas e à socapa pelos sabichões Celebra a astúcia e faz a apologia da esperteza Sua máxima é leve vantagem em tudo Constitui um hino à conveniência interesseira e parte do pressuposto de que ninguém presta razão pela qual não se deve confiar em ninguém Ensina a tirar proveito ser manhoso dar jeitinhos para conseguir o que deseja armar maracutaias cuidar exclusivamente de si tirar partido da ingenuidade dos outros passandolhes a perna entre outros tantos ardis É um ideário que floresce à sombra da malícia porque se nutre de hipocrisia em público todos batem no peito e simulam aderir à moral da integridade De fato ninguém confessa a não ser para os íntimos que paga consulta médica sem recibo mediante desconto participa de bulimento contra colega esconde erros cometidos no exercício profissional fura filas alegremente compra softwares piratas cola em provas joga papéis na rua solicita atestados falsos a médicos amigos para faltar ao trabalho vende sem nota ou emite meias notas para clientes cumprindo ordens para preservar o emprego compra produtos falsificados ou clonados deixa de registrar em carteira empregadas domésticas anda pelo acostamento nas rodovias congestionadas fotocopia capítulos inteiros de livros realiza transações imobiliárias com dinheiro frio passa adiante o carro usado sem informar os defeitos presta falso testemunho para ajudar parentes ou íntimos e assim por diante As práticas oportunistas são dissimuladas e informais e desfrutam da complacência do respaldo ou da cumplicidade dos mais íntimos sócios parentes compadres ami gos afilhados colegas comparsas Correspondem ao triunfo da conveniência sobre os princípios ou as obrigações sociais e desembocam na realização do bem particularista Suas formas de agir transgridem as normas morais públicas e embora sejam conside radas imorais do ponto de vista da moral oficial nem por isso perturbam as consciências daqueles que as adotam Ao contrário desnudam uma face matreira no burburinho das patotas das turmas das igrejinhas das redes informais de poder dos clãs familiares põem a nu a compulsão em se dar bem à custa dos outros como se fosse uma vocação atávica traduzem uma visão trapaceira e parasitária do mundo que ao fim e ao cabo manipula os outros em proveito próprio expressam de algum modo a clássica ruptura tão amplamente detectada em estudos antropológicos entre o espaço público em que supostamente primam normas universais e impessoais a rua e o espaço privado em que reinam a fidelidade e as relações pessoais a casa16 revivem a velha dicotomia entre conquistadores nômades dedicados ao saque e produtores sedentários empenhados na labuta A moral do oportunismo repousa em um egoísmo mesquinho que na ânsia de obter vantagens e saciar caprichos despese de quaisquer escrúpulos Os agentes que o prati cam fazem o que lhes traz o máximo de bem independentemente dos efeitos produzidos sobre os outros faço aquilo que me convém recortam diagonalmente todas as classes sociais e ao fugirem das responsabilidades justificamse furiosamente ainda que em voz baixa aderem ao jeitinho quebragalho calote suborno engodo trapaça bajulação burla ou manha assumem postura cínica na calada da noite quando afirmam que tudo 16 DAMATTA Roberto Carnavais malandros e heróis Rio de Janeiro Zahar Editores 1981 Capítulo 2 e do mesmo autor O que faz o Brasil Brasil Rio de Janeiro Rocco 1994 76 Ética EmprEsarial 6 vale para se sair bem Quanto àqueles que marcam bobeira e saem machucados na empreitada reservam expressões fatídicas ninguém mandou ser trouxa bocó poeta caxias bobo tolo panaca sonso bolha paspalho17 Os adeptos do oportunismo exaltam a malandragem ao gosto de Macunaíma o herói sem nenhum caráter e ludibriam a boafé dos demais como se a malandragem não passasse de uma lei da natureza ou de uma simples travessura No livro de Mário de Andrade Macunaíma é um herói ambivalente por vezes responsável e corajoso por vezes irresponsável covarde e maucaráter Os quadrinhos de Calvin o menino levado e egotista de Bill Watterson possuem uma relação com Macunaíma por serem um retrato muito divertido da falta de caráter à moda americana A complacência diante do oportunismo e a descrença nas práticas eticamente orien tadas são moeda corrente no Brasil superando a banalidade do mal observada por Hannah Arendt depois da ascensão de Hitler ao poder18 quando a população alemã não só assistia às atrocidades cometidas nas ruas por camisas pardas nazistas contra judeus indefesos mas também se engajava com entusiasmo no ataque a eles surrandoos e apedrejandoos Este quadro naturalmente contribui para forjar um clima de cum plicidade e faz prosperar a impunidade e a corrupção Após o início de um casamento religioso um casal pediu licença para poder sentar em um banco que ainda tinha lugares no meio Um senhor de ralos cabelos brancos exclamou com um sorriso maroto Só se der caixinha O casal não gostou da brincadeira e aguardou silenciosamente que o velho se levantasse e permitisse que a esposa e o marido passassem Um convidado estava sentado do outro lado do corredor estreito observando a cena com curiosidade Aí o velho não teve dúvidas disselhe em tom de cumplicidade O Brasil é um país maravilhoso Uns suíços vieram para cá ver como funciona a propina e elogiaram muito o país O ouvinte presumiu que o velho fosse um empresário e desfechou O que dirão seus empregados diante do exemplo que o senhor lhes dá Não poderiam se voltar contra a empresa O outro fez ouvidos moucos Contou Quando eu era jovem bem mocinho eu estacionava meu carro na Praça da Bandeira Havia é claro os guardadores de carro Um deles me acenou para manobrar em uma vaga Quando fiz marcha a ré não sei como atropelei o rapaz Ele caiu e quebrou o pulso Fiquei apavorado Alguém me aconselhou a registrar o caso na Polícia Na delegacia me trataram como se eu fosse um bandido Dei meu depoimento e depois fui procurar um advogado conhecido meu Este me aconselhou a voltar à delegacia e oferecer dinheiro Fiquei com medo de ser preso por tentativa de suborno Que nada disse o advogado Isso acontece o tempo todo Vai lá Confia em mim Fui até a delegacia todo nervoso E propus dar uma ajuda O delegado me perguntou quanto eu podia dar Quando falei a cifra ele aceitou e propôs novo depoimento desta vez com a presença do rapaz atropelado O esforço valeu a pena o rapaz foi acusado de terse jogado por debaixo do carro que coisa hein Foi chamado de malandro O processo acabou arquivado Imagine sem aquele jeitinho eu poderia ter sido processado e condenado Como vê não há país melhor que o Brasil 17 Eduardo Giannetti nos informa que a oposição entre espertos e otários existe também na Sicília e em Nova York provavelmente nas comunidades latinas respectivamente como furbi versus fessi e como wiseguys versus mugs Aduz Como observa o economista político vitoriano Macdonnell a malandragem só pode ser lucrativa enquanto a honestidade for regra geral FONSECA Eduardo Giannetti da Autoengano São Paulo Companhia das Letras 1997 p 218 nota 4 18 A cientista política alemã argumentou em Eichman em Jesuralém Relato sobre a banalidade do mal que o mal de nosso tempo não é produto de impulsos infernais mas da indiferente rotina burocrática de nossa vida as morais gerais brasileiras 6 77 O convidado arregalou os olhos emudecido E depois indagou Já imaginou se o atropelado pudesse pagar mais Não seria o senhor o injustiçado A fala não impressionou o velho Ele apenas olhou incrédulo seria possível que uma pessoa fina não se rendesse aos bons argumentos dele Afinal de contas ele havia se saído tão bem o mundo girava em torno de seu umbigo o Brasil era um país de sonho Mas o convidado tentou encerrar o assunto De fato o país é ótimo Quem o estraga somos nós O outro não se deu por vencido Retrucou Eu tinha uma fábrica com 15 operários Eles trabalhavam boa parte do tempo ao ar livre por causa da poeira que as máquinas soltavam Foi quando me apareceu um fiscal do trabalho Sem mais ele me alertou que eu deveria ter dois banheiros um masculino outro feminino e que eu deveria dispor de vestuários separados para as funcionárias Pior ainda que eu deveria arrumar uma creche para os filhos delas Cara doido Então não tive dúvida perguntei quanto quer Ele pediu muito dei meu preço e disse é tudo o que posso dar mais nada Ele topou Nunca mais tive problemas Deu para entender como é bom este país Aí olhou bem nos olhos do convidado e abriu um sorriso triunfante O convidado por sua vez balançou a cabeça exausto O arauto da esperteza havia dado seu recado Os oportunistas apostam na permissividade e na impunidade esses fatos correntes na sociedade brasileira que o velho adágio inspira A lei Ora a lei Lançam mão de argumentos repetidos ad nauseam para justificar seus ardis ou celebrar o egoísmo só os espertalhões sobrevivem quem não chora não mama farinha pouca primeiro o meu pirão quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é bobo ou não tem arte Alardeiam com ironia que quem segue a linha é pego pelo trem Dão a impressão de que a manha tudo move e que a culpa dos transtornos é das vítimas caiu na esparrela e agora vai ficar esperto Estão convencidos de que o mundo pertence àqueles que ar quitetam artimanhas têm ginga são matreiros e sabem se virar Acham que ser esperto é um modo específico de vencer na vida Quem fica se lamuriando pelos cantos merece o desprezo dos que vão à luta põem o pé na estrada botam a cara para bater A moral do oportunismo justifica as ações daqueles que magnificam as próprias conveniências destituídos de consciência social e de ideais coletivos maximizam a própria utilidade na linguagem dos economistas e glorificam o proveito pessoal acima de qualquer outra consideração valorizam o enriquecimento fácil e célere numa visão imediatista e predadora cultivam a histeria do salvese quem puder consideram que todos os trambiques são válidos desde que o propósito seja alcançado não importa a licitude dos meios Assim é que no Brasil raros são os que deixam de sonegar impostos quando podem os que acusam espontaneamente os defeitos de uma casa que colocam à venda os que se recusam a utilizar os serviços de um despachante para azeitar a máquina forma curiosa de terceirizar a consciência os que deixam de subornar fiscais para reduzir exigências esquecer uma multa tirar um alvará ou liberar cargas nos portos os que declaram o preço real de um imóvel para pagar menos impostos ou desovar dinheiro frio os que deixam de pedir precedência a um parente no aguardo de uma cirurgia ainda que a fila de pacientes seja quilométrica muitos desembolsam os honorários de médicos ou dentistas sem a contrapartida de um recibo ou de uma nota fiscal em troca de um generoso desconto muitos manipulam os livros contábeis com os mais diversos intuitos muitos compram produtos de origem duvidosa das mãos de camelôs ponta de lança do crime organizado 78 Ética EmprEsarial 6 Façamos uma pausa e perguntemos teriam esses camelôs a logística necessária para tocar negócios que vão do contrabando ao roubo de cargas do descaminho à falsificação de produtos do aliciamento de funcionários públicos à compra de juízes Claro que não Existe uma espécie de continente do ilícito em que se entrelaçam as redes locais e as redes globais de tráfico E o que transitam por essas redes Não só produtos con trabando pirataria de bens simbólicos clonagem de grifes falsificação de produtos carga roubada venda de remédios com data vencida mas também seres humanos mulheres e crianças para prostituição venda de órgãos trabalho forçado bebês para adoção imigrantes ilegais drogas armas lixo tóxico e logicamente lavagem de dinheiro fraudes financeiras sonegação fiscal descaminho corrupção19 Porque quem dispõe dos canais competentes para furar bloqueios superar obstáculos e ludibriar controles não se importa efetivamente com o que negocia Trata de ganhar dinheiro sujo e ponto final Em contrapartida aqueles que adquirem esses bens ou serviços por ingenuidade ou por cálculo ainda que seja para consumo pessoal não deixam de ser cúmplices do crime organizado à medida que contribuem para viabilizar suas operações Tênue fica então a fronteira que separa o oportunismo da corrupção em um movi mento muitas vezes transposto de forma insensível Neste sentido aliás ambos comun gam alguns traços centramse no mais estreito particularismo tornam absoluto o cálculo de conveniência constituem o extremo oposto da moral da integridade assumem uma postura tão ensimesmada que violentam quaisquer regras de decência OS EFEITOS DA DUPLA MENSAGEM Embora as transgressões morais sejam universais nos países latinos a ambivalência moral convive com uma espécie de colchão emocional que as pessoas mais chegadas propiciam20 De fato como desdobramento de sua complacência ou leniência no trato dos deslizes cometidos elas oferecem apoios e acobertamentos que no fim das contas estimulam os desvios morais Por quê Porque os íntimos ensinam como não ser pego não consideram os transgressores pessoas sem caráter nem rompem seus laços com eles É a solidariedade no pecado Ademais no dia a dia prima o moralismo de fachada uma hipocrisia coletiva e não apenas pessoal espécie de homenagem que o vício presta à vir tude Pois se todos achassem certo o que consideram aceitável de forma disfarçada por que então não o assumem abertamente É porque sabem que não pega bem De maneira que submetidos à inculca de dois códigos morais absolutamente contraditórios um purista e de caráter altruísta outro permissivo e de caráter egoísta os brasileiros ficam confusos Temse assim uma generalizada desconfiança Por exemplo os gestores ficam de olho nos subordinados os funcionários não acreditam no papo furado dos engravatados os concorrentes se estranham por dever de ofício os clientes não se deixam levar pelos fornecedores os fornecedores ficam de coração na mão para receber as faturas as autoridades governamentais vigiam as empresas trapaceiras os homens de negócio tacham os agentes públicos de corruptos e incapazes O risco moral acaba então superdimensionado poucos acreditam que as partes que firmam contratos ou realizam transações o façam com a necessária boafé muitos des confiam que alguém abusará ou se locupletará à custa do outro As empresas seguradoras 20 A corrupção é tão endêmica em alguns países que na Índia por exemplo é preciso pagar suborno para que um membro da família possa ser internado num hospital ou para que uma criança possa matricularse na escola ou até para que uma queixa seja lavrada na polícia CNN 28 de junho de 2008 19 NAÍM Moisés Ilícito o ataque da pirataria da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2006 as morais gerais brasileiras 6 79 desconfiam que a o solicitante esteja fornecendo informações enganadoras sobre seus bens disponibilidades ou crédito b pretenda se locupletar com os termos do contrato c reduza os cuidados necessários para a preservação daquilo que será segurado Por exemplo acreditam que após fazer o seguro contra incêndio uma empresa seja capaz de desativar os sistemas internos de prevenção ou que uma pessoa possuidora de um segurosaúde diminua os cuidados com a alimentação e a condição física e fique mais propensa a doenças ou que um dono de veículo após fazer um seguro contra furto passe a descuidar de sua guarda deixandoo na rua e com isso aumente o próprio risco ou ainda um motorista que feito o seguro de vida passe a correr mais e a ficar menos prudente no trânsito Ou seja ao receber determinado tipo de cobertura ou seguro o segurado venha a abusar crente de que estará ao abrigo das consequências Em decorrência dessa desconfiança toda as seguradoras majoram os prêmios das apólices os bancos cobram juros mais altos as empresas incrementam as salvaguardas e efeito perverso ocorre a seleção adversa quando os agentes mais prudentes e sérios se veem obrigados a arcar com maiores custos e restrições Embora muitos pratiquem a moral do oportunismo ecos da moral da integridade repercutem ainda que de forma retórica a existe uma aspiração por um ambiente livre das malvadezas urdidas nas sombras b cresce um anseio profundo por alguns nichos de dignidade em que uns procuram confiar nos outros sem precisar o tempo todo estar alerta adivinhando segundas intenções desvelando duplicidades e precavendose con tra ciladas tramoias e maquinações c há um horror pelo deboche que os oportunistas fazem dos íntegros em um padrão que já foi denunciado há muitas décadas por Rui Barbosa o de ter vergonha de ser honesto De outra parte a desconfiança em relação aos outros desconhecidos que cons tituem ameaças permanentes e que exigem incessante vigilância posto que podem a toda hora nos passar a perna induz e legitima o estabelecimento de uma rede de pessoas de confiança que servem de escudo ou de bengala psicológica Afinal não podemos desconfiar de todos o tempo todo É preciso dispor de um porto seguro Nas empresas familiares o processo deriva para o nepotismo nas grandes organizações burocráticas dá azo ao corporativismo em todo lugar enseja o favoritismo A maior parte dos brasileiros entretanto vive oscilando entre as duas morais ora ines crupulosos ora idôneos Agentes híbridos ambíguos quanto às suas culpas e inseguros quanto às suas razões moldados por uma moralidade casuística tão louvada quanto o são a mistura das comidas a miscigenação das raças o sincretismo das religiões ou o jogo das inversões nos carnavais em que se confundem hierarquias gêneros ou papéis Mas quando vêm a lume as mil falcatruas que a moral do oportunismo estimula e justifica quando espocam escândalos como a denúncia de fiscais que extorquem co merciantes de parlamentares que utilizam funcionários pagos pelo erário para atividades particulares de administradores públicos que agem movidos por subornos de gestores que usam informações privilegiadas em benefício próprio de juízes venais que mantêm uma tabela para julgar processos de empresários que armam conluios para vencer licitações públicas de fornecedores que fraudam a qualidade ou o volume dos produtos entregues de farmácias que vendem remédios controlados sem prescrição médica de autoridades que desviam a merenda escolar ou cobram propinas em ambulâncias a grita é geral a mídia fica alvoroçada os promotores agitam dedos em riste os policiais entram em alerta as comissões parlamentares de inquérito se deleitam sob os holofotes a opinião pública procura culpados e de tanto asco torce o nariz Esquizofrenia Não A todo mundo parece intolerável que se estabeleçam vasos comunicantes entre aquilo que medra no escuro dos porões e o que se expõe à luz do dia Equivale a mostrar o rito 80 Ética EmprEsarial 6 de eviscerar o boi que será logo servido Realismo imperdoável Ou seria como mos trar a linda moça se depilando Impostura da beleza Ninguém consegue orgulharse disso em público Ser pego com a mão na cumbuca na linguagem popular horroriza a população De fato ela fica estarrecida e exausta com suas tripas à mostra não aguenta mais tanto descaramento Faltando poucos dias para uma eleição municipal em uma pequena cidade do Mato Grosso um candidato estava com a vitória assegurada e seus próprios adversários o reconheciam Empolgado decidiu fazer um comício certo de que estaria dando o golpe final Homem simples ele se preparou o dia todo com apoio de amigos e assessores Com a praça lotada o candidato falou de seus projetos tudo conforme o roteiro estabelecido Aos poucos emocionado passou a falar de improviso Até ter um arroubo de sinceridade Meus amigos vou dizer uma coisa Sei que não sou honesto Mas não se preocupem pelejo para ser Não deu outra perdeu a eleição21 A duplicidade moral não só convive contraditoriamente na cabeça de todos nós como também parece uma espada de Dâmocles pairando no ar Basta que os interesses próprios sobretudo financeiros sejam ameaçados para que não se cumpram mais promessas não se respeitem mais acordos não se sigam mais regras são os eclipses de decência A situação lembra uma peça de teatro em que os atores feito demônios multifaces se revezam no desempenho de diferentes personagens íntegros quando nada lhes aperta o calo antiheróis quando os acontecimentos assim o exigem às vezes vilões amiúde espertos Isso nos provoca grande ansiedade e exige vigilâncias e salvaguardas que deixam a todos sem fôlego O bom senso porém ou uma espécie de desconfiômetro distingue os oportunistas contumazes sujeitos intrinsecamente de mau caráter e os oportunistas de ocasião pes soas em geral honradas e que premidas pelas circunstâncias se desviam eventualmente do bom caminho Esses pecadores tão humanos na sua falibilidade são vistos com certa indulgência e gozam de uma condição atenuante já que no mais das vezes podem ser confiáveis Tal gradação não apaga é claro a adesão deles ao oportunismo Mas em tese permite contar com a idoneidade do interlocutor quando as partes estreitam relações os laços pessoais assumem assim o papel de antídoto contra o veneno da esperteza Eis o caldo de cultura em que vicejam também as duas morais do setor empresarial que veremos a seguir a da parcialidade e a da parceria frutos imperfeitos e miscige nados da cultura latina esquartejada entre a pureza dos princípios e o encantamento das conveniências a grandeza das virtudes e a sordidez da improbidade o desconsolo diante de tanta desfaçatez e de tantos fingimentos Correspondem a peças inacabadas à procura de um autor que subitamente inspirado pudesse encaixálas ou quem sabe conferirlhes coerência 21 Painel Folha de S Paulo 5 de novembro de 1999 81 7 As morais empresariais brasileiras Quando os de cima perdem a vergonha os de baixo perdem o respeito A AMBIVALÊNCIA EMPRESARIAL Em uma economia competitiva os empresários não têm como deixar de considerar os interesses díspares de seus públicos de interesse stakeholders uma vez que mercados abertos associados a regimes políticos liberais conferem enorme poder de fogo aos que se organizam O processo de globalização econômica sinaliza a formação de um capitalismo mundial de características competitivas que alteram substantivamente as regras do jogo Por exemplo nos últimos anos os clientes reuniram as condições para Debandar para os concorrentes quando insatisfeitos com a qualidade dos produtos os preços ofertados ou a logística do atendimento votam com a carteira Apelar para as agências de defesa dos consumidores fiscalizando e pressionando as empresas que vendem bens e prestam serviços apresentam queixas Recorrer à Justiça visando a ressarcirse de eventuais danos materiais e morais provocados por empresas inescrupulosas abrem processos Socorrerse da mídia expondo a reputação das empresas à execração pública formulam denúncias O mesmo se aplica aos acionistas minoritários gestores colaboradores fornecedores prestadores de serviços organizações não governamentais movimentos ambientalistas analistas de mercado órgãos reguladores Todos eles podem se valer desses canais e de outros instrumentos de pressão impetração de processos administrativos denúncias por blogs na internet abaixoassinados convencimento de parlamentares piquetes demonstrações de rua cartas às autoridades lobbies mesasredondas e assim por diante O presidente do JP Morgan Chase Jamie Dimon um dos bancos menos afetados pela crise de 2009 e um dos primeiros a devolver o dinheiro de resgate do governo americano anunciou perdas de 2 bilhões de dólares em operações grosseiramente equivocadas A diretora de investimento do banco foi demitida porém isso não apazigou acionistas minoritários que furiosos com os maus resultados e a falha dos controles decidiram retaliar os diretores num encontro de acionistas Pediram a separação da figura do presidente do conselho e do presidente executivo exigiram uma auditoria no comitê de risco do banco e uma revisão dos bônus de diretores envolvidos Não bastasse isso três instâncias passaram a investigar o banco a SEC agência reguladora do mercado de capitais americano o Federal Reserve banco central americano e o FBI Federal Bureau of Investigation1 1 MANO Cristiane Eles gritam mais alto Revista Exame 30 de maio de 2012 82 Ética EmprEsarial 7 É bem verdade que tais pressões são menos eficazes em economias capitalistas oligo polistas e chegam a ser quase inviáveis em países autoritários ou totalitários De fato ambientes semifechados ou fechados carecem de canais de expressão para que a cidadania se pronuncie ou limitam as manifestações aos ocupantes dos cumes das organizações De um lado a mídia vive amordaçada e a Justiça manietada de outro por falta de efetiva concorrência tanto as economias mistas típicas da segunda metade do século XX quanto as economias de comando à moda soviética cerceiam fortemente a liberdade de escolha dos clientes e naturalmente as tentativas de boicote Nos tempos atuais um movimento de concentração do capital abarca o planeta à semelhança do que já ocorreu nos contextos nacionais Caso o processo de fusões in corporações e aquisições de empresas se acentue sem que haja alguma forma de preservar a competição os mercados poderão inclinarse para a formação de cartéis mundiais Aí o poder de fogo dos públicos de interesse poderá ser substancialmente reduzido Mas isso só ocorrerá caso simultaneamente as liberdades democráticas encolham ou haja perda de sua eficácia Por exemplo os atentados e as ameaças terroristas têm levantado agudos questionamentos para os cidadãos o quanto de liberdade estão dispostos a sacrificar em nome da segurança Ademais o enfraquecimento dos Estados nacionais que o processo de globalização enseja não é uma tendência de somenos importância ao restringir a capacidade dos governos em lidar com corporações mundiais e até em regular suas próprias economias Devemos convir todavia que existem condições objetivas para assegurar a competição tendo em vista que as inovações tecnológicas têm demonstrado extraordinário dinamis mo Nessas circunstâncias a competição talvez possa se perpetuar graças à introdução de novos produtos de disrupturas técnicas de fontes de suprimento inusitadas de formatos organizacionais inéditos não só decorrentes do processo de destruição criativa que o capitalismo promove mas como imperativos de uma economia de baixo carbono ou de uma economia verde Contudo caso esse último cenário não se consuma resta a expectativa de que agências internacionais consensualmente construídas reúnam con dições para assegurar a concorrência global De qualquer sorte estamos diante de uma incógnita que exige uma vigilância ininterrupta por parte das sociedades civis sobretudo das localizadas nos Estados Unidos e na União Europeia a exemplo do enfrentamento incessante que ocorreu contra os cartéis No final de 2001 a empresa suíça HoffmannLa Roche sofreu uma multa imposta pela Comissão Europeia por seu papel central no cartel internacional de ácido cítrico um dos aditivos mais utilizados no mundo A Roche foi condenada a pagar uma multa de US565 milhões do total de US120 milhões cobrados dela e de mais quatro produtores a suíça Jungbunzlauer as americanas Archer Daniels Midland e Haarmann Reimer e a holandesa Cerestar Bioproducts Ocorre que a punição deuse duas semanas depois de a Roche ter sido obrigada por Bruxelas a pagar multa recorde de US410 milhões com mais oito indústrias na Europa acusada de ter instigado a formação do cartel das vitaminas Mais grave porém é que a companhia era reincidente em 1999 já havia desembolsado US500 milhões nos Estados Unidos por seu envolvimento nessa mesma concorrência desleal O cartel durou quase uma década e envolveu elaborada engenharia para controlar todos os aspectos da venda das vitaminas mais populares inclusive A C e betacaroteno Os executivos responsáveis pelo acordo reuniamse uma vez ao ano para estabelecer o orçamento a fixação dos preços a distribuição geográfica de mercados e a definição do volume de vendas chegando à minúcia de 05 as morais empresariais brasileiras 7 83 Ao comentar o episódio o jornal inglês Financial Times lembrou em editorial que há 25 anos a Roche já havia sido condenada pela mesma ofensa e que desde então pouco parecia ter mudado Aproveitou para lançar um sério desafio para a reflexão O risco principal é que essas indústrias resolvam considerar as multas um custo suportável do comércio Mais otimista a principal autoridade americana na matéria Joel Klein declarou Com a imposição de multas e da sentença de prisão um dos executivos foi condenado a quatro meses de reclusão esperamos que as multinacionais engajadas em cartéis pensem duas vezes antes de assaltar o consumidor americano2 Outro caso mais recente que demonstra o quanto o trabalho de repressão não pode arrefecer é o seguinte Em abril de 2011 a Comissão Europeia impôs uma multa de 3152 milhões de euros à empresa americana Procter Gamble e à angloholandesa Unilever por criar um cartel junto com a Henkel no mercado de sabão em pó em oito países europeus Com efeito as três empresas são grandes fabricantes de sabão em pó e outros produtos de limpeza O acordo feito entre as empresas durou por volta de três anos e pretendia estabilizar posições no mercado por meio da coordenação de preços em violação às normas antimonopólio da União Europeia UE e da Área Econômica Europeia As inspeções nas companhias foram iniciadas em 2008 momento em que as duas empresas multadas pediram indulgência e cooperaram com a investigação No início de 2011 reconheceram clara e inequivocamente sua responsabilidade na infração3 Quanto ao Brasil podemos citar entre outros casos Em fevereiro de 2012 a Secretaria de Direito Econômico SDE do Ministério da Justiça abriu investigação contra 44 empresas suspeitas de participar de cinco cartéis que elevaram o preço de computadores televisores e componentes eletrônicos entre 1998 e 2009 Em todos os casos os cartéis eram mundiais e foram organizados por empresas que venderam produtos como tubos painéis discos ópticos e memórias para centenas de países Se forem condenadas as empresas terão de pagar multas que variam entre 1 e 30 de seus respectivos faturamentos A decisão final em cada processo será do Conselho Administrativo de Defesa Econômica Cade4 É interessante observar que nas economias competitivas os empresários ficam à mercê de um jogo de forças que os leva a estabelecer distinções entre seus vários públicos de interesse Aqueles que dispõem de maior cacife seja a capacidade de retaliar seja a de agregar valor ao negócio são tratados com cautela e deferência Os demais não rece bem toda essa atenção O favorecimento de certos stakeholders deriva da necessidade de assegurar uma base de apoio para obter a licença social para operar Os públicos de interesse que se beneficiam de tratamento especial são pela ordem 2 RICUPERO Rubens Piratas globais e pseudopiratas Folha de S Paulo 20 de junho de 1999 3 Comissão Europeia multa Procter Gamble e Unilever por cartel 13 de abril de 2011 Disponível em httpexameabrilcombrnegociosempresasnoticiascomissaoeuropeiamultaproctergamblee unileverporcartel 4 BASILE Juliano SDE investiga 44 grupos acusados de cartel Valor Econômico 28 de fevereiro de 2012 84 Ética EmprEsarial 7 Os acionistas em virtude da detenção da propriedade embora pequenos acionistas possam ser eventualmente lesados pelos controladores Os clientes razão de ser do próprio negócio Os gestores pela posiçãochave e de confiança que ocupam na empresa A mídia pelo extraordinário papel que desempenha na formação do capital de reputação Os órgãos reguladores quando são operantes e tecnicamente orientados Os trabalhadores qualificados em função de sua crescente capacitação e da corresponsabilidade que partilham no processo de produção parte não desprezível do capital intelectual5 A situação porém impõe contorções e malabarismos às cúpulas empresariais pois é preciso contrabalançar a satisfação de uns e de outros sem perder a credibilidade junto aos demais Os públicos de interesse que não forem arrolados como merecedores de tratamento preferencial são driblados na medida do possível São eles os traba lhadores desqualificados os fornecedores os prestadores de serviços as comunidades locais os credores os sindicatos e os concorrentes Em outras palavras nos dias atuais os empresários acabam dividindo os públicos de interesse em duas categorias formam o primeiro pelotão os agentes tratados com cautela por cálculo ou por estratégia em presarial já no segundo pelotão estão aqueles que com riscos calculados ocupam uma posição secundária na escala das preocupações e às vezes são deliberadamente logrados Aliás as práticas parciais são utilizadas e justificadas com tal frequência que sedimentam a moral da parcialidade do setor empresarial A hibridez nos comportamentos já vista no plano da sociedade inclusiva se espelha então no plano setorial e ganha cores particulares A MORAL DA PARCIALIDADE Tratase de um discurso oficioso que converte a organização em umbigo do mundo e cujo cinismo é aplaudido pelas plateias selecionadas a quem se dirige Adota normas mistas de conduta ao exigir estrita lealdade dos que fazem parte da empresa os de dentro ao mesmo tempo que advoga a malícia nas relações com os demais os de fora Parte do pressuposto de que um pouco de desonestidade faz as coisas acontecerem Considera que as regras comuns não se aplicam aos de dentro A lei Ora a lei Confere à venalidade o estatuto de lubrificante do mundo dos negócios à semelhança da famosa fórmula populista rouba mas faz que implicitamente pretende absolver o político salafrário enquanto generaliza a falta de caráter das autoridades Rotula depreciativamente os governantes os partidos políticos os tribunais os sindicatos a mídia as organizações não governamentais aqueles inúteis que não sabem o que são riscos não entendem de negócio ou nunca meteram a mão na massa Lança suspeitas sobre os negócios dos outros enxergando em tudo a lavra de interesses escusos e de forma paradoxal autentica as irregularidades que a empresa comete com uma sentença inapelável Mateus primeiro os meus 5 O capital intelectual abrange a escolaridade formal o nível de informação as habilidades técnicas dos colaboradores a competência gerencial a área de Pesquisa Desenvolvimento e as patentes registradas as morais empresariais brasileiras 7 85 Celebra o país com uma declaração pseudoufanista que homenageia a prevaricação êta Brasil bom em que todos têm preço Considera que para garantir a sobrevivência do negócio competir com os produtos estrangeiros e a economia informal não há escapatória senão sonegar tributos e driblar as regulamentações não dá para trabalhar com esses impostos todos e essa burocraczia doida A direção da Schincariol segunda maior cervejaria brasileira foi presa e autuada por sonegação fiscal evasão de divisas lavagem de dinheiro corrupção de funcionários públicos e formação de quadrilha Foram expedidos 77 mandados de prisão em junho de 2005 Os principais indícios encontrados pela Polícia Federal foram empresas de fachada que emitiam notas fiscais frias pagamento de propinas para fiscais da Receita Federal emissão de notas fiscais com ICMS menor que o real uso da mesma nota fiscal mais de uma vez vendas subfaturadas ou sem emissão da respectiva nota fiscal exportações fictícias e importações com declaração falsa de conteúdo Confrontada com escolhas polêmicas a moral da parcialidade não se amofina advoga sem pudor o particularismo à semelhança do político brasileiro que antes de pedir a nomeação de apaniguados costumava perorar amigo meu não tem defeito Es sa pérola axiomática sintetiza a fidelidade particularista à moda mafiosa e faz eco à máxima atribuída ao penúltimo presidente da Velha República Artur Bernardes para os amigos tudo para os inimigos nada para os indiferentes a lei Neste contexto as relações pessoais paroquiais e corporativas tornamse determinantes e fazem com que ao invés de serem partes do todo alguns se tomam por um todo à parte e alardeiam que o sol nasceu para todos mas a sombra para alguns A moral da parcialidade corresponde a um contraponto que põe frente a frente a lealdade a toda prova entre os membros do grupo e a desconfiança visceral em relação às demais pessoas Ao espelhar a moral do oportunismo a parcialidade funciona em be nefício daqueles que fazem parte da corriola e ipso facto opera em detrimento dos que ficam além do círculo de giz Para os de dentro sócios gestores colegas parceiros ensina a prestar um respeito quase reverencial Para os de fora desconhecidos e es tranhos manda agir como se estivessem em guerra Trocando em miúdos a arte consiste em burlar as formalidades legais costurar conluios em licitações arquitetar espionagens econômicas especular com os preços traficar influência subornar agentes públicos eleger parlamentares de confiança com recursos do caixa 2 manipular a contabilidade contratar terceiros que não respeitam direitos trabalhistas adquirir insumos nocivos ao meio ambiente conceder empréstimo mediante venda casada participar de lobby para aliciar autoridades superfaturar obras para financiar campanhas políticas submeterse à extorsão praticada por fiscais lançar efluentes industriais in natura nos cursos dágua sonegar impostos participar de cartel negociar informações confidenciais espalhar boatos maldosos a respeito de concorrentes manobrar o tempo todo com a justificativa de que é preciso baixar o custo Brasil Reponta assim a concepção de que nossos interesses contam mais do que os in teresses dos demais daí por que devemos nos locupletar à custa deles Em síntese a moral da parcialidade sustenta o particularismo grupal de caráter antiético nós protegemos os nossos os outros que se cuidem 86 Ética EmprEsarial 7 Cassado em 2000 em função do escândalo do superfaturamento do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo da ordem de R 169 milhões o exsenador Luiz Estevão deu uma entrevista à revista Veja julho2000 em que revelou Não sou santo Nenhum quadro de santo se sustenta na parede para uma pessoa que ganhou 1 bilhão de reais em quatro anos Dono do grupo OK formado por 18 empresas 4 mil funcionários e com faturamento de R 250 milhões cresceu à sombra do clássico esquema de corrupção em obras públicas Faliu em 2006 É interessante observar que o jeito casuístico de dar sempre razão às ações dos nos sos oferece justificações de variado teor tal empresário parceiro sonega impostos sim mas gera um bocado de empregos por que culpálo Tal comprador recebeu bola de um fornecedor mas seguiu a praxe do mercado e comprou os produtos a preços razoáveis por que abrir mão dele Tal empregado usou e abusou do carro e dos equipamentos da empresa para fins particulares mas dá tantos lucros que aquelas despesas podem ser absorvidas por que não Tal gerente faz figuração de tão incompetente mas é parente de um amigo que transita bem nos círculos políticos por que mexer com ele Tal fiscal não sai do pé enquanto não receber o dele para regularizar a papelada por que atrasar o processo Tal vendedor passa duas horas por dia cuidando de seus investimentos na internet mas é produtivo e bem relacionado para que se intrometer Em face de escolhas reais a moral da parcialidade privilegia o ganho imediatista e não as fórmulas abstratas ideais princípios valores interesses públicos não enchem a barriga de ninguém nem pagam a folha do pessoal Considera à maneira americana que o negócio dos negócios é o negócio seja porque os negócios não obedecem à moralidade comum como no pôquer em que blefar faz parte do jogo seja porque dinheiro é sujo por natureza quem quiser ganhálo tem que sujar as mãos Acontece que ambos os argumentos são embustes as empresas não vivem num mundo à parte com regras próprias e nem todo dinheiro é sujo a começar pelo dinheiro limpo que os assalariados recebem pelo seu trabalho Conclusão crítica o que é sujo ou limpo é o modo de ganhar dinheiro a maneira de fazer negócio Assim na mesma esteira da moral do oportunismo que ela procura traduzir no plano corporativo a moral da parcialidade Justifica os jeitos como forma de enfrentar as disfunções do sistema e fazer as coisas funcionar são táticas de sobrevivência para fazer face à burocracia detalhista e extorsiva que cria dificuldades para vender facilidades Lança mão de casuísmos omissões e mentiras de toda ordem das piedosas às perversas numa versão atual das restrições mentais à moda jesuítica6 Vê o cisco nos olhos alheios e não enxerga a trave nos próprios ladrão é sempre o outro cada qual recriminando os demais e eximindo a si mesmo pelos desvios Legitima a troca de favores pois para obter um bem é preciso dar de si não há almoço grátis em uma clara deturpação da fórmula franciscana é dando que se recebe quando Deus era parte Considera o oportunismo um sinônimo de habilidade reproduzindo um famoso ditado calabrês quem age direito morre miserável 6 Os jesuítas justificavam a retenção de parte da verdade aos simples àqueles para quem nem tudo se diz já que são incapazes de assimilála as morais empresariais brasileiras 7 87 Em setembro de 1996 um avião Boeing partiu de São Paulo com destino à França A bordo estavam passageiros especiais Eram mais de 70 jornalistas de todo o país convidados especiais da General Motors brasileira para visitar o Salão do Automóvel de Paris A cortesia incluiu as mulheres desses jornalistas ou algum outro acompanhante escolhido por eles com tudo pago pela GM Por quatro noites a comitiva ocupou 90 apartamentos do Méridien de Montparnasse Enquanto os jornalistas visitavam a feira suas mulheres faziam turismo e compras O passeio parisiense custou à montadora cerca de US400 mil A GM tinha um bom motivo para patrocinar o tour parisiense era a eleição do Carro do Ano promovida entre novembro e dezembro pela revista Auto Esporte A maioria dos jornalistas levados a Paris votava nesse concurso Nos quatro anos precedentes em que os jornalistas ganharam viagens para Flórida 1992 e 1995 Nova Orleans 1993 e Barcelona 1994 os júris formados por eles escolheram quatro carros da GM como os melhores Omega Vectra Corsa e Corsa sedã No ano de 1996 a montadora estava concorrendo com a nova versão do Vectra Ocorre que a Fiat e a Ford também se esforçaram para conseguir a simpatia dos jornalistas no concurso A Ford concorria com o Fiesta e para tanto emprestou 50 desses carros para teste O jornalista podia ficar com o veículo durante dois meses A Fiat que concorria com o Palio entregou cerca de 70 carros para testes de 90 dias Segundo jornalistas que escrevem sobre automóveis ninguém precisa de todo esse tempo para saber se um carro é bom duas semanas são suficientes No fim do teste as montadoras ofereciam outra vantagem o jornalista podia comprar o carro que avaliou com um desconto de 10 ou mais Por sua vez a Volkswagen promoveu em 1994 uma viagem para Munique para o lançamento do novo modelo do Gol mas a pioneira nessas caravanas foi a Fiat ao lançar o Tempra na ilha de Aruba em 1991 Existem jornalistas que não veem inconvenientes nessas viagens Há outros que não concordam A revista Quatro Rodas a publicação mais vendida sobre automóveis no país pagou a viagem de seu repórter para o salão de Paris Isso nos dá mais independência disse o diretor da revista7 No caso relatado o Vectra da GM foi escolhido o melhor carro do ano pela revista Auto Esporte pelo quinto ano consecutivo Ora a independência dos jornalistas cuja influência sobre os compradores de veículos é inegável não seria questionável É claro que sim Ainda que fossem honestos não o pareceriam ao aceitarem tamanhas mordomias Vejamos outro caso Uma equipe de investigadores do 78 Distrito Policial de São Paulo vasculhou o escritório da representação brasileira da Bain Company uma das maiores consultorias em alta gestão dos Estados Unidos em dezembro de 1997 Ao final da diligência os policiais apreenderam um lote de disquetes contendo cadastro de clientes documentos contábeis e fichas de recrutamento de funcionários Todo o material estava etiquetado com o nome de outra consultoria a Value Partners Com base na apreensão foi aberto um inquérito criminal contra o vicepresidente da Bain no Brasil Ocorre que até poucos meses antes esse executivo era o sócio principal da Value uma firma de origem italiana Nessa condição ele e outros dois sócios negociaram sua transferência 7 FRIEDLANDER David Bocalivre em Paris Veja 9 de outubro de 1996 88 Ética EmprEsarial 7 para a concorrente americana e comandaram o êxodo em massa do pessoal da Value dos 29 funcionários e consultores 23 os acompanharam Um advogado contratado pela Value disse De uma hora para outra a Value se viu esvaziada de projetos e pessoas em favor da Bain que ganhou tudo de mão beijada Com base nas provas coletadas o advogado processou o vicepresidente da Bain por concorrência desleal Além do processo criminal no Brasil a Value Partners acionou a Bain na Justiça americana com um pedido de indenização de US20 milhões por quebra da moral que rege as relações entre as empresas e seus funcionários O executivo argumentou que não havia proibições expressas Não havia nenhum documento estabelecendo que aquilo que fosse produzido por mim e pelos demais funcionários seria propriedade da empresa mesmo após nossa saída Em contrapartida a Value Partners alegou que a Bain induziu os funcionários do escritório brasileiro à quebra de confiança e lealdade além de roubo de informação confidencial sobre clientes empregados e finanças Tais informações foram dadas segundo a Value por três executivos antes mesmo que eles saíssem da Value O juiz federal da Corte Distrital de Boston rejeitou o pedido da Bain de anulação do caso o que abriu caminho para um julgamento em Boston que é onde fica a sede da consultoria americana embora a Bain advogasse que o Brasil seria uma jurisdição mais conveniente8 Esse caso retrata o aumento da competição entre as empresas a expansão das fronteiras comerciais e a alta rotatividade dos executivos refletindose no plano dos contratos de trabalho e na adoção de cláusulas de não concorrência ou de exclusividade Com essas cláusulas visase limitar a ação dos funcionários depois que eles se desligam da empresa impondo uma quarentena em geral de dois anos para que não levem para a concorrência seu cabedal de conhecimentos técnicos e de informações confidenciais São preservadas assim as propriedades industrial e intelectual e resguardase o sigilo das informações9 Todavia havendo ou não cláusulas de caráter legal há uma espécie de contrato moral não escrito que supõe algum tipo de quarentena Um contador de confiança com muitos anos de casa conhecedor das várias químicas a que foram submetidos os balanços da empresa em que trabalhava foi pego fraudando as contas a pagar em proveito próprio A fraude alcançou o montante de R100 mil no período de três anos Quando confrontado com as evidências o contador confessou a autoria e rogou que o deixassem se demitir Seu estado era tão lamentável que o presidente autorizou sua demissão e até lhe prometeu que nas referências que seriam fornecidas a seu respeito não haveria menção à fraude O contador então se demitiu e candidatouse a um emprego de controller em uma metalúrgica Esta pediu informações à antiga empregadora que afirmou nada possuir em seus registros que desabonasse o exfuncionário e que ele fora competente enquanto havia trabalhado na empresa 8 NETZ Clayton Quem é o dono do que está em sua cabeça Revista Exame 22 de abril de 1998 LUBLIN Joann S Brasileiros causam briga de consultorias The Wall Street Journal reproduzido por O Estado de S Paulo 7 de julho de 1999 9 Foi uma cláusula dessa natureza que fez a Natures Sunshine e sua subsidiária no Brasil entrarem com uma ação judicial na corte civil do Estado de Utah nos Estados Unidos para impedir que a filial brasileira da Nu Skin Enterprises pudesse contratar um de seus altos executivos REBOUÇAS Lídia Exclusividade de executivos é polêmica Gazeta Mercantil 4 de agosto de 1999 as morais empresariais brasileiras 7 89 Obviamente a falta de sanções ao contador não pode ser apenas debitada ao paternalis mo nem à compaixão mas isso sim ao conhecimento que ele tinha das entranhas da empresa em uma tentativa quase explícita de comprar o seu silêncio Pior as referências que foram fornecidas pelo departamento de pessoal poderiam prestar um desserviço à empresa metalúrgica incentivando o contador a perpetrar novos desvios Decisão ins pirada pela parcialidade sem dúvida A seguir um caso que não é brasileiro mas que apresenta forte analogia com nossa parcialidade A Olympus indústria japonesa de equipamentos óticos foi acusada no final de 2011 de ter cometido uma fraude contábil de mais de um bilhão de dólares O CEO nomeado Michael Woodford não durou duas semanas no cargo depois de haver proposto a abertura de um inquérito para investigar quatro aquisições feitas pela Olympus durante os anos de 2006 e 2008 Não só elas não faziam sentido para os negócios da companhia como haviam custado valores exorbitantes O episódio não passou em branco uma vez que analistas e investidores desconfiados com a demissão do CEO começaram a fazer pressão para que a companhia explicasse as aquisições sem fundamento Neste meio tempo as ações da Olympus já tinham se desvalorizado quase 50 na bolsa de Tóquio e a companhia tinha acumulado perdas de mais de 13 bilhão de dólares A verdade é que as aquisições feitas foram apenas para disfarçar fraudes financeiras cometidas pela companhia na década de 1990 Durante mais de 10 anos a Olympus mascarou resultados financeiros negativos em seus balanços e segundo estimativas do mercado as perdas podem ter chegado a um valor ainda maior Mas o problema não termina por aí havia rumores de que ela tivesse ligação com o crime organizado japonês10 Há quem diga que a miudeza dos interesses pessoais ou corporativos estará sempre presente quer nas mesas de negociação ou nos bastidores quer como agenda oculta em quaisquer negócios comerciais e financeiros Não há por que discordar Porém uma coisa é defender tais interesses sem provocar danos nos outros outra coisa é esmerarse em ser matreiro e ganancioso Ou visto de outro ângulo sem a incessante vigilância da sociedade civil e da mídia o valetudo pode imperar no mercado viciandoo de tal modo que ficariam comprometidas as necessárias relações de confiança entre as empresas e seus públicos de interesse O IMAGINÁRIO EM TRANSIÇÃO A conduta das empresas não se resume é claro a práticas parciais principalmente após a abertura comercial do mercado que as deixou expostas à concorrência internacional A partir da década de 1990 o imaginário brasileiro ingressou em um processo de transição Condutas deixaram de ser justificadas ainda que continuem sendo praticadas como a falta ao trabalho sem motivo o furto de pequenos objetos em hotéis restaurantes ou aviões o comparecimento em atraso a compromissos profissionais o barulho que incomoda os vizinhos a conduta fominha de quem guia nas ruas a falta de troco 10 BARBOSA Daniela A Olympus e uma das maiores fraudes contábeis do mundo corporativo Examecom 2 de dezembro de 2011 90 Ética EmprEsarial 7 endêmica com seus substitutos indesejados o hábito de furar a fila ou a falta de modos que consiste em buzinar nos túneis das estradas para curtir com a cara dos demais motoristas De fato certa disciplina começa a ser aceita como aguardar a vez nas filas dos cinemas dos bancos e dos supermercados ou usar o cinto de segurança nos automóveis Crescem também o desconforto e o desagrado com o vandalismo daqueles que quebram vidraças ou rebentam orelhões picham muros ou fazem tiro ao alvo nas placas de trânsito subornam guardas ou colam nas provas fumam em local proibido ou jogam lixo na rua Mais ainda o jeitinho deixa de ser celebrado com tanta ênfase As relações pessoais e o apadrinhamento perdem prestígio como fontes de ascensão social Ficam eleitos como valores o trabalho o mérito o enriquecimento pelo esforço pessoal e cada vez mais validase a aplicação universal das regras Faz sentido acreditar então que estão lançadas as bases axiológicas do capitalismo competitivo como o profissionalismo e a idoneidade nas transações nervos das grandes corporações internacionais Tratase de um conjunto de traços como o senso de res ponsabilidade a competência técnica para agregar valor a diligência no cumprimento das tarefas e na consecução das metas o anseio por realização pessoal a disposição para a autodisciplina a persistência e a assertividade a transparência e a impessoalidade a isenção a imparcialidade e a objetividade as habilidades interpessoais ou a capacidade de trabalho em grupo o autocontrole diante dos impulsos Estes padrões têm por corolário tornar previsíveis as condutas o que contribui para forjar relações de confiança que operam como antídoto contra o oportunismo e a parcialidade Acontece que nas economias monetárias apenas mecanismos contratuais e padrões culturais não bastam O que funciona é o tacape da retaliação para obrigar empresas inescrupulosas a andar na linha É isso que agências de defesa do consumidor fazem quando abrem processos administrativos ou que a mídia faz quando se mantém vigilante e desatrelada dos grandes anunciantes ou ainda o que as organizações da sociedade civil fazem quando exercem sua capacidade de dissuasão a respeito de abusos empresariais Entretanto duas ambiguidades congênitas vincam a moralidade empresarial bra sileira A primeira remete às tradições históricas e à decisiva influência católica con vertendo o terreno moral em uma reserva de caça da moral da integridade inspirada por sua tolerância zero De fato as empresas dificilmente agem de forma mecânica guiandose exclusivamente por condutas previamente codificadas ou por um rol de mandamentos longe disso Em termos práticos elegem o caminho das análises es tratégicas e procuram antecipar os impactos que certas decisões irão produzir sobre os negócios Isso significa que quando as empresas optam por trilhar a estrada íngreme da idoneidade elas adotam a análise situacional da moral da parceria que veremos em seguida E isso malgrado as cartas de princípio que tanto difundem e cujo teor lembra o feitio sentencioso dos 10 mandamentos Curiosamente as prescrições estabelecidas em códigos de conduta moral são exigidas sem pestanejar do pessoal subalterno ainda que não sirvam necessariamente como quadro de referência para as decisões estratégicas das cúpulas organizacionais A segunda ambiguidade diz respeito à convivência dramática entre as duas morais gerais brasileiras a moral da integridade e a do oportunismo Como vimos no âmbito empresarial a moral do oportunismo ganha outra roupagem sob a forma de moral da parcialidade Todavia enquanto a primeira diz respeito ao particularismo individual a segunda diz respeito ao particularismo grupal Quanto à moral da integridade as em presas têm grande dificuldade em adotála em função de seu próprio rigor maniqueísta as morais empresariais brasileiras 7 91 Surge então a moral da parceria que fica sob o guardachuva da teoria ética da res ponsabilidade e que opera com base em uma análise de riscos11 A MORAL DA PARCERIA A moral da parceria propõe alianças entre grupos com base na interdependência corres ponde a um discurso fundado na análise situacional que pauta padrões de conduta centrados em interesses de médio e longo prazos Esta moral orientase pela seguinte pergunta qual impacto provável que decisões gerarão sobre a empresa e sobre seus públicos de interesse Sua máxima resume bem a postura negócios são acordos que beneficiam todas as partes o que significa conjugação dos interesses empresariais com o compromisso de melhorar a qualidade de vida dos stakeholders e ipso facto com os in teresses gerais das coletividades inclusivas sociedade humanidade e gerações futuras A moral da parceria visa ao bem universalista comum e restrito com base em uma análise de riscos e tem necessariamente um caráter altruísta seja imparcial ou restrito Inspirase pela teoria ética da responsabilidade Sopesa as implicações de longo prazo numa crítica à miopia imediatista que converte uma das partes em presa e desrespeita seus interesses Adverte portanto contra as vitórias de Pirro que desgastam as pró prias forças põem em risco a credibilidade e alienam a cooperação da outra parte nas próximas rodadas Afinal o mercado competitivo não se presta mais às espertezas de antigamente Para assegurar a perenidade do negócio laços mutuamente vantajosos e relações duradouras são requeridos Todavia enquanto todos os públicos de interesse não forem convertidos em parceiros já que formar parcerias não é uma dádiva divina mas uma laboriosa tessitura prevalece provisoriamente a seguinte máxima Todos têm de ganhar nem que seja o mínimo indispensável Os parceiros se convertem então em extensões do negócio enquanto os demais ficam aguardando a vez sem que se lhes cause prejuízo O eixo dessa moral consiste em procurar uma distribuição equitativa dos ganhos e assim estabelecer relações de convergência e de confiança recíproca A título de ilustração revisitemos a situação emblemática dos clientes cuja relevância tornouse sem par no capitalismo recente Sabese que na fase oligopolista do capitalismo as empresas possuíam condições para controlar o que se produzia e definiam os preços de venda praticamente à revelia dos clientes A contrapelo no capitalismo competitivo contemporâneo as empresas se voltam por inteiro para os clientes porque eles se tornaram a chave da continuidade do negócio Mas de onde resulta tamanho poder de fogo Da capacidade adquirida ou resgatada de escolher fornecedores ou ainda de votar com a carteira efeito primeiro que um mercado concorrencial faculta E mais do manejo de instrumentos políticos e simbólicos de pressão capazes de retaliar empresas inidôneas A pedra de toque da moral da parceria é o benefício mútuo obtido de forma coo perativa e formalizado por meio de relações contratuais 1 Observamse garantias precisas e confiáveis de desempenho 2 Rejeitase qualquer fraude logro ou manipulação 3 Exigese partilha de informações projetos programações especificações técnicas racionalização de processos experiências logísticas técnicas de prestação de serviços 11 Estudaremos as teorias éticas no próximo capítulo 92 Ética EmprEsarial 7 4 Implementamse ações conjuntas que às vezes resultam em apoio mútuo em situações de crise 5 Compartilhamse inovações técnicas ou de gestão 6 Encaramse as negociações como jogos de soma positiva visando ganhos conjuntos 7 Aprendese o negócio um do outro a fim de economizar custos e aumentar a competitividade 8 Convertemse os stakeholders em extensões do próprio negócio Algumas ilustrações dessas práticas são os selos de qualidade em produtos a certificação de processos ou serviços assim como a da origem dos insumos os guichês para clientes especiais portadores de deficiência física idosos mulheres grávidas ou com crianças de colo o atendimento personalizado para clientes exclusivos em aeroportos divisões especiais de bancos para clientes abonados o uso de fontes renováveis de energia a oferta de soluções ao Poder Público para combater a sonegação a adoção de escolas públicas ainda que se divulgue o feito o investimento em pesquisas para reduzir a pegada ecológica a implementação do comércio justo com comunidades rurais ou produtores autônomos o apoio dado a fornecedor que passa por situação de crise a denúncia de concorrentes que sonegam impostos a formação de uma cadeia de valor integrada por fornecedores e prestadores de serviços os contratos de risco assinados com clientes para reduzir custos ou desperdício de produtos o não atendimento dos pacientes pela ordem de chegada mas pelo estado clínico com vista a priorizar os casos mais críticos as ações sociais empresariais tais como a preservação e a restauração do meio ambiente a valorização da diversidade na gestão do pessoal a capacitação continuada dos funcionários Dois casos nesse sentido são emblemáticos A Natura fabricante de cosméticos tinha 60 atendentes em sua central de atendimento ao cliente em 2000 e gastava R8 milhões por ano com o serviço Recebia uma média mensal de 100 mil ligações Em agosto desse mesmo ano um cliente ligou dizendo que o desodorante que usara havia manchado sua camisa O que fez a atendente Perguntou na hora o preço da roupa uns 70 reais e se prontificou a enviar um cheque ao cliente com o valor correspondente A camisa manchada foi recolhida e encaminhada imediatamente ao departamento de pesquisa da Natura Em uma semana descobriuse o componente do desodorante responsável pela mancha Em consequência a fórmula do produto foi alterada12 Moral da história O serviço de atendimento não se restringiu a agradar ao consumidor foi capaz de desencadear mudanças nos produtos e nos processos da empresa dando corpo a uma relação de parceria A 3M empresa famosa por seu espírito inovador parou de produzir a cola Scotchgard um produto que tinha 40 anos e cuja receita anual era de US400 milhões depois que se divulgou que seus componentes não eram biodegradáveis Com o claro propósito de evitar atritos com associações de ecologistas pelo mundo afora a 3M simplesmente desativou a produção preservando sua reputação13 12 FERRAZ Eduardo Ouvir não basta Revista Exame 4 de outubro de 2000 13 SIMONETTI Eliana Giannella Uma guerra ideológica Veja 31 de janeiro de 2001 as morais empresariais brasileiras 7 93 A moral da parceria encontrase em construção Corresponde a um esforço penoso para desenvolver uma cidadania empresarial calcada na percepção de que a responsabilidade social constitui uma estratégia consistente em um mundo competitivo Aos poucos e se for universalizada a estratégia deixará de ser um diferencial para converterse em uma necessidade compartilhada Hoje o processo de parceirização limitase aos acionistas gestores trabalhadores notadamente os que são altamente qualificados clientes forne cedores e prestadores de serviços distribuidores e pesquisadores associados formando assim uma cadeia de valor Não está muito longe o momento em que comunidades locais organizações não governamentais e órgãos governamentais poderão ser incorporados Algumas experiências de parceria bemsucedida já foram feitas entre empresas e organizações do terceiro setor e entre empresas e vários tipos de entidades estatais Parcerias que vão de escolas a centros de pesquisa universitários de creches a cadeias públicas de hospitais a museus de orfanatos à manutenção de bens públicos Foram levadas adiante também várias formas de parceria entre empresas concorrentes que se empenham em pesquisas e desenvolvimento tecnológico consórcios para realizar compras ou destinados a exportar produtos pools empresariais que câmaras de comércio e de indústria estimulam contratações de médio ou longo prazo de pequenas e médias empresas feitas por grandes empresas transformandoas em fornecedoras estratégicas chegam a se instalar ao lado das fábricas ou até dentro delas focus plant o que per mite operar com estoques reduzidos acelerar o processo de montagem e diminuir custos com impostos frete seguro logística e comunicação Isso não quer dizer que de súbito empresas concorrentes entidades estatais ou do terceiro setor vão apagar suas diferenças e se tornar parceiras de pleno direito mas é possível constatar que são candidatas potenciais para a integração no círculo virtuoso da parceria Desde o desenvolvimento das máquinas elétricas o óleo ascarel óleo mineral subproduto do petróleo foi largamente utilizado como um isolante elétrico No início da década de 1960 descobriuse que um de seus compostos polychlorinated biphenyl PCB apresentava problemas de persistência no meio ambiente e não era biodegradável além de ser cancerígeno Em 1975 a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos decidiu banir o uso do óleo ascarel exemplo seguido por muitos outros países Como substituto foi desenvolvido o óleo naftênico que melhorou a performance ambiental e manteve as características elétricas exigidas pelos equipamentos Não era porém biodegradável além de ser tóxico Foi quando a Cooper Power Systems pesquisou e lançou dois equipamentos chamados religadores que simplesmente eliminaram o óleo dos equipamentos elétricos Desenvolveu depois um fluido isolante de origem vegetal totalmente biodegradável O uso de recursos naturais renováveis e a falta de toxidez aquática trouxeram à empresa e a seus produtos reconhecimento mundial14 Entretanto sejamos realistas ainda persiste boa dose de cinismo no mundo dos negócios pois parte significativa de empresários e altos gestores considera que a moral da inte gridade é uma cartilha inviável Em consequência põe a consciência em leilão ao aderir à moral da parcialidade e demonstra muito ceticismo quanto à eficácia da outra moral O pior é que empresas que se declaram socialmente responsáveis toleram uma zona 14 wwwcooperpowercom 94 Ética EmprEsarial 7 cinzenta de atuação que por estar no limbo da eticidade obedece à racionalização anti ética Em termos claros aderem a práticas pouco ortodoxas porém bem disseminadas e cuja divulgação não chega a afetar a reputação das empresas práticas que todas as letras pretendem evitar prejuízos ao negócio ou visam fortalecêlo diante da concorrência Eis algumas ilustrações cinzentas publicamente reconhecidas operar em ou com países que vivem sob regime ditatorial tais como a China e alguns países árabes e africanos concordar em censurar acesso a sites ou a informações a exemplo dos sis temas de busca como o Google e o Yahoo que se dobraram às exigências do governo totalitário chinês para se instalar no país15 pagar facilitação ou taxa de urgência a funcionários públicos via terceiros para que cumpram as próprias obrigações aceitar e oferecer presentes por ser praxe comercial presentes não brindes isto é mimos que eventualmente influenciem decisões produzir e vender armas fumo e bebidas alcoó licas transacionar com distribuidores e fornecedores que sonegam impostos Há práticas entretanto que são mantidas em sigilo por razões óbvias trabalhar com clientes que sabidamente têm caixa 2 caso dos bancos operar com fornecedores que usam trabalho em situação análoga à escravidão ou mão de obra infantil caso da indús tria da confecção presentear médicos para receitar remédios ou remunerálos para que solicitem exames aos pacientes caso das indústrias farmacêuticas e dos laboratórios de análises clínicas Reconheçamos ainda que a lógica da reprodução do capital e da maximização do lucro encontra dificuldades para conviver com a rigidez da moral da integridade Eis por que muitos afirmam erroneamente que misturar ética e negócios não faz sentido Contudo hoje em dia quando as empresas demonstram clara disposição de se orientar eticamente é possível praticar a moral da parceria e viabilizar a realização do bem universalista Curiosamente no entanto quando as empresas elaboram e publicam códigos de conduta moral as normas espelham as antíteses entre o bem e o mal elementos típicos da moral da integridade arrolam uma sequência de ordenações incondicionais ou de exigências morais sob a forma de obrigações a seguir e de proibições a respeitar Por que será É lícito crer que seja mais fácil arrolar princípios traduzilos em normas codificar o resultado e simplesmente ordenar cumprase Muitos dos discursos empresariais aliás pagam tributo a esta face da cultura nacional o afã de legiferar institucionalizar iniciativas conferir pompa e circunstância a atos comezinhos E ao eclodir um escândalo apelam para essa retórica convencional e passam por fariseus O fato é que em situações críticas as empresas eticamente orientadas se empenham em uma reflexão estratégica e deliberam quanto aos melhores cursos de ação procuram agir à luz da moral da parceria que faz uma análise de riscos Na hora de divulgar seus motivos porém mais uma vez adéquam seu discurso ao imaginário popular e confundem o ser moral com o rigor dos princípios ou com as condutas irrepreensíveis e dogmáticas da integridade Procuram esconder a análise que fizeram das circunstâncias da relação custobenefício e dos riscos e mergulham por inteiro numa visão binária e maniqueísta Ao fim e ao cabo convenhamos é mais cômodo e não espanta os incautos De outra parte para evitar a armadilha de ter que desconsiderar as nuanças que os negócios exigem e que a moral da parceria faculta administrar é comum que as empresas eticamente orientadas estabeleçam uma pauta de assuntos polêmicos As sumem então posições que lhes impõem escolhas delicadas Por exemplo o que é mais importante sucumbir à praxe de dar uma propina à área de compras do cliente ou 15 Em 2010 depois de ter seus servidores invadidos por hackers possivelmente ligados ao governo chinês o Google deixou a China as morais empresariais brasileiras 7 95 perder uma venda Colocar um jornalista na folha de pagamentos ou arriscar insinuações perversas em reportagens encomendadas pelos concorrentes Edulcorar a pílula nas campanhas de publicidade ou restringirse às efetivas virtudes dos serviços prestados Aceitar os préstimos de quem trafica influência para aprovar um importante projeto de lei ou aterse aos mecanismos transparentes do lobby profissional Adulterar o peso dos produtos embalados para aumentar a margem de lucro ou respeitar as normas técnicas estabelecidas Subornar um fiscal ou deixálo embargar uma obra a ser inaugurada por causa de divergências menores entre o projeto e a execução Atender com celeridade um pedido de cliente ou dobrarse ao protocolo da gestão da qualidade Estimular o consumo supérfluo ou o consciente Fazer falsas promoções ou administrar os preços com transparência As empresas que não adotam orientações precisas e responsáveis tendem a ficar reféns da moral da parcialidade e a operar ao deusdará Em contrapartida perguntase será que as ações orientadas pela moral da parceria beneficiam a coletividade como um todo Às vezes sim bem comum no mais das vezes satisfazem apenas seus principais stakeholders bem restrito universalista De resto demonstram interesse pelo impacto que suas políticas produzem sobre os demais Por sua vez quando uma empresa adota a moral da parcialidade ela o faz às es condidas e usa a retórica da integridade como biombo Caso seja flagrada num malfeito sabe que suas ações serão publicamente censuradas Por isso é que muitos empresários dizem que a coisa mais importante é não ser pego Este jogo de faz de conta desfruta da leniência histórica que os padrões culturais brasileiros secretam Aqui nos deparamos mais uma vez com o velho hiato entre o país formal e o país real a norma e o ato o verbo e o fato O país formal é pensado com lhaneza segundo os mandamentos da moral da integridade e os cânones da teoria ética da convicção ainda que no campo empresarial esteja ganhando relevância a moral da parceria moldada pela teoria ética da responsabilidade A contrapelo o país real mergulha no baixo mundo das práticas interesseiras que as morais do oportunismo e da parcialidade justificam Neste cipoal travase um claro embate entre a razão ética e a racionalização antiética EXERCÍCIO O BALANÇO MORAL DA EMPRESA Com o propósito de conhecer a própria empresa em que se trabalha operando uma es pécie de diagnóstico expedito cabe indagarse quais práticas ocorreram nos últimos três meses e chegaram a seu conhecimento O exercício se encontra no site da Editora Elsevier Anexo IV 97 8 As teorias éticas Com o olhar perdido um sobrevivente do campo de exterminio disse Se Auschwitz existiu Deus não pode existir O LEQUE DAS ESCOLHAS ÉTICAS A Ética científica corresponde a um corpo de conhecimentos que permite observar des crever investigar e explicar a ocorrência dos fatos morais elabora conceitos emite juízos de realidade rastreia recorrências identifica padrões e com isso capacita os estudiosos a antecipar eventos É científica porque a contrapelo da filosofia constitui um discurso de demonstração explicita os fundamentos sociológicos e históricos dos fenômenos estudados torna inteligível porque tais ou quais cursos de ação foram adotados e per mite prever ocorrências com boa margem de probabilidade1 O caráter abstratoformal de seus conceitos conferelhe a universalidade indispensável para que sejam investidos no conhecimento das inúmeras situações concretas que emergem em qualquer tempo e sob quaisquer céus Sublinhemos que a Ética científica confronta em termos classificatórios duas racionali dades a universalista de caráter inclusivo e a particularista de caráter excludente ambas universais humanos frutos da evolução do Homo sapiens e resultados das injunções gregárias2 Consequentemente identifica como positivos os interesses gerais ou o bem comum assim como qualifica como legítimos os interesses grupais e pessoais de caráter universalista Por quê Porque a satisfação de tais interesses assegura a reprodução social das coletividades humanas Além do mais não há como justificar decisões particularis tas egoístas ou parciais que se realizam a expensas dos interesses de todos os seres humanos Se um ato interessa exclusivamente a alguns em detrimento de muitos sem que existam razões racionais para tanto esse ato carece de legitimidade ética3 A visão convencional da moralidade reduz os dilemas morais a escolhas entre o bem e o mal Ora isso pode conduzir a conclusões precipitadas porque se nós estamos fazendo a coisa certa isso significa que quem se opõe a nós está fazendo a coisa errada Ora as duas coisas podem estar certas E com efeito existem escolhas entre o bem e o bem Por exemplo distribuir dividendos aos acionistas ou investir em pesquisa de novos produtos Priorizar a ascensão profissional ou o tempo dedicado à família Solidarizarse com um colega injustiçado ou não se comprometer para manter o emprego que é a fonte de sustento da família Pagar uma dívida em dia ou emprestar o dinheiro a um amigo necessitado Distribuir dividendos aos acionistas ou investir em pesquisa de novos 1 Sabendose que uma empresa adota a moral da parcialidade por exemplo não é difícil imaginar que entre outros expedientes tenderá a fraudar transações comerciais ou financeiras 2 Tais como a linguagem a cooperação a divisão do trabalho por idade e por sexo o intercâmbio comercial entre agrupamentos humanos o fogo a feitura de utensílios a assistência às crianças os laços de parentesco a distinção entre natureza e cultura a abstenção do incesto a atração sexual etc 3 Veremos logo adiante que nas escolhas de Sofia situações extremas quando se adota o mal menor para evitar um mal maior alguns podem se beneficiar em detrimento de muitos porque se trata de uma escolha objetivamente possível e praticamente impositiva Pensemos num navio que afunda e que não dispõe de botes salvavidas o bastante para acolher todos os tripulantes e passageiros salvamse alguns ou morrem todos 98 Ética EmprEsarial 8 produtos Denunciar a empresa em que se trabalha por maquiar dados ou recusarse a compactuar e arriscar ser demitido Cursar um MBA exigente ou dedicar o tempo livre aos filhos Desse modo o leque das decisões éticas ou das escolhas fundadas na razão ética revestidas portanto de caráter universalista não se resume apenas a escolher o bem para afastar o mal polos do bem e do mal mas também a escolher entre dois bens polos do bem e do bem Todavia e eis a magia de uma riquíssima combinatória há outras escolhas possíveis ainda mais complexas e dramáticas escolher o sacrifício do mal menor para evitar um mal maior polos do mal e do mal ou escolher o sacrifício do mal necessário para obter um bem maior polos do mal e do bem Estas escolhas não são tão raras assim e permeiam nosso cotidiano Além do mais repõem em seus devidos termos a famosa e mal afamada questão dos fins que justificam os meios De que fins se trata particularistas ou universalistas E de quais meios lançaremos mão puros ou necessários Vejamos uma história que nos servirá de pretexto para a análise Uma mocinha de 15 anos procura o pai confessa estar grávida e lhe pede ajuda para abortar Abalado o pai pergunta quem a engravidou Em um rasgo de maturidade a mocinha responde que o menino tem 16 anos uma criança portanto tão despreparado quanto ela Vamos consultar a mãe sugere o pai Para quê pergunta a garota se já sabemos a resposta Como católica praticante a mãe rejeita o aborto in limine O que diria se for provocada Deus não permite é um pecado imperdoável a Igreja condena o aborto atenta contra o caráter sagrado da vida Dedução A lógica que anima a moral católica consiste em cumprir deveres Faça o que está prescrito A filha sabe disso e aposta no fato de que o pai é agnóstico e costuma repetir somos responsáveis por aquilo que fazemos Quem sabe ele vá se sensibilizar com a situação dela Quiçá venha a sopesar as implicações da gravidez prematura e a hipoteca que irá pesar sobre seu futuro Não empate minha vida pai me dê uma chance suplica a filha O pai então cai em si a consulta à esposa refém das próprias convicções religiosas só confirmará o que já se sabe sem margem para dialogar ela dirá não de maneira alguma nem pensar Para ela o futuro depende da vontade de Deus Ocorre que os dogmas sempre incomodaram o pai Logo algumas interrogações o assaltam há como não se comover com o desamparo da filha Faz sentido a menina ter um bebê fruto da imprudência e que por vontade própria prefere não ter Não irá comprometer a vida dela É sensato criar uma criança não desejada Faz sentido uma adolescente ter uma criança quando não reúne as condições psicológicas indispensáveis para arcar com a maternidade Assim caso o pai opte pela realização do aborto e caso o fato se torne conhecido como ficará a situação O pai reflete sobre as circunstâncias e mede os efeitos possíveis das opções que se apresentam Sua avaliação é crucial A tensão o deixa exausto A angústia cresce com a certeza de que terá que arcar com as consequências do que vier a decidir Essa história nos apresenta dois modos de tomar decisões cada qual calcado em uma teoria ética distinta cada qual obedecendo à razão ética e portanto desfrutando de legitimidade Em Ética à semelhança de outras ciências não há uma única teoria que ocupe todo o espaço da investigação No campo da Sociologia por exemplo é pos sível identificar três matrizes clássicas a teoria funcionalista a teoria weberiana e o materialismo histórico de Marx No campo da Ética se olharmos para o discurso ainda as teorias éticas 8 99 hegemônico das doutrinas filosóficas observaremos que as abordagens são múltiplas e que tanto filósofos como teólogos se digladiam ao brandir seus respectivos postulados Na vertente científica da Ética Max Weber batizou as duas teorias em obra seminal Caracterizou ambas em função dos modos de tomar decisão a ética da convicção tem um caráter deontológico e se conforma como uma teoria dos deveres e a ética da res ponsabilidade tem um caráter teleológico e se configura como uma teoria dos fins4 A TEORIA ÉTICA DA CONVICÇÃO A máxima da teoria ética da convicção indaga as ações condizem com as obrigações Procura verificar se existe ou não conformidade com deveres universalistas com pres crições ou virtudes consensuais Dito em outras palavras a teoria parte do pressuposto de que as injunções a serem obedecidas têm caráter universalista ou interessem a todos os seres humanos Opera com base em uma mecânica específica que legitima as decisões e as ações que se mantenham fiéis às convicções sigam à risca os procedimentos requeridos e se alinhem com determinações consensuais A teoria ética da responsabilidade por sua vez resulta de outro molde Indaga quais as consequências presumíveis dos atos Opera com base em um cálculo racional avalia os riscos os custos e os benefícios envolvidos para atingir fins universalistas ou objetivos consensuais que também interessam a todos os seres humanos São legítimos então os resultados que são objetivamente positivos Caso contrário os agentes respondem pelos imprevistos e pelos insucessos Agora se forem descobertas e desmascaradas jus tificativas mistificadoras durante o processo os agentes serão responsabilizados pela impostura particularista que praticaram5 Assim enquanto o fantasma da racionalização antiética ronda a teoria da responsabi lidade um dos graves problemas que a teoria da convicção enfrenta é o da historicidade dos valores como saber quais se inspiram por uma lógica universalista Por exemplo a veracidade é um valor que poderia ser considerado universalista Todavia dirão os consequencialistas da teoria da responsabilidade falar sempre a verdade interessa sempre e a todos Faz algum sentido que a polícia avise publicamente que a tal e qual hora invadirá o cativeiro de uma pessoa sequestrada Obviamente não pois a transparência inviabilizaria a operação de resgate Os consequencialistas ou os responsáveis verão aí um impasse teórico Como superálo Bastaria que a verdade beneficiasse sempre interesses universalistas dirão os convictos ou bastaria que a exceção à verdade fosse fundamentada caso a caso dirão os responsáveis Mas este último raciocínio caminha na contramão do que pensa a teoria ética da convicção pois para Kant um de seus mais eminentes precursores em nenhuma circunstância a mentira ou a omissão se justificam Em decorrência o modo de operar da teoria da convicção celebra o corte impecável das dicotomias consagra o maniqueísmo como forma competente de decidir advoga antino mias maximalistas tudo ou nada sim ou não branco ou preto é ou não é argumenta 4 WEBER Max Le Savant et le Politique Paris Union Générale dÉditions 1959 pp 166185 Escreve Weber toda atividade orientada pela ética pode ser subordinarse a duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente opostas Ela pode orientarse pela ética da responsabilidade verantwortungsethisch ou pela ética da convicção gesinnungsethisch Isso não quer dizer que a ética da convicção seja idêntica à ausência de responsabilidade e a ética da responsabilidade à ausência de convicção Não se trata evidentemente disso Todavia há uma oposição abissal entre a atitude de quem age segundo as máximas da ética da convicção em linguagem religiosa diremos O cristão faz seu dever e no que diz respeito ao resultado da ação remetese a Deus e a atitude de quem age segundo a ética da responsabilidade que diz Devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos p 172 5 Caso por exemplo de dirigentes de uma ONG que desviam doações em benefício próprio e procuram se justificar alegando que os recursos foram gastos em despesas administrativas 100 Ética EmprEsarial 8 que não há virgindade relativa descarta os meiostons e não tolera vacilações Eis por que a metáfora da tolerância zero caracteriza essa teoria de forma competente De fato ela orienta os agentes a se pautar por valores inquestionáveis Em um mundo assim regrado deixam de existir dilemas ou polêmicas não restam dúvidas a dilacerar consciências tal qual ocorreria com a mãe católica do exemplo que negaria a priori qualquer cogitação de aborto Ou seja na teoria ética da convicção agese de acordo com a consciência cum prindo obrigações morais previamente inculcadas6 Tratase de exercitar a virtude levar à prática princípios ou ideais aprendidos Fazse um exame de consciência garimpando respostas prontas e praticase o senso do dever Na teoria ética da responsabilidade de forma bastante diversa agese com vistas a evitar o que possa causar danos aos outros as consequências dos atos são determinantes Tratase de exercitar o espírito crítico assumir riscos calculados e realizar o bem possível com os meios disponíveis Fazse um cálculo racional deliberase em torno de cenários alternativos e constroemse respostas novas com base em uma análise da situação Em suma praticase o senso de realidade Eis por que lhe cabe perfeitamente a metáfora da análise situacional Na teoria da convicção as decisões e as ações correspondem a deveres universalistas princípios ou ideais que se aplicam sine ira et studio sem raiva ou complacência às situa ções concretas O agente age de acordo com imperativos universalistas e observa com rigor o rol das exigências prescritas sem se importar com as consequências basta ter razão ser inspirado por valores consensuais e utilizar meios puros não contaminados pelo mal No cerne dessa teoria reside uma lógica formal do tipo faça o que deve ser feito e aconteça o que tiver que acontecer O que conta então A impecável coerência entre a ação e a intenção Voltemos a nosso exemplo se a menina grávida de 15 anos implorar a ajuda da mãe católica o aborto será rechaçado a filha suportará todas as bênçãos e todas as agruras da gravidez até o dia do nascimento do bebê Agora imaginemos o impensável a menina morre no parto Alguém irá culpar a mãe Ninguém Nem a própria genitora irá se sentir responsável Por que será Porque ela deu curso à convicção universalista da preservação da vida7 cumpriu o seu dever desautorizando o aborto o mal cometeu uma ação virtuosa efetivou uma ação racional em relação a valores consensuais Se a menina morreu Deus assim quis era seu destino havia chegado a sua hora Na teoria ética da responsabilidade diferentemente os fins que orientam as decisões e as ações bem como os resultados presumidos só se justificam se gerarem os benefícios pro jetados Ter razão é necessário mas consequências positivas são imprescindíveis Primam os resultados e por isso mesmo cabe ao agente analisar as necessidades e as dificuldades emergentes assumir riscos calculados e agir com as devidas precauções Cumpre cometer pois uma ação racional em relação a fins universalistas Alcançar tais fins justifica os meios utilizados No cerne da teoria da responsabilidade reside uma lógica prática do tipo faça o necessário para evitar danos maiores e obter efeitos benéficos Contam a certeza e a fecundidade do resultado8 Assim suponhamos de novo que a menina grávida de 15 anos não peça ajuda à mãe pois sabe de antemão que a resposta será negativa e pensemos ainda que o pai decida patrocinar o aborto da criança não desejada9 No ato adere à teoria ética 7 Tal princípio não é pacífico uma vez que enseja a polêmica quanto ao início da vida humana mas é defensável eticamente 8 Ver BOBBIO Norberto Teoria geral da política a filosofia política e as lições dos clássicos Rio de Janeiro CampusElsevier 2000 p 174175 livro organizado por Michelangelo Bovero 9 A nossa análise aqui abstrai o aspecto legal do aborto 6 Tenhamos sempre em mente que nem todos os valores socialmente estabelecidos têm caráter universalista as teorias éticas 8 101 da responsabilidade dos males o menor estribado no valor universalista do direito de escolha das mulheres quanto a interromper ou não a gravidez uma vez que seu corpo lhes pertence e a ninguém mais ou ainda se apoia na ideia de que a filha não tem condições de arcar com a maternidade Contudo e aí vamos imaginar algo não de todo impos sível como ficaria a situação se a menina vier a falecer no aborto Não há dúvida o pai responderá por isso Ainda que não fosse culpa direta dele mas do médico que falhou E por quê Porque a filha é menor de idade e dependente dele porque ele deveria ter se assegurado de que todas as condições e competências estivessem reunidas a fim de minimizar os riscos e garantir um desfecho favorável E ainda que tivesse tomado todos os cuidados o erro médico inevitavelmente recairia sobre ele Ao fim e ao cabo o pai não irá desfrutar do conforto das justificativas fornecidas pelas crenças coletivas ficará exposto a todas as críticas e à mercê de todas as sanções ficará reduzido às próprias forças e só poderá contar com a eventual solidariedade de uns poucos amigos De sorte que ao responsabilizar diretamente os tomadores de decisão a teoria ética da responsabilidade tornase madrasta ainda que se saiba que em toda análise de riscos há sempre uma margem de incerteza No extremo oposto a teoria ética da convicção confere conforto aos tomadores de decisão à medida que reduz a escolha a termos binários disposições antinômicas que não abrem espaço para a incerteza As decisões convictas são escolhas discretas entre categorias distintas contraditórias e exigem apenas consciência a respeito da posição que se assume Desenvolvendo a análise verificamos que a matriz da teoria ética da convicção se desdobra em duas vertentes 1 A de princípio que se atém fielmente aos princípios estabelecidos em um deliberado desinteresse pela variabilidade das circunstâncias e cuja máxima sentencia respeite as regras haja o que houver De maneira que todos os agentes ganham pelo respeito rigoroso aos princípios ou às normas universalistas 2 A da esperança que se ancora em ideais moldada por uma fé capaz de mover montanhas porque é convicta de que o mundo pode melhorar e cuja máxima preconiza o sonho antes de tudo De maneira que todos os agentes ganham pelo triunfo de ideais ou de valores universalistas10 Essas vertentes correspondem a deveres preceitos virtudes ou dogmas introjetados pelos agentes ao longo dos anos O arcabouço axiológico inculcado nas consciências dos agentes os leva a obedecer ao seguinte cânone Aja conforme mandamentos universalistas No entanto como as consciências não existem no vácuo de onde provêm as mensagens que foram captadas e assimiladas pelos agentes Das várias agências de controle social a que estão submetidos Ora como as tábuas de valores são múltiplas um semnúme ro de morais do dever podem se formar Restaria saber se os deveres que seguem o modo de decidir e de agir que a teoria da convicção prescreve cumprir ordens curvarse a certezas imbuirse de rigor roçar o absoluto obedecem à razão ética atendem ou não à racionalidade universalista isto é se interessam de fato a todos os seres humanos Sem o que se poderia produzir um bem particularista Seria o caso da cega lealdade de um empregado ao empresário que comete espionagem econômica porque o que faz não visa o bem universalista Ou seria o caso do ideal revolucionário comunista que 10 Não valem quaisquer dogmas princípios ou ideais os nazistas também tinham assim como quaisquer tradições convenções ou normas codificadas as máfias também têm porque os particularismos também se travestem com figurinos exuberantes e apelos grandiloquentes 102 Ética EmprEsarial 8 em nome da maioria oprimida instala um Estado policial que desapropria os bens dos exploradores do proletariado elimina fisicamente os opressores estatiza todas as atividades produtivas e reduz a pó as liberdades democráticas11 De outro lado é importante assinalar que embora os agentes sociais encarem suas obrigações como compulsórias12 eles não deixam de ter livrearbítrio nem perdem sua capacidade de escolher De fato e pelo menos em tese podem transgredir os imperativos morais e preferir trilhar outros caminhos Podem por exemplo a adotar outros princípios ou valores sem deixar de obedecer à mesma mecânica da teoria da convicção b derivar para a teoria ética da responsabilidade assumindo o ônus das consequências das decisões que tomam c abandonar toda orientação ética e enveredar pelos desvios tortuosos da vilania pois fazer o bem ou o mal é uma escolha não um destino O cônsul português Aristides Sousa Mendes do Amaral Abranches lotado no porto francês de Bordeaux preferiu ter compaixão a obedecer cegamente a seu governo e regeu seu comportamento pela teoria da convicção Priorizou um valor em relação ao outro baseado na determinação devo agir como cristão como manda a minha consciência Diante do avanço do exército alemão em junho de 1940 emitiu vistos de entrada em Portugal a qualquer um que pedisse e salvou a vida de 30 mil pessoas entre as quais 10 mil judeus À semelhança de Oskar Schindler membro do Partido Nazista Sousa Mendes havia sido até os 55 anos um funcionário fiel à ditadura salazarista Porém em face da proibição de seu governo em conceder vistos para judeus e outras pessoas de nacionalidade incerta decidiu dar vistos a todos sem discriminação de nacionalidades etnias ou religiões Chamado de volta a Portugal o cônsul foi forçado ao exílio interno e morreu na miséria em um convento franciscano Católico fervoroso ele julgou ter apenas agido segundo sua consciência e recusou qualquer notoriedade13 No embate entre convicções conflitantes Sousa Mendes soube escolher e praticar às próprias custas um valor universalista o de reconhecer a humanidade dos diferentes A TEORIA ÉTICA DA RESPONSABILIDADE A máxima da teoria ética da responsabilidade apregoa que somos responsáveis por aquilo que fazemos e reza Aja para alcançar fins universalistas Em vez de apli car ordenamentos previamente estabelecidos os agentes priorizam as consequências das decisões e ações Realizam assim uma análise situacional avaliam os efeitos previsí veis que uma ação produz planejam obter resultados positivos para si e para os demais agentes que interagem consigo sem ferir os interesses alheios e por fim ampliam o leque 13 Veja 11 de novembro de 1998 DORLHIAC Gabriella O Schindler português salvou 30 mil O Estado de S Paulo 22 de abril de 2002 11 Não há como as ditaduras totalitárias desfrutarem de legitimidade ética porque seus fins não interessam à humanidade como um todo embora proclamem o contrário e porque o ódio que costumam instigar contra parte das sociedades em que se instalam uma classe uma raça uma religião uma minoria qualquer sinaliza claramente a postura intolerante do parcialismo Mais ainda a violência impiedosa que preconizam não decorre de uma situação extrema como nas escolhas de Sofia nem o teste de realidade do socialismo real ou dos fascismos demonstrou que um bem maior foi alcançado Ao contrário os Estados de exceção corporativistas caíram de podre depois de cevar gestores tirânicos 12 As normas que compõem os códigos morais iluminados pela teoria da convicção traduzem princípios valores ideais ou crenças e pautam os agentes nas mais diversas situações concretas Funcionam portanto como receituários compêndios de prescrições ou manuais de instruções as teorias éticas 8 103 das escolhas quando preconizam dos males o menor ou quando visam fazer mais bem ao maior número possível de pessoas De forma que a tomada de decisão a deixa de ser dedutiva como ocorre na teoria da convicção e passa a ser indutiva b obrigase a conhecer as circunstâncias vigentes c rastreia as implicações que cada curso de ação apresenta nos vários cenários possíveis d configura uma análise de riscos e supõe uma apreciação da relação custobenefício f fundase na expectativa de que serão alcançados consequências ou fins valiosos porque universalistas O enfoque tem similitudes com o enfrentamento do risco moral moral hazard que muitos criticam à medida que abre uma brecha para certos abusos Por exemplo ante uma crise de desconfiança ou de ataques especulativos como os que ocorreram em 1998 na Rússia e no Brasil o mundo não podia deixar que esses países quebrassem sob pena de provocar um sério abalo no sistema financeiro internacional Diante disso organismos mundiais entre os quais o Fundo Monetário Internacional viabilizaram operações de socorro Vale dizer que embora o custo do resgate fosse grande a omissão diante da situação seria ainda pior para todos os agentes da economia mundial Levouse em conta o bem comum universal Em 2008 para evitar uma crise sistêmica no setor bancário ocasionada pelo colapso dos empréstimos hipotecários de alto risco subprime o Tesouro norteamericano e o Federal Reserve Fed Banco Central americano socorreram as agências hipotecárias Fannie Mae Federal National Mortgage Association e Freddie Mac Federal Home Loan Mortgage Corparation porque as duas respondiam por metade dos financiamentos das casas norteamericanas US 52 trilhões em títulos de hipoteca A intervenção governamental foi considerada uma maneira de socializar os prejuízos uma vez que os lucros nos tempos de bonança tinham sido privatizados Ou dito de outra forma maus riscos acabaram sendo assumidos pelo governo com o dinheiro dos contribuintes o que poderia estimular outras aventuras do gênero A postura oposta consistiria em deixar que empreendimentos mal gerenciados queimassem na pira sacrificial da pura lógica do sistema capitalista Entre 2010 e 2012 a situação se repetiu com o socorro financeiro dado pela União Europeia a diversos bancos em crise Irlanda Grécia Portugal Itália Espanha ante o perigo do colapso do euro do endividamento excessivo dos Estados soberanos do desemprego recorde e da estagnação do setor produtivo Sem dúvida foram decisões difíceis polêmicas prenhes de efeitos venenosos porém indispensáveis para a preservação do equilíbrio mundial Eis a penosa saga das decisões responsáveis Em 1944 voltando de uma missão aviões da Royal Air Force estavam sendo perseguidos por uma esquadrilha da Luftwaffe Naquela noite fria a tripulação do portaaviões britânico aguardava ansiosa O comandante do navio anunciara que dali a 10 minutos apagaria as luzes de bordo inclusive as da pista de pouso A maioria dos aviões pousou a tempo Mas restaram três retardatários O comandante concedeu mais dois minutos Dois aviões chegaram As luzes foram então apagadas por ordem dele A tripulação do navio e os pilotos ficaram revoltados com a crueldade do comandante Afinal deixou um avião perdido no oceano por que não esperou mais alguns minutos O dilema do comandante foi o de ter que escolher entre arriscar a vida de milhares de homens ou tentar salvar os tripulantes da aeronave Perguntou a si mesmo quais seriam as consequências se o portaaviões fosse descoberto Um possível morticínio Foi quando decidiu sacrificar os retardatários14 14 MELLÃO NETO João Momentos de decisão O Estado de S Paulo 20 de agosto de 1999 104 Ética EmprEsarial 8 A mesma situação pode ser aplicada a uma empresa Diante da queda acentuada das receitas um dos cenários possíveis é o da forte redução das despesas com o consequente corte de pessoal O que fazer Manter o dispêndio representado pela folha de pagamento e agravar a crise quiçá pedir concordata ou declarar falência ou diminuir o desembolso e devolver à empresa o fôlego necessário para ficar à tona na tormenta Assim sendo caberia ou não sacrificar alguns tripulantes para tentar assegurar sobrevida ao resto dos marinheiros e ao próprio navio Mais ainda o que interessa do ponto de vista da sociedade como um todo uma empresa que feche as portas ou uma empresa que gere riquezas Acossada por uma dívida de cerca de US250 milhões a Arisco uma das mais importantes empresas de alimentos sediada em Goiânia vendeu fábricas velhas e terrenos Desfez também a sociedade com a Visagis dona da Visconti e com esta sua participação na Fritex interrompeu um acordo de distribuição dos inseticidas SBP mantido com a Clorox reduziu o número de funcionários de 8200 para 5800 Às vésperas de alcançar seu primeiro bilhão de reais em vendas anuais a Arisco estava se preparando para acolher um novo sócio e virtual controlador por isso teve de aliviar o excesso de carga e ficar enxuta15 Em fevereiro de 2000 a empresa foi comprada pelo grupo norteamericano Bestfoods um dos maiores do mundo no setor de alimentos por US490 milhões A Bestfoods também assumiu o passivo de US262 milhões Ao transferir o controle para uma companhia mundial a família Queiroz explicou que a Bestfoods poderia dar sustentação aos planos de expansão da Arisco além de guardar simetria e coincidência de métodos em relação à estratégia empresarial adotada pelo grupo goiano16 Mais tarde a própria Besfoods foi comprada pela Unilever A teoria da responsabilidade não converte princípios ou ideais em práticas a exemplo da teoria da convicção nem aplica normas ou valores previamente estipulados independen temente dos impactos que possam ocasionar Como procede então Analisa as situações concretas e antecipa as repercussões que uma decisão pode provocar Dentre as opções que se apresentam aquela que presumivelmente traz benefícios maiores à coletividade acaba implementada ou seja ganha legitimidade a ação que produz um bem maior ao adotar o mal necessário ou evita um mal maior ao adotar o mal menor É assim que procede aquele pai que sopesa com muito cuidado qual das duas opções adotar apoiar o aborto da filha ou rejeitálo ainda que uma das escolhas seja mais arriscada para depois e somente então tomar uma atitude Em agosto de 2000 a Justiça inglesa teve de se haver com o caso de duas irmãs siamesas ligadas pela barriga só uma delas tinha coração e pulmões além do cérebro com desenvolvimento normal A solução proposta pelos médicos foi a de sacrificar a mais fraca para salvar a outra Os pais católicos praticantes vindos da ilha de Malta em busca de recursos médicos mais sofisticados se opuseram à cirurgia alegando que Deus deveria decidir o destino das meninas Não podemos aceitar que uma de nossas crianças deva morrer para permitir que a outra viva disseram os pais em comunicado escrito Acreditamos que nenhuma das meninas deveria receber 16 VEIGA FILHO Lauro Bestfoods decide manter a marca Arisco Gazeta Mercantil 9 de fevereiro de 2000 15 BLECHER Nelson ROSENBURG Cynthia Servido Exame 1 de dezembro de 1999 as teorias éticas 8 105 cuidados especiais Temos fé em Deus e queremos deixar que e Ele decida o que deve acontecer com nossas filhas Um tribunal de primeira instância deu permissão para que os médicos operassem as meninas Mas houve recurso Mesmo assim a Corte de Apelação decidiu em setembro que as gêmeas deveriam ser separadas17 Foi um embate entre os pais inspirados pela teoria da convicção a vida é um bem supremo e os médicos do St Marys Hospital de Londres orientados pela teoria da responsabilidade sacrificar uma vida improvável para salvar uma vida possível Esse desencontro acabou se transformando em uma batalha judicial vencida pelos médicos Vamos agora aprofundar a análise De modo similar à teoria ética da convicção duas vertentes expressam a teoria ética da responsabilidade 1 A da finalidade determina que a bondade dos fins justifica as ações empreendidas desde que se oriente pela racionalidade universalista e supõe que as devidas cautelas sejam tomadas assim como todos os riscos sejam medidos Sua máxima ordena evite um mal maior custe o que for necessário Assim ganhariam as pessoas objetivamente possíveis dada a bondade dos fins 2 A utilitarista exige que as ações produzam o máximo de bem para o maior número isto é que possam combinar a mais intensa felicidade possível critério da qualidade ou da eficácia com a maior abrangência populacional critério da quantidade ou da equidade Sua máxima recomenda faça o máximo de bem para mais gente Assim ganharia o maior número possível de pessoas o máximo de bem possível Um caso real ocorreu em um hospital católico em Phoenix Arizona A irmã Mary McBride que dirigia o hospital católico autorizou um aborto de emergência para salvar a vida de uma mulher acometida de doença grave Quando o bispo da região soube da decisão determinou imediatamente a excomunhão da irmã O reverendo John Ehrich responsável pela ética médica da diocese justificou ela consentiu em matar uma criança não nascida E prosseguiu De fato em certas situações a mãe pode morrer com a criança Mas e é esta a perspectiva católica você não pode fazer o mal para obter o bem O fim não justifica os meios Todavia o reverendo Thomas Doyle um advogado canônico disse que o caso indica a enorme injustiça da Igreja no modo como lida com os escândalos Afinal nenhum padre pedófilo foi excomungado18 De fato pela vertente de princípio da ética da convicção os fins não justificam os meios de modo que não se pode fazer o mal abortar para alcançar o bem salvar a mãe Não foi esse o raciocínio da irmã que dirigia o hospital e que convivia diuturnamente com dramas da espécie Considerou que tentar salvar a vida da paciente acometida de doença grave é um fim universalista ainda que à custa do feto De forma que autorizar o aborto seria eticamente justificado 17 SANTA CRUZ Ana Unidos ao nascer Veja 13 de setembro de 2000 e O Estado de S Paulo 7 de novembro de 2000 18 Institute for Global Ethics Ethics Newsline 24 de maio de 2010 106 Ética EmprEsarial 8 Realizando uma análise custobenefício o aborto podia ser feito com segurança técnica e a mãe tinha boas chances de sobreviver mas o feto morreria Nesta operação quais riscos estavam envolvidos O de a paciente vir a morrer e o de a irmã ser excomungada Mesmo assim a diretora optou por autorizar o aborto de emergência para evitar danos maiores à paciente No presente caso as duas vertentes da teoria ética da responsabilidade se aplicam mal menor para evitar um mal maior que seria a morte da paciente e a do feto finalidade ou mal necessário para salvar a vida da paciente vertente utilitarista É interessante notar que ambas as vertentes partem do pressuposto de que os eventos desejados só ocorrerão se dadas decisões forem tomadas e se determinadas ações forem empreendidas Assim de maneira simétrica à teoria da convicção sob o guardachuva da teoria da responsabilidade podem aninharse inúmeras morais históricas Afinal quantos bons propósitos podem interessar às coletividades inclusivas Ou melhor várias morais podem obedecer sim à lógica da análise de risco e portanto justificar o ônus dos efeitos produzidos pelas decisões tomadas19 Porém isso suscita uma questão crucial o bem comum referese a quem Às socieda des particulares ou à humanidade como um todo e ao futuro das gerações futuras Porque interesses nacionais não são necessariamente equivalentes a interesses universalistas De sorte que a resposta científica é clara em última instância o bem comum referese à universalidade das comunalidades e aos bens públicos universais Ou seja em cada situação concreta é possível socorrerse da razão ética ou da racionalidade universalista ao verificar se tal ou qual ação interessa a todos ou não se tal ou qual ação prejudica alguém ou constitui uma escolha de Sofia como veremos logo adiante Assim ambas as teorias encontram na racionalidade universalista um denominador comum as ações cometidas pelos praticantes da teoria ética da convicção decorrem imediatamente da aplicação de prescrições anteriormente definidas princípios ou ideais por sua vez as ações cometidas pelos praticantes da teoria ética da responsabilidade decorrem da definição de fins universalistas evitar o mal maior ou obter o bem maior que implicam uma análise prévia e cuidadosa em face da complexidade dos casos e ante a enormidade das decisões a serem tomadas As duas teorias éticas remetem então a tipos diferentes de referências convicções ou prescrições versus fins ou propósitos e configuram de forma inconfundível dois modos de decidir Na teoria da convicção os agentes se guiam por imperativos de consciência na teoria da responsabilidade eles se guiam por uma análise de riscos Uns celebram o rito de suas injunções morais com minudente rigor outros examinam os efeitos previsíveis que suas ações irão provocar e adotam o curso que lhes aponta os maiores benefícios possíveis em relação aos custos prováveis No renomado Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo HCFMUSP há uma fila dupla ou dupla entrada os pacientes particulares e de convênio enfrentam filas bem menores do que os pacientes do Sistema Único de Saúde SUS público e gratuito Na radiologia por exemplo um paciente do SUS pode esperar quatro meses para fazer um exame de radiografia enquanto um paciente de convênio leva poucos dias para conseguir o mesmo exame A situação se repete para conseguir fazer uma ressonância magnética exames laboratoriais consultas e cirurgias 19 É preciso reconhecer que morais que obedecem a este figurino não são comuns p ex a moral da parceria empresarial funciona com base na análise de riscos e que a maior parte das morais tem feições dogmáticas e maniqueístas à moda da teoria da convicção p ex a moral da integridade brasileira as teorias éticas 8 107 O superintendente do hospital admite que haja fila dupla e discrepância nos prazos de atendimento mas garante que os pacientes do SUS teriam um ganho ínfimo na redução do tempo de espera se houvesse a fila única Em contrapartida o hospital não teria como atrair pacientes particulares são 48 do total dos pacientes que respondem por 30 do faturamento o que prejudicaria a qualidade do atendimento Contra essa política erguemse vozes que qualificam a fila dupla como ilegal uma vez que a Constituição estabelece a universalidade a integralidade e a equidade do atendimento do SUS20 Confrontamse aqui as duas teorias ambas com posturas universalistas Os hospitais uni versitários alegam que necessitam de mais recursos para poder operar a contento por isso passaram a reservar parte do atendimento a pacientes particulares e conveniados Quer dizer adotaram o modelo de dupla porta inaugurado pelo Instituto do Coração do HCFMUSP na década de 1970 para realizar mais eficientemente sua própria missão de atender pacientes gratuitamente Os críticos dessa política no entanto consideram inconcebível que um serviço prestado pelo Estado atenda pessoas de forma diferente e discrimine os que podem pagar dos que não podem21 Do ponto de vista da teoria da convicção ninguém está acima da lei e a isonomia deveria prevalecer em quaisquer circunstâncias principalmente no tocante a um hospital público ou é público ou deixa de sêlo Do ponto de vista da teoria da res ponsabilidade a discriminação se justifica à medida que o atendimento pago compensa a escassez de recursos orçamentários à medida que aperfeiçoa e amplia o atendimento gratuito pagam os que podem para melhor atender os que não podem Vêse então que as duas teorias embora orientadas pela racionalidade universalista podem muitas vezes vir a divergir em suas conclusões AS ESCOLHAS DE SOFIA O famoso romance A escolha de Sofia de William Styron conta que durante a Segunda Guerra Mundial a jovem e bela Sofia Zawistowska católica filha de um professor de direito e mãe de dois filhos teve o marido e o pai mortos na Polônia invadida pelas tropas alemãs Depois de ser flagrada traficando carne foi mandada para o campo de concentração de Auschwitz com os dois filhos Ocorre que durante o processo de triagem a que estavam submetidos os recémchegados um oficial alemão se encantou com sua beleza22 Depois de perguntarlhe se era comunista ou judia e após ouvir duas trêmulas negativas disselhe sem pestanejar que a achava bonita e queria dormir com ela Em compensação fezlhe uma proposta atordoante ainda que misericordiosa se Sofia quisesse salvar a vida de uma das crianças tinha de escolher qual delas não sobreviveria Dilacerada diante de tão hediondo dilema Sofia afirmou repetidas vezes que não podia escolher Até o momento em que o oficial exasperado mandou arrancar as duas crianças de seus braços Em prantos e num grito de desespero Sofia escolheu Eva de oito anos Seu filho Jan e ela foram poupados 20 MATEOS Simone Biehler Fila dupla continua no HC de São Paulo O Estado de S Paulo 29 de janeiro de 2000 21 O juiz paulista que julgou a ação civil impetrada pelo Ministério Público assim se manifestou a diferenciação de atendimento entre os que pagam e os que não pagam pelo serviço constitui condição indispensável de subsistência do atendimento pago que não fere o princípio constitucional da isonomia porque o critério de discriminação está plenamente justificado LAMBERT Priscila BIANCARELLI Aureliano Justiça aprova privilégio a paciente particular do HC e Jatene defende atendimento diferenciado Folha de S Paulo 15 de fevereiro de 2000 22 A triagem nos campos obedecia a três critérios básicos a os aptos para o trabalho eram encaminhados para os barracões destinados a uma sobrevida incerta b os adequados para pesquisas médicas a exemplo das crianças gêmeas eram separados dos demais e submetidos a experiências atrozes e muitas vezes alucinadas c os inúteis porque velhos doentes ou muito debilitados iam para as duchas as câmaras de gás 108 Ética EmprEsarial 8 Se tivesse exercido a teoria da convicção na sua vertente de princípio Sofia recusaria a oferta que lhe foi feita nos seguintes termos ou as duas se salvam ou morrem os três ela incluída E por quê Porque vidas humanas são inegociáveis Há como lhes definir um preço Duas valendo mais do que uma A teoria ética da convicção não tolera especulação alguma a esse respeito Sofia escolheu optou pelo menor dos males naquela precisa situação fez uma análise de riscos Esta é a chave de decifração da teoria da responsabilidade Para muitos leitores a opção de Sofia foi antiética outros a veem como eticamente neutra já que refém de uma situação extrema Sofia não tinha condições efetivas de escolher Não é preciso tanto contorcionismo mental Sofia fez sim uma escolha a de salvar a vida de um filho e a dela ainda que ela fosse servir de escrava sexual Em troca sacrificou a filha23 Adotou a teoria ética da responsabilidade em sua vertente da finalidade refletiu que em vez de perder dois filhos perderia um só fez um cálculo quando ajuizou que a salvação de duas vidas em troca de uma só justificava a escolha pensou cometer um mal menor para evitar um mal maior Ademais imaginou provável que outros tantos milhares de irmãos de infortúnio segui riam seu caminho se a alternativa lhes fosse apresentada Ou seja o fim era universalista porque interessa a todos Da mesma forma que se aceitam cirurgias invasivas mal menor ou da mesma forma que os médicos lidam com as doenças iatrogênicas geradas pelos tratamentos e pelos hospitais em face dos riscos inegáveis faz algum sentido abrir mão dos instrumentos ou dos procedimentos disponíveis Por que desistir e não enfrentar os males uma vez que existem possibilidades reais de cura Em franco contraste a teoria ética da convicção é absoluta dogmática iluminada pela pureza doutrinária de seus imperativos morais As obrigações morais que ela inspira as sumem feições incondicionais e unívocas Sua máxima é tudo ou nada e seu modo de obrar encontrase reproduzido em todas as morais ou sistemas normativos que a invocam Qual é o mecanismochave As distinções qualitativas indissociavelmente opostas e articuladas bom e mau certo e errado culpado e inocente virtuoso e vicioso fiel e in fiel amigo e inimigo vida e morte heróis e vilões Inspirados por ela os agentes fazem escolhas entre termos contraditórios categorias dicotômicas unidades irreconciliáveis binômios maniqueístas O exemplo mais banal consiste em proclamar aos quatro ventos não existe meia gravidez Nesta visão inteiriça os alicerces do mundo são elementos discretos inexistem meiostermos zonas cinzentas matizes No tocante a Sofia ela não poderia ter transigido com uma vida Deus é quem decide quanto a isso ou segundo os ateus as circunstâncias o fariam Consumada a escolha porém o remorso corroeu a Sofia do romance Ela carregou sua angústia pela vida afora e acabou matandose com cianureto de potássio Ao final no recôndito de sua consciência parece ter vencido a teoria da convicção Em Beslan Ossétia do Norte sudoeste da Rússia Zalina Dzandarova embala Alan de dois anos enquanto o pequeno dorme Ele é o filho que Zalina conseguiu salvar Na verdade escolheu salvar É a imagem da outra filha a pequena Alana de seis anos que atormenta a mãe Alana agarrada a sua mão chorando enquanto Zalina saía da Escola Número 1 com Alan nos braços Os guerrilheiros chechenos que mantinham centenas de reféns na escola permitiram a saída de 26 mulheres e crianças Cerca de uma dezena de mulheres como Zalina teve permissão de sair com 23 Cabe lembrar que o suicídio a morte provocada nunca deixou de ser uma escolha haja vista o fato de que alguns prisioneiros dos campos de extermínio preferiram o suicídio à morte planejada que lhes era reservada as teorias éticas 8 109 apenas um filho Poucas vezes uma mãe é obrigada a escolher salvar um filho à custa de deixar outro para trás provavelmente para morrer A tomada e a destruição da escola de Beslan chocaram um país aparentemente acostumado à guerra e seus horrores depois de muitos conflitos étnicos e territoriais que se seguiram ao desmembramento da antiga União Soviética A imagem de crianças em idade escolar cercadas por mulheresbomba de véu e guerrilheiros mascarados apavorou a Rússia Eles pegaram centenas de nossas crianças dizia a enorme manchete do jornal Izvestia E eles pegaram Alana No dia 3 de setembro de 2004 forças de segurança russas tomaram a escola de assalto para tentar resgatar os reféns mantidos sob a mira de armas e de bombas por terroristas que exigiam a saída das tropas russas da Tchetchênia Mais de 1200 pessoas entre crianças pais e professores estavam em seu poder Segundo o balanço oficial publicado após a operação houve 366 mortos Destes 335 eram reféns 156 deles crianças 31 sequestradores além de 17 soldados e funcionários governamentais24 As escolhas de Sofia são dilemas dilacerantes porque impõem uma escolha entre ações indesejáveis situações extremas em que as opções implicam graves concessões em troca de objetivos maiores A despeito do horror que suscitam não deixam de obter o endosso de muitos por seu caráter universalista Uma escolha de Sofia ocorrida em meados de 1999 recebeu grande atenção por parte da mídia norteamericana Tratase de uma mulher de 42 anos de idade que ganhou o direito de ter desligados os aparelhos que a mantinham viva A condição foi a de colaborar com a Justiça do Estado da Flórida nos Estados Unidos que no caso consistia em acusar a própria mãe de homicídio Georgette Smith aceitou o acordo e testemunhou com a justificativa de que não podia mais viver assim A mãe cega de um olho atirou contra a filha depois de saber que seria internada em uma casa de idosos Acertou o pescoço de Georgette com uma bala que rompeu sua espinha dorsal Embora estivesse consciente e conseguisse falar com esforço a filha havia perdido quase todos os movimentos do corpo e vinha sendo alimentada por meio de tubos Após o depoimento a promotores públicos o juiz determinou que os médicos retirassem o respirador artificial e Georgette morreu Há dois fatos singulares que merecem menção aqui uma pessoa consciente apelar para a Justiça e ganhar o direito de não mais viver artificialmente a filha e alguém processado a mãe por ter ferido gravemente a filha numa tentativa desesperada de evitar a própria internação25 Quem deve decidir sobre a vida ou a morte Exclusivamente Deus como pensam muitos adeptos da teoria da convicção ou em certos casos a opção pela morte seria o menor dos males como afirmam outros tantos adeptos da teoria da responsabilidade Neste último caso poderseia justificar o suicídio assistido a eutanásia voluntária e até a aceleração da morte a partir do tratamento paliativo necessário26 24 MURPHY Kim A escolha de Zalina Los Angeles Times publicado por O Estado de S Paulo 4 de setembro de 2004 25 LINS DA SILVA Carlos Eduardo Americana acusa mãe para poder morrer Folha de S Paulo 20 de maio de 1999 26 O suicídio assistido ocorre quando uma pessoa ajuda outra a se matar e é permitido na Suíça até para estrangeiros não residentes desde que o ajudante não seja remunerado nem receba herança O suicídio assistido por médico é quando este receita uma droga letal ao paciente que a toma quando quiser É legal na Bélgica na Holanda e na Suíça e nos Estados americanos de Oregon Washington e Montana A eutanásia voluntária consiste na morte por uma injeção aplicada pelo médico a pedido do paciente e está autorizada por Luxemburgo Bélgica e Holanda desde que para doentes terminais 110 Ética EmprEsarial 8 Na Holanda atual a descriminação da eutanásia vale tanto para pessoas adultas como para crianças com mais de 12 anos Autoriza as crianças portadoras de doenças incuráveis a solicitar uma morte assistida por médicos desde que haja a concordância dos pais Mas os médicos podem passar por cima do veto dos pais se acharem necessário tendo em vista o estado e o sofrimento dos pacientes Anna era doente demais para a vida Nasceu com síndrome de Down e uma malformação do cérebro e da coluna vertebral No lugar do palato havia uma fenda enorme Nem analgésicos potentes conseguiam atenuar a dor de nossa filha relata a mãe Por isso os pais tomaram uma das decisões mais difíceis de sua vida quando a menina tinha apenas quatro semanas de idade Eles pediram que sua filha fosse morta com a ajuda de medicamentos Na Holanda a morte induzida por médicos a eutanásia deixou de ser crime No entanto a lei só se aplica a pacientes terminais adultos e ela exclui crianças menores de 12 anos consideradas incapazes de expressar sua vontade Mas agora tudo indica que a legislação está prestes a permitir também a interrupção da vida de recémnascidos sem esperança de cura para seus padecimentos Anna teria sofrido cerca de 20 intervenções cirúrgicas apenas no primeiro ano de vida diz Eduard Verhagen diretor do departamento de pediatria do Hospital Universitário Groningen na Holanda Vários especialistas avaliaram o estado do bebê e chegaram à conclusão de que as operações não mudariam o péssimo prognóstico Os pais não suportavam a ideia de esperar durante semanas ou mesmo meses até a morte natural chegar Eduard Verhagen pais de três filhos também achou desumano o prolongamento do sofrimento Foi o próprio pediatra que então aplicou em Anna uma dose elevada de morfina e de um calmante enquanto a mãe segurava a menina no colo rodeada pelo pai pelos avós por uma enfermeira e por um sacerdote Demorou apenas poucos minutos até que o coração do bebê deixasse de bater Pela legislação holandesa Eduard Verhagen poderia ser processado por assassinato porque a eutanásia só é livre de punição quando diz respeito a pessoas capazes de optar por ela conscientemente o que não é o caso de um recémnascido No entanto o diretor da pediatria que também estudou direito negociou há dois anos com a promotoria do Estado um acordo prevendo a aplicação de um protocolo com critérios rígidos para a eutanásia em outras situações que não as previstas em lei O chamado Protocolo de Groningen tem alta aprovação entre os pediatras Todos os oito hospitais universitários holandeses aderiram a ele O protocolo prevê cinco critérios para a eutanásia em crianças Primeiro o sofrimento é muito grave Segundo a sobrevivência é impossível por muito tempo Terceiro a chance de cura ou melhora da doença por meio de medicamentos ou cirurgias é inexistente Quarto os pais concordam com o diagnóstico e um médico independente reavalia o caso e chega à mesma conclusão Por último depois da morte da criança os pais recebem acompanhamento psicológico Felizmente as situações em que se aplica a eutanásia por esses critérios são raríssimas sendo que elas se apresentam muito mais como um dilema ético do que como um enigma médico A ideia de definir um protocolo da eutanásia neonatal acompanha Eduard Verhagen há anos desde a ocasião em que ele não teve coragem de pôr fim ao sofrimento de um bebê cujos pais imploravam para que ele abreviasse a sua tenra e desumana existência A criança nascera com uma forma severa de epidermólise congênita má formação da pele sem cura Ao ser tocada a pele se esfolava até que o corpo inteiro estivesse em carne viva O bebê tomava morfina constantemente Formavamse cicatrizes tão grandes que em questão de semanas as articulações do bebê foram imobilizadas Quase todos os pacientes que sobrevivem a esse martírio desenvolvem mais cedo ou mais tarde um câncer agressivo de pele A criança que emocionou Verhagen morreu aos 6 meses em casa de pneumonia as teorias éticas 8 111 O pequeno paciente sofreu tempo demais ou a experiência das dores faz parte daquela zona miserável da condição humana Pais e médicos respondem a essa pergunta de acordo com a sua formação cultural e religiosa Uma pesquisa europeia mostra que metade dos pediatras italianos tentaria reanimar um prematuro até em casos extremos mesmo que houvesse riscos enormes de ele se tornar um deficiente mental grave Na Suíça ou na Holanda menos de 5 dos médicos declararam fazer a mesma coisa que seus colegas italianos27 O embate entre dois modos eticamente orientados de tomar decisão fica claro o médico pediatra que anteriormente havia obedecido à teoria da convicção a convicção de que a vida é sagrada e está acima de quaisquer outros valores converteuse num ativista da teoria da responsabilidade a realização do bem possível com os meios disponíveis quer dizer intervir e responder pelas consequências caso for viável evitar um sofrimento que a ciência diagnostica como inútil Uma situaçãolimite foi vivida por Herbert de Souza hemofílico e contaminado pelo vírus da Aids em uma transfusão de sangue Em 1990 diante de uma grave crise de sobrevivência da organização não governamental que dirigia a Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids Abia Herbert de Souza Betinho fez apelo a um amigo que era membro da entidade Desse apelo resultou uma contribuição de US40 mil feita por um bicheiro O dinheiro destinavase à compra de kits que permitissem detectar a presença do vírus da Aids no sangue a ser transfundido Para Betinho tratavase de enfrentar uma epidemia que atingia o Brasil um flagelo que matava seus amigos seus irmãos e tantos outros que não tinham condição de saber do que morriam Considerou legítimo o meio avaliando a situação como de extrema necessidade O caso vazou para a mídia anos depois e deflagrou uma celeuma nacional o santo tinha pés de barro Vozes se ergueram condenando a falta de escrúpulo de Betinho ao aceitar dinheiro sujo dos contraventores afrontou a moral da integridade que a teoria ética da convicção inspira Em seu apoio acorreram muitos intelectuais um dos quais reconheceu que as vidas salvas mereciam o pequeno sacrifício da moral teoria ética da responsabilidade vertente da finalidade Com efeito o que fez Betinho Tomou partido diante de um quadro em que vidas se encontravam entregues ao descaso e ao mais cruel abandono No fim da Segunda Guerra Mundial um oficial alemão foi morto por guerrilheiros italianos na Itália Setentrional O comandante das tropas ordenou a seus soldados que prendessem 20 civis em uma aldeia vizinha Trazidos à sua presença mandou executálos Antes do fuzilamento um dos soldados piedoso e comprometido com os valores cristãos assinalou ao comandante que havia desproporção entre um único oficial morto e 20 civis O comandante refletiu e disse ao soldado está bem escolha um deles e fuzileo Por razões de consciência o soldado não ousou escolher Logo depois aqueles 20 civis foram fuzilados Mais de 50 anos mais tarde este homem ainda sofria com a decisão que tomou embora ela o eximisse de qualquer culpa Mas se tivesse tido a coragem de escolher e tivesse assumido o terrível fardo de ter matado um dos infelizes 19 inocentes não teriam perdido a vida28 27 WÜSTHOF Roberto A terrível escolha Veja 16 de março de 2005 28 LEISINGER Klaus M SCHMITT Karin Ética empresarial responsabilidade global e gerenciamento moderno Petrópolis Vozes 2001 p 120 112 Ética EmprEsarial 8 O soldado alemão obedeceu à teoria ética da convicção que como já vimos antes confere conforto quanto às decisões tomadas sob sua égide O que diria a teoria ética da res ponsabilidade Mais vale matar um e poupar a vida dos outros 19 ainda que o soldado tivesse de carregar a pecha de ter cometido um assassinato por não fazer parte de um pelotão de fuzilamento Ao invés de cometer um mal necessário para obter um bem maior a omissão do soldado correspondeu à opção de quem se exime das consequências ao não interferir saiu de cena deixou de ser agente entregou os prisioneiros à sua sorte Durante a Primeira Guerra Mundial um soldado alemão desgarrouse de sua patrulha e caiu em uma vala cheia de gás letal Ao aspirar o gás começou a soltar baba branca Em pânico seus camaradas o viam sofrer Um deles então gritou atire nele Ninguém se atreveu O oficial apontou a pistola embora não conseguisse puxar o gatilho Logo desistiu Deu então ordem ao sargento para matar o infeliz Este aturdido hesitou Mas finalmente atirou Decisão dramática a exemplo dos animais que irrecuperavelmente feridos são sacrifica dos pelos próprios donos Com qual fundamento O de dar cabo a um sofrimento insano e inútil A intervenção se impõe ainda que à custa da perda do animal Dos males o menor sem dúvida na clara acepção da vertente da finalidade da teoria da responsabilidade Vejamos agora como são tomadas as decisões em ambas as teorias OS DOIS MODOS DE TOMAR DECISÃO A ética da convicção move os agentes pelo senso do dever e exacerba o cumprimento das prescrições Eis algumas ilustrações como mãe preciso cuidar dos meus filhos e dedicarme à família como católico tenho de obedecer aos dogmas da Igreja e à sua hierarquia como cidadão devo amar a minha pátria e defendêla se for agredida como empregado é meu dever vestir a camisa da empresa como motorista sou obrigado a cum prir as regras do trânsito como aluno cabeme respeitar os professores e seguir as normas da escola como marquei um compromisso não posso me atrasar e assim por diante Imperativos de consciência guiam estritamente os comportamentos Mas quais são as fontes das convicções Revelações divinas sagradas escrituras ensinamentos de pastores ou dos mais velhos tradições imemoriais crenças arraigadas ideais ideológicos credos organizacionais conselhos de familiares ou de professores exemplos de amigos Em suma certezas que não exigem explicações preceitos que pessoas respeitadas avalizam Todavia vale ressaltar que não são deveres impostos como ocorre nas obrigações legais mas deveres consentidos já que decorrem de adesão voluntária E mais ainda cabe aqui extremo cuidado pois se essas prescrições forem particularistas cumpre ao agente insurgirse contra elas para não se acumpliciar Numa comparação pontual o que diria quem se orienta pela ética da responsabili dade Como marquei um compromisso vale a pena não me atrasar caso contrário vou prejudicar a firma que me emprega e posso afetar minha carreira como aluno é razoável não perturbar as aulas concentrarme nos estudos e respeitar as regras vigentes caso contrário atrapalharei os colegas e por extensão terei problemas como motorista é de interesse meu e dos demais motoristas que as regras de trânsito sejam obedecidas para evitar acidentes não correr riscos de morte e permitir que todos possam circular em paz como empregado é importante me empenhar para não atrapalhar o trabalho dos outros comprometer os resultados da firma colocar em xeque minha promoção ou provocar minha demissão como cidadão faz sentido servir o país em que vivo principalmente as teorias éticas 8 113 se for invadido como católico é válido respeitar as orientações do clero para promover a glória de Deus e salvar a minha alma e a dos demais fiéis como mãe é sensato não descuidar dos meus familiares porque isso lhes traz bemestar e me torna feliz Fins ou análises de consequências moldam e conduzem à tomada de decisão Em vez de agir simplesmente porque o agente deve precisa sentese compelido ou tem o dever de fazer alguma coisa ele acha importante útil sensato válido benéfico vantajo so inteligente fazer o que for necessário Assim não são obrigações que impulsionam os movimentos dos agentes sociais mas resultados pretendidos ou previsíveis E novamente aqui cabe passar previamente cada uma das ações pelo crivo do binômio classificatório particularismo versus universalismo Na teoria da responsabilidade assumemse riscos calculados agese com prudência e ao abrigo de uma série de precauções porque diferentemente da teoria da convicção que opera com categorias binárias administramse incertezas Bom exemplo é o dos remédios que são comercializados após exaustivas pesquisas e testes mas que exigem prescrição precisa e dosagem certa Com qual propósito Reduzir a ocorrência de danos colaterais e assegurar as maiores probabilidades de cura do doente Mesmo assim os remédios não estão isentos de efeitos imprevistos Outro bom exemplo é o dos empréstimos bancários só se viabilizam após uma análise acurada e uma apresentação de sólidas garantias por parte do tomador Para quê Reduzir os riscos e aumentar as chances de adimplência Mesmo assim a inadimplência não é descartável Ou ainda o exemplo das ultrapassagens nas rodovias se não forem seguras é suicídio o que significa a observar a sinalização horizontal se houver a dupla faixa amarela não se faz a manobra em função de condições presumivelmente inadequadas b certificarse de que não há outros carros vindo em dire ção contrária c analisar o tamanho e a velocidade do veículo a ser ultrapassado d sinalizar para que quem vem atrás saiba que faremos a manobra e finalmente e acelerar de forma adequada Mesmo assim um buraco ou uma pedra mais adiante podem ocasionar a perda do controle do veículo São as incertezas com as quais lida a teoria da responsabilidade Agora vamos ver como se configura o processo decisório na teoria ética da convicção Ele obedece a quatro etapas 1 Formulação do problema questão a resolver 2 Aplicação de convicções universalistas chave do processo 3 Identificação dos meios opcionais com a adoção de soluções puras29 4 Tomada de decisão que se conforma a deveres reconhecidos Em outras palavras em face de um problema que exige posicionamento fazse um exame de consciência e tomamse decisões que correspondem a convicções universalis tas previamente estabelecidas Na vertente de princípio da teoria as ações são guiadas por princípios quer dizer os dilemas são resolvidos à luz de ditames morais ou de preceitos com base em normas ou padrões universalistas de conduta moral Na vertente da esperança da teoria as ações são guiadas por ideais quer dizer as situações reais são enfrentadas à luz de uma causa nobre ou da aspiração à perfeição com base em valores culturais ou orientações de base de caráter universalista No caso da Sofia do romance ao contrário do que aconteceu o processo teria sido assim Primeira etapa questão a resolver Escolher ou não uma das crianças Segunda etapa qual convicção poderia nortear os passos em função de seu caráter universalista Resposta a vida humana é inegociável 29 Escreveu Albert Camus de forma bastante incisiva Não são os fins que justificam os meios mas os meios que justificam os fins 114 Ética EmprEsarial 8 Terceira etapa quais meios estavam disponíveis nessa situação extrema Dois meios se apresentavam recusarse a escolher e neste caso provavelmente as duas crianças iriam morrer ou exigir altivamente que as duas vivam ou que ninguém viva ela incluída o que corresponde na prática a não escolher Quarta etapa qual decisão tomar Definitivamente não escolher Em contrapartida o processo decisório da teoria ética da responsabilidade se divide em sete etapas Elas são 1 Formulação do problema questão a resolver 2 Análise das circunstâncias ou seja estudo do contexto histórico e avaliação dos fatores condicionantes do evento 3 Definição dos fins ou dos objetivos universalistas chave do processo 4 Identificação dos meios opcionais com a adoção de soluções seguras e eficazes 5 Análise da relação custobenefício em busca da eficiência 6 Análise de riscos com a competente ponderação dos fatores 7 Tomada de decisão com a adoção de salvaguardas para prevenir imperícias ou injustiças e escolha do melhor cenário universalista Posteriormente no processo de implantação cabe ainda avaliar a efetividade da decisão porque a as consequências reais ocorrem num ambiente de incertezas b a legitimidade ética depende dos resultados positivos ou da eficácia das salvaguardas que forem aco lhidas30 No caso de Sofia Primeira etapa o problema consistia em escolher uma das duas crianças se quisesse salvar uma delas Segunda etapa a análise das circunstâncias permite verificar que a as duas crianças tinham fortes possibilidades de serem mortas foram arrancadas dos braços de Sofia b o oficial alemão se interessou por ela e lhe ofereceu a oportunidade de salvar uma das duas crianças Terceira etapa a definição dos fins conclui que salvar a vida de uma criança é um fim universalista Quarta etapa a identificação dos meios indica que a escolha embora dolorosa é factível pois corresponde a um mal menor diante do mal maior que seria a morte das duas crianças Quinta etapa na análise da relação custobenefício se Sofia cumprir a vontade do oficial uma criança morre perda e a outra vive ganho Sexta etapa na análise dos riscos incorridos o guarda já levou as duas crianças e se mantiver a palavra Sofia arcará com as consequências da escolha feita em compensação terá salvo uma criança da morte Sétima etapa na tomada de decisão Sofia sacrifica a filha para salvar o filho Resta ainda a efetivação do acordo que abriga incertezas Qual foi a ação O oficial leva a menina e lhe devolve o menino Quais foram as consequências reais O filho foi salvo mas morre mais tarde no campo de concentração e Sofia vive torturada com a decisão 30 Por exemplo a invasão do Iraque em 2003 por decisão do governo norteamericano de George W Bush ignorando as resoluções do Conselho de Segurança da ONU só poderia obter legitimidade ética se as razões alegadas fossem comprovadas isto é se tivessem sido descobertas as armas de destruição em massa Caso isso tivesse ocorrido Bush teria passado para a história como um herói da humanidade No entanto como a ameaça mortal não foi corroborada o governo americano perdeu a autoridade moral e a guerra se transformou em areia movediça as teorias éticas 8 115 que tomou O que conferiu então legitimidade ética à decisão Naquelas circunstâncias era o menor dos males Fica evidente que tomar decisões orientadas pela teoria ética da responsabilidade é uma dura tarefa requer empenho e redobrada atenção além de esconder uma terrível armadilha a de confundir fins universalistas com casuísmos particularistas Esta con fusão pode resultar de uma análise deficiente fruto do autoengano ou pior da máfé Nessas condições correse o risco de cometer ações abusivas que simulam os argumentos da teoria da responsabilidade Caise então na racionalização antiética malandragem que acomete os oportunistas dos mais diferentes jaezes O mesmo raciocínio aliás se aplica à teoria da convicção quando deveres particularistas são confundidos ingênua ou deliberadamente com deveres universalistas Vejamos o caso da queima da palha de canadeaçúcar Ao lado de ecologistas que defendem o meio ambiente por uma questão de princípio e em nome das gerações futuras uma vez que as queimadas emitem gases do efeito estufa empobrecem o solo e matam animais silvestres teoria da convicção existem ecologistas de orientação utilitarista teoria da responsabilidade para quem a fumaça das queimadas deixa no ar um mar de fuligem que afeta a saúde da população e agride a camada de ozônio Não traz pois o máximo de bem ao maior número além de favorecer economicamente apenas uma minoria plantadores e boiasfrias As duas teorias aqui confluem para a mesma posição Para muitos empresários no entanto a queimada aumenta a produtividade garante baixo custo de produção torna desnecessários os investimentos para uma colheita mecanizada as colheitadeiras são caras e gera efeitos multiplicadores sobre a economia Os cortadores de cana por sua vez dizem que a queimada afugenta cobras e aranhas limpa a plantação facilita o corte de modo que permite uma produção de nove toneladas ao dia e assim assegura melhor remuneração porque sem ela um cortador produziria apenas seis toneladas e ganharia um terço a menos Alegam que a alternativa disponível implica o uso de colheitadeiras o que reduziria drasticamente a força de trabalho gerando desemprego Portanto ao beneficiar uma significativa categoria profissional no campo além de seus empregadores os fins são bons Esses últimos argumentos parecem inspirados pela vertente da finalidade da teoria da res ponsabilidade Nada mais enganoso pois a quem interessa o corte manual da canadeaçúcar e as queimadas A alguns grupos não à humanidade como um todo nem às gerações futu ras para quem a preservação do planeta é vital Enquanto alguns empresários e cortadores de cana olham para seus interesses específicos ecologistas olham para os interesses gerais enquanto uns pensam em termos de bem particularista parcialismo outros pensam em termos de bem comum altruísmo imparcial embora alguns interesses sejam sacrificados a exemplo das desapropriações indispensáveis para a construção de equipamentos públicos A questão da queimada porém acabou superada pelos imperativos da competição internacional e pelas pressões políticas em prol de um meio ambiente sustentável Aos poucos a mecanização da colheita da canadeaçúcar vem ganhando primazia com o beneplácito de empresários do agronegócio interessados em obter o selo ambiental que facilita a comercialização do etanol e o consumo do açúcar A mistificação particularista porém gerou polêmicas durante longo tempo sustentou disputas e atrasou a introdução de técnicas mais avançadas de produção que entre outras vantagens não dilapidam os recursos naturais Apliquemos agora de forma sistemática as teorias a situações concretas 117 9 O contraponto ético Difícil não é fazer o que é certo é descobrir o que é certo fazer APLICAÇÕES CORRENTES Na leitura de Weber a teoria ética da responsabilidade expressa de forma típica a vocação do homem político à medida que cabe a alguém se opor ao mal pela força se não quiser ser responsável pelo seu triunfo Isso implica dizer que há um preço a pagar para alcançar benefícios públicos Eis algumas ilustrações de decisões tomadas à luz dessa teoria no bojo de delicadas polêmicas éticas Em geral estas polêmicas são deflagradas pelos adeptos da teoria da convicção cuja hegemonia retórica é inconteste mas curiosamente são também instigadas por interpretações particularistas que lançam o descrédito nas decisões responsáveis Começaremos com a vertente da finalidade a mais controversa que consiste em es colher o mal menor para evitar um mal maior Escolher um paciente entre outros a partir de critérios explícitos para ocupar a única vaga disponível na UTI cientes de que os demais podem morrer mal menor ante a real possibilidade de que todos os pacientes que aguardam uma vaga venham a morrer mal maior Implantar o rodízio de veículos que restringe a circulação para melhorar o trânsito malgrado o transtorno ocasionado aos motoristas mal menor com o propósito de aliviar a enormidade dos congestionamentos e reduzir a poluição nas cidades mal maior Triar feridos em hospitais de campanha em função da escassez de recursos humanos e materiais e sobretudo em função da urgência do atendimento no intuito de salvar o maior número possível de soldados sabendo que os demais podem morrer mal menor sem o que mais feridos morreriam mal maior Demitir funcionários para aliviar custos e tentar reequilibrar as finanças de empresa em situação crítica cientes de que passarão por dificuldades mal menor sem o que uma falência provocaria a perda de todos os postos de trabalho e prejudicaria os demais públicos de interesse da empresa a começar pela cadeia de fornecedores e prestadores de serviços mal maior Dar preferência ao atendimento de idosos gestantes portadores de deficiência e mulheres com crianças de colo ainda que se desrespeite a ordem de chegada mal menor sob risco de aumentar as dificuldades e os desgastes físicos que essas pessoas sofrem em longas filas mal maior Negar na mídia a iminente desvalorização da moeda ação de autoridade ministerial mentira que pode ser desmascarada no dia seguinte quando da decretação de um pacote econômico mal menor no intuito de evitar especulações ao mercado lesivas ao bem comum mal maior 118 Ética EmprEsarial 9 Usar a pílula do dia seguinte que dificulta a fecundação ainda que haja contraindicações e efeitos colaterais mal menor em face da concepção de uma criança indesejada mal maior Escolher o paciente que terá o fígado transplantado por critérios médicos e não pela ordem de inscrição no programa de transplante mal menor para reduzir o quadro de falecimentos dos pacientes inscritos mal maior Para os adeptos da teoria ética da convicção tais decisões são aberrantes porque privi legiam alguns em detrimento de muitos ou ao escolher fazer o mal comprometem o bem que se quer É também na escolha de menor número que reside o risco dos abusos particularistas Com efeito sem critérios definidos objetivos transparentes e consensuais a vertente da finalidade pode ser facilmente desvirtuada Pensemos apenas no exemplo de médicos de plantão na UTI dando preferência a parentes em detrimento de jovens em melhores condições de aproveitar o único leito disponível Daremos agora exemplos da vertente utilitarista que em decorrência do princípio de fazer o máximo de bem para o maior número consiste em cometer o mal necessário para obter o bem maior Repassar dados de usuários ação dos provedores de internet aos órgãos competentes para que investiguem o terrorismo ou o crime organizado embora essa providência invada a privacidade dos internautas mal necessário com o objetivo de obter informações valiosas para prevenir graves ameaças ao bem comum bem maior Colocar flúor na água potável ainda que o processo não esteja imune a erros de dosagem e haja o risco de fluorose mal necessário para prevenir e reduzir a incidência de cáries dentárias na população bem maior Instituir a delação premiada com abrandamento da pena mal necessário para desvendar esquemas criminosos e seus participantes bem maior Adicionar iodo no sal sendo que o excesso desse elemento pode causar tireoidite autoimune mal necessário com o propósito de impedir doenças como o bócio papo em adultos o cretinismo em crianças e o hipotireoidismo que causa fadiga crônica e deficiências no desenvolvimento neurológico bem maior Utilizar agrotóxicos e pesticidas na agricultura cientes de seus impactos negativos sobre a saúde da população e sobre o meio ambiente mal necessário até que surjam tecnologias que permitam produzir alimentos em larga escala e que controlem as pragas bem maior Submeterse à aplicação repetida de raios X cuja radiação nociva é conhecida mal necessário sem o que seria impossível fazer um diagnóstico acurado das fraturas dos tumores do câncer e de doenças ósseas Colocar conservantes nos alimentos enlatados apesar de seus efeitos nocivos mal necessário com o propósito de preservar os alimentos contra a deterioração no transporte e no armazenamento bem maior Abater reses infectadas pela doença da vaca louca e eliminar aves contaminadas pela gripe aviária assumindo os prejuízos decorrentes mal necessário no intuito de conter as epidemias bem maior Usar fotocopiadoras apesar da nocividade dos raios laser e do negro de fumo do toner mal necessário para conferir rapidez e eficiência aos processos administrativos bem maior Construir hidrelétricas que inundam áreas deslocam moradores afetam a fauna e a flora mal necessário para gerar energia limpa bem maior O contraponto ético 9 119 Usar reatores nucleares para gerar energia elétrica apesar do lixo nuclear do risco de contaminação radioativa e dos acidentes mal necessário1 a fim de obter energia sem emitir gases de efeito estufa vindos dos combustíveis fósseis e do carvão e sem provocar chuva ácida ou destruição da camada de ozônio bem maior Aplicar a energia nuclear em diagnóstico e tratamento de inúmeras doenças medicina irradiar alimentos para conservar alimentos e produzir sementes agricultura verificar a qualidade de equipamentos e esterilizar materiais médicos e cirúrgicos indústria monitorar poluentes e identificar recursos aquíferos meio ambiente apesar dos riscos reais de contaminação mal necessário no intuito de alcançar ganhos de eficiência e produtividade bem maior Implantar o planejamento familiar com o uso de anticoncepcionais apesar de seus efeitos colaterais e da oposição de muitos grupos religiosos mal necessário a fim de permitir que casais tenham quantos filhos desejarem à luz das condições de que dispõem para cuidar deles adequadamente bem maior Tornar obrigatório o uso dos cintos de segurança e dos airbags apesar do aumento dos custos dos veículos mal necessário a fim de reduzir o número de feridos e de mortos em acidentes sofridos por motoristas e passageiros bem maior Amputar membros gangrenados ou extirpar apêndices amígdalas tumores malignos de pele ou órgãos atacados pelo câncer mal necessário para salvar vidas bem maior Adotar políticas públicas compensatórias em que agentes sociais recebam tratamentos diferenciados mulheres grávidas idosos crianças abandonadas ou de rua portadores de deficiências físicas aidéticos desempregados inválidos dependentes de drogas flagelados etc fazendo com que desiguais sejam tratados desigualmente mal necessário com o propósito de assistilos em situações emergenciais e garantirlhes a sobrevivência bem maior Tais decisões levantam menos celeumas hoje em dia embora também as suscitem à medida que beneficiam o maior número possível de pessoas Mesmo assim alguns argumentam que ou todos se beneficiam ou ninguém se beneficia De fato ao invés do contraponto tudo ou nada que a teoria ética da convicção preconiza a teoria ética da responsabilidade opera nos limites do que seja objetivamente possível fazer É interessante verificar que muitas situações podem ser enquadradas em ambas as vertentes da teoria da responsabilidade tanto a da finalidade como a utilitarista A saber Usar remédios apesar dos efeitos colaterais e das reações adversas mal menor ou mal necessário com o propósito de evitar o agravamento de doença mal maior ou de curarse de doença bem maior Vacinar em massa a população contra doenças infecciosas ou contagiosas2 a despeito das resistências3 e dos efeitos colaterais em pessoas alérgicas mal menor ou mal necessário com o propósito de prevenir a contaminação da população e os surtos epidêmicos mal maior ou a fim de manter a população saudável bem maior 1 Tais como os de Three Mile Island Estados Unidos 1979 Chernobyl Ucrânia 1986 e Fukushima 2011 Em contrapartida empenharse diuturnamente em prevenir tais acidentes com medidas de proteção e em projetar usinas nucleares bem mais seguras 2 Varíola febre amarela poliomielite difteria tétano coqueluche sarampo tuberculose caxumba rubéola hepatite B etc 3 Em 1904 a obrigatoriedade da vacina antivariólica no Rio de Janeiro deflagrou uma grande reação popular e serviu de pretexto para um levante da Escola Militar que pretendia depor o presidente Rodrigues Alves A chamada Revolta da Vacina foi sufocada pela polícia com 30 mortos 110 feridos e a deportação para o Acre de 461 revoltosos Entre os oponentes destacase Rui Barbosa que disse ser uma violência introduzir no sangue um vírus condutor da morte e que o Estado não pode impor o suicídio aos inocentes 120 Ética EmprEsarial 9 Praticar sem violência o furto famélico em estado de necessidade matar a fome embora tal ato fira o direito de propriedade mal menor ou mal necessário com o propósito de evitar risco de morte mal maior ou salvar vidas bem maior Submeterse a cirurgia invasiva quando não houver outro procedimento possível apesar dos riscos da anestesia e das infecções hospitalares mal menor ou mal necessário com o fim de resguardarse contra graves complicações ou contra o risco de morte mal maior ou com o intuito de se recuperar bem maior Derrubar aviões intrusos e suspeitos que entram no espaço aéreo e se recusam a aterrissar embora haja perda de vidas mal menor ou mal necessário diante dos riscos de ataque terrorista ou de contrabando de drogas e armas mal maior ou com o objetivo de garantir a segurança do país bem maior Inúmeras questões éticas ainda permanecem em debate e mesmo quando alguns países se posicionam favoravelmente a respeito as críticas e os protestos persistem Podem ser citados entre outros os casos da união civil entre homossexuais a legalização do aborto a eutanásia a abolição da pena de morte a delação premiada as sementes geneticamente modificadas as pesquisas com célulastronco embrionárias a clonagem terapêutica a identificação de doenças tardias em crianças por meio da análise do DNA a ortotanásia ou o direito de o paciente morrer naturalmente sem indução com desligamento dos aparelhos a proibição do fumo em locais fechados a tolerância zero na ingestão de bebidas alcoólicas por motoristas a descriminalização do consumo de drogas e até mesmo sua legalização etc Assim ao se adotar a teoria da responsabilidade realizamse análises de risco ma peiamse circunstâncias sopesamse forças em jogo perseguemse objetivos consensuais e medemse as consequências das decisões que serão tomadas Em termos práticos a teoria confere legitimidade à realização de interesses universalistas e depende da mobilização de apoios políticos para enfrentar as celeumas suscitadas Prognostica os efeitos das decisões e os aprecia em termos dos riscos envolvidos serão eles mais benéficos ou mais nocivos à população Os ganhos superarão os malefícios eventuais e compensarão os custos Por exemplo discutese muito hoje em dia a validade da circulação dos automóveis em cidades congestionadas e irrespiráveis Ora quantos motoristas se propõem a abrir mão de seus veículos Está próximo o dia todavia em que os custos ambientais e sociais serão maiores do que a mobilidade individual inviabilizada aliás pelos engarrafamentos permanentes Medidas drásticas serão adotadas provavelmente para preservar o bem comum não só em termos de substituição dos combustíveis fósseis por energias limpas mas pela cobrança de pedágio ou até pela interdição do transporte individual em algumas áreas urbanas Em resumo a teoria da responsabilidade orientase pelo reconhecimento de que certos males são necessários para alcançar o bem maior ou que é preciso realizar alguns sacrifícios para evitar um mal maior Dito em outros termos em circunstâncias muito precisas e sob a égide da racionalidade universalista determinados fins justificam os meios utilizados não todos mas muitos deles E isso a despeito de a expressão os fins justificam os meios ter sido demonizada Pois a crítica só se sustenta se os fins forem particularistas Nesse sentido a postura realista e pragmática da teoria da res ponsabilidade se opõe à postura idealista e purista da teoria da convicção para a qual quem comete algum mal compromete o bem que se quer Afinal de contas há males que vêm para o bem Para isso basta um exemplo trivial a dor não é um mal útil ao servir de alerta e ao induzir o agente a tomar uma atitude De fato a teoria ética da convicção é uma teoria do dever do absoluto em que prin cípios ou ideais funcionam como obrigações unívocas imperativos incondicionais que O contraponto ético 9 121 não derivam como na teoria da responsabilidade de deliberações norteadas pelos resultados presumidos Seus preceitos formam um sistema codificado de virtudes definidas a priori e aceitas independentemente de qualquer experiência concreta Mais ainda determinam um leque de exigências que abstraem ou desconsideram tanto as circunstâncias quanto os efeitos das ações de modo que somente a obediência às normas morais ou a transposição dos valores em prática legitima as ações e demarca a linha divisória que separa os virtuosos dos pecadores Como conclusão diremos que bastam a si mesmas na plenitude de sua verdade4 Por exemplo o militante imolase em nome do ideal anarquista se necessário for sa crificase para chegar à sociedade comunitária aqui e agora porque a revolução social exige a entrega total de seus filhos vertente da esperança da teoria da convicção5 Ou tros ativistas como os ambientalistas do Greenpeace dedicamse com extraordinário denodo a causas como a defesa da floresta amazônica o combate à produção de alimentos transgênicos a rejeição do uso da energia nuclear a proteção de espécies ameaçadas de extinção etc6 O risco está em que as certezas absolutas ou os ideais absolutos pontificam acima do bem e do mal e para se efetivar descambam em violência sem freios Vejamos o caso exemplar de um homem de princípios que nunca vacilou e que per maneceu inquebrantável diante das piores ameaças Condenado à morte pela Assembleia Popular ateniense ekklesia Sócrates não se curvou nem fez concessões Os ditames de sua consciência o levaram a não aceitar culpa nas acusações que lhe fizeram e que consistiam em não reconhecer os deuses do Estado introduzir novas divindades e corromper a juventude Apesar da praxe de poder fixar a própria pena após o veredicto rejeitou a ideia do exílio ou do pagamento de multa Preferiu a morte para não abdicar de suas convicções ou trair sua consciência e mesmo quando instado por seus amigos a fugir mantevese irredutível para não desrespeitar a lei A única coisa que importa disse Sócrates é viver honestamente sem cometer injustiças nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida Bebeu a cicuta sublinhando a dupla fidelidade que o animava a fidelidade a si mesmo e aos compromissos assumidos7 Na teoria da convicção à moda de Immanuel Kant sendo a veracidade um dever absoluto não se admite mentir em circunstância alguma Imaginemos um homem que estivesse escondendo um amigo na própria casa porque perseguido Ele não deveria mentir aos dois malfeitores que procuram o refugiado ainda que isso viesse a custar a 4 Escreve Max Weber O partidário da ética da convicção não se sentirá responsável senão pela necessidade de velar sobre a chama da pura doutrina a fim de que ela não se extinga velar por exemplo sobre a chama que anima o protesto contra a injustiça social Seus atos só podem e devem ter um valor exemplar mas que considerados do ponto de vista do objetivo eventual são totalmente irracionais só podem ter um único fim reanimar perpetuamente a chama de sua convicção WEBER Max Op cit p 173 5 Lembremos que os anarquistas são libertários e antiestatistas favoráveis à radicalização da democracia e se opõem de forma antagônica aos comunistas e aos fascistas embora sejam como esses últimos anticapitalistas Ver do autor os capítulos referentes às ideologias políticas e econômicas em Poder cultura e ética op cit 6 Ações de repercussão mundial foram as missões que seu navio realizou visando impedir a caça de baleias em botes infláveis seus militantes se colocavam entre o arpão e as baleias dependuravamse nos animais arpoados para que eles não fossem puxados para bordo ou mergulhavam no mar para bloquear o caminho dos caçadores 7 PESSANHA José Américo Motta consultoria Vida e obra In Sócrates Os Pensadores São Paulo Editora Nova Cultural 1999 pp 530 122 Ética EmprEsarial 9 vida ao amigo pois é melhor faltar com a prudência do que faltar com seu dever nem que seja para salvar um inocente ou a si mesmo8 Nesse preciso exemplo e de forma diametralmente oposta a teoria da responsa bilidade rotula a mentira como necessária em certas circunstâncias abrindo espaço para o florescimento de um vasto leque de mentiras úteis das piedosas às inocentes das solidárias às cívicas porque indispensáveis para preservar ou alcançar o bem universalista No caso apontado por Kant a mentira solidária evitaria que um inocente fosse maltratado ou morto ainda que o anfitrião corresse alguns riscos Outro exemplo esclarecedor é o de um ministro da Fazenda entrevistado na véspera do lançamento de um pacote econômico deveria ele corroborar os boatos que circulam na praça a respeito de iminente ação governamental e ensejar a oportunidade a operadores de mercado lucrarem a expensas da população ou deveria rechaçálos com veemência como es peculações a serviço de interesses escusos9 Agora para fustigar a dúvida de que ninguém hoje em dia adotaria as prescrições de Kant basta citar o caso verdadeiro do programa Twenty One que o filme Quiz Show dirigido por Robert Redford retrata Um professor universitário de literatura da Columbia University de Nova York Charles van Doren pertencente a uma família tradicional de intelectuais a mãe era escritora e o pai professor da Universidade Columbia confessou uma tramoia diante de uma subcomissão de investigação do Congresso De fato recebia com antecedência as perguntas e ensaiava as respostas com os produtores de um programa de televisão cujos chamariz e encanto eram os testes de conhecimento que os candidatos enfrentavam Toda semana os prêmios e as dificuldades cresciam mantendo a audiência em estado de excitação O jovem professor não era o único candidato a aderir à trapaça como se soube logo depois Pressionado por um promotor igualmente jovem e formado em Harvard o professor não resistiu às cobranças da própria consciência moral Incapaz de conviver com a mentira e o engodo decidiu tudo revelar em um tributo pago à inteireza apregoada pela teoria ética da convicção Isso destruiu sua carreira profissional perdeu o programa que mantinha na rede de televisão NBC e no qual ganhava US50 mil por ano foi demitido de sua cadeira de docente na universidade e acabou discriminado e execrado por muitos Os produtores do programa também sofreram dificuldades enquanto a rede NBC safouse de consequências negativas Uma pergunta então reponta embora haja cidadãos cuja consciência moral se sobrepõe aos próprios interesses o que diria a teoria da responsabilidade a esse respeito Ela diria que a astúcia e a falta de escrúpulos tanto dos produtores do programa como do jovem professor e dos demais candidatos que se prestaram à fraude não se justificam do ponto de vista ético E por quê Porque a fraude beneficiava algumas pessoas em detrimento de milhões de pessoas iludidas manipuladas e logradas Prevaleceu entre aqueles o parcialismo e não o consenso universalista que ambas as teorias éticas exigem Fique claro então que a teoria da responsabilidade não é um valetudo nem faz tábua rasa dos valores universalistas Só que os agentes em vez de tomar decisões exclusivamente em função dos valores que os iluminam como na teoria da convicção tomam decisões 8 COMTESPONVILLE André Pequeno tratado das grandes virtudes op cit p 37 9 O fato ocorreu no governo Sarney e envolveu o ministro Mailson da Nóbrega antes do lançamento do Plano Verão em 1989 O contraponto ético 9 123 em função das consequências que irão produzir sobre os demais agentes sem deixar de respeitar valores ou de se nortear pelo bem universalista Imaginemos contudo como a teoria da responsabilidade abordaria a questão sus citada por Kant Primeira etapa qual é o problema Dois marginais querem saber onde está meu amigo Segunda etapa quais as circunstâncias Acolhi meu amigo porque pode ser agredido ou morto Terceira etapa quais os fins Faz sentido não deixar que meu amigo seja atacado é um fim universalista Quarta etapa quais os meios disponíveis Vou mentir para despistar os marginais e dar tempo a meu amigo para chamar a polícia Quinta etapa qual é a relação custobenefício Embora eu possa ser agredido vale a pena arriscar Sexta etapa quais os riscos incorridos Se eu ganhar algum tempo com uma boa mentira a polícia talvez chegue mas é bem possível que eu vá sofrer na mão dos marginais Sétima etapa qual é a decisão Minto com fervor dando indicações plausíveis sobre o caminho que meu amigo pode ter seguido Consequências reais os marginais me forçam a acompanhálos na direção que indiquei me ameaçam de início e depois me machucam ao verificar que não há traço de meu amigo Justificação final respondo pelas consequências do abrigo que dei e da mentira que contei Vejamos agora uma situação polêmica Segundo a lógica da teoria da responsabilidade o uso de cobaias animais é válido de forma controlada e sob condição de minimizar ao extremo quaisquer sofrimentos infligidos Em nome do quê Do bemestar da humanidade Desde que não se disponha de meios substitutos tal uso é uma forma eficaz de testar novos remé dios terapias ou procedimentos médicos É também o caso da fabricação de soro antiofídico cavalos são inoculados com veneno de cobra para produzir anticorpos e são sangrados toda semana Aliás cobaias humanas são igualmente utilizadas em determinadas circunstâncias com conhecimento explícito dos riscos envolvidos e após obter sua prévia aprovação À contraparte disso tudo adeptos da teoria da convicção rejeitam in limine o uso de cobaias animais em nome de seus direitos como seres vivos mesmo que isso prejudique o avanço da ciência ou a produção de remédios Quanto ao uso de cobaias humanas a reprovação é pior ainda porque trata as pessoas como meios e não como fins em si mesmos na linguagem de Kant desrespeitandoas e ferindo sua dignidade humana Em um patamar totalmente diverso em nome de uma pseudociência e graças às jus tificações morais conferidas por uma ideologia totalitária justificação moral não ética perpetraramse durante o século XX atrocidades inomináveis Pesquisas duvidosas e cruéis foram realizadas por médicos nazistas comandados por Josef Mengele no campo de concentração de Auschwitz era frequente deixar crianças morrerem de fome para estudar a morte natural10 Os japoneses antes e durante a Segunda Guerra Mundial infectaram 10 A revista alemã Der Spiegel publicou o depoimento de um médico nazista do campo de extermínio de Auschwitz Hans Münch que retrata a um só tempo o horror do holocausto e a ausência de remorsos Disse o médico felicitandose Pude fazer com seres humanos experiências que normalmente só são possíveis com coelhos Foi um trabalho importante para a ciência Ele inoculava malária nos prisioneiros Aduziu com frieza Viver tranquilamente em um lugar onde são mortos centenas de milhares de seres humanos em câmaras de gás é algo a que a gente se acostuma muito rapidamente Não me causou nenhum incômodo E qualificou com crueza os judeus suas principais vítimas Uma escória abominável Eram a tal ponto treinados a serem servis que não se podia sequer qualificálos como seres humanos MILLOT Lorraine Médico nazista descreve morte em Auschwitz e nega remorso Libération reproduzido pela Folha de S Paulo 7 de outubro de 1998 124 Ética EmprEsarial 9 prisioneiros chineses homens mulheres e crianças com as bactérias causadoras da peste bubônica antraz febre tifoide e cólera e depois de doentes os expunham a vivissecções sem anestesia Na África do Sul durante o regime racista apartheid houve tentativas de desenvolver microorganismos manipulados em laboratório que esterilizassem a população negra sem atingir os brancos No Iraque dos anos 1990 milhares de prisioneiros curdos serviram de testes para armas químicas e bacteriológicas tendo sido amarrados a estacas e alvejados com bombas recheadas de substâncias armazenadas em laboratórios e foram despejadas armas químicas letais em aldeias do Curdistão que dizimaram toda a população O mais surpreendente é saber que garotos deficientes mentais haviam sido usados como cobaias humanas pelo governo dos Estados Unidos durante os anos 1940 e 1950 tendo recebido merenda de mingau de aveia contaminada com isótopos radiativos em sua própria escola estadual Com qual propósito Empenhadas na Guerra Fria e temendo uma guerra atômica as Forças Armadas americanas queriam avaliar as consequências da radiação no organismo humano Além do mais em um processo sigiloso cidades inteiras foram deliberadamente expostas aos efeitos da radiação Estas revelações foram possíveis graças à abertura dos arquivos norteamericanos em 199411 Outras experiências norteamericanas vitimaram minorias étnicas de 1932 a 1972 o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos privou pacientes negros de tratamento sem que soubessem para poder observar os efeitos da sífilis no longo prazo tratase dos estudos do centro de saúde Tuskegee12 Índios navajos foram empregados na década de 1950 em minas de urânio então o principal combustível atômico sem serem informados dos malefícios da radiação em consequência muitos morreram de câncer Injeções de plutônio foram ministradas a pacientes em hospitais sem que estes desconfiassem Sol dados foram enviados para locais de teste de bombas atômicas logo após as explosões13 Todas essas abomináveis experiências não estão respaldadas pela teoria ética da res ponsabilidade pois ficam óbvios os propósitos particularistas ou o desrespeito sistemático a minorias desprotegidas Depois da Segunda Guerra Mundial a GrãBretanha e os Estados Unidos organizaram o recrutamento e a transferência para a Austrália de cientistas e especialistas em armas alemães incluindo exnazistas e membros das SS para trabalhar em projetos secretos na área da defesa Os motivos foram o desenvolvimento do potencial militar e o temor de que a União Soviética sequestrasse os especialistas se permanecessem na Alemanha Dez deles haviam trabalhado para a companhia química alemã que inventou o gás ZyklonB usado para matar judeus em campos de concentração Segundo o jornal Sydney Morning Herald pelo menos 127 cientistas alemães foram contratados clandestinamente entre 1946 e 1951 e não foram investigados pelo Tribunal de Crimes de Guerra australiano14 14 O Estado de S Paulo 18 de agosto de 1999 11 O presidente Bill Clinton pediu desculpas públicas à nação por isso em outubro de 1995 12 Foram acompanhados 600 homens negros 399 com sífilis e 201 sem a doença o grupo de controle na cidade de Macon Alabama O objetivo era saber como a sífilis evolui sem tratamento Não foi dito a nenhum dos participantes que eles tinham a doença Os voluntários recebiam acompanhamento médico periódico inócuo uma refeição no dia dos exames e pagamento das despesas com o funeral Em 1947 foi descoberto um tratamentopadrão à base de penicilina e mesmo assim os doentes não foram tratados Todas as organizações de saúde dos EUA receberam uma lista com o nome dos participantes para evitar que qualquer um deles recebesse o remédio Em 1972 quando o estudo foi encerrado havia apenas 74 participantes vivos Em 1997 o presidente Bill Clinton fez outro pedido de desculpas formal em nome do governo americano pelo tratamento negado aos participantes BUCHALLA Anna Paula Agora com crianças Veja 1 de dezembro de 2004 13 SELIGMAN Airton Cobaias humanas Revista Veja 28 de julho de 1999 O contraponto ético 9 125 No contexto da rivalidade entre as superpotências militares e posteriormente da Guerra Fria tais decisões chegaram a encontrar legitimidade moral Não teriam certamente legitimidade ética à luz da teoria da responsabilidade porque não se trataria de cientistas cujo passado fosse isento de crimes de lesahumanidade nem se trataria de mobilizar esforços numa guerra humanitária Estes especialistas mereciam um julgamento justo e não uma anistia incondicional Está claro que do ponto de vista da humanidade todos esses eventos não recebem o respaldo de nenhuma das duas teorias éticas Na órbita jurídica aliás foi estabelecido em Haia na Holanda o Tribunal Penal Internacional TPI de caráter permanente entidade autônoma vinculada à ONU O tribunal começou a funcionar em 2002 com a adesão de 106 Estadospartes e se destina a processar e julgar os responsáveis pelos mais graves delitos internacionais os crimes de guerra o genocídio e os crimes contra a humanidade Até 2012 porém Estados Unidos China e Rússia foram alguns dos países que não ratificaram o Estatuto de Roma que instituiu o TPI Ainda que haja convergências pontuais entre as duas teorias éticas francas oposições podem existir entre elas Se roubar na teoria da convicção é absolutamente condenável desde que aceita a honestidade como valor universal para a teoria da responsabilidade o furto famélico em situação de calamidade pública ou no estado de necessidade é per feitamente justificado Se dizer a verdade pode ser considerado um valor relevante na primeira teoria na segunda não deixa de ser adequado elogiar a sofrível comida que uma dona de casa nos oferece em um gesto hospitaleiro nem deixa de ser aconselhável louvar o bom aspecto de um parente muito doente para melhorar seu ânimo Isso significa que a teoria da responsabilidade confere endosso a ações que engendram um bem universalista Enquanto por exemplo muitas morais inspiradas pela teoria da convicção censuram o ato de matar porque isso fere um mandamento sagrado a teoria da responsabilidade não hesita em validar a derrubada de um avião comercial sequestrado por fanáticos dispostos a lançar uma bomba química sobre uma metrópole ou a espatifarse contra uma usina nuclear Com base em qual argumento O de que a preservação da vida de dezenas de milhares de pessoas justifica o sacrifício de centenas de passageiros Assim cometese o menor dos males ou um mal necessário A teoria da convicção insurgese contra isso alegando que um mal não pode ser remédio para outro mal Condenar um inocente para salvar a humanidade seria uma ignomínia para pensadores como Kant Dostoievski Bergson Camus e Jankelevictch A vida dos homens perderia o valor se a justiça desaparecesse15 Eis aí um embate precioso entre as duas teorias cujo impasse só pode ser superado politicamente quem dispuser de maior cacife numa determinada conjuntura adotará o posicionamento ético que lhe convier pois ambas as posições são eticamente defen sáveis porquanto universalistas Todavia embora homensbomba possam invocar a teoria da convicção na sua vertente da esperança para realizar suas crenças religiosas convencidos de que o martírio lhes abrirá a porta do paraíso não há legitimidade ética em seus atos E por quê Ainda que possam desfrutar da legitimidade moral que sua comunidade fundamentalista lhes confere e apesar de serem celebrados como heróis indômitos não deixam de propugnar interesses particularistas e não deixam sobretudo de ser objetivamente terroristas Vejamos agora um caso interessante que nos permite comparar as diversas vertentes das duas teorias 15 COMTESPONVILLE Op cit pp 7071 126 Ética EmprEsarial 9 A diretora de uma fundação que patrocina programas de arte em escolas públicas secundárias na periferia estava procurando um professor Entre os vários currículos que chegaram às mãos da comissão de sete membros encarregada do processo de seleção havia o de um renomado pintor regional Este aliás não se fez de rogado e espalhou aos quatro ventos que era candidato Em seu currículo constava que era doutor em história da arte titulação aliás que não era requisito para a contratação Ademais dentre os vários concursos ganhos brilhava um primeiro prêmio em Fortaleza A assistente da diretora procedeu às checagens rotineiras e descobriu com surpresa que na universidade indicada não havia menção à tese defendida Quanto ao concurso o pintor havia recebido menção honrosa e não obtido o prêmio maior A diretora relatou o fato à comissão e chamou o pintor para se pronunciar Este alegou que não pôde completar seu doutorado porque teve de comparecer a inúmeras exposições e que a indicação em seu currículo saiu truncada à medida que fez os cursos e obteve os créditos para o doutorado embora não tivesse defendido a tese Assim feitas as contas ele se sentia doutor No tocante ao concurso afirmou que um dos membros do júri era seu desafeto e que foi voz corrente na mostra que sua obra merecia o primeiro prêmio Em seguida o pintor explicou à comissão que ele foi um menino carente fala a língua dos adolescentes a quem se destina o ensino é altamente eficaz do ponto de vista didático e por fim que ficaria honrado em colaborar como voluntário numa ONG tão respeitada A comissão decidiu então analisar de forma desapaixonada as opções de que dispunha Alguns argumentaram que a presença do pintor era desejável por ser capaz de gerar o máximo de benefícios para o maior número vertente utilitarista da teoria da responsabilidade todo mundo na comunidade sabia da candidatura dele e ansiava pelo seu sucesso seu talento conferiria credibilidade ao programa e os alunos aprenderiam muito com um professor de seu gabarito Era preciso ser realista pensar nas consequências que adviriam se fosse recusada sua contratação e não conferir tanta importância a uma formalidade Outros no entanto fundados nas normas vigentes insistiram que não se podia desconsiderar a infração cometida Como aceitar a mentira cometida Não importa quão talentoso fosse o pintor a fraude era inaceitável Não se podia transigir com as normas era inaceitável admitir trapaça ou logro porque a conduta fidedigna do profissional é premissa inegociável vertente de princípio da teoria da convicção Ademais caso a mídia descobrisse que o currículo continha uma falsidade e que a comissão passou por cima dele isso não desacreditaria o programa todo Na votação antes de a diretora se manifestar houve empate de três a três Ficou com ela o voto de Minerva A diretora então relembrou os argumentos alinhados por colegas que advogaram que o pintor podia ser de grande valia para o ensino da arte e podia carrear prestígio ao programa mal menor vertente da finalidade da teoria da responsabilidade Entretanto ponderou que não podia ser leniente com a desonestidade moral E por quê Primeiro porque o pintor não seria um bom formador de caráter segundo porque não era o tipo de exemplo que a fundação queria dar aos alunos Definido o ideal que deveria inspirar o modelo de docentes desejado a diretora votou contra a contratação vertente da esperança da teoria da convicção16 Em quaisquer circunstâncias estava em risco a reputação da fundação E isso é decisivo para uma entidade que vive de doações porque a respeitabilidade constitui um patrimô nio essencial no terceiro setor Afinal qualquer que fosse a decisão o corpo diretivo teria 16 Adaptado de Me Is that Dr or Mr Craft Dilemmas june99 Institute for Global Ethics wwwglobalethicsorg O contraponto ético 9 127 de poder defendêla publicamente sem apelar para subterfúgios falsear informações ou manter segredos Façamos agora a análise da decisão que acabou prevalecendo e que se inspirou na teoria da convicção Primeira etapa qual é o problema Contratar ou não o pintor premiado Segunda etapa quais convicções aplicar A conduta fidedigna é essencial do ponto de vista profissional vertente de princípio os alunos se miram no professor cujas condutas servem de exemplos morais para eles vertente da esperança Terceira etapa os meios disponíveis remetem às normas aplicáveis o pintor mentiu e isso é inaceitável em quaisquer circunstâncias ou remetem aos valores partilhados o pintor não seria um exemplo moral para os alunos ideal que a ONG cultiva Quarta etapa ambas as vertentes da teoria da convicção aconselham não contratar o pintor Vejamos como seria tomada a decisão pela teoria da responsabilidade Primeira etapa qual é o problema Contratar ou não o pintor Segunda etapa quais são as circunstâncias Ele cometeu um deslize moral ser um professor doutor não é prérequisito é um artista premiado e competente Terceira etapa quais são os fins Os programas levados a cabo pela entidade são socialmente valiosos a fundação vive de doações e não pode comprometer sua reputação Quarta etapa quais são os meios disponíveis Os professores devem ser tecnicamente bons o pintor o é e devem servir de exemplo para os alunos não é o caso do pintor Quinta etapa qual é a relação custobenefício A fama do pintor poderia projetar a fundação e seu nome poderia arregimentar mais doadores entretanto e antes de mais nada o deslize moral cometido deveria ser adequadamente administrado Sexta etapa quais os riscos incorridos Se a conduta moral do pintor vazar para a mídia a entidade põe em risco sua credibilidade e portanto sua própria existência ressabiados os doadores podem retrairse ou desaparecer Sétima etapa qual é a decisão É possível dar uma segunda chance a quem errou isto é perdoar não absolver Sim mas desde que haja correção emenda arrependimento efetivo mudança de comportamento negação da reincidência caso contrário não se contrata O pintor então pode ser contratado mediante claras exigências assunção sincera do deslize moral currículo corrigido retratação pública com entrevista na mídia com o fim de dispor de documentação comprobatória do arrependimento e período de experiência com acompanhamento de seu desempenho docente Cabe sublinhar que as contrapartidas exigidas do pintor são absolutamente necessárias sob risco de a fundação perder a indispensável credibilidade Isso significaria pôr em xeque seu patrimônio mais precioso a reputação e comprometer todos os programas sociais que patrocina com recursos oriundos de doações da comunidade a própria razão de ser da fundação Ademais na fase da implantação é preciso monitorar os passos do pintor para ver se ele mantém conduta consonante com aquilo que foi acordado caso contrário deverá ser demitido Assim a teoria da responsabilidade não pode ser invocada sem que sejam tomadas precauções competentes porque não encampa quaisquer justificações nem deixa de 128 Ética EmprEsarial 9 sopesar as implicações que estas embutem não abre mão dos cuidados que justificam condutas eticamente orientadas Caso contrário descambaria para a mistificação particu larista perigo dos mais comuns Em resumo ao fazer uma análise estratégica da situação a teoria da responsabilidade não é míope nem resvala para o pragmatismo exacerbado ou a racionalização antitética AS DUAS MATRIZES TEÓRICAS Nas duas teorias é claro fazemse escolhas porque em ambas a adesão a um curso de ação depende da concepção de mundo que os agentes têm Mas na teoria ética da convicção não há aferição dos efeitos a serem gerados Há isso sim aplicação de convicções universalistas obediência a princípios respeito àquilo que os valores morais as normas morais ou os ideais determinam Afinal os agentes já dispõem de ordenações prévias e explícitas em um movimento prima facie que independe de um exame com pleto da situação E uma vez que as escolhas derivam de pressupostos e são dedutivas excluemse desde logo avaliações apreciações ou mensurações A ideia que passa a quem não compartilha da mesma orientação é que as decisões não são verdadeiras escolhas à medida que derivam da conformidade a prescrições Em termos práticos porém não há como deixar de vêlas como escolhas pois é sempre pos sível aos agentes recuar ou optar por outro caminho Em outras palavras há obrigação de fazer e de forma indissociável liberdade para transgredir De maneira sensivelmente diversa os adeptos da teoria ética da responsabilidade operam em dois grandes estágios primeiramente refletem sobre os fatos e as condições presentes e depois deliberam A legitimação das decisões calcase em um pensamento indutivo Ao elaborarem e ao distinguirem opções os agentes detêmse em uma delas após fazer uma avaliação dos efeitos previsíveis As escolhas decorrem de um juízo não codificado de uma compreensão do contexto histórico e de uma antecipação dos impactos que as ações irão provocar São escolhas ex post que derivam de uma cuidadosa reflexão quais as vantagens e as desvantagens que cada escolha implica Quais as possibilidades de alcançar objetivos universalistas Quais os custos envolvidos Quem se beneficia com isso e quem sai prejudicado Os agentes levam em conta as circunstâncias e as múltiplas opções que se oferecem uma vez que assumem de antemão fins específicos ou medem as consequências de cada decisão porque embora exista liberdade para fazer há de forma inextricável uma responsabilidade pelo que se faz Para eles o mundo não está ordenado como em um breviário no qual se destaca o mal à contraluz do bem Aceitam cometer um mal menor para evitar um mal maior ou enveredam pelo atalho do mal necessário para chegar ao bem maior Tornamse então reféns de mil dilemas Debatemse diante de incógnitas ao antecipar mentalmente resultados e ao enunciar hipóteses de trabalho Equacionam riscos e acasos captam as forças em jogo imaginam estratégias alternativas levam em conta o presente e o futuro e nem por isso lhes faltam princípios ou escrúpulos a na vertente do utilitarismo procuram o máximo de bem possível para o maior número possível de pessoas b na vertente da finalidade assumem os fins definidos como bons porque universalistas e procuram o máximo de bem possível para o número objetiva mente possível de pessoas que pode ser o menor número17 17 Imaginemos dezenas de feridos em um acidente de trem Quais deles serão evacuados pelas primeiras equipes de socorro já que é preciso estabelecer uma sequência no atendimento Os mais graves ou ao acaso quaisquer acidentados Isso significa que uma evacuação responsável compatibiliza as condições de transporte com o estado clínico dos feridos O contraponto ético 9 129 A teoria ética da responsabilidade projeta no futuro seus desideratos e se torna uma teoria dos resultados presumidos A validade de uma ação encontrase na bondade dos fins almejados ou na antecipação de consequências benéficas poupando grandes males à coletividade interessada Não é uma teoria das boas intenções das quais o inferno está cheio pois a pretende alcançar metas factíveis b prioriza a um só tempo a eficácia dos resultados e a eficiência dos meios c alia posicionamento pragmático e postura universalista A teoria ética da convicção é uma teoria das certezas e dos imperativos categóricos das ordenações incondicionais e das mentes perfiladas Repousa no conforto das respostas acabadas e das verdades absolutas É uma teoria convencional disciplinada formalista e incondicional que se inspira em valores eternos e em verdades reveladas Lembra de algum modo o misticismo religioso à medida que as orientações pressupostas são percebidas como sagradas É uma teoria saturada pela universalidade de sua profissão de fé mas como teoria científica fica sujeita ao crivo da racionalidade universalista que interessa a todos A teoria ética da responsabilidade por sua vez é uma teoria das dúvidas ou das in terrogações uma teoria que a se subordina ao exame das circunstâncias e dos fatores condicionantes b enfrenta a vertigem das controvérsias e o desafio das soluções incertas c desemboca em prognósticos É uma teoria situacional aberta cética e condicional em busca do horizonte possível de cada época moldada pelas análises de risco e precariamente estribada em certezas provisórias sujeita à dinâmica dos costumes e do conhecimento É uma teoria saturada pela historicidade de seu projeto ainda que se submeta ao crivo da racionalidade universalista Com efeito como já vimos anteriormente o reconhecimento dos fatos morais depende de dois fatores o avanço científico e a mudança dos padrões culturais O hábito de fumar era considerado uma questão de preferência até poucas décadas atrás ou seja era eticamente neutro Com as comprovações científicas do mal que causa o hábito foi moralizado passou a ser qualificado como eticamente negativo O assédio sexual e o assédio moral entretanto só foram reconhecidos como eticamente negativos após haver mudança dos padrões culturais em função da entrada maciça de mulheres altamente escolarizadas no mercado de trabalho Assim a teoria da convicção imbuise de princípios que se postulam como universais e anistóricos confortada por sua pureza doutrinária inspira os agentes a passar ao largo das implicações que suas decisões acarretam A teoria da responsabilidade diversa mente orienta os agentes a mergulhar na análise dos contextos históricos das variáveis conjunturais do fogo cruzado das forças em jogo e condena os tomadores de decisão a responder pelas consequências que provocam Em resumo desenhase uma polarização entre a teoria ética da convicção que correspon de a um idealismo purista dogmático lírico dedutivo maniqueísta rígido absoluto e a teoria ética da responsabilidade que corresponde a um realismo pragmático analítico calculista indutivo pluralista flexível relativista De forma metafórica a primeira reflete o reino dos céus espécie de essência sagrada mística e transcendental enquanto a segunda expressa o reino dos homens de modo profano mundano e secular Contrapõemse assim a matriz da tradição e a matriz do risco porque o juízo final de uma consiste em constatar se as ações correspondem fielmente às prescrições prees tabelecidas enquanto o juízo final da outra consiste em verificar a consistência existente entre os resultados pretendidos e os resultados alcançados As duas matrizes éticas configuram dois modos absolutamente distintos de tomar decisões dois moldes que permitem distinguir e filiar os discursos morais A teoria da 130 Ética EmprEsarial 9 convicção conforma seus adeptos a um conjunto de obrigações e ao mesmo tempo os fortifica com as certezas que proclama A teoria da responsabilidade convence seus adeptos com a lógica de suas razões e ao mesmo tempo os atordoa com as incertezas que maneja Por isso mesmo os riscos particularistas que ambas correm são diversos na primeira há sempre rondando o fantasma do fanatismo com suas caças às bruxas e seus autos de fé na segunda há sempre o perigo da conversão do ceticismo em cinismo justificando o uso de meios cruéis para a consecução dos objetivos ou legitimando a onipotência do arbítrio com seu desfile de abusos e horrores Resta ainda uma importante observação a fazer relativa ao enfoque teórico adotado aqui não é a subjetividade dos agentes que tem o condão de definir o que obedece a tal ou qual orientação ética mas a análise objetiva que se submete à racionalidade univer salista A perspectiva portanto é a da razão ética que adota como referenciais a lógica da inclusão e os valores universalistas aquilo que interessa a todos nunca perdendo de vista a humanidade o planeta e as gerações futuras que irão habitálo Ou dito de outra forma adota por bússola o universalismo do bem comum e os legítimos interesses grupais e pessoais bem restrito universalista Não basta alguém imaginar uma norma como universalizável para que ela se torne ética o juízo moral individual não possui a faculdade de outorgar caráter ético a decisões ou ações Em conclusão e em definitivo as leis morais ou os ideais preconizados dos discursos morais que obedecem à lógica da teoria da convicção devem corresponder a deveres universalistas De forma similar os fins almejados ou as consequências presumidas dos discursos morais que obedecem à lógica da teoria da responsabilidade devem corres ponder a fins universalistas Assim enquanto os padrões culturais partilhados pelas coletividades servem de régua e de esquadro à moralidade a legitimidade ética deriva de uma análise científica que tem por norte a humanidade e as gerações futuras o bem comum sem perder de vista o altruísmo restrito dos grupos e o autointeresse dos in divíduos bem universalista A TEORIA DA DERROGAÇÃO Vamos agora investigar as confluências ou as interrelações entre as duas teorias A rigidez maniqueísta da teoria ética da convicção em tese não dá guarida às razões de Estado ou à real politik que em situações extremas a teoria ética da responsabilidade justifica18 Todavia quando o rigor deontológico da teoria da convicção é colocado em xeque entra em jogo a chamada teoria da derrogação Essa capitula exceções e se encontra presente nos tratados de teologia moral para uso dos confessores além de ser consolidada nos sistemas jurídicos lex specialis derogat generali19 Com efeito em circunstâncias excepcionais e à própria sombra da teoria da convicção exceções às normas morais são permitidas matar em legítima defesa não falar a verdade para um doente incurável mentir a seus captores para acobertar companheiros e não revelar seus esconderijos caso de revolucionário Ou também em estado de neces sidade a violação da ordem moral se justificaria como nos casos do furto famélico do 18 Generais deveriam colocar em risco suas tropas revelando seus planos Autoridades deveriam abrir o flanco à especulação divulgando antes da hora medidas econômicas de impacto Empresas deveriam tornar públicos seus segredos de negócio Delegados de polícia deveriam anunciar as pistas que vêm seguindo em investigações criminais É claro que não dirá a teoria da responsabilidade para a qual esses sujeitos devem lançar mão de omissões subterfúgios ou até de mentiras cívicas uma vez que isso poderia acarretar imensos prejuízos públicos A saber respectivamente massacre de tropas ataques especulativos às finanças do País destruição de negócios fuga de suspeitos 19 BOBBIO Norberto Op cit pp 186187 O contraponto ético 9 131 confinamento de doentes contagiosos e da suspensão de direitos em estado de sítio20 E ainda por fim socorrendose da extrema ratio extrema razão de Estado durante uma invasão estrangeira ou durante uma guerra civil provocada por terroristas proceder a condenações ao exílio confiscos massacres e atos de força Ora dirão isso tudo não fere o modo dogmático de tomar decisão da teoria da convicção ainda que de forma envergonhada Não remete à teoria da responsabilidade Há outras situações em que os agentes se rendem ao realismo diante dos padrões culturais vigentes e que merecem registro É quando se incorporam aos códigos profis sionais deveres mais rígidos do que as exigências morais dominantes ou quando tais exigências são impostas aos membros de uma corporação p ex não aceitar cortesias em circunstância alguma Ou ao contrário quando os profissionais ficam isentos de deveres impraticáveis como aquele de dizer a verdade novamente o caso do médico diante do paciente que tem doença incurável E isso para não falar do próprio exercício da política que muitos consideram uma atividade amoral enquanto outros o veem como algo que se opõe à moral comum Afinal ações moralmente reprováveis são empreendidas no âmbito político porém requeridas pela natureza intrínseca da atividade21 Por exemplo omitir informações para não causar pânico na população não concordar com análises negativas sobre a situação econômica ou política para não desestimular investidores ou cidadãos e não contribuir para as profecias autorrealizáveis não revelar os acertos de bas tidores com parlamentares para obter a maioria necessária à aprovação de projetos de lei Mas voltemos à questão das derrogações como analisálas Devemos convir que as exceções à regra e os estados de necessidade parecem realmente deslocar a teoria da con vicção fundada no rigor dos deveres em direção à teoria da responsabilidade fundada na razão dos fins Em contrapartida quando a teoria da responsabilidade normaliza decisões universalistas ou quando padroniza decisões por meio de normas práticas ela também parece se deslocar em direção à teoria da convicção Detectase aí um duplo movimento 1 as derrogações atropelam e desfiguram a essência maniqueísta da teoria da convicção apelando para um modo de proceder mais afeito a uma corrente da teoria ética da res ponsabilidade chamada utilitarista da norma e 2 a codificação de orientações que decorre das análises da teoria da responsabilidade acaba dispensando reflexões prévias e fixando diretrizes imperativas à moda da teoria da convicção Nessa altura vale a pena esclarecer que a vertente utilitarista da teoria da responsa bilidade abriga duas correntes O utilitarismo da ação focaliza as consequências de cada ação singular e calcula a utilidade social dela seu representante mais conspícuo é Jeremy Bentham O utilitarismo da norma focaliza as consequências que a adoção generalizada de uma determinada norma geraria e calcula a utilidade social de aceitála ou de rejeitála seu representante mais conspícuo é John Stuart Mill Assim o utilitarismo da norma se contrapõe ao utilitarismo da ação por discordar de decisões que não possam ser transformadas em normas gerais em padrões que interessem a todos os seres humanos ou seja em padrões universalistas Ainda que se alegue que tais decisões sejam tomadas em prol da humanidade Melhor dizendo tendo em vista salvaguardar os direitos do menor número o utilitarismo da norma aconselha a adotar um conjunto de impedimentos inflexíveis Seria justificado o uso de 10 bebês como cobaias para descobrir a cura da síndrome da morte infantil repentina que mata 10 mil 20 São situações inevitáveis não provocadas pelos agentes como nas calamidades naturais 21 BOBBIO Norberto Op cit pp 176194 132 Ética EmprEsarial 9 bebês por ano O utilitarismo da ação responderá que sim o utilitarismo da norma dirá que não porque alerta que esse tipo de decisão não pode ser transformado em norma geral Como converter o sacrifício de alguns em opção sistemática Que tipo de sociedade seria esta em que tal orientação se tornasse regra Ela ignoraria o direito à vida tornaria as pessoas inseguras instalaria um regime de medo O utilitarismo da norma propõe o princípio do dano os agentes podem fazer tudo o que quiserem até o limite de não prejudicar outrem Seria possível torturar um prisioneiro para obter informações que impediriam a matança de centenas de pessoas O utilitaris mo da norma dirá que não um crime contra a humanidade não pode ser convertido em norma geral enquanto o utilitarismo da ação e a vertente da finalidade dirão que sim pois apesar da barbárie representada pela tortura centenas de vidas merecem ser preservadas Seria possível comer carne humana de defuntos em situação extrema de fome como no caso do avião uruguaio que caiu nos Andes22 As duas correntes utilitaristas assim como a vertente da finalidade dirão que sim Uma vez que não houve dano a ninguém os passageiros estavam mortos e que a vida de muitos dependia desse tipo de ato é possível justificar a quebra do tabu da antropofagia Mais ainda seria possível salvar um governante notável ferido a bala que precisa de transplante de coração e pulmões usando como doador um morador de rua que está sendo mantido vivo na UTI graças a aparelhos e sabendose que não existem doadores disponíveis e compatíveis O utilitarismo da ação e a vertente da finalidade dirão que sim o utilitarismo da norma dirá que não Os primeiros dirão que havendo certeza médica de que o morador de rua irá morrer em pouco tempo as consequências do transplante produzirão maior utilidade social ou o fim é benéfico O segundo dirá que não se pode permitir que hospitais matem seus pacientes para doar órgãos pois a confiança coletiva nos hospitais ficará minada se tal providência fosse convertida em norma Em função disso tudo há fundadas razões para questionar os fins advogados pelo utilitarismo da ação seriam eles universalistas Não estaríamos implantando uma espécie de totalitaris mo moral em benefício do maior número Haveria confluência então entre a teoria da convicção e a corrente do utilitarismo da norma Existem sim tentações para que se derive de um lado para o outro das duas teorias éticas A clivagem entre elas entretanto não deve ficar apagada E as razões para tal são simples As derrogações podem perfeitamente decorrer da teoria da convicção se todas as exceções às regras forem clara e formalmente definidas convertendose em um repertório de deveres a ser aplicado com rigor De forma simétrica as codificações procedidas pelos utilitaristas da norma podem perfeitamente sintonizarse com a teoria da responsabilidade caso a todas as reflexões que as fundamentam estejam clara e explicitamente definidas permitindo sua revisão crítica b seja estabelecido a exemplo das cláusulas pétreas constitucionais um consenso em torno de quais impedimentos inapeláveis deverão ser observados nas tomadas de decisão É importante dizer ainda que quaisquer vertentes e correntes da teoria da respon sabilidade exigem precauções cautelas garantias senão para preservar os direitos do menor número pelo menos para evitar imperícias ou injustiças e para minimizar os riscos incorridos E mais o critério último de avaliação continua sendo a consecução de 22 Tratase da história dos 16 jovens uruguaios cujo avião caiu nos Andes em 1972 Esgotados os víveres optaram pelo canibalismo e saciaram sua fome com a carne congelada dos 29 passageiros mortos O fato vazou para a imprensa após o seu resgate dois meses e meio depois Entretanto os jovens escaparam da estigmatização pois a opinião pública internacional aceitou a quebra do tabu como um evento inelutável Considerou que em iguais circunstâncias o grosso da humanidade contemporânea teria reagido da mesma forma O contraponto ético 9 133 resultados em contraposição à coerência entre intenção e ação da teoria da convicção Isso contudo não resolve a pendência crucial que consiste em saber se a maximização dos benefícios e a minimização dos malefícios para a coletividade passam ou não pelo respeito aos direitos de minorias Sem uma definição precisa nesse sentido ficará bara lhada a linha divisória entre o que obedece à razão ética universalista e o que obedece à racionalização antiética particularista Em outras palavras a exemplo da democracia freios e contrapesos são indispensáveis para evitar que quaisquer vertentes éticas se convertam em ferramentas justificadoras de decisões atrozes A história do século passado ensinou que as justificações morais confundidas com legitimações éticas tanto podem se transformar em embustes abusivos em mãos oportunistas quanto em armas letais em mãos totalitárias AS VERTENTES TEÓRICAS NA PRÁTICA Ainda para clarificar situações concretas a partir de decisões eticamente orientadas podemos dizer que O cidadão que considera a defesa da pátria um mandamento ou o conscrito que faz o serviço militar simplesmente porque assim exige a lei são respeitadores das normas morais e se escudam na teoria da convicção vertente de princípio23 O cidadão que considera valioso dedicarse a causas humanitárias ou o apóstolo que se imola por alguma causa meritória estribase na teoria da convicção vertente da esperança O comandante que para salvar muitos de seus homens sacrifica alguns soldados com o propósito de furar um cerco faz um prognóstico sobre os riscos envolvidos calcula perdas e ganhos e se respalda na teoria da responsabilidade vertente da finalidade O comandante que para sustar a matança de civis e evitar o massacre de suas tropas agita a bandeira branca da rendição se inspira na teoria da responsabilidade vertente utilitarista na presunção de que seu ato trará consequências benéficas para o maior número Em junho de 2008 no Zimbábue o candidato oposicionista à presidência Morgan Tsvangirai preferiu renunciar ao segundo turno das eleições depois de haver vencido o primeiro turno contra Robert Mugabe Este encabeça um regime corrupto desde 1980 que se baseia na intimidação e na violência Por que houve a renúncia então Porque isso iria custar mais vidas humanas De fato a campanha de terror levada a efeito por milícias fiéis a Mugabe matou 80 ou mais opositores feriu uns 10 mil e forçou mais de 200 mil pessoas a migrar O líder da oposição preferiu se retirar de uma disputa que havia deixado de ser elei toral Evitou que mais aflições fossem causadas aos seus seguidores e por extensão à população colhida em meio ao conflito Difícil decisão sem dúvida mas respaldada pela vertente utilitarista da teoria da responsabilidade Vamos verificar agora como as várias vertentes teóricas podem se aplicar simultanea mente em certas situações Por exemplo professores podem justificar seu magistério de 23 Notemos que a maior parte das guerras tem caráter nacional e portanto podem constituir práticas parciais se não forem guerras humanitárias ou não forem reações de autodefesa contra agressões externas bem caracterizadas 134 Ética EmprEsarial 9 diferentes maneiras Dirão que dão aula porque a devem cumprir as obrigações que cabem a quem abraçou a profissão vertente de princípio b retribuem à sociedade o saber que adquiriram ao multiplicálo com uma dedicação que só se compara ao sacerdócio vertente da esperança c pretendem se realizar como profissionais e neces sitam ganhar a vida como quaisquer outros para sustentar a própria família vertente da finalidade d consideram que o conhecimento faz a diferença no mundo de hoje e que ao semeálo preparam os jovens para o futuro vertente utilitarista De forma similar as voluntárias da Pastoral da Criança avaliam seu próprio trabalho com os seguintes comentários a nós nos dedicamos de corpo e alma porque Jesus pregou a necessidade de amar uns aos outros princípio b nossa fé e nosso exemplo missionário conferem novo sentido à vida das crianças e eleva a sua alma esperança c nós nos empenhamos a fundo para combater a mortalidade infantil nas favelas finalidade d nosso esforço melhora a qualidade de vida das crianças e contribui para o bemestar da sociedade utilitarista No caso do boicote internacional à África do Sul por causa da política racista o apartheid vigorou de 1948 a 1990 podese dizer que a as empresas que obedientemente cumpriram o acordo cerrando fileiras em torno de seu respectivo governo se filiaram à vertente de princípio b as empresas que compartilhavam convicções antirracistas tendo por ideal um mundo em que brancos e negros viveriam em igualdade de condições agiram segundo a vertente da esperança c as empresas que estavam convencidas dos bons propósitos do boicote além de visar melhorar sua reputação e ampliar seus negócios se valeram da vertente da finalidade d as empresas que imaginaram ser sua responsabilidade histórica contribuir para um mundo sem discriminações em que todos pudessem ter um lugar ao sol inspiravamse na vertente utilitarista máximo de felicidade para o maior número Em muitos anos de carreira Carlos Ghosn já enfrentou várias crises e comandou viradas espetaculares Mas nada se compara ao trabalho de reconstrução da Nissan Em 1999 a montadora japonesa estava quase arruinada mergulhada em dívidas de US 194 bilhões Não só a cultura do lucro deixara de ser levada a sério como havia um péssimo controle dos custos A marca podia construir 24 milhões de carros no Japão Mas só operava com 53 da capacidade Dinheiro era queimado em 1394 participações em outras empresas inclusive concorrentes como a Subaru Funcionários eram promovidos por idade e não por mérito Gerentes de fábrica não sabiam dizer quanto custava produzir um carro Quando Ghosn se instalou na mesa de seu escritório no bairro de Ginza em Tóquio encontrou uma empresa que necessitava de uma terapia de choque A recuperação precisa ser rápida e eficaz mesmo que exija sacrifícios disse um dia depois de anunciar o fechamento de cinco linhas de montagem e a demissão de 21 mil trabalhadores 14 do pessoal Isso em um país em que os empregos eram considerados eternos Ele afirmou que se o plano de reestruturação falhasse a situação seria bem pior com o fim da empresa24 A grande questão que cabia responder no caso era se fazia ou não sentido demitir parte do pessoal Pela teoria da convicção o princípio da vitaliciedade dos empregos vigente no Japão vedava tal providência de tal sorte que era preciso encontrar outras soluções para enfrentar a crise da Nissan Ocorre que a companhia estava à beira da falência e o tempo urgia Tentar recuperála constituía um fim universalista 24 BARROS Fernando Valeika A nova aposta de Carlos Ghosn Revista Época Negócios dezembro de 2010 O contraponto ético 9 135 Pela teoria da responsabilidade sacrificar parte do pessoal converteuse em um mal menor diante do mal maior que seria o fechamento da empresa e a perda de centenas de milhares de empregos Ademais os efeitos em cascata que a falência de uma empresa do porte da Nissan acarretariam seriam tão desastrosos que impactariam a economia japonesa como um todo e teriam repercussões internacionais Quais riscos estavam envolvidos Fatores que podiam inviabilizar o programa de reestruturação tais como preconceitos e estereótipos arraigados fortes interesses contrariados e tradições seculares Apesar das resistências Ghosn optou pela vertente da finalidade e foi responsável por uma verdadeira reviravolta nas relações trabalhistas japonesas Um caso interessante põe em jogo o universalismo da razão ética Tratase da denúncia do Unabomber universities and airlines bomber Theodore Kaczynski feita por seu irmão David em março de 1996 Crítico feroz da civilização tecnológica o Unabomber matou três pessoas e feriu 23 em 16 atentados perpetrados ao longo de 18 anos entre 1978 e 1995 Seu irmão todavia reconheceu todos os indícios divulgados pela mídia e denunciou Theodore que foi preso A teoria da responsabilidade na sua vertente utilitarista fazer o máximo de bem para o maior número prevaleceu sobre os laços de parentesco que tendem muitas vezes a assumir feições particularistas No Brasil o peso das relações pessoais é de tal ordem que implica uma solidariedade a toda prova mesmo em casos em que há abusos por parte do parente ou do amigo de maneira que a denúncia do Unabomber feita por seu irmão David não deixa de produzir certo constrangimento ainda que racionalmente as pessoas entendam o gesto Isso explica por que ninguém estranhou o fato de o pai de um estudante de medicina que descarregou 40 tiros de sua submetralhadora sobre a plateia de um cinema do Shopping Morumbi em São Paulo matando três pessoas e ferindo cinco ter afirmado com o semblante arrasado Nunca vou desprezar meu filho estou com ele para o que der e vier mesmo ele estando errado25 Para nós brasileiros entendese que o valor do amor paterno possa se sobrepor aos demais valores Não é o bastante no entanto para conferir legitimidade ética Em janeiro de 1998 as autoridades financeiras da Alemanha provocaram gritos generalizados de protesto ao sugerirem recompensas a quem informasse o nome de grandes sonegadores Tais recompensas só seriam oferecidas em caso de haver graves prejuízos para o Estado não sendo dadas a quem obtivesse informações de forma ilegal Mas a Federação dos Contribuintes Alemães criticou a oferta dizendo que esta reviveria a cultura da denúncia promovida pela Gestapo nazista e pela polícia secreta Stasi da antiga Alemanha Oriental O Fisco estimou que a sonegação representava para o Estado alemão uma perda de arrecadação de US818 bilhões ao ano e que a economia informal correspondia a 15 do Produto Interno Bruto Não se pode mais zombar das pessoas honestas argumentou o portavoz do Ministério das Finanças Em réplica o ministro das Finanças da Baviera disse O Estado de Direito não deve fazer o trabalho sujo de criminosos Os fins não justificam os meios Muitos reconhecem na Alemanha que a verdadeira causa da crescente evasão dos impostos é o oneroso sistema tributário cujas alíquotas mais elevadas são punitivas O fato é que a queda da 25 ANTAR Natalie TALENTO Biaggio LEAL Gláucia Estou com meu filho para o que der e vier O Estado de S Paulo 6 de novembro de 1999 136 Ética EmprEsarial 9 arrecadação coincidiu com uma série de graves casos de sonegação de impostos O mais notório foi o da condenação à prisão do pai da campeã de tênis Steffi Graf em 1997 por não pagar milhões de marcos em impostos sobre os ganhos da filha Para fugir do pesado ônus tributário em seu país duas das estratégias usadas pelos alemães ricos consistiam em criar uma empresa de fachada na Holanda e abrir contas bancárias na Suíça Foi aí que um homem se ofereceu para vender às autoridades do Fisco uma lista que segundo ele continha os detalhes de 270 contas bancárias em Luxemburgo com US82 milhões de recursos não declarados O desconhecido exigia uma recompensa de US272 mil As autoridades das Finanças disseram que recompensas em dinheiro são uma forma legítima de obter informações em investigações do Fisco bem como em outras investigações criminais26 A exemplo dos programas de proteção às testemunhas e dos acordos feitos entre auto ridades e delatores que implicam redução de penas nos Estados Unidos na Itália e no Brasil o caso precedente advoga a ideia de que dos males o menor navegando nas águas da teoria da responsabilidade vertente da finalidade porque resgata recursos públicos e pune os sonegadores que prejudicam a coletividade No fim dos anos 1990 a Indústria de Conservas Gini esteve no centro do noticiário nacional brasileiro O motivo foi o estado grave de uma estudante internada em Santos Diagnóstico Botulismo Sete dias depois a empresa recebeu um fax do Centro de Vigilância Sanitária CVS comunicando a interdição da venda dos palmitos Gini Segundo as autoridades sanitárias a estudante teria contraído a doença ao comer palmito de um vidro que estava aberto na geladeira de sua casa e que continha a toxina botulínica Outros três frascos do mesmo lote apresentaram alteração de pH o que revelaria um processo de produção inadequado além de propiciar o desenvolvimento da bactéria que produz a toxina do botulismo afeta o sistema nervoso central e pode levar à morte O comunicado foi enviado aos jornais e às redes de televisão Fomos linchados publicamente disse Carlos Gini dono da empresa Depois de 28 anos de trabalho árduo vi o nome de minha empresa ser destruído por uma irresponsável referiase à diretora do CVS A Gini só conseguiu que o CVS permitisse as análises de contraprova 60 dias após a denúncia O exame foi feito pelo Instituto Adolfo Lutz e resultou negativo Em outras palavras o risco de botulismo se restringia ao produto consumido pela estudante Em função disso o CVS liberou novamente a venda da marca Gini Nos dois meses seguintes ao episódio que levou à interdição do produto as vendas que eram de 100 toneladas de palmito por mês caíram a zero Após a liberação e já em julho as vendas atingiram 30 do nível normal mas o prejuízo foi estimado em US1 milhão Daí para frente a maior preocupação de Carlos Gini foi a de tentar recuperar a imagem da empresa Uma de suas primeiras providências foi processar o Estado por danos morais Considerou que a divulgação do resultado antes da realização do exame de contraprova foi precipitada Especialistas ponderaram entretanto que o Estado não pode furtarse a informar o resultado positivo de uma análise e a razão é que o interesse social é maior que o interesse particular Em 1999 após suspeita envolvendo duas outras marcas a Vigilância Sanitária passou a exigir uma instrução impressa na embalagem para que o conteúdo fosse fervido antes do consumo para 26 BUSVINE Douglas Denúncia de sonegador pode ter incentivo Gazeta Mercantil 8 de janeiro de 1998 O contraponto ético 9 137 matar a bactéria Todas as indústrias de palmito sofreram prejuízos as vendas caíram 40 A solução foi criar uma Associação Nacional dos Fabricantes de Palmito cujo objetivo foi o de preservar a imagem do produto com um selo de qualidade minimizando com isso a comercialização do palmito de origem duvidosa27 Isso não impediu que o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor Idec avaliasse 32 marcas e encontrasse irregularidades nos produtos de nove dessas empresas decorrentes de erros básicos na produção28 A Vigilância Sanitária argumentou com base na teoria da responsabilidade vertente utilitarista defender os interesses gerais acima de tudo embora pudesse simples mente alegar que cumpriu com suas obrigações legais teoria da convicção vertente de princípio29 Vejamos agora as falsas informações que uma empresa chega a prestar em circuns tâncias bem peculiares A Salty Potato Chip gastou um bom dinheiro em pesquisas à procura de uma batata chip light Quando a empresa chegou perto de obter um produto de gosto adequado para o consumidor e que só teria uma caloria por unidade deuse conta de que a tecnologia poderia ser facilmente copiada se não fosse patenteada Isso sem dúvida exigia um tempo que iria postergar o lançamento e obrigála a manter o sigilo sobre a matéria Acontece que no dia em que o presidente da Salty estava dando uma entrevista coletiva sobre a reorganização da empresa uma repórter quis saber sua opinião sobre o rumor que corria sobre pesquisas da Salty para produzir uma batata chip com baixas calorias Controlando sua surpresa o presidente respondeulhe que o rumor era inteiramente falso e que a empresa não estava pesquisando de modo algum uma batata chip de baixa caloria Afiançoulhe ainda que a Salty duvidava que pudesse existir tal coisa30 Essa mentira poderia ser justificada pela vertente da finalidade não colocar em risco a invenção e portanto os interesses da empresa uma vez que não prejudica a sociedade a não ser que se advogue a inadiável premência de introduzir batatas chips no mercado para preservar a saúde da população Restou é claro um problema a ser equacionado pelo presidente da Salty no lançamento do produto afinal por que mentiu Como manter a credibilidade junto a seus clientes depois do que aconteceu Somente a verdade poderia justificar sua atitude dizer em claro e bom som que era imprescindível preservar o segredo industrial sem o que inviabilizaria o negócio uma providência aceita como legítima em qualquer quadrante 27 WATANABE Marta Gini deve pedir indenização ao Estado Gazeta Mercantil 28 e 29 de maio de 1997 LOPES Mikhail O palmito que quase virou um abacaxi Revista Exame 30 de julho de 1997 SNIECIKOSKI Luciane Palmito suspeito O retorno Revista Exame 14 de julho de 1999 28 SCHEINBERG Gabriela Instituto reprova sete marcas de palmito O Estado de S Paulo 24 de setembro de 1999 29 Contudo em maio de 2002 o Superior Tribunal de Justiça condenou o governo do Estado de São Paulo a indenizar a Gini por divulgar sem provas informações de contaminação de lotes de palmito Reconheceu assim que uma pessoa jurídica pode sofrer dano moral Um fato também merece ponderação os desdobramentos do caso levaram a Gini a encerrar suas atividades alegando que a reputação da empresa foi afetada de forma irreversível CARDOSO Henrique Paiva São Paulo terá de indenizar a Gini Gazeta Mercantil 15 de maio de 2002 30 Caso utilizado pelo Programa de Ética da Universidade de Wharton colhido em Thomas W Dunfee et al Business and Its Legal Environment Prentice Hall e disponível na internet 138 Ética EmprEsarial 9 Muitas mentiras da espécie ocorrem na vida pública como já tivemos oportunidade de anotar quando um ministro da Fazenda desmente com veemência a flutuação do câmbio em substituição ao câmbio controlado O mesmo se aplica aos ministros que detêm informações sensíveis sobre projetos governamentais e cuja divulgação poderia afetar o mercado ou o comportamento dos agentes econômicos e quando autoridades silenciam ou mentem com respeito a assuntos que versam sobre segurança nacional Dependendo do foro todavia a mentira pode custar bastante caro principalmente quando não está em jogo o bem comum Imaginemos que se trate de um tribunal a quem se preste um falso testemunho Se isso for descoberto as consequências podem ser devas tadoras aqui as esferas moral e legal se cruzam É o caso de Jonathan Aitken exsecretário do Tesouro no governo conservador britânico de John Major que em junho de 1999 foi condenado a 18 meses de prisão por ter mentido no tribunal a respeito de quem pagou uma conta de US 15 mil do Hotel Ritz em Paris durante uma permanência sigilosa Aitken cuidava de contratos com o governo saudita De fato foi um empresário saudita e assessor da família real que pagou a conta e não como afirmou Aitken sua própria esposa Esta aliás não esteve em Paris naquela data O falso testemunho havia sido prestado em uma ação movida por Aitken em 1995 por injúria e difamação contra o jornal The Guardian e contra uma emissora de televisão A certa altura do processo o jornal ofereceu um acordo em que cada um pagaria os honorários de seus respectivos advogados e não se falaria mais no assunto Aitken desembolsaria 200 mil em uma fortuna avaliada em 3 milhões Mas ele recusou e The Guardian acabou conseguindo provas contra ele Aitken perdeu o processo foi condenado à prisão teve de conceder o divórcio à mulher e para completar sua desgraça foi à falência31 Por mero contraponto não esqueçamos que no Brasil a legislação não exige que o réu diga a verdade apenas as testemunhas têm obrigação de dizer a verdade após prestar compromisso de fazêlo Capítulo correlato mas igualmente sensível diz respeito às omissões competentes Já vimos que não faria sentido que generais dessem publicidade aos planos militares nem seria sensato que delegados de polícia comentassem investigações criminais em andamento pondo em risco pistas valiosas Estas omissões têm parentesco com o sigilo profissional dos profissionais liberais o sigilo da fonte no caso da mídia o segredo de confissão dos padres católicos o segredo de Justiça dos magistrados a confidencialidade das informações empresariais em especial das informações privilegiadas que podem afetar o valor de mercado de uma empresa Tudo isso naturalmente nada tem a ver com as aberrações que moral oficial alguma ou teoria ética alguma justifica tal como os casos referentes à corrupção endêmica que assola o Brasil No dia de Tiradentes em 2002 a rede Globo apresentou no Fantástico seu tradicional programa de televisão de domingo à noite um festival de propostas indecorosas feitas a um repórter disfarçado de secretário de Governo e Planejamento da Prefeitura de São Gonçalo Estado do Rio de Janeiro As conversas foram gravadas com uma câmera escondida 31 MASON John Exministro britânico é condenado Financial Times reproduzido pela Gazeta Mercantil 9 de junho de 1999 Veja 16 de junho de 1999 O contraponto ético 9 139 Um vereador da oposição depois representado por um advogado tentou se valer do falso secretário para extorquir o prefeito para deixar de atacálo na Câmara Municipal um expresidente dessa mesma Câmara informou que todos os vereadores se beneficiavam de vantagens indevidas um empresário propôs propina para administrar um estacionamento público outros empresários ofereceram polpudas comissões para fornecer remédios e merenda escolar O repúdio da opinião pública e a indignação popular foram unânimes Vale dizer a população não compactua com tamanhas falcatruas ainda que retoricamente A morte de Sócrates o converteu em ícone da teoria da convicção além de algumas falas emblemáticas Não devemos cometer injustiças contra os que as cometem contra nós Jamais se devem cometer injustiças nem pagar o mal com o mal seja lá o que for que nos tiverem feito32 Ocorre que no mesmo diálogo em que o filósofo cita a famosa fórmula Conhecete a ti mesmo inscrita no templo de Delfos seus ensinamentos mos tram o quão relativos são os valores e como ele próprio os insere no contexto histórico A partir disso Sócrates desemboca na defesa de uma dupla moral Em síntese diz o filósofo que em relação aos amigos não se pode agir usando a mentira a impostura os maustratos e a escravidão porque seriam ações injustas não haveria retidão Em con trapartida em relação aos inimigos faz sentido escravizálos enganálos destruir e pilhar seus bens Estas seriam ações justas Ou seja a partir da perspectiva de sua pólis Sócrates definia o que entendia por justiça No seio de sua comunidade deveria prevalecer uma orientação moral além das fronteiras de sua cidadeEstado deveria prevalecer outra Mas não foi só isso Sócrates disse ser justo que vendo suas próprias tropas desani madas um general lhes anuncie falsamente a próxima chegada de auxílios para devol verlhes a coragem que os pais enganem a criança que precisa de remédio e não quer tomálo impingindolhe o remédio mesclado com os alimentos que se tome a arma das mãos de um amigo desesperado e propenso a atentar contra a própria vida33 Exceções da teoria da derrogação Essas discrepâncias inerentes ao pensamento socrático não são paradoxais e poderiam ser rastreadas em muitos outros pensadores e homens de ação Em sua autobiografia Gandhi escreveu que era forçoso admitir o discurso contraditório que consome o homem para co nhecer a verdade Ele mesmo se considerou um santo um ditador esquálido e um rebelde masoquista Reconheceuse como o mesmo homem que fez juramento de castidade e gozou o prazer sexual no quarto ao lado onde seu pai agonizava o mesmo homem que defendeu valores e costumes indianos e que ao absorver profundamente as lições da política e da cultura ocidentais promoveu alianças polêmicas com fascistas de todas as etnias34 Os agentes sociais e as organizações em que atuam têm óbvias dificuldades para manter uma direção única ao longo de suas trajetórias históricas e tendem a oscilar de uma teoria ética à outra ou ainda da retidão moral aos abusos particularistas em uma incoerência clássica que reflete contradições inerentes às suas próprias condições de exis tência Pior dependendo das circunstâncias tendem a oscilar entre o comportamento estritamente responsável e o duvidoso Max Weber já havia nos alertado quanto a isso quando escreveu que a ética não é uma carruagem que se pode parar a seu belprazer para nela subir ou para dela descer segundo o caso 35 A lição serve para que se procure 32 Platão Críton ou do dever Os Pensadores São Paulo Nova Cultural p 108 33 XENOFONTE Ditos e feitos memoráveis de Sócrates In Sócrates Os Pensadores Op cit pp 229230 34 GONÇALVES FILHO Antonio Gandhi mostra a face de um juiz implacável O Estado de S Paulo 24 de outubro de 1999 35 WEBER Max Le Savant op cit pp 169170 140 Ética EmprEsarial 9 manter congruência adotandose uma conduta universalista seja qual for a teoria ética esposada pois a vigilância da sociedade civil não perdoa as empresas que agem ao sabor de suas conveniências EXERCÍCIO O QUE FAZER Há um interessante exercício à disposição do leitor no site da Editora Elsevier e que versa sobre situações concretas Anexo V Cada uma delas apresenta quatro respostas pos síveis e todas exigem uma qualificação à luz da razão ética universalista qual das duas teorias éticas se aplica ou da racionalização antiética particularista Acompanhando há um gabarito com comentários pertinentes QUESTÕES PARA REFLEXÃO 1 W Mark Felt exvicediretor do FBI admitiu em maio de 2005 ser o Garganta Profunda a fonte secreta que ajudou os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein do Washington Post a denunciar o escândalo Watergate 1972 Felt vazou informação confidencial crente de que a Casa Branca estava tentando frustrar a investigação do FBI Descumpriu seu dever de servidor público para que os abusos de poder praticados pela Casa Branca fossem coibidos O presidente Richard Nixon renunciou em 8 de agosto de 1974 para evitar o impeachment Assim sendo Felt foi um traidor ou um herói Ao mudar o rumo da história agiu conforme qual teoria ética 2 O deputado federal Roberto Jefferson presidente do PTB foi cassado em setembro de 2005 depois de trair seus próprios pares e denunciar a compra regular de votos de deputados para apoiar o governo Lula cunhou a expressão mensalão que entrou na história brasileira Como qualificar sua conduta do ponto de vista moral há alguma moral brasileira que aceite a deslealdade e do ponto de vista ético há alguma teoria ética que dê guarida à denúncia feita 3 Um grupo de famílias armênias em 1915 estava escondido em porão porque soldados turcos avançavam em busca de inimigos em sua cidade quase deserta a história registrou o genocídio de 15 milhão de armênios pelos turcos As famílias mantinham um silêncio sepulcral enquanto as tropas se aproximavam De repente um bebê começou a chorar alto O que fazer Quais seriam as respostas e os fundamentos adotados pelas teorias éticas 4 Diante de ameaças terroristas imprevisíveis basta lembrar o ataque às torres gêmeas do World Trade Center de Nova York 11 de setembro de 2001 o atentado cometido nos trens de Madri 11 de março de 2004 e as explosões no metrô e num ônibus de Londres 7 de julho de 2005 quanta liberdade estaríamos dispostos a sacrificar em nome da segurança Como se posicionariam as duas teorias éticas 5 A e B são vítimas de um desabamento A tem uma perna esmagada e sofre muito B tem um ferimento na coxa e sente dor A equipe de socorro só dispõe de duas doses de morfina e somente duas doses aliviariam a dor de A O que fazer 6 Ambos foram resgatados A vai perder a perna e pode perder um dedo do outro pé B pode perder a perna se não for atendido Só há recursos médicos para um único paciente O que fazer sobretudo tendo em vista o pensamento de Montesquieu que afirmou que a verdadeira igualdade consiste em tratar de forma desigual os desiguais 141 10 Dilemas éticos de base Há poucas situações se houver alguma em que toda a verdade e toda a justiça e todos os anjos se encontram de um lado só Henry Clay O DILEMA DOS VALORES Em 1989 motivada pelo acidente ocorrido com o petroleiro Exxon Valdez no Alasca vazamento que causou um dos piores acidentes ecológicos da história e que teve no capi tão do navio embriagado um dos principais responsáveis a empresa norteamericana Exxon Corporation decidiu aplicar um exame de drogas e álcool a seus funcionários Todas as filiais da empresa pelo mundo afora tiveram de instituir o teste com a reco mendação de que fossem respeitadas as normas legais de cada país Afinal de contas a legislação diferenciada poderia gerar dúvidas quanto à sua aplicação prática Acontece que na maior parte dos países a legislação vigente mostrou ser absolutamente favorável à adoção A decisão teve por objetivos assegurar um ambiente de trabalho livre de drogas e garantir a qualidade de vida dos funcionários Enfrentou resistências principalmente quanto à acusação de invasão de privacidade A seguir a Exxon estendeu essa política às empresas contratadas transportadoras empresas de segurança e de construção Submeteu seus próprios empregados a testes aleatórios e aplicou o exame a todos os candidatos a emprego Os indicadores mostram que a prevenção funcionou como fator inibidor e que o ambiente de trabalho ficou livre das drogas1 Há amplo consenso em torno da ideia de que as empresas devam exigir tal procedi mento dos funcionários envolvidos em atividades de risco motoristas operadores de máquinas vigilantes armados etc a fim de que não estejam sob efeito de substâncias psicoativas pois estas produzem alterações no funcionamento cerebral e comprometem o desempenho profissional Entretanto os críticos da aplicação de testes para detectar drogas consideram que os resultados podem ser enganosos Além de invadir a privaci dade dos funcionários conferem uma falsa imagem de competência ao empregador sem diminuir efetivamente os prejuízos para a sociedade Argumentam que um resultado de exame laboratorial não implica a existência de dependência química nem evidencia o uso sistemático de drogas Em consequência tachar uma pessoa como incapaz de exercer determinada atividade por causa de um resultado positivo acaba sendo injusto2 O que fazer então Respeitar a privacidade dos funcionários evitando a qualquer custo lhes causar algum constrangimento ou procurar estabelecer um ambiente de trabalho livre de substâncias psicoativas Nesta mesma linha os valores da privacidade e da segurança no trabalho podem entrar em choque caso um dirigente decida aplicar testes de Aids aos empregados Para alguns a discriminação e a violação da dignidade das pessoas são inaceitáveis para outros a prevenção é a melhor maneira de evitar uma contaminação que ponha em risco a saúde do quadro funcional 1 LUCENA Carlos É importante cuidar da vida das pessoas Folha de S Paulo 15 de janeiro de 2000 2 XAVIER DE SILVEIRA Dartiu Teste pode causar injustiça Folha de S Paulo 15 de janeiro de 2000 142 Ética EmprEsarial 10 Esses casos contribuem para mostrar que a teoria da convicção convive com um dilema congênito justamente em função de seus pressupostos axiológicos como es tabelecer uma hierarquia entre os princípios Ou entre os ideais De maneira mais direta como definir precedências em tábuas de valores Em termos práticos muitos adeptos dessa teoria ética consideram os valores como verdadeiros filhos cada um é único Seria possível sacrificar um para salvar o outro Por exemplo o que mais importa a justiça social ou o respeito à propriedade privada A gratidão por favores recebidos de um superior ou a justiça para com um colega que está sendo prejudicado por esse mesmo superior A verdade ou a lealdade filial A fidelidade às convicções ou a sobrevivência física O compromisso de saldar uma dívida ou a caridade para com uma família esfomeada O socorro humanitário a um povo que está sofrendo um processo de limpeza étnica caso dos muçulmanos bósnios e dos croatas expulsos ou exterminados pelos sérvios em 1995 e dos albaneses de Kosovo em 1999 ou o respeito à soberania de um Estado legalmente reconhecido pela comunidade internacional a Iugoslávia Ou seja haveria precedência dos direitos humanos em relação aos direitos das nações Nos dois casos houve a intervenção da Otan para dar um basta às perseguições sofridas pelos não sérvios em nome de princípios humanitários De forma similar 21 países enviaram tropas ao Timor Leste em 1999 depois de a maioria da população ter votado pela independência e depois de ter sofrido represálias sangrentas por parte de milicianos favoráveis à Indonésia O secretáriogeral da ONU Kofi Annan disse na abertura da 54ª Assembleia Geral da organização que os países não devem contar com sua soberania nacional para protegêlos contra uma intervenção internacional que vise interromper flagrantes abusos de direitos humanos O presidente dos Estados Unidos Bill Clinton endossou a fala e embora tenha advogado que a ONU assuma um papel mais ativo foi além afirmou que a intervenção não precisaria necessariamente ser promovida pela ONU mas poderia ser realizada por organizações regionais Por sua vez opondose à postura intervencionista o chanceler russo defendeu a tese da soberania nacional em consonância com seu colega chinês Posteriormente o papa João Paulo II declarouse a favor de intervenções humanitárias quando as populações civis forem afetadas por conflitos internos de seus países e afirmou que a ingerência poderia passar por cima das soberanias nacionais3 Vejamos outros contrapontos entre valores O que mais vale uma ampla liberdade de expressão inclusive o direito de divulgar textos sobre como fabricar armas químicas ou o policiamento das consciências para prevenir atentados contra a vida Foi esse o problema criado pela editora norteamericana Loompanics Unlimited que publicou uma série de títulos sobre como fazer dedicados a temas como Caçando humanos Enciclopédia de serial killers modernos Manual do envenenador Fazendo com que o crime compense obras que ofereciam conselhos práticos aos candidatos a fora da lei e ensinando a matar roubar trapacear e mentir O que poderia derivar disso tudo A editora Paladin Press of Boulder vendeu mais de 10 mil exemplares do livro Matador Manual técnico para executores independentes que fornece instruções eficazes para matar pessoas e sumir com o corpo 3 os crimes contra a humanidade não podem ser considerados assuntos internos Quando a população civil corre perigo de sucumbir ante o ataque de um agressor injusto e os esforços da política e de instrumentos de defesa não violentos não têm resultado é legítimo e inclusive obrigatório recorrer a iniciativas concretas para desarmar o agressor Folha de S Paulo 14 de dezembro de 1999 Dilemas éticos de base 10 143 Em 1993 um homem de Maryland contratou um assassino para matar sua mulher seu filho portador de deficiência e a empregada A polícia encontrou o livro Matador na casa do assassino e uma investigação mostrou que ele seguiu o manual A editora acabou aceitando a responsabilidade financeira pelo triplo assassinato cometido pelo leitor em maio de 19994 Qual desses valores tem maior peso relativo a liberdade de expressão ou o direito à priva cidade principalmente quando combinado com o respeito à intimidade Uma resposta possível consistiria em traçar uma clara fronteira entre o interesse privado e o interesse público O direito à privacidade cessaria quando a ação praticada tivesse relevância pú blica Seria o caso dos governantes à medida que aspectos de sua vida privada pudessem afetar o interesse público somente então seriam esses divulgados mas não se aplicaria às celebridades cuja intimidade é tão abusivamente devassada pela curiosidade de parte da população porque as relações privadas que mantêm dizem apenas respeito a elas mesmas Sem traçar claras linhas divisórias muitos estudiosos consideram que ficam à solta os sensacionalismos a invasão da privacidade a busca desenfreada do escândalo a infor mação desfigurada por razões menores o culto à frivolidade o mundo cão formatado para o entretenimento televisivo a maledicência irresponsável tudo acobertado pela liberdade de expressão Dizem ainda que as reputações e a dignidade de todos ficam à mercê de ataques gratuitos ou malintencionados No campo empresarial o que deve prevalecer o respeito estrito à privacidade dos funcionários que utilizam computadores e navegam na internet ou a tolerância zero que proíbe o uso de equipamentos da empresa para qualquer finalidade particular Não haveria queda significativa de produtividade caso centenas de trabalhadores sucumbam à tentação de navegar pela internet em vez de trabalhar Caberia ou não monitorar o uso que um empregado faz da rede De outra parte o que deve prevalecer nas empresas o respeito aos prazos de entrega dos produtos ou a qualidade dos resultados No final da década de 1960 a empresa BF Goodrich tinha um contrato com a Força Aérea norteamericana para equipar seus novos aviões A7D com freios de ar comprimido O prazo de entrega era muito curto mas os executivos resolveram cumprir o contrato a todo custo Os primeiros testes mostraram que os freios estavam falhando A data de entrega chegou e os freios foram entregues assim mesmo O avião de prova teve um acidente Uma investigação mostrou que as falhas do desenho original nunca tinham sido corrigidas e que vários engenheiros tinham falsificado os relatórios dos primeiros testes para cumprir os prazos O interessante é que todos eles estavam convencidos de que fizeram o que a empresa esperava que fizessem5 Em princípio as morais que se inspiram pela teoria ética da convicção deveriam embutir uma hierarquia de valores se não explícita pelo menos implícita Entretanto não é o que ocorre correntemente listamse valores ao belprazer numa miscelânea que nem sempre observa a coerência Eis por que o conflito entre os valores transtorna os agentes envolvidos tão profundamente que se quedam inertes Por exemplo até que ponto um advogado pode argumentar em favor de um réu seja ele confesso ou não deveria ele se valer das brechas que as sutilezas processuais apresentam para reduzir a pena de seu 4 O Estado de S Paulo 25 de maio de 1999 5 SOLOMON Robert C HANSON Kristine Its good business Macmillan Publishing Company 1985 livro sumariado por Amélia de Oliveira A ética necessária São Paulo Círculo do Livro 1989 p 8 144 Ética EmprEsarial 10 cliente e inclusive livrálo da acusação Até que limite pode ir um publicitário deveria ele omitir os defeitos dos produtos e inclusive converter os vícios em virtudes São perguntas inescapáveis que poderiam ser multiplicadas Um cientista descobre um novo processo tecnológico de amplo interesse para a humanidade o que fazer Patenteálo e ganhar um bom dinheiro com as aplicações de sua invenção Ou presentear o público com sua descoberta para que todos pudessem desfrutar dela Em uma economia monetária dirão a primeira opção é a única razoável Mas como fica o bem da humanidade ao alcance da mão sem custo e sem empecilhos Há como fazer escolhas sem definir previamente a escala de valores As opções são ga nhar dinheiro e reunir condições para realizar novas descobertas ou gerar o bem comum e torcer para que haja o devido reconhecimento para poder prosseguir na empreitada Notemos que nenhuma dessas opções é ilegal ou se dobra à racionalização antiética O engenheiro Ray Tomlinson criou o primeiro programa para trocar mensagens por computador em 1971 Inventou um meio de comunicação usado hoje por bilhões de pessoas o email com o símbolo famoso que separa o nome do usuário de onde ele se encontra Só que não registrou sua invenção Perguntado em uma entrevista se não lamenta ter patenteado sua ideia pois poderia ter ficado rico com ela Tomlinson respondeu que a noção de que alguém poderia ou deveria enriquecer com uma invenção como essa era totalmente contrária ao espírito da época6 Nessa mesma linha temos o caso do criador da World Wide Web a famosa sigla www da internet cuja decisão consistiu em não patentear a invenção No extraordinário universo atual da internet em que o dinheiro frequentemente se torna a medida do sucesso BernersLee irritase com as perguntas sobre a oportunidade que perdeu de ficar rico Diz que tais perguntas sugerem um desrespeito com os pesquisadores do mundo todo que estão desenvolvendo ideias para os novos grandes passos em ciência e tecnologia Acredita que por si só a alquimia da pesquisa ou o surgimento de ideias por meio da colaboração são as verdadeiras recompensas As ideias de BernersLee para a Web brotaram do ambiente criativo do Cern laboratório internacional sediado na Suíça Cientistas de diferentes origens iam ao Cern para usar um acelerador de partículas que quebra átomos Depois de colherem os dados iam para casa analisálos Os trabalhos eram feitos em línguas diferentes e nos mais diversos fusos horários Eis o problema que BernersLee quis resolver desenvolver uma rede que pudesse ligar tão variados participantes Seu ponto de partida foi a internet inventada em 1973 por Vint Cerf e Bob Kahn e que funcionava inicialmente como uma rede de comunicações utilizada por universidades e institutos de pesquisa Em 1989 o cientista idealizou um sistema global de hipertexto uma maneira de ligar um texto a outro Desenvolveu também uma forma de identificar qualquer documento e com as duas ferramentas conseguiu encontrar informações ao navegar entre fontes antes não relacionadas Sua invenção foi batizada de World Wide Web Aliás seu livro Weaving the Web The Original Design and Ultimate Destiny of the World Wide Web by its Inventor narra a gestão do processo todo Hoje BernersLee é professor de Computação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts o famoso MIT7 6 O inventor do email é pobre Revista da Web outubro de 1999 p 19 7 TEMPLER Robert A World Wide Web enriqueceu muita gente menos seu criador Gazeta Mercantil 3 de fevereiro de 2000 Dilemas éticos de base 10 145 Outro choque entre valores pode ser apreciado no filme The Priest Em segredo de confissão um padre descobre que uma garota de 14 anos vem sofrendo repetidos abusos sexuais E quem é o causador O pai dela A dor e o medo da garota são grandes mas embora o sigilo confessional proíba o sacerdote de falar ou de fazer algo ele fica revoltado com as sevícias que lhe foram relatadas Qual orientação seguir O religioso arrisca insinuações e roga ao pai para que mude de comportamento Este manda meterse na própria vida Logo depois a mãe da garota descobre o drama da filha e pressiona o padre para que ele a ajude de algum modo Preso a seu juramento quanto ao segredo da confissão este nada faz A mãe então o amaldiçoa predizendolhe os horrores do inferno Aturdido pelo conflito de valores o sacerdote fica dilacerado Como fixar uma precedência entre o dever do sigilo o anseio por justiça e a compaixão pelo sofrimento alheio No filme a primazia do segredo da confissão sacramento da penitência deixa o padre de mãos atadas A variedade dos valores existentes em dado ambiente é tal que a hierarquização e a articulação deles se tornam imperativas para a própria perpetuidade da organização Um hospital convida seu corpo gerencial e lançalhe o seguinte desafio supondo que todos os objetivos fossem igualmente possíveis que tipo de hospital gostariam de ter O corpo gerencial diverge e dividese em seis grupos Os valores subjacentes ficam então evidentes 1 o grupo que se orienta por padrões profissionais almeja um hospital de ensino com recursos para pesquisa e desenvolvimento treinamento profissional e clientes interessantes 2 o grupo que se orienta pela necessidade de privilegiar o cuidado com a saúde representa os pacientes atuais e potenciais 3 o grupo que se orienta pelo desempenho financeiro aspira ter um hospital lucrativo que obedeça a uma estratégia de expansão em um mercado extremamente competitivo 4 o grupo que se orienta pela responsabilidade social deseja um hospital que trabalhe em sintonia com outras agências da comunidade e contribua para enfrentar os problemas tanto da saúde pública quanto privada 5 o grupo que se orienta pelo desenvolvimento tecnológico deseja recursos investidos em tecnologia moderna e instalações de pesquisa 6 o grupo que se orienta pelo mercado quer mais recursos para a pesquisa de opinião e para a propaganda a fim de ampliar as oportunidades empresariais e conseguir um nicho de mercado para o hospital Existem possíveis convergências entre os grupos a despeito dos interesses que os movem e dos valores que esposam os grupos 1 padrões profissionais e 5 desenvolvimento tecnológico podem perfeitamente afinarse os grupos 3 desempenho financeiro e 6 mercado são também muito próximos os grupos 2 cuidado com a saúde pública e privada e 4 responsabilidade social corporativa reúnem boas condições para associarse Além dessas harmonizações os valores se chocam e alguns deles deverão prevalecer em relação aos outros para viabilizar qualquer nova definição de políticas8 Vejamos agora a contraposição entre duas lealdades à empresa e à preservação do meio ambiente Uma empresa tem uma fábrica que obedece às exigências locais sobre emissão de substâncias tóxicas O rigor é tamanho que a emissão permanece abaixo do nível permitido pelas autoridades do meio ambiente mas um inspetor de qualidade da empresa baseado em pesquisa recente 8 BROWN Marvin T Ética nos negócios São Paulo Makron Books 1993 pp 5455 146 Ética EmprEsarial 10 argumenta que os efeitos cumulativos da poluição põem em risco a saúde pública Diz que as autoridades do meio ambiente concordariam com ele se tivessem acesso à pesquisa Parte de seus colegas endossa sua posição mas a maioria não o faz A direção também reluta porque mudar o processo de produção seria dispendioso e provocaria muitas demissões Insatisfeito com a inação da empresa que é a maior empregadora da cidade o inspetor repassa as informações à imprensa que acaba dando repercussão ao caso O comportamento do inspetor poderia ter sido diferente O que convinha ele fazer ficar quieto e manter a lealdade à empresa e aos colegas que poderiam ser demitidos ou exercer a lealdade aos princípios ambientalistas que visam preservar a saúde e a qualidade de vida da população De outra parte o que a empresa deveria fazer no tocante às acusações E com o inspetor9 Observemos a contraposição entre a lealdade à empresa e a lealdade ao interesse público Um gerente constata que seus pares estão cometendo algumas fraudes contábeis Comunica o fato a seus superiores mas estes não lhe dão ouvidos Frustrado e inconformado denuncia tudo à Receita Federal Qual valor deveria ter prevalecido Alguns dizem que o gerente manchou a reputação de seus colegas e a da empresa que o emprega cuspiu no prato em que comeu outros afirmaram que ele foi corajoso e honesto o bastante para defender o interesse público Das duas lealdades a qual conferir o predomínio10 Nessas situações se lançarmos mão do critério universalista a resposta tornase evidente devem prevalecer os interesses gerais ainda que interesses menores sejam feridos A legitimação ética do ponto de vista científico ocorre quando o critério da racionalidade universalista é observado quer dizer quando as decisões se orientam pela razão ética Isso significa dizer que em circunstâncias históricas dadas a justificação moral de pende da escala de valores prevalecentes nas coletividades inclusivas Todavia no que diz respeito à legitimidade ética devemos verificar se a decisão tem caráter universalista interessa a todos Para responder às indagações levantadas nos exemplos anteriores diremos Ainda que sofra represálias o gerente que denuncia fraudes contábeis comete uma ação altruísta imparcial está agindo de forma universalista gera o bem comum a despeito da posição parcial e particularista de seus colegas O mesmo vale para o inspetor de qualidade que se preocupa com o meio ambiente e a saúde pública e denuncia os efeitos cumulativos da poluição Idem para os grupos 2 e 4 do hospital preocupados com a saúde pública e privada e com a responsabilidade social corporativa desde que não coloquem em risco a sobrevivência financeira do negócio seria preciso encontrar uma equação compatível No caso do padre no entanto preso a seu dever de preservar o sigilo da confissão e diante do abuso sexual perpetrado pelo pai da menina o drama é agudo agir como cidadão e denunciar anonimamente o caso à polícia ou manter o silêncio que 9 TOWNLEY Preston Business Ethics commitment to tough decisions Vital Speeches of the Day v 58 n 7 p 208211 Jan 15 1992 10 No Brasil uma denúncia dessas é tachada de desleal pelos pares em função do velho estigma contra os delatores Dilemas éticos de base 10 147 lhe é exigido Ambas as soluções encontrarão suporte ético quer pela teoria da convicção quer pela teoria da responsabilidade Nos casos da invenção do email e da viabilização da internet os responsáveis agiram de forma altruísta extremada abriram mão dos benefícios financeiros que poderiam ter auferido ao doar seus inventos à humanidade No caso do avião de prova destinado à Força Aérea norteamericana não há dúvida de que a qualidade dos resultados deveria ter prevalecido sobre os prazos de entrega em nome da segurança do equipamento e da consequente prevenção de acidentes altruísmo imparcial bem comum e não como ocorreu racionalização antiética parcialismo bem restrito particularista No caso da guerra contra a limpeza étnica promovida pelos sérvios na Bósnia e em Kosovo ainda que a intervenção ocorresse sob a égide da Otan a legitimidade ética derivou de seu caráter humanitário No caso dos testes aplicados por empresas para prevenir drogas tóxicas não há como deixar de legitimálos quando põem em risco os interesses gerais E finalmente o mesmo vale para a editora que publica manuais que põem em risco a vida das pessoas Isso lembra o caso de Francis Bacon Depois de haver tecido críticas mordazes na Câmara dos Comuns contra os impostos exigidos pela rainha Elizabeth I teve sua nomeação para procurador da Coroa vetada Contou então com o amparo e a proteção do conde de Essex Anos mais tarde Essex foi denunciado como traidor e a soberana incumbiu Bacon de preparar a peça de acusação Entre dois fogos Bacon procurou dissuadir seu protetor de ser o pretendente escocês ao trono da Inglaterra Como não logrou êxito restoulhe acusar Essex seu velho amigo Este foi condenado à morte e executado em 1601 Logo depois Bacon defendeuse da pecha de deslealdade afirmando que um homem honesto prefere Deus a seu rei seu rei a um amigo11 Fez entender assim que apenas cumpriu o seu dever12 Enfrentemos agora outra questão delicada A da cega obediência às ordens que serviu como justificativa à sistematização da morte nos campos de extermínio nos gulags nas deportações em massa nos assassinatos planejados de todos aqueles que incomodavam os impérios de terror dos totalitarismos fascista e comunista E isso sem esquecer os mas sacres cometidos por soldados norteamericanos no Vietnã ainda que os Estados Unidos proclamassem seu respeito aos direitos humanos Qual foi a base das justificativas O guardachuva das ordens recebidas a obediência devida O julgamento de Karl Adolf Eichmann no ano de 1961 em Jerusalém ilustra bem essa questão alegou que era um instrumento nas mãos de seus superiores eximiuse da responsabilidade sobre as mortes dos judeus nos campos definiuse como especialista em transporte designado para solver problemas técnicos disse que tudo o que fez se resumia a seguir as ordens e que tinha respeito obsessivo pela hierarquia13 Eichmann foi condenado porque cometeu delitos contra a dignidade da espécie humana Poderia ter justificado seus atos pela moral nazista que pregava a eliminação 11 No Brasil trair um amigo um parente um compadre aparece no mais das vezes como uma ignomínia por causa da relevância que as relações pessoais assumem no contexto social e quem se vê traído simplesmente perde o sentido das coisas como se o próprio cachorro tão leal e companheiro repentina e inexplicavelmente o mordesse 12 ANDRADE José Aluysio Reis de Vida e Obra In Bacon Os Pensadores São Paulo Nova Cultural 1999 p 8 13 REZENDE Marcelo O espírito do terror Gazeta Mercantil 911 de abril de 1999 148 Ética EmprEsarial 10 dos seres inferiores não o fez porque a Alemanha perdeu a guerra Poderia ter alegado que os meios utilizados eram indispensáveis para a consecução dos fins criar um es paço vital para a raça superior e garantir a perpetuidade do Terceiro Reich não tentou fazêlo porque ficaria adstrito aos horizontes nacionais da Alemanha e ao abrigo exclusivo da ideologia nacionalsocialista Resta o argumento reiterado sob muitos céus de que os que seguem ordens não res pondem pelas consequências de seus atos Essa concepção enganosa pretende se amparar de maneira disciplinada e quase religiosa na teoria da convicção e coloca a hierarquia corporativa militar clerical partidária burocrática empresarial acima dos deveres do cidadão Tal refúgio é factício porque não passa pelo crivo da racionalidade universalista Com efeito esses crimes interessam à humanidade Todavia devemos convir que houve apoio moral por parte dos povos que praticaram os pogroms as limpezas étnicas os paredões as deportações coletivas as pilhagens os estupros e as atrocidades cometidas contra as populações civis dos países invadidos a perseguição e a eliminação metódica dos judeus na Alemanha nazista a depuração dos elementos contrarrevolucionários infiltrados nos Partidos Comunistas a expropriação das terras dos kulaks a caça aos espiões e aos traidores da quinta coluna a repressão em massa dos inimigos do povo ou dos indesejados o massacre dos proprietários fundiários na União Soviética a crueldade inaudita do terror stalinista a delação ins titucional nos regimes fascistas o uso de reféns sociais os campos de reeducação moral na China maoísta Essas violências revoltam a consciência moral internacional dos dias de hoje Foram cometidas contudo em nome do destino de grandeza das raças superiores ou em nome da sociedade igualitária Por exemplo propalouse que para preservar a raça ariana das impurezas da contaminação étnica era necessário limpar o jardim das ervas daninhas ou exterminar os seres inferiores Proclamouse que em defesa da massa proletária opri mida era indispensável eliminar seus exploradores burgueses e latifundiários O Reich dos Mil Anos ou os amanhãs cantantes assim o exigiam Especulações ideológicas racionalizações infames Mas nem tudo é lama Durante a Segunda Guerra Mundial pescadores holandeses escondiam judeus em seus barcos para leválos à Inglaterra e quando abordados por pa trulhas SS mentiam invariavelmente quanto à presença deles Queriam é claro salválos dos campos de concentração que os aguardavam Entre falar a verdade e a preservação da vida escolhiam a vida Em uma clara coincidência aliás com o que fariam os adeptos da teoria da responsabilidade só que por outra razão oporse à matança sistemática daqueles que haviam se tornado bodes expiatórios Assolada desde janeiro de 1992 por uma guerra civil cruenta conduzida pelos fundamentalistas da Frente Islâmica de Salvação FIS a pacificação da Argélia foi encetada pelo novo presidente da Argélia Abdel Aziz Bouteflika em julho de 1999 O governo militar apoiado pela França havia anulado as eleições vencidas pela FIS expulso o movimento da vida pública encarcerado seus chefes e perseguido seus militantes A violência que se seguiu sem frentes fixas de combate incluiu atentados contra civis argelinos e estrangeiros provocou a morte de cerca de 100 mil pessoas e feriu um milhão Em nome do laicismo socialista o objetivo do governo militar foi impedir que se instalasse no país um Estado teocrático baseado nas práticas do Islã primitivo aplicação das penalidades da sharia aos delinquentes e utilização no campo dos direitos público e privado de institutos concebidos para a sociedade pastoril Dilemas éticos de base 10 149 Bouteflika enviou ao Parlamento um projeto de lei a chamada concórdia civil que concedeu anistia aos guerrilheiros reduziu as penas dos condenados e tomou as providências indispensáveis para reintegrar os rebeldes à sociedade argelina14 Um referendo em setembro deu esmagadora maioria ao plano de paz preparado pelo governo com 9863 dos votantes a favor Para os adeptos da teoria ética da convicção negociar com insurretos fanáticos poderia estimular novas atrocidades mas para Bouteflika adepto da teoria ética da responsabi lidade não há solução repressiva para um movimento com raízes profundas no país O melhor seria tentar a pacificação nacional com todos os riscos que tal política implica Em julho de 1999 uma organização não governamental com sede na Suíça denominada Solidariedade Cristã Internacional afirmou ter comprado e depois libertado 2035 escravos no sul do Sudão A entidade diz que pagou 50 dólares por cabeça em dinheiro a um intermediário árabe e que desde 1995 conseguiu libertar mais de 11 mil cativos Segundo habitantes do sul do Sudão milícias árabes armadas e organizadas pelo governo de Cartum vêm do norte do país para sequestrar mulheres e crianças para usálas depois como escravas Crianças contaram histórias de violência estupro e assassinato enquanto estiveram em poder dos árabes que as capturaram Os críticos da compra e da libertação de escravos afirmam que esta prática estimula o comércio de escravos O chefe da Unicef agência da ONU para a infância comentou em comunicado que com 50 dólares por escravo em um país em que a maior parte das pessoas sobrevive com menos de 1 dólar por dia essa prática estimula o tráfico e a criminalidade A Unicef colocase contra a compra de escravos por princípio mesmo que o objetivo seja libertálos depois teoria da convicção Em seu apoio uma dissidência americana daquela organização não governamental denominada Liberdade Cristã Internacional diz ter encontrado provas de que crianças fingem serem escravas para atrair dólares do Ocidente Em contrapartida a organização suíça responde à acusação afirmando que a escravidão já existia muito antes que seus membros começassem a libertar escravos Acresce ainda que houve menos capturas depois da libertação recorde de escravos Segundo outros observadores tratase de uma solução pragmática embora imperfeita diante do fracasso do governo sudanês e da comunidade internacional em lidar com o problema teoria da responsabilidade na vertente da finalidade15 Vejamos agora um caso na esfera empresarial A Manville Corporation teve sérios problemas com pessoas que reclamaram por terem ficado doentes após 15 ou 20 anos de exposição aos produtos de asbesto amianto As demandas alcançaram a espantosa cifra de US1 bilhão Daí em diante a empresa decidiu não mais fabricar ou vender produtos até que pudessem ser manufaturados e usados com segurança não só nos Estados Unidos mas no mundo todo Empenhouse em testes exaustivos e passou a colocar rótulos nos produtos que apresentavam qualquer indício de serem cancerígenos Os rótulos em 12 idiomas continham um grande C nos sacos 14 SAMPAIO Antônio Amaral de Perspectivas de paz na Argélia O Estado de S Paulo 8 de julho de 1999 15 DENYER Simon ONG liberta 2035 escravos no Sudão Reuters reproduzido pela Folha de S Paulo 9 de julho de 1999 150 Ética EmprEsarial 10 Ocorre que autoridades e clientes japoneses disseram à empresa que se o rótulo viesse escrito em japonês não fariam negócio Se fosse em inglês vá lá A operação a ser desenvolvida com o Japão representava US20 milhões e estava à mercê de concorrentes dispostos a tudo A Manville Corporation todavia não arredou pé de sua política Em consequência perdeu grande parte da operação Aos poucos porém foi recuperando o terreno perdido pois os japoneses reconsideraram sua posição original e o governo japonês fez saber à Manville que admirava sua coragem A postura da empresa deveuse a uma reação a seu passado repulsivo ela havia ocultado deliberadamente de seus empregados os riscos que corriam ao inalar o asbesto pois este provoca doenças pulmonares fatais como o câncer a asbestose e o mesotelioma Segundo seus dirigentes da época era mais barato pagar as indenizações do que desen volver condições de trabalho seguras e divulgar informações prejudiciais ao produto Processada a Manville entrou em concordata em 1982 e 80 de suas ações foram trans feridas às milhares de vítimas Eis por que escaldada considerou sensato preocuparse explicitamente com a manipulação e o uso de seu produto passando a praticar uma política que no longo prazo beneficiava o próprio negócio16 Apoiouse então na teoria da responsabilidade após madura análise estratégica Em resumo a teoria ética da responsabilidade quando adotada é mais típica dos homens de ação dos estadistas dos políticos dos empresários dos administradores dos técnicos daqueles que põem a mão na massa deliberam em torno de cenários alternativos exercitam cálculos equacionam custos e benefícios se comprometem com o funcionamento das atividades sociais É típica dos homens que se dispõem a cometer heresias e inovações morais ainda que mantendo os pés no chão Por sua vez a teoria ética da convicção é mais típica dos homens de contemplação dos missionários dos pregadores dos monges dos crentes dos artistas dos cientistas dos visionários mas também curiosamente dos burocratas que convertem regras em dogmas É típica pois daqueles que se comprometem com crenças ou normas com uto pias ou ortodoxias e que estão pouco afeitos às ambiguidades e à gerência do cotidiano Assim por realismo pragmático os responsáveis tomam decisões dolorosas reali zam ginásticas mentais e engenhosas alianças movidos pela utilidade universalista de suas ações Em compensação os convictos ficam à margem dos acordos políticos não admitem trair os fundamentos originários de seu ideário nem aceitam dobrarse ao jogo das concessões inerentes ao processo de negociação mantêm imaculadas suas bandeiras e não se deixam seduzir pelas injunções do poder combatem sem trégua inspirados pela pureza de seus ideais buscam o martírio pessoal em nome de valores perenes como se fossem monges guerreiros soldados da fé ou mártires do amanhã De forma dialética a teoria da convicção acaba sendo a preferida pelo establishment para ser divulgada à massa dos membros das organizações Dadas as suas codificações e as suas cores fortes acomodase bem à sustentação da ordem estabelecida ao respeito à disciplina e à hierarquia assim como ao cultivo de prescrições que assegurem a per petuidade das instituições Quando as morais que dela derivam são introjetadas pelos subalternos o controle sobre eles tornase barato e seguro É bem mais fácil tratar com agentes cujos comportamentos são normalizados visto que eles obedecem a obrigações explícitas e alimentam certezas confortáveis 16 Não se pode ter sucesso sem a confiança dos clientes disse seu presidente Dillon DILLON George C The Prospect of Competitive Ethics Vital Speeches of the Day v 57 n 17 p 526529 Jun 15 1991 Dilemas éticos de base 10 151 A teoria da responsabilidade supõe em contraposição reflexões e deliberações É preferencialmente praticada pelas cúpulas organizacionais ou pelas elites uma vez que possibilita interpretações ou variações em torno de um tema a exemplo das bandas de jazz ou de rock mistos de disciplina grupal e de improvisação individual Aliás há poucas morais que se moldam por ela porque diante de dilemas angustiantes a teoria prospecta soluções possíveis e não soluções prontas Com efeito ao responsabilizarse pelo futuro das coletividades inclusivas a teoria da responsabilidade tem a ver com o exercício do poder Por isso prestase com mais frequência à mistificação particularista que justifica abusos e distorções já que tende a fazer concessões no uso dos meios necessários para alcançar fins universalistas Basta lembrar as repressões stalinistas arbitrárias e ensandecidas que varriam dissidentes e perseguidos de toda sorte eles vestiam a carapuça de inimigos objetivos e eram forçados a confessar crimes que supostamente haviam cometido contra o Partido e a pátria do socialismo Ao fim e ao cabo aqueles homens seviciados lançados à beira da loucura exigiam o próprio sacrifício convencidos de que puseram em risco os destinos da Revolução O império da tortura física e mental era tal que em seu grito de agonia in vocavam o nome de Stálin Para os algozes bastavam as justificações de uma pseudoética da responsabilidade para as vítimas restavam as genuflexões da ética da convicção Quando os fins últimos se convertem em fins absolutos deslizase insensivelmente para a fé e transformase a doutrina política em religião professada com cego ardor A teoria da responsabilidade transmudase então em teoria da convicção Assim nenhuma das duas teorias pode pretender exclusividade em termos de intransigência17 Sentenciou Henry Kis singer O problema mais fundamental da política não é o controle do mal mas a limitação da retidão moral Afinal os nazistas os jacobinos os aiatolás iranianos e demais revolucionários foram todos santarrões Nada é mais perigoso do que gente convencida de sua superioridade moral pois ela nega aos opositores justamente esse predicado e o resultado é a tirania Eis assim revivida a velha controvérsia entre realistas e idealistas na orientação da política externa De modo geral os realistas quase sempre dirigem a política exterior sem conferir excessivo relevo à questão dos direitos humanos p ex na China comunista ou toleram ditaduras que servem aos interesses das grandes potências p ex os absolutis mos dos xeques árabes da península arábica Os idealistas por sua vez comparecem a conferências acadêmicas e escrevem livros e artigos sem participar diretamente do jogo Por fim é interessante lembrar uma fala de Adlai E Stevenson Muitas vezes é mais fácil lutar por princípios do que cumprilos Isso pode nos levar a ter ainda mais humildade e cautela diante do dilema dos valores Pois sobretudo quando os valores são universalistas é preciso definir uma delicadíssima hierarquização escolher entre o bem e o bem tarefa atordoante que em última instância só se resolve politicamente os interesses que falam mais alto decidem a parada O DILEMA DOS DESTINATÁRIOS O jornal The Los Angeles Times concordou em dividir os lucros de uma edição de sua revista dominical dedicada inteiramente à construção de um novo estádio esportivo o Staples Center com nada menos que a empresa responsável pelo projeto Acontece que 17 Escreve Eduardo Giannetti O fervor religioso por exemplo com frequência mobiliza aquilo que um homem tem de melhor e de mais elevado para colocálo a serviço do que há de pior e mais abominável Da mesma fonte sincera de onde brotam o sacrifício e a abnegação genuína pelo próximo parece nascer também a espantosa e atroz cegueira que santifica aos olhos do crente a brutal perseguição e extermínio do semelhante FONSECA Eduardo Giannetti da Autoengano op cit p 109 152 Ética EmprEsarial 10 esta empresa incentivou empreiteiros e patronos do estádio a anunciar na revista Tal atitude sem dúvida poderia ser questionada por editores independentes tachandoa de suspeita em face do conflito de interesses configurado entre os interesses comerciais e os dos leitores Percebido o fato o pessoal da redação ficou indignado e revelou que o jornal era sócio secreto do Staples Center O chairman Mark Willes nunca escondeu sua opinião sobre a primazia dos acionistas em relação aos leitores e jamais mascarou a prioridade que dava ao valor das ações e às margens de lucro Mas diante do risco de que o noticiário per desse credibilidade recuou aceitou que se publicasse um relatório sobre o caso redigido pelo crítico de mídia do jornal o ombudsman da casa Este por sua vez explicou o quão preocupante foi a demolição do muro erguido entre o noticiário interesse dos leitores e o negócio interesse do jornal acusou Willes de negligenciar os padrões jornalísticos elementares e censurou o diretor de redação por não defender tais padrões a contento18 Ponto para os leitores Entretanto em outro episódio que envolveu a revista masculina Esquire não foram os leitores que ganharam Esquire decidiu suprimir um conto gay programado para a edição de abril de 1997 Qual foi o motivo O medo de desagradar a um anunciante De fato as 16 páginas do conto já estavam em fase de provas Foi nesse ponto que a Publisher editorachefe expôs um dilema para os demais editores Ela ainda não notificara a Chrysler sobre a publicação Teria de fazêlo para honrar um acordo firmado com a empresa que consistia em avisála antecipadamente sobre artigos provocativos ou ofensivos de qualquer natureza Estavam em jogo quatro páginas de anúncios para aquela edição Mas a informação sequer chegou à Chrysler A revista Esquire simplesmente matou o conto Em consequência um de seus editores se demitiu e o episódio provocou um tremendo malestar Tirar artigos faz parte do dia a dia de qualquer editor todavia quando por trás disso não está o interesse do leitor mas o medo da reação do anunciante isso é notícia19 Já fizemos referência às implicações que decisões ou ações acarretam a relação moral beneficia ou prejudica a quem Os casos agora retratados se inscrevem no que chamamos de dilema dos destinatários porque a forma de solvêlos afeta desigualmente os agentes envolvidos Afinal de contas não é fácil beneficiar todos o tempo todo Isso significa dizer que ter sempre a humanidade por referência primeira e última constitui um desafio louvável porém difícil e laborioso Toda decisão ou ação pode beneficiar ou prejudicar agentes cuja abrangência recobre um vasto leque da humanidade como um todo ao indivíduo átomo das coletividades do absolutamente universal ao absolutamente singular Entre outros tantos agrupa mentos cabem no intervalo as populações que compõem civilizações impérios nações religiões etnias regiões classes sociais categorias sociais públicos bairros vizinhanças clãs organizações subunidades organizacionais redes informais de poder círculos ín timos famílias Por via de consequência desenhase um mosaico de clivagens constituído por inúmeras identidades e lealdades 19 BLECHER Nelson Sexo anúncios e dores de cabeça Revista Exame 4 de junho de 1997 18 Escreve a esse respeito Max Frankel jornalista do The New York Times Um muro é necessário para isolar a coleta de notícias que deve ser um desinteressado serviço público da busca do lucro que é necessário para garantir a independência do negócio Em outras palavras o jornalismo é um empreendimento caro e paradoxal só consegue florescer quando dá lucro mas fica muito suspeito quando busca o lucro a qualquer preço FRANKEL Max Um muro entre a notícia e o comércio O Estado de S Paulo 16 de janeiro de 2000 Dilemas éticos de base 10 153 O emaranhado de fidelidades cruzadas é de tal ordem que decisões e ações só podem divergir e se chocar No plano mais miúdo das morais microssociais vale a pergunta qual dos sistemas normativos legitima ou questiona o quê As múltiplas morais ainda que balizadas pela moral geral oferecem leituras diferenciadas e suscitam dilemas agudos A razão disso encontrase nas complexas contradições que as travejam e que somente o embate político pode dirimir pois é praticamente impossível dissociar relações de força e moralidade A definição do que é ou não moral no seio de uma coletividade ou entre coletividades passa necessariamente pelo poder de que dispõem os adeptos de um código ou de outro Em outras palavras os imperativos ou os propósitos morais que prevalecem acabam sendo os dos vencedores das contendas O que é considerado moral pelo código de conduta de uma empresa pode ser con siderado imoral por outra uma permite que seus equipamentos sejam utilizados para tratar de assuntos pessoais dos funcionários outra não tolera tal uso uma autoriza o pagamento de propinas aos compradores de seus produtos e serviços outra se recusa terminantemente a fazêlo preferindo perder os negócios que dependem desse tipo de arranjo uma faz das manipulações contábeis seu breviário outra não admite práticas ilícitas nos balanços uma cultiva relações incestuosas com autoridades e administradores públicos para promover seus negócios outra prefere guardar a devida distância para não comprometer sua imagem e assim por diante Quando algumas categorias profissionais como a dos motoristas de ônibus e operadores do Metrô entram em greve depois de verem rechaçadas suas reivindicações seu movimento produz um verdadeiro cataclismo urbano Os usuários ficam literalmente a pé perdem horas de trabalho e de descanso e gastam mais dinheiro para fazer tudo o que exige des locamento O restante da população também sofre os efeitos do transtorno causado por um trânsito caótico Ficam então prejudicados os usuários do transporte coletivo um público formado pelas mais diversas classes e categorias sociais além de todos aqueles que necessitam transitar pelas vias urbanas a começar pelos motoristas de carros particulares Perdurando a greve os prejudicados tendem a irritarse e amiúde a manifestarse às vezes chegam a travar confrontos pontuais com os grevistas ou a depredar ônibus e vagões O que isso significa Que decisões e ações ainda que consideradas morais e legítimas por alguns não o são necessariamente por outros porque ferem interesses alheios põem em litígio coletividades diferentes despertam velhos rancores estereótipos e preconceitos Aliás quanto menor for a coletividade beneficiada em detrimento das demais coletividades mais acirradas ficam as divergências porque maiores são as dis tâncias que as separam As duas teorias éticas são universalistas por definição mas nem toda moral o é Por exemplo tanto a moral do oportunismo brasileira exclusivamente preocupada com as conveniências pessoais quanto a moral do sucesso norteamericana indiferente por tudo o que não diga respeito ao interesse próprio e narcisista são egoístas e portanto obedecem a uma racionalização antiética20 Nas sociedades contemporâneas complexas e monetárias 20 Rastreamos o que denominamos moral do sucesso em setores significativos da população americana uma clara deformação da chamada ética do trabalho protestante que interpreta o sucesso no mundo como sinal de eleição por Deus porque substitui o trabalho duro pela mera ostentação de riqueza Esta moral expressa uma espécie de darwinismo social já que a cultua a prosperidade e o consumo b exalta as recompensas materiais e seu gozo c leva ao paroxismo as ambições individuais d promove um jogo social de soma zero à medida que o sucesso de um alimentase do fracasso alheio desprezamse os perdedores os vencidos pela vida que carregam os sinais da condenação eterna e consagra o triunfo dos vencedores winners a despeito da frustração e do desalento de uma legião de fracassados losers f resume a realização pessoal à ganância g celebra as sensações de prazer e as atividades sexuais h converte o dinheiro em estalão universal para avaliar as pessoas 154 Ética EmprEsarial 10 o interesse próprio abusivo e ensimesmado converteuse em referência maiúscula ainda que no mais das vezes tal primazia fique subreptícia Ora à medida que inúmeras situações do cotidiano levam os agentes a fazerem escolhas egoístas além de destituídas de desprendimento e de compromissos coletivos colocase incessantemente em xeque o arcabouço ético Mais ainda lançase um terrível desafio descontada a estreiteza do egoísmo qual é o alcance do altruísmo que certas decisões implicam Qual o tamanho e a representatividade da coletividade que será beneficiada em cada caso concreto O teor dessas perguntas mergulha muitos agentes na perplexidade afinal quantas forças sociais desfraldam bandeiras aureoladas por alguma legitimidade moral procla mam aos quatro ventos a nobreza de suas causas desfrutam das bênçãos das respectivas igrejas e ao fim e ao cabo promovem um banho de sangue Em 1945 quando foram retomadas as Filipinas das mãos japonesas os generais norteamericanos comandados pelo general MacArthur consideraram os bombardeios de prédios históricos de Manila e as muitas mortes de civis como sendo perdas justificáveis O mesmo argumento foi utilizado por Harry Truman presidente dos Estados Unidos quando decidiu lançar as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki Sentenciou que era o único modo de forçar o Japão a renderse incondicionalmente pois se ordenasse o assalto à ilha não poderia evitar que mais de um milhão de soldados norteamericanos acabassem mortos ou feridos Os interesses de uma nação em guerra sempre ensejaram discursos de justificação No caso o estratagema funcionou como anteparo moral para que a fúria nuclear fosse desencadeada e para que o genocídio que ocorreu recebesse o respaldo de muitos outros países Nem mesmo o tratado entre os Estados Unidos e a Rússia em 1992 que decidiu desativar dois terços das ogivas nucleares dos respectivos arsenais algo que deveria interessar à humanidade como um todo obteve unanimidade A começar pelas empresas fornecedoras e pelas corporações militares passando pela recusa de algumas nações como a China a Índia e o Paquistão em aderir aos acordos de não proliferação nuclear De fato as três nações não abandonaram seus programas nucleares nem seus testes Em setembro de 1996 o Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares CTBT na sigla em inglês foi assinado por 155 países entre os quais os Estados Unidos a China a França o Reino Unido e a Rússia Previa a criação de uma organização internacional encarregada de instalar e administrar mais de 300 estações de monitoramento para verificar seu cumprimento A ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos país que o propôs e possuía a maior parte do arsenal de 35 mil armas atômicas do planeta era uma das condições para sua entrada em vigor juntamente com os 44 países que também possuíam capacidade nuclear Todavia embora ratificado por 48 países o tratado foi rejeitado pelo Senado norteamericano em outubro de 1999 E a despeito da manifestação a favor da ratificação por parte de mais de 60 dos americanos a oposição republicana considerou a aplicação do tratado não verificável e contrário aos interesses de segurança dos Estados Unidos Posto isso deixou de haver impedimento para que os países que se encontravam no limiar de ter a bomba pudessem continuar fazendo pesquisas e experiências21 Vêse o quão difícil chega a ser costurar um consenso universal mesmo quando a tese do desarmamento interessa à humanidade como um todo 21 SOTERO Paulo Senado dos EUA rejeita tratado antinuclear O Estado de S Paulo 14 de outubro de 1999 e artigos dos dias 12 13 e 15 de outubro de 1999 AITH Marcio Clinton ataca oposição isolacionista Folha de S Paulo 15 de outubro de 1999 LAPOUGE Gilles Perigos abertos pela rejeição são infinitos O Estado de S Paulo 15 de outubro de 1999 Dilemas éticos de base 10 155 De forma similar ainda que em outro patamar as missões religiosas que vieram ao Brasil para evangelizar o gentio em nome da civilização cristã destruíram o modo de vida indígena sem saber e provocaram a morte de centenas de milhares de índios Em termos literais portanto o processo de catequese orientado por santos propósitos acabou beneficiando os colonos portugueses pois ao submeter os autóctones aos pa drões culturais europeus a catequese destruiu sua identidade comunitária e facilitou a ocupação das suas terras Em um nível mais prosaico agora a proibição de fumar nos aviões levou as categorias sociais de fumantes e de não fumantes a se confrontar Quem se beneficia com o interdito e quem sai prejudicado A maioria dos não fumantes atuais venceu a parada contra a minoria de fumantes a maioria fez com que prevalecesse a tese de que ambientes públicos não devam ser contaminados por fumaça e agentes químicos perniciosos Em suma toda decisão e ação que seja portadora de implicações morais tende a con frontar agentes coletivos cujos interesses divergem e pode provocar conflitos que se refletem nos discursos morais pregados Como resolver dilema tão cruciante A teoria da convicção sugere que se estabeleça um código convencionado de princípios ou de ideais que seja estalão de valor dirima as dúvidas e arbitre as diferenças Só que diante dos interesses contraditórios que opõem os vários agentes coletivos alguns antagônicos e portanto inconciliáveis outros não antagônicos e por isso mesmo administráveis é difícil estabelecer o consenso Resta trilhar os caminhos apontados pelas comunalidades e melhor ainda pela racionalidade universalista que serve de parâmetro científico para legitimar decisões Por exemplo uma vez que o fumo é objetivamente nocivo à saúde pública seu consumo pode ser tolerado em ambientes abertos que não produzam danos a quem não é fumante uma vez que os arsenais de armas nucleares constituem um perigo para a sobrevivência da humanidade todas as medidas adotadas para sua desativação são louváveis e sua eliminação é legítima A teoria da responsabilidade subscreveria tais decisões na sua vertente utilitarista Relembremos que essa vertente obedece à lógica do máximo de bem para o maior número e implica dois fatores 1 o fator intensidade máximomínimo de bem gerado instruído pelo critério da qualidade ou eficácia fazer o bem gerar felicidade e 2 o fator quantidade maiormenor número de pessoas informado pelo critério da equidade abrangência da população alcançada e não discriminação Um exemplo permite iluminar as respostas que poderiam ser fornecidas pelas quatro vertentes éticas e a legitimidade respectiva Imaginemos um programa de distribuição de alimentos promovido por uma prefeitura mas que após dois anos de vigência esteja com dificuldades orçamentárias Enquanto funcionou o programa fornecia a ração adequada de alimentos ração plena para todas as famílias com crianças até dois anos de idade Perfazia portanto o máximo de bem critério da eficácia para o maior número critério da equidade e atendia aos requisitos da vertente utilitarista da teoria da responsabilidade Ora na nova conjuntura dada a escassez de recursos disponíveis apresentamse as seguintes opções considerando a existência de uma verba remanescente A suspender o programa no intuito de compatibilizar receitas e despesas públicas sem privilegiar quem quer que seja isto é deixar de distribuir a ração B fornecer a ração plena apenas para as famílias com crianças até três meses de idade a verba restante permitiria tal dis tribuição provocando o máximo de bem para o menor número C fornecer uma ração igualitária a todas as famílias com crianças até dois anos resultado da divisão equitativa que a verba permitisse quota possível acarretando o mínimo de bem para o maior número D fornecer uma ração ainda que pequena a todas as famílias com crianças até seis meses de idade ocasionando o mínimo de bem para o menor número 156 Ética EmprEsarial 10 Naturalmente a opção originária que distribuía a ração plena para todas as famílias com crianças até dois anos de idade é que melhor satisfazia a população porque era a ração recomendada pelos médicos e propiciava o máximo de bem para o maior número Desfrutava também de ampla legitimidade já que atendia a ambos os critérios da eficácia ração adequada e da equidade abrangia todas as crianças indistintamente Todavia essa opção ficou inviabilizada pelo aperto orçamentário Na nova conjuntura a opção A que consiste em suspender o programa tem por consequência a universalização do sacrifício uma vez que ninguém irá receber a ração mas tem o mérito de não desperdiçar recursos públicos e de não conceder privilégios a uns em detrimento de outros Malgrado o desgaste político decorrente das explicações que terão de ser dadas à população o prefeito pode obter apoio e compreensão para essa opção que se inspira na vertente de princípio da teoria da convicção A opção A remete à máxima do tudo ou nada todos recebem ou ninguém recebe A opção B que consiste em maximizar o bem para o menor número fornecendo a ração plena para as famílias com crianças até três meses de idade revestese de caráter elitista embora seja defensável em relação à suspensão do programa Assemelhase ao caso dos médicos do setor público que por falta de vagas na UTI ou por carência de leitos e de pessoal realizam uma triagem para definir quais pacientes serão tratados E remete à vertente da finalidade da teoria da responsabilidade alcançase a eficácia a ração fornecida é plena ainda que à custa da equidade um menor número de crianças será atendido Agese de fato nos limites do possível os objetivos de saúde pública são plenamente atingidos e os recursos orçamentários escassos não são desperdiçados de modo que sendo bons os fins faz sentido atender a um número menor de crianças A opção C que fornece uma ração insignificante aos usuários originários do programa de alimentos isto é a todas as famílias com crianças até dois anos de idade estribase no critério da equidade Seus adeptos dirão o mais importante é não discriminar cabe partilhar igualmente o pouco que se tem todos devem sofrer as mesmas dificuldades A equidade se sobrepõe à eficácia ainda que não se satisfaçam os requisitos técnicos da dieta e que não se utilize da forma mais produtiva os poucos recursos públicos O maior número certamente irá legitimar a opção lastreado no ideal da igualdade e fiandose na vertente da esperança da teoria da convicção No entanto vozes críticas dirão que sendo risível a ração ficam todas as famílias niveladas na penúria tornando ineficaz o programa de alimentos e inviabilizando os objetivos perseguidos em termos de saúde pública A opção D que consiste em fornecer uma ração bem pequena e portanto inadequada a todas as famílias com crianças até seis meses de idade beneficia minimamente o menor número e fecha o circuito da combinatória Em tese traz menor desgaste político do que a suspensão pura e simples Mas qual argumento a suporta Em situação de es cassez aguda quando todos estão à míngua alguns ao receber pouco já é muito Vale lembrar entretanto que apenas um pequeno número será atendido e mal atendido Aparentemente não há como respaldar eticamente tal opção já que esta não satisfaz o critério da eficácia sendo pífio o benefício oferecido os recursos públicos seriam mal empregados nem observa o critério da equidade porque alguns poucos receberão alimentos em quantidade insuficiente O que temos diante de nós Um embate de legitimação entre o critério da eficácia fornecer a ração plena para preencher os requisitos técnicos e otimizar o uso do dinheiro dos contribuintes e o critério da equidade tratar igualmente todos os postulantes Tanto a vertente utilitarista do máximo de bem para o maior número quanto a vertente de princípio de suspender o programa para não privilegiar quer que seja e não malbaratar recursos públicos satisfazem ambos os critérios de forma combinada Dilemas éticos de base 10 157 A opção da distribuição de uma ração insignificante mas universal a todas as famílias que participavam originariamente do programa de alimentos condiz apenas com o critério da equidade em um suporte ético dado pela vertente da esperança A opção que fornece a ração plena a todas as famílias com crianças até três meses de idade fazendo o máximo de bem para o menor número respeita tão somente o critério da eficácia e encontra apoio na vertente da finalidade Em contrapartida nenhum critério é satisfeito pelo atendimento do mínimo de bem para o menor número de maneira que tal opção não logra receber legitimidade ética Não parece haver então solução universal ao dilema dos destinatários cujo encami nhamento prático só se faz via intervenção política quem tiver maior cacife imporá sua opção e a legitimará O caso do naufrágio do Titanic em 1912 permitenos lançar mais um olhar sobre os dois critérios que subjazem ao dilema dos destinatários eficácia ou equidade Em termos polares máximo de bem para o menor número ou mínimo de bem para o maior número Dos 2287 passageiros e tripulantes que afundaram na viagem inaugural do maior e mais luxuoso transatlântico da época houve apenas 705 sobreviventes Os 20 botes salvavidas poderiam ter acolhido quando muito 1300 pessoas mas a tripulação não sabia manejar os botes e apavorada com a ideia de que rachariam desceu muitos deles ao mar com 12 pessoas em vez das 65 possíveis Centenas de pessoas pularam nas águas geladas gritando de dor e pavor Nenhum dos barcos mesmo dentre os pouco carregados voltou para socorrer quem quer que fosse Duas decisões tomadas merecem reflexão ainda que sejam justificadas pela teoria da responsabilidade na sua vertente da finalidade A primeira foi feita pelos oficiais e diz respeito à precedência das mulheres e das crianças que estavam em menor número e que passaram na frente por serem consideradas menos resistentes Prevaleceram a eficácia e o respeito ao valor do cavalheirismo mas a contabilidade social das mortes desnudou uma face mais ignominiosa apenas 3 das mulheres e crianças da primeira classe morreram enquanto morreram 41 das que pertenciam à terceira classe pois não foram embarcadas nos botes Mais ainda no total a divisão percentual de sobreviventes clarifica o privilégio dado aos endinheirados dois terços da primeira classe contra um quarto da terceira chegaram a salvo22 Não só o menor número obteve o máximo de bem mas os ricos foram amplamente beneficiados nessa escolha de Sofia A discriminação entre as classes sociais implícita nos passageiros endinheirados dos camarotes varreu do mapa qualquer resquício de equidade Desse modo levantase aqui uma indagação vital qual é o menor número que será beneficiado A segunda decisão nos remete ao fato de os botes salvavidas não terem retornado para tentar salvar aqueles que ficaram boiando nas águas geladas Que riscos correriam O de serem afundados pelos homens tomados de pânico Mais uma vez a eficácia prevaleceu em detrimento da equidade Eficácia que se escuda na racionalidade sem dúvida mas que pode servir a quem ocupa os cumes da sociedade Em situação extrema os mais bem aquinhoados podem valerse de seus trunfos e podem reproduzir o apartheid social Ainda que a legitimidade ética possa ser fornecida por uma análise objetiva no caso das intervenções da Otan na Bósnia e em Kosovo prevaleceram os direitos humanos sobre os direitos das nações ou a soberania nacional situações como a do Titanic em que é preciso escolher quem fará parte do menor número acabam sendo decididas pelos padrões culturais vigentes e são condicionadas por uma relação de forças O mesmo 22 HAAG Carlos Tragédia prenunciou fim da era belle époque O Estado de S Paulo 16 de janeiro de 1998 158 Ética EmprEsarial 10 se aplica a qualquer triagem em hospitais de campanha e para preencher uma vaga de UTI diante do excesso de demanda Quem será atendido e com quais critérios Por mais objetivos que estes últimos sejam não há como deixar de pagar um tributo aos fatores sociais que condicionam o pensamento dos tomadores de decisão Mas cuidado e é preciso sublinhar isso de forma marcante cabe espantar o fantasma do particularismo estabelecendo critérios de escolha que sejam fundamentadamente universalistas O DILEMA DOS MEIOS Vamos agora abordar outro dilema ético cuja natureza é também bastante perturbadora e ao qual já fizemos diversas menções Para cumprir prescrições princípios e ideais ou para levar adiante propósitos fins e consequências é preciso lançar mão de meios Estes podem ser legítimos e aceitos virtualmente por todos principalmente por aqueles a quem se aplicam ou podem ser ilegítimos controversos rejeitados principalmente por aqueles a quem se aplicam Imaginemos a violência física ou a simbólica a fraude ou a manipulação o sacrifício de alguns para salvar muitos ou a mentira deliberada É fácil ver que o problema não se resume aos meios lícitos ou ilícitos meios apenas submetidos à legalidade já que as implicações não se cingem ao aspecto jurídicopolítico mas também e sobretudo à validação ética de caráter simbólico que o uso desses meios exige É o caso curioso da instituição financeira Pax World cuja razão de ser consiste em investir em fundos socialmente responsáveis Em julho de 2008 sofreu da SEC Securities and Exchange Commission a multa de US 500 mil por investir em empresas que não são socialmente responsáveis De fato entre os anos 2001 e 2006 manteve em seu portfólio ações de cassinos e de companhias de fumo petróleo e gás Para ganhar dinheiro para seus acionistas a Pax World renegou sua própria missão Formalmente a teoria ética da convicção tem se esmerado em não autorizar o uso de meios ilegítimos porquanto não aceita que se cometa um mal para evitar outro mal ainda que maior Por exemplo não seria válido usar a força para alcançar a paz ou a cessação das hostilidades Acontece que inúmeras experiências históricas envolvendo povos seitas religiosas ou movimentos messiânicos cujas morais se inspiram pela ortodoxia daquela teoria falham no teste da pureza dos meios utilizados Relembremos a os horrores cometidos pela Inquisição no Manual dos Inquisidores constava que a prova por excelência era a confissão e que esta deveria ser extraída mediante fraude ardil e em última instância tortura b as punições bárbaras aplicadas pela polícia da fé do Taleban no Afeganistão a amputação de pés e mãos de ladrões o açoite em praça pública dos consumidores de bebidas alcoólicas e o apedrejamento até a morte de adúlteras e de traficantes de drogas c o fanatismo suicida dos camicases japoneses na Segunda Guerra Mundial ou dos homensbomba palestinos contra a população civil israelense d a degola dos ímpios pelos loucos de Deus argelinos fundamentalistas do Grupo Islâmico Armado Relembremos ainda no âmbito das empresas os processos de enxugamento downsize que foram adotados em larga escala na década de 1990 para cortar custos e aumentar a produtividade colocando a lucratividade no ápice da pirâmide axiológica e justificando o uso dos mecanismos indispensáveis para viabilizála Na prática o fervor dos ideais ou a grandeza dos princípios despreza os meios a serem acionados para sua efetivação de modo que contrariamente à crença popular não são Dilemas éticos de base 10 159 apenas os fins que justificam os meios Meios ilegítimos têm sido usados indistintamente para materializar ideais ou para implementar princípios ou até para alcançar o máximo de bem para o maior número isto é todas as vertentes éticas chegam a lançar mão de meios impuros A despeito dos mil exemplos que se possam dar é curial que influentes adeptos da teoria da convicção digam que nenhuma causa é justa se os métodos para defendêla forem injustos A abjeção dos meios demonstraria a abjeção dos fins Afirmam que não se pode atingir o bem fazendo o mal nem se pode lançar mão de meios imorais para guiar os povos para o bem23 A teoria da responsabilidade em con traposição não se furta a utilizar meios amplamente considerados como ilegítimos Sentencia que para atingir fins preconizados são precisos meios reais ou que para ser idealista nos fins é preciso ser realista nos meios Denominamos esse dilema dilema dos meios24 No cerco de Stalingrado Stálin ordenou Nem um passo atrás preferindo a morte de seus soldados ao recuo Hitler fez o mesmo quando impediu a retirada das tropas de Von Paulus mandando resistir até o último homem A sobrevivência da pátria do socialismo era tão inegociável como a vitória anunciada do Terceiro Reich Os fins últimos do comunismo e do nazismo ganharam foro de mandamento em uma confusão fronteiriça entre a teoria da responsabilidade e a teoria da convicção A maior batalha da história do mundo foi uma hecatombe o Exército Vermelho sofreu 11 milhão de baixas das quais quase 486 mil foram fatais as baixas totais do Eixo sobretudo tropas alemãs romenas e italianas chegaram perto de 15 milhão de homens entre mortos feridos desaparecidos e capturados25 Em 1999 depois de 18 meses de debates a Suprema Corte de Israel proibiu os serviços de segurança de usar métodos de interrogatório descritos como tortura por grupos de defesa dos direitos humanos tais como sacudir uma pessoa forçála a uma posição contorcida ou a ajoelharse como rã bem como privála de sono Alguns funcionários do governo israelense disseram no entanto que a decisão tornará mais difícil o combate ao extremismo Alegou o viceministro da Defesa Diferentemente da Escandinávia ou da Europa Ocidental estamos em uma batalha diária contra o terrorismo e nossos serviços de inteligência precisam ter meios de obter informações Apesar de sua decisão a Su prema Corte deu ao Parlamento a opção de legislar sobre se Israel por causa de seus problemas de segurança deve permitir o uso de medidas físicas em investigações26 Diante do abismo da insegurança a frieza do realismo político se impôs ainda que sem legitimação ética 23 Escreve nesse sentido Jean François Revel Até mesmo os déspotas mais sanguinários e os piratas mais inescrupulosos não conseguem eliminar seu foro íntimo Não sentem eles a necessidade de dissimular suas maldades e seus furtos e não apenas na intenção de livrarse do castigo em uma impunidade que aliás lhes é assegurada em quase todos os casos porém como se fossem movidos por um sentido de honra residual A solução final e o gulag foram segredos de Estado e mantêmse como objetos constantes de falsificação histórica Seus cúmplices retrospectivos se esforçam por negar sua existência tendo perdido as esperanças de justificar a ignomínia dos meios pela grandeza imaginária de seus fins REVEL JeanFrançois Elogio da virtude O Estado de S Paulo 2 de janeiro de 1999 24 Max Weber assim se pronunciou Não há ética alguma no mundo que possa desconsiderar isso para atingir fins bons somos obrigados na maior parte do tempo a contar de um lado com meios moralmente desonestos ou pelo menos perigosos e de outro com a possibilidade ou ainda a eventualidade de consequências desagradáveis Nenhuma ética no mundo pode nos dizer tampouco quando e em qual medida um fim moralmente bom justifica os meios e as consequências moralmente perigosas WEBER Max Op cit p 173 25 Devemos reconhecer que esses fins últimos não são universalistas 26 Veja 27 de novembro de 1996 O Estado de S Paulo 7 de setembro de 1999 160 Ética EmprEsarial 10 Em 1992 tropas da Polícia Militar de São Paulo invadiram o Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru para sufocar um motim iniciado por uma briga entre detentos 111 presos foram mortos 86 sofreram lesões corporais e muitos foram mordidos por cães O massacre se deu depois que os presos estavam rendidos A despeito do escândalo internacional o caso tornouse emblemático em termos de violação de direitos humanos e não obstante as reações de indignação de importantes personalidades brasileiras pesquisas de opinião pública em São Paulo aferiram que mais de 70 dos pesquisados consideraram correta a conduta das tropas bandido bom é bandido morto27 Todos os oficiais que participaram da ação foram afastados e o secretário da Segurança Pública foi demitido porém uma tentativa de legitimar o massacre se deu em uma instância da Justiça 8ª Câmara de Direito Público O desembargadorrelator vicepresidente da Associação Paulista dos Magistrados escreveu em seu voto que os presos forçaram a sociedade por meio de sua polícia a se defender28 Prevaleceu nos corações e mentes de muitos a ideia de que era preciso se livrar dessa escória Um policial do FBI chamado Joseph Pistone sob o codinome de Donnie Brasco infil trouse na máfia novaiorquina na década de 1970 para espionar o mundo do crime29 A ação do policial acabou permitindo a prisão de centenas de mafiosos e a condenação de mais de 100 deles Entretanto para alcançar as boas graças dos chefões Pistone cometeu variada gama de crimes Sem as provas conseguidas o braço longo da Justiça quedaria inerme sendo bons os fins aceitamse os meios De fato centrada na projeção de resultados aparentemente altruístas ou inspirados por fins grandiosos muitos procuram justificar a tortura de agentes terroristas a infiltração em hostes criminosas a eliminação física de minorias ou de inimigos as depurações periódicas nas fileiras dos partidos únicos o uso do trabalho escravo para o esforço de guerra os campos de concentração para reeducar ideologicamente os dissidentes São todas ações que em tese são inadmissíveis por adeptos da teoria da convicção O que dirão os utilitaristas da teoria da responsabilidade Enquanto Jeremy Bentham justificaria o enquadramento de um inocente em um crime que satisfizesse o desejo da sociedade por justiça por exemplo o sacrifício de donzelas para aplacar a ira dos deuses ou para agradálos a eliminação de alguns quadros partidários para manter a pureza da revolução a manutenção da pena de morte ainda que os processos judiciários possam levar à condenação de inocentes John Stuart Mill introduziu uma visão normativa do utilitarismo Perguntou quais tipos gerais de atos como regras tendem a maximizar consequências benéficas ao longo do tempo E responde as normas sociais de conduta devem compatibilizar o respeito aos direitos humanos com o utilitarismo Mill como já vimos propôs o princípio do dano as pessoas podem fazer tudo o que quiserem livres da intervenção governamental até o limite de não prejudicar alguma outra pes soa O governo não pode interferir na vida de alguém para protegêlo contra si mesmo Por exemplo fumar deveria ser legal mas proibido em restaurantes ou em recintos fe chados Cada qual vive do modo que melhor lhe aprouver e não do modo como outros consideram que deva ser desde que não prejudique os demais30 27 REIS Leila Barbárie encontra espaço na TV O Estado de S Paulo 4 de outubro de 1997 28 ARBEX JR José Receita de nazismo O Estado de S Paulo 14 de maio de 1996 29 O filme que retrata o caso é de 1997 e foi dirigido por Mike Newell 30 HALLGARTH Matthew W Consequentialism and deontology In Encyclopedia of Applied Ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 614 Dilemas éticos de base 10 161 Assim para levar a cabo resoluções alcançar fins universalistas ou consequências que tragam felicidade à maioria é possível lançar mão de medidas dotadas de indiscutível eficácia desde que não se desrespeitem os direitos básicos dos indivíduos Traçados esses limites faz sentido praticar um mal menor para evitar um mal maior amputar um membro gangrenado para que o paciente não morra adotar sanções contra transgressores para que não repitam ou ampliem seus desvios de conduta ou optar por cometer um mal necessário a fim de obter um bem maior segregar doentes contagiosos para que não contaminem o resto da população submeter os recrutas a duros treinamentos físicos no serviço militar para que saibam se proteger contra os inimigos Isso nos leva a uma angustiosa polêmica de ordem ética e política as maiorias podem impor sua vontade às minorias e no processo desrespeitar alguns de seus direitos fundamentais A resposta só pode ser negativa pois a a proteção das minorias está no âmago da convivência e da coesão sociais b a proteção contra os possíveis abusos do poder da maioria é um princípio de base do Estado de Direito Por via de consequência salvaguardas preventivas são essenciais tais como rigorosos limites legais freios e contrapesos controles sociais contra as atrocidades que as maiorias podem praticar Em outros termos a prevalência da vontade da maioria não pode ser ditatorial não significa descaso com os direitos das minorias e muito menos com os direitos in dividuais Ora como assegurar a legitimidade dos meios Toda decisão ou ação deveria passar pelo crivo da admissibilidade ou da justeza dos meios utilizados Mas o problema volta como um bumerangue legitimidade por parte de quem Da maioria Afundamos num círculo vicioso a não ser que clamemos é preciso que a legitimidade seja conferida por todos Donde se deduz que os meios teriam que ser aceitáveis até por aqueles a quem se aplicam por exemplo voluntários em missão de risco ou em situação extrema confissão de criminosos tal como ocorre no chamado dilema dos prisioneiros31 Esse dilema nos remete à oferta que um delegado de polícia norteamericano faz a dois sujeitos indiciados e sem possibilidade de se comunicar O delegado propõe a cada um deles uma redução da pena sob a condição de que colaborem com a Justiça e denunciem o comparsa Se o indiciado não falar sua pena será no mínimo de dois anos de reclusão em função das provas circunstanciais existentes se for comprovada sua participação no crime ou se for denunciado sua pena passará a ser de sete anos Em contrapartida se falar denunciando seu comparsa e incriminando eventualmente a si mesmo a pena poderá ser reduzida em seis anos de maneira que o denunciante ficaria apenas um ano na prisão sete anos menos seis e seria amparado pelo programa de proteção às testemunhas Acontece entretanto que ambos os indiciados podem denunciar um ao outro No caso ficariam presos quatro anos cada um porque a lambuja de seis anos seria partilhada por ambos Diante dessa análise de risco a frequência maior testada nos Estados Unidos é aquela em que os dois indiciados acabam denunciando o crime Prevalecem assim os interesses próprios de caráter egoísta em detrimento dos interesses mútuos pois as opções se dão entre A falar o risco é pegar quatro anos caso o outro também fale ou um ano caso o outro se cale e B calar o risco é pegar sete anos caso o outro fale ou dois anos caso o outro também se cale De modo que entre quatro e um versus sete e dois a minimização dos riscos confere preferência à opção A que consiste em falar 31 Immanuel Kant insistia que um ser racional não pode ser usado como meio para um fim sem seu consentimento mesmo que esse fim seja beneficiar outras pessoas 162 Ética EmprEsarial 10 Todavia se fosse dada aos indiciados a oportunidade de manter contato é bem provável que ambos decidissem se calar correndo o risco de pegar dois anos de prisão e torcendo para que não aparecessem novas provas Seria o triunfo do parcialismo E caso ambos pertencessem a uma organização clandestina máfia guerrilha gangue que cultivasse um severo código de conduta e estimulasse uma forte relação de confiança entre seus membros seriam aumentadas as probabilidades de que os indiciados ficassem calados Outra situação possível de parcialismo seria se porventura um dos dois indiciados incriminasse apenas a si mesmo inocentando o outro Ele poderia escapar da pecha de delator minimizando assim futuras retaliações risco sistêmico e poderia reivindicar a pena de um ano por ter colaborado com as autoridades Vale dizer mesmo nesse caso sua conduta não seria altruísta imparcial pois ao deixar solto o comparsa não serviria aos interesses maiores da sociedade No dilema dos prisioneiros as regras do jogo são claras e os participantes têm a pos sibilidade de escolher assumindo o consequente ônus da decisão tomada Isso equivaleria a diante de um diagnóstico médico fundamentado e diante das opções técnicas disponí veis consentir em submeterse a uma cirurgia invasiva em que se corre risco de morte É também o caso doloroso dos judeus encarcerados em Treblinka e destinados a morrer Os guardas nazistas promoviam corridas com variadas dificuldades e o prêmio consistia em adiar a hora da execução alinhavam todos os presos do campo e avisavam que os três quartos que chegassem antes dos outros seriam poupados o último quarto iria para o banho que era a câmara de gás A ordem de partida era dada De início todos se entreolhavam aterrorizados e ninguém ousava correr Depois bastava um só dos detentos dar uns passos para que a massa tresloucada se deslocasse32 A esperança de sobrevida ainda que tênue se sobrepunha aos interesses coletivos e os prisioneiros assumiam as regras do jogo como justas Concluindo por meio de suas ações efetivas todos os membros de uma coletivida de teriam que concordar com a legitimidade dos meios utilizados Imaginemos duas situações similares a existência de um sistema escolar público e gratuito com opção de escola privada e paga e o voto facultativo nas eleições A legitimidade ética decorreria do efetivo direito de escolha entre os meios disponíveis matricular os filhos na escola pública ou na privada votar ou deixar de fazêlo Nesta mesma linha podemos ainda citar a aplicação dos raios X e dos exames de prevenção do câncer submetese a eles quem quiser o direito ao aborto se fosse amplamente legalizado faz quem quiser a ingestão de alimentos com conservantes ou de alimentos naturais compra quem quiser o cultivo de produtos com adubos químicos ou com adubos orgânicos adota quem quiser e assim por diante33 Mas isso não se aplica aos portadores de doenças contagiosas à medida que sua se gregação compulsória ou seu isolamento controlado é uma imposição decorrente dos riscos de epidemia que a coletividade corre Ponderação pertinente o procedimento não recebe apoio dos próprios doentes Certamente que sim Mais ainda por que será que as bombas convencionais explosivas ou de impacto não são estigmatizadas como o são as bombas químicas p ex as bombas de napalm Porque são endossadas por suas vítimas como um fato da natureza 32 STEINER Jean François Treblinka Rio de Janeiro Nova Fronteira sd 33 Um sério complicador a esta proposição é quando faltam condições objetivas para uma verdadeira escolha Por exemplo as escolas públicas são ruins e os pais não têm renda o bastante para financiar uma escola privada para seus filhos os hospitais públicos estão lotados e as pessoas não têm onde fazer exames de prevenção de câncer Dilemas éticos de base 10 163 Tais reflexões permitem amadurecer o dilema dos meios mas não o resolvem A es colha permanece em aberto e só pode ser feita no fragor das contendas históricas caso a caso à luz das diferentes ópticas morais e teorias éticas Haja o que houver no entanto as duas teorias éticas malgrado seus modos distintos de levar os agentes a tomarem uma decisão extraem suas forças da mesma fonte a racionalidade universalista e a prevalência da ideia de que tudo é válido desde que não se prejudiquem os interesses alheios EXERCÍCIO O JOGO DAS AMBIGUIDADES Encontrase no site da Editora Elsevier Anexo VI um exercício curioso que permite cruzar as teorias éticas da convicção e da responsabilidade com as morais brasileiras estudadas as duas morais gerais da integridade e do oportunismo e as duas morais empresariais da parceria e da parcialidade Possui gabarito como os demais exercícios São enunciados casos concretos que exigem sua localização em quatro quadrantes 1 Razão ética que inspira as morais brasileiras da integridade e da parceria seus agentes são íntegros ou parceiros 2 Racionalização antiética que inspira as morais brasileiras do oportunismo e do parcialismo seus agentes são oportunistas ou parciais 3 Razão ética que não encontra respaldo nas quatro morais brasileiras enfocadas seus agentes são antiheróis 4 Racionalização antiética que é rejeitada pelas quatro morais seus agentes são vilões 165 11 A política pela ética Os lugares mais quentes do inferno estão reservados para aqueles que num período de crise moral se mantêm neutros Dante Alighieri A LÓGICA DO CAPITALISMO SOCIAL A fórmula proposta a política pela ética estabelece um estreito nexo entre a nor ma moral e a norma jurídicopolítica Esta última se baseia na ameaça da coerção de uma sanção coletiva que leve à submissão O agente fica intimidado receia sofrer pre juízos ou constrangimentos teme perder a liberdade ou a posição social De forma diversa as normas morais se baseiam na convicção de que a vida em sociedade requer o respeito a um conjunto de regras de interesse comum Elas são internalizadas inculcadas ou aceitas em um ato de adesão ou após reflexão amadurecida Em vez de político o processo é simbólico No mundo capitalista dado o dínamo endógeno da acumulação do capital as duas dimensões política e simbólica precisam se imbricar para lograr o respeito aos in teresses dos outros ou seja para desempenhar uma função ética sem o que a parcialidade corporativa reina soberana Um funcionário desiludido da Nike levou a um consultor ambiental do Centro de Recursos e Ação junto a Transnacionais um relatório interno sobre as condições de trabalho nas fábricas do Vietnã O relatório revelava que o carcinógeno tolueno estava presente no ar das fábricas 177 vezes acima do nível permitido e que mais de 75 dos trabalhadores tinham doenças respiratórias Esses trabalhadores não sabiam que os produtos químicos que usavam na montagem dos tênis eram tóxicos A história foi parar na primeira página do The New York Times obrigando a Nike e outros fabricantes de tênis a modificar suas práticas1 Cabe indagarse com franqueza sem pressões cidadãs teriam sido mudadas as condições de trabalho pelos fabricantes ou pela companhia compradora Outra empresa que padeceu bastante por causa de sua tentativa de minimizar o acidente que provocou afirmou que o dano ambiental foi mínimo é a famosa Exxon Corporation O navio Exxon Valdez despejou em 1989 416 mil toneladas de petróleo no Alasca As imagens de aves mortas cobertas de óleo e recolhidas pelos habitantes da região foram decisivas para desacreditar a companhia Houve mais a descoberta de que o capitão estava bêbado na noite do acidente e que havia se recolhido depois de confiar o comando a um oficial inabilitado para conduzir o navio em águas perigosas pôs a companhia na berlinda Pior ainda foi quando 1 Folha de S Paulo 30 de dezembro de 1999 166 Ética EmprEsarial 11 se divulgou o fato de que o capitão havia perdido sua carteira de motorista por dirigir embriagado e que cúmulo dos cúmulos a Exxon sabia disso A companhia desembolsou mais de US35 bilhões para remover o petróleo derramado E 10 mil pescadores de arenque e salmão prejudicados pela destruição da fauna e da flora e por isso mesmo deslocados para outras paragens entraram na Justiça e obtiveram uma compensação de US287 milhões Apesar disso a companhia ainda foi condenada em 1994 por um júri em Anchorage Alasca a pagar uma multa de US5 bilhões por ter provocado danos ambientais2 Esta lição pareceu assimilada no caso do acidente ecológico ocorrido no Rio de Janeiro em 2000 e de responsabilidade da Petrobras Um duto que leva óleo da refinaria de Duque de Caxias para a Ilha dÁgua se rompeu deixando vazar 1290 toneladas de produto A mancha de óleo atingiu praias e mangues da baía de Guanabara A Petrobras assumiu o erro e se comprometeu a reparar os estragos A demonstração de transparência e humildade surpreendeu muitos analistas de investimentos e fez com que mantivessem suas recomendações para a compra das ações da companhia O presidente da empresa Henri Philippe Reichstul desdobrouse para explicar ao Congresso Nacional à opinião pública aos ambientalistas e aos pescadores prejudicados pelo vazamento o que aconteceu e o que estava sendo feito para reparar os danos A empresa colocou informações diárias sobre o assunto na internet escalou mais de 2 mil pessoas para trabalhar na limpeza das áreas atingidas trouxe mangueiras para reter o óleo e técnicos estrangeiros como consultores pagou a multa de R51 milhões antecipadamente e com isso obteve um desconto de 30 o saldo foi depositado em um fundo para a recuperação da baía iniciou o pagamento de indenizações e veiculou comunicados à população na mídia É possível que os custos totais para a Petrobras tenham chegado a R100 milhões Suas ações no entanto continuaram em ascensão o que indicou reação positiva do mercado e maior credibilidade da empresa após o episódio3 O problema porém é que de 2000 a 2002 uma sequência de acidentes ambientais envolveu a Petrobras e empanou o brilho dessa intervenção de repercussão nacional porque a empresa colecionou centenas de milhões de reais em multas4 O que deduzir desses exemplos Que as ações empresariais no mundo atual vivem sob estreita vigilância e que as empresas podem sofrer prejuízos à medida que elas mesmas provocam danos Façamos uma analogia Desde as guerras napoleônicas nos primórdios do século XIX as grandes potências procuraram estabelecer um equilíbrio do medo De que forma Desenvolvendo capacidades de retaliação e mecanismos de defesa que lhes assegurassem paz e ordem Na segunda metade do século XX as ameaças 2 Revista Exame 12 de outubro de 1994 O Estado de S Paulo 20 de setembro de 1994 Folha de S Paulo 10 de setembro de 1995 3 Folha de S Paulo 26 de janeiro de 2000 LIMA Marli Petrobras mais próxima do investidor Gazeta Mercantil 4 a 6 de fevereiro de 2000 4 Em 2000 houve derramamento de óleo em Araucária no Paraná atingindo os rios Barigui e Iguaçu houve também derramamento em Tramandaí no Rio Grande do Sul e no litoral norte de São Paulo No ano seguinte novo acidente no litoral norte da Bahia no rio Amazonas Urucu além do famoso afundamento da plataforma P36 que também causou vazamento de óleo diesel e de óleo cru Em 2002 houve derramamento no rio Doce o maior rio do Espírito Santo E isso tudo apesar do investimento em meio ambiente de R570 milhões em 2000 ou 407 da receita operacional e de R11 bilhão em 2001 ou 87 da receita operacional MAGNAVITA Mônica Petrobras lucra com ação ambiental Gazeta Mercantil 10 de junho de 2002 a política pela ética 11 167 de hecatombe termonuclear durante a Guerra Fria explicam como se tornou imperativa a coexistência pacífica entre os Estados Unidos e a União Soviética De forma simétrica em um mercado competitivo as empresas receiam as reações em cadeia de seus clientes daí a necessidade de praticar transações idôneas O sistema de mercado opera sob a égide do risco Em razão disso temores assaltam empreendedores empresários e investidores Eles temem a concorrência as crises in ternacionais a escassez de insumos ou de energia os humores dos clientes o surgimento de produtos alternativos os saltos tecnológicos que inviabilizam setores produtivos tradicionais os formatos disruptivos de negócio os erros de gestão a perda do capital investido as dívidas insolváveis a falência as intervenções regulatórias as greves as leis impraticáveis as fiscalizações abusivas os impostos sufocantes Numa palavra um calvário O mercado também gera inquietações contínuas nos assalariados acidentarse e ficar desempregado deixar de ser produtivo e acabar na penúria tornarse obsoleto profis sionalmente e ser condenado a uma velhice desamparada Quanto aos consumidores existem os receios de serem malatendidos manipulados ludibriados fraudados explo rados Quanto aos fornecedores e prestadores de serviços há os sobressaltos ocasionados pela inadimplência dos clientes pelo não cumprimento de cláusulas contratuais ou pela polêmica em torno de sua interpretação pelas exigências crescentes de qualidade ou de aperfeiçoamentos técnicos pela invasão de produtos estrangeiros a preços imbatíveis Para atenuar essas angústias o Estado assegura um mínimo legal indispensável para que o mercado opere ou promova a segurança jurídica direitos de propriedade liberdade para empreender garantia de execução de contratos normas que estabelecem a fronteira entre o lícito e o ilícito legislação criminal além de regras e sanções para prevenir a concorrência predatória como a dos dumpings ou dos cartéis Não é o bastante todavia para aplacar os riscos morais nem os azares de uma economia competitiva que opera em âmbito planetário e que sucedeu ao capitalismo oligopolista hegemônico até os anos 1980 Para mitigar os assombros dos trabalhadores e daqueles que ficam na outra ponta das relações de consumo sobretudo nas últimas décadas garantias foram instituídas e revestidas de caráter legal Foram conquistados direitos sociais que complementam os direitos civis e políticos e foram introduzidas redes de proteção para os cidadãos os consumidores os usuários de serviços públicos os contribuintes as vítimas e as testemu nhas de crimes Esses vários direitos garantias e proteções vêm se constituindo como pilares do capitalismo social e em seu âmago revelam um sentido ético pois conferem à responsabilidade social corporativa um papel relevante na convivência coletiva De fato inúmeras práticas empresariais responsáveis podem ser listadas De outra parte a estreiteza de horizontes num ambiente competitivo pode custar caro às empresas que se comportam como se fossem empreendimentos piratas movidas apenas por uma visão imediatista Pois enquanto houver um mercado aberto e um ambiente político liberal as empresas ficam sob o fogo cerrado da vigilância da sociedade civil Mais ainda seus investimentos exigem longa maturação reputação da marca ocupação de um espaço empresarial particular que depende da competência técnica e da credibilidade pública Nessas precisas condições a lógica da acumulação do capital continua pontificando sem o que o sistema deixaria de ser capitalista mas a ela se agrega a extraordinária têmpera da responsabilidade social corporativa Com efeito o capitalismo contemporâneo foi transfigurado pela Revolução Digital que introduziu uma radical redefinição da organização do trabalho Muitos funcionários deixaram de ser tecnicamente desqualificados meras engrenagens da linha de produção 168 Ética EmprEsarial 11 fordistataylorista e em função da qualificação exigida se tornaram corresponsáveis no controle da produção em conexão com os gestores que perderam a soberania Esta nova situação fez com que recebessem parte do excedente econômico gerado e se convertessem em sócios menores do sistema capitalista Quais os mecanismos principais desta parti lha inédita A participação nos lucros e nos resultados os benefícios sociais legalmente instituídos a extraordinária multiplicação do número de pequenos acionistas e a cons tituição de fundos de pensão que se transformaram em investidores de grande porte desempenhando um papel de destaque na dinâmica do sistema Assim a Revolução Digital concorreu decisivamente para que a transição entre o antigo capitalismo excludente e o capitalismo social se efetuasse5 Nesse contexto a pura lógica da maximização do lucro convive às turras com a nova lógica do lucro temperado pela responsabilidade social corporativa A primeira endógena e imanente ao capitalismo a segunda exógena e fruto da ação política militante a primeira imantada pela satis fação exclusiva dos interesses dos detentores do capital quotistas acionistas a segunda imbuída pelo espírito de uma nova partilha em que os públicos de interesse se convertem em sócios menores das empresas Ora como montar uma equação adequada que assegure o melhor retorno possível aos stakeholders uma vez que os interesses deles são díspares e no mais das vezes con traditórios Como compatibilizar as determinações da rentabilidade retornos econômicos ou lucros com as injunções éticas ganhos sociais6 A nova lógica que incorpora a faceta da responsabilidade social corporativa funciona como intrusa na paisagem capitalista Resulta dos embates históricos levados a efeito por seguidos movimentos políticos e associativos em defesa da cidadania dos trabalhadores dos contribuintes dos usuários e dos consumidores E só consegue prosperar enquanto três condições permanecerem em vigor a existência de um mercado concorrencial a mobilização incessante da sociedade civil a disponibilidade de instrumentos de pressão como a mídia plural as agências de defesa dos consumidores e a Justiça atuante Para evitar que o mercado exterior fechasse suas portas à soja brasileira a Associação Nacional de Exportadores de Cereais e a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais em acordo com o Ministério do Meio Ambiente anunciaram em 2006 uma moratória de dois anos na compra de soja produzida em áreas resultantes de novos desmatamentos na Amazônia Foi o resultado de uma bem articulada campanha conduzida pelo Greenpeace no Brasil e na Europa para demonstrar que o simples ato de comer um hambúrguer de frango alimentado por aquele grão induzia a continuidade do desmatamento A campanha apoiouse em manifestações em supermercados e nas portas de lanchonetes com militantes fantasiados de frango interpelando os clientes7 Os resultados foram alentadores entre 2006 e 2008 a sojicultura foi responsável por apenas 088 das áreas desmatadas na Amazônia Brasileira graças à fiscalização que foi realizada utilizando cerca de 6 mil fotos aéreas e aproximadamente 1300 imagens de satélite Assim enquanto a política pela ética for possível uma vez que as condições his tóricas podem mudar as cúpulas empresariais serão praticamente forçadas a agir 5 A análise encontrase nos primeiros capítulos do livro Poder cultura e ética op cit obra do autor 6 Os ganhos sociais correspondem à parte dos lucros transferidos aos demais públicos de interesse sob pressão da cidadania e por meio de variadas práticas de responsabilidade social 7 ALMEIDA Fernando Os desafios da sustentabilidade Rio de Janeiro Elsevier 2007 p 95 a política pela ética 11 169 de forma socialmente responsável mesmo que isso violente as convicções mais íntimas de altos gestores Vejamos um caso praticamente pioneiro Em 1978 a Parker Brothers de Salem Massachusetts Estados Unidos uma fábrica centenária de brinquedos criadora do famoso Monopoly Banco Imobiliário lançou um produto que foi sensação Tratavase de Riviton um kit de plásticos e conectores de borracha acompanhado por um pequeno instrumento para prendêlos que permitia construir diferentes tipos de brinquedos Quase 500 mil crianças já usavam o produto que representava uma receita de US8 milhões quando um evento surpreendente aconteceu Uma criança de oito anos que já brincava com o Riviton há várias semanas enfiou um conector na garganta e morreu Os próprios pais não souberam explicar como tal coisa pôde acontecer The Wall Street Journal entrevistou o presidente da Parker Brothers Randolph G Barton que declarou se tratar de um acidente aberrante Afinal disse ele as causas maiores de sufocação entre crianças são os amendoins e ninguém jamais advogou a proibição dos amendoins O Riviton continuou a ser fabricado e vendido Menos de um ano depois uma segunda criança de nove anos morreu em circunstâncias parecidas As vendas estavam beirando US 10 milhões e tinham sido produzidos 1125 milhão de brinquedos A Parker Brothers então suspendeu a produção além de proceder ao recall de todos os brinquedos O presidente Barton disse A decisão foi muito simples O que devíamos fazer sentar e esperar a terceira morte Legalmente a companhia não estava impedida de continuar a produzir o Riviton uma vez que a agência federal Consumer Product Safety Comission CPSC não a obrigava a tanto Criada pelo Congresso no início da década de 1970 a agência definia padrões estimulava o uso de produtos seguros recomendava recalls e processava indústrias O fato maior no entanto é que os consumidores estavam exigindo cada vez mais segurança nos produtos bem como maior qualidade pelos mesmos preços praticados antes8 Não parece que a Parker agiu por súbito altruísmo mas por reflexão madura preferiu perder receitas potenciais com a descontinuidade da produção e escolheu desembolsar recursos reais com o recall Poderia é claro alertar a população acerca dos riscos en volvidos e imprimir uma advertência nos brinquedos aumentando ainda mais a faixa etária mínima o que provavelmente inviabilizaria as vendas Ou poderia redesenhar o produto após novas pesquisas de maneira a impedir por qual milagre que as crianças colocassem os conectores de borracha na boca Mas a empresa considerou essas providências inócuas ou perigosas Por quê Porque não afastariam o risco de prejudicar o negócio como um todo Quem iria garantir que as consequências para a reputação da empresa não seriam desastrosas Quem evitaria que houvesse uma associação entre os brinquedos cujo vínculo natural é com a alegria de brincar e de viver e o fantasma da morte Uma análise estratégica feita nos moldes da teoria da responsabilidade mostra que os públicos de interesse rejeitariam in limine o argumento de que duas mortes em comparação com mais de 11 milhão de brinquedos produzidos seriam estatisticamente irrelevantes Afinal de contas a vida de uma criança não pode ser avaliada em termos estatísticos Assim a despeito das convicções íntimas do presidente que estava convencido de que 8 HENDERSON Verne E Whats Ethical in Business New York McGrawHill 1992 pp 1011 170 Ética EmprEsarial 11 os brinquedos não induziam as crianças a colocar peças na boca a força dos clientes e da opinião pública revelouse irresistível Todavia se Riviton fosse o carrochefe da empresa qual seria a decisão É difícil precisar O importante é que a posição adotada embora custosa deu novo brilho à credibilidade da Parker Brothers Ela perdeu dinheiro no curto prazo porém teve a oportunidade de uma grande exposição na mídia Acabou sendo vista como uma em presa que se preocupa com o bemestar de seus jovens clientes e soube administrar os temores e as expectativas dos pais Isso sem dúvida repercutiu positivamente sobre os resultados obtidos no médio prazo Vejamos ainda outro caso rumoroso No final da década de 1960 quando a demanda de automóveis subcompactos cresceu a Ford Motor Company concebeu um carro leve que não deveria custar mais de US2 mil o Ford Pinto Todavia seus testes de colisão pela traseira revelaram um sério defeito na posição do tanque de combustível Essa posição poderia causar o incêndio do carro e sua explosão No entanto com medo de serem demitidos os engenheiros nada comunicaram a Lee Iacocca o presidente da Ford Ralph Nader em 1965 chamou a atenção do público com seu livro Unsafe at Any Speed sobre a insegurança dos automóveis O governo norteamericano mostrouse propenso a adotar normas a respeito Contudo lobistas da Ford e de outras montadoras convenceram as autoridades a adiar a regulação dos tanques de combustível por oito anos O relatório que a Ford utilizou na época para não alterar a posição do tanque foi uma análise custobenefício Segundo as estimativas da montadora o tanque inseguro poderia ocasionar anualmente a morte de 180 pessoas e ferir outras 180 por queimaduras além de incendiar 2100 veículos A indenização seria de US200 mil por morte US67 mil por ferido e US700 por veículo em um total de US495 milhões a serem desembolsados a cada ano Em contrapartida se as alterações indispensáveis nos veículos fossem introduzidas isso custaria US11 por carro ou US137 milhões por ano De forma implícita a Ford considerou que seria mais barato deixar os usuários se queimarem Naturalmente não era bem isso que as vítimas das colisões e suas famílias pensavam Em 1978 quando três jovens mulheres morreram queimadas em um Ford Pinto que colidiu e cujo tanque de combustível explodiu a Ford foi acusada de homicídio Embora o tribunal tivesse inocentado a corporação pelo crime os jurados ficaram abismados com o valor que a montadora dava à vida humana Mais tarde estudos comprovaram que o custo dos consertos por veículo não seria de US11 anuais mas de apenas US19 No processo Grimshaw versus Ford Motor Company de 1981 a Ford foi condenada a pagar uma multa de US127 milhões além de se obrigar a fazer o recall dos veículos Uma situação semelhante também ocorreu por causa de um memorando interno escrito em 1973 por um engenheiro da General Motors O documento examinava para a monta dora o custo das mortes havidas em colisões que provocaram incêndios aparentemente causados pela posição dos tanques de combustíveis Em julho de 1999 a GM foi condenada em primeira instância por um júri de Los Angeles Califórnia a pagar a soma astronômica de US49 bilhões a seis pessoas que sofreram 9 DOWIE Mark Pinto Madness Mother Jones SeptemberOctober 1977 pp 1832 wwwscruz netkangarooPintohtm e Bentley Official Web Page Bentley College 17 de agosto de 1997 a política pela ética 11 171 queimaduras em 1993 A picape Chevrolet Malibu 1979 que ocupavam pegou fogo depois de ter sido atingida na traseira por um carro a 80 quilômetros por hora A motorista saiu relativamente ilesa mas seus quatro filhos e sua amiga sofreram queimaduras desfiguradoras Mais tarde esse valor foi reduzido para US12 bilhão Os advogados de defesa convenceram os jurados de que a montadora sabia que esse tipo de carro não era seguro por causa do tanque de combustível conhecia os meios para tornálo menos perigoso e pior preferiu poupar entre US4 e US12 a mais por veículo do que fazer as modificações necessárias Para tanto valeramse de documentos internos da própria GM entre os quais o famoso memorando que estimava que cada vida humana tem um valor de US200 mil Durante anos a GM lutou para manter o memorando fora dos tribunais alegando que não refletia a política da corporação Depois de 11 semanas de julgamento o júri concluiu que o tanque de combustível do carro localizado sob o portamalas perto do parachoque traseiro era perigosamente vulnerável em colisões traseiras e que havia sido colocado lá pela GM para economizar custos O juiz responsável pelo caso escreveu Este tribunal concluiu que evidências claras e convincentes demonstraram que o tanque de combustível foi colocado pela ré atrás do eixo dos automóveis do modelo e do tipo de carro em questão para maximizar lucros em prejuízo da segurança das pessoas Após esse fato e mais precavida a montadora passou a destruir cerca de mil automóveis por ano em simulação de batidas para que revelassem possíveis defeitos de segurança Curiosamente três dias depois da leitura do veredicto contra a GM outro júri também na Califórnia determinou que a Ford pagasse US295 milhões de indenização aos herdeiros de uma família que morreu em 1993 quando o seu carro capotou e o teto da carroceria feito basicamente de plástico não resistiu ao impacto10 Nessa mesma linha vejamos situações em que o recall se impõe Diferentemente da convocação voluntária para recolhimento de um produto em que a empresa age por conta própria uma proibição governamental indica que as autoridades acreditam que a companhia não está tomando medidas suficientes para proteger o consumidor Foi o caso dos governos da França da Bélgica de Luxemburgo e da Holanda que baixaram interdições dos produtos da CocaCola em junho de 1999 Os governos ordenaram também a retirada de dezenas de milhões de garrafas e de latas de CocaCola Diet Coke Fanta e Sprite depois de registrar quase duas centenas de ocorrências de pessoas intoxicadas pelos refrigerantes Uma fábrica na Antuérpia na Bélgica utilizou um gás carbônico inadequado contendo sulfeto de hidrogênio Além do mais grandes lotes de latas de refrigerante oriundos da fábrica de Dunquerque na França foram impregnados por um fungicida no revestimento anticorrosão dos engradados As pessoas contaminadas apresentaram náuseas dores de cabeça vômitos e diarreia Em consequência as ações da empresa chegaram a cair 10 em Wall Street muitos países suspenderam suas importações de refrigerantes da Bélgica e da França e a empresa perdeu US103 milhões em receita em decorrência das proibições do recolhimento de produtos e das vendas não realizadas 10 Veja 21 de julho de 1999 GEYELIN Milo Antigo memorando custa bilhões à GM The Wall Street Journal Americas reproduzido por O Estado de S Paulo 30 de setembro de 1999 172 Ética EmprEsarial 11 Em vários comunicados o presidente da CocaCola mundial afirmou que estava tomando todas as medidas necessárias para garantir a qualidade dos produtos além de pedir desculpas aos consumidores Disse de forma direta Em 113 anos nosso êxito tem sido baseado na confiança que nossos consumidores têm em nossa qualidade essa confiança é sagrada para nós e Para nós saúde e segurança sempre foram mais importantes do que negócios Poderia ser diferente Afinal a companhia vendia um bilhão de garrafas por dia no mundo e projetava um lucro de US35 bilhões para o ano11 Com isso fica claro que a lógica econômica da maximização do lucro inerente en dógena imanente ao sistema capitalista sofre a injunção ética da incorporação dos ganhos sociais que por ser externa exógena extrínseca ao sistema só pode existir se houver mobilização política da cidadania De modo que não só os acionistas se apropriam dos excedentes gerados mas há um esforço deliberado para melhorar a qualidade de vida dos demais stakeholders o que não é pouco dizer Isso tudo torna extremamente complexa a gestão das empresas porque montar uma equação que satis faça tão variados interesses corresponde a um enorme desafio Mas é fundamental dizer que tais pressões não são anticapitalistas bem ao contrário fortalecem o capitalismo à medida que o democratizam A RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA O que vêm a ser essas fórmulas irmãs que ganharam o mundo responsabilidade social corporativa economicamente correto lucro com ética É o compromisso que as empresas assumem com o bemestar de seus públicos de interesses e por extensão com o bemestar da sociedade em que estão inseridas É a conversão de parte dos lucros em ganhos sociais contribuindo para a qualidade de vida dos públicos de interesse e por extensão para as condições de habitabilidade do planeta Isso equivale a dizer Na frente interna das empresas equacionamse os investimentos dos acionistas e dos investidores com os interesses dos públicos internos por meio da instituição de uma cidadania organizacional relações liberais de poder corresponsabilidade técnica entre gestores e colaboradores participação nos lucros e resultados Na frente externa compatibilizamse os interesses empresariais com os dos públicos externos por meio da adoção de práticas socialmente responsáveis e ecologicamente corretas Em outros termos as empresas saem de seu casulo abandonam políticas isolacionistas redefinem todas as suas práticas e as integram num projeto socioambiental desenvolvem parcerias com seus públicos de interesse adotam estratégias eticamente orientadas Com extraordinária coragem agiu a Nestlé brasileira no início de 1992 quando um chantagista ligou para a companhia suíça ameaçando envenenar com cianureto o iogurte Chambourcy o achocolatado Nescau e a Farinha Láctea O chantagista telefonara dizendo que havia um produto adulterado em uma das prateleiras de determinado supermercado 11 SEREZA Haroldo Ceravolo Bélgica e França proíbem venda de Coca Folha de S Paulo 16 de junho de 1999 Mais de 80 se intoxicam na França após beber CocaCola Folha de S Paulo 17 de junho de 1999 CocaCola pede desculpas na Bélgica Folha de S Paulo 23 de junho de 1999 CocaCola diz que intoxicação causou prejuízo de US60 milhões Folha de S Paulo 25 de junho de 1999 O Estado de S Paulo e Gazeta Mercantil 16 e 17 de junho de 1999 Gazeta Mercantil 23 de junho de 1999 O Estado de S Paulo 25 de junho de 1999 Gazeta Mercantil 13 de julho de 1999 a política pela ética 11 173 A empresa foi lá e realmente encontrou a embalagem aberta e o produto comprometido Em seguida fez uma devassa nos supermercados e denunciou o que sabia às autoridades e à população recomendando que ninguém consumisse seus produtos se a embalagem estivesse violada A Nestlé perdeu alguns milhões de dólares em vendas Os consumidores colaboraram com as investigações e o caso foi resolvido com a prisão do chantagista12 O conceito de responsabilidade social corporativa confere um caráter social ao capitalis mo em função da adoção de um conjunto de práticas Conjuga o desenvolvimento profissional dos colaboradores e sua coparticipação em decisões técnicas estimula investimentos em segurança assegura condições saudáveis de trabalho concede participação nos lucros e nos resultados assim como outros benefícios sociais Seus impactos imediatos são maior produtividade mais eficiência nos processos incremento do capital intelectual maior assiduidade do pessoal e menor rotatividade Valoriza a diversidade interna da empresa por meio do combate às discriminações no recrutamento no acesso ao treinamento na remuneração na avaliação do desempenho e na promoção das minorias políticas como é o caso de uma política de emprego para portadores de deficiência física da adaptação do ambiente de trabalho às suas necessidades e da previsão de vagas para jovens de pouca qualificação que recebem formação e capacitação adequadas Exige dos prestadores de serviços que seus trabalhadores desfrutem de condições semelhantes de trabalho às dos próprios funcionários da empresa contratante Constitui parcerias entre clientes e fornecedores para gerar produtos e serviços de qualidade garantir preços competitivos estabelecer um fluxo de informações precisas e tempestivas e para assegurar relações confiáveis e duradouras Contribui para o desenvolvimento da comunidade local e por extensão da sociedade inclusiva com a implantação de projetos que aumentem o bemestar coletivo Inclui investimentos em pesquisa tecnológica para inovar processos e produtos além de melhor satisfazer os clientes ou usuários Conserva e restaura o meio ambiente através de intervenções não predatórias consciência da vulnerabilidade do planeta e através de medidas que evitem externalidades negativas Exige insumos de origem certificada utiliza energias renováveis e se empenha em neutralizar a própria pegada ecológica Implica a publicação de um balanço social Em 1998 o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável WBCSD lançou na Holanda as bases para o conceito de Responsabilidade Social Corporativa entendendo com isso o comprometimento permanente dos empresários com comporta mentos eticamente orientados e com o desenvolvimento econômico A saber melhorar a qualidade de vida dos empregados e de suas famílias bem como da comunidade local e da sociedade como um todo Eis um caso que ilustra bem esse posicionamento 12 BACOCCINA Denize Transparência faz empresas superarem crises O Estado de S Paulo 20 de julho de 1998 Gazeta Mercantil 22 de setembro de 1999 174 Ética EmprEsarial 11 Notável e fulminante foi como reagiu a Cable News Network CNN em meados de 1998 Ela aceitou as consequências de desmentir e condenar uma reportagem que foi feita em conjunto com a revista Time também responsável pela publicação da história A reportagem acusava as Forças Armadas dos Estados Unidos de terem cometido um crime ao usar o gás venenoso sarin durante a Guerra do Vietnã com o objetivo de matar dezenas de soldados americanos desertores Denunciava também os sucessivos ocupantes da Casa Branca por terem encoberto o caso Ocorre que os jornalistas não dispunham de provas suficientes para sustentar tão grave acusação Em início de julho a CNN despediu dois produtores um terceiro pediu demissão o repórter que comandou a reportagem foi repreendido por escrito e o diretor de jornalismo da rede fez uma completa retratação pública13 Em termos de consequências práticas a adoção de uma estratégia geral de responsabi lidade social corporativa a contribui decisivamente para a obtenção da licença social para operar e para a perenidade das empresas uma vez que diminui sua vulnerabi lidade ao reduzir desvios de conduta processos judiciários e possíveis retaliações por parte dos stakeholders b promove a marca das empresas sobretudo junto aos clientes e às comunidades locais em que suas sedes estão implantadas incrementando assim seu capital de reputação c concilia a eficácia econômica com preocupações sociais d fortalece a coesão corporativa conquistando e retendo talentos além de cultivar um relacionamento duradouro com clientes e fornecedores e faz com que os projetos sociais sejam agregados como valor aos produtos ou serviços prestados f opera como fator inovador para alcançar o sucesso empresarial g fomenta novo pacto social entre empresas sociedade civil e Estado Todavia é importante frisar que as iniciativas inspiradas pela responsabilidade social corporativa não são uma panaceia universal que possa substituir as políticas públicas Não se trata de eximir o Estado de suas obrigações Nem mesmo o terceiro setor cujas ações são complementares às ações estatais pode ou deve aspirar a tanto Essa cautela na demarcação do papel de cada setor é crucial para evitar que prosperem ilusões perniciosas A BASE ÉTICA DAS PRESSÕES Vamos reiterar algumas ideias para consolidar o raciocínio Como vimos a lógica orgânica do sistema capitalista é a da maximização dos lucros não por razões ideológicas mas por uma questão de racionalidade Afinal os empreendedores correm riscos ao investir seu capital quanto maior e mais rápido for o retorno de seu investimento menor será o grau de exposição àqueles riscos O destino do investimento contudo impõe uma reflexão os empreendedores procuram o lucro num impulso que se pretende neutro do ponto de vista ético alguns o fazem porém não importa o quão predatória seja a atividade escolhida Neste último caso confundem lucro com pilhagem e descambam para uma postura parcial obviamente de caráter antiético em que os interesses gerais são menos prezados em benefício de poucos Por isso mesmo somente o exercício de fortíssimas pressões externas pode compelir os interesses empresariais a satisfazer outras demandas que não as próprias Foi o que se deu nos últimos três decênios 13 SOTERO Paulo Reação da CNN a erro jornalístico foi exemplar O Estado de S Paulo 6 de julho de 1998 e Teto de Vidro Veja 8 de julho de 1998 a política pela ética 11 175 De fato as empresas estão sendo forçadas a assumir práticas de responsabilidade social corporativa e por derivação a trilhar os caminhos da sustentabilidade empresarial no mais das vezes a contragosto Assim sendo quem exerce tais pressões A sociedade civil definida como cidadania organizada e ativa ou conjunto de agentes articulados e mobilizados capazes de intervenção política Em outras palavras a lógica do sistema capitalista foi temperada por uma lógica exógena fruto da reflexão ética e obra do ativismo político Esse notável ponto de inflexão contribuiu para moldar o capitalismo social14 Foi responsável por inaugurar uma nova partilha dos excedentes econômicos Com efeito parte menor dos lucros vem sendo convertida em ganhos sociais beneficiando muitos públicos de interesse além dos acionistas A aplicação derivada dos lucros vai ao encontro da satisfação do bem universalista e não significa subversão do sistema Por exemplo ao investir em capacitação de sua força de trabalho as empresas valorizam seu capital intelectual aumentam substancialmente a produtividade melhoram a eficiência ao reduzir erros e ipso facto incrementam a pró pria rentabilidade Mais ainda ao detectarem novas oportunidades de negócio como as energias limpas e renováveis hidráulica solar eólica biomassa biogás marés resíduos sólidos urbanos biocombustível geotérmica as empresas concorrem para diminuir os efeitos estufa a Natureza agradece sem deixar de lucrar Em face disso qual é a base ética das pressões cidadãs A produção de bens e serviços supõe custos que não se resumem aos dispêndios econômicos porque implica também custos ambientais e sociais Ora quem suporta tais custos geralmente invisíveis Os custos ambientais dizem respeito ao uso e eventual desperdício de recursos naturais finitos e de energias não renováveis bem como das externalidades negativas geradas pelas empresas gases poluentes lixo tóxico defensivos agrícolas resíduos industriais redução da biodiversidade Estes impactos superam a resiliência da natureza a pegada ecológica que o diga Basta saber que em 2010 a população humana usava 150 dos recursos que a Terra é capaz de gerar isto é gastava meio planeta a mais do que a capa cidade de regeneração da Terra15 Em outras e terríveis palavras estamos destruindo as condições de habitabilidade humana no planeta pavimentando celeremente o caminho de nossa extinção a exemplo de outras extinções havidas16 Por sua vez os custos sociais dizem respeito à formação da força de trabalho à utilização da infraestrutura material e ao mínimo legal assegurado pelo Estado Em consequência não são frutos do acaso mas custeados pelos impostos pagos pelo conjunto da sociedade Eis o fundamento objetivo da abordagem ética que passou a valer a compreensão de que as empresas não podem simplesmente pegar carona nos bens públicos sem dar uma contrapartida No final do século XX a sociedade civil aprendeu a fazer política pela ética o que equivale a dizer que esgrimiu um formidável poder de dissuasão ao acionar diversos canais que ganharam musculatura e consistência 14 Ao ampliar fortemente a base social da apropriação dos lucros e ao multiplicar consideravelmente o número de investidores o capitalismo social contrasta com o capitalismo excludente em que a apropriação se cinge a um grupo restrito de proprietários capitalistas Os exemplos mais significativos do fenômeno são os fundos de pensão de muitas categorias ocupacionais e a miríade de pequenos investidores que detêm ações de grandes corporações Ver do autor Poder cultura e ética op cit pp 5662 15 httpwwwfootprintnetworkorg 16 Lembremos o exemplo clássico da Ilha da Páscoa cuja população desmatou a ilha e provocou solos inférteis e secas os habitantes foram dizimados pela fome pela guerra entre clãs e pela prática do canibalismo Os sumérios que desenvolveram a primeira escrita conhecida e cuja agricultura irrigada não soube preservar a fertilidade da terra acabaram por salinizar o solo e sua florescente civilização foi extinta Os maias também desmataram seu território de forma tão predatória que alteraram o regime das chuvas passaram fome e entraram em decadência antes da chegada dos espanhóis 176 Ética EmprEsarial 11 A mídia plural e investigativa detentora de uma força superlativa possui a faculdade de afetar negativamente o capital de reputação das empresas quando não de arruinálo As agências de defesa do consumidor e dos cidadãos a exemplo do Procon da Vigilância Sanitária ou do Inmetro dispõem de um arsenal de procedimentos capaz de fustigar diversos tipos de transgressões e de desestimular a reincidência Os movimentos de boicote promovidos por clientes eloquentemente silenciosos e multifacetados provocam consideráveis perdas financeiras aos empreendimentos quando não sua falência A Justiça apesar de sua proverbial morosidade está cada vez mais equipada para aplicar sanções e multas dissuasórias Ocorre que a conversão de clientes em cidadãos ativos não se processou por algum condão mágico mas derivou do recente processo histórico cujos vetoreschave trans figuraram a contemporaneidade Por ordem de grandeza A Revolução Digital que ainda oculta muitas de suas virtualidades redesenhou o modo de vida das sociedades e as arquiteturas organizacionais17 A constituição de uma economia competitiva em que o capitalismo deixou de ser oligopolista adquiriu feições sociais e expandiu suas fronteiras para os confins do planeta18 A conquista de regimes políticos liberais proporcionou à cidadania os direitos de expressão e de manifestação inexistentes em regimes ditatoriais e simultaneamente conferiu eficácia aos canais de pressão O resgate do poder de escolha dos clientes que somente agora podem debandar para os concorrentes quando insatisfeitos com a qualidade dos produtos os preços ofertados ou a logística do atendimento Qual configuração resultou dessas significativas mutações Uma sociedade da informação que se caracteriza por uma economia do conhecimento e pela primazia dos ativos in tangíveis Esta economia movida a capital intelectual a promoveu uma generalizada aplicação da ciência e da tecnologia à produção e à administração convertendoas em fontes de geração de valor b deflagrou uma vertiginosa aceleração das inovações que catapultaram a competitividade internacional a patamares inéditos fazse mais melhor e a custos menores c tornou a tecnologia da informação indissociável do cotidiano de bilhões de pessoas tanto pelo uso de celulares e de computadores quanto pelo impacto avassalador da internet redes informatizadas bancos de dados compartilhados tele trabalho comunidades de colaboração d facultou uma extraordinária convergência das mídias e potencializou exponencialmente o trabalho humano19 19 Integração dos recursos da internet da televisão digital da telefonia celular das redes de banda larga do computador e da informática num contexto de mobilidade e de interatividade 17 Traços relevantes são a automação eletrônica dos processos as telecomunicações em tempo real a tecnologia da informação que permeia equipamentos e dispositivos de uso corrente a corresponsabilidade técnica entre gestores e trabalhadores na organização do trabalho a formação de equipes multifuncionais operando em ilhas de trabalho o uso intensivo do trabalho mental e dos recursos simbólicos a qualificação dos profissionais pagos por mérito ou por resultados Ver do autor Poder cultura e ética op cit pp 2738 18 A globalização econômica fez com que o mundo se tornasse plano no sentido de que em busca de preços competitivos tudo pode ser produzido em toda parte A saber a produção ocorre em âmbito mundial em função dos transportes rápidos e baratos da migração intensiva dos fatores de produção cujos custos de mobilidade despencaram e das economias de escala obtidas Em paralelo as comunicações instantâneas levaram a um crescimento geométrico do fluxo dos ativos financeiros e os intercâmbios comerciais atingiram píncaros jamais vistos nos processos de internacionalização anteriores a política pela ética 11 177 Nesse sentido é crucial observar que até ontem o espaço o tempo e a massa eram estanques vale dizer a transposição do espaço exigia um tempo extenso e a massa era tangível20 Estávamos em pleno reino dos recursos materiais físicos Agora espaço tempo e massa ficaram permeáveis o que equivale a dizer que a conectividade transpõe o espaço a velocidade encurta o tempo e a intangibilidade supera a massa Tudo ficou instantâneo porque o planeta está interconectado assistimos aos acontecimentos em tempo real e nossas reações podem ser imediatas Fomos então projetados para o reino dos recursos imateriais simbólicos De sorte que milhões de pessoas têm acesso simultaneamente aos bens imaginários sem que isso deprecie ou diminua seu valor Podem ouvir a mesma estação de rádio ou assistir ao mesmo canal de televisão sem que isso impeça outros milhões de se juntarem concomitantemente a elas Estabeleceuse assim um inédito divisor de águas os bens intangíveis tendem a se definir como bens públicos21 Ou dito de outra forma a Revolução Digital torna cada vez mais intangível a pro priedade e tende a transcender o caráter individual pleno e alodial da propriedade capitalista Por exemplo quando músicas vídeos textos fotos gráficos fórmulas são postos na internet à revelia e contra a vontade de seus proprietários a expropriação de seus direitos autorais faz com que a propriedade se torne comum a todos Nessa toada como manter privados os bens intangíveis Afinal por serem simbólicos esses bens são reprodutíveis com facilidade crescente e a custos ínfimos podem ser copiados plagiados pirateados falsificados clonados maquiados adulterados contrafeitos pilhados con trabandeados Consagrase a fraude e celebrase o colapso da propriedade intelectual De fato na sociedade da informação a intangibilidade funciona de forma anarquica mente subversiva Ela comanda uma revolução pacífica sem alarde ou bandeiras sem barricadas ou armas e seu furor iconoclasta metamorfoseia os bens privados em bens públicos Resultados As relações capitalistas de propriedade vêm sendo solapadas insensivelmente a perpetuidade do sistema tal qual conhecido nesses dois últimos séculos está posta em xeque e a virtualidade de mais um tipo de propriedade comunitária ganha substância22 A universalização dos acessos aos saberes e ao entretenimento levanta é claro agudos questionamentos éticos23 Como ficam os investimentos em pesquisas em inovações em processos de produção divulgação e comercialização Quem irá bancálos Como não desestimular os empreendedores os cientistas os inventores os pesquisadores os artistas os inovadores os intelectuais em geral se não tiverem o mínimo de garantia de que seus esforços e suas descobertas serão reconhecidos e recompensados Vale dizer ao mesmo tempo que muitos ficam inebriados com o sonho de ter acesso ilimitado à 20 Basta lembrar a lenta transmissão das notícias por meio do correio convencional ou a dificuldade de comunicação hoje inimaginável via telegrafia com fios ou via telefonia conectada a uma central manual operada por telefonistas 21 O bem público é não rival não excludente e seu consumo é coletivo sua apropriação por um agente não diminui a quantidade a ser consumida por outros todos têm acesso aos seus benefícios seu suprimento não pode ser negado a quem se recusa a pagar por ele o que possibilita uma atitude de carona free rider Os bens privados em contraposição são rivais excludentes e seu consumo é individual sua apropriação impede automaticamente seu consumo por outros agentes 22 O acesso aos bens tornase livre e gratuito sob a égide da pirataria mas ocorre também de maneira lícita pululam os exemplos dos aplicativos que podem ser baixados sem restrições além do desfrute sem ônus já vetusto das emissões de rádio ou dos programas oferecidos pela televisão aberta ambos sustentados financeiramente pela publicidade paga 23 Indústrias inteiras estão à beira da morte escreve Alvin Toffler e precisam enfrentar as novas tecnologias que ameaçam pôr fim às proteções tradicionais da propriedade intelectual por exemplo a direitos autorais patentes e marcas registradas na qual apoiam sua própria existência TOFFLER Alvin Jamais houve mudança tão radical revista Época Negócios edição 8 outubro de 2007 178 Ética EmprEsarial 11 produção simbólica de bens e serviços como viabilizar projeto tão futurista em economias de mercado centradas no capital de risco Num polo simétrico reponta a evidência de que não se pode mais fazer negócio como sempre se fez business as usual E as razões são múltiplas A própria sobrevivência do sistema capitalista vêse questionada na sua essência pelas tecnologias digitais e os desdobramentos desse grave questionamento ainda aguardam fatos e estudos24 Em função da cobertura global e em tempo real da mídia a visibilidade das empresas tornouse inevitável com ou sem crises e sua vulnerabilidade cresceu substancialmente25 Mil olhos vigiam os passos das empresas graças às novas tecnologias e estão prontas a flagrar quaisquer práticas inescrupulosas26 As decisões empresariais produzem efeitos sobre os públicos de interesse que detêm capacidade de retaliar pondo em risco o capital de reputação das empresas esse ativo tão laboriosamente construído A existência de mercados competitivos requer suporte crescente dos públicos de interesse porque uma boa reputação reduz resistências angaria apoios e incrementa ganhos Em conclusão as empresas não competem mais apenas pelo mercado mas para con quistar um capital de reputação querem dispor de uma reserva de credibilidade que lhes confira a licença social para operar e por conseguinte o benefício da dúvida em situação de crise Procuram obter sobretudo um crédito de confiança que lhes outorgue uma vantagem competitiva para incrementar sua rentabilidade Não agem de forma socialmente responsável em função de algum surto de bommocismo ou porque o CEO fez terapia ou ainda porque uma epifania transtornou o acionista controlador mas porque sofrem pressões cidadãs Nesse contexto a clara compreensão das implicações éticas das decisões a serem tomadas e das ações a serem praticadas corresponde a uma prudente sintonia com as mais recentes demandas do mercado e com a nova configuração das relações sociais 24 Caso interessante é o da banda de rock inglesa Radiohead que ganhou as manchetes ao lançar um disco pela internet em outubro de 2007 Ela convidou seus fãs a baixar as músicas de graça ou a fazer uma contribuição cujo montante ficava a critério de cada qual 40 dos fãs contribuíram em média com US6 Nessas circunstâncias como o grupo se sustenta Ele reinventou o formato do negócio ao ganhar dinheiro principalmente com shows Ao invés de ficar à mercê da pirataria endêmica que grassa ou de depender da venda de gravações distribuindo produtos físicos por meio de gravadoras viabilizouse economicamente ao doar suas criações musicais A economia do grátis revista Exame 31 de dezembro de 2007 25 Na era do Google todo mundo pode tornarse uma celebridade quem for acusado de falcatrua na internet com ou sem razão defrontase com uma mancha praticamente impossível de apagar 26 Os grampos telefônicos e os aparelhos miniaturizados que acoplam câmera fotográfica filmadora e gravadora de som banalizaram a espionagem e dotaram qualquer pessoa de um extraordinário arsenal de vigilância 179 12 O risco de reputação A exemplo da esposa de César não basta ser honesto é preciso parecer honesto OS RISCOS EMPRESARIAIS Em 2002 em um abraço de afogado depois da bancarrota da Enron sétima maior corporação dos Estados Unidos entrou em colapso a Arthur Andersen uma das cinco maiores empresas de auditoria do mundo dona de uma receita mundial anual de US93 bilhões e empregadora de 85 mil pessoas E por quê Por causa da incontrolável defecção de seus clientes Afinal quem iria contratar uma auditoria desacreditada para atestar a fidedignidade de seus balanços Andersen trabalhava para a Enron havia mais de 10 anos e admitiu que funcionários pertencentes a seus quadros eliminaram ou apagaram um número significativo de documentos contábeis da operadora energética Afirmou que em algumas circuns tâncias autorizava a destruição de certos tipos de documentos Embora legal na época o procedimento mostrouse espúrio uma vez que a Enron confirmou que entre 1997 e 2001 seus lucros foram inflados em US585 milhões em função de erros contábeis O fato é que em dezembro de 2001 a Enron tinha dívidas de US312 bilhões1 Poucos meses depois estourou o escândalo da WorldCom a segunda maior opera dora de telefonia de longa distância dos Estados Unidos A empresa reconheceu uma fraude monumental de US3852 bilhões que consistiu em contabilizar despesas e outros gastos operacionais na rubrica de investimentos O procedimento lhe permitiu inflar artificialmente o fluxo de caixa ao longo de cinco trimestres falseando os lucros obtidos quando na verdade acumulava mais de US30 bilhões em dívidas O valor de suas ações caiu 94 no ano Ocorre que a WorldCom também tinha suas contas auditadas pela Andersen A repercussão do fato contribuiu para corroer mais ainda a confiança pública que investidores anônimos tinham nos demonstrativos financeiros das grandes empresas A crise de confiança chegou ao ponto de o próprio presidente do Federal Reserve o Banco Central dos Estados Unidos Alan Greenspan atacar com veemência o empresariado norteamericano e as empresas de auditoria Seu diagnóstico foi cáustico2 Greenspan não titubeou e apontou os culpados auditores advogados analistas de Wall Street agentes de classificação de crédito e fundos de investimento que fracassaram em detectar e denunciar aqueles que violaram a confiança dos investidores 1 Bloomberg Andersen eliminou documentos da Enron Gazeta Mercantil 11 de janeiro de 2002 p A8 2 Por que a governança corporativa e os balanços que nos serviram razoavelmente bem no passado entraram em colapso Na raiz dos problemas houve uma rápida ampliação da capitalização dos mercados acionários no final da década de 1990 o que engendrou um aumento desproporcional das oportunidades para usuras Uma infecção gananciosa parece ter tomado conta de nossa comunidade empresarial Nossos guardiões históricos das informações financeiras sumiram Dow Jones Newswires Greenspan condena ganância infecciosa nas empresas O Estado de S Paulo 17 de julho de 2002 180 Ética EmprEsarial 12 Do outro lado do Atlântico ainda no primeiro semestre de 2002 a onda de descrédito também arremessou Os mercados financeiros europeus foram derrubados pela falta de transparência das contas do segundo grupo mundial de comunicações o francoamericano Vivendi Universal com 380 mil empregados e um faturamento de 582 bilhões de euros Pairaram suspeitas sobre irregularidades que iriam ser praticadas para dissimular perdas mais uma vez com a cumplicidade da empresa de auditoria Andersen De fato a Vivendi acusou um endividamento superior a 30 bilhões e teve em 2001 um vultoso prejuízo líquido de 136 bilhões o maior prejuízo acumulado por uma companhia francesa3 Ora de que vive uma empresa de auditoria independente Essencialmente de sua reputação um conceito que abarca e transcende a um só tempo a própria competência técnica Essa delicada situação é também vivida por organizações tão diversas quanto os institutos de pesquisa os bancos de investimento as clínicas médicas as companhias aéreas e os laboratórios de medicina diagnóstica mas também abarca empresas que operam principalmente em mercados competitivos No Brasil houve um caso precursor de fraude contábil de enorme repercussão já que implicou o oitavo maior banco brasileiro e prejudicou cerca de 120 mil acionistas Desde 1986 o Banco Nacional apresentava um rombo muito superior a seu patrimônio A partir de então os balanços apresentados aos acionistas e ao Banco Central passaram a ser fraudados A administração do banco usou mais de mil contas inativas para forjar empréstimos e manteve a operação por quase 10 anos No final de 1995 o Banco Central descobriu a fraude e interveio no Nacional O rombo ultrapassava R9 bilhões Na sentença proferida em 2002 o juiz calculou o prejuízo para os cofres públicos em US9 bilhões por conta do financiamento do Proer programa governamental criado para ajudar os bancos deficitários e estimou o total da fraude em US16 bilhões A parte boa dos ativos acabou ficando com o Unibanco Foram condenados 14 dos 18 réus por gestão fraudulenta sendo que o expresidente do Banco Marcos Magalhães Pinto recebeu a sentença de 28 anos e 10 meses de prisão4 Outro caso brasileiro também momentoso foi o do Banco PanAmericano Uma auditoria do Banco Central descobriu em novembro de 2010 que fraudes contábeis foram cometidas por executivos do Banco de propriedade do empresário Silvio Santos em conjunto com a Caixa Econômica Federal 499 do capital votante O rombo anunciado foi de R 21 bilhões em operações de crédito do banco e de R 400 milhões na área de cartões 3 JÚNIOR Reali Escândalo Vivendi derruba bolsas europeias LEICESTER John Executivo visionário mudou rumo de empresa de águas O Estado de S Paulo 3 de julho de 2002 Bloomberg News e EFE Francesa Vivendi é acusada de tentar manipular balanço Gazeta Mercantil 3 de julho de 2002 4 CHIARINI Adriana Juiz condena exdiretores do Banco Nacional O Estado de S Paulo 26 de janeiro de 2002 GALLUCCI Mariângela TEREZA Irany Supremo manda soltar exdirigentes do Nacional O Estado de S Paulo 29 de janeiro de 2002 NUCCI João Paulo MELO Liana Cadeia só em 2008 revista Isto é 6 de fevereiro de 2002 O risco de reputação 12 181 Segundo a fiscalização do Banco Central carteiras de crédito vendidas a outros bancos continuavam contabilizadas no balanço além de haver indícios de que a mesma carteira foi vendida mais de uma vez O empresário Silvio Santos deu como garantia todo o seu patrimônio empresarial para obter emprestados R 25 bilhões do FGC Fundo de Garantidor de Crédito um fundo privado gerido pelo conjunto de bancos Todos os diretores foram demitidos Uma auditoria posterior elevou o rombo a R 43 bilhões e obrigou Silvio Santos a vender o banco ao BTG Pactual sem nada receber O BTG pagou R 450 milhões sem assumir as dívidas mas a operação de resgate rendeu R 335 bilhões de prejuízo para o FGC O que esses casos todos têm em comum A ocorrência de fraudes financeiras que quando se tornam públicas destroem as empresas ou as colocam à beira do precipício Ocorre que toda empresa corre vários tipos de riscos como entre outros O risco regulatório regulamentações dos órgãos reguladores O risco país grau de perigo que um país representa para o investidor estrangeiro O risco de mercado descasamento nas taxas de juros oscilação nas taxas cambiais desvalorização da carteira de commodities variação na carteira de ações liquidez O risco de crédito inadimplência degradação de garantias impossibilidade de compensação concentração em clientes segmentos ou áreas O risco de financiamento dificuldade para obter crédito O risco operacional fraudes internas ou externas processos trabalhistas falhas não intencionais danos aos ativos físicos falhas em tecnologia da informação ou no gerenciamento de processos O risco de processos internos falhos imperfeições processuais controles insuficientes ou ausência deles recomendações da auditoria não implantadas manutenção deficiente tecnologia obsoleta terceirizações mal escolhidas ou não controladas testes incompletos de novos produtos ou de novos processos sistemas de segurança inexistentes ou inadequados em instalações ausência de backup em sistemas vitais documentação imperfeita desatualizada desorganizada operações executadas fora das normas problemas pendentes queixas não resolvidas denúncias não apuradas ameaças não levadas a sério O risco de irregularidades crimes fiscais operações ilegais fraudes corrupção produtos ou serviços que possam afetar a vida a saúde a higiene a integridade física ou moral dos clientes publicidade enganosa ou abusiva agressões habituais ao meio ambiente descumprimento de contratos relacionamento com corruptos contraventores contrabandistas traficantes O risco de pessoal despreparado falta de treinamento adequado do pessoal inexperiência dos supervisores ou gerentes profissionais ambiciosos e arrogantes riscos mal calculados e assumidos embriaguez do sucesso ego trip ou salto alto da cúpula empresarial que podem levála a tomar decisões estratégicas descoladas da realidade exigências excessivas no trabalho estresse exaustão e problemas pessoais dificuldades financeiras doenças na família questões conjugais alcoolismo depressão O risco de comunicação descoordenada comunicação não integrada comunicação simbólica negativa comportamento dos dirigentes atitudes dos profissionais relacionamento com públicos sinais exteriores de poder e de riqueza boatos 182 Ética EmprEsarial 12 não analisados e não investigados em redes sociais reclamações e sugestões não examinadas por parte dos clientes Os envolvimentos de risco política partidária temas polêmicos atitudes politicamente incorretas como discriminação de minorias políticas Muitos casos listados todavia apontam para uma gravíssima ameaça tratase do risco de reputação que converte vulnerabilidades em verdadeiras bombasrelógio Ou seja por mais bem governada que seja uma empresa há ovos de serpete ou esqueletos no armário que transformam a vida empresarial num campo minado Traduzindo basta cometer um abuso deliberado por imperícia negligência acidente ou ingenuidade e que este abuso não seja tolerado pelos públicos de interesse para que uma crise de confiança se instale Um operador do 2 maior banco francês Jérôme Kerviel 31 anos usou seus conhecimentos de informática trabalhou na área que monitora as mesas de operação para falsificar registros bancários Descoberto em janeiro de 2008 havia apostado 48 bilhões em contratos futuros de índices de bolsas de valores europeias Diante da crise do mercado acionário norteamericano ativos imobiliários de risco ou subprime seus supervisores liquidaram as posições e o rombo resultante chegou a 49 bilhões A Société Générale tinha então 29 bilhões de capital mais de 120 mil funcionários e 267 milhões de clientes no mundo Depois da fraude o banco ficou mais vulnerável a uma aquisição Kerviel foi demitido e seus cinco supervisores foram afastados embora ele não tivesse se beneficiado com a fraude parece que queria ser reconhecido como estrela entre os traders Acabou indiciado pela Justiça por abuso de confiança falsificação de documentos e uso deles além de violação de códigos de informática Mais tarde foi condenado a cinco anos de prisão e à devolução dos 49 bilhões de euros Esse caso lembra o rombo ocorrido em 1995 quando Nick Leeson operador do mercado financeiro em Cingapura causou prejuízo de 14 bilhão de dólares ao Banco Barings veneranda instituição bancária britânica havia especulado no mercado de derivati vos asiáticos O banco foi vendido ao ING holandês pelo preço simbólico de uma libra esterlina e provocou grave perda para os acionistas pois os detentores de obrigações do Barings receberam 5 centavos por 1 dólar do valor de face O foragido Leeson foi capturado e condenado a 6 anos de prisão Outro caso de risco de reputação tornouse proverbial no mundo empresarial tratase de uma frase de efeito proferida em 1991 no Royal Albert Hall de Londres para descon trair a audiência da conferência anual do Institute of Directors O convidado era Gerald Ratner que em 1984 havia substituído seu pai no comando de uma rede de 130 joalherias transformandoa em menos de oito anos num império de 25 mil funcionários e de 2500 lojas espalhadas no Reino Unido e nos Estados Unidos A estratégia de sucesso de Ratner baseavase na venda de joias baratas de baixo padrão e pelo jogo duro em relação aos fornecedores A expansão da rede ocorreu rapidamente por meio da compra de concorrentes Ao discursar contou que as pessoas lhe perguntavam como conseguia vender joias tão baratas Num lampejo decidiu confiar o segredo de seu negócio aos quatro mil executivos presentes na audiência Disse as joias que vendo são puro lixo total crap O risco de reputação 12 183 No dia seguinte os tabloides ingleses não perdoaram A repercussão foi devastadora os clientes se aglomeraram nas lojas querendo devolver os produtos a rede perdeu 500 milhões em valor Ratner renunciou à presidência e seu nome virou sinônimo de gafe empresarial Frase imperdoável que desmontou um império Mas por que será A revelação matou o sonho que o negócio alardeava a ilusão do luxo e com isso derrubou o castelo de cartas desvendou o segredo de polichinelo que servia de lastro às vendas e atingiu o calcanhar de aquiles da empresa Piada fatídica Em fevereiro de 2011 um casal denunciou o estilista John Galliano diretor artístico da marca Christian Dior por insultos antissemitas e racistas na calçada do bar La Perle no bairro do Marais em Paris Depois outra mulher o acusou alegando ter sido agredida de maneira similar em outubro do ano passado nesse mesmo bar da capital francesa perto de onde mora o designer Assim que o jornal britânico The Sun divulgou um vídeo no qual o estilista totalmente alcoolizado dizia adorar Hitler e elogiava suas práticas nazistas a Maison Dior demitiu Galliano Um mês e meio depois o estilista foi também demitido da marca que leva seu nome controlada 91 pela Christian Dior5 Um estilista brilhante e elogiadíssimo com coleções glamourosas viu ruir carreira e negócio por seu comportamento racista uma mancha na reputação que ficou indelével Na órbita política um paralelo pode ser estabelecido No primeiro semestre de 2002 uma précandidatura à presidência da República brasileira foi lançada pelo PFL Partido da Frente Liberal alcançando o segundo lugar nas pesquisas de opinião O nome foi o da governadora do Estado do Maranhão Roseana Sarney filha do expresidente José Sarney Em 1 de março em função de suspeitas de envolvimento em desvios de verbas da extinta Sudam a Polícia Federal cumpriu mandado judicial e fez uma blitz na empresa de Roseana e de seu marido Jorge Murad a Lunus Ao apreender papéis a Polícia Federal encontrou R134 milhão em espécie O montante empacotado em notas de R50 foi distribuído em uma mesa de escritório e fotografado A foto acabou estampada pela mídia impressa e eletrônica dia após dia Não foi preciso exagerar nos comentários A exposição daquela dinheirama converteuse em tiro mortal na candidatura Seis versões foram então difundidas para justificar a origem dos recursos Até que Jorge Murad secretário de Planejamento do governo do Maranhão que manejava 40 das verbas públicas demitiuse Durante o ato confessou que era dinheiro para a campanha de sua mulher à presidência era a sétima versão Sem candidatura homologada por uma convenção partidária a arrecadação era ilegal A mídia nacional não perdoou lançando suspeitas sobre a origem dos recursos Após um bombardeio ininterrupto a reputação da governadora foi reduzida a frangalhos e Roseana renunciou à précandidatura 5 httpmulheruolcombrmodanoticiasredacao20110301johngallianoedemitidodachristian dioraposdizerqueamavahitlerhtm 184 Ética EmprEsarial 12 O QUE É A REPUTAÇÃO Gerir a reputação não importa em qual âmbito político empresarial profissional tornouse uma preocupação significativa no mundo contemporâneo haja vista o papel determinante que a opinião pública atualmente desempenha instruída e municiada pela mídia Ora falar de reputação e obviamente de boa reputação é falar de um ativo intangível cuja fragilidade é proverbial porque diz respeito à percepção que o imaginário popular tem quanto ao valor de uma empresa ou de um profissional Esse ativo É composto pelo valor das marcas e pela qualidade das relações mantidas com os públicos de interesse É conceito atribuído percepção que traduz uma hierarquia entre concorrentes equivale à consideração que os stakeholders conferem prestígio ou nome respeitado Corresponde ao posicionamento que se estabelece na mente dos públicos de interesse Vinculase à identidade corporativa ou profissional constituída pelos traços mais expressivos que os observadores atribuem Deriva de uma percepção que vai sendo forjada dia após dia à medida que a empresa ou o profissional satisfazem as expectativas dos stakeholders Assemelhase ao conhecimento científico um processo aberto provisório penosamente construído condicionado por incessantes questionamentos e verificações Quando a falta de chuva provocou escassez de água em 2002 em Kerala na Índia ativistas políticos promoveram manifestações contra as fábricas da CocaCola e da Pepsi na cidade culpandoas de retirar muita água dos mananciais locais Os hidrólogos da Pepsi demonstraram que a fábrica usava água de um aquífero profundo sem ligação com as fontes de água da cidade Porém mesmo assim os protestos continuaram e os gestores da Pepsi logo reconheceram que explicações científicas não saciariam pessoas sedentas Deramse conta de que engarrafar água e bebidas enquanto a população circundante não tinha água nem para as necessidades básicas era inaceitável para a comunidade Com base em informações técnicas que haviam sido compiladas quando da construção da fábrica a Pepsi melhorou o manancial da comunidade e com isso restabeleceu o fornecimento de água além de construir mananciais comunitários em outras áreas Ao mesmo tempo passou a observar métodos mais rigorosos de gerenciamento da água nos processos de produção inclusive a perfuração de poços em sua área industrial para aumentar o reabastecimento do aquífero Enquanto isso os protestos contra a Coca Cola prosseguiram e sua fábrica acabou sendo fechada pelo governo local no início de 2004 Depois desse êxito os ativistas políticos motivados por sentimentos antiamericanos voltaram a atenção para a Pepsi Cedendo às pressões o governo de Kerala determinou o fechamento dessa segunda fábrica Todavia não contando com o apoio local os protestos arrefeceram e a unidade foi reaberta quase que imediatamente Com efeito quando os ativistas tentaram fechar a Pepsi pela segunda vez em fins de 2005 os próprios habitantes locais impediram a manifestação6 6 SAVITZ Andrew W WEBER Karl A empresa sustentável o verdadeiro sucesso é lucro com responsabilidade social e ambiental Rio de Janeiro Elsevier 2007 pp 162163 O risco de reputação 12 185 A reputação está intimamente associada à confiança coletiva ou melhor à legitimidade que se conquista pelas políticas praticadas ou pelas ações cometidas Coincide em boa parte com a credibilidade Esta última remete a um crédito concedido por entidade que já goza de fama ou por agentes sociais que se louvam tanto das experiências bemsucedidas como das relações mantidas com quem aufere o crédito Mas não só pois a reputação visa à respeitabilidade social a exemplo das organizações que almejam o estatuto de instituições sociais Estas organizações não só se distinguem das outras pela duração no tempo mas alcançam tal grau de legitimidade que acabam sendo reconhecidas pu blicamente de forma quase reverencial É o caso da Universidade de São Paulo do Banco Central do Hospital Albert Einstein ou da ONU O grupo farmacêutico dinamarquês Novo Nordisk fabricante de metade da insulina consumida no planeta tem regularmente orientado médicos de todo o mundo a ensinar a seus pacientes como melhorar a própria dieta e com isso reduzir a necessidade de insulina É curioso já que sendo um empreendimento capitalista a política adotada pode reduzir os lucros almejados Ocorre que a receita não deixa de aumentar porque as vendas crescem E mais a lucratividade não está sofrendo declínio Como explicar o paradoxo Pelos efeitos substantivos que o respeito conquistado junto a médicos consumidores e até governos produz sobre o negócio7 A boa ou a má fama de uma empresa resulta da avaliação de suas características per cebidas Ela se baseia em suas ações passadas e presentes e gera expectativas quanto às suas ações futuras As apreciações que são feitas remetem essencialmente ao seguinte seria a empresa um bom lugar para se trabalhar do ponto de vista dos funcionários Seria uma boa provedora de produtos e serviços para os clientes Seria uma boa com pradora para os fornecedores Seria uma boa empresa cidadã para as comunidades locais Seria uma boa parceira para os ambientalistas Seria um bom investimento para os acionistas e investidores Enquanto no capitalismo oligopolista as empresas mantinham low profile pois limita vam sua visibilidade e exposição públicas no atual capitalismo competitivo as empresas procuram se beneficiar da gestão da reputação A razão reside no fato de que elas se tornaram cada vez mais vulneráveis aos ataques chamam a atenção pelo tamanho pelo tipo de atividade ou pela área de atuação principalmente quando é política ou ambientalmente sensível exemplo das empresas produtoras de armas cigarros bebidas alcoólicas peles de animais derivados de petróleo De fato por causa da cobertura global e em tempo real da mídia a visibilidade das empresas fica inevitável com ou sem crises e sua vulnerabilidade cresce exponencialmente Além do mais mercados competitivos reque rem suporte crescente dos públicos de interesse de modo que uma boa reputação reduz resistências angaria apoios e incrementa ganhos E quem são os agentes maiores das pressões Os clientes à medida que a a competição passa a reger as economias de mercado e atualiza seu direito fundamental o de escolha b a mídia se diversifica e obtém a maior parte de suas receitas de assinantes pequenos anunciantes associações variadas ou organizações da sociedade civil c os regimes políticos se tornam liberais e conferem eficácia a um leque de agências de defesa dos consumidores 7 SCHARF Regina Aposta no social segura funcionário e aumenta produtividade Gazeta Mercantil 15 de junho de 2000 p C6 186 Ética EmprEsarial 12 Tal círculo virtuoso ocorreu nos Estados Unidos a partir da década de 1970 e se desenvolveu também no Brasil dos anos 1990 Em outras palavras a globalização eco nômica com suas aberturas de mercado sua desregulamentação e sua mídia de alcance mundial trouxe à tona inúmeros grupos de pressão formados por cidadãos ativos que inscreveram as questões éticas na pauta empresarial Assim as empresas que se preocu pam com a imagem corporativa com a valorização de suas marcas ou com a reputação de que desfrutam acabam incluindo a reflexão ética em sua agenda A perda da reputação empresarial equivale à quebra da confiança coletiva uma situa ção traumática que pode se assemelhar à trinca que um objeto de cristal sofre ou à perda da inocência de uma criança ou ainda à traição de uma longa amizade São situações sem retorno irreversíveis pesadelos que qualquer um gostaria de espantar Para os negócios as consequências são também nefastas porque vão do estigma ao boicote e à falência Em 2002 acusada de induzir investidores ao erro com avaliações tendenciosas a maior corretora de valores dos Estados Unidos Merrill Lynch fechou acordo para pagar uma multa de US100 milhões Pretendeu pôr fim às acusações do procuradorgeral do Estado de Nova York e prevenirse contra futuros processos dos órgãos reguladores Embora registrasse uma leve alta nas suas próprias ações a Merrill Lynch não pôde evitar sérios danos à sua reputação e a seus negócios Acontece que um mês antes quando foi anunciada a abertura da investigação a Merrill Lynch havia perdido US11 bilhões em valor de mercado A acusação que pairava sobre a companhia era a de que tinha acobertado relações promíscuas entre suas divisões de análise e de investimentos ou seja os analistas da corretora classificavam favoravelmente as ações de empresas que utilizavam os serviços da companhia Pelo acordo a Merril Lynch foi obrigada a criar um comitê de revisão de todas as mudanças nas classificações de ações e a controlar a comunicação entre aquelas duas divisões Segundo o procuradorgeral Eliot Spitzer isso definiu um novo padrão para regular o conflito de interesses em Wall Street8 Recapitulemos então o que é reputação esse conceito atribuído pelos públicos de interes se É a percepção que eles desenvolvem ao longo do tempo um bem imaginário Quando a reputação é boa traduzse em admiração confiança e respeito quando ela é má induz desconfiança rejeição e estigma Percepção do quê Das ações cometidas no passado e no presente numa leitura que depende de interpretações concorrentes e até de potenciais manipulações mas que naturalmente gera expectativas quanto às ações futuras O risco de reputação assume assim o caráter de astrorei do gerenciamento dos riscos ou das vulnerabilidades que ameaçam as empresas pois é ameaça de desgaste ou perda do conceito atribuído é corrosão do capital intangível Daí a necessidade da análise ética Se ela for científica e competente tornase fiadora da preservação e do fortalecimento do capital de reputação uma vez que somente uma empresa eticamente orientada reúne as condições indispensáveis para angariar prestígio e assumir o estatuto de empresa cidadã E os pilares desse salto qualitativo são dois a responsabilidade social corporativa e a sustentabilidade empresarial 8 Bloomberg e Dow Jones Merrill Lynch paga multa por acusação de induzir investidor Gazeta Mercantil 22 de maio de 2002 GASPARINO Charles Merrill paga multa e concorda em fazer reforma da área de análise The Wall Street Journal Americas publicado por O Estado de S Paulo 22 de maio de 2002 O risco de reputação 12 187 A GESTÃO DA REPUTAÇÃO Filha do capitalismo competitivo a reputação depende da capacidade de a empresa se diferenciar no meio da multidão tomar a dianteira em seu setor de atuação Consiste em personificar uma identidade ímpar criar a mística de que a empresa é invulgar ou excepcional em comparação com as concorrentes De fato os públicos de interesse reco nhecem nas boas empresas uma série de competências que as tornam fora do comum qualidade do produto ou do serviço excelência operacional serviços pósvenda fide dignidade inovação sustentabilidade cidadania organizacional etc Assim as empresas que adotam políticas socialmente responsáveis não o fazem porque são boas samaritanas mas porque sob pressões cidadãs pretendem sabiamente preservar seu capital de reputação que constitui uma vantagem competitiva Por via de consequência visam assegurar a própria perpetuação A conversão de parte dos lucros em ganhos sociais para beneficiar stakeholders não é decisão de somenos importância principalmente quando os acionistas são plurais ou pulverizados Mas como justificar ao mercado uma eventual queda da rentabilidade das ações Afinal as empresas sofrem a exigência incessante de maximizar os lucros frequentemente a qualquer custo Em con trapartida sua eventual exposição à execração pública opera como dique de contenção contra apelos oportunistas Ora de que forma ocorre essa transferência de parte dos lucros aos públicos de in teresse Os ganhos sociais se processam por meio de mecanismos tais como Investimento em capacitação dos colaboradores e melhorias contínuas das condições de trabalho Aprimoramento de produtos o que incrementa o nível de competição da empresa e amplia o mercado de consumo Pesquisas tecnológicas para desenvolver novos processos o que possibilita a redução de custos e a maior eficácia na obtenção de resultados Serviços pósvenda para assegurar a qualidade e beneficiar os clientes Parcerias com fornecedores ou prestadores de serviços Repasse de ganhos de produtividade aos clientes Projetos sociais visando ao bemestar das comunidades locais em que as plantas industriais ou os escritórios estão instalados Preservação do meio ambiente pela menor utilização de insumos e pela certificação de sua origem pelo uso de energias renováveis e por seu gasto eficiente pela utilização de matériasprimas biodegradáveis ou recicláveis pela adequada disposição final dos resíduos e do lixo Cumprimento das exigências legais nos diversos domínios fiscal trabalhista ambiental do consumidor etc As empresas têm uma imagem a resguardar9 marcas a preservar10 uma reputação que não pode ser manchada com risco de pôr o próprio negócio a perder Compreender isso signi fica ter clareza quanto às extraordinárias vantagens de construir uma boa reputação que tem 9 Não se deve confundir imagem com reputação à medida que a imagem equivale à figura ou por analogia corresponde ao conceito estático de fotografia Em contrapartida a reputação constitui o fundo o background sobre o qual se projeta a figura e corresponde ao conceito dinâmico de filme 10 É importante distinguir a reputação da marca Enquanto a marca descreve o conjunto de associações que os clientes fazem com os produtos e afeta favoravelmente a probabilidade de compra por parte dos clientes a reputação envolve as avaliações que os múltiplos públicos de interesse da empresa fazem a respeito de sua capacidade de cumprir as expectativas e em consequência afeta a probabilidade de obter o apoio desses públicos notadamente em situações de crise 188 Ética EmprEsarial 12 o condão de se converter em barreira protetora contra os concorrentes confere legitimidade social para obter a licença para operar cria um escudo contra as crises graças ao apoio que muitos stakeholders se dispõem a oferecer à empresa em dificuldade representa um patrimô nio moral um crédito público de estima respeito e confiança aumenta o valor de mercado da empresa e facilita o acesso ao mercado de capitais concorre para a obtenção de créditos junto a órgãos de financiamento capta e conserva talentos à medida que torna os em pregos mais atraentes e motiva o empenho no trabalho11 estimula as compras repetidas por clientes e amplia a fatia do mercado gera cobertura mais favorável da mídia afeta o conteúdo das avaliações e das recomendações formuladas por analistas financeiros facilita os relacionamentos com concorrentes comunidades locais e autoridades Em outras palavras a reputação cria valor para os acionistas quando a empresa investe na capacitação de seus colaboradores porque aumenta a produtividade do negócio e valoriza seu capital intelectual realiza vendas de qualidade porque fideliza seus clientes e obtém preços premium trata de forma equânime seus fornecedores porque recebe descontos e prazos mais longos de pagamento pratica a governança corporativa porque desfruta de melhor acesso aos investidores e valoriza suas ações na Bolsa es tabelece parcerias com as comunidades locais ou com organizações não governamentais porque desfruta de uma margem de manobra e de uma reserva de boa vontade além do benefício da dúvida em situações críticas Agora vale a pena perguntarse quais são as exigências para gerir a reputação Formam elas uma portentosa agenda Cumpre Cultivar sólidas relações com os públicos de interesse que corresponde a um longo e persistente esforço para conquistar sua consideração Mapear e auditar sistematicamente esse ativo intangível quais são as percepções dos públicos de interesse e como a empresa se comunica afinal o que é dito Enraizar a identidade nas práticas na história na cultura organizacional e nas estratégias não bastam campanhas publicitárias Integrar a reputação à gestão estratégica da empresa uma vez que é parte vital do negócio e recorta transversalmente todas as atividades Adotar padrões internacionais de responsabilidade social corporativa Gerenciar os riscos incorridos Administrar as marcas branding Gerir as informações sobre o ambiente tanto interno quanto externo Criar um ambiente propício às inovações e montar eventualmente um departamento de pesquisa e desenvolvimento PD Praticar a inteligência ética quer dizer ser capaz de discernir os fatos morais dispor de diretrizes éticas consensuais traduzir as diretrizes em práticas reais estabelecer mecanismos de controle interno analisar os eventuais desvios e suas implicações bem como corrigir as práticas em curso Integrar as áreas de Comunicação Empresarial Relações Públicas Marketing e Publicidade e Propaganda12 Algumas empresas já criaram o cargo de gestor da reputação O que ele faz Zela para que as diretrizes éticas sejam implementadas cuida da comunicação do referencial ético 12 Tal integração corresponde à instituição de um cargo estratégico exige que a alta direção aja como unidade de ação e decisão e objetiva cuidar da reputação ao gerir as percepções e as expectativas dos públicos de interesse Ver NEEF Dale Managing Corporate Reputation Risk Estados Unidos Elsevier 2003 11 Muitos profissionais preferem ganhar menos em empresas de que possam se orgulhar do que trabalhar em empresas cuja fama está comprometida O risco de reputação 12 189 nas vertentes interna e externa rastreia os riscos potenciais e coordena as ações corretivas intervenções organizacionais e preventivas mecanismos de controle monitora o ali nhamento e o compliance da empresa além de checar as insuficiências Em termos práticos preocupase e indagase incessamente a respeito de alguns temas em particular o que fazemos para manter relações saudáveis com os stakeholders O quão bem monitoramos nossas imagens junto a cada stakeholder O que fazer para melhorálas Que tipo de atividades deveríamos desenvolver para sustentar nossa reputação Será que nossos stakeholders entendem e apreciam a importância de nossa reputação Quanto devemos investir em programas sociais E quanto de publicidade queremos disso Como obter críticas favoráveis e boas classificações da mídia E junto aos analistas financeiros Agora para defender a reputação outras indagações se impõem o que pode dar errado em nosso negócio O quanto somos competentes para antecipar ações antiéticas escândalos ou crises O quanto estamos preparados para reagir a eventos não previstos Que tipo de monitoramento e controles estabelecemos para prevenir crises Que tipos de programas de compliance estabelecemos para assegurar a integridade de nossas ações Quem se ocupa desses programas e pode lidar com eventos incomuns Em suma quais são as áreas sensíveis da reputação Basicamente seis os clientes exigem integridade os investidores requerem transparência os fornecedores requisitam idoneidade os colaboradores demandam fidedignidade as comunidades locais reclamam responsabilidade social corporativa os meios de comunicação repercutem credibilidade A gestão da reputação implica na frente externa uma competente administração das relações com os stakeholders a fim de reduzir a vulnerabilidade da empresa incrementar a lealdade dos clientes ampliar o leque de apoios e associar o nome da empresa e as marcas que detêm a atributos positivos como qualidade valor confiança seriedade inovação preocupações ambientais e comunitárias etc Na frente interna a gestão da reputação implica construir uma cultura organizacional eticamente orientada traduzir o respeito aos outros nas práticas do dia a dia tolerar o diverso agir de forma responsável revelar os diferentes rostos da empresa sem subterfúgios promover a autonomia e o comprometimento dos colaboradores Desafio hercúleo portanto a criação de percepções consistentes passa pelo estabeleci mento de políticas e práticas sustentáveis porquanto diz respeito a um esforço de longo prazo Mais ainda significa converter as relações com os stakeholders em fator estratégico que permeie todos os níveis da empresa13 A TRADUÇÃO DA FALA EM ATO Uma questão sempre presente em toda e qualquer mudança a ser introduzida na socie dade ou no campo organizacional é como fazer para que mesmo dispondo de vontade política os objetivos do projeto se convertam em práticas correntes Uma indústria farmacêutica multinacional comprava tripas de bois para fabricar suturas cirúrgicas As compras e todas as entradas e saídas de mercadorias eram controladas por um gerente de suprimento Um dia foi contatado um novo fornecedor de tripas para atender à ampliação da demanda O gerente então explicou ao fornecedor como funcionava o esquema 80 do lote de matériaprima poderiam ser entregues enquanto 100 do valor seriam faturados a diferença deveria ser repassada ao gerente que em troca lhe asseguraria aquisições regulares 13 FOMBRUN Charles J Reputation Management by Corporations In Ruth Chadwick editor Encyclopedia of Applied Ethics San Diego Academic Press 1998 vol 3 p 829 190 Ética EmprEsarial 12 O fornecedor estranhou a proposta por tratarse de companhia de grande porte Perguntou como se dava a mágica O gerente não quis revelar seu segredo de polichinelo mas era bem simples jogava as discrepâncias físicas na rubrica de perdas na produção O fornecedor pediu um tempo para se manifestar Depois de alguma reflexão inconformado denunciou o esquema à alta direção O gerente foi demitido recebendo seus direitos trabalhistas embora a indústria tivesse decidido processálo O curioso é que a empresa aplicava procedimentos de caráter preventivo que pelo visto não bastaram para conter a venalidade daquele gerente Os controles eram distribuir um código de conduta cobrar anualmente o preenchimento de um formulário em que os funcionários atestavam que conheciam as normas e as entendiam arrolar situações de conflito de interesses e fraudes e dálas ao conhecimento de todos por meio da intranet exortar de forma sistemática seu corpo funcional para que adotasse comportamentos idôneos Tratase sem dúvida de um leque louvável de medidas Mas então o que faltou Quais falhas existiram Várias O monopólio que a área de suprimentos exercia o ge rente concentrava as compras e os recebimentos bem como controlava os estoques e os refugos Para evitar os riscos teria sido prudente eliminar a concentração de atribuições e redistribuílas entre vários agentes Ademais o gerente dispunha de discricionariedade na sua área de atuação ou seja detinha autonomia operacional Qual medida preventiva caberia Após redistribuir as funções fazer com que os novos responsáveis checassem sistematicamente os insumos recebidos Por fim o gerente não estava submetido a con troles externos eficazes A empresa poderia ter adotado um padrão aceitável de perdas definido pela tecnologia disponível no mercado e pela comparação com empresas similares acima de certo volume de tolerância a oscilação do indicador seria submetida a minuciosa verificação da auditoria Em outras palavras além de exortar os funcionários a comportarse de forma correta caberia empenharse em duas questões maiores 1 administrar as condições que propi ciam o surgimento da inidoneidade 2 comprometer os colaboradores com as normas morais da empresa Ocorre que as duas questões demandam discernimento e persistência nas ações Como controlar eficazmente o ambiente interno Como transmitir a neces sidade de os funcionários seguirem de fato as orientações da casa É pacífico que as orientações da empresa devam ser codificadas Normalmente editase um código de conduta e pronto Experiências valiosas demonstram porém que convém negociálas previamente com quem irá praticálas A razão de ser é bastante simples caso negociadas as normas ganham legitimidade De tempo em tempo cabe discutir com o corpo funcional situações emblemáticas de desvios de conduta Onde colhêlas Nas riquíssimas fontes da mídia situações pontuais ou recorrentes e nos estudos de ética empresarial Com qual objetivo O de conscientizar gestores e colaboradores quanto aos efeitos perniciosos que condutas inidôneas geram sobre os stakeholders Mas é preciso ir além da ação pedagógica Primeiramente vale definir a responsabilidade de cada um no esforço de traduzir normas morais em ações reais Em segundo lugar é fundamental montar controles preventivos e corretivos e estabelecer as respectivas sanções Por quê Pelas razões já expostas descontadas as honrosas exceções os agentes que dispõem de um mínimo de discricionariedade podem ser tentados a cometer alguma irregularidade afinal o assédio que sofrem é ininterrupto Por isso quem sair da linha não pode ficar impune Para tanto nada melhor do que manter um ambiente seguro De que maneira Lançando O risco de reputação 12 191 mão de parâmetros indicadores de monitoramento medidas de contenção rodízio de funções linhas de notificação para encaminhamento de queixas e sugestões auditorias periódicas regras mínimas que sejam rigorosamente observadas Sem o que se corre o risco de ficar a reboque do foro íntimo de cada um dos colaboradores Assim entendida a lição preliminar de colocar normas morais no papel e de procurar fazer com que sejam compreendidas elaborase um cardápio de controles Isso fecha o circuito de vez Ainda não É vital transformar os feitos da gestão em exemplos vivos das orientações e das normas adotadas A demonstração se dá por atos e fatos mais do que por falas ou cartas de intenções Por exemplo como passar a ideia do trabalho de qualidade para que os colaboradores tenham orgulho do que fazem e respeitem aqueles com os quais se relacionam Ao conferir responsabilidade a quem trabalha com esmero ao reconhecer publicamente os trabalhos bemfeitos ao exigir obediência rigorosa aos requisitos técnicos ao desenvolver sucessivos projetos de melhoria ao ensejar uma oportunidade para a correção dos próprios erros Outro exemplo como transmitir os valores da igualdade de oportunidades e de tra tamento não discriminatório Ao evitar todo e qualquer favoritismo que possa vir a privilegiar alguns em detrimento de outros ao não tolerar atividade alguma que possa constranger diminuir ou desqualificar alguém ao relacionarse com os colaboradores sem proferir ameaças e sem endossar brincadeiras discriminatórias de etnia religião gênero preferência sexual condição ou origem sociais ao pensar nos colaboradores a todo o momento como cidadãos organizacionais Fácil Não espinhoso trabalhoso porque supõe policiar sem cessar os próprios modos de agir e pensar expurgar os preconceitos que permeiam a linguagem alertar os colegas quanto a motivações ocultas ou autoenganos Agora como demonstrar a importância crucial do cliente Ao oferecer sempre produ tos de qualidade a preços competitivos e nos prazos prometidos ao incorporar sempre inovações tecnológicas design atualizado garantias contra defeitos assistência técnica ou serviços pósvenda ao prestar informações precisas e objetivas que assegurem um monitoramento competente da transação ao servir de forma prestativa e profissional para que o negócio se oriente pela premissa dos ganhos mútuos E acima de tudo ao vincular as avaliações de desempenho à satisfação dos clientes Como transmitir a ideia de rapidez e de respeito pelos prazos Ao dar feedbacks ex peditos a todas as demandas vindas de clientes externos ou internos sobre o andamento de encomendas ao definir um padrão de tempo exequível para dar cabo dos trabalhos assumidos e ao monitorar os cronogramas preestabelecidos ao separar fatos de desculpas quando as atividades não respeitam a celeridade desejada É claro que cada uma dessas asserções carrega implicações bastante complexas Esforçarse para implementálas e para equacionar as dificuldades que cada passo apresenta já seria mostra de seriedade Faremos agora uma incursão no mundo escolar Com qual intuito O de tentar mostrar como ações eticamente orientadas podem contribuir para moldar os comportamentos do corpo discente14 Em princípio parece que os efeitos mais duradouros que os professores provocam decorrem do que fazem em sala de aula e do modo como tratam os alunos ou seja decorrem de uma pedagogia do exemplo mais do que de uma pedagogia do verbo Assim como transmitir e alcançar credibilidade Fazendo com que sejam públicos e trans parentes os objetivos e o conteúdo programático os critérios de avaliação e a estratégia didática não mudar as regras do jogo sem previamente consultar os interessados 14 Inspirado por SAUSER William I The Ethics of Teaching Business pp 3336 Auburn University College of Business 192 Ética EmprEsarial 12 para obter seu assentimento não assumir a postura de magister dixit que confere ao docente a última palavra a não ser quando os alunos confundem opinião juízo de valor com conhecimento juízo de realidade estabelecer uma espécie de contrato moral entre professores e alunos religiosamente honrado que mostre a virtude da previsibilidade dos comportamentos e a utilidade dos propósitos explícitos Como transmitir a necessidade de atualizarse sempre e de superar a obsolescência que atinge qualquer profissional em função da aceleração das inovações tecnológicas e do avanço do saber científico Ao introduzir nos cursos de forma incessante conheci mento recente leituras atualizadas pesquisas e métodos avançados recursos e equipa mentos didáticos de última geração15 ao pesquisar as expectativas e os interesses dos alunos e ao providenciar materiais técnicas e práticas pedagógicas relevantes ao exigir do próprio professor renovação permanente e abertura para o mundo contemporâneo procurando lançar pontes entre as várias disciplinas que estão sendo ministradas Isso leva os alunos a antever o que os espera na vida profissional e os alerta quanto aos cres centes requisitos do mercado Mais do que um certificado ou do que um diploma as empresas requerem hoje compe tência capacidade de agregar valor Os profissionais valem aquilo que sabem e mais ain da aquilo que sabem fazer bem valem seu cabedal de saberes ou seu capital intelectual Como transmitir a relevância das implicações das nossas decisões e ações Ao ex plorar as consequências implícitas na adoção dos métodos pedagógicos e das teorias porque ensinar fórmulas não é a mesma coisa que ensinar a demonstrálas avaliar dados memorizados não se equipara à exigência de raciocinar ou de desenvolver pesquisa empírica buscar explicações científicas para a ocorrência dos fenômenos fica a léguas das justificações de senso comum ou das elucubrações ideológicas Ao fazer com que toda leitura seja um motivo para discussão salientando as várias interpretações que se oferecem mostrando a multiplicidade dos interesses em jogo e analisando o mesmo evento de modo interdisciplinar Ao mostrar como os fenômenos sociais produzem efeitos reais e por que é indispensável conhecer o contexto em que operam e conhecer a dinâmica histórica Por fim ao incentivar a análise crítica a despeito do conforto das intuições apressadas ou da inércia em reproduzir o que sempre se fez sem considerar os antecedentes e as implicações de dado fenômeno Como transmitir a necessidade da integração do aluno na coletividade e do com prometimento com as normas sociais Ao envolver ativamente os alunos nos processos de aprendizagem por meio das dinâmicas de grupo dos estudos de casos do estímulo à cooperação nos esportes e no lazer da participação em trabalhos de grupo Ao destacar situações referentes a desvios de conduta que ocorram no cotidiano do país tornadas públicas pelas diferentes mídias e ao apreciar seus resultados sobre o exercício da cidadania Como transmitir a ideia do mérito ou da avaliação de desempenho Ao aplicar provas ou trabalhos bem projetados que cubram conteúdos efetivamente estudados e que adotem critérios de correção conhecidos Ao rejeitar os procedimentos espertos como a cola o encosto no grupo de trabalho e o puxasaquismo e ao praticar padrões impessoais de avaliação Ao considerar aptos os alunos cujos resultados tenham demonstrado uma assimilação condizente com aquilo que foi ministrado Ao incentivar a emulação ou a capacidade de os alunos superarem a si mesmos Ao não deixar prevalecer em caso algum o favoritismo o pistolão o jeitinho o favor ou a amizade 15 O que corresponde no âmbito empresarial à capacitação de ponta à análise de técnicas e casos atuais à formação de competências que propiciem maior empregabilidade aos colaboradores O risco de reputação 12 193 Como transmitir o valor do dinheiro em escolas privadas Opondose em termos práticos à displicência corrente entre professores que fazem de conta que ensinam e es timulam os alunos a fingir que estão aprendendo convertendo a escola em um cartório emissor de certificados Isso equivale a dar aos alunos um retorno condizente com o que desembolsam em mensalidades Uma vez que os alunos gastam tempo e esforço além de despender o dinheiro dos pais ou deles próprios nada mais justo do que recebam uma adequada contrapartida em conteúdo orientação educacional e atividades ex tracurriculares Mutatis mutandis a introdução dessas práticas no cotidiano das escolas lança alguma luz sobre aquilo que se poderia adotar nas empresas Ainda que os propósitos ou os objetivos sejam diversos os procedimentos tendem a ser similares 195 13 A sustentabilidade empresarial Fazer negócios pressupõe solucionar problemas Por isso olhei para a questão da pobreza Muhammad Yunus O ATIVISMO EMPRESARIAL Qual é a função social das empresas Sem subterfúgios retóricos a resposta à questão consiste em produzir produtos ou serviços que atendam às demandas do mercado em gerar empregos pagar impostos e sem dúvida agregar valor aos acionistas As empresas existem para gerar lucro razão pela qual seus proprietários arriscam o capital O modo de obtêlo poderia ser questionável o lucro é responsável ou abusivo mas não sua própria natureza pois esta é a lógica inerente ao sistema capitalista1 O novo capitalismo social trouxe à baila a têmpera da responsabilidade social corpo rativa que em síntese corresponde ao compromisso das empresas em assegurarem a qualidade de vida de seus públicos de interesse Implica governança corporativa parceria com esses públicos e gerenciamento dos riscos ambientais2 Assim o conceito de res ponsabilidade social corporativa não se confunde com o de sustentabilidade empresarial uma vez que o primeiro enfatiza os benefícios dos públicos de interesse enquanto o segundo remete à capacidade de reprodução das próprias empresas lucro justo e de suas condições de existência tanto sociais ambiente em que todos possam prosperar quanto ambientais uso ecoeficiente dos recursos naturais Lato sensu a sustentabilidade implica viver de maneira permanente em equilíbrio com os recursos gerados pelo planeta Pois uma sociedade sustentável não se mede tão somente pelo consumo material mas pela qualidade de vida de seus cidadãos saúde pública longevidade nível educacional anos de estudo e qualidade da aprendizagem ambiente limpo e utilização criteriosa dos recursos naturais espírito comunitário lazer criativo e participação cidadã Assim no âmbito empresarial a sustentabilidade requer a empresas socialmente responsáveis ou seja mobilizadas pela problemática da inclusão social b empresas capazes de assegurar a própria perpetuidade ou seja lucrativas sem apelar para práticas parciais e c empresas dedicadas a preservarem o meio ambiente ao mesmo tempo que restauram os sítios afetados por elas Em outros termos a sustentabilidade supõe que as empresas sejam viáveis economicamente justas socialmente e corretas ecologicamente Este tríplice resultado triple bottom line mede o impacto das suas atividades no mundo e contribui em última instância para assegurar a habitabilidade do planeta 1 Há quem se insurja contra a ideia do lucro por razões ideológicas ou doutrinárias e envereda para a crítica revolucionária não se trata pois de procedimento científico 2 A governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas são dirigidas e monitoradas envolve as relações entre acionistas Conselho de Administração Diretoria Auditoria Independente e Conselho Fiscal estabelece um sistema de controles e incentivos orientado pelos interesses dos acionistas confere transparência pública aos atos de gestão e protege a empresa contra eventuais abusos de poder garante aos stakeholders tratamento mais equânime de seus interesses torna mais fácil e diminui o custo do acesso aos investimentos externos 196 Ética EmprEsarial 13 É importante ressaltar que é possível medir tais atividades por meio de indicadores precisos fugindo assim da retórica moralista Na órbita econômica os indicadores são vendas lucro retorno impostos pagos fluxo de caixa empregos criados Na órbita social práticas trabalhistas impactos sobre a comunidade direitos humanos responsabilidade pelos produtos Na órbita ecológica qualidade do ar e da água uso de energia geração de resíduos É possível calcular também os benefícios obtidos Por exemplo podese dimensionar com dados verificáveis o aumento da produtividade da receita do finan ciamento da participação no mercado a redução dos riscos bem como a diminuição dos custos de produção e de comercialização a maior facilidade para contratar os melhores talentos e a maior retenção deles Esta disciplina confere substância às políticas de sus tentabilidade e as legitima aos olhos dos acionistas e investidores Donde a seguinte asserção as empresas eticamente orientadas são prósperas protegem o meio ambiente e melhoram a vida de seus públicos de interesse Além disso resolvem ao mesmo tempo problemas de caráter geral Ao levar a sério esses compromissos e ao realizar a façanha de traduzilos em práticas as empresas se credenciam para alcançar boa reputação e perenidade Resumo da ópera sob pena de sofrer retaliações por parte de seus públicos de in teresse as empresas inseridas num ambiente competitivo evitam agir como se fossem empreendimentos mercenários Afinal sua reputação influencia o volume das vendas e a qualidade delas a compra de produtos e seus preços a contratação de serviços a obtenção de investimentos os empregos que as pessoas procuram e os talentos a reter Com efeito diante de demandas aparentemente contraditórias empresas eticamente orientadas podem contrapor trocas mutuamente vantajosas Por exemplo quando os acionis tas exigem lucros crescentes oferecem a geração de um lucro sustentável no tempo quando os fornecedores exigem preços maiores oferecem transações contínuas e idôneas quando os clientes exigem preços menores e serviços pósvenda oferecem preços justos e produtos seguros quando os colaboradores exigem melhores salários e maiores benefícios oferecem empregabilidade e tratamento digno quando as comunidades locais exigem cuidados ambientais e ações solidárias oferecem empreendimentos perenes e ambiente limpo Assim as pressões cidadãs e os interesses de perpetuação dos negócios levam muitas empresas a desenvolver processos inspirados pelo altruísmo imparcial empresarial farejam oportunidades de mercado e combinam lucro e bem comum Em termos práticos as empresas mapeiam e demarcam uma área de confluência em que os interesses da empresa bem como os interesses da sociedade e da natureza possam ser vantajosamente contemplados Vejamos algumas ilustrações Um caso clássico é o da Unilever na Índia O país respondia há alguns anos por 30 das mortes causadas pela diarreia no mundo A companhia então firmou parcerias com professores líderes comunitários e órgãos públicos com vistas à educação básica da população sobre práticas elementares de saúde como lavar as mãos com sabonete O programa Despertar para a Saúde atingiu 200 milhões de pessoas de baixa renda Porém antes de veicular a campanha a Unilever investiu na reformulação de uma linha de sabonetes para ampliar seu poder bactericida e baixar o custo para o consumidor final Logo depois preparou milhares de mulheres para vender o produto num sistema porta a porta Resultados Criou um círculo virtuoso em que melhorou a higiene e reduziu a diarreia elevou a renda de quem vende o produto contribuiu para o bem comum e naturalmente lucrou3 3 SAVITZ Andrew W com WEBER Karl A Empresa Sustentável op cit pp 148152 a sustentabilidade empresarial 13 197 Com isso a Unilever desbravou uma nova fronteira de mercado que é a base da pirâmide de consumo e fez disso uma estratégia mundial Tratou de desenvolver produtos ajus tados às necessidades e ao poder aquisitivo dessa nova clientela Seu braço na Índia a Hindustan Lever se orgulha em dizer que dois de cada três indianos consomem seus produtos são produtos populares capazes de suprir as necessidades de nutrição e higiene da população de baixa renda Mais extraordinário é o caso do professor Muhammad Yunus o banqueiro dos pobres ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2006 Ele concebeu o microcrédito um sistema de empréstimos destinados aos mais pobres para empreenderem pequenos negócios quer dizer destinados exclusivamente à produção não ao consumo Ora como os mutuários não dispõem de posses e em geral são analfabetos não exige deles contratos legais nem garantias Estabelece tão somente uma relação de confiança o chamado aval solidário de três a cinco pessoas que se responsabilizam por solucionar eventuais dificuldades individuais e pelo pagamento dos empréstimos Não se trata obviamente de filantropia ou de altruísmo extremado uma vez que há cobrança de juros ainda que módicos O microcrédito teve a virtude de servir de catalisador para o desenvolvimento social em Bangladesh pois conferiu aos tomadores do crédito condições para gerar renda e recuperar a própria dignidade A grande maioria deles aliás cruzou a linha da pobreza avaliações indicam que dois terços o fizeram E o mais fascinante é que a taxa de inadimplência é de apenas 115 Criado em 1983 o Banco Grameen tinha 181 milhões de mutuários em 2010 97 deles mulheres e estava presente em 81355 vilas cobrindo mais de 97 de todas as vilas de Bangladesh Outro caso ilustrativo é da Pfizer Ela desenvolveu um tratamento de baixo custo para a prevenção do tracoma principal causa da cegueira em países em desenvolvi mento e decidiu doar o medicamento Como não dispunha de condições de atingir as populações necessitadas articulouse com organizações mundiais de saúde para criar canais de prescrição e de distribuição Nestes estritos limites o gigante farmacêutico estava obrando em termos altruístas extremados Acontece que o desdobramento da operação a conduziu ao altruísmo imparcial porque embora a Pfizer tenha benefi ciado dezenas de milhões de pessoas ela expandiu seu mercado ao lançar mão da infraestrutura criada pelas ONGs e ao comercializar outros produtos Política sábia sem dúvida e eticamente orientada pois com ela todo mundo ganhou e ninguém perdeu A unidade industrial da BASF em São Bernardo do Campo vem usando garrafas de PET descartadas no lixo para produzir esmaltes e vernizes sintéticos desde 2002 Esta unidade da BASF fabrica resinas que são utilizadas na formulação de esmaltes e vernizes da sua linha imobiliária de tintas Estas resinas são alquídicas formadas por reação entre um poliácido um poliálcool e um óleo vegetal Considerando que o PET polietileno tereftalato tem base química semelhante poliácido poliálcool e que há uma alta disponibilidade de garrafas de PET dispostas no meio ambiente seja em aterros ou jogadas em rios e lagos a BASF identificou o uso potencial de garrafas recicladas de PET na formulação das resinas e obteve redução de custos na fabricação dos esmaltes e vernizes Em termos de resultados ambientais a reciclagem de material de alta disponibilidade e de forte impacto ambiental com tempo médio de decomposição estimado em centenas de anos é o maior 198 Ética EmprEsarial 13 destaque Do total de PET gerado no Brasil entre 25 e 30 são reciclados A BASF consome cerca de 3 do total e é a maior contribuinte individual nesta reciclagem Isto representa entre 50 a 60 milhões de garrafas de PET que deixam de ser enviadas anualmente para aterros sanitários e jogadas em rios e esgotos Além disto por causa da diminuição da quantidade de água gerada na reação de esterificação o volume de efluentes gerados foi reduzido em torno de 40 o que corresponde a aproximadamente 250 m3ano Podese contabilizar também uma redução no consumo de matériasprimas de aproximadamente 3 mil toneladasano provenientes de fontes não renováveis como a nafta de petróleo Em termos de resultados econômicos houve um ganho de R3 milhõesano em redução de custos de produção proveniente da substituição da matériaprima convencional pelos flakes de PET e do aumento de produtividade em 13 decorrente da redução do tempo de filtração e de dispersão de pigmentos Houve ainda melhorias na qualidade do produto final em aspectos como resistência aos raios UV ao amarelecimento e no brilho O projeto também criou 550 novos empregos na cadeia de reciclagem do PET entre catadores e recicladores4 Além dos exemplos anteriores a Procter Gamble desenvolveu um produto para a purificação da água o PuR Purifier of Water e o pôs à venda por um baixo custo5 Vale lembrar que há mais de um bilhão de pessoas sem acesso à água potável Para utilizar o PuR misturase o conteúdo de um sachê em 10 litros de água onde ele se combina com substâncias patogênicas e outras impurezas e depois se assenta ao fundo Após 20 minutos filtrase a mistura por meio de um pano que retém as impurezas e deixa passar água potável limpa e segura O custo total é de US010 A PG formou parcerias com ONGs para a ensinar às pessoas a importância do uso da água potável International Council of Nurses b realizar testes de adequação US Centers for Disease Control and Prevention c treinar farmacêuticos e lojistas e distribuir o produto Population Services International por meio de sua rede que chega a alcançar Haiti Paquistão Quênia e Uganda d fez acordo com Safe Water Drinking Alliance para obtenção de financiamentos da USAID Em caso de desastres naturais fornece o produto ao preço de custo às organizações internacionais de ajuda como o Unicef Americares Samaritans Purse e CARE Em situações excepcionais doa o produto como no caso do tsunami que afetou o sudeste asiático em 20056 Como é fácil verificar embora contribua para o bem comum a PG não está só esgrimindo filantropia mas pratica o altruísmo imparcial empresarial cuida de obter retorno financeiro além de aproveitar todas as oportunidades para divulgar seu produto A Conservação Internacional uma das maiores ONGs ambientalistas convenceu a WalMart a adotar um programa relevante a reduzir 25 da geração de resíduos assim como cortar 30 do consumo de energia em suas sete mil lojas o que resulta em redução de custos b aumentar em 25 a eficiência logística dos veículos que transportam os seus produtos o que diminui gastos com combustível e a emissão de gases do efeito estufa c comprar tão somente peixes certificados pela entidade Marine Stewardship Council como contribuição à pesca sustentável d ampliar a compra de produtos orgânicos a companhia é a maior compradora mundial de algodão orgânico e incentivar seus 4 httpwwwcetesbspgovbrTecnologiaproducaolimpacasoscaso34pdf 5 Para a clientela mais abastada o PuR é vendido sob a forma de filtros e de outros dispositivos 6 httpwwwpurwatercom e httpwwwircnlpage16788 a sustentabilidade empresarial 13 199 60 mil fornecedores a usar embalagens recicláveis o que pode gerar economia de US3 bilhões em uma década7 Desde 2006 a joint venture Grameen Danone fabrica um iogurte especialmente criado para suprir as necessidades nutricionais de crianças Sua missão é servir diariamente alimento nutritivo para a população subnutrida de Bangladesh Cada copinho custa sete centavos de dólar e todo o lucro é reinvestido em 2010 a venda diária chegou a 72 mil copinhos O empreendimento criou 1600 empregos e seu impacto sobre a saúde das crianças foi altamente significativo A Aurolab da Índia fornece produtos oftálmicos de alta qualidade a preços populares para países emergentes Lentes intraoculares e agulhas para sutura entre outros materiais são vendidas prioritariamente para programas de saúde oftalmológica sem fins lucrativos Desde 1992 forneceu mais de 5 milhões de lentes para seus clientes na Índia e em mais de 120 outros países8 O que podemos deduzir desses exemplos As empresas resolvem problemas de interesse geral atendem a necessidades da população articulam parcerias geram ganhos sociais e obtêm lucros responsáveis Caminham pois para se tornar empresas sustentáveis sem contrafação Isso significa em termos sintéticos quatro coisas 1 observar leis e regulamen tos no plano legal 2 garantir a prosperidade e a perenidade do negócio no plano econômico 3 gerenciar os riscos ambientais e restaurar os impactos negativos no plano ecológico 4 investir ganhos sociais e assegurar qualidade de vida aos stakeholders no plano ético Nessa linha os exemplos poderiam ser multiplicados haja vista a difusão crescente da estratégia de inserção responsável das empresas no ambiente social Descreveremos apenas cinco bastante emblemáticos em função da geração de resul tados empresariais conjugados com o bem comum9 A petroquímica Braskem inovou ao conceber uma resina plástica fabricada a partir do etanol de canadeaçúcar e que se destina à indústria automobilística e aos fabricantes de embalagens para alimentos artigos de higiene e cosméticos Além de provir de fonte renovável que contribui para a absorção do gás carbônico reduz o efeito estufa e o aquecimento global o produto é 100 reciclável e suas propriedades são as mesmas do polietileno convencional e do polipropileno Sua fábrica está instalada e funcionando a pleno vapor desde 2010 na cidade de Triunfo no Rio Grande do Sul A Aperam braço de aço inoxidável da Arcelor Mittal reduziu o custo de produção de aço US150 por tonelada com a troca de carvão mineral pelo vegetal extraído de florestas de eucalipto plantadas e manejadas pela própria empresa Com isso deixou de emitir 700 mil toneladas de dióxido de carbono por ano Ademais está reaproveitando 89 dos resíduos gerados e está reciclando e reutilizando 95 da água utilizada na manutenção das operações A fabricante de cosméticos Natura eliminou o teste com cobaias prática fortemente criticada por entidades defensoras dos animais e reduziu ao mínimo as emissões de gases geradores do efeito estufa em toda a sua cadeia produtiva neutralização do carbono Ademais processa uma mudança radical nas fórmulas de seus cosméticos ao substituir os ingredientes animais e os minerais provenientes do petróleo por matériasprimas vegetais 7 httpwwwusatodaycommoneyindustriesretail20060924walmartcoverusatxhtm e ROSENBURG Cintia Revista Exame 22 de agosto de 2006 8 Os dois últimos casos são citados pela revista Época Negócios maio2008 9 Os casos encontramse no Guia EXAME de Sustentabilidade 2007 e 2011 200 Ética EmprEsarial 13 A IBM criou e financia um programa que incentiva o uso da capacidade ociosa de computadores pessoais tecnologia da computação em grade para pesquisas humanitárias voltadas principalmente para a saúde e o meio ambiente Tratase do World Community Grid que até 2012 já mobilizou mais de 2 milhões de computadores ligados em rede que doaram o equivalente a 622 mil anos de operação ininterrupta São assim poupados anos de pesquisa para estudos científicos que necessitam de projeções e cálculos complexos A Anglo American um dos maiores grupos em mineração do mundo mapeia a fauna e a flora do cerrado goiano transforma suas descobertas em material didático e compartilha o conhecimento com as comunidades locais Mas sobretudo adota políticas sustentáveis Em 2010 a área preservada em Goiás atingiu 15300 hectares 83 da água consumida na manutenção das operações foram reciclados e reutilizados mais de 80 dos processos são cobertos por sistemas de gestão de saúde e segurança do trabalho certificados assim como 80 da produção são oriundos de processos cobertos por sistemas de gestão ambiental monitorados por empresa certificadora O tríplice resultado significa assim empresas a economicamente viáveis porque buscam lucro justo geram empregos de qualidade treinando o pessoal e aumentando a produtividade pagam impostos regularmente agem de forma idônea em função dos valores universais economizam custos inovam em produtos e processos promovem o comércio justo intercâmbios mutuamente vantajosos com comunidades locais tornandoas sustentáveis adotam parcerias com os stakeholders de sua cadeia de valor e praticam a governança corporativa b ecologicamente corretas porque reduzem insumos e o consumo de água e energia reciclam resíduos e maximizam o uso de energias renová veis restauram o meio ambiente desenham produtos verdes responsabilizamse pelos produtos da origem ao descarte transcendem a mera conformidade às leis concebendo e fiscalizando operações ecoeficientes desde a cadeia de suprimentos e praticam o consumo consciente em seus gastos e aquisições c socialmente justas porque cultivam boas relações com seus públicos de interesse respeitam os direitos trabalhistas e humanos asseguram a seus colaboradores condições seguras e saudáveis de trabalho materializam a diversidade social ao repelirem preconceitos e discriminações e promovem o desen volvimento social ao partilhar ganhos sociais Exigências novas sem dúvida porém não disfuncionais do ponto de vista capitalista já que sustentabilidade e lucratividade são conjugáveis conforme indicam inúmeras práticas empresariais de caráter altruísta imparcial Dito isso vejamos como a sus tentabilidade assegura vantagens para as empresas em vários planos Proteção da empresa à medida que permite identificar riscos iminentes e falhas operacionais reduz riscos de prejudicar clientes colaboradores e comunidades locais limita a frequência das intervenções de agências reguladoras e preserva a licença social para operar Gestão da empresa à medida que reduz custos aumenta a produtividade elimina desperdícios e garante acesso a fontes de capital a custos mais baixos Promoção do crescimento da empresa à medida que possibilita abrir novos mercados lançar novos produtos e serviços acelerar o ritmo da inovação aumentar a lealdade e a satisfação dos clientes conquistar novos clientes desenvolver parcerias com públicos de interesse valorizar a marca e a reputação10 10 Os exemplos são variados prédios inteligentes ou verdes eletrodomésticos eficientes em energia vasos sanitários de baixo fluxo eletricidade solar aquecimento e refrigeração ultra eficientes sistemas de isolamento vendas na base da pirâmide Ver SAVITZ Andrew W com WEBER Karl A Empresa Sustentável op cit pp 4043 a sustentabilidade empresarial 13 201 Em 2005 a General Eletric lançou um programa chamado Ecomagination voltado para o desenvolvimento de tecnologias limpas que permitam a seus clientes reduzir seus impactos ambientais principalmente as emissões de carbono São negócios como a energia eólica as turbinas a gás natural os motores híbridos para locomotivas ou motores mais eficientes para jatos bem como as tecnologias de dessalinização da água Isto é ao lidar com as mudanças climáticas interesse socioambiental que remetem ao bem comum a GE aumenta seu lucro interesse empresarial que remete ao bem restrito universalista Em 2011 a divisão responsável pelo programa já dispunha de 140 produtos verdes e vendia US21 bilhões por ano Desde o início o programa gerou US105 bilhões Outro caso notório é o da Interface fabricante de carpetes cujas vendas em 2011 atingiram US 11 bilhão A empresa reduziu os vários tipos de desperdício refugos desconfor midades perdas de inventário consumo de energia e água etc e economizou US433 milhões entre 1995 e 2010 Suas emissões de gases diminuíram 44 o uso da água foi reduzido em 80 e o da energia em 43 os resíduos industriais caíram 77 o índice do uso de material reciclado ou de fibra orgânica passou de 05 a 40 e seu carpete se tornou 100 reciclável11 Não há dúvida de que a questão da sustentabilidade veio para ficar notadamente em função dos graves problemas que a pegada ecológica provoca em 2010 gastávamos 15 planeta para atender às necessidades de consumo da humanidade e para que fossem diluídos os resíduos produzidos Em outros termos há uma sobrecarga na apropriação dos recursos naturais que vem se agravando desde a ruptura do ponto de equilíbrio em 1988 Se quiséssemos reproduzir hoje em todos os continentes os padrões de consumo dos Estados Unidos precisaríamos de cinco planetas Terra Não é à toa que o prêmio Nobel da Paz de 2007 foi outorgado a Rajendra Pachauri presidente do Painel Intergover namental sobre Mudanças Climáticas Comitê da ONU e a Al Gore exvicepresidente dos EUA que se tornou um apóstolo no combate ao aquecimento global seu documen tário Uma Verdade Inconveniente ganhou o Oscar As preocupações pertinentes não são recentes Já em 1987 a Comissão Bruntland da ONU definiu o desenvolvimento sustentável como satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras de satisfazer suas pró prias necessidades Aliás sob a égide da ONU foi feito um inventário do estado do uso da natureza pelos homens cuja síntese foi publicada em 200512 Tratase da Avaliação Ecossistêmica do Milênio que propõe uma mudança de rumo e cujo teor foi Todos no mundo dependem da natureza e dos serviços providos pelos ecossistemas para terem condições a uma vida decente saudável e segura Os seres humanos causaram alterações sem precedentes nos ecossistemas nas últimas décadas para atender a crescentes demandas por alimentos água fibras e energia Estas alterações ajudaram a melhorar a vida de bilhões de pessoas mas ao mesmo tempo enfraqueceram a capacidade da natureza de prover outros serviços fundamentais como a purificação do ar e da água proteção contra catástrofes naturais e remédios naturais 11 httpwwwinterfacesustainabilitycommetricshtml e httpwwwinterfaceinccomflashflashChtml 12 httpwwwcebdsorgbrcebdsdocnoticiavivendoalemdosnossosmeiospdf e httpwww millenniumassessmentorgdocumentsdocument446aspxpdf 202 Ética EmprEsarial 13 Dentre os problemas mais sérios identificados por esta avaliação estão as condições drásticas de várias espécies de peixes a alta vulnerabilidade de dois bilhões de pessoas que vivem em regiões secas o risco de perder serviços providos pelos ecossistemas como o acesso à água e a crescente ameaça aos ecossistemas por parte das mudanças climáticas e a poluição de seus nutrientes As atividades humanas levaram o planeta à beira de uma onda maciça de extinção de várias espécies ameaçando ainda mais nosso bemestar A perda dos serviços providos pelos ecossistemas constitui uma grande barreira aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de reduzir a pobreza a fome e as doenças13 As pressões sobre os ecossistemas aumentarão em uma escala global nas próximas décadas se a atitude e as ações humanas não mudarem Medidas de preservação de recursos naturais têm maior chance de sucesso se tomadas sob a responsabilidade das comunidades que compartilhariam os benefícios de suas decisões A tecnologia e o conhecimento de que dispomos hoje podem reduzir consideravelmente o impacto humano nos ecossistemas mas sua utilização em todo o seu potencial permanecerá reduzida enquanto os serviços oferecidos pelos ecossistemas continuarem a ser percebidos como grátis e ilimitados e não receberem seu devido valor Esforços coordenados de todos os setores governamentais empresariais e institucionais serão necessários para uma melhor proteção do capital natural A produtividade dos ecossistemas depende das escolhas corretas no tocante a políticas de investimentos comércio subsídios impostos e regulamentação Diante dessas asserções fica evidente que as atividades humanas estão exaurindo as funções naturais do planeta E mais chegouse ao ponto em que a capacidade de os ecos sistemas sustentarem as gerações futuras se tornou uma incógnita O tipo de civilização predatória que tem no automóvel particular seu símbolo maior está levando a humani dade a um beco sem saída para não dizer ao apocalipse A não ser que ocorra um colapso de proporções cósmicas uma espécie de Pearl Harbor ecológico que destrua regiões in teiras e mate dezenas de milhões de habitantes parece pouco provável que as quase duas centenas de nações que fazem parte da ONU se consertem Em qual sentido O de adotar intervenções que façam face aos graves desafios representados pelos seguintes fatores o aquecimento global as mudanças climáticas o excesso de lixo a escassez de água potável a poluição química da Terra dá água e do ar a erosão do solo a desertificação o des matamento das florestas a pesca predatória a perda da biodiversidade o derretimento das geleiras polares a elevação do nível dos oceanos o aumento da frequência e da intensidade das secas enchentes ondas de calor e incêndios etc Algumas empresas estão cientes do pesadelo em curso e procuram contribuir para minimizar alguns desses efeitos sem deixar de ganhar dinheiro é claro Mas isso in felizmente não é o bastante Restanos manter acesa a esperança de que uma mobilização maciça possa mudar o rumo em direção à sociedade sustentável Nesses termos colocase uma questão de caráter geral que tipo de economia ofe receria baixa emissão de carbono uso eficiente dos recursos naturais e promoção da 13 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para 2015 são 1 erradicar a extrema pobreza e a fome 2 atingir o ensino básico universal 3 promover a igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres 4 reduzir a mortalidade infantil 5 melhorar a saúde materna 6 combater o HIVAids a malária e outras doenças 7 garantir a sustentabilidade ambiental e 8 estabelecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento a sustentabilidade empresarial 13 203 inclusão social Uma economia que obedecesse a três regras básicas 1 a taxa de uso dos recursos naturais não deveria exceder a taxa em que eles se regeneram 2 a exploração dos recursos não renováveis não deveria superar a taxa em que possam ser substituídos por recursos renováveis 3 a taxa com que geramos resíduos não deveria exceder a capacidade do meio ambiente de assimilálos Para tanto obviamente seria necessária uma radical reformulação do modelo civilizatório configurando uma economia que não crescesse fisicamente mas melhorasse em eficiência e em qualidade ao longo do tempo Seria uma economia que opera como um helicóptero voa sem se mover para a frente Tratase de uma conjectura utópica infelizmente dadas as relações internacionais de força e os atuais padrões consumistas erigidos em cânones COMO FAZER ACONTECER Duas perspectivas aqui se excluem ou as empresas se posicionam olhando para o pró prio umbigo em um isolamento olímpico que só legitima as próprias conveniências ou erguem a cabeça e desvelam a paisagem maior com suas interdependências e suas forças em confronto Tal situação reproduz as tensões permanentes que existem entre os interesses privados e o bem comum a autossuficiência individual e a consciência social Da mesma forma que os agentes sociais não existem por si mesmos mas apenas e tão somente porque fazem parte da sociedade que os abriga e lhes faculta a própria exis tência as empresas são obviamente gregárias dependem da teia de conexões presentes no mercado Isso equivale a dizer que elas não podem se dar ao luxo de mandar pura e simplesmente seus stakeholders às favas De outra parte enquanto houver competição econômica agências governamentais reguladoras e sociedade civil atuante o altruísmo imparcial se impõe a elas como se fosse uma força da natureza De maneira que o dilema que as empresas enfrentam poderia ser traduzido por duas perguntas singelas 1 que tipo de contribuição nossa empresa dá ou pode dar à sociedade 2 em que medida é ela positiva ou negativa O risco da hipocrisia não pode ser descartado uma vez que algumas se encantam com a possibilidade de fazer do posicionamento responsável uma fachada ou uma tática de diversão Mas será que a opinião pública contemporânea não perdeu a candura Parece que sim pois tornouse lúcida e desencantada Em 2008 o Conar determinou que a Petrobras retirasse de circulação duas campanhas que reiteravam o compromisso da companhia com o meio ambiente A denúncia encaminhada por seis entidades não governamentais e pelas secretarias do Meio Ambiente da prefeitura de São Paulo e dos governos paulista e mineiro apontava uma contradição entre o discurso e a prática da empresa Os ambientalistas argumentaram que a Petrobras estava praticando o que se convencionou chamar de green washing ou maquiagem verde alardeando uma sustentabilidade postiça Concretamente acusaram a companhia de não se esforçar para cumprir uma determinação do Conselho Nacional do Meio Ambiente o Conama para reduzir os níveis de enxofre no óleo diesel brasileiro de 2000 para 50 partículas por milhão a portaria do órgão ambiental visou diminuir os riscos de problemas respiratórios para a população14 14 FERRAZ Ricardo Zona cinzenta por trás do verde revista Página 22 junho de 2008 pp 4651 204 Ética EmprEsarial 13 Um caso rico em ensinamentos é o da Zara A varejista espanhola Inditex dona da Zara realizou 206 auditorias em seus fornecedores no Brasil no primeiro semestre de 2012 segundo o executivo que dirige a divisão de responsabilidade social do Grupo A rede trabalha com 40 fornecedores e 208 oficinas de costura no país e está fazendo fiscalizações a cada seis meses Essas ações fazem parte de um Termo de Ajustamento de Conduta assinado com o Ministério Público do Trabalho que investigou e acusou um fornecedor de roupas da Zara no Brasil a empresa Aha de explorar mão de obra em condições análogas à escravidão em 2011 eram imigrantes bolivianos sem documentação legal A fornecedora foi descredenciada pela Inditex É importante assinalar que a varejista espanhola não foi a única a ser acusada pelo MP Marisa CA Pernambucanas Gregory e Collins também o foram Ocorre que o caso afetou a imagem da Zara no Brasil ficando a impressão de que a empresa não agia de forma responsável Assim como parte do termo assinado com o Ministério Público a Inditex está implementando um programa de responsabilidade social no país cujo orçamento é de R34 milhões em dois anos O plano envolve um conjunto de projetos que vai desde a criação de um Poupatempo para imigrantes local onde um estrangeiro sem recursos poderia acelerar a documentação necessária para viver no país até o fortalecimento de auditorias nos fornecedores e oficinas de costura que trabalham para a marca Assim a Inditex procura inserir os imigrantes no mercado de trabalho e pretende orientar os trabalhadores sobre seus direitos15 As reações da Inditex decorreram da forte pressão exercida pela opinião pública brasileira quando da revelação do uso sistemático de mão de obra escrava A empresa tentou inutilmente eximirse da responsabilidade que tinha pelos atos cometidos por seus fornecedores alegando que encomendas haviam sido repassadas a outras empresas sem seu consentimento A leitura da mídia todavia foi a de que a Zara respondia por toda a cadeia de suprimentos e que em última análise agia com parcialismo Isso tudo redundou na intervenção do Ministério Público em prol do bem público forçando a empresa a adotar práticas de caráter altruísta imparcial Mudando de registro é lícito dizer que a estratégia de enfocar o bem comum de forma voluntária só pode resultar de uma reflexão madura por parte das empresas porque as cobranças certamente vêm Quem estiver apenas simulando ou quem pretender fraudar corre o risco de sofrer danos irreparáveis porque as vantagens conquistadas no curto prazo têm tudo para converterse em dissabores Em último caso não basta dourar a pílula para melhorar a imagem da empresa e aumentar a rentabilidade do negócio Em uma economia competitiva nenhum empreendimento pode ser conduzido com a visão de um corredor de curta distância sprinter mas com a perspectiva de um esforço de longo fôlego típica do fundista de maratona A sustentabilidade empresarial só se viabiliza quando permeia todo o arcabouço das políticas e das práticas da empresa Empenho ininterrupto com certeza Para ingressar nesse círculo virtuoso a primeira providência consiste em detectar as orientações ou os valores realmente praticados pela empresa Com qual propósito Evitar conceber e decretar uma revolução moral que colida frontalmente com as crenças ou os modos de pensar já enraizados sem que exista um programa de longo alcance para mudar tais padrões 15 Cyntia Malta Imagem da marca Zara no Brasil é foco de preocupação da Inditex jornal Valor Econômico de 5 de julho de 2012 Marcela Ayres Como Zara e 5 grifes reagiram à acusação de trabalho escravo Exame com 23 de julho de 2012 a sustentabilidade empresarial 13 205 Isso nos leva ao segundo passo Verificadas as discrepâncias entre o que se pretende e o que se faz é sensato construir um novo referencial que incorpore o quanto puder os costumes existentes desde que tenham alguma compatibilidade A moral corporativa pode ser estabelecida à luz dos temas da ética empresarial que são os assuntos mais recorrentes nos códigos de conduta16 Para definir essa moral é útil levar em conta quais são as ideologias política e econômica que detêm a dominância interna ou seja iluminam a cultura organizacional17 De resto não há como convencionar uma moral sem se balizar pela moral da integridade ou pela moral da parceria vigentes no país Cabe posicionarse a respeito e a partir daí avançar Naturalmente o empenho para dar substância a esses dois movimentos iniciais implica tempo que varia segundo o caso Supõe também o desembolso de recursos e exige avaliação dos benefícios e dos riscos envolvidos A conversão de uma empresa em uma organização eticamente orientada não é tarefa de um gestor só ainda que seja ele o presidente nem de uma única área interna pela simples e boa razão que todas as decisões e ações da empresa envolvem inúmeros agentes que serão seus pacientes e seus embaixadores Em um terceiro passo identificamse as questões polêmicas que mais atormentam a empresa e diante das quais é preciso posicionarse com clareza e sobretudo em conso nância com as orientações que a moral corporativa estipulará18 Uma vez definidos esses posicionamentos um quarto passo tornase indispensável Ele consiste em estabelecer mecanismos de controle para conferir eficácia às posições assumidas As áreas mais vulneráveis e os cargos decisórios precisam ser redesenhados para minimizar ou afastar as ingerências pessoais principalmente quando houver possíveis conflitos de interesse com os padrões morais que a empresa decidiu adotar e praticar O processo aqui indicado exige apoio profissional e conhecimentos específicos pois o voluntarismo amador embora bemintencionado pode desacreditar com facilidade o esfor ço todo Em última análise abordar e implementar posturas eticamente orientadas significa uma intervenção organizacional no âmbito cultural Significa mudanças profundas E quem não sabe o quão delicadas são as transformações organizacionais principalmente quando afetam as relações de poder estabelecidas e quando rearranjam interesses consolidados Vejamos então algumas indagações que merecem resposta na transição para uma empresa eticamente orientada 1 Quem desfruta da legitimidade necessária para conduzir o processo de transformações 2 Quem participará do processo 3 Quais forças têm condições de se aliar à nova estratégia e quais têm interesse em oporse a ela 4 Qual teoria ética será adotada como principal balizadora do processo de tomada de decisão 5 As orientações de base ou os valores existentes na empresa bem como os que serão convencionados mantêm congruência entre si 6 Se houver inconsistência interna esses valores obedecem a qual hierarquia 16 Esses se encontram listados no próximo tópico 17 Ver o exercício Conheça seu perfil ideológico que se encontra no site da Editora Elsevier Anexo I 18 A listagem das práticas empresariais questionáveis que se encontra no capítulo 2 pode ajudar na investigação 206 Ética EmprEsarial 13 7 Qual o grau de conhecimento ou percepção desses valores por parte dos membros da organização 8 Qual é o grau de comprometimento dos colaboradores com eles 9 Os valores recobrem todos os aspectos relacionados aos stakeholders 10 As normas morais estabelecidas valem nos bons e nos maus períodos ou seja não são casuísticas 11 As normas que são aplicadas no país de origem da empresa estão valendo para as subsidiárias instaladas em países estrangeiros 12 O sucesso empresarial decorre de práticas sustentáveis 13 As rotinas e os procedimentos do dia a dia espelham um posicionamento eticamente orientado 14 Políticas normas e práticas são monitoradas reavaliadas e atualizadas periodicamente 15 Os comportamentos recomendados são reconhecidos e recompensados pelos gestores 16 Existem ações pedagógicas sistemáticas para clarificar e fortalecer a necessidade de implementar posicionamentos eticamente orientados 17 A efetividade desses posicionamentos é medida em termos de benefícios auferidos e de riscos assumidos 18 O que pensam disso tudo os acionistas O TEOR DOS CÓDIGOS MORAIS EMPRESARIAIS Como contribuição a essa reflexão e certos de que o levantamento não exaure a matéria vamos agora listar temas recorrentes nos códigos de conduta moral Relacionamento com clientes acionistas colaboradores fornecedores e prestadores de serviços distribuidores autoridades governamentais órgãos reguladores mídia concorrentes sindicatos comunidades locais terceiro setor associações empresariais Conflitos de interesse entre os vários públicos de interesse Regulamentação da troca de presentes gratificações favores cortesias brindes convites de fornecedores ou clientes Observância das leis vigentes Segurança e confidencialidade das informações não públicas em especial das informações privilegiadas Teor dos balanços das demonstrações financeiras e dos relatórios da diretoria endereçados aos acionistas e seu nível de transparência Propriedade intelectual dos bens simbólicos patentes ou marcas Espionagem econômica ou industrial versus pesquisas tecnológicas e uso do benchmarking e da inteligência competitiva Postura diante do trabalho infantil e do trabalho forçado Formação de lobbies ou tráfico de influência Formação de cartéis e participação em associações empresariais Contribuição para campanhas eleitorais Prestação de serviços profissionais por parte dos colaboradores a fornecedores prestadores de serviços clientes ou concorrentes Respeito aos direitos do consumidor a sustentabilidade empresarial 13 207 Relação com o meio ambiente uso de energia combustível água e papel consumo de recursos naturais poluição do ar disposição final de resíduos Uso do tempo de trabalho para assuntos pessoais Uso do nome da empresa para obter vantagens pessoais Discriminação das pessoas em função de gênero etnia raça religião classe social idade orientação sexual incapacidade física ou qualquer outro atributo e regulação de sua seleção e promoção questão da diversidade social Assédio moral e assédio sexual Segurança no trabalho com adequação dos locais de trabalho e dos equipamentos para prevenir acidentes de trabalho e doenças ocupacionais Uso de drogas ilícitas ingestão de bebidas alcoólicas e prática de jogos de azar Porte de armas Relações de apadrinhamento nepotismo favoritismo paternalismo compadrio amizade e contratação de parentes ou amigos como colaboradores ou como terceiros Troca de informações com concorrentes fornecedores e clientes Adoção de critérios objetivos e justos na contratação e no pagamento dos fornecedores ou prestadores de serviços para afastar qualquer favorecimento Existência de interesses financeiros ou vínculos de qualquer espécie com empresa que mantenha negócios com a empresa para não ensejar suspeita de favorecimento Posicionamento com relação à concorrência desleal Difusão interna de fofocas ou rumores maliciosos Privacidade dos colaboradores Direito de associação dos colaboradores a sindicatos igrejas associações partidos políticos ou organizações voluntárias Restrição do fumo a locais ao ar livre ou a áreas reservadas Proibição da comercialização interna de produtos ou serviços por colaboradores Uso dos bens e recursos da empresa para que não ocorram danos manejos inadequados desperdícios perdas furtos ou retiradas sem prévia autorização Utilização dos equipamentos e das instalações da empresa para uso pessoal dos colaboradores ou para assuntos políticos sindicais ou religiosos Proteção da confidencialidade dos registros pessoais que ficam restritos àqueles que possuem necessidade funcional de conhecêlos salvo exceções legais Instituições financeiras costumam agregar preocupações que lhes são particularmente relevantes porque administram recursos de terceiros e proveem serviços financeiros de modo que a relação fiduciária constitui a razão de ser do negócio De forma inextricável fazem da prudência sua pedra de toque pois a tentação ou o risco de operar de forma temerária podem pôr a perder a credibilidade alcançada Assim razões estratégicas recomendam que existam mecanismos de autorregulação como Prestar contas e se relacionar de forma transparente com os acionistas investidores analistas de mercado órgãos reguladores e entidades do mercado de capitais nacional e internacional ao fornecer informações claras exatas acessíveis equitativas e completas Constituir um Comitê de Auditoria vinculado ao conselho de Administração que para garantir decisões confiáveis exercite controles internos fiscalize a gestão e os procedimentos funcione para os acionistas como canal para o encaminhamento 208 Ética EmprEsarial 13 de questionamentos das ações da Administração proceda à avaliação do gerenciamento dos riscos de negócios e desenvolva uma preocupação estratégica para proteger o patrimônio e a reputação da empresa19 Informar os clientes de forma correta compreensível fundamentada e tempestiva sobre as qualidades do produto ou do serviço oferecido bem como sobre as condições e os riscos que afetam as operações para que eles disponham de informações fidedignas e em consequência possam estabelecer comparativos entre as várias opções disponíveis e possam tomar decisões com liberdade de escolha e fundada segurança Aplicar medidas preventivas contra fraudes e divulgar sua eficácia para reter e consolidar a confiança conquistada junto aos clientes Impedir a utilização da instituição para legitimar recursos de origem criminosa tal como a lavagem de dinheiro e informar os gestores competentes a respeito de qualquer proposta de operação suspeita ou de situação prevista na regulamentação competente Preservar a integridade dos documentos sob guarda porque a memória da empresa e as bases dos lançamentos contábeis se encontram nos registros e nos relatórios que fundamentam os comunicados ao mercado além de atender aos compromissos com os órgãos governamentais Elaborar os demonstrativos financeiros de acordo com os princípios fundamentais da contabilidade dos países em que opera além de manter um padrão que os torne comparáveis e auditáveis Conceder crédito às empresas valorizando critérios socioambientais para que os projetos financiados reflitam as melhores práticas de gestão ambiental em obediência aos Princípios do Equador cujo objetivo consiste em garantir a sustentabilidade o equilíbrio ambiental o impacto social e a prevenção de tudo o que possa causar embaraços no transcorrer dos empreendimentos20 Elaborar uma política de Chinese Wall que defina os escudos protetores as zonas de confinamento os mecanismos de monitoramento e as barreiras que impeçam ou restrinjam o fluxo das informações não públicas cuja difusão constitui fonte potencial de conflitos de interesses entre as áreas internas da instituição financeira e seus demais públicos de interesse Fazer recomendações aos clientes desde que adequadas à sua situação financeira e a seu perfil de investidores Selecionar os parceiros de negócios a partir do conhecimento da origem de seus recursos bem como da atividade que exercem para prevenir a ocorrência de atos ilícitos cujas graves repercussões poderiam afetar a carreira dos profissionais além de pôr em risco os ativos intangíveis da instituição Absterse de aconselhar difundir ou negociar com terceiros quer com base em boatos relativos a eventos referentes ao mercado financeiro ou de capitais quer 19 A criação de comitês de auditoria vinculados aos conselhos de administração e compostos apenas por participantes independentes é aliás uma exigência da Lei SarbanesOxley de 2002 que se aplica a todas as empresas que têm ações cotadas na Bolsa de Nova York Tratase do estatuto mais relevante dos últimos 50 anos na legislação comercial norteamericana porque altera radicalmente o ambiente empresarial e de regulação responde aos escândalos corporativos do início do século reforça a governança corporativa e visa restaurar a confiança dos investidores nas prestações de contas e nas demonstrações financeiras 20 Na avaliação do crédito levamse em conta os seguintes quesitos gestão de risco ambiental proteção à biodiversidade e adoção de mecanismos de prevenção e controle de poluição proteção à saúde à diversidade cultural e étnica e adoção de Sistemas de Segurança e Saúde Ocupacional avaliação de impactos socioeconômicos incluindo as comunidades e os povos indígenas proteção a habitats naturais com exigência de alguma forma de compensação para populações afetadas por um determinado projeto a sustentabilidade empresarial 13 209 com base em rumores envolvendo negócios nacionais ou internacionais no intuito de preservar a integridade das operações resguardar a imagem corporativa e não disseminar uma cultura de especulação Rejeitar operações que burlem norma legal ou regulamentar inclusive fiscal ainda que venham a valorizar a carteira administrada favoreçam os clientes o próprio colaborador terceiros de seu relacionamento ou até mesmo a instituição Evitar ficar inadimplente em negócios pessoais como por exemplo na emissão de cheques sem provisão de fundos o que poderia acarretar efeitos negativos para a instituição e para o colaborador e não pedir ou conceder empréstimos financeiros envolvendo colaboradores clientes ou parceiros comerciais Conhecer e alinharse com as diretrizes morais dos órgãos reguladores assim como das entidades a que a instituição esteja vinculada tendo em vista estabelecer as indispensáveis sintonias entre as operações realizadas e as disposições normativas subscritas entre outros o Banco Central a Bolsa de Valores de São Paulo a Comissão de Valores Mobiliários a Associação Nacional dos Bancos de Investimento a Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro e a Federação Brasileira de Bancos Exigir a obtenção da certificação dos profissionais que atuem no mercado financeiro e de capitais quando requerida no intuito de contribuir para assegurar sua adequada proficiência e probidade Realizar operações pessoais orientadas para investimentos de longo prazo e não para especulação no curto prazo Observar as seguintes interdições ter posição em venda ou lançamento a descoberto efetuar negócio em conjunto com outros colaboradores por conta e em nome de um deles realizar negócio em nome de colaborador por conta de cliente ou de um de seus empregados ou em conjunto com eles abrir ordens de características idênticas e para o mesmo pregão para cliente ou para empregado dele realizar negócio não oficial com moeda estrangeira nas dependências da instituição utilizar processo ou artifício destinado à manipulação seja direta ou indireta de cotação de ativo ou valor mobiliário induzindo terceiros à sua compra ou venda praticar ato que direta ou indiretamente provoque aumento ou diminuição considerável no fluxo e nas ordens de compra ou venda de todo e qualquer valor representado ou não por título passível de negociação no mercado financeiro e de capitais aceitar proposta de negócio formulada por intermediário que não seja da própria instituição financeira para adquirir ação em subscrição e em oferta pública underwriting inclusive por meio de cessão de direitos ofertada por companhia aberta Usar equipamentos respeitando as restrições a seguir o uso está sujeito a monitoramento independentemente de aviso prévio ao usuário os sistemas de telefonia móvel celular trunking ou paging utilizados por colaboradores especificamente identificados devem ser desligados em todas as dependências inclusive em restaurantes estacionamentos bibliotecas e pátios internos as ligações realizadas tanto em mesa de operações quanto em muitos outros postos de trabalho são gravadas e ouvidas para o resguardo dos melhores interesses dos clientes das contrapartes e da própria instituição os colaboradores das mesas de operações só podem utilizar os ramais do sistema de telefonia que lhes sejam destinados os colaboradores que tiverem acesso ao sistema de gravação deverão utilizar as informações contidas nas gravações exclusivamente para fins funcionais ou profissionais além de manter sigilo e confidencialidade a respeito de seu conteúdo 210 Ética EmprEsarial 13 SOBRE A ELABORAÇÃO DOS CÓDIGOS MORAIS Uma das questões candentes na elaboração de códigos de conduta moral costumeiramen te denominados códigos de ética é a confusão entre questões de ordem administrativa e questões de ordem moral De fato as políticas de gestão estabelecem normas adminis trativas e visam obter a conformidade ou a observância obrigatória por parte dos agentes Suas sanções disciplinares penalidades que chegam à exclusão procuram enquadrar os agentes Em contrapartida o código de conduta moral regula as condutas morais e visa obter a concordância ou a adesão voluntária Suas sanções simbólicas censuras que chegam à marginalização procuram dissuadir os agentes As normas administrativas decorrem de imposições legais ou de exigências do mercado e requerem condutas pa dronizadas porque constituem necessidades imperiosas e inadiáveis Em compensação as diretrizes morais procuram preservar o negócio e os profissionais do risco de reputação e dependem da pertinência de seus fundamentos e da validade de suas recomendações Não esqueçamos que os fatos morais dizem respeito a escolhas feitas pelos agentes e que afetam os demais agentes para o bem ou para o mal Fatos administrativos são por definição procedimentos burocráticos eticamente neutros São exemplos de questões administrativas e portanto de políticas e procedimentos as relações com os investidores a negociação de ações o gerenciamento de riscos as relações com distribuidores as relações com trabalhadores terceirizados as relações com os sindicatos as campanhas de marketing e comunicação o atendimento dos clientes a preservação da integridade dos ativos e a prevenção dos danos os programas de auditoria interna a propriedade de patentes os padrões que orientam a área de suprimentos os controles de acesso o uso dos veículos da empresa o recrutamento e a seleção etc Há é claro algumas áreas de confluência com as questões morais como nas políticas de governança corporativa nas auditorias e nos controles internos no gerenciamento de riscos ou nos temas em que existam ganchos morais Todavia é sensato preocuparse em separar as águas para não incorrer no erro de moralizar toda e qualquer atividade confundindo atos de gestão com fatos morais São tipicamente questões morais as fraudes os subornos e os conluios as relações com os públicos de interesse a observância das leis e das regulamentações os con flitos de interesse entre o profissional a empresa e as partes interessadas a diversidade social a convivência entre superiores pares e subordinados o assédio moral e o sexual a confidencialidade das informações o uso dos equipamentos da empresa as ameaças à saúde e à segurança no trabalho o posicionamento em relação aos negócios mantidos com entidades públicas a problemática da espionagem econômica e da concorrência desleal etc De modo que à luz da moral da integridade brasileira podem ser considerados como condutas moralmente impróprias assediar moral ou sexualmente enganar colaborado res omitir conflitos de interesse vazar ou fazer mau uso de informações confidenciais adulterar documentos falsear demonstrações financeiras aceitar suborno furtar bens ou recursos cometer espionagem econômica utilizar abusivamente os equipamentos da empresa discriminar públicos de interesses aceitar presentes ou favores desrespeitar a propriedade intelectual entre outras Alguns exemplos singelos por fim irão contrastar essas duas ordens de questões prestar contas do uso do veículo da empresa é fato administrativo eticamente neutro enquanto superfaturar despesas de combustível e de manutenção é fato moral beneficia o autor mas prejudica a empresa usar o elevador apropriado para sair da empresa após o expediente é fato administrativo no entanto circular em áreas confinadas pela a sustentabilidade empresarial 13 211 política de Chinese Wall é fato moral expõe a empresa a possíveis conflitos de interesse que minariam a confiança dos clientes proibir uma divisão de vender por atacado para não competir com a divisão atacadista do grupo é fato administrativo questão de bom senso mas realizar vendas abaixo do preço de custo para liquidar os concorrentes dumping é fato moral concorrência desleal Assim sendo o que vem a ser um código de conduta moral É a sistematização da moralorganizacional que opera como bússola ou guia para a ação assim como os antigos códigos de honra Define os padrões de conduta esperados no exercício profis sional explicita o que precisa ser praticado para assegurar a perenidade organizacional e projeta num horizonte próximo um ano por exemplo o que é possível fazer para blindar a organização De forma sintética o que regula um código moral As relações mantidas com os pú blicos de interesse definindo quais condutas são recomendadas e quais são inaceitáveis E uma vez que código algum consegue abranger todas as questões é preciso ter ciência de que ele se conjuga com as orientações específicas emitidas por órgãos especiais caso dos códigos profissionais dos advogados auditores médicos contadores engenheiros etc Como se conformam então os códigos morais Segundo dois formatos como manual de preceitos ou como guia para a ação O primeiro formato se enquadra na teoria ética da convicção e a exemplo da moral da integridade visa a conformidade a deveres universalistas entendidos como mandamentos sagrados Ou seja as normas são for muladas de modo que os agentes cumpram prescrições imperativas ou se dobrem diante das obrigações que lhes foram inculcadas Ocorre que a teoria ética da convicção cuja lógica consiste em cumprir voluntariamente diretrizes morais acaba sendo confundida com uma abordagem políticojurídica cujas normas são impositivas à semelhança das obrigações legais que se estribam em sanções disciplinares Daí deriva uma concepção legalista dos códigos de conduta moral forma atualmente dominante com suas normas impostas de fora para dentro o que desvirtua o caráter ético da adesão voluntária21 Uma coisa é o dever imposto outra é o dever consentido O segundo formato dos códigos morais se enquadra na teoria ética da responsabilida de a exemplo da moral da parceria visa realizar fins universalistas que são concebidos como obras em aberto Ou seja as normas padronizam orientações que derivam de análises situacionais e correspondem a recomendações devidamente justificadas e explicadas é preciso persuadir os agentes quanto a sua pertinência e fundamentação Poucos códigos morais atuais são elaborados segundo esta concepção dando os motivos que sustentam cada tomada de posição O cerne da diferença a par da análise de riscos é que se faz apelo ao discernimento crítico dos agentes que irão pautar sua conduta pelas diretrizes estabelecidas Vejamos agora por que muitos códigos de conduta moral não pegam Uma das razões é o conteúdo que afugenta os agentes pois a confundese o código com políticas disciplinares donde o caráter legalista e impositivo e a consequente perda do espírito pedagógico e voluntário das normas morais b concebese o código à moda ontológica com a formulação de deveres maniqueístas que embora consentidos padecem de um recorte doutrinário e dogmático c mesclamse normas administrativas políticas de ges tão com normas morais pautas orientadoras resultando ambígua a natureza do código 21 Normas morais poderiam assumir caráter imperativo desde que observadas duas condições a serem também normas legais que consagrem os padrões morais b constituírem condições indispensáveis para a própria continuidade das atividades como por exemplo não aconselhar investidor com base em boatos que correm no mercado financeiro 212 Ética EmprEsarial 13 A segunda razão é a forma O código a assume as feições de um sermão que exalta a virtude e deixa de analisar os interesses em jogo ou de examinar as condicionantes históricas b reproduz uma retórica grandiloquente fazendo com que soem postiços os discursos em prol da integridade moral sobretudo quando ações lucrativas mas ines crupulosas são toleradas c expressa uma dissonância ao estabelecer um descompasso entre o que se diz e o que se faz o que gera nos colaboradores uma postura cética se não cínica pelo menos cética que tende a desmoralizar a obra toda A terceira razão é o formato a minimalista ou muito sucinto e genérico quando lista diretrizes cuja prática supõe grande maturidade pessoal e profissional ao estilo dos Dez Mandamentos b maximal ou muito extenso e pormenorizado quando lista normas e procedimentos num calhamaço de difícil leitura e assimilação ao estilo da Constituição brasileira Nessa altura é preciso ressaltar três fatores 1 código moral algum substitui os exem plos vindos de cima os subordinados costumam mirarse nas condutas dos superiores 2 diretrizes morais não se sustentam sem efetivos mecanismos de controle não basta ter um código de conduta moral é preciso auditar e reportar o desempenho 3 é indis pensável explicar aos colaboradores a razão de ser de cada norma interpelando seu discernimento e convencendoos dos riscos incorridos e das vantagens a serem auferidas A TÍTULO DE CONCLUSÃO Em resumo desenvolver uma competente inteligência ética é o caminho mais curto para monitorar as vulnerabilidades do negócio Relembremos para tanto o famoso caso de Chernobyl na Ucrânia em 1986 Foi o pior acidente ocorrido com uma usina nuclear a nuvem radioativa se espraiou em toda a Europa em um raio de 150 mil km2 ao redor do ponto central Chegou a atingir a Inglaterra Foram oficialmente apuradas 31 mortes mas desconfiase de muito mais pelo menos outras 22 mil pessoas morreram em consequência do acidente e mais de 100 mil soviéticos foram evacuados da área Somente na Ucrânia 3 milhões necessitam da ajuda do Estado por causa do acidente e em algumas regiões da BieloRússia os casos de câncer de tireoide multiplicaramse por 50 Seis especialistas foram condenados a trabalhos forçados Ora como aconteceu o acidente Dois engenheiros encarregados da sala de controle decidiram realizar uma experiência com o reator nuclear e ignoraram seis computadores que soaram o alarme nos sistemas Em vez de parar simplesmente desligaram os avisos Dada sua sofisticada formação técnica não podiam desconhecer as terríveis consequências do que estavam fazendo Prosseguiram assim mesmo Em vez de o reator ser apagado com a inclusão de barras inertes de grafite entre os elementos de urânio 235 a manobra dos técnicos provocou o reaquecimento do núcleo ativo do reator Durante 10 dias o que sobrou da usina depois da explosão continuou a emitir altas doses de radioatividade que só foram contidas em novembro com a construção de um sarcófago de cimento armado22 Aos técnicos de Chernobyl não faltou conhecimento faltou responsabilidade moral O mesmo pode ser dito dos gestores da Union Carbide no acidente que ocorreu em 1984 na usina de pesticidas em Bhopal Índia 22 Microsoft Encarta95 e O Estado de S Paulo 1 de outubro de 1999 a sustentabilidade empresarial 13 213 Não só prejudicaram o meio ambiente com o vazamento de isocianeto de metila mas causaram a morte de 3828 pessoas e deixaram cerca de 200 mil com graves lesões nos olhos pulmões fígado e rins O valor de mercado da companhia despencou de US34 bilhões para US23 bilhões as indenizações pagas às famílias das vítimas somaram US470 milhões A empresa foi também condenada a financiar o seguro médico a 100 mil pessoas e operadores da fábrica foram condenados à prisão por negligência e incompetência a imagem internacional da empresa nunca mais se recuperou O prejuízo para os acionistas foi tremendo Antes do acidente a venda da planta estava sendo negociada e a ideia de mantêla funcionando foi uma atitude de altíssimo risco dada a insegurança da usina e também pelo fato de que não se faziam mais investimentos no negócio Foi só semear ventos que a União Carbide colheu tempestades23 Em 2001 a empresa foi comprada pela Dow Quimical Nessa mesma linha o que poderia ocorrer sem prévia reflexão ética nos campos da enge nharia genética ou do espaço cibernético Consequências nefastas Imaginemos o uso em guerras ou em ataques terroristas de um arsenal biológico composto por bactérias e vírus como o antraz maligno e o ebola ambos responsáveis por hemorragias ou a toxina botulínica e o gás sarin ambos mortíferos Quais seriam os resultados Mas perguntarão alguns ensimesmados de plantão o que nós temos a ver com is so Resposta tudo Nas atuais condições em que ganham relevância a economia do conhecimento e o capitalismo social e diante da crescente mobilização da sociedade civil transformar os stakeholders em parceiros significa solucionar questões de interesse geral legitimar os empreendimentos estabilizar o fluxo das receitas criar um diferencial competitivo e assegurar a perenidade dos negócios A partir desse promontório um voo livre é possível sob um sol que brilha para todos Ocorre que essa viagem temerária não é fruto do acaso nem resulta de uma lógica im placável representa uma virtualidade histórica cuja atualização depende do ativismo cidadão Empresas lúcidas já se deram conta de que associar inteligência ética lucro de longa duração e habitabilidade do planeta promove um ciclo virtuoso 23 QUINN John F The Work Kind of International Business a harvest strategy gone away Philosophy Department University of Dayton e Exame Empresa Ambiente encarte especial 8 de março de 2000