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Relações Internacionais ·
História
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TRABALHO MONOGRÁFICO O trabalho deve respeitar as normas para apresentação de trabalhos monográficos estabelecidas pela ABNT ver na sequência obrigatoriamente com título e com referência bibliográfica completa ao final FORMATO DE APRESENTAÇÃO O trabalho monográfico deverá ter extensão máxima de 10 páginas obedecendo o padrão ABNT dentre as quais não serão contadas nem os elementos prétextuais capa e sumário e nem os elementos póstextuais referência bibliográfica e anexos ARTIGO ACADÊMICO Definição e objetivos O artigo acadêmico consiste em uma análise de um tema específico dentro do recorte temático da disciplina o qual pode ser escolhido livremente peloa discente O tema selecionado pode constituir uma temática geral dentro do campo de estudos da disciplina ou um estudo de caso específico Qualquer que seja o caso o artigo deverá apresentar uma revisão bibliográfica e historiográfica sobre o tema destacando alguns dosas principais autoresas que exploraram o assunto e comparando suas perspectivas de análise indicando convergências eou divergências entre eles É esperado que oa discente se posicione criticamente no debate bibliográfico Sempre que possível a revisão bibliográfica deverá incluir um diálogo com os autores da bibliografia básica eou complementar da disciplina que abordaram temáticas semelhantes O artigo não precisa constituir uma contribuição original ao campo de estudos podendo ser apenas uma revisão de interpretações já consolidadas acerca da temática selecionada É permitido mas não necessário o uso de fontes primárias O artigo pode inclusive consistir numa análise de uma fonte documental específica sem prejuízo contudo da discussão bibliográfica CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO 1 Pertinência da revisão bibliográfica com adequação e rigor na compreensão das perspectivas dosas autoresas abordadosas 2 Diálogo com conceitos e com problemáticas gerais da bibliografia da disciplina 3 Autonomia intelectual e capacidade de posicionamento crítico e síntese pessoal 4 Redação clara e boa organização da argumentação MODELO PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGO ACADÊMICO O modelo a seguir é uma sugestão para facilitar a organização do artigo e do texto Isso significa que os conteúdos a seguir devem estar de alguma forma contemplados no artigo mas não precisam necessariamente ser apresentados separados em seções autônomas como os títulos indicados abaixo A subdivisão ou não do texto em seções é uma escolha estilística do autor Lembrese de que por sua própria natureza o artigo acadêmico demanda uma forma de argumentação particular para cada tema ou abordagem selecionada pelo discente de acordo com o percurso lógico da argumentação e a escolha da organização textual mais adequada ao tema e ao objeto será um dos critérios de avaliação Título preferencialmente com subtítulo explicativo no caso de título em que não seja possível identificar facilmente o tema e o recorte cronológico do artigo Resumo apresentação breve e sintética do tema do artigo e exposição do problema central que o artigo se propõe a desenvolver com o intuito de antecipar conteúdos ao leitor Pode ser apresentado à parte ou integrado ao texto na condição de um parágrafo introdutório mas deve ser apresentado no início do artigo Deve preferencialmente ter extensão máxima de 200 palavras Desenvolvimento e argumentação é o corpo principal do texto que pode opcionalmente ser subdividido em seções à escolha doa autora Deve incluir uma apresentação empírica do tema escolhido elucidando alguns dados objetivos a respeito do fenômeno histórico apresentado Também deve trazer discussão historiográfica de alguns dos principais conceitos e pontos de vista empregados pelos autores que se dedicaram ao tema Pode incluir análise de fontes primárias quando for o caso A articulação entre o nível empírico descritivo e narrativo e o nível conceitual analítico e interpretativo da exposição é um dos pilares do trabalho historiográfico e deverá ser observada no artigo acadêmico Considerações finais posicionamento crítico doa autora diante da bibliografia discutindo sua aplicabilidade e pertinência a partir da temática e da abordagem selecionadas para o artigo Pode ser apresentada à parte ao final ou estar integrada ao desenvolvimento Referência bibliográfica listagem completa das obras citadas e analisadas no artigo de acordo com as normas da ABNT Deve ser apresentada à parte ao final NORMAS DA ABNT PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS E REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA A ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas estipula normas para apresentação e padronização de trabalhos acadêmicos e para a elaboração de referência bibliográfica e citações as quais devem ser respeitadas nas avaliações da disciplina Consulte sempre os documentos oficiais atualizados da ABNT Segue aqui um resumo com a principais regras da forma como elas são costumeiramente empregadas na área disciplinar de História no Brasil Fonte Times New Roman ou Arial tamanho 12 com espaçamento entre linhas de 15 ou 20 duplo Margens 30 cm para as margens superior e esquerda e 20 cm para as margens inferior e direita Capa opcional segue o modelo de capa ou de segunda capa da ABNT que deve conter nome do autor no alto da página título do trabalho em destaque e no centro da página local e data ao final da página Opcionalmente no modelo de segunda capa pode conter uma indicação descritiva sumária da natureza do trabalho abaixo do título diagramado no lado direito da página Ver capa deste documento para referência Paginação no alto da página do lado direito A capa não deverá ser numerada e nem o sumário quando disponível A paginação deve ser numericamente iniciada após a capa mas o sumário não deve apresentar o número de paginação consulte este documento para referência Referência bibliográfica espaçamento simples entre linhas pulandose uma linha entre cada referência individual A referência bibliográfica deverá conter apenas os títulos citados ao longo do trabalho A referência bibliográfica ao final do trabalho deve seguir o seguinte modelo Livros SOBRENOME Nome Título do livro subtítulo edição quando houver Local editora data Artigos em periódicos acadêmicos SOBRENOME Nome Título do artigo subtítulo Nome do periódico opcional local editora volume número paginação data Capítulos de livros SOBRENOME Nome Título do capítulo In SOBRENOME Nome Título do livro subtítulo edição quando houver Local editora data paginação obs se o autor do capítulo e do livro forem idênticos a segunda ocorrência do nome pode ser suprimida Obs quando o livro for uma coletânea com vários autores apresentase o nome dos organizadores ou editores seguidos de Org ou Ed Citações textuais quando há citação direta de excerto de um texto de outroa autora ela deve ser indicada Citações podem ser curtas até 3 linhas ou longas mais de 3 linhas Citações curtas são apresentadas no corpo do texto entre parênteses Citações longas são apresentadas em bloco à parte com margem recuada em 4 cm à esquerda espaçamento simples entre linhas e com fonte menor do que no corpo do texto tamanho 10 ou 11 Devese pular uma linha antes e depois de cada citação longa separandoa do corpo principal do texto Em qualquer um dos casos citação curta ou longa as citações devem ser seguidas de referência bibliográfica que especifique a página de onde ela foi extraída Referências bibliográficas são exigidas ao longo do texto quando se faz referência às ideias de outro autor indiretamente por paráfrase ou por citação direta Elas podem ser feitas por dois sistemas distintos o sistema de notas de rodapé ou o sistema autordata Nota de rodapé a nota de rodapé deve conter a referência bibliográfica completa da obra seguida quando for o caso da página ou intervalo de páginas correspondente à citação ou às ideias apresentadas No caso de repetição da mesma obra em duas notas de rodapé seguidas na mesma página podese substituir a referência bibliográfica completa pela expressão Ibid seguida da indicação de página Quando houver referência à mesma obra em citações não consecutivas mas ainda localizadas na mesma página a expressão op cit pode ser usada após o nome do autor substituindo o restante da referência O sistema de notas de rodapé permite incluir comentários adicionais Autordata na sequência da referência ao autor no próprio corpo do texto devese incluir entre parênteses o último sobrenome do autor a data de publicação da obra e a página ou intervalo de páginas correspondente à citação de acordo com o modelo Autor data p XX O sobrenome do autor pode ser suprimido se tiver sido citado imediatamente antes no corpo do texto Note que o sobrenome do autor e a data apresentados devem corresponder à referência bibliográfica completa da mesma obra apresentada ao final do trabalho É necessário escolher entre o sistema de nota de rodapé ou o sistema autordata não sendo permitido o uso de ambos alternativamente no mesmo trabalho Se for escolhido o sistema autor data eventuais notas de rodapé devem ser usadas apenas para comentários e esclarecimentos adicionais que não pertençam ao corpo do texto MARIZA CORRÊA ÁS ILUSÕES DA LIBERDADE A ESCOLA NINA RODRIGUES E A ANTROPOLOGIA NO BRASIL 2ª edição revista MEMÓRIA Fundação Biblioteca Nacional ISBN 8586065170 301291 C824 ILU FAPESP UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO CDAPH COLEÇÃO ESTUDOS CDAPH namentos branças do passado fância e a adolescência na vida de escritores ileiros ria Helena Palma de Oliveira ti de memórias bastidores de histórias egado pioneiro de Armando Álvaro Alberto ra Chrystina Venâncio Mignot minimização do Magistério colígios do passado que marcam o presente tária Christina Siqueira de Souza Campos vera Lúcia Gaspar da Silva Organizadoras semínia Intelectual da Educação ambién 12ª edição Marcos Cesar de Freitas Organizador Mariza Corrêa AS ILUSÕES DA LIBERDADE A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil 2a edição revista ESTUDOS CDAPH SÉRIE MEMÓRIA CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E APOIO À PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO Reitor Altair Anacleto Lorenzetti OFM PróReitoria de Pesquisa PósGraduação e Extensão Programa de Mestrado em Educação Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Colegiado do CDAPH Maria Gabriela S M C Marinho Coordenadora do CDAPH Marcos Cezar de Freitas Maria de Fátima Guimarães Bueno Moysés Kuhlmann Jr Conselho Editorial Ana Waleska Mendonça Carlos Roberto Junior Cury Clarice Nunes Eliane Marta Teixeira Lopes Helena M B Bonnemy Lúcia Lippi Oliveira Luciano Mendes de Faria Filho Luís Felipe Serpa Marta Maria Chagas de Carvalho Rogerio Fernandes Zula Brandão CATALOGAÇÃO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO C824i Corrêa Mariza As ilusões da liberdade a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil Maria Corrêa 2a edrev Bragança Paulista Editora da Universidade São Francisco 2001 404p Coleção Estudos CDAPH Série Memória ISBN 8586965170 Inclui bibliografia 1 Rodrigues Nina 18621906 2 Medicina legal Brasil História 3 Antropologia Brasil História I Título CDD6141 1a Edição 1998 Correspondências para Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação CDAPH Av São Francisco de Assis 218 CEP 12916900 Bragança Paulista SP Email cdaphsaofranciscoedubr httpwwwsaofranciscoedubrcdaph Obra publicada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP Ainda quando ficasse assentado que a liberdade humana não passa de uma ilusão esta mesma ilusão seria bastante para dar à ciência social um certo plus que a diferencia e distingue das ciências naturais Tobias Barreto 1882 PREFÁCIO Este livro foi apresentado originalmente como tese de doutorado ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo em dezembro de 1982 perante uma banca composta pela orientadora Ruth Cardoso e pelos professores Luiz de Castro Faria do Museu Nacional Bolívar Lamounier do IDESP João Batista Borges Pereira e José Augusto Guilhon de Albuquerque ambos da USP Agradeço a eles tantos anos depois pela cuidadosa leitura e discussão do trabalho bem como a Plínio Dentzien Peter Fry e Antonio Augusto Arantes que me deram o bom apoio de sua presença naquela tarde durante a argüição da banca e a Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida que gentilmente ofereceram um brinde em sua casa a uma cansada nova doutora As dívidas de gratidão que acumulei durante o trabalho de pesquisa estão devidamente mencionadas ao longo do texto e no seu final Gostaria também de agradecer o estímulo que recebi de Michel Debrun para publicar o trabalho e o apoio do professor Marcos Cezar de Freitas em tornar esta publicação possível Dedico este livro a Rodrigo Corrêa Dentzien que foi quem sofreu mais de perto a dedicação de sua mãe à pósgradtração dos seus cinco aos quinze anos SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 I CONTEXTO 15 O desterro em nossa terra ou going native 23 Os argonautas nativos 35 2 NEXO 63 Uma política científica 75 Algo mais que a arte de curar 92 As ilusões da liberdade 112 Economia étnica 135 3 CONEXÕES 165 O sorriso da sociedade 171 A garantia da ordem social 179 Etnografia política 186 Entra Irene 220 A idade de ouro da higiene mental 230 APÊNDICES 261 CRONOLOGIA DE NINA RODRIGUES 265 BIBLIOGRAFIA DE NINA RODRIGUES 279 NOTAS 287 BIBLIOGRAFIA GERAL 385 AGRADECIMENTOS 403 As Ilusões da Liberdade INTRODUÇÃO Esta pesquisa é uma tentativa de analisar a produção teórica e a atuação concreta de um grupo de médicos misto de cientistas sociais que se designavam a si mesmos como membros da Escola Nina Rodrigues escola que apesar de bastante mencionada pelos autores que tratam da história intelectual brasileira ainda não foi analisada enquanto tal F de Azevedo 1955 e 1964 W Martins 1978 S Schwartzman 1979 A escola é também uma espécie de mito de origem da Medicina Legal brasileira A maioria dos médicos formados no Brasil no início do século passado ao escolherem essa especialidade se filiavam também à escola ou se diziam por ela influenciados de alguma forma Isto não é de espantar uma vez que até 1910 apenas duas faculdades de Medicina funcionavam no país no Rio de Janeiro e na Bahia e dado o particular zelo de Nina Rodrigues em tornar a Medicina Legal um ramo autônomo da medicina brasileira do final do século 19 Mas não apenas os médicos reivindicaram Nina Rodrigues como seu pai espiritual muitos cientistas sociais médicos de formação mas importantes na constituição do campo da antropologia no Brasil também afirmaram a filiação direta de suas pesquisas particularmente sobre a questão racial aos estudos de Nina Rodrigues sobre os africanos e seus descendentes Duas vertentes bem definidas do saber a perícia médicolegal e a pesquisa antropológica das relações raciais encontram assim um nexo comum na obra do médico maranhense que durante dezessete anos ensinou na Faculdade de Medicina da Bahia A história unilinear que os autodenominados discípulos ou os admiradores contam da escola diz mais ou menos o seguinte Raimundo Nina Rodrigues 18621906 brilhante professor e pesquisador dotado de uma personalidade carismática cujo valor intelectual foi reconhecido pelas personalidades médicas internacionais mais importantes de sua época reuniu em torno de si na Faculdade da Bahia um grupo de não menos brilhantes discípulos que depois de sua morte prematura espalharamse por vários pontos do país dando continuidade à sua obra e pondo em prática seus ideais científicos A Peixoto 1932c A Ramos 1937a Curiosamente nenhum dos discípulos analisou no detalhe as contribuições específicas de Nina Rodrigues ao panorama intelectual brasileiro todos eles ao apontálo como fundador precursor ou profeta descaracterizando também o contexto teórico no qual ele trabalhava acabam por relegálo a uma posição secundária e meramente regional nesse panorama sua grande contribuição à ciência tendo sido aparentemente a formação desses discípulos Discípulos que se o chamam como guia espiritual de suas iniciativas políticas mais gerais vão demolindo sua obra no particular ponto por ponto negando a validade de suas interpretações ao longo de sua própria produção intelectual A retórica utilizada pelos discípulos para validar o resgate intelectual de Nina Rodrigues efetuado na década de 30 apoiavase na ênfase à análise da realidade nacional que eles redescobrem em suas pesquisas A questão principal que Nina Rodrigues e seus seguidores se colocavam dizia respeito à nossa definição enquanto povo e a deste país como nação Da criação de critérios de acesso aos direitos da cidadania à construção de imagens ideais do país seus trabalhos procuravam respostas para esta questão certamente impregnadas das teorias científicas e dos interesses políticos deles e de sua época o que não diminui o seu interesse já que esta procura parece ainda ocupar boa parte dos esforços dos intelectuais e políticos brasileiros contemporâneos Aquela justificativa explícita encontrava seu par implícito no caráter exemplar de uma visão da ciência como anjo tutelar da sociedade contida tanto nas análises de Nina Rodrigues como nas de seus discípulos O resgate de sua contribuição científica se deu na forma de reedição ou de primeira edição dos livros de Nina Rodrigues em nível nacional tarefa realizada especialmente por Afrânio Peixoto o discípulo dileto e por Arthur Ramos o mais humilde de seus discípulos e na reclamação constante da prioridade de seus estudos particularmente a respeito da chamada questão racial legitimando assim sua própria jurisdição sobre determinados temas A análise da carreira institucional de Nina Rodrigues e de seus discípulos poderia levar a definilos simplesmente como funcionários do Estado atuando fosse na Universidade ou em outros círculos de difusão do saber associações científicas ou profissionais na política educacional ou editorial fosse mais diretamente nos aparelhos burocráticos públicos conselhos de saúde perícia policial secretarias de Estado etc Esses médicoscientistas sociais não se limitaram no entanto à aplicação da lei enquanto funcionários senão que em muitos casos a começar por Nina Rodrigues foram responsáveis pela criação ou alteração dela sua atuação no domínio jurídico indo desde questões específicas como determinações de paternidade até as de alcance social mais amplo como a difusão da obrigatoriedade da identificação civil Eles não se limitaram tampouco a serem membros de instituições já existentes foram planejadores e criadores de novas e em alguns casos seus primeiros administradores seus nomes tendo permanecido nelas para nos recordar isto Instituto Nina Rodrigues na Bahia Instituto Oscar Freire em São Paulo Instituto Afrânio Peixoto no Rio por exemplo Sua atuação cultural incluiu desde conclavos para eleições na Academia Brasileira de Letras até a ocupação de cargos na UNESCO Suas iniciativas nem sempre deram certo muitas delas não passaram de projetos no papel outras tiveram um alcance restrito ao âmbito de aplicação de sua especialidade ou de sua área de atuação política imediata mas algumas delas foram apoiadas e apropriadas pelo estado em nível regional e nacional Esta pesquisa que tentará circunscreverse à análise da atuação de alguns dos membros desta Escola a começar por Nina Rodrigues se encontra assim diante de algumas questões de alcance maior que não se pode evitar para situálos no contexto social brasileiro Questões como a da relação dos intelectuais com o Estado e a sociedade a da história das ciências sociais no Brasil e de sua institucionalização a questão das relações entre região e Nação e a da própria definição de cidadania Como se constituiu no Brasil uma elite intelectual quais os seus parâmetros teóricos e qual o âmbito de sua atuação Qual a sua composição e como ela se distingue de outras elites cujo critério definidor de atuação não é a pertinência acadêmica nem o domínio de um saber especializado Em que medida formas específicas de uma atividade definida como científica a medicina o direito a engenharia podem ser utilizadas como instrumentos políticos de controle social Qual a relação dessas atividades entre si e qual a sua ligação com o processo de instalação de relações autoritárias entre as categorias sociais tradicionalmente dominantes e as submetidas em nossa sociedade Em suma qual a relação histórica entre saber e poder na sociedade brasileira e onde a Escola Nina Rodrigues entra nesta constelação Se as questões levantadas por esta pesquisa são mais amplas do que as respostas que ela pode oferecer a análise da produção teórica e da atuação deste grupo autodefinido como tal torna claro que ao isolar estas questões umas das outras o que podemos ganhar em nitidez formal perdemos no entendimento de seu conteúdo concreto Ao observar a história da constituição dessa Escola percorrendo as linhas de relações entre seus componentes indicadas por eles mesmos é impossível deixar de perceber o cruzamento constante de várias redes sociais no seu interior redes definidas umas pela pertinência de classe de seus membros outras por sua filiação política ou ideológica outras ainda por lealdades regionais e assim por diante Longe de formarem um grupo homogêneo de intelectuais lutando pela implantação do progresso científico no país como seus membros gostavam de se autoretratar eles estão vinculados por laços políticos de parentesco regionais profissionais ou outros a interesses muitas vezes antagônicos entre si os mais diferentes possíveis Isso se deve em parte ao fato de as fronteiras entre as várias áreas de atividade intelectual não estarem ainda tão estritamente delimitadas que não pudessem ser cruzadas com frequência por esta espécie típica até a década de 30 o intelectual polivalente Devese também à rarefação intelectual da elite em geral o que lhes propiciava possibilidades de atuação não circunscritas aos limites de sua formação profissional Se algo fica claro da leitura das trajetórias intelectuais dos membros desse grupo é esta circulação deles e de seus pares circulação espacial institucional e política São no entanto os mesmos atores que parecem não conhecer limites à sua ação social os próprios agentes de um trabalho de circunscrição de suas esferas de atuação profissional que se expressam numa crítica aguda à polivalência e ao conhecimento teórico e no elogio da especialização e da aplicação prática do conhecimento A possibilidade de constituição do campo das ciências sociais mais particularmente da antropologia emergindo desse emaranhado de relações é o objeto da discussão introdutória do primeiro capítulo deste trabalho O Contexto se refere assim a uma discussão metodológica das condições dessa possibilidade enfrentada tanto pelos intelectuais do final do século passado quanto pelos nossos contemporâneos numa tentativa de situar as questões levantadas por esta pesquisa e a própria pesquisa de Nina Rodrigues no âmbito da atividade intelectual Como a produção 15 intelectual de Nina Rodrigues tem sido objeto ou do elogio ambíguo de seus discípulos ou do ataque político comumente tão desinformado quanto aquele e como o trabalho de seus discípulos é quase sempre mais evocativo do que analítico no segundo capítulo tento descrever a sua atuação e situálo também no contexto teórico de seu tempo Neste sentido não é apenas a apresentação do nó teórico e empírico que amarrava a produção intelectual de Nina Rodrigues ponto de partida referido pelos seus discípulos e no entanto nunca analisado mas também uma leitura de suas contribuições à constituição do campo da antropologia no Brasil de outra perspectiva que não apenas a da escola A da escola é retomada no terceiro capítulo Conexões onde indico não só as ligações explicitamente reivindicadas pelos discípulos como tento acompanhar resumidamente a trajetória de alguns deles as relações que eles próprios estabelecem entre suas carreiras e as que são possíveis de estabelecer do ponto de vista de suas consequências políticas para a sociedade brasileira como um todo Se por um lado aceito as definições dos membros desse grupo e acompanho a trajetória por eles mesmos traçada ao nomearem a si mesmos tanto como herdeiros de uma tradição intelectual quanto como constituintes de outra por outro lado tento não perder de vista o quanto suas definições e esta trajetória quando analisadas dentro de um contexto mais amplo parecem coladas a uma prática que é tanto política quanto científica É a história desta prática e de seus fundamentos e consequências que tento acompanhar aqui analisando a produção teórica e a atuação de alguns dos membros dessa Escola e sempre que possível apontando para as articulações que parecem existir entre este e outros grupos de intelectuais dessa época Se esta história é a de um grupo de intelectuais que no processo de se constituir se diferencia de outros grupos sociais criando novos campos de atuação é também um trecho da história de uma elite mais ampla que extrapola os limites das definições profissionais e inscreve sua presença nas instituições que regulam a nossa vida em sociedade 16 internalização da metrópole Em termos da conformação do saber a diferença é ainda mais acentuada nos dois casos entre uma universidade já institucionalizada e ponto de partida para a especialização dos vários campos das ciências sociais na Europa e a quase inexistência do saber institucionalmente enquadrado no Brasil Aqui a colônia somos nós e a passagem de objetos do poder colonial a sujeitos da soberania nacional coincide com a fundação de instituições do saber onde a antropologia vai aos poucos se constituir o que não deixará de ter consequências em sua história interna O processo de transformação do intelectual brasileiro num nativo em sua própria terra foi sempre acompanhado da percepção explícita de desterro intelectual produto menor dentre as incoerências que marcaram as transformações relevantes ocorridas em nossa história política Parece difícil então fazer uma reflexão a respeito da constituição do campo da antropologia no Brasil sem tentar refletir também a respeito do papel do intelectual nessa história e sobre o contexto institucional de sua atuação Além dos problemas próprios a este tipo de tentativa aqui se acrescenta uma dificuldade específica que é a abundância na literatura sobre o tema de discussões a respeito da composição ideológica da intelectualidade brasileira e a escassez de reflexões a respeito de sua atuação concreta ou de sua produção intelectual Tentando escrever sobre Nina Rodrigues e seus contemporâneos muitas vezes me vi na situação de ou estabelecer relações grosseiras entre a sua visão de sociedade brasileira e a sua atuação social ou abandonar qualquer tentativa de relacionar sua prática com sua produção intelectual já que a busca de informações pertinentes como por exemplo a atuação política no sentido estrito do termo ou a carreira funcional de qualquer um deles quase demandava uma nova pesquisa Em todo caso e sobre uma base historiográfica ainda frágil podese consultar uma série de trabalhos que tentam elaborar o que se poderia chamar de uma cartografia dos intelectuais brasileiros mapeando melhor certas áreas do que outras e às vezes excluindo algumas Estão neste caso Gilberto Freyre 1933 1936 1943 1959 Sergio Buarque de Holanda 1936 1944 1959 Fernando de Azevedo 1943 1955 Antonio Candido 1945 1954 1967 Guerreiro Ramos 1954 1961 João Cruz Costa 1956 Ivan Lins 1964 Nelson 17 Werneck Sodré 1965 Dante Moreira Leite 1969 Alfredo Bosi 1977 A L Machado Neto 1973 Carlos Guilherme Mota 1972 1977 Vamireh Chacon 19641977 Wanderley Guilherme dos Santos 1978 Bolivar Lamounier 1977 Sergio Miceli 1979 José Murilo de Carvalho 1980 Simon Schwartzman 1979 1980 e Wilson Martins 19761980 O fato de esta lista apesar de extensa ser ainda incompleta e de vários autores citados serem além de analistas eles próprios parte da história da formação da intelectualidade brasileira levanta um outro problema para quem quer refletir sobre esta formação¹ Todos estes autores tem em comum a tentativa de estabelecer alguma unidade sociológica num panorama social muito diversificado e a de incluir esta diversificação como parte do objeto de suas análises Todos estes autores também de certa forma redescobrem o Brasil cf M Meyer 1980 em cada um de seus estudos tentando não só dar um sentido à história da trajetória intelectual brasileira como um todo mas criando novos sentidos onde possam ser incorporadas as suas trajetórias intelectuais Ao mesmo tempo em que se exercitam na difícil prática de tentar abstrair a unidade da diversidade em nosso contexto político e social esses autores se estabelecem também ou por isso mesmo como interlocutores importantes no debate a respeito de nossos antepassados intelectuais É por meio deles que somos informados por exemplo da importância dos positivistas no cenário intelectual brasileiro da influência de Silvio Romero Nina Rodrigues ou Oliveira Viana em nossa prática ideológica contemporânea por terem encaminhado a discussão de certas questões e não de outras em alguns momentos cruciais e ficamos sabendo também a maneira como estas questões têm sido tratadas no debate intelectual Através de suas análises é possível assim tanto nomear as influências que eles descobrem nos autores que analisam como situálos a eles analistas num contexto teóricopolítico determinado O prefácio de A Bosi a C G Mota 1977 é exemplar neste sentido ao mesmo tempo que se refere à matéria tratada por Mota em sua análise da vida intelectual brasileira situa o autor e se situa num momento muito preciso da vida intelectual paulista O mesmo faz Antonio Candido 1967 em sua avaliação de Raízes do Brasil ou na sua apresentação do trabalho de S Miceli 1979 e é o que faz também Gilberto Freyre 1943 ao definirse como o fundador de uma antropologia institucional no Brasil Quer dizer neste passo nos deparamos com um desdobramento da situação do analista que não deixa de ter interesse para o antropólogo o investigador é por sua vez objeto de investigação e reavaliação constantes já que faz parte do mesmo corpus que analisa Talvez seja relevante lembrar que estes autores indicam ainda sua pertinência a esse universo ao tomarem partido mesmo muitos anos depois ao lado de determinadas posições e personalidades e contra outras tornandose também personagens das histórias que produzem E é aqui que fazem mais falta as análises que nos informem a respeito do contexto social e político onde se deu a institucionalização das ciências sociais no Brasil Como poderíamos entender por exemplo as críticas de Guerreiro Ramos 1954 a respeito da sociologia do negro brasileiro sem situálo nos quadros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB ou deixando de lembrar a influência do nacionalismo com parâmetro político num determinado momento histórico ou os argumentos dos interlocutores do autor nas ciências sociais naquele momento Toledo 1973 Salém 1980 Ou como distinguir a emergência da antropologia como disciplina autônoma sem rever a transformação que sua definição sofreu ao longo do tempo e sem lembrar que ao começar a ser utilizada entre nós esta palavra a formação do intelectual brasileiro se restringia quase só à possibilidade de tornarse ele um médico um jurista ou um engenheiro O que curiosamente levou a uma ampliação de seus interesses teóricos e de pesquisa o que eventualmente propiciaria o surgimento de novas disciplinas acadêmicas e não a um estreitamento desses interesses ou ao seu confinamento nos campos em que tinham sido instruídos Como consequência de sua ênfase ora na análise da atuação em nível institucional dos intelectuais brasileiros ora em suas preferências políticas os analistas costumam também deixar implícitos os parâmetros de ordenação que utilizam em suas próprias avaliações muitas vezes transformando a crítica ao modelo teórico do autor em questão numa crítica à sua atuação política cujos objetivos ou não são claramente expostos ou não são compartilhados pelo crítico ou viceversa criticando as propostas políticas analisadas com base em parâmetros teóricos estranhos ao contexto do autor ou de sua época Raimundo Nina Rodrigues por exemplo foi uma vítima constante desse tipo de análise que sistematicamente desconsiderou as propostas teóricas e metodológicas feitas por ele dada a ênfase da crítica ao enfoque biologizante de suas pesquisas o que ironicamente impediu também a percepção da importância deste enfoque na constituição das ciências sociais no Brasil Silvio Romero seria outro exemplo não fosse a análise de Antonio Candido 1945 trazendo para o primeiro plano a importância do seu método crítico no estudo da literatura e da sociedade brasileira Os mesmos autores que nos ensinam a situar os nossos antepassados intelectuais são assim também os criadores de nossos preconceitos na compreensão de sua obra e se parece inevitável que cada geração faça sua própria leitura das obras dos intelectuais que a precederam seria desejável que ampliasse também as condições do entendimento tanto da produção intelectual criticada como dos marcos de que partem seus críticos o que nem sempre ocorre Além das causas célebres isto é das discussões que orientam a produção das ciências sociais em determinados momentos eg as discussões que opunham raça e cultura ou feudalismo e capitalismo ou desenvolvimento e subdesenvolvimento ou sociedade de classes estamental patrimonial ou clientelista ou colonialismo e dependência etc teríamos também que ter acesso ao conhecimento de argumentos não tão célebres Ou seja ao cotidiano das relações políticas que foram pouco a pouco construindo as interpretações teóricas finalmente fixadas em letra de forma ou construindo as relações institucionais que as tornaram possíveis Quando Gilberto Freyre 1943 contia por exemplo que censurou Arthur Ramos por seu excessivo pendor pelas interpretações psicanalíticas e o introduziu a leituras antropológicas ou quando Edison Carneiro 1964 fala da má vontade do mesmo Arthur Ramos para com a pesquisa de Ruth Landes sobre os candomblés da Bahia ou ainda quando ambos E Carneiro e A Ramos remontam às discussões políticas com Gilberto Freyre a respeito dos Congressos AfroBrasileiros Carneiro 1964 é mais do que simples disputas interregionais o que está em pauta ainda que estas nunca sejam tão simples Tratarseia aqui de dar mais um passo na direção de um esclarecimento sobre a constituição da antropologia no Brasil fazendo uma leitura antropológica da história desta constituição Isto é uma leitura que não desdenhasse em favor dos alinhamentos ideológicos classicamente invocados as pequenas informações as intrigas de bastidores as acusações de bruxaria enfim as vinculações políticas num sentido amplo dos atores envolvidos nesta história Uma observação mesmo superficial da intrincada rede de alianças pessoais políticas institucionais vigentes hoje nas ciências sociais em nosso país sugere que são esses pequenos movimentos que desembocam afinal nas grandes configurações do saber e políticas A atuação social mais ou menos articulada de determinados grupos de intelectuais brasileiros só recentemente tem merecido o interesse de pesquisadores Machado Neto 1973 Stepan 1976 Miceili 1979 Schwartzman 1979 Carvalho 1980 Este interesse no entanto tem em geral se dirigido para os grupos politicamente importantes na constituição do campo das ciências chamadas exatas e dado maior importância à institucionalização das diversas disciplinas científicas aceitando como dadas as condições seja da definição dessas disciplinas seja de sua importância na configuração geral da distribuição do saber A influência dos integrantes da escola do Recife ou dos positivistas no meio intelectual brasileiro por exemplo apesar de sua reconhecida importância tem sido em geral analisada da perspectiva de sua filiação a certas correntes do pensamento o que se procura é antes demonstrar a preponderância de determinados autores especialmente Haeckel Comte ou Spencer na formação teórica dos membros desses grupos do que analisar a sua composição enquanto tal Ao invés de nomear precursores e estabelecer a genealogia teórica desses grupos de intelectuais que é também o modo como os próprios membros dessas escolas reivindicam a legitimidade de suas posições acadêmicas e portanto um dado do problema talvez fosse mais frutífero tentar analisar a relação de seus alinhamentos políticos e teóricos com sua prática sua atuação num contexto dado Um corte horizontal na composição da Escola do Recife poderia sugerir assim que se em sua orientação teórica Tobias Barreto e seu principal publicista Silvio Romero partiam dos mesmos supostos o que nem sempre é exato a atuação acadêmica e política de ambos se diferenciou radicalmente desde que o primeiro teve uma atuação regional e o segundo encontrou ressonância nacional a partir do momento em que se transferiu para o Rio de Janeiro Neste sentido como mostra Antonio Candido em sua análise é mais relevante dar atenção às polêmicas de Silvio Romero com José Veríssimo do que à influência teórica das discussões nascidas na Faculdade de Direito do Recife Tanto Silvio Romero como os discípulos autoproclamados de Nina Rodrigues ou os de Alberto Torres seus contemporâneos vão se manter fiéis a algumas questões levantadas por seus mestres publicitandoas mas num caso como nos outros o contexto institucional onde eles definem sua atuação e o contexto social onde aquelas questões e esta definição farão sentido são outros e outro é o seu alcance O resgate intelectual através do qual as obras de Tobias Barreto Nina Rodrigues ou Alberto Torres vão ser incorporadas a uma tradição filosóficojurídica médicoantropológica ou política é um processo em suma que nos informa mais a respeito dos objetivos dos que as resgataram do que de seus autores Para compreendermos o universo em que se moviam os autores que estaremos analisando aqui é preciso também deixar de lado num primeiro momento as demarcações institucionais e teóricas que definem as fronteiras dos vários campos científicos tais como os conhecemos atualmente e tentar recuperar o sentido que estes autores davam aos conceitos que utilizavam em seu próprio momento histórico Esta parece uma abordagem metodológica mais apropriada a fazer emergir a visão dos próprios autores que nos interessam sem subordinála de antemão a algum mentor teórico ou às interpretações de seus seguidores Ao invés de dizer como Arthur Ramos que basta substituir a noção de raça pela de cultura nos trabalhos de Nina Rodrigues para que suas pesquisas sejam aceitáveis em termos da ciência contemporânea parece mais importante situar tanto a relevância da noção de raça no contexto científico do final do século passado como a da noção de cultura no início deste A mera narrativa da substituição de conceitos ou de autores numa linha cronológica não dá conta da definição e delimitação de algumas áreas do saber nos termos em que foram concebidas nem esclarece a relevância de determinados postulados teóricos nessa demarcação E se a atuação dos contemporâneos e dos discípulos de Nina Rodrigues foi importante para demarcar estas áreas sua formação teórica sua posição social e o âmbito institucional de sua atuação os levaram constantemente a cruzar estas fronteiras e a combinar orientações teóricas heterogêneas combinações e cruzamentos que devem ser levados em conta na análise desta atuação A própria definição de cientistas sociais como antropólogos é muito recente e parece estar ligada tanto a razões de ordem prática consequência das divisões disciplinares institucionalmente criadas não só na universidade mas também em fundações concessionárias de financiamentos de pesquisas e nos órgãos governamentais da área da educação quanto a influências teóricas ou relações políticas no sentido amplo Peirano 1980 Esta distribuição disciplinar parece ter criado a necessidade de apropriação ou exclusão a posteriori de pesquisas pesquisadores ou temas em cada uma das áreas das ciências sociais que vão ganhando contornos mais nítidos pela ampliação de seus recursos humanos e institucionais E parece também tornar inevitável a colocação da pergunta sobre como desembaraçar a antropologia dos laços que pareciam prendêla tão fortemente no passado a disciplinas hoje dela tão diferenciadas como a medicina ou o direito por exemplo e como criar para ela um percurso uma trajetória bem definidos cujo ponto de chegada sejamos nós antropólogos contemporâneos Mas esta talvez não seja a questão mais relevante se o objetivo é entender como se constituiu o campo da antropologia no Brasil Quem sabe se justamente naqueles laços tão cuidadosamente ignorados ou rompidos nas análises cujo ponto de partida são definições contemporâneas do ofício de antropólogo não se encontram elementos mais ricos para esta compreensão Pretendo aqui sugerir que esta distribuição que hoje podemos observar nas ciências sociais foi o resultado não só da importação de modelos universitários estrangeiros mas também do lento trabalho teórico e político de vários grupos de intelectuais brasileiros e que a assim chamada escola Nina Rodrigues é um desses grupos cuja atuação foi importante tanto na constituição de uma área da antropologia como na da medicina legal Para compreender esta atuação é necessário fazer uma avaliação dos dados disponíveis a respeito da composição de nossa intelectualidade bem como do quadro institucional em que ela se movia à época de Nina Rodrigues além de uma referência ao tratamento que a questão racial que como veremos foi crucial na produção destes intelectuais recebeu naquele momento Sugiro assim que é necessário tornar os alinhamentos teóricos as alianças políticas e a atuação institucional de nossos intelectuais como partes de um contexto fora do qual ou isoladas elas não fazem sentido O DESTERRO EM NOSSA TERRA OU GOING NATIVE Não é preciso remontar à Colônia à influência jesuítica na educação brasileira ou à instalação tardia de universidades em nosso país para que percebamos quão incipiente e recente se comparada com outros países é a criação de uma rede de instituições do saber no Brasil O século 19 foi o momento em que se tentou recriar aqui todo um aparato institucional o saber aí incluído abandonado ultramar na pressa da transferência do controle metropolitano de Portugal para o Brasil Foi a partir de 1808 com a criação e recriação no país de instituições centralizadoras do poder e do saber que se tornou possível a formação de uma classe ilustrada nacional apoiada ironicamente naquelas mesmas instituições com que se pretendia reproduzir mais perfeitamente o domínio colonial Azevedo 1943 Schwartzman 1979 Carvalho 1980 Nesse momento também com o estabelecimento da Corte no Rio a antiga autoridade do senhor passava a exercerse pela primeira vez fora dos seus domínios territoriais transformandoo em senhorcidadão na expressão de Florestan Fernandes Esta figura paradoxal encarnaria de maneira adequada o dilema mais agudo do século 19 o de uma sociedade que deveria passar do regime da tutela colonial para o regime da Lei como garantia da igualdade dos indivíduos Passo complicado já que não se tratava simplesmente de colocar o país juridicamente em pé de igualdade com as nações civilizadas como diria um liberal da época isto é de produzir um corpus juris adequado ao estatuto de nação que o país desejava Tratavase de por um lado criar um aparato legal que expressasse o controle desejado pelo Estado nacional efetivando a liquidação dos focos locais de poder distribuídos pela superfície da sociedade brasileira desde a época colonial Mas por outro lado esse controle a ser enunciado na Lei necessitava da colaboração efetiva desses poderes locais se quisesse manterse Tratavase em suma da transformação dos até então objetos da norma colonial em sujeitos de cidadania nacional Cidadania desde logo acessível a uns poucos a questão do controle prático imediato de acesso às novas formas de representação criadas coma Independência seria resolvida em relação aos homens livres através da manutenção de um sistema eleitoral que formal e informalmente asseguraria a exclusão da grande maioria da população A própria dinâmica do processo de criação de novas vias institucionais de representação da sociedade civil no entanto dava margem a abertura de espaços ambíguos na estrutura social que teoricamente ao menos poderiam permitir o acesso de indesejáveis às terminais do poder Se não exatamente propícia à ascensão de uma fulgurante plebe na expressão de Gilberto Amado essa época de meados do século passado pode ser considerada como um dos momentos cruciais do debate entre a possibilidade da participação das massas na vida política do país e a reafirmação de sua exclusão Não só os movimentos sociais de rebeldia mas também a crescente urbanização da sociedade pareciam revelar um aumento e concentração de populações anteriormente menos visíveis ou sob maior controle populações que passava a ser necessário conhecer além de controlar Isto é no momento mesmo em que se colocavam as questões de cidadania e de nacionalidade na sociedade brasileira tornavase também um imperativo político definir mais claramente os critérios de inclusãoexclusão ao estatuto de cidadão nacional O nativismo literário foi uma das expressões do debate desses critérios outras começariam a aparecer nas instituições científicas da época A real eficácia do controle da situação que a elite política detinha seria acrescida uma eficácia simbólica e a parafernália de instituições culturais associações históricas e expedições de pesquisa promovidas pelo Imperadorprofessor dariam novas dimensões ao poder dessa elite O saber organizado por ela apareceria a seus próprios olhos como o resultado da apreensão pela ciência das leis que regiam às relações entre os homens leis que seriam socialmente institucionalmente reforçadas Tentando aprofundar o conhecimento da nossa realidade as novas classes ilustradas chegariam por vias transversais a uma problemática que era também central no pensamento científico europeu e norteamericano do seu tempo como dar conta teoricamente das evidentes desigualdades concretas entre os homens O atalho que esta questão tomou no Brasil estava diretamente ligado à presença entre nós de milhões de descendentes de africanos as classes perigosas aqui eram inicialmente compostas por eles e só muito mais tarde as classes trabalhadoras maciçamente integradas por imigrantes serão objeto da mesma atenção da ciência Não é por acaso que os discípulos de Nina Rodrigues se especializarão também em questões como acidentes de trabalho na década de 20 incluindo na sua preocupação o estudo da composição racial desta classe A organização do saber efetuada num primeiro momento seguiu não apenas as linhas mestras da ciência de seu tempo em termos de preocupação temática ou distribuição disciplinar mas também acompanhou as necessidades da sociedade que se reorganizava os primeiros cursos criados foram o de Medicina e Engenharia mais tarde os de Direito e Geologia As instituições que abririam espaço para as pesquisas dos naturalistas importantes na criação de toda uma tradição do que seria uma área da antropologia fundadas na mesma época só adquiririam importância no final do século E ainda que o valor ornamental dos diplomas concedidos pelas instituições do saber recriadas aqui tenha sido sempre acentuado pelos historiadores de nossa vida intelectual de uma forma ou de outra esses marcos institucionais aglutinaram os esforços de uma parcela das camadas dominantes na direção de iniciar um conhecimento mais sistematizado de nossa realidade oferecendolhes um instrumental teórico mais ou menos homogêneo mas não despido de contradições para esta tarefa Essas instituições não se resumiam no entanto aos centros educacionais tais como os concebemos hoje Além de receberem uma educação formal nas faculdades os intelectuais do século 19 discutiam as questões que consideravam relevantes nas redações de revistas e jornais nas livrarias em associações profissionais ou acadêmicas ou em clubes constituídos com a finalidade específica do debate da polêmica No dizer de Thales de Azevedo 1968 o século 19 foi o século da polêmica no Brasil e isso ainda é legível nos artigos ensaios e críticas publicados nos jornais livros e revistas da época Os polemistas tampouco desdenhavam argumentos que talvez parecessem deselegantes ou deslocados para o leitor acadêmico de hoje o escárnio a sátira os ataques pessoais Se em termos do jargão contemporâneo utilizado nas análises da história das ciências o Brasil não possuía ainda uma comunidade científica os intelectuais do século passado a julgar por suas biografias e pelos estudos sobre o período levavam uma vida muito movimentada produziam muito e acabavam por se encontrar fosse na porta da livraria Garnier no Rio fosse em alguma viagem pela Europa em geral encarregados pelo governo de alguma comissão Através da publicação de suas discussões e polêmicas criaram também uma espécie de opinião pública restrita e se organizaram em grupos igrejnhas e escolas Parece irônico que um país onde a escolarização é tradicionalmente baixa tenha visto proliferar tantas escolas Mas talvez justamente a baixa institucionalização do saber em nossa sociedade se comparada com outras tenha levado os intelectuais a se aglutinarem em grupos que se definiam uns por oposição aos outros ou ao seu meio Esses grupos círculos ou cliques além de demarcar o âmbito de relações pessoais ou de alianças políticas dos intelectuais eram também importantes para a obtenção de aprovação social do reconhecimento público deles enquanto tais O Instituto Histórico e Geográfico do Rio e de cada província a Academia Nacional de Medicina e as várias associações médicas provinciais a Academia Brasileira de Letras e suas variantes regionais todas essas instituições e associações e várias outras eram locais de incessantes transações fosse para reunir os votos necessários à admissão de um novo sócio fosse para aprovar uma moção memória ou proposta de algum membro ou para indicar um confrade para um posto vago em alguma secretaria jornal ou escola O intelectual brasileiro que não estivesse ligado a algum desses grupos passaria despercebido em seu contexto social como alguns deixaram de passar à história No panorama que se oferece da leitura de algumas das teses preparadas para as faculdades existentes dos artigos e crônicas de jornais ou da literatura de ficção e da dramaturgia nacionais que também estreavam parece que o mundo passava na forma de livros e jornais não só pelo centro político do país mas também pelos sertões No pequeno município de Escada sertão de Pernambuco Tobias Barreto publicou vários pequenos jornais um deles em alemão onde estampava suas diatribes contra os apaixonados da cultura francesa e o domínio intelectual da Corte e debatia temas políticos do momento como o ingresso da mulher em carreiras acadêmicas no Maranhão um grupo de jovens lançava um jornal anticlerical para publicitar as aspirações políticas que pareciam ser compartilhadas pelos intelectuais republicanos do final do século afirmando nas palavras de Aluísio Azevedo que três terços da atual humanidade é revolucionária em Montello 1975 No Ceará depois da dispersão da Padaria Espiritual os jovens se reuniam para ler Comte num grupo do qual faziam parte Araripe Junior e Capistrano de Abreu Aparentemente em todas as províncias circulavam os boletins da seita positivista proliferavam os templos maçons e se lia muito Na expressão de Silvio Romero a partir de 1870 um bando de idéias novas percorria o país Antonio Candido assim retratava esse momento Nurn Brasil entorpecido pelas humanidade que sob certos aspectos constituía verdadeiro fenômeno de inércia cultural a campanha pela cultura e pela revisão filosófica apareceu como força de renovação mental A critica de Silvio tão profundamente ligada a ela corre paralela ao incremento dos estudos de matemática relacionado em parte com o positivismo à intensificação dos estudos de ciências naturais à constituição da etnografia e da etnologia brasileira à transformação do Direito sob o influxo do evolucionismo à fundação da Escola de Minas etc Um verdadeiro movimento de despertar através dos padrões da cultura Parecenos que semelhante movimento não estaria sem correspondência nem é ocasionalmente que coincide com as primeiras tentativas da burguesia de tomar a si a direção econômica e política da nação Não é por acaso que se dá no Brasil em 1860 a grande vitória eleitoral do liberalismo democrático a que estava ligada uma mentalidade típica do capitalista progressista como Teófilo Otôni nem que em 1868 o partido liberal se finca com a consequência formação do partido republicano em 1870 Neste ano em que se finca o jornal de Limpo de Abreu e Rangel Pestana vai no seu auge o desenvolvimento das empresas de Mauá o positivismo grassa entre os militares o abolicionismo se consagra no ano seguinte O movimento intelectual e científico significava no campo da cultura o mesmo processo de rompimento com a autoridade tradicional e o mesmo desejo de afirmação nova e livre O movimento crítico do Recife que floresceu desde 1868 ou 1869 e que repercutiu imediatamente no Ceará logo seguido por fenômenos semelhantes ao sul foi a primeira manifestação orgânica e flagrante do processo de burguesamento refletindose nas esferas mentais Foi a primeira expressão coerente no campo literário e filosófico de uma ideologia burguesa no Brasil Antonio Candido 1963 126127 As idéias não só eram novas como pareciam circular por toda parte onde a palavra escrita tivesse leitores O que fica das impressões de leitura dos autores da época e dos analistas que se dedicaram a historiar esse período sugere que seria falso pensarmos no Brasil neste momento em termos dicotômicos de centro e periferia O Rio e São Paulo começavam a se constituir numa região política e economicamente importante e a decadência econômica e política do norte e nordeste estava em andamento o que implicava numa grande circulação não só dos homens de negócios e dos políticos como também dos intelectuais e de suas idéias E se a elite intelectual brasileira até meados do século passado tivera uma certa homogeneidade tanto em termos de formação como de carreira como sugere J M de Carvalho 1980 dado que a maior parte dela estudara Direito em Coimbra e se encaminhou para a carreira burocrática a partir de então ela parece se diferenciar em termos regionais e se distribuir em campos distintos de formação acadêmica As instituições do saber fundadas em algumas regiões passam desde aí a formar e agrupar os brasileiros que tinham condições de se profissionalizar nas novas carreiras Parecia haver de fato vários centros no país e os intelectuais iriam se reunir tanto em torno das escolas como das escolas que surgiam nesse período Ironicamente essa regionalização do saber provocaria também o surgimento de intelectuais preocupados com a nação e com a questão da nacionalidade Se a Corte pelas oportunidades de emprego na burocracia e pelas possibilidades de publicação que oferecia era um forte pólo de atração dessa nova geração de intelectuais a formação da grande maioria deles era feita ainda nas províncias de origem às quais eles continuarão a voltar mantendo vínculos de todo tipo com seus conterrâneos Se o universo intelectual que eles habitavam tinha a Europa como ponto de referência o sertão por oposição ao litoral e como sinônimo de um interior quase conhecido era ainda uma realidade e uma preocupação muito próxima O conhecimento do Brasil real será o triunfo mais constante com que eles jogarão no ambiente intelectual da Corte depois capital ainda dominado pelas idéias francesas sem abandonar no entanto a legitimação que elas emprestavam ao seu saber Este quadro é certamente válido apenas para uma pequena parcela da população das várias regiões do país e mesmo desta parcela pouco sabemos a respeito de sua composição efetiva seja em termos de origem social seja de formação intelectual Mas se os intelectuais brasileiros desse período não parecem ser originários das camadas mais pobres da população tampouco podem ser vistos apenas como portavozes dos interesses das chamadas classes dominantes Se pela sua posição profissional aliada aos laços da família podemos sintilos como membros das camadas mais altas da sociedade sua atuação não pode ser explicada só em termos de pertinência de classe É enquanto profissionais que eles se inserem nessas camadas dando uma nova tonalidade à dominação tradicional da burguesia agrária do período Se a maioria deles era proveniente de famílias de proprietários rurais todos eles atuariam num contexto urbano institucional e letrado o que já os distinguia de seu grupo de origem E se as opções profissionais eram limitadas isto seria compensado pelo amplo leque de interesses que atraiu a atenção desses intelectuais o que pode ser explicado tanto pelo número reduzido deles que os obrigava a se desdobrarem em especialistas de várias áreas quanto por seu envolvimento político e funcional Talvez a melhor maneira de perceber a emergência dessa camada intelectual de profissionais no seio das classes dominantes seja observando a forma pela qual ela delimitava seu campo de atuação as questões que colocava como relevantes e como definia nomeandoos os seus objetos de análise A questão principal que Nina Rodrigues e seus contemporâneos se colocavam dizia respeito à nossa definição enquanto povo e a deste país como nação o que os fazia colocar as relações raciais no centro de suas preocupações teóricas e de pesquisa bem como de sua atuação política Esta questão seria explicitamente levantada em nosso contexto cultural pela ciência e pela literatura através de Silvio Romero Nina Rodrigues Aluísio Azevedo e Euclides da Cunha e discutida por muitos outros autores Não deixa de ter importância para esta reflexão observar que tanto Silvio Romero que tinha formação jurídica como Euclides da Cunha engenheiro de profissão e ambos absorvidos hoje pela área de estudos literários pretenderam como outros colocar a questão das relações raciais dentro de um quadro de explicação rigorosamente científico Silvio Romero porque desejava compreender os fatores sociais da literatura e Euclides porque pretendia eliminar qualquer subjetivismo de sua narrativa sobre Canudos Nina Rodrigues será objeto de análise detalhada a partir do próximo capítulo quanto a Aluísio Azevedo apesar de estar fazendo ficção tinha o objetivo explícito de crítica aos costumes da sociedade de São Luis do Maranhão de uma perspectiva positiva Contemporâneas as obras desses quatro autores vão se separar em relação às questões que respondem quando tratam das relações raciais Aluísio Azevedo e Euclides da Cunha parecem mais preocupados em responder à questão da nacionalidade ou do nativismo recolocado isto é quem somos questão que só pode ser formulada a partir da transformação da colônia em nação e por uma elite intelectual então se constituindo Silvio Romero e Nina Rodrigues sem desleixar este ângulo da questão pareciam colocar sua ênfase num desdobramento dela isto é quem são eles acentuando a distância entre o analista e seus objetos de análise Silvio Romero expressou bem esta mudança de perspectiva assinalada por vários autores depois por exemplo F Fernandes 1975 e E Viotti da Costa 1977 do que parecia ser a formação de um sentimento coletivo de oposição ao domínio português no período colonial passavase a uma visão de grupo dominante em relação ao grupo dominado Desfeitas as ilusões políticas de uma luta de nativos contra o inimigo comum fosse ele a metrópole a Coroa ou os marinheiros tratavase agora de instaurar uma visão científica isto é imparcial sobre o estado da nova nação Silvio Romero colocava a questão A República teve a vantagem de revelar este querido povo brasileiro tal qual é enregue a si próprio ou aos seus naturais diretores o que vem a ser a mesma coisa Os vícios e defeitos de sua estrutura social tornaramse patentes aos observadores imapciais e cultos Até a independência este amado Brasil tinha aparecido sempre sob o tutela da realeza portuguesa que o havia dirigido guiado afeiçoado por assim dizer ao sabor de seus planos e desígnios até onde governos podem influir na estrutura das massas populares sobre as quais lhes cumpre velar No regime passado igual tutela havia sido exercida pela monarquia nacional que se poderia considerar em mais de um sentido uma continuação um prolongamento da realeza mãe Poderseia dizer que havia uma força estranha a estorvar o povo no seu andar normal e próprio Hoje este obstáculo jaz desfeito não existe mais tal embaraço ou tal desculpa O observador não divisa um astro estranho a desviarlhe os instrumentos de análise não encontra tropeços no caminho S Romero 1906 Convém contextualizar este fragmento de discussão dizendo pelo menos que ele é parte de uma ampla crítica de Silvio Romero ao livro de Manuel Bonfim A América Latina em que este autor se insurgia contra as teorias racistas e climatológicas para explicar o nosso atraso abrindo a discussão para a questão do imperialismo que ele chamava de parasitismo A virulência de que se revestia a crítica de Silvio Romero é ainda um bom exemplo do tom que assumiram certas polêmicas na época e ao anexar ao livro um folheto que publicara antes sobre os perigos da imigração alemã concentrada no sul do país Silvio deixava claro também que considerava a questão da raça e nacionalidade como mais ampla do que a mestiçagem entre brancos e negros o que seria explicitado em outros trabalhos seus Definindose como observadores da realidade nacional e como seus críticos imparciais os intelectuais brasileiros desse período ao mesmo tempo que definem o restante da população como seus objetos privilegiados de análise se constituem também como categoria social E de certa forma se separam da sociedade em que viviam ao elegerem a raça como primeiro critério de nacionalidade num processo que alguém já chamou de esquizofrênico Esquizofrênico ou paradoxal o resultado da escolha não dependeu inteiramente do que desejassem os intelectuais vivendo num contexto social que a ciência dominante da época definia como incompatível com a civilização ou o progresso e tendo que prestar contas ao mesmo tempo à sua condição de cidadãos dessa nação e de membros daquele universo científico tornavase difícil escapar à ambigüidade O desterro em nossa terra expressão também ambígua criada por Sérgio Buarque de Holanda para expressar os paradoxos desta condição teve no entanto conseqüências interessantes já que as obras desses quatro autores escolhidos como exemplos do intelectual de sua época expressavam com rara felicidade questões que datadas são ainda importantes em nossos debates hoje Se é preciso contextualizar historicamente a sua discussão para entender os seus muitos desdobramentos ou descontinuidades é também possível encontrar uma certa continuidade na análise desses problemas agora com outros nomes O preconceito racial denunciado por Aluísio Azevedo o branqueamento como solução proposta por Silvio Romero a multiplicidade cultural talvez malgrado sua vontade reconhecida por Nina Rodrigues e a resistência do homem do sertão louvada por Euclides da Cunha ocuparam e continuam a ocupar nossos esforços de pesquisa e as páginas dos jornais todos os dias Em suma ao relermos a história intelectual do Brasil é fácil nos perguntarmos qual o critério de inclusãoexclusão de autores ou temas nesta história a menos que se trate de obras tipo omnibus como os sete volumes de Wilson Martins Se as análises mais circunstritas como as de C G Mota e S Miceli criticam justamente generalizações do tipo formação da cultura brasileira ou do caráter nacional ainda temos poucas pesquisas que analisem em profundidade as relações entre a atuação social e a produção intelectual de grupos localizados importantes tanto na construção institucional como na constituição de áreas específicas do saber no Brasil E no entanto a nossa história política parece ter sido propícia à multiplicação de círculos de intelectuais que compartilharam uma linguagem comum teórica e metodológica quando não um projeto institucional Se tornarse nativo parece ter sido o problema principal dos intelectuais brasileiros dos anos 70 do século passado ele não foi tratado do mesmo modo nem vivido da mesma forma por todos os autores contemporâneos daquela geração E como nossa historiografia é ávara em informações sobre a matéria tratada por esses intelectuais e particularmente discreta a respeito de sua atuação social ficamos reduzidos a discutir a opinião dos analistas e passamos a criticálos não pelos seus trabalhos de pesquisa que não temos condição de avaliar mas pela maior ou menor importância atribuída a esses trabalhos pelos que os analisam Os atores do drama intelectual aparecem então como meros suportes de um destino traçado de trás para diante ou alhures e como precursores ou opositores de uma noção de ciência contemporânea de cujo trabalho só se aproveita o que seja coerente com as exigências da ciência social de hoje É como se nas palavras de W G dos Santos Dado que o período científico das ciências sociais no Brasil se inicia com a criação de cursos superiores a importação de professores estrangeiros e a introdução de técnicas de investigação de campo e dado que isto só se verificou no segundo quartel deste século seguese que a exposição da história do pensamento políticosocial brasileiro é extremamente simples até o segundo quartel deste século produziuse ensaios sobre temas sociais a partir de então produziuse ciência W G dos Santos 1978 Isto nos permite também esquecer a contribuição de Silvio Romero ou Capistrano de Abreu como pesquisadores de campo nas áreas da cultura popular e da linguística indígena ou o trabalho de Gonçalves Dias como etnógrafo para ficar em exemplos mais aparentes ignorando assim uma tradição que não só nos absolveria do pecado de não termos história como poderia iluminar ângulos imprevistos de nosso trabalho atual Esta rápida incursão sobre as condições de formação da intelectualidade brasileira nos meados do século passado sugere que a melhor forma de incorporarmos ao nosso debate as contribuições dos intelectuais que nos precederam talvez não seja atrelálos diretamente a configurações de saber já estabelecidas No entanto buscando entendêlos em seus próprios termos é inevitável a cada momento a intrusão do que supomos ser um olhar crítico a respeito da maneira como eles atuavam No final das contas tentar fazer a história de qualquer disciplina pode ser um exercício ilusório já que não podemos nos livrar do peso de nossa própria maneira atual de praticála sem correr o risco de dissolver os contornos do objeto que nos propomos a entender Apesar desta dificuldade não acredito que a única diferença entre uma pesquisa feita por Nina Rodrigues e qualquer pesquisa contemporânea seja apenas a diferença que pode ser expressa pelo que nós já sabemos e ele ainda não sabia O trabalho intelectual não é apenas constituído pela acumulação de informações novas a respeito de velhos temas ainda que a vigência continuada de uma determinada linha de pesquisa certamente aponte para sua relevância na compreensão do desenvolvimento interno de certas áreas do conhecimento A questão das relações raciais pela sua presença recorrente na produção das ciências sociais no Brasil é um bom exemplo disso Mas além de observar a continuidade demonstrada por um certo objeto de pesquisa no âmbito de uma certa disciplina ou anotar a acumulação de conhecimento sobre ele seria preciso também fazer um esforço por reconhecer diferenças na maneira de nomear este objeto na linguagem utilizada para apreendêlo ao longo da história da formação de qualquer disciplina se quisermos entender a sua importância nesta formação Não basta afirmar que as relações raciais por exemplo eram um tema óbvio e que se propunha quase naturalmente aos contemporâneos de Nina Rodrigues uma vez que vários outros temas que hoje nos pareceriam igualmente salientes não mereceram a mesma atenção como este tema também não a mereceu em outros momentos mas sim questionar a maneira pela qual ele recebeu o estatuto que lhe atribuímos e qual o seu lugar entre outros temas importantes naquele momento A relação entre um certo objeto de pesquisa relações raciais e a emergência de uma determinada disciplina a antropologia apenas parece óbvia se compartilharmos a definição biológica subjacente a ambos num dado momento Isto é se aceitarmos que o estudo dos seres humanos é antes de mais nada um estudo de sua morfologia física seremos levados a fazer uma história natural da antropologia tornando também lógica a sua conexão com as ciências médicas Se este é um aspecto importante da história da constituição desta disciplina já que era a maneira como se definiam aquelas relações num certo momento para passar do âmbito de uma história natural para o de uma história social ou política da antropologia é preciso examinar as suas relações com outras disciplinas que se constituíram no mesmo contexto Estas relações não são apenas abstratas correspondências teóricas mas derivam principalmente das relações que determinados grupos sociais mantinham entre si e do lugar por eles ocupados na nossa sociedade Não estou pensando aqui apenas nas disciplinas mais próximas como a sociologia por exemplo mas também em áreas menos prestigiadas do conhecimento que se formaram a partir das relações desses grupos e no mesmo contexto teórico e social como por exemplo a medicina legal Neste sentido não são apenas as continuidade internas a um tema específico como o das relações raciais ou outros igualmente reiterados as que desejo perseguir aqui mas principalmente as suas descontinuidades Isto é como os aparentes desvios no tratamento de um tema ou objeto de pesquisa foram também relevantes na abertura de outros caminhos que não pareceriam nada naturais se vistos apenas de uma perspectiva de filiação teórica ou institucional ou política cada uma delas tomada isoladamente São em suma os percursos de algumas das filhas desmandadas da antropologia refrasenado a expressão de RoquettePinto o que mais me interessa analisar aqui Vejamos em primeiro lugar o que alguns intelectuais escolhidos como exemplos de sua época entendiam por antropologia e como trataram da questão racial já que seu tratamento parece ter sido paradigmático não apenas em termos de constituição interna deste tema mas também da delimitação externa da antropologia no Brasil OS ARGONAUTAS NATIVOS Em outubro de 1856 por sugestão do Instituto Histórico e Geográfico D Pedro II assinou o decreto de criação da Comissão Científica de Exploração destinada a estudar os recursos naturais das províncias do norte do Brasil e nomeou Gonçalves Dias para chefiar a seção de Etnografia A Comissão só se poria a caminho três anos depois e as frustrações e glórias desses exploradores incluindo uma aventura com camelos no sertão do Ceará estão narradas com detalhes por outros autores Braga 1962 Pereira 1943 O que interessa aqui é apontar a forma como começa a ser utilizada entre nós a palavra etnografia e como parecia apropriada à elite intelectual e política da época que o poeta do indianismo fosse chamado a ser o nosso primeiro etnógrafo oficial Gonçalves Dias levou consigo instruções muito detalhadas a respeito de suas tarefas Ele deveria estudar os indígenas do Brasil em seus aspectos físico moral e social deveria moldálos e retratálos em diversas posições empregando a heliografia e o desenho medir sua estatura força muscular e ângulos faciais verificando a aplicação das teorias de Gall e Camper Deveria observar sua atitude mímica hábitos crenças modo de enterrar os mortos vida social grau de cultura disposição das casas e aldeias alimentação métodos de agricultura e comércio e número da população Aprender as línguas das várias nações redigindo sua gramática e um codiguizinho de todos os atos dos indígenas que se assemelhe a uma espécie de Direito Publico Internacional Deveria ainda colecionar múmias crânios armas ornatos utensílios domésticos e de trabalho e instrumentos musicais E levava também o encargo diplomático de recolher as opiniões e queixas dos índios sobre os brancos verificando se não seria possível chamar à indústria tantos braços perdidos Pereira 1943 A mesma orientação utilitária que fizera com que a comissão começasse seus trabalhos pelo Ceará dada a possibilidade de existência de jazidas minerais naquela província se revela também no projeto de relações com os índios O redator das instruções Araujo Porto Alegre apesar de ter demonstrado perceber a amplitude do que seria necessário saber para começar a conhecer os grupos indígenas brasileiros mostrou também pouco espírito prático ao supor que um homem sozinho fosse capaz de recolher todas estas informações Gonçalves Dias por sua vez estava mais interessado nos mestiços achando notável que o Ceará das nossas províncias aquela em que se contam menos escravos e onde se encontram menos indivíduos da raça indígena pura seja ao mesmo tempo a que apresenta os tipos mais belos e mais bem caracterizados de mistura das raças Isto ele escrevia em carta publicada no Jornal do Comércio do Rio em maio de 1859 porque o relatório de seu trabalho na Comissão se chegou a ser redigido perdeuse Poeta e funcionário público aparentemente circulando tão à vontade pela Europa onde foi comprar os instrumentos para seu trabalho como pelo sertão do Ceará onde os exploradores eram chamados de estrangeiros Gonçalves Dias é bem um representante do nativismo romântico que dali para a frente seria impiedosamente criticado pela intelectualidade brasileira O barão de Capanema cunhado e amigo do poeta e também membro da Comissão na seção de Mineralogia escrevendo para ela da Europa tinha ironizado sua missão dizendo que o mundo científico olhava com mais curiosidade para os argonautas dos macacos do que outrora os quarenta séculos para os heróis gauleses E de fato as instruções da Comissão tinham sido transcritas no Boletim da Sociedade de Antropologia de Paris como exemplo do que se deveria fazer nesta área de pesquisa Castro Faria 1952 Daí em diante as palavras etnografia etnologia e antropologia parecem ser usadas quase indiferenciadamente tanto no sentido de pesquisas sobre a cultura material dos índios brasileiros como no da contribuição mais imaterial de índios e negros à nossa cultura mantendo no entanto uma forte ênfase no que hoje qualificaríamos de antropologia física A seção de Antropologia criada no Museu Nacional no âmbito das reformas de 1876 sob a direção de Ladislau Neto a criação dos Arquivos do Museu Nacional onde saiu no mesmo ano o artigo Contribuições para o estudo antropológico das raças indígenas de João Baptista de Lacerda e o curso de antropologia dentro da série de palestras sobre ciências naturais do ano seguinte exemplificam este uso A mesma ênfase se dará depois na Exposição Antropológica de 1882 e na definição das pesquisas sobre os grupos indígenas que especialmente médicos e naturalistas alemães desenvolveram desde o final do século no Museu Paulista e no Museu Goeldi A transformação seguinte que se pode observar em relação às pesquisas sobre os indígenas brasileiros será uma reação mais política do que teórica contra uma visão museológica do índio e o processo que se inicia nos primeiros anos do século passado vai aos poucos constituir uma área específica da antropologia no Brasil Stauffer 1960 Na autodefinição de seus praticantes esta área acabaria por se apropriar do termo etnologia Mantida a ênfase biológica é possível observar algumas variações no emprego desses termos Ao analisar a produção nacional existente em sua época a respeito dos grupos indígenas Silvio Romero já utilizava a palavra etnologia com aquele significado particular conforme a Etnologia Selvagem de 1875 Mas ao começar a pensar no meio e na raça como condicionantes da literatura brasileira e incluindo o negro como um fator etnoantropológico importante em nossa formação cultural passava a usar o termo etnografia aparentemente por julgálo mais abrangente e distinguindoo implicitamente do termo antropologia Diz ele em 1888 que o concurso das diversas raças no espetáculo de nossa história problema peculiar de etnografia brasilica foi a base de todos os meus trabalhos de crítica literária 1953 Criticando a ênfase exagerada que os românticos tinham dado à contribuição do índio para nossa formação como povo insistirá nos três povos antropológica e etnograficamente distintos que entraram nessa formação o português o índio e o negro Embora nunca mencione a definição de Balbi 1826 Silvio Romero talvez acentue no uso do termo etnografia a conotação de classificação dos grupos humanos através de sua língua que ele originalmente possuía talvez a mesma razão da escolha do termo para nomear a seção entregue a Gonçalves Dias na Comissão Científica Se à etnografia parece ficar reservada a definição cultural de um grupo humano antropologia nos textos de Silvio Romero parece referirse exclusivamente ao domínio do biológico nessa definição Esta é também a maneira como Nina Rodrigues vai utilizar a palavra desde as epígrafes como antropologia patológica ou antropologia criminal que encimam seus artigos sobre mestiçagem ou estudos de craniometria na Gazeta Médica da Bahia passando por As Raças Humanas e até Os Africanos no Brasil Ao justificar sua análise do vocabulário das línguas africanas faladas no Brasil Nina Rodrigues parece dar ao termo etnografia a mesma conotação aqui sugerida para o uso dele por Silvio Romero afirmando que o assunto sai dos domínios restritos da linguística para o domínio mais geral da etnografia e da história 1977126 Quanto a Euclides da Cunha todo um capítulo de Os Sertões era dedicado à complexidade do problema etnológico no Brasil no qual mencionando os tipos antropológicos de graus dispares nos atributos físicos e psíquicos que contribuíram para a formação da nossa raça criticava as teorias em voga entre os nossos antropólogos Ai são considerados igualmente discutíveis o branqueamento futuro previsto por Silvio Romero a extensão da miscigenação cultural apresentada por ele e por Nina Rodrigues ou o nativismo de Gonçalves Dias Diz Euclides Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único quando há certo muitos E conclui Não temos unidade de raça Não a teremos talvez nunca Invertemos sob este aspecto a ordem natural dos fatos A nossa evolução biológica reclama a garantia de evolução social 195763 Para ele o mulato dominava no litoral enquanto que no sertão o tipo que prevalecia era o curiboca ambos tendo no entanto o branco como denominador comum Mas Euclides acabava por concordar com Nina Rodrigues no trecho que chama de um parêntese irritante ao afirmar que o mestiço dada a mistura de raças mui diversas é quase sempre desequilibrado Diz ele É que são inviOLáveis as leis do desenvolvimento das espécies e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior se não há esforços que consigam do africano entregue à solicitude dos melhores mestres o aproximarse sequer do nivel intelectual médio do indoeuropeu porque todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança como compreenderse a normalidade do tipo antropolôgico que aparece de improviso enfexando tendências tão opostas 195798 Quanto ao sertanejo graças ao seu isolamento É um retrógrado não é um degenerado Repetindo as conclusões de Nina Rodrigues a respeito de Antonio Conselheiro e seus seguidores já enunciadas nos estudos sobre o bandido negro Lucas da Feira e o regicida Marcelino Bispo Euclides da Cunha afirmara a mesma crença do médico na herança biológica de traços culturais Diz ele O fator étnico preeminente transmitindolhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização E se classificava Antonio Conselheiro como doente nos mesmos termos utilizados por Nina Rodrigues parecia distinguir as duas faces do argumento deste quando afirma Evitada a intusão dispensável de um médico um antropologista encontráloia normal marcando logicamente certo nível da mentalidade humana recuando no tempo fixando uma fase remota de evolução O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado na fase persecutória ou de grandeza o segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização um anacronismo palmar a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos 1957133 Euclides parece ter lido melhor os artigos de Nina Rodrigues sobre o tema do que muitos dos seus discípulos Para todos eles em suma e observadas algumas variações antropologia etnografia e etnologia eram sinônimos de pesquisas ou abordagens que levaram inevitavelmente a pensar a questão da nossa raça isto é do povo brasileiro E ainda que nenhum deles utilizasse esses termos para se referir a uma determinada especialidade ou disciplina parece claro que o campo de estudos que eles cobriam correspondia ao da questão racial Antes de termos tido antropólogos diplomados tivemos então intelectuais que se preocuparam com uma antropologia do brasileiro ainda que suas definições não fossem as nossas e ainda que o sistema educacional não lhes oferecesse a possibilidade de especialização neste campo hoje reconhecido como pertinente às ciências sociais E independentemente do objetivo de descobrirmos predecessores ou reconstituirmos um fio comum na argumentação a respeito dos objetos dessa ciência social parece relevante observar que a chamada geração de 70 abriu perspectivas novas na vida intelectual de seu tempo ao se interessar pela questão da literatura da política ou da religiosidade de membros da comunidade nacional que não eram considerados como parceiros no jogo político Antes de ser pensada em termos de cultura ou em termos econômicos a nação foi pensada em termos de raça Dominante a noção de raça não excluía no entanto uma reflexão a respeito da economia da política ou da cultura mas as subordinava ao âmbito de sua discussão Talvez justamente por ser dominante esta é uma noção quase sempre implícita é difícil encontrar uma definição do que estes autores entendiam por raça a não ser indiretamente ou através de suas propostas políticas indiscutivelmente racistas Temse afirmado que uma ideologia racista teria sido desnecessária inútil no Brasil uma vez que os negros estavam aqui como que naturalmente apartados de qualquer processo de decisão social e que essa sua invisibilidade política aliada à ascensão de alguns indivíduos negros foi o que deu origem ao mito da democracia racial compartilhado pela população e pela elite dominante Degler 1971 Skidmore 1976 Costa 1977 Hasembalg 1979 Na Europa ou nos Estados Unidos inteiramente dedicados à construção de uma sociedade burguesa teria sido necessário erguer uma barreira científica contra a igualdade e a democracia postulados do liberalismo vigente que servisse como justificativa ideológica das desigualdades sociais e da exclusão econômica de parcelas da população definidas por sua incompleta capacidade de participação naquele universo de cidadãos iguais Se nos Estados Unidos essa barreira cumpriu a função de justificar a exclusão do mercado de trabalho de toda uma parcela de sua população nos países imperialistas europeus ela teria facilitado a exploração econômica de povos considerados inferiores No Brasil esta justificativa teria sido inútil e desnecessária uma vez que o liberalismo sendo aqui apenas um adorno social um privilégio de classe ou um discurso estratégico não havia também o risco concreto de deslocamento das classes dominantes pela maioria excluída de voz e voto nos processos de decisão social Dada ainda a existência de uma estrutura de relações sociais apoiada no paternalismo ou no clientelismo vigente entre dominantes e dominados no período de transição da escravidão para o trabalho livre e uma fraca constituição do mercado de trabalho o resultado teria sido uma política de persuasão moral Hasembalg 1979 como elemento determinante na manutenção do sistema de desigualdades sociais Ainda que se possa concordar com a observação de que o favor tenha sido uma mediação universal Schwarz 1977 em nossa sociedade o que de resto não implica em exclusão da violência nem os proprietários mais seguros de sua clientela terão deixado de ouvir atentamente as recomendações de Taunay em seu Manual do Agricultor Brasileiro 1839 Vigilância sem punição é ilusão A punição deve ser escolhida com moderação aplicada razoavelmente conforme a qualidade e a conduta do delinquente e então executada em plena vista de todos os escravos acompanhada de grande solenidade de maneira que a punição de um escravo ensinará e atemorizará os outros Stein 1961 Este conselho que parece ter sido seguido à risca por grande parte dos proprietários de escravos era também coerente com o Código Criminal do Império de 1830 no qual ao lado da extinção das penas infamantes das Ordenações Filipinas se afirmava a manutenção da pena de açoites destinadas aos escravos Talvez se passe com o clientelismo e o paternalismo o que LéviStrauss 1962 afirmou ter ocorrido com o totemismo a ênfase na representação de uma situação de modo a diferenciála muito nitidamente de outras pode levar ao exagero sobre o seu alcance Seja como for as relações entre senhores e escravos os cidadãos e nãocidadãos por excelência certamente não excluíam de seu quadro nem a violência nem a presença de uma legislação discriminatória que deixaria de existir apenas no final do século 19 Antes de se argumentar a respeito da inutilidade de um sistema de segregação racial seria necessário comprovar sua inexistência O que se não implica retornar a um modelo historicista tampouco significa desconhecer a importância da história daquelas relações para a explicação das desigualdades sociais que se apoiavam sobre distinções raciais especialmente num período em que essa história era o presente dos homens que trabalhavam para manter essas desigualdades 30 Em todo o caso não parece ter sido apenas pela persuasão ideológica apoiada em relações de favor entre as raças que os negros e seus descendentes foram socialmente excluídos da participação de vários setores da vida pública brasileira mas também pela manutenção de uma política autoritária em cuja definição a presença da discriminação não pode ser esquecida Essa exclusão parece ter sido também o resultado de uma atuação coerente apoiada por um racismo científico que legitimou iniciativas políticas seja no nível nacional como no caso dos privilégios concedidos à imigração que tiveram como consequência uma entrada maciça de brancos no país seja em nível regional com políticas específicas de repressão das atividades religiosas ou culturais dos negros como em Pernambuco através da ação do Serviço de Assistência a Psicopatas que na década de 30 se especializou na internação e controle das lideranças religiosas do Recife Se não foi explicitado em leis civis discriminatórias como a segregação racial norteamericana o racismo enquanto crença na superioridade de determinada raça e na inferioridade de outras teve larga vigência entre os nossos intelectuais no período do final do século passado e início deste sendo o ponto central de suas análises a respeito de nossa definição como povo e como nação O racismo de Nina Rodrigues tantas vezes chamado a desqualificar suas pesquisas empíricas era partilhado por quase todos os intelectuais importantes de sua geração os quais não só citavam os mesmos autores de Buckle a Gobineau como colocavam a questão racial nos mesmos termos embora nem sempre concordassem com as consequências dessa colocação A tônica de suas manifestações era a analogia que estes intelectuais estabeleciam entre raça e nacionalidade e a definição de nosso povo como uma população de mestiços Num artigo publicado no Jornal do Comércio do Rio em 1903 e que seria reproduzido trinta anos mais tarde como a introdução a Os Africanos no Brasil Nina Rodrigues afirmava Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não pode deixar de impressionar a possibilidade da oposição futura que já se deixa entrever entre uma nação branca forte e poderosa provavelmente de origem teutônica que se está constituindo nos estados do Sul donde o clima e a 31 civilização eliminarão a raça negra ou a submeterão de um lado e de outro lado os estados do Norte mestiços vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e pronta mas associada à mais decidida inércia e indolência ao desânimo e por vezes à subserviência e assim ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas as explorações de régulos e pequenos ditadores É esta para um brasileiro patriota a evocação dolorosa do contraste maravilhoso entre a exuberante civilização canadense e norteamericana e o barbarismo guerrilheiro da América Central E essa visão nos libertará estou certo da insânia de que um sentimentalismo doentio e imprevidente já pensou em nos querer contaminar Não se pode qualificar de outro modo a pretensão de atrair para o Brasil a imigração dos negros americanos Se por extrema infelicidade nossa semelhante aberração de um sentimentalismo criminoso pudesse ser algum dia outra coisa do que aquilo que por felicidade realmente é uma utopia a todos os respeitos sem possibilidade de execução prática no préstimo de um protesto contra a premeditação desse atentado contra a nossa nacionalidade encerrariam os presentes estudos a maior recompensa que ao autor fora lícito esperar quaisquer que pudessem ser os dissabores dele decorrentes Nina Rodrigues 19778 Esta não era a preocupação localizada de um intelectual de província ventilada em nível nacional no ano anterior numa conferência realizada no Rio de Janeiro Silvio Romero dissera quase a mesma coisa estendendo a sua crítica à imigração não controlada Em tais condições se estes são os ensinamentos da história se a nossa nacionalidade é uma nacionalidade lusoamericana e se ela quer continuar a ser o que é para ficar sendo alguma coisa e não se pode conceber que não o deseje porque este monstruoso fato seria único em toda a vida da humanidade se não chegamos ainda a um tal grau de loucura que prefiramos a nós mesmos os estrangeiros isto é os italianos e os alemães que são os que para cá imigram em massa e para os pontos determinados e escolhidos do país se não desejamos erigir em princípio a mania do alienigismo se não nos queremos transformar em outros tantos Calabares preferidores de raças estranhas à nossa própria raça se por outro lado não podemos eficientemente contar com o elemento puramente indígena primitivo porque este além de muito reduzido achase expresso nos altos e longínquos recantos do oeste se também não podemos mais contar com o elemento africano porque o tráfico felizmente acabou nem o ideal de virmos a constituir um novo Haiti ou um outro São Domingos é digno de ser imitado se tudo isto é a verdade irrefragável não temos outro recurso senão apelar para um reforço do elemento português já que europeus de outras origens quaisquer não querem vir cá espalharse um pouco por toda parte e os das duas procedências que nos enviam imigrantes por nefastos erros da aglomerados nas belas regiões do Sul e são hoje um perigo permanente para a integridade da pátria S Romero 1979215 ênfase original Embora discordasse de Silvio Romero em relação à mestiçagem considerando erro deplorável reconhecer a utilidade relativa do cruzamento afrolusitano em que se vai absorvendo o elemento negro da nossa população já que isto apenas ocasionaria uma perda de tempo e de energia para a raça branca além de não acreditar no branqueamento futuro da população Nina Rodrigues colocava a questão nos mesmos termos em que Silvio a analisava Capacidade cultural dos negros brasileiros meios de promovêla ou compensála valor sociológico e social do mestiço árioafricano necessidade do seu concurso para o aclimatamento dos brancos na zona intertropical conveniência de diluílos ou compensálos por um excedente de população branca que assuma a direção do país tal é na expressão de sua rigorosa feição prática o aspecto por que no Brasil se apresenta o problema o negro Nina Rodrigues 1977264 ênfase original Silvio Romero parece ter sido de fato o seu interlocutor preferido excluídas as citações dos autores que tratavam teoricamente da questão da mestiçagem é a ele que Nina Rodrigues mais se refere às vezes para concordar e muitas vezes discordando de suas opiniões Na famosa questão de se Bantos ou Sudaneses contribuíram com maior proporção de seu sangue para a constituição do nosso povo por exemplo eles se separam radicalmente Mas mantêm em comum a necessidade desta interrogação como relevante Silvio Romero por seu lado parecia fazer questão de desconhecer o trabalho de pesquisa de Nina Rodrigues talvez porque não lhe agradassem as conclusões que o médico maranhense tirava de suas investigações empíricas sobre o presente da miscigenação quando ele preferia pôr o acento numa futura população brasileira já branqueada talvez porque desde 1894 Nina Rodrigues se mostrasse em frontal desacordo com ele e dava muita ênfase aos argumentos de seu arquiinimigo José Veríssimo Sobre o Animismo Feiticista publicado em capítulos na Revista Brasileira do Rio em 1896 e sobre um artigo que seria incluído em Os Africanos no Brasil assim se expressava Silvio Romero Depois de proferido o citado rebate sobre o esquecimento em que sempre no Brasil se deixou o estudo de nossas origens africanas apareceram uns pequenos escritos na Bahia acerca do feiticismo dos pretos daquela zona e de alguns levantes que ali se deram por eles promovidos em fins do século XVI e nas primeiras quatro décadas do século seguinte Não deixava de ter algum interesse essas achegas para o conhecimento das aludidas origens mas evidentemente por esse caminho iremos ter às produções anedóticas ao gosto das já referidas a respeito dos índios O que havemos mister é conhecer à luz dos novos processos da ciência social o estado exato das sociedades africanas que enviaram representantes ao Brasil e a parte com que entraram na formação da nova nacionalidade aqui fundada Esta é a questão o mais é esgrimir no ar S Romero 1953238 ênfase original Capistrano de Abreu outro contemporâneo de Nina Rodrigues e que compartilhava com Silvio Romero a crença na preeminência dos grupos Bantos na nossa formação étnica fez em carta um comentário que talvez explique o desconhecimento sistemático que ambos apesar de interessados na questão afetavam pelas pesquisas de Nina Rodrigues preferindo citar os pesquisadores ingleses na África ou trabalhos de norteamericanos Escrevendo a Guilherme Studart em abril de 1906 dizia Capistrano Não achei nada de interessante no trabalho de Nina Rodrigues sobre Palmares em geral não posso tolerálo depois que profanou o crânio do Conselheiro felizmente desagravado pelo incêndio e afirmou que nosso patrício queria passar por novo Messias C de Abreu 1977175 Comentário de historiador mas também uma boa ilustração a respeito de como era vista a especialidade a que Nina Rodrigues se dedicava e que ele próprio qualificava de mutiladora Outra possível explicação para este pretenso desconhecimento poderia estar na formação e no objetivo da produção intelectual destes três autores Silvio Romero jurista como Capistrano dava como ele ênfase ao conhecimento de nossa história e da história dos contingentes humanos que entraram na nossa formação como povo para situar a questão da inclusão de novas raças na nação brasileira através da imigração vista como determinante de seu futuro Nina Rodrigues apesar de não desconhecer a importância do aspecto histórico da questão estava muito mais diretamente envolvido com as suas manifestações contemporâneas com o cotidiano de sua história presente Talvez por isto o intelectual de sua geração que não sendo médico já que entre estes as idéias de Nina Rodrigues tiveram maior vigência como veremos mais se interessou por seus trabalhos tenha sido Euclides da Cunha também preocupado com a análise de um evento muito próximo Como a raça para Nina Rodrigues o meio para Euclides não era uma abstração ou uma generalidade mas estava no centro de suas preocupações e era uma parte fundamental de sua formação teórica Euclides de certa forma resumiu e ultrapassou o pensamento dos intelectuais de sua época a respeito da questão racial contribuindo também para popularizála através do sucesso nacional que foi Os Sertões Falando sobre as populações sertanejas ele juntava numa frase a preocupação com a história o interesse pelo presente e a percepção da importância da imigração em nosso destino como nação A sua instabilidade de complexus de fatores múltiplos e diversamente combinados aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem as tornam talvez efêmeras destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra Retardatários hoje amanhã se extinguirão de todo Além disto mal unidos àqueles patrícios pelo solo em parte desconhecido deles de todo nos separa uma coordenada histórica o tempo Euclides da Cunha 1957 ênfase original À questão angustiante de como pôr em andamento o progresso numa sociedade que parecia ser por definição refratária a ele todos estes intelectuais evolucionistas em maior ou menor grau responderão com o tempo Ao alerta paradoxal de Euclides Estamos condenados à civilização ou progredimos ou desaparecemos Nina Rodrigues respondia com uma colocação muito pragmática E diante da necessidade de ou civilizarse de pronto ou capitular na luta e concorrência que lhes movem os povos brancos a incapacidade ou a morosidade de progredir por parte dos negros se tornam equivalentes na prática Ao otimismo de Silvio Romero com o branqueamento futuro ele respondia com razões de uma ciência politicamente orientada Os extraordinários progressos da civilização européia entregaram aos brancos o domínio do mundo as suas maravilhosas aplicações industriais suprimiram a distância e o tempo Impossível conceder pois aos negros como em geral aos povos fracos e retardatários lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e remota de sua emancipação social Em todos os tempos não passou de utopias de filantropos ou de planos ambiciosos de poderio sectário a idéia de transformarse uma parte de nações as quais a necessidade de progredir mais do que as imitações monomaníacas do liberalismo impõe a necessidade social da igualdade civil e política em tutora da outra parte destinada a interminável aprendizagem em vastos seminários ou oficinas profissionais A geral desaparição do índio em toda a América a lenta e gradual sujeição dos povos negros à administração inteligente e exploradora dos povos brancos tem sido a resposta prática a essas divagações sentimentais Nina Rodrigues 1977264 A aparente relação de heterogeneidade tantas vezes apontada entre a incorporação vicária da ideologia liberal por nossas elites e seu envolvimento concreto no processo histórico da escravidão também percebida por Nina Rodrigues não se desfaz portanto com a negação do racismo institucionalizado ou a afirmação de uma discriminação sutil As formas específicas que ambos possam ter assumido neste país formas que devem boa parte de sua invenção ou legitimação ao trabalho de membros de nossa elite intelectual ainda esperam por análises localizadas para serem desvendadas Os dados globais a respeito do deslocamento da mão de obra nacional substituída pelos imigrantes desde o final do século passado pouco nos dizem a respeito de regulamentações específicas ou da política implícita ou explícita de admissão do fator racial como um possível critério seletivo da força de trabalho brasileira As referências esparsas a respeito da seleção eugênica na expressão de Gilberto Freyre feita entre os candidatos a funções diplomáticas ou a postos de oficial na marinha brasileira Freyre 1936 são também apenas indicativas da importância deste critério A impossibilidade de uma análise exaustiva das consequências efetivas do racismo ou da discriminação racial não nos impede no entanto de observar a sua vigência como elemento constitutivo da visão dos intelectuais brasileiros sobre o nosso povo na passagem do século O momento em que o negro se tornou livre no Brasil coincidiu não só com a emergência de uma elite profissional que já incorporara os princípios liberais à sua retórica como também com o surgimento de um discurso científico etnológico que tentava instituir para ele uma nova forma de inferioridade retomando os ensinamentos de nossa história escravista recente Invertendo a afirmação de Marx Um negro é um negro Em certas circunstâncias ele se transforma num escravo os intelectuais daquele momento tratavam de transformar escravos em negros isto é de constituílos enquanto categorias de análise deixando entre parênteses em sua passagem de máquinas de trabalho a objetos de ciência Silvio Romero a discussão de sua cidadania Quando Nina Rodrigues acentua a dualidade que apesar de todas as igualdades políticas e constitucionais a etnologia estabelece na nossa população 1935133 o envolvimento dos intelectuais nesse movimento se explicita à ciência caberia desmontar a pretensão de uma suposta igualdade entre os homens justificação ideológica da abolição por exemplo Como dizia Nina Rodrigues Como a extinção do tráfico e da escravidão precisou revestir a forma toda sentimental de uma questão de honra e pudonor nacionais afinada aos reclamos dos mais nobres sentimentos humanitários Para darlhe esta feição impressionante foi necessário ou conveniente emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos No entanto os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de uma geração A ciência que não conhece estes sentimentos está no seu pleno direito exercendo livremente a crítica e estendendo com a mesma imparcialidade a todos os elementos étnicos de um povo Não a pode deter a confusão pueril entre o valor cultural de uma raça e as virtudes privadas de certas e determinadas pessoas Nina Rodrigues 197734 De 1850 em diante a questão que despertava as simpatias e os ódios de uma geração não era apenas a da escravidão ou a da abolição dela mas também a da substituição de braços no mercado de trabalho questão política cuja solução seria encontrada na imigração dirigida de trabalhadores europeus A história da imigração neste período já foi bastante analisada eg Hall 1969 embora a contribuição das convicções sobre a superioridade das raças brancas à política imigrantista ainda não seja muito clara Que estas eram convicções compartilhadas por atores importantes no centro de direção deste processo é exemplo a preocupação expressa por Julio Mesquita Filho com a massa impura e formidável de dois milhões de negros subitamente investida de prerrogativas constitucionais que passou a fazer parte da sociedade brasileira depois da abolição O 13 de maio era também analisado por ele como o rompimento de um equilíbrio político através do qual se mantivera À distância a facção semibárbara da população citado em Carone 1972173 Outros exemplos poderiam ser encontrados nas discussões a respeito da possibilidade de importação de trabalhadores chineses ou sírios mais tarde e na constante reiteração de opiniões da classe política a respeito do que pensavam sobre essa possibilidade15 A imigração de trabalhadores brancos embora colocasse outras questões parece ter sido em suma não apenas uma solução para o problema da escassez de mão de obra que o final do tráfico teria ocasionado mas também uma oportuna possibilidade de reverter as previsões alarmistas de um futuro Brasil negro feitas por alguns observadores nacionais e visitantes estrangeiros nos meados do século passado Nina Rodrigues visitando São Paulo em 1903 e afirmando que lá estava o futuro da civilização brasileira maravilhouse com a solução encontrada pelos paulistas Os próprios paulistas acabaram por achar problemática esta solução problemas que passariam a ser fraseados não mais em termos de raça mas de quebra da unidade psíquica idem ibidem Mais importante do que afirmar a inutilidade de uma ideologia racista no Brasil seria talvez notar que ela se constituiu acompanhando a retórica da igualdade formal de uma prática de manutenção de desigualdades sociais e que embora esta prática tivesse a raça como avatar proposto pela ciência num determinado momento esta não seria sua única maneira de expressarse Isto é observar que o racismo tinha seu lugar assegurado dentro de um sistema teórico e político compatível com sua existência Em termos teóricos a ciência da época tinha preparado um terreno onde o racismo se acomodava muito bem Nina Rodrigues parece apenas ter levado às últimas consequências os supostos científicos de seu tempo Quem sabe por ter tentado comprovar empiricamente as crenças de sua geração é que recebeu críticas dos que preferiam deixar ao futuro a solução dos problemas que enunciavam ou que tratavam deles num nível menos científico Silvio Romero por exemplo permitiase num ensaio polêmico chamar o crítico José Veríssimo de tapuio matreiro cafuso decadente feioso caboclo e outros apodos do tipo Romero 1979 E talvez não tenha sido por acaso que alguns intelectuais da passagem do século que explicitamente combateram o racismo em sua produção intelectual como Lima Barreto ou Manuel Bonfim tenham sido ridicularizados enquanto viveram e excluídos de instituições que formal ou informalmente tinham algum significado de aceitação de seu papel Em termos políticos seria preciso refletir um pouco mais cuidadosamente a respeito das implicações que tem utilizar o sistema legal como indicador de presença ou ausência de racismo ou de discriminação racial ou outras em nossa sociedade O legalismo filho dileto do liberalismo da época parece terse instalado aqui curiosamente amolecido por um conjunto de usos sociais e políticos que o contradiziam a cada passo É tão difícil definilo pela sua face repressiva ignorando a persuasiva como analisar o cidadão deixando de lado o senhor Ou deixar de observar que com frequência o senhor depositário do conhecimento de táticas repressivas mais antigas seria partidário da persuasão e que o cidadão legalista e contratual em princípio seria defensor da repressão16 Nina Rodrigues exemplificava esta incongruência ao observar que se se levasse em conta as análises científicas das diferenças raciais na determinação da responsabilidade penal a lei deixaria de cumprir com seu papel de repressão da criminalidade étnica ou primitiva uma vez que a ciência definia seus agentes como irresponsáveis Para os políticos ou para os juristas este problema poderia ser fraseado nos termos utilizados por M Foucault 1975 para descrever a sociedade contratual num país onde ela aparentemente funcionou como legislar uma igualdade formal cotidianamente desmentida nas relações sociais concretas como estabelecer uma homogeneidade como regra geral se a regra social parecia ser o heterogêneo A percepção deste dilema não só faz de Nina Rodrigues um exemplar das aflições do intelectual brasileiro do momento como aponta para os paradoxos que presidiram o nascimento das ciências sociais no Brasil e que ele e outros autores tentaram resolver apelando para um denominador teórico que não pusesse em questão as desigualdades sociais ao mesmo tempo que lhes emprestava algum sentido a ciência evolucionista A sua figura ambígua foi uma perfeita ilustração daqueles paradoxos intelectual urbano filho de escravocrata e plantador mas testemunha de Canudos da Abolição e do primeiro surto brasileiro de industrialização nascido e criado no Império e cidadão da República aos vinte e sete anos produto de um ensino teórico e generalizante além de ornamental mas fervoroso partidário da aplicação empírica da ciência da especialização e da profissionalização e assim por diante Várias dessas características eram compartilhadas por outros intelectuais de sua geração mas poucos dentre eles aliaram uma atuação tão constante na área da institucionalização da ciência às teorias científicas que defendiam A crescente especialização que ocorria na Medicina na época aqui focalizada refinando o conhecimento de determinadas questões e levantando outras não encontrou no entanto correspondência nas ciências sociais que até 1930 não tinham uma base institucional que delimitasse seu campo de atuação e estavam ainda vinculadas a outras áreas do conhecimento No caso da antropologia sua estreia vinculacão com a medicina tanto teórica como pela formação de nossos primeiros antropólogos além de nos levar a enfatizar as estratégias retóricas médicas pode também nos fazer esquecer quão frágeis eram as bases institucionais da própria medicina e quão incipientes suas agências de controle efetivo da população controle que de qualquer forma nunca esteve apenas nas mãos da ciência Na Europa ou ao menos na França onde a ligação de ambas também era notável Clark 1973 parece ter havido uma relação entre a extensão primeiro das instituições médicas e o refinamento depois de mecanismos disciplinares com o aparecimento das especialidades o caso mais analisado sendo o da psiquiatria Foucault 1972 Castel 1978 A espacialização institucional da doença isto é o seu mapeamento via instituições médicas mencionada por Foucault e em pleno andamento na França já no século 18 era o terreno sobre o qual se assentava não só o controle empírico efetivo da população como se assenta hoje a possibilidade de generalização teórica a respeito dessa rede de controles Foucault e Castel empreendem suas análises a partir dessa situação e é ela que torna possível também a oposição quase termo a termo do cidadão atuando no quadro do legalismo com sua definição de regras universais e sua correção do desvio via repressãocoerção e do perito atuando no quadro da disciplina que utilizaria tecnologias brandas de controle via persuasãomanipulação No Brasil além da fragilidade institucional da medicina as noções de cidadania e de perícia surgiram no interior de uma mesma constelação ideológica definida pelo liberalismo mas também pelo positivismo e pelo evolucionismo e para uso efetivo de uma pequena parcela da população o que torna problemática a sua análise naqueles termos Se a cidadania nunca foi estendida nem ideologicamente aos membros da nossa sociedade como um todo os defensores da perícia os especialistas que começaram a atuar desde meados do século passado no país poderiam ou não tomála em conta em suas discussões e em qualquer caso essa incorporação quando ocorreu parece ter sido sempre mais retórica do que referida à prática dos peritos Na análise da atuação de Nina Rodrigues como perito médicolegal e de sua posição ambígua de crítica ao liberalismo e ao positivismo e em defesa da verdadeira liberdade e dos direitos do cidadão será importante a compreensão do contexto social da emergência das especialidades médicas no Brasil frequentemente deixado de lado pelos que analisam a questão As pesquisas que têm sido feitas a respeito da medicalização da sociedade brasileira por exemplo ao utilizar o trabalho de M Foucault como parâmetro teórico trazem seus conceitos para esta discussão Machado e outros 1978 Costa 1976 1979 Analisando as várias técnicas de controle do corpo que se cristalizaram em disciplinas M Foucault contrasta a sua lógica com a lógica do contrato Aparentemente as disciplinas não constituem nada mais do que um infradireito Parecem prolongar até um nível infinitesimal das existências singulares as formas gerais definidas pelo direito ou ainda aparecem como maneiras de aprendizagem que permitem aos indivíduos se integrarem a essas exigências gerais Constituiriam o mesmo tipo de direito fazendoo mudar de escala e assim tornandoo mais minucioso e sem dúvida mais indulgente Temos antes que ver nas disciplinas uma espécie de contradireito Elas tem o papel preciso de introduzir assimetrias insuperáveis e de excluir reciprocidades Em primeiro lugar porque a disciplina cria entre os indivíduos um laço privado que é uma relação de limitações inteiramente diferente da obrigação contratual a aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de contrato a maneira como ela é imposta os mecanismos que faz funcionar a subordinação reversível de uns em relação aos outros o mais poder que é sempre fixado do mesmo lado a desigualdade de posições dos diversos parceiros em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o laço contratual e permitem sistematicamente falsear este último a partir do momento em que tem por conteúdo um mecanismo de disciplina M Foucault 1977b 195 No Brasil mesmo antes da constituição até hoje em processo das instituições médicas e outras para tornar os corpos dóceis disciplinados já estava socialmente assegurada a clara desigualdade de posições dos diversos parceiros sem no entanto referilos a um regulamento comum à mesma lei Quando a lei começou a ser definida como o terreno de expressão de igualdades sociais impossíveis de serem mantidas na prática começou também o lento trabalho jurídico de formalização desta ambigüidade domínio dos casuísmos que só despertam maior atenção quando tratam de temas políticos no sentido estrito e que ainda necessitam de uma análise histórica A normalização dos comportamentos sociais lenta e sutilmente encaminhada por táticas disciplinares na Europa ou nos Estados Unidos não precisou aqui como lá competir a princípio com os poderes da lei ao contrário as disciplinas se constituíram dentro de um quadro jurídico cujos termos de definição eram equivalentes aos seus Certamente ocorreram conflitos entre alguns agentes da lei e certos arautos da disciplina mas acredito que eles tenham tido mais a ver com a distribuição local de poder do que com a heterogeneidade entre o modelo legal e o modelo disciplinar de regência das relações sociais Se as utilizações sociais da medicina têm podido ser vistas como exemplos desse modelo disciplinar a psiquiatria a saúde pública permitindo falar numa medicalização geral da sociedade talvez a análise da constituição de um campo médico intimamente ligado ao jurídico como é o caso da medicina legal contribua para a discussão no sentido de ampliar a compreensão do modo específico pelo qual se tem tentado disciplinar a sociedade brasileira Nossa sociedade se constituiu historicamente como um espaço onde as desigualdades se expressaram tanto nas leis como nas normas sociais em vigência desde o período colonial A tentativa de compreender a acumulação de um conhecimento empírico a respeito da população brasileira que começa a se definir no século 19 e do qual a Escola Nina Rodrigues é apenas um ponto numa constelação mais ampla terá que manter essa história como seu referencial e só se tornará inteligível se observarmos a atuação da medicina como um dos campos do saber onde esse conhecimento vai se cristalizar Não foi com a institucionalização da medicina que se iniciou entre nós uma tecnologia de controle dos corpos dos homens embora ela tenha tido aí um importante papel a desempenhar Este saber é mais antigo e interdisciplinar e se pode ser analisado nos termos utilizados no debate contemporâneo sobra a história das especialidades médicas faz parte da própria história da nossa constituição política Deixar de lado essa complexidade de relações entre as várias ciências na história do controle das populações no Brasil é perder um componente importante de sua inteligibilidade porque só assim poderemos observar as normas dessa sociedade em ação no momento em que começam a cristalizarse em leis e instituições próprias A institucionalização em si mesma em qualquer terreno certamente propiciou o refinamento de táticas de controle das populações mas ainda que certos princípios gerais do chamado poder disciplinar possam ser observados muito cedo em nosso país é só muito tarde em relação a outros países que se instalarão aqui os modos sutis da disciplina e só em algumas áreas os modos mais impositivos e direitos da autoridade tendo tido aqui uma predominância histórica Até hoje a brandura da tecnologia disciplinar para usar a expressão de Castel 1978 se concretiza apenas em alguns espaços institucionais e ainda alcança poucos bastaria comparar as análises de Foucault Castel ou Donzelot 1977 sobre a refinada teia de controle que se estabelece em sua sociedade sobre crianças loucos ou presidiários com o que sabemos do tratamento dispensado a estas categorias sociais no Brasil para verificar isso Assim se a substituição das estratégias de vigilância e punição dos escravos e dos colonos mais tarde de repressão e segregação de loucos delinqüentes ou crianças pela prevenção e correção de desvios do comportamento são estratégias reais utilizadas no controle da população são também estratégias retóricas A substituição da repressão pela prevenção ou correção típica do discurso disciplinar segundo Foucault não passará em muitos casos de uma retórica afinada aos reclamos da ciência contemporânea dificilmente posta em prática numa sociedade tão indisciplinada A época de maior repressão às primeiras manifestações políticas da classe trabalhadora urbana coincidiu também com uma grande produção intelectual de pesquisas sutis para detectar a periculosidade virtual de membros dessa classe crianças homossexuais prostitutas loucos prisioneiros pesquisas cujos resultados seriam no entanto e no contexto social mais amplo ultrapassadas pelas menos sutis medidas de segurança por exemplo inscritas no Código Penal de 1940 produto do Estado Novo Isto não quer dizer que técnicas brandas de correção do comportamento não tenham sido utilizadas em determinadas áreas de atuação dos médicos o trabalho de Arthur Ramos com os escolares do Rio de Janeiro será um bom exemplo dessa utilização Mas acompanhando a trajetória de algumas aplicações dessas técnicas é possível sugerir que ao invés de introduzir diferenças onde havia o suposto da igualdade elas serviram antes para reforçar uma arraigada suposição de desigualdades fosse qual fosse o critério científico utilizado para nomeálas Em suma o mais poder invocado por M Foucault como contribuição específica das disciplinas à distorção da noção de igualdade não parece poder ser enunciado na história política nacional pela incompatibilidade entre o laço contratual e o laço disciplinar a lei e a norma no sentido que lhes dá Foucault foram aqui complementares partes inseparáveis de um mesmo conjunto Entre o legalismo e a disciplina dois termos em que parece deterse mais particularmente a análise contemporânea da constituição das especialidades médicas e para compreender a conexão entre ambas na sociedade brasileira é preciso instalar o terceiro termo da autoridade não apenas legalmente estabelecida ou resguardada por axiomas jurídicos mas também a autoridade pura e simples decorrente de uma posição de poder ou de força A legalização a posteriori dessas posições é outra constante em nossa história política o que faz com que o principal obstáculo às sutilezas disciplinares sejam não artigos legais mas atuações nitidamente fora da lei Isto não implica negar a existência até hiperbolica de dispositivos legais regulando as relações sociais mas reconhecer seu alcance limitado como explicação de determinadas situações em nosso contexto histórico e político Acreditar então que a ausência de um equivalente nacional da lei Jim Crow por exemplo possa indicar a inexistência de discriminação racial ou servir como demonstração de sua sutileza seria ignorar um dado importante na compreensão da chamada questão racial no Brasil Isto é que a atuação política de membros de nossas classes dominantes dentro de um contexto histórico específico levou a uma efetiva mudança na composição da população brasileira e deu uma determinada orientação às relações interraciais antes de preocuparse ou sem se preocupar com a expressão legal dessas alterações Não é preciso supor uma decisão maquiavélica e concertada das lideranças políticas no sentido de branquear a população brasileira ou de excluir os negros do mercado de trabalho para reconhecer a importância de distinções raciais ainda que não formuladas em dispositivos jurídicos para as relações sociais como um todo e suas consequências para a participação dos negros e seus descendentes na vida brasileira Resumindo o contexto intelectual político e institucional em que se desenrola a história da constituição da Escola Nina Rodrigues deve ser visto como uma constelação em que esses fatores ou elementos interagem uns com os outros assim como nossos intelectuais eram também políticos no sentido estrito ou mais amplo da expressão e fundadores de instituições Sua atuação certamente obedecia a injunções do momento a interesses localizados e à própria situação da ciência no período histórico em que viveram Em sua produção intelectual eles recorrerão assim e de acordo com objetivos ou convicções muito específicos ora aos fundamentos teóricos da ciência que professavam ora aos interesses políticos aos quais estavam vinculados ou a projetos institucionais que desejavam ver realizados o que às vezes faz o desespero de quem tenta encontrar um sentido coerente em suas realizações Mas mesmo que este sentido possa ser lido a posteriori em sua atuação seja alocandoos na posição que quase sempre ocuparam de defensores do status quo vigente seja apontando as pequenas iniciativas autônomas que parecem distinguilos do retrato definitivo do intelectual de uma sociedade subdesenvolvida como inevitável epígono de teorias estrangeiras ou dos interesses das classes dominantes ele não se desenha como um sentido linear unívoco ou prédeterminado Ao contrário sua atuação é múltipla contraditória e às vezes surpreendente Ao procurar o racista em Nina Rodrigues encontrei um intelectual genuinamente preocupado com as contradições em que o colocavam suas informações teóricas quando comparadas com suas observações empíricas Ao acompanhar a trajetória de seus discípulos tentando juntar os fios de uma tradição sempre evocada como justificadora de suas ações encontrei muito mais rupturas do que continuidades entre sua produção e a de seu alegado mestre as continuidades sendo ironicamente mais visíveis em linhas de pesquisa não explicitamente referidas à tradição da escola Analisando um grupo de médicos me deparei mais frequentemente com criminólogos psicólogos educadores políticos e até literatos Todos eles explícita e constantemente preocupados com os problemas sociais de seu país ainda que procurassem legitimar essa preocupação enquadrandoa numa prática que por ser definida como profissional e científica lhes aparecia como desvinculada de interesses particulares e dirigida à procura do bem geral Tanto na geração de Nina Rodrigues como na de seus discípulos o país estava se reorganizando como nação reorganização política e econômica que ele e seus seguidores ou ignoram ou se as mencionam em seus trabalhos é para deplorála No caso de Nina Rodrigues o que parecia deplorável era a ausência de uma centralização política nos primeiros anos da República a possibilidade de autonomia concedida aos municípios nas questões de saúde e educação por exemplo limitando o alcance de reformas políticas que poderiam ser cientificamente orientadas por profissionais qualificados da capital dos estados ou do país Apesar de reconhecer explicitamente as diferenças regionais e utilizar seus conhecimentos para desmentir observações feitas por médicos do sul a respeito dos negros por exemplo Nina Rodrigues era favorável a uma centralização do estado nacional visão muito pragmática já que afirmava descentralizador com o Império sou unitário com a República E apesar de durante toda a sua carreira ter saído apenas três vezes do NorteNordeste para estudar no Rio vir a São Paulo e ir a Paris onde morreria seria um equívoco analisar sua contribuição apenas em termos regionais Não só a Faculdade de Medicina da Bahia tinha um peso institucional reconhecido entre os médicos do Rio onde Nina Rodrigues publicou incansavelmente seus trabalhos de pesquisa como ele pretendia explicitamente dar um alcance nacional à sua produção intelectual e a seus esforços pela profissionalização do perito médicolegal A luta pela qualificação profissional foi um dos aspectos de sua atuação que o tornaram conhecido no âmbito nacional Ele esclareceu sua posição a esse respeito numa aula em que denunciava o escândalo que representava a interpretação da Constituição de 1891 feita particularmente pelos positivistas a respeito da liberdade do exercício profissional Sua resposta aos que liam na Constituição a possibilidade de exercer uma profissão sem a qualificação oferecida pelas instituições estabelecidas foi bastante aplaudida na época e ganhou repercussão nos círculos médicos do Rio e de São Paulo onde foi providenciada a sua impressão e distribuição em panfleto avulso Tratavase no entanto não só de impedir o acesso de desqualificados no sentido estrito da expressão ao exercício da medicina como de demonstrar a importância da intervenção do Estado numa sociedade em que ainda coexistem exescravos e exsenhores em que a República acaba de ser proclamada pelo Exército e pela Armada em nome da Nação que precisa providenciar sobre a distribuição artificial de colonos para garantir a sua continuidade histórica e etnica que carece de unidade etnica para poder despreocuparse de lutas de raças que no período de formação em que se acha é obrigada a ter vistas voltadas imediatamente para os povoa que a cercam em condições iguais às suas uns ambiciosos outros de expansão colonial em que as condições regionais e climáticas a fusão incompleta de raças diferentes não permitindo a segura previsão de sua futura constituição definitiva finalmente que se acha presa á Europa pelas necessidades industrias mais comezinhas pela importação de todos os elementos civilizadores Nina Rodrigues 1899a2122 Uma sociedade enfim na qual o problema étnico que se multiplica nesta frase parecia ser a razão principal do desejado controle pelo Estado e ponto crucial ao qual se subordinariam as outras questões na visão de Nina Rodrigues a respeito da sociedade brasileira Ele próprio não viveria para ver completada sua iniciativa de institucionalizar a medicina legal mas deixou seguidores devotados que o fariam em seu nome E se todos eles trabalharam para o estado o que os discípulos iriam deplorar era a excessiva centralização ocorrida depois de 1930 a nova República na expressão de Gilberto Freyre quando teriam sido afastados do cenário político justamente os homens qualificados de quem Nina Rodrigues reclamava maior interesse pela coisa pública particularmente os baianos Ironicamente o grupo social promotor da criação da escola era em grande parte composto por baianos e o alcance nacional de algumas de suas atividades só pode ser atingido justamente devido à centralização promovida a partir da revolução de 30 época em que vários membros do grupo ampliaram a sua atuação E embora nos textos de seus discípulos a luta de classes vá substituir a luta de raças mencionada por Nina Rodrigues a questão da composição racial de nossa população continuará a merecer o seu interesse Arthur Ramos comentando os movimentos negros de sua época e analisando a contribuição cultural de vários grupos étnicos na sociedade brasileira e Afrânio Peixoto discutindo questões de legislação trabalhista ou fazendo a propaganda da higiene pública ilustrarão de outras maneiras com uma outra linguagem este interesse A economia e a política retoricamente afastadas na construção mítica da escola retornam na explicitação da prática profissional de seus membros É a história dessa prática e de seus fundamentos que tentarei acompanhar aqui analisando a produção teórica e a atuação de alguns membros desta Escola sempre que possível apontando para as articulações que parecem existir entre este e outros grupos de intelectuais da época Se esta história é a de um grupo de intelectuais que no processo de se constituir se diferencia de outros grupos criando novos campos de atuação e eventualmente conseguindo institucionalizálos é também um trecho da história de uma elite mais ampla que extrapola os limites das definições profissionais e inscreve sua presença nas instituições que regulam a vida em nossa sociedade22 2 NEXO A maior dificuldade em reconstruir as relações sociais no âmbito das quais Nina Rodrigues atuava consiste no fato de que as informações que mais desejaríamos obter sobre essas relações são aquelas nunca explicitadas pelos que as viveram justamente porque faziam parte de seu cotidiano de implícitos Se é possível reconstruir a sua trajetória profissional e recuperar boa parte de sua produção intelectual ainda que sua obra nunca tenha sido publicada de forma completa como a de seus contemporâneos Silvio Romero ou Euclides da Cunha há ainda muitas dúvidas a esclarecer sobre sua história de vida Seus escassos biógrafos todos abertamente laudatórios parecem dar mais importância ao fato de que ele recebia os estudantes que o procuravam com um relógio na mão para lembrarlhes o passar do tempo Lins e Silva 1945 ou de que costumava praticar o alemão com uma hamburguesa à rua do Hospício nº 149 Andrade Lima 1980 do que ao levantamento minucioso de suas publicações esparsas ou não traduzidas ao esclarecimento das muitas interrogações a respeito de sua atuação pública ou à verificação de suas relações com os cientistas de outros países indicadas nos elogios repetidos pelos discípulos onde e quando Lombroso o teria chamado de Apóstolo da Antropologia Criminal no Novo Mundo22 A relevância para sua carreira burocrática das posições políticas ocupadas por seu sogro figura importante tanto na Faculdade de Medicina da Bahia como na política local e nacional na passagem do século a extensão de sua colaboração com a polícia e o judiciário aos quais prestou tantos serviços suas relações de amizade com outros médicos da época ou que tipo de relacionamento ele mantinha com os candomblés que visitava com frequência são algumas das muitas questões ainda abertas à especulação Na falta de uma correspondência regular de uma biografia cuidadosa ou de depoimentos de seus contemporâneos que ultrapassem o nível do anedótico temos que nos contentar com as informações espalhadas ao longo de seus trabalhos ou com as explicações deles feitas por seus biógrafos e às vezes distorcidas pela admiração23 respeito do caboclo definido pelo poeta como representante legítimo da nacionalidade brasileira Antecipando as discussões sobre a necessidade de imigração dizia ele em 1852 Esse falso patriotismo caboclo espécie de mania mais ou menos dominante levanos a formular quanto ao passado acusações injustas contra os nossos genuínos maiores desperta no presente antipatias e animosidades que a sã consciência e uma política ilustrada aconselham pelo contrário a apartar e adormecer e no passo que faz conceber esperanças infundadas e quiméricas sobre uma reabilitação que seria perigosa se não fora impossível embaraça retarda e empeca os progressos da nossa pátria em grande parte dependente da imigração da raça empreendedora dos brancos e da transfusão de um sangue mais ativo e generoso único meio possível já agora de reabilitação em Veríssimo 1963 Celso de Magalhães que também condenava o elogio do poeta ao que chamava de caboclagem vadia e indolente recolhendo exemplos da poesia popular brasileira afirmava que eles eram todos originários das tradições da raça conquistadora E apontava para a influência negativa do elemento africano sobre o romanceiro português já que com ele entraram também os seus costumes as suas festas os seus instrumentos o seu fetichismo e até a sua língua Talvez um dos primeiros a descrever um desses costumes ele descreve também a mulata em termos muito semelhantes aos utilizados por Nina Rodrigues vinte anos depois Para quem não sabe o que é a Lavagem dáse a explicação Na festa do Bonfim há o costume antigo de irem os devotos lavar o corpo e o pátio da igreja na Quintafeira precedente ao dia da festa Isto tornouse tradicional e popular Hoje o que acontece é que há uma romaria numerosa nesse dia Reúnemse as crioulas os negros tudo promíscuamente e entre cantigas e esgares meionuas com as cabeças esquentas pelo óleoal das barracas vizinhas 42 com os seios á mostra lúbricas com essa lubricidade nojenta da crioula entre risadas e ditos obscenos começam todos a lavagem Isto enjoa e envergonha Magalhães 1873197345 Se parecia haver quase uma tradição estabelecida no meio intelectual maranhense a respeito da importância da questão das relações raciais Nina Rodrigues aparentemente quebrou alguma regra dela ao se interessar pela pesquisa empírica dessa questão Até hoje é tradição oral em São Luis entre historiadores e descendentes de Nina Rodrigues que uma das razões de sua saída de lá deveuse à má vontade com que foram recebidas suas pesquisas iniciais sobre as religiões dos negros locais Em sua obra encontrei apenas duas menções a essas pesquisas num artigo publicado em francês e nunca traduzido e em Os Africanos no Brasil Apesar de compartilhar do interesse de seus conterrâneos pela problemática da miscegenação racial e se publicava seus artigos também na Pacotilha um dos jornais em que Aluísio Azevedo e outros jovens escreviam em muitos outros aspectos Nina Rodrigues não se parece ao retrato do jovem moderno traçado pelo romancista Seus escritos vão de fato filiarse a uma tradição oposta à inaugurada por Gonçalves Dias ou por O Mulato Se como Aluísio também cultuava o demônio da ciência nas palavras de um bispo local era ao mesmo tempo perfeitamente versado na retórica acadêmica e suas honrarias o tocavam muito de perto Seus textos guardam também um acentuado tom oratório muitos deles tendo sido escritos como aulas a presença de um auditório sendo quase palpável em alguns e explicitamente mencionada em outros E se era a favor da ciência positiva da investigação empírica como última instância na análise de qualquer fenômeno combatue sempre a politica positivista ao mesmo tempo que se manteve um crítico permanente das ilusões da catequese e de várias outras ilusões acalentadas por seus contemporâneos De uma curta passagem pelo Rio de Janeiro onde terminou o curso de medicina e realizou a observação clínica que seria sua tese de doutorado também pouco sabemos O único depoimento dessa época é o necrológico de seu colega maranhense segundo Nina Rodrigues também interessado na patologia da raça negra Justo Jansen Ferreira 1906 que pouco nos diz além de narrar alguns incidentes da 43 vida estudantil de ambos Dessa época deve datar no entanto um bom relacionamento com alguns médicos cariocas cujo trabalho elogia na tese e em obras posteriores e já que também continuaria a publicar regularmente seus artigos nas revistas médicas por eles editadas E é possível que nesse período tenham nascido também algumas antipatias expressas mais adiante tanto pelo trabalho do médico João Baptista de Lacerda como pelo psiquiatra Teixeira Brandão figuras importantes da medicina carioca e na institucionalização da antropologia e da psiquiatria no Rio de Janeiro E só ao se estabelecer na Bahia no entanto que as atividades científica e burocrática de Nina Rodrigues se definem claramente Esta atuação será discutida neste capítulo Quanto à sua orientação teórica embora intimamente ligada à sua prática de pesquisa as opções mais duradouras parecem ter sido feitas apenas a partir do momento em que tomou conhecimento da obra de Lombroso e seu grupo e dos trabalhos de Lacassagne e sua equipe em Lyon aos quais dedicou seu primeiro livro e a quem teria visitado pouco antes de morrer na viagem à Europa em 1906 Andrade Lima 1980 Sua admiração pelos principais teóricos do grupo da antropologia criminal italiana e pelos da escola médicolegal francesa permaneceu inalterada ainda que considerasse discutível a aplicação de alguns de seus postulados no cenário brasileiro e não há dúvida de que o trabalho deles serviu de exemplo à atividade que desenvolveu na Bahia O debate a respeito das novas idéias lançadas no âmbito jurídico pelo grupo composto principalmente por Lombroso Ferri e Garofalo particularmente importantes na formação jurídica nacional no final do século e na reforma das nossas leis penais ampliouse no Brasil com a publicação em 1893 de A Nova Escola Penal de Viveiros de Castro e a partir daí passou a ser regularmente mencionado pelos juristas nacionais Nina Rodrigues parece ter começado a prestar atenção a este debate que se desenvolvia no campo do direito desde o momento em que se viu na obrigação de ministrar aulas de Medicina Legal na Faculdade já que antes ele não era referido em seus trabalhos Desde meados do século 19 que a craniometria a craniologia e a antropometria tinham se constituído como áreas específicas do conhecimento médico e foram médicos os que começaram a definir a antropologia como a ciência do homem tanto no sentido de humano 44 como no de masculino como nota Gould 1981 Nos Estados Unidos a chamada escola antropológica americana formouse em torno de Samuel George Morton 17991851 que ficou famoso em sua época pelo estudo sistemático dos milhares de crânios humanos que mediu e pesou recolhidos não só na América do Norte mas também no Egito e na América do Sul Suas pesquisas comparando as medidas cranianas de vários grupos humanos ofereceram o suporte empírico de que o naturalista Louis Agassiz necessitava para a confirmação de sua teoria do poligenismo isto é a origem múltipla das raças humanas contrária à crença dominante na época de que a humanidade tinha se originado do casal bíblico teoria conhecida como monogenismo Mais tarde ambas as correntes seriam confundidas num só termo criaionismo e sua vigência científica praticamente desapareceria diante da proposta evolucionista de Darwin Stanton 1960 Gould 1981 Na França Paul Broca 18241880 médico como Morton aperfeiçoou seus métodos de medida dos crânios humanos criando uma parafernália de instrumentos novos e precisos o craniômetro o craniógrafo o cefalógrafo o estereógrafo e prestando mais atenção ao cérebro que a escola americana não tinha analisado As centenas de crânios que recolheu em todo o mundo e os cérebros que pesou e mediu assim como seu próprio cérebro estão ainda hoje no Museu do Homem em Paris Paul Broca foi também o fundador da Sociedade Antropológica de Paris 1859 depois Escola de Antropologia 1876 que além de oferecer cursos que propagavam suas idéias editava também uma revista de circulação internacional Seu prestígio científico sem dúvida foi um dos responsáveis pela difusão da importância atribuída ao peso e ao tamanho do cérebro das pessoas do sexo feminino e das raças não brancas como critério definidor de sua incapacidade intelectual para não falar em outras incapacidades Broca 1871 Clark 1973 Sagan 1979 O nome mais conhecido dentre estes médicos antropólogos do século passado foi no entanto o do italiano Cesare Lombroso 18361909 criador da antropologia criminal e que não satisfeito em pesar e medir o crânio e seu conteúdo criou toda uma taxonomia de traços faciais e corporais os estigmas que permitissem detectar o que subsistia de nossos ancestrais primitivos nos homens e mulheres contemporâneos levandoos ao crime e à loucura Apesar do nome 45 pelo qual se tornou conhecida a antropologia criminal italiana não se interessava apenas pelo estudo dos criminosos seu objetivo mais amplo era a compreensão das causas das desigualdades sociais Um contemporâneo ilustre de Nina Rodrigues Antonio Gramsci definia os membros deste grupo como Responsáveis pela ideologia difundida de forma intensa pelos propagandistas da burguesia entre as massas do Norte o Sul é a trava que impede o progresso mais rápido do desenvolvimento civil da Itália os meridionais são biologicamente seres inferiores semibárbaros ou bárbaros completos por destino natural se o Sul é atrasado a culpa não é do sistema capitalista ou de qualquer outra causa histórica mas da natureza que fez os meridionais poltrões incapazes criminosos bárbaros compensando esta sorte ingrata com a explosão puramente individual de grandes gênios que são como solitárias palmeiras num árido e estéril deserto Mais uma vez a ciência era responsável pela repressão dos explorados e oprimidos mas desta vez estava vestida com as cores socialistas pretendendo ser a ciência do proletariado Antonio Gramsci 197031 A crítica que o determinismo estreito de Lombroso recebia já em sua época a começar pelos próprios membros de seu grupo como E Ferri levaria Nina Rodrigues a incorporar outras perspectivas teóricas aos seus trabalhos sem abandonar no entanto a suposição básica da hereditariedade como destino que informava a pesquisa de Lombroso e seus seguidores e que em maior ou menor grau era compartilhada por quase todos os cientistas da época Mas a conseqüência mais relevante para esta pesquisa dessa nova concepção penal e política foi o deslocamento da questão da responsabilidade A liberdade de vontade a intenção de atuar conscientemente de determinada maneira em determinada direção deixava de ser relevante no julgamento de um ato ou na análise de um acontecimento uma vez que o comportamento de cada um estava predeterminado pela sua pertinência a certas classes biológicas que se foram pesquisadas e definidas em prisões e hospícios acabaram por 46 ser utilizadas para a sociedade como um todo A questão da responsabilidade deixava de girar em torno do livre arbítrio como na chamada escola clássica de direito e passavase a investigar quais as medidas de defesa social mais adequadas para lidar com aquelas ameaças A necessidade de calcular precisamente qual o grau de periculosidade noção como a de estigma devida ao grupo italiano real ou virtual de cada um deu também uma nova relevância à figura do perito o especialista neste cálculo O perito médico estava de há muito incorporado ao procedimento penal pela realização de autópsias ou de exames toxicológicos e pelo menos na França já era desde 1838 o responsável pelo destino de criminososloucos Castel 1978 Nina Rodrigues invocaria como igualmente relevantes na definição da perícia médicolegal tanto as questões de evidência mais direta ou técnica como as mais sutis de definição do estado psíquico de um acusadopaciente Apesar da ênfase dada por ele à formação especializada do perito este não era um especialista na acepção atual do termo já que seu campo de ação podia ser definido tanto pela demonstração da necessidade de análises químicas quanto do levantamento de índices osteométricos ou dos estigmas físicos eou psíquicos dos pacientesacusados A perícia se definia antes como técnica de auxílio à justiça aglomerado de vários saberes do que como resultado último da compartimentalização desses saberes Daí que ainda fosse possível a Nina Rodrigues ao mesmo tempo que se batia pela especialização do perito lutar para incorporar à sua esfera de atuação campos que lhe seriam progressivamente tomados não pelos leigos como temia mas por outros especialistas o psiquiatra e o criminólogo entre outros Definindo como jurisdição da medicina áreas que estavam entregues aos profanos como dizia fosse o controle de exames cadavéricos por funcionários da polícia fosse a direção de asilos de alienados por não médicos ele colaborou também para abrir a possibilidade de futuras subdivisões internas à medicina A via tortuosa da antropologia criminal como legitimadora da função pericial não foi no entanto a única escolha teórica de Nina Rodrigues A constante atualização de seu conhecimento do debate intelectual contemporâneo explícita em seus textos não só o levou a se inteirar das críticas feitas aos métodos de Lombroso acrescentando ainda algumas de sua própria autoria como a buscar em outras fontes o reforço teórico que suas pesquisas demandavam Em relação a Lombroso o crítico mais importante de sua geração Gabriel Tarde fazia sua aparição em notas nos trabalhos de Nina Rodrigues em seguida à publicação de seu livro La Criminalité Comparée 1886 e provavelmente Nina Rodrigues poderia compartilhar no Brasil da honra atribuída a Tarde de ter sido o primeiro a utilizar a expressão psicologia social Clark 1973 Dado o seu interesse pela questão das relações raciais cedo expresso em seus textos Nina Rodrigues ampliou também a definição de antropologia para além do sentido que este termo tinha no uso feito por Lombroso e seus colegas citando desde os relatos de viajantes ingleses na Africa como o coronel Ellis passando pelos estudos de mitos de Andrew Lang até as reflexões de E B Tylor abundantemente citado por ele tanto a respeito do tópico especial do animismo como das tradições culturais dos povos africanos Além desta bagagem teórica que parecia sólida e dirigida mesmo pelos padrões atuais da prática científica Nina Rodrigues era antes de mais nada um apaixonado pela pesquisa empírica A formação médica se não desprezava as grandes questões filosóficas da época como mostra Berbert de Castro 1973 dava maior atenção à pesquisa empírica localizada e preocupavase em resolver problemas práticos da vida cotidiana Roberto Machado e seus colaboradores 1978 constroem o que parece ser um bom índice dessas preocupações o que as pessoas comiam como moravam suas relações sexuais tudo era do interesse desse profissional da vida e da morte Não é por acaso que antes de serem uma metodologia utilizada pelas ciências sociais os estudos de caso os levantamentos genealógicos e o método comparativo tenham sido procedimentos comuns do trabalho científico entre os médicos No caso de Nina Rodrigues apesar de sua ênfase na observação empírica no registro cuidadoso do particular era também numa análise estrutural da sociedade brasileira que ele estava interessado Ele nunca perderia de vista a relação existente entre o exame de uma menina negra deflorada a análise da cabeça decepada do Conselheiro ou o internamento de um pródigo e as leis gerais que desejava ver regendo a nossa sociedade Essas leis gerais no entanto só se tornam explícitas a partir de um confronto entre a teoria que as informava e a realidade observável é na passagem pelo laboratório de medicina legal que elas se apuram e adquirem uma nacionalidade que não possuíam originalmente É a manipulação técnica dos dados daquela realidade à luz de uma teoria estranha a ela que fundamenta a construção de uma proposta política Não se trata mais aqui de uma medicina social e sua ênfase nas causas morais da doença no aperfeiçoamento do cidadão saudável no contrato social e na possibilidade de o negro dele participar na loucura como produto da civilização ou na autonomia do modelo médico de um modelo jurídico da sociedade Cf R Machado 1978 embora este discurso não tenha sido inteiramente abandonado Tratase antes de uma ciência médica que desiludida com as promessas de igualdade da Abolição e da República se perguntará pelas causas das desigualdades observadas Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde ou da doença para o doente transformavao em objeto individualizado de um saber autorizado e autoritário porque só individualmente se podiam aferir as minúcias de uma contaminação social mas proveniente do mundo da natureza O modelo jurídico e o médico deixavam também de ser heterogêneos entre si e absorvendo um do outro seus saberes específicos juntavamse ambos na produção de mecanismos técnicos para diagnosticar e punir os danos que o indivíduo pudesse causar à sociedade Partindo de um conhecimento do ser humano que nada tinha de jurídico na sua constituição essa nova área do saber se situará na interseção dos modelos médico e legal para produzir um terceiro tipo de conhecimento A autonomia inicial daqueles dois saberes institucionalizados não esconde um substrato comum a ambos na época a visão da sociedade como um corpo a ser conhecido de forma semelhante à que fora utilizada para o conhecimento do corpo humano Assim como os organismos individuais nascem se desenvolvem adoecem e morrem também a sociedade vista como um organismo mais complexo passa por esse processo E se a medicina Clínica cura ou previne Higiene as moléstias do organismo individual e social em sua versão médicolegal ela contribuirá para diagnosticar e indicar o tratamento adequado de acordo com os parâmetros médicos e jurídicos dos atos que atentem contra a normalidade da vida social A passagem pela Medicina e pelo Direito comum à maior parte dos analistas sociais desse período lhes emprestava uma linguagem também comum terreno em que se encontraram o que não impede que suas propostas de solução para problemas definidos de forma semelhante sejam inteiramente distintas Assim se de certa maneira há mais continuidade entre a atuação de Nina Rodrigues e a de um Tobias Barreto que ele afirmava ter sido o primeiro a reclamar a necessidade de constituição da Medicina Legal no Brasil ou de um Sílvio Romero ambos juristas do que entre ele e o médico Souza Lima por exemplo também há uma ruptura de uma análise generalizante de nossa realidade passase à sua observação constante de uma postura de intelectual de gabinete à militância profissional da percepção informada à análise minuciosa sem no entanto abandonar os pressupostos de uma visão mais global que deverá incorporar esses passos Do mesmo modo que mais adiante haverá uma ruptura entre a sua visão teórica e a de seus discípulos mas também uma absorção por parte deles de um método de trabalho e da ênfase em questões que não podem mais ser ignorados Continuidade teórica e ruptura quanto ao método por um lado ruptura teórica e continuidade metodológica por outro em todos os casos uma visão ideológica semelhante No caso de Nina Rodrigues a ênfase da época e de seu campo do saber nas pesquisas experimentais foi o que levou a descer da cátedra e verificar empiricamente as idéias mais ou menos declaradas de sua classe sobre os outros A medicina legal com toda sua bagagem instrumental de aferição e classificação ofereceulhe a mediação técnica e empírica que outras áreas mais gerais do saber não possuíam em seu tempo Num período em que a ciência como legitimadora de opiniões era invocada por todos os analistas de nossos problemas sociais a Medicina Legal foi das primeiras disciplinas a conquistar um espaço institucional próprio e a definir seu agente o perito Especialidade e especialista se encontram em Nina Rodrigues numa combinação perfeita de momento impossível de se repetir Mais adiante a perícia médico legal se fragmentará nas mãos de muitos especialistas mas sua metodologia e alguns dos objetos que Nina Rodrigues definiu ao enfatizar sua existência autônoma e nacional transformados serão apropriados pela antropologia pesquisadores ao mesmo tempo ampliaram o conhecimento da nossa realidade com sua ênfase na investigação empírica Nos exemplos lembrados eram principalmente as moléstias tropicais que ocupavam a sua atenção eram os problemas específicos de nossa sociedade que os interessavam ainda que a orientação teórica de seus estudos permanecesse européia A importância dessas pesquisas experimentais na constituição do campo da medicina deriva então tanto do aprofundamento da pesquisa em determinadas áreas problemáticas segundo passo necessário à sua legitimação como ciência por oposição aos saberes que permaneceram gerais e não especializados quanto da ênfase dada a uma realidade nacional cujo estudo aparentemente não encontrava guarida no ensino excessivamente teórico e apoiado em exemplos europeus das Faculdades O debate a respeito de uma ciência nacional é parte importante desse processo de criação das especialidades médicas num momento em que o conceito de nação era fundamental como definidor da discussão política mais ampla SantAnna 1978 Se a história interna da medicina mostra que a especialização propiciava o questionamento das Faculdades como o único centro de produção do saber médico ou como núcleo gerador de novos favorecer a disposição delas em manter esse estatuto privilegiado Em primeiro lugar sua posição se fortaleceu não apenas pela manutenção de uma unidade política expressa em associações profissionais revistas especializadas e reconhecimento governamental necessária para fazer frente a uma crítica que atingia toda a medicina enquanto ciência mas também pela pertinência a seus quadros de homens que estavam dispostos a levar adiante as mudanças reclamadas e com força política para fazêlo sem abrir mão dos privilégios institucionais conquistados O que levou em segundo lugar à incorporação promovida pelas faculdades tanto das inovações técnicas quanto dos inovadores ampliando o quadro de disciplinas que a medicina passava a abrigar No entanto se o elogio do empírico proposto pela ciência da época levou os médicos nacionais a se debruçarem sobre a nossa realidade nem sempre os resultados de suas pesquisas lhes pareciam lisonjeiros quando comparados com os das nações civilizadas daí o adjetivo de corajosas que a atuação de Oswaldo Cruz ou a contribuição de Nina Rodrigues merecem de alguns biógrafos por terem tocado em pontos sensíveis da sociedade em que viviam O vaivém constante entre a afirmação de nossa especificidade e a confirmação da ciência européia como parâmetro teórico que permitia ou não validála é também uma das marcas dos trabalhos de pesquisa deste período Com Nina Rodrigues a situação não foi muito diferente do que com outros professores das Faculdades da época Mas apanhado num momento particularmente delicado da história do ensino e da prática da medicina sua atuação era às vezes ambígua ele não só levou até às últimas consequências a sua experiência docente de especialização como a ampliou em atuações fora do âmbito da Faculdade às vezes até em conflito com ela Ampliação que entretanto acabou por reverter em benefício de uma extensão e fortalecimento da medicina institucionalizada e resultou numa experiência pioneira de ensino aliado à pesquisa Sua posição ambígua não provinha apenas do fato de ter saído da Faculdade para ir ao encontro dos objetos de análise que escolhera os médicos sempre fizeram isso em sua atividade clínica mas no seu caso tratavase de dar visibilidade a uma área do saber médico mal delimitada no Brasil e de demonstrar sua relevância para a sociedade como um todo através da análise de objetos ainda não definidos como tais À sua permanente preocupação com a aplicação social e política dos conhecimentos médicos vai se juntar a partir de certo momento uma insistência na necessidade da pesquisa e da formação especializada Esta duplicidade de objetivos pode ser claramente percebida em seus textos especialmente nos artigos que periodicamente publicava nas revistas médicas dando conta de suas investigações Se os seus primeiros trabalhos abrangem uma extensão maior do que os títulos sugerem integrando a análise de vários temas no mesmo texto e expressando às vezes cruamente suas opiniões como em Contribuições para o estudo da lepra no Estado do Maranhão de 1888 alguns dos últimos apresentam um tema bem delimitado numa linguagem despojada de qualificativos econômica quase fechada no uso de expressões técnicas como em Das concausas sua doutrina médicolegal de 1905 Nesse sentido sua produção intelectual acompanha a transição pela qual passava a medicina de geral a especializada a técnica fundamentada na análise cuidadosa de questões específicas Mas Nina Rodrigues não se desfez de sua bagagem teórica anterior tornandose um especialista em MedicinaLegal incorporará as preocupações mais abrangentes da medicina social até então em vigência e estas duas influências serão visíveis e estarão ambas presentes em quase todos os seus trabalhos Assim apesar de não corresponderem a dois momentos estanques de sua carreira é possível observar que essas diferenças de abordagem se aglutinam em períodos bem definidos de sua vida profissional indicando uma ruptura que no seu caso não seria definitiva Mesmo antes de terminar o curso de medicina e quando recémformado seus primeiros trabalhos mostram uma ênfase no estudo do comportamento de grupos sociais tentando a extrapolação de análises de casos individuais Não só as doenças dos indivíduos o interessavam mas também todas as manifestações de patologia social desde o estudo de hábitos alimentares que considerasse nocivos à saúde da população Estudo sobre o regime alimentar do Norte 1888 até o de moléstias endêmicas A morféia em Anajatuba 1886 e epidemias A abasia coreiforme epidêmica no Norte do Brasil 1890 Desde aí ele já explicitava também a sua visão da raça negra como elemento patológico na composição de nossa população Contribuição para o estudo da lepra Seus trabalhos desse primeiro período 18861892 mostram também uma característica que se manterá importante em sua atuação a intervenção na realidade social de seu tempo Nina Rodrigues levava o seu cartel de desafio na expressão de Lins e Silva para onde quer que estivessem concentradas as atenções públicas do momento não apenas analisando a questão em foco uma epidemia a necessidade de uma legislação sanitária como participando ativamente na sua resolução Logo após sua chegada em Salvador seu nome é uma presença constante em campanhas polêmicas comissões na redação da Gazeta Médica no Conselho de Saúde Pública etc Inicialmente restrita à Bahia essa presença no cenário médico vai se ampliando até passar a figurar em listas semelhantes em nível nacional e internacional Sua atividade contrasta com o quadro que pintava da vida científica de Salvador uma adaptação forçada dos trabalhos que importamos do estrangeiro Gazeta Médica da Bahia agosto 1891 Nina Rodrigues já era então redatorchefe da Gazeta cargo que ocupou por alguns anos e em outros momentos retornaria ao assunto deixando claro que a intenção de interferência da revista nas relações da medicina com a administração pública era um programa de ação e que ele faria o possível para tirar os médicos baianos daquela penumbra prudente Sua campanha para que o estado da Bahia tivesse uma organização sanitária autônoma sustentada em artigos na Gazeta é um bom exemplo disto Proclamada a República e adotado o sistema federativo recolocavase a questão da autonomia dos estados na gestão de seus interesses Nina Rodrigues descreve a situação das repartições sanitárias naquele momento Neste Estado por exemplo existem uma repartição sanitária federal a inspetoria de saúde do porto duas repartições sanitárias estaduais inteiramente independentes a junta de higiene e a junta vacínica e ainda por cima as repartições municipais pois a esta hora preocupase infelizmente a Intendência da capital em organizar o seu serviço de higiene à parte e independente o que quer dizer cioso também de suas prerrogativas e atribuições e pronto mais tarde a intervir nessa luta esterilizadora de rivalidades recíprocas em que vivem as demais repartições O que nos falta pois para que tudo isto funcione regularmente Exclusivamente uma coisa administração sanitária A necessidade de uma administração superior que paire acima das lutas e rivalidades de repartições que devem ser compelidas a se prestar mútuo auxílio na sua missão comum de zelar pela saúde pública administração que reuna às vantagens de uma direção única os esclarecimentos imprescindíveis de uma corporação consultiva fazse sentir a toda hora e de modo o mais imperioso GMBa fevereiro 1892 Criticando a opção por uma independência impossível e perturbadora das repartições sanitárias a autonomia que Nina Rodrigues defendia na relação do Estado com a Nação se definia de fato por uma forte ênfase na centralização em nível estadual A essa ênfase correspondia também um ataque renovado em outras discussões ao que poderia parecer à primeira vista um duplo da especialização a fragmentação a multiplicação de instâncias de decisão Elogiando o Projeto de regulamento dos serviços de higiene e de assistência públicas para o Estado da Bahia elaborado pelo professor de Higiene da Faculdade de Medicina e transformado em lei em 1892 por ter salvo as duas grandes questões da unidade e da centralização diz ele Num mecanismo simples e muito bem combinado o ilustre professor conseguiu subordinar perfeitamente as atribuições das diferentes autoridades sanitárias e garantir a fiscalização rigorosa de todos os ramos da higiene pública É incontestável que a lei deu ao Conselho mais autonomia e maior soma de atribuições do que as que lhe conferia o Projeto primitivo A intervenção do Conselho na fiscalização dos atos das repartições executivas está clara e terminantemente estabelecida a dependência das diversas corporações sanitárias ficou bem definida Aos poderes sanitários centrais ou estaduais ficam garantidas assim a fiscalização dos atos das autoridades municipais e o direito de representar contra eles quando se descurarem das obrigações que lhe são impostas pela legislação sanitária GMBa setembro 1892 A distribuição hierárquica de poderes acompanhada de uma fiscalização com a possibilidade de intervenção são características que ele defendia também em nível nacional criticando os médicos do Rio de Janeiro ora por achar que desejavam a fragmentação da legislação sanitária deixandoa a cargo dos municípios ora por utilizarem a capital federal como parâmetro de todas as cidades do país Diz Nina Rodrigues A acareação dos dois importantes documentos que se seguem ao mesmo tempo que revigora e fortalece as boas razões com que tenho procurado fundamentar a campanha que vou sustentando na Gazeta Médica em favor de uma organização sanitária federal para o nosso país levame ao espírito a convicção descorçoante de que dentre a própria classe médica brasileira estão nascendo os maiores embaraços à realização deste supremo desideratum dos povos civilizados em matéria de higiene pública Tomamos a confederação norteamericana por modelo ou paradigma da nossa organização política Mas ao passo que a poderosa Associação Médica dos Estados Unidos circundada do maior prestígio de uma tradição gloriosa e dominada do espírito enérgico e resoluto daquele grande povo prossegue por todos os meios e há muitos anos no firme propósito de dotar a sua pátria de uma organização sanitária completa o Conselho Superior de Higiene Pública do Brasil vem em nome da organização democrática autônoma e soberana do governo municipal propor aos poderes públicos que fragmente mutile e desfça a obra ainda incompleta da nossa unificação sanitária preconizando a idéia infeliz em higiene pública da liberdade e independência municipal GMBa março 1892 Os dois documentos a que ele se refere são um Parecer apresentado e adotado na sessão do Conselho Superior de Saúde Pública a 21 de janeiro de 1892 e elaborado pela comissão abaixo especificada37 e uma Petição para que se crie um ministério de saúde pública e se nomeie um ministro ou secretário de saúde pública da Associação Médica NorteAmericana Inspirandose nesse desejo de centralização nacional dos médicos norteamericanos que como ele acentuava já tinham obtido uma vitória em nível estadual com a criação dos State Boards of Health Nina Rodrigues ironicamente criticava a atitude do Conselho Nacional como uma reminiscência da asfixiante centralização a que se tinha habituado durante o Império afirmando que o seu país o seu Brasil é a capital federal Num artigo anterior em que debatera o assunto com o relator do Brazil Médico do Rio de Janeiro Nina Rodrigues explicitara essa aparente contradição Que possamos obter desde já do governo federal uma organização sanitária mais aceitável dificilmente o cremos Gustanos a acreditar com efeito que os atuais legisladores federais educados ainda nessa escola política de absorção centralizadora que por meio século dominou o país já estejam preparados para formular leis capazes de conciliar o respeito pelos interesses higiênicos dos estados com a tendência do governo central a tudo absorver Por isso a uma tal organização que seria a persistência do desprezo sempre revelado pelo centro das necessidades mais imperiosas da higiene pública nas províncias preferimos sem dúvida uma organização transitória mas de existência real que nos possa levar um dia ao ideal das organizações sanitárias a organização centralizada E nisto não há parece a mínima contradição GMBa setembro 1891 Lutando pela aprovação de uma legislação estadual centralizada caminho que lhe parecia o mais viável para chegar a uma centralização federal o que Nina Rodrigues combativa em primeiro lugar era a autonomia municipal que o Conselho defendia A organização municipal autônoma e completamente independente tem provado mal em toda parte entre nós será um desastre completo À exceção das grandes cidades a falta de recursos a pobreza dos municípios a carência de instrução pública e de pessoal habilitado a influência perniciosa de uma política de pequenos interesses tudo isso concorrerá fatalmente para que as mais urgentes e imperiosas necessidades higiênicas nunca passem da letra morta nos regulamentos e nas posturas dos municípios GMBa março 1892 Aqui começava a se definir o tipo de lógica que mais tarde seria retomada em relação à composição étnica de nossa população o atraso do município implicava na sua tutela mas não o eximia de atuar na área da saúde pública o que tornava necessária uma fiscalização permanente garantia de que a legislação sanitária seria cumprida O município nem era tão irresponsável que não pudesse ser penalizado nem tão responsável que pudesse se autoadministrar É necessário que os partidiários da autonomia municipal se compenetrem de que eximirse do dever de não ser nocivo nunca foi uma ação de liberdade A ambigüidade da posição dos municípios podia abrir brechas indesejáveis no mecanismo bem montado da legislação desejada e o mesmo argumento de sua fraqueza que servia de respaldo à exigência de tutela também demonstrava a sua incapacidade de cumprir eficazmente a legislação sanitária A lei baiana concedendo que os municípios tenham os serviços que os seus recursos permitirem é muito de recear que a alegação de falta de meios se torne em breve um pretexto geral para continuar o desprezo que entre nós sempre afetaram os governos municipais por tudo o que diz respeito à higiene pública Nestas circunstâncias é muito provável que a representação do Conselho Geral contra os municípios recalcitrantes nunca surta o mínimo efeito E no entanto como reconhecem todos se a atividade que representa o poder central não tiver o direito de intervir no município direito que surge claramente das disposições da lei orgânica municipal e é inerente à índole das atribuições que em matéria sanitária lhes corresponde bastaria o abandono ou a negligência das autoridades locais de qualquer município para inutilizar os esforços de preservação dos demais e resultaria daí esta monstruosidade que uma municipalidade poderia impedir a ação do governo na mais elevada das suas funções qual é a de proteger a saúde pública em toda a extensão do território GMBa agosto 1892 Mariza Corrêa As ilusões da liberdade 87 Conseqüência irônica da definição ambivalentemente dos municipios a mesma falta de recursos que o impedia de ter uma legislação sanitária autônoma lhe dava a possibilidade de negar a aplicação da legislação estadual ameaçando todo o edificio da organização sanitária nacional A solução encontrada para esse dilema segue uma lógica semelhante à que Nina Rodrigues utilizará na análise da repressão penal dos que considerava irresponsáveis em nossa população Para assegurar um controle adequado da atuação municipal era necessária a intervenção de um agente externo que demonstrasse no entanto seu conhecimento das questões específicas em jogo Este era o segundo ponto enfatizado na luta pela criação de uma legislação estadual a demonstração de que ela se apoiava num conhecimento íntimo da realidade local não acessível ao poder centralizado do Conselho Superior de Saúde Pública Uma ameaça de epidemia de febre amarela na cidade seria o pretexto para dar um tom de alarme à necessidade de medidas urgentes aconselhadas ao governo estadual semelhante ao tom adotado mais tarde quando se vai enfatizar a utilidade da perícia médicolegal na repressão da criminalidade Nomeie um conselho de higiene pública do Estado com um diretor geral de higiene que superintenda todo o serviço sanitário estadual substituindo a direção suprema exercida até hoje pela inspetoria geral de higiene do Rio de Janeiro confiralhe o poder de organizar de acordo com os inspetores da junta de higiene e da saúde do porto e com os recursos de ocasião um serviço sanitário defensivo ao mesmo tempo marítimo e terrestre faça reprimir os dissentimentos que cria esta distinção de serviço federal e serviço estadual prestando o Estado que é quem está ameaçado concurso e auxílio à inspetoria de saúde do porto sacando sobre a economia de vidas e dinheiro que resulta sempre de uma epidemia dominada abra sob sua responsabilidade créditos extraordinários para a instalação modesta dos serviços indispensáveis certo de que todo ele reverterá em beneficio do Estado confie no patriotismo na abnegação e desprendimento garante sanção legal à existência da medicina estatutindo que o exercício desta profissão seja facultado exclusivamente às pessoas diplomadas pelas escolas superiores do país GMBa outubro 1892 Mas é como se quanto mais abrangente se tornava o plano teórico de aplicação do saber médico tanto mais difícil parecia ser a tarefa de análise dos pequenos espaços sociais localizados onde ele podia ser sabotado Enquanto idealizador de um plano de organização sanitária nacional Nina Rodrigues se utilizava de um conhecimento médico que se pretendia universal como médico baiano e intelectual brasileiro percebia claramente onde esses parâmetros internacionais não se encaixavam à realidade que conhecia Se a ciência é cosmopolita e impessoal a sua aplicação está sujeita às surdas imposições dos interesses partidários A desarticulação das agências promotoras da saúde pública numa impossível e perturbadora independência parecia demonstrar que o médico sozinho não daria conta da análise dos vários campos que elas cobriam análise que deveria anteceder um planejamento político que se queria eficaz necessitando da cooperação de outros especialistas nessa tarefa de aprofundar o conhecimento da realidade O próprio médico não reunia mais a soma dos conhecimentos acumulados de sua ciência necessários a este aprofundamento Relação entre extensão e profundidade do campo médico que começava se tornar problemática Esta ambivalência teórica Nina Rodrigues tentará resolver politicamente mediante a proposta de uma formação especial para o médico que quisesse se envolver nas questões da medicina pública Ele próprio descreveria esta tentativa aos seus alunos em 1898 Tendo o governo federal solicitado das faculdades de medicina um plano de reforma do ensino médico no Brasil apresentei em 30 de maio de 1892 a seguinte proposta à Congregação desta Faculdade A Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia propõe ao governo a criação de um título de habilitação particular de médico oficial que será limitandose à simples inspeção do cadáver Carta de 1531892 em Luiz Anselmo da Fonseca 1892 Essa classe da população justamente na que são mais frequentes os exames deste natureza passou a ser não somente analisada por Nina Rodrigues quando a situação se apresentava como ocorria até então em suas férias na província natal ou em seu trabalho inicial na clínica de seu sogro mas será procurada por ele e colocada no centro de suas atenções É como se apenas no momento em que a morte se tornou o eixo de sua atividade médica desde que passou a praticar assiduamente o famoso conselho de Bichat abram alguns cadáveres tivesse ficado claramente definido para ele quais eram os seus objetos preferenciais de análise A dificuldade principal encontrada por ele em sua atuação se expressa no fato de que empenhado num planejamento institucional ele devia se ocupar também em definir constituir os objetos dessa instituição mais propriamente os seus objetos institucionais41 Ao descrever as esferas de ação do perito Nina Rodrigues apontava ao mesmo tempo para os seus objetos de análise a penitenciária o Hospital de Caridade os asilos de alienados lugar dos despossuídos do direito da saúde ou da razão essa classe da população ainda demasiado visível coletivamente nos lugares de que a ciência dispunha para observála Mais do que uma metáfora esta sala apinhada de gente que pede roga reclama e ameaça era um obstáculo concreto a um trabalho de observação que se queria invisível e será sobre ela ou contra ela que se vai erigir uma parcela importante do conhecimento médico que desde aqui já começava a contribuir para a constituição também do conhecimento das ciências sociais Um segundo obstáculo sempre mencionado seria o clínico conceituado causa da ofensa da responsabilidade profissional do médico da polícia e também este Ao mesmo tempo em que lutava para estruturar juridicamente os quadros formais de atuação do perito estrutura que só seria plenamente instituída após sua morte através do trabalho de seus discípulos e definir seus objetos de análise Nina Rodrigues esforçavase também por recortar seu trabalho distinguindoo de outros médicos demonstrado grande habilidade além de desprezálos explicitamente Mas a ênfase numa aplicação imediata dos conhecimentos médicos em sua instrumentalização legal a urgência percebida nos conselhos de intervenção enérgica dirigidos ao Estado apontam para uma visão politicamente bem definida do uso desses conhecimentos Ainda que retoricamente negasse o valor dos interesses mesquinhos da política Nina Rodrigues nunca deixou de atuar politicamente para alcançar seus objetivos como veremos em outros exemplos de sua atividade E ainda que a única tonalidade política que se permitisse dar a seus trabalhos fosse a explícita finalidade de proporcionar o bem comum há um grande silêncio em todos eles e também aqui sobre as consequências para aqueles a quem seriam aplicados os resultados de suas propostas o elemento público na expressão saúde pública por exemplo Como vários de seus pronunciamentos demonstram Nina Rodrigues tinha uma percepção clara de que o bem que desejava para a nossa sociedade poderia não ser exatamente o desejado pela maioria de sua população já que nem sequer eram muitas vezes compreendidas pelos seus pares essa percepção talvez o tenha levado a assumir tão frequentemente a posição de cavaleiro solitário da ciência ao mesmo tempo tornandoo tão atraente para outros médicos também despreocupados com as repercussões sociais de suas propostas ALGO MAIS QUE A ARTE DE CURAR Só a partir do momento em que se estabilizou como professor de Medicina Legal na Faculdade da Bahia e assumiu publicamente este aspecto definidor de sua carreira é que a atuação de Nina Rodrigues parece ter se tornado sistemática e organizada tanto na esfera acadêmica como fora dela A reforma do ensino de 1891 que remanejou professores sem a abertura de concursos foi muito criticada por alguns médicos da época tendo merecido uma larga discussão na Memória Histórica da Faculdade referente a este ano e motivado a troca de notas entre Nina Rodrigues e os que defendiam a realização de concursos publicadas na Gazeta Médica40 Dez anos depois na aula de abertura do curso ele ainda volta ao assunto quase definindo o seu empenho na transformação da medicina legal numa disciplina de fato como legitimação de sua nomeação A reforma foi violentamente atacada e a maior celeuma levantouse em torno das transferências dos professores Não me demorarei em reduzir os motivos reais e os aparentes desta campanha A preocupação dominante de aderir ao novo regime político tornou de grande freqüência naquela época o fato de darse aparência de um zelo extremado pelas formalidades legais como disfarce a um espírito muito anódino de insurreição contra o movimento republicano vitorioso ou de simples justificativa de interesses feridos Importa pouco no nosso caso pesquisar até que ponto na campanha contra a reforma de 1891 influíu esta situação de espírito Sempre entendi que sendo a transferência de professores uma questão de fato só em fatos deviam os professores transferidos fazer consistir a demonstração de que as suas transferências não tinham sido prejudiciais ao ensino Pela reforma de 1891 fui transferido do ensino de Clínica Médica em que era professor adjunto para o ensino de Medicina Pública em que fui nomeado professor substituto É pois o legítimo exercício daquele direito de justificação o que ora exerço indagando ao cabo de dez anos se a minha nomeação foi de fato prejudicial ao ensino da Medicina legal 190232 Dez anos depois ele podia também alinhar os progressos da Medicina Legal no Brasil incluindose na sua história e rever seu programa de atuação A partir daí ele como que esquece uma atuação importante mas mais ou menos fragmentada entre vários interesses e quase todos os seus artigos anteriores a esta data Nessas revisões no entanto se aparece a preocupação em determinar os marcos importantes na história da Medicina Legal e as dificuldades de sua constituição não são mencionadas as condições cotidianas de seu trabalho Em 1892 numa carta relatório ao encarregado da Memória Histórica da Faculdade ele faz uma descrição dessas condições e das resistências sociais que essa última apropriação médica do corpo despertavam É deplorável mesmo o que tenho tido ocasião de observar em relação as autópsias da polícia De ordinário é feito este serviço na pequena sala contígua ao depósito de cadáveres do Hospital de Caridade dependência como é o depósito do mesmo estabelecimento algumas vezes praticamente as autópsias no salão de direção do gabinete de anatomia da Faculdade A curiosidade reúne ali onde se conserva franco o ingresso quanto curioso e desocupado existe nesta terra os quais reforçados pelos parentes aderentes e conhecidos do defunto acabam por constituir uma massa respeitável de espectadores ocupando literalmente as portas janelas e circunvizinhanças do recinto onde se trabalha que invariavelmente é por fim invadido de modo que se torna quase impossível moveremse médicos e ajudantes A repugnância instintiva pelas autópsias que existe tão acentuada na nossa população atrasada e supersticiosa muito agravada ainda por cima com esta exibição impudente desrespeitosa e da mais alta inconveniência de um serviço que a veneração sempre respeitável pelos mortos e o mais elementar bom senso mandam que se faça com os resguardos e acatamento necessários constituiu um embaraço sério a esta ordem de trabalho Em certa classe da população justamente na que são mais frequentes os exames desta natureza além da pressão exercida no momento pelos pedidos rogos e reclamações recorrese muitas vezes a ameaças de desacato ao médico e a seus ajudantes já tendo sido necessário segundo estou informado a requisição de força armada para conter estes indivíduos E por tal forma se entende mal o serviço médicojudiciário entre nós que a um clínico conceituado vi eu já levado por deferências políticas ou pessoais valerse das suas relações de amizade para conseguir que o médico da polícia com ofensa da sua responsabilidade profissional e oficial deixasse de praticar a autópsia que lhe era exigida Como apropriar para esta nova disciplina objetos não definidos como a ela pertinentes como definir um campo mal delimitado no interior da ciência médica nacional Nessa definição e nessa apropriação ele recorreu ao instrumental teórico europeu sem dúvida mas o utilizou como outros experimentalistas da época aplicandoo sobre uma realidade específica sobre questões locais Diz ele explicitamente A par de questões médicolegais que são cosmopolitas invariáveis de aplicação a todos os povos e todas os países grande número há que estão dependentes na sua solução de condições peculiares variáveis de país a país Pretender resolver estas pela aplicação arbitrária e forçada de fórmulas e princípios verdadeiros para certos e determinados povos e climas é falsear o rigor científico que se quer da Medicina Legal pondo em graves compromissos os princípios da justiça e a respeitabilidade da ciência No Brasil tudo está por fazer neste departamento 1902d38 No seu balanço de dez anos de carreira docente na cadeira de Medicina Legal Nina Rodrigues explicitava também o seu programa apresentando o plano da sua ação e do seu ensino níveis que para ele vão sempre juntos 1º Promover a criação no nosso processo judiciário de uma organização da perícia médica com peritos especialistas já pela propaganda universitária já pela demonstração na imprensa da necessidade e oportunidade de tal reforma 2º Promover pelos mesmos meios a criação dos institutos médicoslegais de ensino prático e experimental onde se possam formar os peritos 3º Promover a solução daqueles problemas médicolegais que nos são peculiares ou tem para nós uma feição peculiar em razão do clima da raça da natureza das nossas instituições políticas e judiciárias ou do grau da nossa civilização sempre imperfeitas e incompletas que não eram enfim verdadeiras uma vez que a missão do perito era demonstrar a verdade sirva ela a quem servir A partir de 1892 os livros e artigos de Nina Rodrigues vêm sempre acompanhados de numerosos exemplos a respeito dessa missão saneadora dos erros praticados por médicos que não são especialistas na matéria42 Esses casos vêm quase sempre precedidos da palavra suposto em sua apresentação Suposto caso de defloramento suposta tentativa de homicídio suposta cerebroragia traumática criminosa etc E concluem inevitavelmente com uma apreciação da perícia anterior onde se lêem frases do tipo O exame de corpo de delito constante no documento que analisamos foi incompleto insuficiente e feito com preterição das regras fundamentais admitidas em Medicina Legal para as autópsias em caso de envenenamento Um desses casos relatados o da suposta cerebrotragia tratava da morte da esposa de um engenheiro maranhense que ao consultar Nina Rodrigues parecia levar em conta a sua crescente fama como especialista ao formular a pergunta Foi a autópsia constante da mesma certidão feita segundo as regras e princípios recomendados pela ciência ou ressentese de omissões e lacunas que lhe tiram todo valor não só com relação a existência das lesões descritas como a causa presumida da cerebrotragia a que os peritos atribuem a morte Nina Rodrigues opta pela segunda alternativa e o suposto criminoso é absolvido43 Como em grande parte dos casos que relata neste também a sua opinião parece ter tido um peso importante na decisão dos juízes Não se trata de utilizar aqui a mesma lógica usada por Nina Rodrigues e desqualificar suas análises em termos de interesses políticos que porventura o movessem como parece implícito na apreciação que Gilberto Freyre faz de sua atuação no caso da tentativa de envenenamento do governador de Pernambuco44 Tratase antes de reconhecêlas como táticas políticas parte de uma estratégia mais ampla de autonomizar o campo da medicina legal do da clínica e de marcar fortemente a sua presença no cenário médico e social como um perito diferenciado de seus colegas clínicos gerais ou médicos funcionários da polícia Estes últimos embora em menor grau do que os primeiros já que sua colaboração era indispensável aos acordos de trabalho com a polícia eram também um obstáculo a sua estratégia Deles diz Nina Rodrigues ataques aos colegas desvirtuando os fatos e os princípios científicos com sacrifício impudente da verdade 1904a123 Ao explicar ainda a seus alunos a causa pela qual acreditava ter sido rejeitada sua proposta à Congregação em 1892 Nina Rodrigues deixava claro que se tratava de uma luta política pela ocupação de um espaço bem definido dentro da medicina Não nos tínhamos apercebido de que reunindo a sorte da medicina legal cujos cargos não são ambicionados porque não são retribuídos e implicam em geral em séria responsabilidade à sorte da higiene cujo exercício é procurado pois todos se reputam aptos a exercêla e a receber os vencimentos respectivos tínhamos lavrado previamente a condenação das nossas propostas e alvitres levantando contra eles toda a sorte de interesses profissionais Não seríamos nós todavia que teríamos aceitado e proposto aquela associação senão como medida transitória a fim de ver se conseguíamos trazer para a medicina judiciária o esboço ou arremedo de organização pública que entre nós já possuí a higiene Daqui por diante cumpre advogar a especialização exclusiva da medicina judiciária e defendêla contra todos os óbices a ela opostos partam de legisladores de juristas ou de médicos Além destes inimigos internos concentrados no campo do Direito e da Medicina havia ainda um inimigo externo que ele se dedicaria a combater especialmente Constitui um caso da questão precedente a defesa da medicina contra os ataques dos partidários da liberdade profissional pois nesta se quer compreender a do perito médico 1902d36 Disputa científica que não admitia que fosse colocada em questão a base sobre a qual ela se assentava tratavase de redistribuir no âmbito da medicina e do direito espaços já assignados ou de conquistar novos mas nunca de por em dúvida o saber aí institucionalizado como o faziam os positivistas alvo deste seu discurso Mas mesmo internamente havia dificuldades a vencer uma vez que os próprios médicos seus colegas não pareciam estar tão convencidos quanto deveriam das verdades da ciência que professavam Queixavase ele em 1896 A cartomante Josephina tem residido em diversas partes desta cidade sempre com grande celebridade e clientela ouvida afirmase até por médicos distintos em apuros de concurso na Faculdade De um se diz que fez em concurso diagnóstico psiquiátrico por inspiração da cartomante Tal é a disposição de ânimo da nossa população em geral 18961935199 Se inúmeras eram as dificuldades de constituição do campo da Medicina Legal da definição de sua área e de seus agentes não menores eram os obstáculos à estruturação de um quadro formal onde o perito essa figura nova da qual segundo Nina Rodrigues só existiam dois exemplares na Bahia em 1901 pudesse ao mesmo tempo formarse e atuar Este quadro quando existente não estava constituído no interior das Faculdades de Medicina mas fora delas junto à polícia Todo o material de ensino prático da medicina legal no Brasil está nos serviços médicolegais da polícia Isto aparentemente não foi um problema até o momento em que proclamada a República as províncias tornaramse estados e sua administração passou a ser estadual enquanto as faculdades continuaram sob a administração da União vinculadas ao Ministério do Interior Os médicos que prestavam serviços junto à polícia passaram a ser funcionários do Estado da Bahia sem qualquer vínculo com a Faculdade Desde 1892 e fazendo eco a reclamação de seu antecessor naquele momento ainda o proprietário da cadeira de medicina legal Nina Rodrigues propunha a reabsorção do serviço médicolegal da polícia pela Faculdade só esse serviço terá plena execução quando se realizar uma medida utilíssima proposta pelo ilustre proprietário da cadeira a sua nomeação e do seu substituto para médicos legistas da policia Não creia que seja esta concessão insignificante difícil de obter pela Faculdade de Medicina que conta tantos membros exercendo alta influência na política do Em geral na nossa instrução criminal as verificações periciais mais importantes estão confiadas à polícia judiciária que as faz executar pelos médicos da polícia simples empregados administrativos demissíveis da confiança do chefe de polícia e por isso mesmo aliás muitas vezes com a maior e mais clamorosa injustiça suspeitados pelo público de parcialidade e falta de isenção 1904a20 Não é de admirar que o público pudesse assim pensar se o próprio Nina Rodrigues assinava estas palavras Claramente se vê assim que pelo menos para algumas das conclusões do exame os peritos se guiaram contra todas as regras médicolegais pelas informações que tinham do caso e não por aquilo que observaram diretamente 1904a73 Ou estas é o exercicio da medicina judiciária entregue salvo exceções muito honrosas a médicos de pouco escrúpulo e nenhuma competência científica 1904a26 Ao prevenir a seus alunos sobre a necessidade de possuir o perito uma forte envergadura moral Nina Rodrigues descrevia a um tempo o seu comportamento em relação aos médicos da polícia e de seus oponentes em relação a si próprio No nosso país com os nossos hábitos está o perito de contínuo exposto a ataques mais ou menos violentos pela imprensa E o que é mais para lamentar de ordinário são eles alimentados e provocados por médicos Já não digo das afamadas discussões médicas pela imprensa profana que entre nós tem acompanhado invariavelmente a todas as questões médicolegais de certo valor discussões em que menos se procuram elucidar dúvidas do que agredir e desrespeitar colegas com manifesto prejuízo dos créditos da profissão Casos há mais reprovados ainda de médicos que acobertados na responsabilidade de terceiros estranhos à profissão alimentam os país e do Estado carta relatório in Luiz A da Fonseca 1892 Muito antes de realizarse seu desejo já Nina Rodrigues estabelecera relações informais com a polícia O que não se pode conseguir oficialmente entre a Faculdade e a Chefatura de polícia obtive das minhas relações pessoais com os distintos médicos do serviço médicolegal desta última repartição 1902d43 Esta relação começaria a ser oficializada em 1905 um ano antes da morte de Nina Rodrigues e por iniciativa sua num acordo entre a Secretaria de Polícia e de Segurança Pública e a Faculdade de Medicina Nas bases deste acordo assinado por Nina Rodrigues ficava estabelecido que o Pavilhão Médico Legal da Faculdade mais tarde Instituto Nina Rodrigues seria dirigido pelo professor de Medicina Legal que também seria reconhecido pelo estado como perito oficial Ali passariam a ser feitas as autópsias e outros exames policiais que na época eram realizados em hospitais separados ou num anexo da delegacia No seu ofício ao diretor da Faculdade Nina Rodrigues justificava o acordo e retomava seu argumento E dizer que por longos anos os atos periciais mais importantes se realizaram nesta cidade dentro do edifício da Faculdade de Medicina as autópsias nas suas salas e anfiteatros de anatomia os exames de feridos no antigo Hospital de Caridade que funcionava em edifício compreendido no da nossa escola médica Infelizmente a Faculdade deixou perder então oportunidade tão excelente para prender desde logo em laços indissolúveis o serviço pericial da polícia ao seu ensino prático de Medicina Legal Sobrevieram a mudança do Hospital de Caridade para Nazaré a criação do necrotério deste estabelecimento que passou a receber os cadáveres enviados pela polícia a criação de sala de exames médicolegais na chefatura de polícia e com elas veio a dispersão dos elementos do ensino prático de Medicina Legal que cada vez mais iam fugindo e escapando a esta Faculdade Mas antes de tudo isto já tinha vindo com o governo republicano federativo a repartição nos Estados da direção dos serviços policiais e do ensino superior por dois poderes distintos o do governo do Estado e o da União De fato se o governo do Estado ou do Município chegasse a montar convenientemente repartições suas destinadas ao serviço médicojudiciário desta cidade se poderia dizer que de todo havia escapado à nossa Faculdade de Medicina não mais a superintendência ou a orientação em benefício dos seus cursos desta fonte de ensino prático mas que estariam perdidos para ela não só qualquer coparticipação direta nesses serviços mas ainda os elementos indispensáveis a um curso prático de Medicina Legal útil e proveitoso Terseia constituído assim um centro de estudos médicos de cujas concessões e favores passaria a viver o ensino de Medicina Legal desta Faculdade dela completamente independente senão mais tarde hostil e rival 1905c255256 Essa rivalidade prevista e de certa forma evitada por Nina Rodrigues na Bahia se concretizaria de forma bastante aguda alguns anos depois no Rio de Janeiro a partir da iniciativa de Afrânio Peixoto de apropriar para a Faculdade o saber prático desenvolvido pela polícia tornando claro que se tratava nos dois casos de uma disputa entre dois poderes o médico e o policial sobre um mesmo objeto Ambos acabariam no entanto por encontrar um modo de convivência as bases do acordo que Nina Rodrigues assinou com a polícia baiana seriam reiteradas com poucas alterações ao longo dos anos permanecendo ainda em vigência Estácio de Lima 1979 Tanto suas disputas como sua atuação conjunta talvez possam ser atribuídas à definição comum a ambos sobre sua área de atuação social a polícia médica nasceria de táticas próprias à polícia no controle das populações e era um conceito importante para a ciência médica desde o século 1745 Definindo o papel do perito como o de um técnico Nina Rodrigues ao mesmo tempo enfatizava a sua formação através do contato direto com o contexto social dos problemas de que ele deveria tratar E apesar de em vários artigos especializados oferecer exemplos do aspecto propriamente técnico desse trabalho análises químicas de manchas detalhes de uma autópsia etc ele se insurgia contra a ênfase que seus antecessores na docência da matéria fosse no Rio de Janeiro fosse na Bahia deram a este aspecto Falando sobre a influência perniciosa que exerceu a química toxicológica sobre o ensino da Medicina Legal ele criticava também a influência francesa cujas consequências apontava Em primeiro lugar influindo sobre a organização do ensino e fazendo que em 1854 a medicina legal que então quase se reduzia à toxicologia e à química fosse colocada na antiga seção das ciências acessórias ao contrário do que mais sabiamente havia feito o regulamento de 1832 que a tinha deixado na seção das ciências médicas Naquela seção era a química a ciência predileta a rainha por excelência E podese dizer sem errar que pelo amor revelado pelos estudos químicos pelo respeito que se votava aqui ao saber dos cultores dessa ciência a Bahia foi uma terra de químicos Para isso houve talvez explicação razoável em que afora a anatomia e as clínicas era a química a ciência destinada a ter entre nós maior desenvolvimento prático quer no ensino da farmacologia quer principalmente nas oficinas farmacêuticas que se criavam no país 1902d30 Os três últimos ocupantes de sua cadeira tinham vindo de uma experiência de ensino da química E tanto eles como os encarregados dela no Rio de Janeiro não deram à disciplina o cunho prático proposto por Nina Rodrigues prática que não se esgotasse nas experiências de laboratório mas tentasse resolver o problema latente de sua aclimatação pátria para constituir o verdadeiro ensino brasileiro da Medicina Legal Dessa proposta apoiada teoricamente pela nova orientação impressa à Medicina legal pelos estudos recentes da antropologia criminal nasceu a sua prática de pesquisa A verdadeira criação de um ensino médicolegal no Brasil data do dia ainda bem próximo em que os professores desta disciplina se resolveram espontaneamente a abandonar a grave reserva de sábios e inacessíveis áugures para descer às familiaridades mundanas do exercício e da prática forense Foi então fácil reconhecer que as apartosas e graves dissertações teóricas mesmo quando fruto de assíduos trabalhos de gabinete não eram ainda o ensino da medicina legal pois que a medicina judiciária é uma verdadeira clínica em que só o contato com os males e doentes sociais habilita os peritos a bem servir aos prepostos do saneamento moral da sociedade sejam juízes ou tribunais 1902d 22 Para contrarrestar o argumento do excessivo saber teórico das faculdades era preciso transformar os médicos em pesquisadores para evitar o confronto com o saber nascido da pesquisa médica em laboratórios criados fora das faculdades era preciso incorporálos à Faculdade enfim para contornar a crítica do saber médico como mera cópia de saberes europeus era necessário criar um saber específico a respeito da nossa circunstância ainda que ele se legitimasse com base em teorias européias Esses pontos ao mesmo tempo que resumem o debate que ocorria no interior da ciência médica da época descrevem também as táticas de atuação de Nina Rodrigues para a constituição da Medicina Legal Com o decorrer do tempo no entanto parecia inverterse o sentido da ruptura do saber específico com o saber médico generalizado ao se multiplicarem os objetos desse saber é como se a perícia se tornasse apenas um novo argumento ou uma nova fase da medicina social A atuação inicial de Nina Rodrigues insistindo na criação de um nicho profissional e lutando para mantêlo seria acompanhada de uma extensão do campo da Medicina Legal à medida que áreas cada vez mais amplas da vida social eram incorporadas a ela como objetos de interesse do perito De uma proposta no interior da faculdade à tentativa de aprovação de uma nova lei estadual da colocação insistente da questão para seus alunos à fundação de uma associação e de uma revista especializadas do exame dos casos mais diferentes de atentado à ordem social a sugestões de sua definição e classificação pelos códigos civil e penal Nina Rodrigues ampliou o círculo do debate sobre o papel da Medicina Legal e a importância social do perito Mas não se trata de pensar o seu percurso apenas como uma continuação ou reafirmação dos valores implantados pela medicina social no Brasil na primeira metade do século 19 O momento político era outro os parâmetros teóricos eram diferentes havia todo um elenco de atores sociais em conflito ou em conjunção que não se encontravam presentes antes Os valores da especialização são outros e às vezes diametralmente opostos ao daquele grupo de médicos que pretendeu cobrir toda a sociedade com o manto de Hipócrates A multiplicação dos objetos de interesse do perito começava a configurar antes a possibilidade de uma fragmentação indesejável dessa disciplina ainda mal constituída ameaçando a partilha de seu campo em vários domínios e a alocação de cada novo objeto nomeado a um especialista Nina Rodrigues parece ter tido uma percepção clara dessa possibilidade e terse antecipado a ela ao organizar por exemplo a sua produção científica em torno do eixo da Medicina Legal inclusive incorporando ou rejeitando suas investigações anteriores a partir de determinado momento deste novo ângulo46 Neste sentido o elogio de seus discípulos nomeando os campos de saber por ele percorridos é equivocado e enganador para Nina Rodrigues pareceria impensável destacar a sua criminologia da sua antropologia ou da sua psicologia Esta afirmação se tornará mais inteligível ao observarmos adiante a sua tentativa de apropriação fracassada de mais um objeto de análise o louco que acabou passando ao campo de outra especialidade médica a psiquiatria A oposição ao saber médico genérico em favor de um saber especializado além de estratégia política com o objetivo de enfatizar as vantagens do perito sobre o clínico geral deve ser também relativizada a medicina continuou a ser a ciência referencial de Nina Rodrigues e é este campo mais amplo que definiria em última instância suas alianças políticas Ignorando as dissidências teóricas internas ao campo médico e criticando severamente os profissionais da medicina relutantes na defesa de seus privilégios Nina Rodrigues defendia também sua autonomia em relação ao Estado ao mesmo tempo que reclamava a proteção deste A autonomia das corporações docentes modeladas nas das organizações universitárias alemãs ou inglesas apenas sujeitas à fiscalização do Governo no que toca ao valor profissional dos diplomas tal deve ser hoje a aspiração capital da nossa profissão E nas condições atuais de civilização do país e de riqueza pública só há um meio prático de levála a efeito é a constituição pelo Governo de um patrimônio de direção por ele também fiscalizada e cuja renda garanta o custeio do ensino Aos atuais institutos oficiais de ensino médico não deve estar reservado apenas o papel de escolas profissionais Devem se constituir padrões do ensino médico e grandes centros de cultura das ciências biológicas Quando amanhã destruído o frágil dique da atual exigência da modelação das Faculdades livres nas Faculdades oficiais tiver autorização para conferir diploma de médico quanto hospital quanta reunião de alguns médicos se quiser constituir o abaixamento do nível da instrução clínica encontrará corretivo nas escolas convenientemente organizadas para que se há de apelar como centros de aperfeiçoamento e o Governo saberá onde buscar profissionais na altura de auxiliálo na grave missão de zelar pela saúde pública e pela segurança interna e externa da Nação 1899a48 A ênfase na autonomia da ciência em relação ao Estado não é apenas um ponto retórico do discurso destinado a convencer os republicanos positivistas comteanos ou spencerianos de que a medicina não era uma ciência oficial47 Nina Rodrigues tem o cuidado de distinguir os interesses passageiros da política do momento das consequências duradouras que eles poderiam ter na definição da prática médica Prevendo possíveis disputas políticas entre os estados que possuíam faculdades de medicina e os que não podiam oferecer o seu ensino ao chamar a atenção por exemplo para a atuação de Julio de Castilhos no Rio Grande do Sul tenta mostrar a necessidade de se fortalecer o estatuto de ciência da medicina praticada nas duas faculdades existentes e de reforçar o papel do médico formado por meio do amparo legal de sua atuação Qual de fato a arte médica que existe fora das faculdades atuais Acaso o Sr Dr Castilhos não aplaude a criação de uma faculdade livre que vai ensinar a mesma medicina que as faculdades oficiais perguntava ele numa defesa dos direitos e privilégios dos médicos formados que ficou famosa A autonomia do campo médico sería delimitada pela intervenção reguladora limitativa do Estado evitando que a liberdade de uns se transforme em licença lesiva dos direitos de outros também a instância que conferia legitimidade ao saber médico ao desautorizar outros saberes de cura A constituição da Medicina Legal como uma disciplina autônoma em relação a outras disciplinas médicas é assim uma luta interna a luta maior pela preservação da Medicina institucional que estava sendo posta em questão naquele momento Antes de acompanhar as tentativas de Nina Rodrigues de incorporar os loucos e os negros ao seu esquema teórico objeto das duas últimas partes deste capítulo convém recolocar algumas das questões relevantes para a compreensão da importância da sua carreira como espécie de resumo de uma série de tendências médicas e políticas da época e que foram como que cristalizadas nela A relação problemática entre a expansão e a especialização da medicina parece ser a mais importante dessas questões Num primeiro momento da constituição da medicina institucionalizada no Brasil sua expansão política foi acompanhada tão de perto por uma extensão do saber médico a respeito da população Cf Roberto Machado 1978 que seria impossível separálos e dizer qual desses movimentos precedeu ou determinou o outro Seja como for essa amplitude de saberes essa multiplicação de intervenções na sociedade no limite punha em questão a sua própria definição como ciência Ao mesmo tempo que a institucionalização do saber médico em duas Faculdades garantia a exclusividade da reprodução desse saber exigia também dos médicos uma participação ativa na produção de um conhecimento efetivo da sociedade brasileira Isto é lutando contra a aceitação social de outros saberes de cura o curandeirismo a homeopatia que disputavam o terreno com a medicina tradicional competia aos médicos não apenas vencêlos politicamente o que conseguiram no nível jurídico mas também derrotálos ideologicamente luta ainda em andamento A especialização surgia nesse momento não apenas como uma forma de organizar internamente os diversos ramos da Medicina de maneira a acomodar melhor os progressos do saber mas também para cumprir essa função ideológica Isto não implica em que este movimento possa ser explicado apenas pela pressão dos seus competidores externos já que ele foi primeiro uma reação dos próprios médicos ao estado de sua ciência ao criticarem a ausência de uma produção científica nas faculdades emergindo fora delas Não apenas nos laboratórios ou institutos de pesquisa que pareciam promover uma ampliação do campo médico ao mesmo tempo que o tornavam socialmente mais visível mas também em associações profissionais que reclamavam a reorganização da Medicina e na multiplicação de revistas e jornais especializados e de instituições ou cargos onde o saber médico passava a ser aproveitado Já vimos como Nina Rodrigues clamava contra o desinteresse de seus colegas pelas reuniões da Sociedade Médica da Bahia mais tarde ele estendeu essa reclamação às associações profissionais nacionais por seu silêncio em relação às tentativas de transformar em lei a liberdade profissional 48 Em 1895 com outros médicos baianos ele fundou a Sociedade de Medicina Legal da Bahia tornandose seu primeiro presidente e também um dos redatores e o mais assíduo colaborador da Revista Médico Legal uma das primeiras publicações médicas especializadas do país Dois anos depois encarregado por seus colegas da Faculdade de escrever a Memória Histórica daquele ano o fez narrando com tal severidade e clareza os atos acadêmicos que ela permaneceria inédita até 1976 rejeitada pela Congregação 49 Fora da Faculdade ele levou projetos à Assembléia Legislativa do Estado propondo a reformulação dos serviços médicoslegais da polícia em 1892 e 1896 ao Congresso pela unificação das leis processuais Rio 1896 além de publicar artigos em jornais revistas nacionais e internacionais e livros sobre o assunto A luta de Nina Rodrigues e suas estratégias não eram realmente uma novidade já em 1881 o professor e o preparador de Medicina Legal da Faculdade do Rio de Janeiro tendo protestado contra o fato de serem chamados a fazer perícias toxicológicas para a polícia sem qualquer remuneração foram nomeados médicos consultantes da polícia E mesmo antes disso em 1877 o doutor Souza Lima havia promovido um acordo entre a municipalidade a Secretaria de Polícia e a diretoria da Faculdade e conseguiu abrir o primeiro curso de autópsias forenses do Brasil no necrotério da capital federal 1902d28 Nina Rodrigues foi seu aluno e não hesitava em chamálo o fundador da Medicina Legal brasileira Novidade foi o seu empenho sistemático nessa luta transformando a perícia num tema de tal importância que não só os legisladores foram obrigados a prestar atenção a ela nas propostas de modificações da lei penal ou na resolução de casos judiciais 50 como ela acabou tornandose uma arma ideológica da maior utilidade para as faculdades Instrumento novo que ao legitimar a entrada do médico na área judicial já que invadiu e dominou a nossa prova processual propiciava também o fortalecimento das faculdades ao concentrar a produção de um conhecimento específico sobre nossa realidade Eficácia simbólica que não desprezava o uso do terror fosse sobre a população que protestava contra a mutilação de seus mortos fosse como argumento aos poderes constituídos para comprovar a necessidade da instauração da perícia como elemento de controle dessa mesma população Na representação ao legislativo estadual em 1896 os médicos afirmavam no relato assinado por Nina Rodrigues Assim no estado atual do serviço de polícia a Sociedade de Medicina Legal declara e vos garante que só envenenadores imbecis não poderão contar neste Estado com a impunidade mais segura e infalível 1904a45 Ao evocar o conhecimento íntimo de certos rituais religiosos o perito evocava também o seu perigo para a sociedade De fato eu não creio que os magistrados mais obsedados na observância estrita da letra constitucional que houvessem sancionado em sentença a legalidade e constitucionalidade das curasfeitiços cheguem um dia em obediência à Constituição a justificar os sacrifícios humanos muitas vezes reclamados pelas próprias vítimas e a prostituição sagrada dos cultos das raças inferiores que conosco convivem E todavia deve ter a sua proteção constitucional quer o culto dahomano quer o yorutismo que entre nós existem como hei demostrado em alguns trabalhos 1899a3051 Em segundo lugar se a história da institucionalização desta especialidade mostra o quão intimamente ligadas estavam as disputas científicas e as lutas políticas da época aponta também para a necessária autonomia que cada uma mantinha em relação a outra Definindo precisamente um saber novo delimitando sua área de ação e organizando a sua institucionalização Nina Rodrigues estava sempre atuando politicamente fosse ao requisitar como próprio à Faculdade esse conhecimento que quase lhe escapa fosse fazendo a publicidade dessa disciplina aqui e no exterior fosse agindo no interior de associações profissionais ou tentando fazer aprovar leis que implementassem suas iniciativas acadêmicas Ou ainda ao lutar pela manutenção dos privilégios das faculdades e contra a ampla licença profissional que surgia no horizonte com a República Luta política interna à Medicina ou entre a Medicina e os que queriam pôr em questão seu estatuto de ciência Mas a sua era também uma política orientada pela noção da autonomia que a Medicina deveria manter perante o poder político até para que pudesse instituirse em seu interlocutor Essa exigência de autonomia não excluía a colaboração com o poder político ao contrário ela era necessária para que a medicina legal se transformasse numa disciplina de fato Diz ele em 1898 Para a consecução integral do desideratum a realizor tornase necessário o concurso harmônico do Poder Judiciário que deve ser compelido e habilitado a escolher convenientemente os peritos das faculdades de medicina que devem acharse em condições de poder dar aos peritos a sólida instrução prática que exigem as funções periciais e de uma boa lei sobre o exercicio da medicina que atenda com igual cuidado ao exercicio da medicina clínica profilática e da medicina judiciária e não seja manca e truncada como tem sido até hoje incapaz de compreender que a medicina possa ser mais alguma coisa do que a arte de curar 1904a1213 Ao expor claramente a seus alunos o objetivo a atingir na constituição dessa disciplina ele lhes dava também o exemplo da metodologia adequada para tratar dos objetos que ele elegeu para ela 52 Decidindose por estudar em primeiro lugar as nossas coisas e destacando na contribuição da medicina legal o problema latente de sua aclimatação pátria Nina Rodrigues resolveu também ao examinar a questão da capacidade civil e da responsabilidade penal do brasileiro ir até os seus alicerces mesmos isto é investigar as consequências da interação racial Assim fazendo ele se inscreveu não só no movimento da Medicina de seu tempo que criou a perícia este mandato de expropriação do comum dos homens de qualquer autonomia de decisão Castel 1978143 como também no movimento de criação de uma outra disciplina interessada no ser humano a antropologia Ao apropriarse desta nova disciplina de alguns objetos constituídos pela Medicina Legal a forma escolhida por Nina Rodrigues como a mais adequada para apreendêlos seria ainda sua metodologia por algum tempo AS ILUSÕES DA LIBERDADE Os peritos em Medicina Legal foram os primeiros a reclamarem Nina Rodrigues como seu patrono a ele talvez tivesse lhe agradado mais ser lembrado pelas finas análises das formas mentais a que se aventurou depois de esgotadas as possibilidades teóricas contidas nos resultados das mutilações corporais que ocuparam boa parte de sua carreira médica 53 Nos últimos anos de sua vida o lado psicológico dos problemas que analisava parece ter assumido cada vez mais o primeiro plano em suas preocupações abrindo todo um novo capítulo de interesses em sua biografia intelectual Não que este aspecto fosse desleixado anteriormente basta lembrar a admiração e o conhecimento que sua tese de doutorado e seus primeiros artigos na Gazeta Médica revelavam pelos trabalhos do grupo de Charcot na França mas seu zelo na constituição do campo e na institucionalização da Medicina Legal deixaram entre parênteses as suas análises psicológicas No entanto a preocupação pela morfologia da psicologia humana esteve sempre presente em seus textos e para além das diferenças exteriores de sua manifestação era na comparação de seus elementos constantes que residia a sua busca de compreensão deles era a unidade que superaria a diversidade que o interessava Curiosamente ao tratar de um tema como a mutilação cadavérica que o levava também a refletir sobre sua própria prática profissional ele colocava de forma muito explícita a sua visão teórica enfatizando a importância do método comparativo como instrumento privilegiado de análise 54 A crença na evolução mental dos seres humanos também aparece aí claramente formulada e diretamente vinculada às condições existenciais das Sociedades 55 A ênfase atribuída pelo próprio Nina Rodrigues às análises antropométricas particularmente à craniometria assim como a relevância dada por alguns de seus críticos a este aspecto de sua obra talvez tenham contribuído para tornar quase invisível uma passagem que embora tardia é muito importante em sua carreira o deslocamento da atenção dos aspectos fisiológicos para os aspectos psíquicos do comportamento humano 56 No entanto quanto mais psicológicas se tornavam as observações de Nina Rodrigues tanto mais sociológicas se mostram suas análises mais e mais a loucura por exemplo aparece como expressão das relações sociais entre os homens Isto era mais evidente nos exames periciais que realizava em pessoas da burguesia agrária e de aparente normalidade psíquica do que naqueles feitos em pessoas pobres ou selecionadas por terem cometido atos considerados desviantes em si mesmos homicídios estupros etc É aí que a sua argumentação vai se apoiar cada vez menos nos sinais físicos da doença e cada vez mais numa análise das relações sociais do examinado mostrando a importância que atribui a elas é aí ao alinhar os sinais que considerava indicadores da necessidade de afastar alguém do convívio social que Nina Rodrigues explicitaria as regras desse convívio por ele consideradas normais naturais Assim através de seu detalhado exame da conduta deviante de um senhor de engenho por exemplo homem branco podemos perceber que se nos negros ele observava comportamentos mais grosseiros de repúdio a uma norma social de cuja história estavam excluídos e se nos brancos esse repúdio assume em suas análises formas mais sutis de expressão era só o comportamento dos primeiros que Nina Rodrigues relativizava Ambos eram ameaças sociais e os dois deveriam ser retirados da vida em sociedade mas por razões diferentes os negros porque estavam historicamente defasados em relação a ela os brancos por não terem se adaptado às normas de conduta que eles próprios produziram 57 Sua percepção aguda da intensa diversidade dos casos que analisava não apenas entre si mas principalmente entre eles e as definições correntes nas revistas especializadas estrangeiras aliada a uma visão muito clara dos antagonismos e conflitos no âmbito de nossa Topografando os matizes raciais Como os Intelectuais Brasileiros Representaram os Africanos em suas Teorias Raciais no Final do Século XIX e Início do Século XX Nome do Autor Introdução O Brasil país marcado pela diversidade étnica e cultural também carrega em seu cerne as profundas marcas da história da escravidão e da colonização Nesse contexto as questões raciais emergem como um dos temas mais complexos e urgentes de nossa sociedade Ao longo dos séculos o racismo se entranhou nas estruturas sociais políticas e culturais do país moldando as relações entre os diferentes grupos étnicos e influenciando profundamente a vida dos brasileiros Para compreendermos plenamente as dimensões e implicações do racismo no Brasil é essencial olharmos para além das manifestações superficiais e explorarmos as raízes históricas e estruturais desse fenômeno É nesse contexto que as obras de Lilia Moritz Schwarcz e Mariza Corrêa emergem como importantes pontos de partida para uma reflexão mais profunda e abrangente sobre o tema Em O Espetáculo das Raças Schwarcz nos conduz por uma jornada pelo período que vai do século XIX ao início do século XX explorando as teorias raciais que permearam a ciência e a cultura brasileiras Ao analisar o papel dessas teorias na construção de uma hierarquia racial e na legitimação da desigualdade a autora lança luz sobre as raízes profundas do racismo no Brasil e suas ramificações em nossa sociedade contemporânea Por sua vez em As Ilusões da Liberdade Corrêa nos leva a uma investigação minuciosa da vida e obra de Nina Rodrigues um dos pioneiros da antropologia no Brasil Ao examinar as complexas relações sociais e profissionais que moldaram o pensamento de Rodrigues a autora nos convida a refletir sobre os desafios enfrentados pela historiografia ao tentar reconstruir o passado e sobre as limitações de nossa compreensão da complexidade da experiência humana Ao unir essas duas perspectivas somos confrontados com a urgência de reconhecer e confrontar as raízes profundas da desigualdade e da discriminação que ainda permeiam nossa sociedade À medida que mergulhamos mais fundo nas reflexões desses trabalhos somos desafiados a olhar para além das narrativas dominantes e a reconhecer as lacunas e limitações de nossa compreensão da complexidade da experiência humana Nesse sentido esta introdução busca lançar luz sobre o debate em torno das questões raciais no Brasil e destacar a importância de uma abordagem multidisciplinar e crítica para compreendermos plenamente as dimensões e implicações do racismo em nossa sociedade Ao refletirmos sobre as lições do passado e as lutas do presente somos convidados a trabalhar juntos pela construção de um Brasil mais inclusivo e igualitário para todos os seus cidadãos Nas próximas linhas iremos colocar sob escrutínio os trabalhos de proeminentes intelectuais como Lilia Moritz Schwarcz e Mariza Corrêa cujas obras lançam luz sobre as complexidades das questões raciais no Brasil Ao explorarmos essas análises e reflexões buscamos estabelecer um fio de articulação dialógica viva e orgânica entre os autores promovendo um diálogo interdisciplinar que nos permita avançar na compreensão e no enfrentamento dos desafios impostos pelo racismo em nossa sociedade Discussão No segundo capítulo de As Ilusões da Liberdade Mariza Corrêa analisa de forma meticulosa as complexas relações sociais e profissionais de Nina Rodrigues um dos pioneiros da antropologia e medicina legal no Brasil A autora revela as dificuldades enfrentadas na reconstrução de sua trajetória destacando a escassez de documentação e a predominância de relatos laudatórios que ofuscam uma compreensão crítica e abrangente de seu trabalho e influências Corrêa aponta destaca que A maior dificuldade em reconstruir as relações sociais de Nina Rodrigues reside na falta de informações explícitas e na natureza implícita dessas relações nunca plenamente detalhadas pelos que as viveram Esta citação resume um dos principais argumentos de Mariza Corrêa no capítulo 2 de As Ilusões da Liberdade Ela destaca a dificuldade que os historiadores enfrentam ao tentar reconstruir as relações sociais e profissionais de figuras históricas como Nina Rodrigues A ausência de documentação detalhada e explícita torna essa tarefa ainda mais desafiadora pois muitas das interações e influências importantes são apenas mencionadas de maneira implícita ou anedótica Esse ponto é crucial para entender as limitações e os desafios da historiografia especialmente quando se trata de personagens cujas vidas foram predominantemente registradas por biógrafos laudatórios que não se preocuparam em fornecer uma análise crítica e abrangente Além disso essa citação levanta uma questão pertinente sobre a natureza da memória e da documentação histórica A forma como as relações sociais são registradas ou a falta dela pode distorcer a compreensão que temos de figuras históricas perpetuando uma visão fragmentada e muitas vezes romantizada de suas vidas e contribuições A citação portanto não apenas ilumina o trabalho de Corrêa mas também oferece uma reflexão sobre a prática da historiografia em geral A obra enfatiza que as biografias existentes são predominantemente elogiosas dando mais atenção a aspectos superficiais de sua vida pessoal Essa abordagem gera um conhecimento fragmentado e insuficiente para uma análise crítica A ausência de correspondências regulares e publicações completas de sua obra dificulta ainda mais a compreensão das complexas redes de influência e interação que moldaram seu trabalho Martianiano do Bonfim um colaborador próximo de Nina Rodrigues recebe pouca atenção em seus escritos apesar de sua importância Esse fato exemplifica como muitas figuras significativas na trajetória de Nina Rodrigues são mencionadas de forma passageira ou implícita subestimando suas contribuições e o contexto mais amplo em que operavam Corrêa destaca passagens vívidas nos escritos de Nina Rodrigues onde ele descreve suas observações de forma quase lírica ou aterradora Essas descrições como sua emoção ao ver o embarque de africanos retornando à pátria ou as autópsias realizadas em Salvador oferecem uma janela para suas experiências pessoais e emocionais enriquecendo a compreensão de sua prática médica e social A autora argumenta que a atuação social de Nina Rodrigues é uma parte inseparável de sua produção intelectual Escrevendo na primeira pessoa e situando os eventos no contexto político e social da Bahia ele fornece um testemunho valioso do período Essa abordagem confere uma dimensão humana e contextual a seus escritos que vai além da mera descrição científica Corrêa sugere que o contexto social maranhense teve uma influência significativa na escolha dos temas de Nina Rodrigues Seu trabalho reflete um diálogo contínuo com o debate intelectual nacional e sua experiência baiana moldando sua perspectiva e enfoque analítico Essa conexão regional é crucial para entender a evolução de suas ideias e práticas A mudança de Nina Rodrigues para Salvador marcou uma nova fase em sua carreira intensificando seu envolvimento com as questões sociais e culturais da cidade A Bahia com sua rica diversidade cultural e desafios sociais ofereceu um cenário vibrante que influenciou profundamente sua pesquisa e prática médica O contato de Nina Rodrigues com a obra de Lombroso e de teóricos da antropologia criminal italiana e francesa teve um impacto duradouro em sua orientação teórica Apesar de reconhecer as limitações de aplicar esses postulados ao contexto brasileiro ele encontrou neles um ponto de partida valioso para desenvolver suas próprias ideias e metodologias A influência de teóricos como Lombroso Ferri e Garofalo é evidente na formação jurídica de Nina Rodrigues Seu envolvimento com o debate sobre novas ideias penais e a publicação de A Nova Escola Penal em 1893 demonstram como ele ajudou a moldar o pensamento jurídico no Brasil contribuindo para reformas penais significativas Nina Rodrigues começou a ministrar aulas de Medicina Legal o que ampliou seu interesse pelo campo jurídico Essa nova responsabilidade acadêmica o incentivou a explorar mais profundamente as interseções entre medicina direito e sociedade refletindo uma abordagem interdisciplinar em sua produção intelectual Mariza Corrêa em As Ilusões da Liberdade apresenta uma análise crítica e detalhada das complexidades da vida e obra de Nina Rodrigues Ao abordar as influências intelectuais as lacunas documentais e a rica produção intelectual do médico Corrêa oferece uma visão nuançada que desafia as narrativas simplistas e elogiosas revelando um retrato mais completo e humano de um dos grandes pensadores brasileiros Comparando com o cenário contemporâneo podemos observar como a ciência moderna com suas redes sociais e comunicação instantânea difere radicalmente do contexto de Nina Rodrigues Hoje a documentação e a transparência são muito mais acessíveis permitindo uma reconstrução mais precisa e menos anedótica das trajetórias intelectuais No entanto o desafio de separar o elogio acrítico da análise substancial permanece especialmente em um mundo onde as imagens públicas são constantemente moldadas e remoldadas pela mídia As ilusões da liberdade de Corrêa ecoam nos desafios modernos de discernir entre o superficial e o significativo na era digital onde as histórias pessoais e profissionais se entrelaçam de maneiras complexas e às vezes enganosas A análise das obras As Ilusões da Liberdade de Mariza Corrêa e O Espetáculo das Raças de Lilia Moritz Schwarcz revela um rico diálogo sobre as questões raciais e sociais no Brasil especialmente nas transições do século XIX para o século XX Enquanto Corrêa explora a trajetória de Nina Rodrigues pioneiro na antropologia e medicina legal brasileira Schwarcz examina as bases científicas e institucionais do racismo no país Ambas as obras são fundamentais para entender as complexas interações entre ciência sociedade e política no contexto brasileiro Em As Ilusões da Liberdade Corrêa destaca as dificuldades em reconstruir a trajetória de Nina Rodrigues devido à escassez de documentação explícita e à predominância de relatos laudatórios Nina Rodrigues que atuou nas áreas de antropologia e medicina legal é frequentemente apresentado de maneira superficial com biografias que se concentram em anedotas triviais Corrêa critica essa abordagem argumentando que ela obscurece uma análise mais profunda e crítica de suas contribuições e influências Por outro lado Schwarcz em O Espetáculo das Raças aborda o racismo científico e institucional que permeou a sociedade brasileira entre 1870 e 1930 A autora demonstra como as teorias raciais foram usadas para justificar e naturalizar as desigualdades sociais e econômicas travestindose de ciência positivista Essas teorias foram promovidas por intelectuais e cientistas que sob a fachada de objetividade científica perpetuaram um sistema de dominação racial e social Ambas as autoras exploram as influências intelectuais que moldaram seus sujeitos de estudo Corrêa aponta como Nina Rodrigues foi influenciado por teóricos da antropologia criminal como Lombroso Ferri e Garofalo Esses pensadores italianos e franceses contribuíram para a formação das ideias de Rodrigues embora ele tenha adaptado seus postulados ao contexto brasileiro Schwarcz por sua vez destaca como as teorias raciais europeias foram importadas e adaptadas pelos cientistas brasileiros servindo aos interesses das elites e perpetuando o racismo institucionalizado A escassez de documentação detalhada é um tema central nas obras de Corrêa e Schwarcz Corrêa lamenta a falta de correspondências e publicações completas de Nina Rodrigues o que dificulta uma análise crítica de sua trajetória Schwarcz ao reconstituir a afirmação profissional de médicos e advogados brasileiros também enfrenta desafios documentais mas utiliza uma abordagem histórica rigorosa para revelar as pretensões hegemônicas desses profissionais Ambas as obras contextualizam seus sujeitos de estudo dentro das dinâmicas sociais e políticas de suas épocas Corrêa situa Nina Rodrigues no contexto da Bahia explorando como suas experiências locais influenciaram sua prática médica e suas teorias antropológicas Schwarcz por sua vez analisa como as instituições científicas e jurídicas brasileiras do final do século XIX e início do século XX foram moldadas por ideologias racistas que buscavam legitimar as desigualdades sociais Corrêa critica as narrativas laudatórias que dominam as biografias de Nina Rodrigues argumentando que elas obscurecem uma compreensão crítica de sua vida e obra Schwarcz em contraste utiliza uma abordagem crítica para dissecar as narrativas científicas e institucionais que promoveram o racismo no Brasil Ambas as autoras portanto buscam superar as narrativas superficiais e anedóticas oferecendo análises mais profundas e críticas Corrêa e Schwarcz destacam a importância da produção intelectual de seus sujeitos de estudo Nina Rodrigues com suas descrições líricas e aterradoras oferece uma janela para suas experiências pessoais e emocionais enriquecendo a compreensão de sua prática médica e social Schwarcz por sua vez analisa como as teorias raciais promovidas por médicos e advogados brasileiros moldaram as percepções e políticas raciais no Brasil com impactos duradouros na sociedade A interdisciplinaridade é uma característica marcante das obras de Corrêa e Schwarcz Corrêa explora as interseções entre medicina direito e sociedade refletindo uma abordagem interdisciplinar em sua análise de Nina Rodrigues Schwarcz como antropóloga utiliza uma abordagem histórica e sociológica para dissecar as instituições científicas e jurídicas brasileiras revelando as raízes profundas do racismo institucionalizado As análises de Corrêa e Schwarcz permanecem relevantes no contexto contemporâneo O racismo difuso na sociedade brasileira mencionado por Schwarcz ainda é uma realidade e sua discussão permeia todos os segmentos sociais A necessidade de uma análise crítica e profunda das origens e evolução do racismo é crucial para combater suas manifestações modernas Corrêa ao destacar as lacunas documentais e narrativas superficiais também nos lembra da importância de uma historiografia rigorosa e crítica Comparando com o cenário contemporâneo podemos observar como a ciência moderna com suas redes sociais e comunicação instantânea difere radicalmente do contexto de Nina Rodrigues Hoje a documentação e a transparência são muito mais acessíveis permitindo uma reconstrução mais precisa e menos anedótica das trajetórias intelectuais No entanto o desafio de separar o elogio acrítico da análise substancial permanece especialmente em um mundo onde as imagens públicas são constantemente moldadas e remoldadas pela mídia Mariza Corrêa em As Ilusões da Liberdade e Lilia Moritz Schwarcz em O Espetáculo das Raças apresentam análises críticas e detalhadas das complexidades das questões raciais e sociais no Brasil Ao abordar as influências intelectuais as lacunas documentais e as redes de poder que moldaram suas épocas ambas as autoras oferecem visões nuançadas que desafiam as narrativas simplistas e elogiosas revelando retratos mais completos e humanos de figuras e instituições fundamentais para a compreensão da história brasileira No correr das páginas da história e ao cronicar os reflexos de um passado na estrutura atual os personagens que moldaram os dias passados continuam a ecoar em nossos tempos presentes Assim somos convidados a articular nossas reflexões a saga reflexiva levada a cabo por Franz Fanon escrita em letras vívidas de luta e resistência ressoa ainda hoje nas estruturas sociais e psicológicas do Brasil contemporâneo Nascido numa ilha distante suas palavras ecoam na atualidade como um chamado à reflexão sobre as cicatrizes do colonialismo e suas consequências na formação da identidade e da subjetividade Na teia complexa das relações sociais brasileiras as questões raciais ainda reverberam entrelaçadas com os fios da discriminação e da desigualdade estrutural Como psicólogo clínico confrontome diariamente com as feridas abertas pelo racismo cujas raízes se entranham profundamente na psique e na vida cotidiana das pessoas Emerge então a necessidade premente de dialogar sobre os processos subjetivos subjacentes ao sofrimento gerado pela racialização um tema muitas vezes negligenciado nas discussões contemporâneas Nesse emaranhado de reflexões as obras de Fanon surgem como faróis iluminando caminhos antes obscurecidos pela sombra do preconceito e da opressão Seus escritos não apenas desnudam as estruturas coloniais que moldaram a experiência negra mas também lançam luz sobre as intricadas teias de poder e privilégio que permeiam a sociedade brasileira Ao mergulhar nas páginas de Pele negra máscaras brancas somos confrontados com a dolorosa realidade da interiorização da inferioridade por parte do homem negro um reflexo das estruturas coloniais que ainda persistem em nosso tecido social Fanon nos lembra que o sofrimento do homem negro não é apenas uma questão individual mas sim o resultado de séculos de opressão e marginalização cujas raízes se estendem até os dias de hoje Entretanto as reflexões de Fanon também nos desafiam a transcender as limitações de uma análise unidimensional Ele nos lembra que nem todo sofrimento do homem negro é exclusivamente devido à racialização destacando a importância de um diagnóstico diferencial sensível às múltiplas facetas da experiência humana Todavia um olhar de escrutínio sobre o cenário contemporâneo do Brasil somos confrontados com os limites de nossa própria narrativa Ainda há vozes silenciadas histórias não contadas experiências não reconhecidas As obras de Fanon embora profundamente pertinentes também revelam lacunas em nossa compreensão da complexidade da experiência negra especialmente quando se trata das vivências de mulheres pessoas LGBTQIA e outras minorias dentro da comunidade negra Assim ao refletirmos sobre os ensinamentos de Fanon somos chamados não apenas a reconhecer as injustiças do passado mas também a enfrentar os desafios do presente com coragem e determinação Suas palavras continuam a ecoar como um lembrete poderoso de que a luta pela igualdade e pela justiça é uma jornada contínua que exige não apenas reflexão mas também ação concreta e comprometimento com a transformação estrutural de nossa sociedade nossa jornada através Ao concluirmos das páginas de O Espetáculo das Raças de Lilia Moritz Schwarcz e do capítulo 2 de As Ilusões da Liberdade de Mariza Corrêa somos confrontados com um mosaico complexo de reflexões sobre as questões raciais e sociais que ecoam no Brasil contemporâneo Nessas obras encontramos não apenas análises críticas e detalhadas das complexidades do passado mas também uma provocação para repensarmos nossas estruturas sociais e políticas à luz das lições aprendidas Ao mergulharmos nas reflexões de Schwarcz sobre o racismo científico e institucional que permeou o Brasil nos séculos XIX e XX somos confrontados com a urgência de reconhecer e confrontar as raízes profundas da desigualdade e da opressão que ainda persistem em nossa sociedade Suas análises meticulosas nos convidam a examinar criticamente as narrativas que sustentam as estruturas de poder e a trabalhar incansavelmente pela construção de um futuro mais justo e equitativo para todos s brasileiros Por sua vez os escritos de Mariza Corrêa nos desafiam a olhar para além das narrativas dominantes e a reconhecer as lacunas e limitações de nossa compreensão histórica Ao examinar as complexas relações sociais e profissionais de figuras como Nina Rodrigues Corrêa nos lembra da importância de uma abordagem crítica e abrangente ao estudar o passado uma abordagem que reconheça tanto os feitos quanto as falhas de nossos antepassados Ao unir essas duas perspectivas somos convidados a refletir sobre as interseções entre passado presente e futuro As lições do passado nos fornecem um ponto de partida para entender as injustiças do presente enquanto nossas ações no presente moldam o curso do futuro Ao reconhecermos as falhas e as limitações de nossos sistemas e instituições podemos trabalhar juntos para construir um Brasil mais inclusivo e igualitário para todos os seus cidadãos Nas linhas finais desse trabalho queremos consignar que não podemos nos dar ao luxo de ficar indiferentes ou complacentes Somos chamados à ação chamados a nos levantar contra a injustiça e a trabalhar pela construção de um mundo onde todos tenham a oportunidade de prosperar A jornada rumo à igualdade e à justiça pode ser longa e árdua mas é uma jornada que vale a pena empreender Que as reflexões desses dois trabalhos nos inspirem a seguir adiante com coragem determinação e empatia na busca por um futuro mais luminoso e inclusivo para todos Referências Schwarcz Lilia Moritz O Espetáculo das Raças Cientistas Instituições e Questão Racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 Corrêa Mariza As Ilusões da Liberdade A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1998 Fanon Frantz Pele negra máscaras brancas São Paulo Edições Ubu 2017
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TRABALHO MONOGRÁFICO O trabalho deve respeitar as normas para apresentação de trabalhos monográficos estabelecidas pela ABNT ver na sequência obrigatoriamente com título e com referência bibliográfica completa ao final FORMATO DE APRESENTAÇÃO O trabalho monográfico deverá ter extensão máxima de 10 páginas obedecendo o padrão ABNT dentre as quais não serão contadas nem os elementos prétextuais capa e sumário e nem os elementos póstextuais referência bibliográfica e anexos ARTIGO ACADÊMICO Definição e objetivos O artigo acadêmico consiste em uma análise de um tema específico dentro do recorte temático da disciplina o qual pode ser escolhido livremente peloa discente O tema selecionado pode constituir uma temática geral dentro do campo de estudos da disciplina ou um estudo de caso específico Qualquer que seja o caso o artigo deverá apresentar uma revisão bibliográfica e historiográfica sobre o tema destacando alguns dosas principais autoresas que exploraram o assunto e comparando suas perspectivas de análise indicando convergências eou divergências entre eles É esperado que oa discente se posicione criticamente no debate bibliográfico Sempre que possível a revisão bibliográfica deverá incluir um diálogo com os autores da bibliografia básica eou complementar da disciplina que abordaram temáticas semelhantes O artigo não precisa constituir uma contribuição original ao campo de estudos podendo ser apenas uma revisão de interpretações já consolidadas acerca da temática selecionada É permitido mas não necessário o uso de fontes primárias O artigo pode inclusive consistir numa análise de uma fonte documental específica sem prejuízo contudo da discussão bibliográfica CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO 1 Pertinência da revisão bibliográfica com adequação e rigor na compreensão das perspectivas dosas autoresas abordadosas 2 Diálogo com conceitos e com problemáticas gerais da bibliografia da disciplina 3 Autonomia intelectual e capacidade de posicionamento crítico e síntese pessoal 4 Redação clara e boa organização da argumentação MODELO PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGO ACADÊMICO O modelo a seguir é uma sugestão para facilitar a organização do artigo e do texto Isso significa que os conteúdos a seguir devem estar de alguma forma contemplados no artigo mas não precisam necessariamente ser apresentados separados em seções autônomas como os títulos indicados abaixo A subdivisão ou não do texto em seções é uma escolha estilística do autor Lembrese de que por sua própria natureza o artigo acadêmico demanda uma forma de argumentação particular para cada tema ou abordagem selecionada pelo discente de acordo com o percurso lógico da argumentação e a escolha da organização textual mais adequada ao tema e ao objeto será um dos critérios de avaliação Título preferencialmente com subtítulo explicativo no caso de título em que não seja possível identificar facilmente o tema e o recorte cronológico do artigo Resumo apresentação breve e sintética do tema do artigo e exposição do problema central que o artigo se propõe a desenvolver com o intuito de antecipar conteúdos ao leitor Pode ser apresentado à parte ou integrado ao texto na condição de um parágrafo introdutório mas deve ser apresentado no início do artigo Deve preferencialmente ter extensão máxima de 200 palavras Desenvolvimento e argumentação é o corpo principal do texto que pode opcionalmente ser subdividido em seções à escolha doa autora Deve incluir uma apresentação empírica do tema escolhido elucidando alguns dados objetivos a respeito do fenômeno histórico apresentado Também deve trazer discussão historiográfica de alguns dos principais conceitos e pontos de vista empregados pelos autores que se dedicaram ao tema Pode incluir análise de fontes primárias quando for o caso A articulação entre o nível empírico descritivo e narrativo e o nível conceitual analítico e interpretativo da exposição é um dos pilares do trabalho historiográfico e deverá ser observada no artigo acadêmico Considerações finais posicionamento crítico doa autora diante da bibliografia discutindo sua aplicabilidade e pertinência a partir da temática e da abordagem selecionadas para o artigo Pode ser apresentada à parte ao final ou estar integrada ao desenvolvimento Referência bibliográfica listagem completa das obras citadas e analisadas no artigo de acordo com as normas da ABNT Deve ser apresentada à parte ao final NORMAS DA ABNT PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS E REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA A ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas estipula normas para apresentação e padronização de trabalhos acadêmicos e para a elaboração de referência bibliográfica e citações as quais devem ser respeitadas nas avaliações da disciplina Consulte sempre os documentos oficiais atualizados da ABNT Segue aqui um resumo com a principais regras da forma como elas são costumeiramente empregadas na área disciplinar de História no Brasil Fonte Times New Roman ou Arial tamanho 12 com espaçamento entre linhas de 15 ou 20 duplo Margens 30 cm para as margens superior e esquerda e 20 cm para as margens inferior e direita Capa opcional segue o modelo de capa ou de segunda capa da ABNT que deve conter nome do autor no alto da página título do trabalho em destaque e no centro da página local e data ao final da página Opcionalmente no modelo de segunda capa pode conter uma indicação descritiva sumária da natureza do trabalho abaixo do título diagramado no lado direito da página Ver capa deste documento para referência Paginação no alto da página do lado direito A capa não deverá ser numerada e nem o sumário quando disponível A paginação deve ser numericamente iniciada após a capa mas o sumário não deve apresentar o número de paginação consulte este documento para referência Referência bibliográfica espaçamento simples entre linhas pulandose uma linha entre cada referência individual A referência bibliográfica deverá conter apenas os títulos citados ao longo do trabalho A referência bibliográfica ao final do trabalho deve seguir o seguinte modelo Livros SOBRENOME Nome Título do livro subtítulo edição quando houver Local editora data Artigos em periódicos acadêmicos SOBRENOME Nome Título do artigo subtítulo Nome do periódico opcional local editora volume número paginação data Capítulos de livros SOBRENOME Nome Título do capítulo In SOBRENOME Nome Título do livro subtítulo edição quando houver Local editora data paginação obs se o autor do capítulo e do livro forem idênticos a segunda ocorrência do nome pode ser suprimida Obs quando o livro for uma coletânea com vários autores apresentase o nome dos organizadores ou editores seguidos de Org ou Ed Citações textuais quando há citação direta de excerto de um texto de outroa autora ela deve ser indicada Citações podem ser curtas até 3 linhas ou longas mais de 3 linhas Citações curtas são apresentadas no corpo do texto entre parênteses Citações longas são apresentadas em bloco à parte com margem recuada em 4 cm à esquerda espaçamento simples entre linhas e com fonte menor do que no corpo do texto tamanho 10 ou 11 Devese pular uma linha antes e depois de cada citação longa separandoa do corpo principal do texto Em qualquer um dos casos citação curta ou longa as citações devem ser seguidas de referência bibliográfica que especifique a página de onde ela foi extraída Referências bibliográficas são exigidas ao longo do texto quando se faz referência às ideias de outro autor indiretamente por paráfrase ou por citação direta Elas podem ser feitas por dois sistemas distintos o sistema de notas de rodapé ou o sistema autordata Nota de rodapé a nota de rodapé deve conter a referência bibliográfica completa da obra seguida quando for o caso da página ou intervalo de páginas correspondente à citação ou às ideias apresentadas No caso de repetição da mesma obra em duas notas de rodapé seguidas na mesma página podese substituir a referência bibliográfica completa pela expressão Ibid seguida da indicação de página Quando houver referência à mesma obra em citações não consecutivas mas ainda localizadas na mesma página a expressão op cit pode ser usada após o nome do autor substituindo o restante da referência O sistema de notas de rodapé permite incluir comentários adicionais Autordata na sequência da referência ao autor no próprio corpo do texto devese incluir entre parênteses o último sobrenome do autor a data de publicação da obra e a página ou intervalo de páginas correspondente à citação de acordo com o modelo Autor data p XX O sobrenome do autor pode ser suprimido se tiver sido citado imediatamente antes no corpo do texto Note que o sobrenome do autor e a data apresentados devem corresponder à referência bibliográfica completa da mesma obra apresentada ao final do trabalho É necessário escolher entre o sistema de nota de rodapé ou o sistema autordata não sendo permitido o uso de ambos alternativamente no mesmo trabalho Se for escolhido o sistema autor data eventuais notas de rodapé devem ser usadas apenas para comentários e esclarecimentos adicionais que não pertençam ao corpo do texto MARIZA CORRÊA ÁS ILUSÕES DA LIBERDADE A ESCOLA NINA RODRIGUES E A ANTROPOLOGIA NO BRASIL 2ª edição revista MEMÓRIA Fundação Biblioteca Nacional ISBN 8586065170 301291 C824 ILU FAPESP UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO CDAPH COLEÇÃO ESTUDOS CDAPH namentos branças do passado fância e a adolescência na vida de escritores ileiros ria Helena Palma de Oliveira ti de memórias bastidores de histórias egado pioneiro de Armando Álvaro Alberto ra Chrystina Venâncio Mignot minimização do Magistério colígios do passado que marcam o presente tária Christina Siqueira de Souza Campos vera Lúcia Gaspar da Silva Organizadoras semínia Intelectual da Educação ambién 12ª edição Marcos Cesar de Freitas Organizador Mariza Corrêa AS ILUSÕES DA LIBERDADE A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil 2a edição revista ESTUDOS CDAPH SÉRIE MEMÓRIA CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E APOIO À PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO Reitor Altair Anacleto Lorenzetti OFM PróReitoria de Pesquisa PósGraduação e Extensão Programa de Mestrado em Educação Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Colegiado do CDAPH Maria Gabriela S M C Marinho Coordenadora do CDAPH Marcos Cezar de Freitas Maria de Fátima Guimarães Bueno Moysés Kuhlmann Jr Conselho Editorial Ana Waleska Mendonça Carlos Roberto Junior Cury Clarice Nunes Eliane Marta Teixeira Lopes Helena M B Bonnemy Lúcia Lippi Oliveira Luciano Mendes de Faria Filho Luís Felipe Serpa Marta Maria Chagas de Carvalho Rogerio Fernandes Zula Brandão CATALOGAÇÃO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO C824i Corrêa Mariza As ilusões da liberdade a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil Maria Corrêa 2a edrev Bragança Paulista Editora da Universidade São Francisco 2001 404p Coleção Estudos CDAPH Série Memória ISBN 8586965170 Inclui bibliografia 1 Rodrigues Nina 18621906 2 Medicina legal Brasil História 3 Antropologia Brasil História I Título CDD6141 1a Edição 1998 Correspondências para Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação CDAPH Av São Francisco de Assis 218 CEP 12916900 Bragança Paulista SP Email cdaphsaofranciscoedubr httpwwwsaofranciscoedubrcdaph Obra publicada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP Ainda quando ficasse assentado que a liberdade humana não passa de uma ilusão esta mesma ilusão seria bastante para dar à ciência social um certo plus que a diferencia e distingue das ciências naturais Tobias Barreto 1882 PREFÁCIO Este livro foi apresentado originalmente como tese de doutorado ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo em dezembro de 1982 perante uma banca composta pela orientadora Ruth Cardoso e pelos professores Luiz de Castro Faria do Museu Nacional Bolívar Lamounier do IDESP João Batista Borges Pereira e José Augusto Guilhon de Albuquerque ambos da USP Agradeço a eles tantos anos depois pela cuidadosa leitura e discussão do trabalho bem como a Plínio Dentzien Peter Fry e Antonio Augusto Arantes que me deram o bom apoio de sua presença naquela tarde durante a argüição da banca e a Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida que gentilmente ofereceram um brinde em sua casa a uma cansada nova doutora As dívidas de gratidão que acumulei durante o trabalho de pesquisa estão devidamente mencionadas ao longo do texto e no seu final Gostaria também de agradecer o estímulo que recebi de Michel Debrun para publicar o trabalho e o apoio do professor Marcos Cezar de Freitas em tornar esta publicação possível Dedico este livro a Rodrigo Corrêa Dentzien que foi quem sofreu mais de perto a dedicação de sua mãe à pósgradtração dos seus cinco aos quinze anos SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 I CONTEXTO 15 O desterro em nossa terra ou going native 23 Os argonautas nativos 35 2 NEXO 63 Uma política científica 75 Algo mais que a arte de curar 92 As ilusões da liberdade 112 Economia étnica 135 3 CONEXÕES 165 O sorriso da sociedade 171 A garantia da ordem social 179 Etnografia política 186 Entra Irene 220 A idade de ouro da higiene mental 230 APÊNDICES 261 CRONOLOGIA DE NINA RODRIGUES 265 BIBLIOGRAFIA DE NINA RODRIGUES 279 NOTAS 287 BIBLIOGRAFIA GERAL 385 AGRADECIMENTOS 403 As Ilusões da Liberdade INTRODUÇÃO Esta pesquisa é uma tentativa de analisar a produção teórica e a atuação concreta de um grupo de médicos misto de cientistas sociais que se designavam a si mesmos como membros da Escola Nina Rodrigues escola que apesar de bastante mencionada pelos autores que tratam da história intelectual brasileira ainda não foi analisada enquanto tal F de Azevedo 1955 e 1964 W Martins 1978 S Schwartzman 1979 A escola é também uma espécie de mito de origem da Medicina Legal brasileira A maioria dos médicos formados no Brasil no início do século passado ao escolherem essa especialidade se filiavam também à escola ou se diziam por ela influenciados de alguma forma Isto não é de espantar uma vez que até 1910 apenas duas faculdades de Medicina funcionavam no país no Rio de Janeiro e na Bahia e dado o particular zelo de Nina Rodrigues em tornar a Medicina Legal um ramo autônomo da medicina brasileira do final do século 19 Mas não apenas os médicos reivindicaram Nina Rodrigues como seu pai espiritual muitos cientistas sociais médicos de formação mas importantes na constituição do campo da antropologia no Brasil também afirmaram a filiação direta de suas pesquisas particularmente sobre a questão racial aos estudos de Nina Rodrigues sobre os africanos e seus descendentes Duas vertentes bem definidas do saber a perícia médicolegal e a pesquisa antropológica das relações raciais encontram assim um nexo comum na obra do médico maranhense que durante dezessete anos ensinou na Faculdade de Medicina da Bahia A história unilinear que os autodenominados discípulos ou os admiradores contam da escola diz mais ou menos o seguinte Raimundo Nina Rodrigues 18621906 brilhante professor e pesquisador dotado de uma personalidade carismática cujo valor intelectual foi reconhecido pelas personalidades médicas internacionais mais importantes de sua época reuniu em torno de si na Faculdade da Bahia um grupo de não menos brilhantes discípulos que depois de sua morte prematura espalharamse por vários pontos do país dando continuidade à sua obra e pondo em prática seus ideais científicos A Peixoto 1932c A Ramos 1937a Curiosamente nenhum dos discípulos analisou no detalhe as contribuições específicas de Nina Rodrigues ao panorama intelectual brasileiro todos eles ao apontálo como fundador precursor ou profeta descaracterizando também o contexto teórico no qual ele trabalhava acabam por relegálo a uma posição secundária e meramente regional nesse panorama sua grande contribuição à ciência tendo sido aparentemente a formação desses discípulos Discípulos que se o chamam como guia espiritual de suas iniciativas políticas mais gerais vão demolindo sua obra no particular ponto por ponto negando a validade de suas interpretações ao longo de sua própria produção intelectual A retórica utilizada pelos discípulos para validar o resgate intelectual de Nina Rodrigues efetuado na década de 30 apoiavase na ênfase à análise da realidade nacional que eles redescobrem em suas pesquisas A questão principal que Nina Rodrigues e seus seguidores se colocavam dizia respeito à nossa definição enquanto povo e a deste país como nação Da criação de critérios de acesso aos direitos da cidadania à construção de imagens ideais do país seus trabalhos procuravam respostas para esta questão certamente impregnadas das teorias científicas e dos interesses políticos deles e de sua época o que não diminui o seu interesse já que esta procura parece ainda ocupar boa parte dos esforços dos intelectuais e políticos brasileiros contemporâneos Aquela justificativa explícita encontrava seu par implícito no caráter exemplar de uma visão da ciência como anjo tutelar da sociedade contida tanto nas análises de Nina Rodrigues como nas de seus discípulos O resgate de sua contribuição científica se deu na forma de reedição ou de primeira edição dos livros de Nina Rodrigues em nível nacional tarefa realizada especialmente por Afrânio Peixoto o discípulo dileto e por Arthur Ramos o mais humilde de seus discípulos e na reclamação constante da prioridade de seus estudos particularmente a respeito da chamada questão racial legitimando assim sua própria jurisdição sobre determinados temas A análise da carreira institucional de Nina Rodrigues e de seus discípulos poderia levar a definilos simplesmente como funcionários do Estado atuando fosse na Universidade ou em outros círculos de difusão do saber associações científicas ou profissionais na política educacional ou editorial fosse mais diretamente nos aparelhos burocráticos públicos conselhos de saúde perícia policial secretarias de Estado etc Esses médicoscientistas sociais não se limitaram no entanto à aplicação da lei enquanto funcionários senão que em muitos casos a começar por Nina Rodrigues foram responsáveis pela criação ou alteração dela sua atuação no domínio jurídico indo desde questões específicas como determinações de paternidade até as de alcance social mais amplo como a difusão da obrigatoriedade da identificação civil Eles não se limitaram tampouco a serem membros de instituições já existentes foram planejadores e criadores de novas e em alguns casos seus primeiros administradores seus nomes tendo permanecido nelas para nos recordar isto Instituto Nina Rodrigues na Bahia Instituto Oscar Freire em São Paulo Instituto Afrânio Peixoto no Rio por exemplo Sua atuação cultural incluiu desde conclavos para eleições na Academia Brasileira de Letras até a ocupação de cargos na UNESCO Suas iniciativas nem sempre deram certo muitas delas não passaram de projetos no papel outras tiveram um alcance restrito ao âmbito de aplicação de sua especialidade ou de sua área de atuação política imediata mas algumas delas foram apoiadas e apropriadas pelo estado em nível regional e nacional Esta pesquisa que tentará circunscreverse à análise da atuação de alguns dos membros desta Escola a começar por Nina Rodrigues se encontra assim diante de algumas questões de alcance maior que não se pode evitar para situálos no contexto social brasileiro Questões como a da relação dos intelectuais com o Estado e a sociedade a da história das ciências sociais no Brasil e de sua institucionalização a questão das relações entre região e Nação e a da própria definição de cidadania Como se constituiu no Brasil uma elite intelectual quais os seus parâmetros teóricos e qual o âmbito de sua atuação Qual a sua composição e como ela se distingue de outras elites cujo critério definidor de atuação não é a pertinência acadêmica nem o domínio de um saber especializado Em que medida formas específicas de uma atividade definida como científica a medicina o direito a engenharia podem ser utilizadas como instrumentos políticos de controle social Qual a relação dessas atividades entre si e qual a sua ligação com o processo de instalação de relações autoritárias entre as categorias sociais tradicionalmente dominantes e as submetidas em nossa sociedade Em suma qual a relação histórica entre saber e poder na sociedade brasileira e onde a Escola Nina Rodrigues entra nesta constelação Se as questões levantadas por esta pesquisa são mais amplas do que as respostas que ela pode oferecer a análise da produção teórica e da atuação deste grupo autodefinido como tal torna claro que ao isolar estas questões umas das outras o que podemos ganhar em nitidez formal perdemos no entendimento de seu conteúdo concreto Ao observar a história da constituição dessa Escola percorrendo as linhas de relações entre seus componentes indicadas por eles mesmos é impossível deixar de perceber o cruzamento constante de várias redes sociais no seu interior redes definidas umas pela pertinência de classe de seus membros outras por sua filiação política ou ideológica outras ainda por lealdades regionais e assim por diante Longe de formarem um grupo homogêneo de intelectuais lutando pela implantação do progresso científico no país como seus membros gostavam de se autoretratar eles estão vinculados por laços políticos de parentesco regionais profissionais ou outros a interesses muitas vezes antagônicos entre si os mais diferentes possíveis Isso se deve em parte ao fato de as fronteiras entre as várias áreas de atividade intelectual não estarem ainda tão estritamente delimitadas que não pudessem ser cruzadas com frequência por esta espécie típica até a década de 30 o intelectual polivalente Devese também à rarefação intelectual da elite em geral o que lhes propiciava possibilidades de atuação não circunscritas aos limites de sua formação profissional Se algo fica claro da leitura das trajetórias intelectuais dos membros desse grupo é esta circulação deles e de seus pares circulação espacial institucional e política São no entanto os mesmos atores que parecem não conhecer limites à sua ação social os próprios agentes de um trabalho de circunscrição de suas esferas de atuação profissional que se expressam numa crítica aguda à polivalência e ao conhecimento teórico e no elogio da especialização e da aplicação prática do conhecimento A possibilidade de constituição do campo das ciências sociais mais particularmente da antropologia emergindo desse emaranhado de relações é o objeto da discussão introdutória do primeiro capítulo deste trabalho O Contexto se refere assim a uma discussão metodológica das condições dessa possibilidade enfrentada tanto pelos intelectuais do final do século passado quanto pelos nossos contemporâneos numa tentativa de situar as questões levantadas por esta pesquisa e a própria pesquisa de Nina Rodrigues no âmbito da atividade intelectual Como a produção 15 intelectual de Nina Rodrigues tem sido objeto ou do elogio ambíguo de seus discípulos ou do ataque político comumente tão desinformado quanto aquele e como o trabalho de seus discípulos é quase sempre mais evocativo do que analítico no segundo capítulo tento descrever a sua atuação e situálo também no contexto teórico de seu tempo Neste sentido não é apenas a apresentação do nó teórico e empírico que amarrava a produção intelectual de Nina Rodrigues ponto de partida referido pelos seus discípulos e no entanto nunca analisado mas também uma leitura de suas contribuições à constituição do campo da antropologia no Brasil de outra perspectiva que não apenas a da escola A da escola é retomada no terceiro capítulo Conexões onde indico não só as ligações explicitamente reivindicadas pelos discípulos como tento acompanhar resumidamente a trajetória de alguns deles as relações que eles próprios estabelecem entre suas carreiras e as que são possíveis de estabelecer do ponto de vista de suas consequências políticas para a sociedade brasileira como um todo Se por um lado aceito as definições dos membros desse grupo e acompanho a trajetória por eles mesmos traçada ao nomearem a si mesmos tanto como herdeiros de uma tradição intelectual quanto como constituintes de outra por outro lado tento não perder de vista o quanto suas definições e esta trajetória quando analisadas dentro de um contexto mais amplo parecem coladas a uma prática que é tanto política quanto científica É a história desta prática e de seus fundamentos e consequências que tento acompanhar aqui analisando a produção teórica e a atuação de alguns dos membros dessa Escola e sempre que possível apontando para as articulações que parecem existir entre este e outros grupos de intelectuais dessa época Se esta história é a de um grupo de intelectuais que no processo de se constituir se diferencia de outros grupos sociais criando novos campos de atuação é também um trecho da história de uma elite mais ampla que extrapola os limites das definições profissionais e inscreve sua presença nas instituições que regulam a nossa vida em sociedade 16 internalização da metrópole Em termos da conformação do saber a diferença é ainda mais acentuada nos dois casos entre uma universidade já institucionalizada e ponto de partida para a especialização dos vários campos das ciências sociais na Europa e a quase inexistência do saber institucionalmente enquadrado no Brasil Aqui a colônia somos nós e a passagem de objetos do poder colonial a sujeitos da soberania nacional coincide com a fundação de instituições do saber onde a antropologia vai aos poucos se constituir o que não deixará de ter consequências em sua história interna O processo de transformação do intelectual brasileiro num nativo em sua própria terra foi sempre acompanhado da percepção explícita de desterro intelectual produto menor dentre as incoerências que marcaram as transformações relevantes ocorridas em nossa história política Parece difícil então fazer uma reflexão a respeito da constituição do campo da antropologia no Brasil sem tentar refletir também a respeito do papel do intelectual nessa história e sobre o contexto institucional de sua atuação Além dos problemas próprios a este tipo de tentativa aqui se acrescenta uma dificuldade específica que é a abundância na literatura sobre o tema de discussões a respeito da composição ideológica da intelectualidade brasileira e a escassez de reflexões a respeito de sua atuação concreta ou de sua produção intelectual Tentando escrever sobre Nina Rodrigues e seus contemporâneos muitas vezes me vi na situação de ou estabelecer relações grosseiras entre a sua visão de sociedade brasileira e a sua atuação social ou abandonar qualquer tentativa de relacionar sua prática com sua produção intelectual já que a busca de informações pertinentes como por exemplo a atuação política no sentido estrito do termo ou a carreira funcional de qualquer um deles quase demandava uma nova pesquisa Em todo caso e sobre uma base historiográfica ainda frágil podese consultar uma série de trabalhos que tentam elaborar o que se poderia chamar de uma cartografia dos intelectuais brasileiros mapeando melhor certas áreas do que outras e às vezes excluindo algumas Estão neste caso Gilberto Freyre 1933 1936 1943 1959 Sergio Buarque de Holanda 1936 1944 1959 Fernando de Azevedo 1943 1955 Antonio Candido 1945 1954 1967 Guerreiro Ramos 1954 1961 João Cruz Costa 1956 Ivan Lins 1964 Nelson 17 Werneck Sodré 1965 Dante Moreira Leite 1969 Alfredo Bosi 1977 A L Machado Neto 1973 Carlos Guilherme Mota 1972 1977 Vamireh Chacon 19641977 Wanderley Guilherme dos Santos 1978 Bolivar Lamounier 1977 Sergio Miceli 1979 José Murilo de Carvalho 1980 Simon Schwartzman 1979 1980 e Wilson Martins 19761980 O fato de esta lista apesar de extensa ser ainda incompleta e de vários autores citados serem além de analistas eles próprios parte da história da formação da intelectualidade brasileira levanta um outro problema para quem quer refletir sobre esta formação¹ Todos estes autores tem em comum a tentativa de estabelecer alguma unidade sociológica num panorama social muito diversificado e a de incluir esta diversificação como parte do objeto de suas análises Todos estes autores também de certa forma redescobrem o Brasil cf M Meyer 1980 em cada um de seus estudos tentando não só dar um sentido à história da trajetória intelectual brasileira como um todo mas criando novos sentidos onde possam ser incorporadas as suas trajetórias intelectuais Ao mesmo tempo em que se exercitam na difícil prática de tentar abstrair a unidade da diversidade em nosso contexto político e social esses autores se estabelecem também ou por isso mesmo como interlocutores importantes no debate a respeito de nossos antepassados intelectuais É por meio deles que somos informados por exemplo da importância dos positivistas no cenário intelectual brasileiro da influência de Silvio Romero Nina Rodrigues ou Oliveira Viana em nossa prática ideológica contemporânea por terem encaminhado a discussão de certas questões e não de outras em alguns momentos cruciais e ficamos sabendo também a maneira como estas questões têm sido tratadas no debate intelectual Através de suas análises é possível assim tanto nomear as influências que eles descobrem nos autores que analisam como situálos a eles analistas num contexto teóricopolítico determinado O prefácio de A Bosi a C G Mota 1977 é exemplar neste sentido ao mesmo tempo que se refere à matéria tratada por Mota em sua análise da vida intelectual brasileira situa o autor e se situa num momento muito preciso da vida intelectual paulista O mesmo faz Antonio Candido 1967 em sua avaliação de Raízes do Brasil ou na sua apresentação do trabalho de S Miceli 1979 e é o que faz também Gilberto Freyre 1943 ao definirse como o fundador de uma antropologia institucional no Brasil Quer dizer neste passo nos deparamos com um desdobramento da situação do analista que não deixa de ter interesse para o antropólogo o investigador é por sua vez objeto de investigação e reavaliação constantes já que faz parte do mesmo corpus que analisa Talvez seja relevante lembrar que estes autores indicam ainda sua pertinência a esse universo ao tomarem partido mesmo muitos anos depois ao lado de determinadas posições e personalidades e contra outras tornandose também personagens das histórias que produzem E é aqui que fazem mais falta as análises que nos informem a respeito do contexto social e político onde se deu a institucionalização das ciências sociais no Brasil Como poderíamos entender por exemplo as críticas de Guerreiro Ramos 1954 a respeito da sociologia do negro brasileiro sem situálo nos quadros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB ou deixando de lembrar a influência do nacionalismo com parâmetro político num determinado momento histórico ou os argumentos dos interlocutores do autor nas ciências sociais naquele momento Toledo 1973 Salém 1980 Ou como distinguir a emergência da antropologia como disciplina autônoma sem rever a transformação que sua definição sofreu ao longo do tempo e sem lembrar que ao começar a ser utilizada entre nós esta palavra a formação do intelectual brasileiro se restringia quase só à possibilidade de tornarse ele um médico um jurista ou um engenheiro O que curiosamente levou a uma ampliação de seus interesses teóricos e de pesquisa o que eventualmente propiciaria o surgimento de novas disciplinas acadêmicas e não a um estreitamento desses interesses ou ao seu confinamento nos campos em que tinham sido instruídos Como consequência de sua ênfase ora na análise da atuação em nível institucional dos intelectuais brasileiros ora em suas preferências políticas os analistas costumam também deixar implícitos os parâmetros de ordenação que utilizam em suas próprias avaliações muitas vezes transformando a crítica ao modelo teórico do autor em questão numa crítica à sua atuação política cujos objetivos ou não são claramente expostos ou não são compartilhados pelo crítico ou viceversa criticando as propostas políticas analisadas com base em parâmetros teóricos estranhos ao contexto do autor ou de sua época Raimundo Nina Rodrigues por exemplo foi uma vítima constante desse tipo de análise que sistematicamente desconsiderou as propostas teóricas e metodológicas feitas por ele dada a ênfase da crítica ao enfoque biologizante de suas pesquisas o que ironicamente impediu também a percepção da importância deste enfoque na constituição das ciências sociais no Brasil Silvio Romero seria outro exemplo não fosse a análise de Antonio Candido 1945 trazendo para o primeiro plano a importância do seu método crítico no estudo da literatura e da sociedade brasileira Os mesmos autores que nos ensinam a situar os nossos antepassados intelectuais são assim também os criadores de nossos preconceitos na compreensão de sua obra e se parece inevitável que cada geração faça sua própria leitura das obras dos intelectuais que a precederam seria desejável que ampliasse também as condições do entendimento tanto da produção intelectual criticada como dos marcos de que partem seus críticos o que nem sempre ocorre Além das causas célebres isto é das discussões que orientam a produção das ciências sociais em determinados momentos eg as discussões que opunham raça e cultura ou feudalismo e capitalismo ou desenvolvimento e subdesenvolvimento ou sociedade de classes estamental patrimonial ou clientelista ou colonialismo e dependência etc teríamos também que ter acesso ao conhecimento de argumentos não tão célebres Ou seja ao cotidiano das relações políticas que foram pouco a pouco construindo as interpretações teóricas finalmente fixadas em letra de forma ou construindo as relações institucionais que as tornaram possíveis Quando Gilberto Freyre 1943 contia por exemplo que censurou Arthur Ramos por seu excessivo pendor pelas interpretações psicanalíticas e o introduziu a leituras antropológicas ou quando Edison Carneiro 1964 fala da má vontade do mesmo Arthur Ramos para com a pesquisa de Ruth Landes sobre os candomblés da Bahia ou ainda quando ambos E Carneiro e A Ramos remontam às discussões políticas com Gilberto Freyre a respeito dos Congressos AfroBrasileiros Carneiro 1964 é mais do que simples disputas interregionais o que está em pauta ainda que estas nunca sejam tão simples Tratarseia aqui de dar mais um passo na direção de um esclarecimento sobre a constituição da antropologia no Brasil fazendo uma leitura antropológica da história desta constituição Isto é uma leitura que não desdenhasse em favor dos alinhamentos ideológicos classicamente invocados as pequenas informações as intrigas de bastidores as acusações de bruxaria enfim as vinculações políticas num sentido amplo dos atores envolvidos nesta história Uma observação mesmo superficial da intrincada rede de alianças pessoais políticas institucionais vigentes hoje nas ciências sociais em nosso país sugere que são esses pequenos movimentos que desembocam afinal nas grandes configurações do saber e políticas A atuação social mais ou menos articulada de determinados grupos de intelectuais brasileiros só recentemente tem merecido o interesse de pesquisadores Machado Neto 1973 Stepan 1976 Miceili 1979 Schwartzman 1979 Carvalho 1980 Este interesse no entanto tem em geral se dirigido para os grupos politicamente importantes na constituição do campo das ciências chamadas exatas e dado maior importância à institucionalização das diversas disciplinas científicas aceitando como dadas as condições seja da definição dessas disciplinas seja de sua importância na configuração geral da distribuição do saber A influência dos integrantes da escola do Recife ou dos positivistas no meio intelectual brasileiro por exemplo apesar de sua reconhecida importância tem sido em geral analisada da perspectiva de sua filiação a certas correntes do pensamento o que se procura é antes demonstrar a preponderância de determinados autores especialmente Haeckel Comte ou Spencer na formação teórica dos membros desses grupos do que analisar a sua composição enquanto tal Ao invés de nomear precursores e estabelecer a genealogia teórica desses grupos de intelectuais que é também o modo como os próprios membros dessas escolas reivindicam a legitimidade de suas posições acadêmicas e portanto um dado do problema talvez fosse mais frutífero tentar analisar a relação de seus alinhamentos políticos e teóricos com sua prática sua atuação num contexto dado Um corte horizontal na composição da Escola do Recife poderia sugerir assim que se em sua orientação teórica Tobias Barreto e seu principal publicista Silvio Romero partiam dos mesmos supostos o que nem sempre é exato a atuação acadêmica e política de ambos se diferenciou radicalmente desde que o primeiro teve uma atuação regional e o segundo encontrou ressonância nacional a partir do momento em que se transferiu para o Rio de Janeiro Neste sentido como mostra Antonio Candido em sua análise é mais relevante dar atenção às polêmicas de Silvio Romero com José Veríssimo do que à influência teórica das discussões nascidas na Faculdade de Direito do Recife Tanto Silvio Romero como os discípulos autoproclamados de Nina Rodrigues ou os de Alberto Torres seus contemporâneos vão se manter fiéis a algumas questões levantadas por seus mestres publicitandoas mas num caso como nos outros o contexto institucional onde eles definem sua atuação e o contexto social onde aquelas questões e esta definição farão sentido são outros e outro é o seu alcance O resgate intelectual através do qual as obras de Tobias Barreto Nina Rodrigues ou Alberto Torres vão ser incorporadas a uma tradição filosóficojurídica médicoantropológica ou política é um processo em suma que nos informa mais a respeito dos objetivos dos que as resgataram do que de seus autores Para compreendermos o universo em que se moviam os autores que estaremos analisando aqui é preciso também deixar de lado num primeiro momento as demarcações institucionais e teóricas que definem as fronteiras dos vários campos científicos tais como os conhecemos atualmente e tentar recuperar o sentido que estes autores davam aos conceitos que utilizavam em seu próprio momento histórico Esta parece uma abordagem metodológica mais apropriada a fazer emergir a visão dos próprios autores que nos interessam sem subordinála de antemão a algum mentor teórico ou às interpretações de seus seguidores Ao invés de dizer como Arthur Ramos que basta substituir a noção de raça pela de cultura nos trabalhos de Nina Rodrigues para que suas pesquisas sejam aceitáveis em termos da ciência contemporânea parece mais importante situar tanto a relevância da noção de raça no contexto científico do final do século passado como a da noção de cultura no início deste A mera narrativa da substituição de conceitos ou de autores numa linha cronológica não dá conta da definição e delimitação de algumas áreas do saber nos termos em que foram concebidas nem esclarece a relevância de determinados postulados teóricos nessa demarcação E se a atuação dos contemporâneos e dos discípulos de Nina Rodrigues foi importante para demarcar estas áreas sua formação teórica sua posição social e o âmbito institucional de sua atuação os levaram constantemente a cruzar estas fronteiras e a combinar orientações teóricas heterogêneas combinações e cruzamentos que devem ser levados em conta na análise desta atuação A própria definição de cientistas sociais como antropólogos é muito recente e parece estar ligada tanto a razões de ordem prática consequência das divisões disciplinares institucionalmente criadas não só na universidade mas também em fundações concessionárias de financiamentos de pesquisas e nos órgãos governamentais da área da educação quanto a influências teóricas ou relações políticas no sentido amplo Peirano 1980 Esta distribuição disciplinar parece ter criado a necessidade de apropriação ou exclusão a posteriori de pesquisas pesquisadores ou temas em cada uma das áreas das ciências sociais que vão ganhando contornos mais nítidos pela ampliação de seus recursos humanos e institucionais E parece também tornar inevitável a colocação da pergunta sobre como desembaraçar a antropologia dos laços que pareciam prendêla tão fortemente no passado a disciplinas hoje dela tão diferenciadas como a medicina ou o direito por exemplo e como criar para ela um percurso uma trajetória bem definidos cujo ponto de chegada sejamos nós antropólogos contemporâneos Mas esta talvez não seja a questão mais relevante se o objetivo é entender como se constituiu o campo da antropologia no Brasil Quem sabe se justamente naqueles laços tão cuidadosamente ignorados ou rompidos nas análises cujo ponto de partida são definições contemporâneas do ofício de antropólogo não se encontram elementos mais ricos para esta compreensão Pretendo aqui sugerir que esta distribuição que hoje podemos observar nas ciências sociais foi o resultado não só da importação de modelos universitários estrangeiros mas também do lento trabalho teórico e político de vários grupos de intelectuais brasileiros e que a assim chamada escola Nina Rodrigues é um desses grupos cuja atuação foi importante tanto na constituição de uma área da antropologia como na da medicina legal Para compreender esta atuação é necessário fazer uma avaliação dos dados disponíveis a respeito da composição de nossa intelectualidade bem como do quadro institucional em que ela se movia à época de Nina Rodrigues além de uma referência ao tratamento que a questão racial que como veremos foi crucial na produção destes intelectuais recebeu naquele momento Sugiro assim que é necessário tornar os alinhamentos teóricos as alianças políticas e a atuação institucional de nossos intelectuais como partes de um contexto fora do qual ou isoladas elas não fazem sentido O DESTERRO EM NOSSA TERRA OU GOING NATIVE Não é preciso remontar à Colônia à influência jesuítica na educação brasileira ou à instalação tardia de universidades em nosso país para que percebamos quão incipiente e recente se comparada com outros países é a criação de uma rede de instituições do saber no Brasil O século 19 foi o momento em que se tentou recriar aqui todo um aparato institucional o saber aí incluído abandonado ultramar na pressa da transferência do controle metropolitano de Portugal para o Brasil Foi a partir de 1808 com a criação e recriação no país de instituições centralizadoras do poder e do saber que se tornou possível a formação de uma classe ilustrada nacional apoiada ironicamente naquelas mesmas instituições com que se pretendia reproduzir mais perfeitamente o domínio colonial Azevedo 1943 Schwartzman 1979 Carvalho 1980 Nesse momento também com o estabelecimento da Corte no Rio a antiga autoridade do senhor passava a exercerse pela primeira vez fora dos seus domínios territoriais transformandoo em senhorcidadão na expressão de Florestan Fernandes Esta figura paradoxal encarnaria de maneira adequada o dilema mais agudo do século 19 o de uma sociedade que deveria passar do regime da tutela colonial para o regime da Lei como garantia da igualdade dos indivíduos Passo complicado já que não se tratava simplesmente de colocar o país juridicamente em pé de igualdade com as nações civilizadas como diria um liberal da época isto é de produzir um corpus juris adequado ao estatuto de nação que o país desejava Tratavase de por um lado criar um aparato legal que expressasse o controle desejado pelo Estado nacional efetivando a liquidação dos focos locais de poder distribuídos pela superfície da sociedade brasileira desde a época colonial Mas por outro lado esse controle a ser enunciado na Lei necessitava da colaboração efetiva desses poderes locais se quisesse manterse Tratavase em suma da transformação dos até então objetos da norma colonial em sujeitos de cidadania nacional Cidadania desde logo acessível a uns poucos a questão do controle prático imediato de acesso às novas formas de representação criadas coma Independência seria resolvida em relação aos homens livres através da manutenção de um sistema eleitoral que formal e informalmente asseguraria a exclusão da grande maioria da população A própria dinâmica do processo de criação de novas vias institucionais de representação da sociedade civil no entanto dava margem a abertura de espaços ambíguos na estrutura social que teoricamente ao menos poderiam permitir o acesso de indesejáveis às terminais do poder Se não exatamente propícia à ascensão de uma fulgurante plebe na expressão de Gilberto Amado essa época de meados do século passado pode ser considerada como um dos momentos cruciais do debate entre a possibilidade da participação das massas na vida política do país e a reafirmação de sua exclusão Não só os movimentos sociais de rebeldia mas também a crescente urbanização da sociedade pareciam revelar um aumento e concentração de populações anteriormente menos visíveis ou sob maior controle populações que passava a ser necessário conhecer além de controlar Isto é no momento mesmo em que se colocavam as questões de cidadania e de nacionalidade na sociedade brasileira tornavase também um imperativo político definir mais claramente os critérios de inclusãoexclusão ao estatuto de cidadão nacional O nativismo literário foi uma das expressões do debate desses critérios outras começariam a aparecer nas instituições científicas da época A real eficácia do controle da situação que a elite política detinha seria acrescida uma eficácia simbólica e a parafernália de instituições culturais associações históricas e expedições de pesquisa promovidas pelo Imperadorprofessor dariam novas dimensões ao poder dessa elite O saber organizado por ela apareceria a seus próprios olhos como o resultado da apreensão pela ciência das leis que regiam às relações entre os homens leis que seriam socialmente institucionalmente reforçadas Tentando aprofundar o conhecimento da nossa realidade as novas classes ilustradas chegariam por vias transversais a uma problemática que era também central no pensamento científico europeu e norteamericano do seu tempo como dar conta teoricamente das evidentes desigualdades concretas entre os homens O atalho que esta questão tomou no Brasil estava diretamente ligado à presença entre nós de milhões de descendentes de africanos as classes perigosas aqui eram inicialmente compostas por eles e só muito mais tarde as classes trabalhadoras maciçamente integradas por imigrantes serão objeto da mesma atenção da ciência Não é por acaso que os discípulos de Nina Rodrigues se especializarão também em questões como acidentes de trabalho na década de 20 incluindo na sua preocupação o estudo da composição racial desta classe A organização do saber efetuada num primeiro momento seguiu não apenas as linhas mestras da ciência de seu tempo em termos de preocupação temática ou distribuição disciplinar mas também acompanhou as necessidades da sociedade que se reorganizava os primeiros cursos criados foram o de Medicina e Engenharia mais tarde os de Direito e Geologia As instituições que abririam espaço para as pesquisas dos naturalistas importantes na criação de toda uma tradição do que seria uma área da antropologia fundadas na mesma época só adquiririam importância no final do século E ainda que o valor ornamental dos diplomas concedidos pelas instituições do saber recriadas aqui tenha sido sempre acentuado pelos historiadores de nossa vida intelectual de uma forma ou de outra esses marcos institucionais aglutinaram os esforços de uma parcela das camadas dominantes na direção de iniciar um conhecimento mais sistematizado de nossa realidade oferecendolhes um instrumental teórico mais ou menos homogêneo mas não despido de contradições para esta tarefa Essas instituições não se resumiam no entanto aos centros educacionais tais como os concebemos hoje Além de receberem uma educação formal nas faculdades os intelectuais do século 19 discutiam as questões que consideravam relevantes nas redações de revistas e jornais nas livrarias em associações profissionais ou acadêmicas ou em clubes constituídos com a finalidade específica do debate da polêmica No dizer de Thales de Azevedo 1968 o século 19 foi o século da polêmica no Brasil e isso ainda é legível nos artigos ensaios e críticas publicados nos jornais livros e revistas da época Os polemistas tampouco desdenhavam argumentos que talvez parecessem deselegantes ou deslocados para o leitor acadêmico de hoje o escárnio a sátira os ataques pessoais Se em termos do jargão contemporâneo utilizado nas análises da história das ciências o Brasil não possuía ainda uma comunidade científica os intelectuais do século passado a julgar por suas biografias e pelos estudos sobre o período levavam uma vida muito movimentada produziam muito e acabavam por se encontrar fosse na porta da livraria Garnier no Rio fosse em alguma viagem pela Europa em geral encarregados pelo governo de alguma comissão Através da publicação de suas discussões e polêmicas criaram também uma espécie de opinião pública restrita e se organizaram em grupos igrejnhas e escolas Parece irônico que um país onde a escolarização é tradicionalmente baixa tenha visto proliferar tantas escolas Mas talvez justamente a baixa institucionalização do saber em nossa sociedade se comparada com outras tenha levado os intelectuais a se aglutinarem em grupos que se definiam uns por oposição aos outros ou ao seu meio Esses grupos círculos ou cliques além de demarcar o âmbito de relações pessoais ou de alianças políticas dos intelectuais eram também importantes para a obtenção de aprovação social do reconhecimento público deles enquanto tais O Instituto Histórico e Geográfico do Rio e de cada província a Academia Nacional de Medicina e as várias associações médicas provinciais a Academia Brasileira de Letras e suas variantes regionais todas essas instituições e associações e várias outras eram locais de incessantes transações fosse para reunir os votos necessários à admissão de um novo sócio fosse para aprovar uma moção memória ou proposta de algum membro ou para indicar um confrade para um posto vago em alguma secretaria jornal ou escola O intelectual brasileiro que não estivesse ligado a algum desses grupos passaria despercebido em seu contexto social como alguns deixaram de passar à história No panorama que se oferece da leitura de algumas das teses preparadas para as faculdades existentes dos artigos e crônicas de jornais ou da literatura de ficção e da dramaturgia nacionais que também estreavam parece que o mundo passava na forma de livros e jornais não só pelo centro político do país mas também pelos sertões No pequeno município de Escada sertão de Pernambuco Tobias Barreto publicou vários pequenos jornais um deles em alemão onde estampava suas diatribes contra os apaixonados da cultura francesa e o domínio intelectual da Corte e debatia temas políticos do momento como o ingresso da mulher em carreiras acadêmicas no Maranhão um grupo de jovens lançava um jornal anticlerical para publicitar as aspirações políticas que pareciam ser compartilhadas pelos intelectuais republicanos do final do século afirmando nas palavras de Aluísio Azevedo que três terços da atual humanidade é revolucionária em Montello 1975 No Ceará depois da dispersão da Padaria Espiritual os jovens se reuniam para ler Comte num grupo do qual faziam parte Araripe Junior e Capistrano de Abreu Aparentemente em todas as províncias circulavam os boletins da seita positivista proliferavam os templos maçons e se lia muito Na expressão de Silvio Romero a partir de 1870 um bando de idéias novas percorria o país Antonio Candido assim retratava esse momento Nurn Brasil entorpecido pelas humanidade que sob certos aspectos constituía verdadeiro fenômeno de inércia cultural a campanha pela cultura e pela revisão filosófica apareceu como força de renovação mental A critica de Silvio tão profundamente ligada a ela corre paralela ao incremento dos estudos de matemática relacionado em parte com o positivismo à intensificação dos estudos de ciências naturais à constituição da etnografia e da etnologia brasileira à transformação do Direito sob o influxo do evolucionismo à fundação da Escola de Minas etc Um verdadeiro movimento de despertar através dos padrões da cultura Parecenos que semelhante movimento não estaria sem correspondência nem é ocasionalmente que coincide com as primeiras tentativas da burguesia de tomar a si a direção econômica e política da nação Não é por acaso que se dá no Brasil em 1860 a grande vitória eleitoral do liberalismo democrático a que estava ligada uma mentalidade típica do capitalista progressista como Teófilo Otôni nem que em 1868 o partido liberal se finca com a consequência formação do partido republicano em 1870 Neste ano em que se finca o jornal de Limpo de Abreu e Rangel Pestana vai no seu auge o desenvolvimento das empresas de Mauá o positivismo grassa entre os militares o abolicionismo se consagra no ano seguinte O movimento intelectual e científico significava no campo da cultura o mesmo processo de rompimento com a autoridade tradicional e o mesmo desejo de afirmação nova e livre O movimento crítico do Recife que floresceu desde 1868 ou 1869 e que repercutiu imediatamente no Ceará logo seguido por fenômenos semelhantes ao sul foi a primeira manifestação orgânica e flagrante do processo de burguesamento refletindose nas esferas mentais Foi a primeira expressão coerente no campo literário e filosófico de uma ideologia burguesa no Brasil Antonio Candido 1963 126127 As idéias não só eram novas como pareciam circular por toda parte onde a palavra escrita tivesse leitores O que fica das impressões de leitura dos autores da época e dos analistas que se dedicaram a historiar esse período sugere que seria falso pensarmos no Brasil neste momento em termos dicotômicos de centro e periferia O Rio e São Paulo começavam a se constituir numa região política e economicamente importante e a decadência econômica e política do norte e nordeste estava em andamento o que implicava numa grande circulação não só dos homens de negócios e dos políticos como também dos intelectuais e de suas idéias E se a elite intelectual brasileira até meados do século passado tivera uma certa homogeneidade tanto em termos de formação como de carreira como sugere J M de Carvalho 1980 dado que a maior parte dela estudara Direito em Coimbra e se encaminhou para a carreira burocrática a partir de então ela parece se diferenciar em termos regionais e se distribuir em campos distintos de formação acadêmica As instituições do saber fundadas em algumas regiões passam desde aí a formar e agrupar os brasileiros que tinham condições de se profissionalizar nas novas carreiras Parecia haver de fato vários centros no país e os intelectuais iriam se reunir tanto em torno das escolas como das escolas que surgiam nesse período Ironicamente essa regionalização do saber provocaria também o surgimento de intelectuais preocupados com a nação e com a questão da nacionalidade Se a Corte pelas oportunidades de emprego na burocracia e pelas possibilidades de publicação que oferecia era um forte pólo de atração dessa nova geração de intelectuais a formação da grande maioria deles era feita ainda nas províncias de origem às quais eles continuarão a voltar mantendo vínculos de todo tipo com seus conterrâneos Se o universo intelectual que eles habitavam tinha a Europa como ponto de referência o sertão por oposição ao litoral e como sinônimo de um interior quase conhecido era ainda uma realidade e uma preocupação muito próxima O conhecimento do Brasil real será o triunfo mais constante com que eles jogarão no ambiente intelectual da Corte depois capital ainda dominado pelas idéias francesas sem abandonar no entanto a legitimação que elas emprestavam ao seu saber Este quadro é certamente válido apenas para uma pequena parcela da população das várias regiões do país e mesmo desta parcela pouco sabemos a respeito de sua composição efetiva seja em termos de origem social seja de formação intelectual Mas se os intelectuais brasileiros desse período não parecem ser originários das camadas mais pobres da população tampouco podem ser vistos apenas como portavozes dos interesses das chamadas classes dominantes Se pela sua posição profissional aliada aos laços da família podemos sintilos como membros das camadas mais altas da sociedade sua atuação não pode ser explicada só em termos de pertinência de classe É enquanto profissionais que eles se inserem nessas camadas dando uma nova tonalidade à dominação tradicional da burguesia agrária do período Se a maioria deles era proveniente de famílias de proprietários rurais todos eles atuariam num contexto urbano institucional e letrado o que já os distinguia de seu grupo de origem E se as opções profissionais eram limitadas isto seria compensado pelo amplo leque de interesses que atraiu a atenção desses intelectuais o que pode ser explicado tanto pelo número reduzido deles que os obrigava a se desdobrarem em especialistas de várias áreas quanto por seu envolvimento político e funcional Talvez a melhor maneira de perceber a emergência dessa camada intelectual de profissionais no seio das classes dominantes seja observando a forma pela qual ela delimitava seu campo de atuação as questões que colocava como relevantes e como definia nomeandoos os seus objetos de análise A questão principal que Nina Rodrigues e seus contemporâneos se colocavam dizia respeito à nossa definição enquanto povo e a deste país como nação o que os fazia colocar as relações raciais no centro de suas preocupações teóricas e de pesquisa bem como de sua atuação política Esta questão seria explicitamente levantada em nosso contexto cultural pela ciência e pela literatura através de Silvio Romero Nina Rodrigues Aluísio Azevedo e Euclides da Cunha e discutida por muitos outros autores Não deixa de ter importância para esta reflexão observar que tanto Silvio Romero que tinha formação jurídica como Euclides da Cunha engenheiro de profissão e ambos absorvidos hoje pela área de estudos literários pretenderam como outros colocar a questão das relações raciais dentro de um quadro de explicação rigorosamente científico Silvio Romero porque desejava compreender os fatores sociais da literatura e Euclides porque pretendia eliminar qualquer subjetivismo de sua narrativa sobre Canudos Nina Rodrigues será objeto de análise detalhada a partir do próximo capítulo quanto a Aluísio Azevedo apesar de estar fazendo ficção tinha o objetivo explícito de crítica aos costumes da sociedade de São Luis do Maranhão de uma perspectiva positiva Contemporâneas as obras desses quatro autores vão se separar em relação às questões que respondem quando tratam das relações raciais Aluísio Azevedo e Euclides da Cunha parecem mais preocupados em responder à questão da nacionalidade ou do nativismo recolocado isto é quem somos questão que só pode ser formulada a partir da transformação da colônia em nação e por uma elite intelectual então se constituindo Silvio Romero e Nina Rodrigues sem desleixar este ângulo da questão pareciam colocar sua ênfase num desdobramento dela isto é quem são eles acentuando a distância entre o analista e seus objetos de análise Silvio Romero expressou bem esta mudança de perspectiva assinalada por vários autores depois por exemplo F Fernandes 1975 e E Viotti da Costa 1977 do que parecia ser a formação de um sentimento coletivo de oposição ao domínio português no período colonial passavase a uma visão de grupo dominante em relação ao grupo dominado Desfeitas as ilusões políticas de uma luta de nativos contra o inimigo comum fosse ele a metrópole a Coroa ou os marinheiros tratavase agora de instaurar uma visão científica isto é imparcial sobre o estado da nova nação Silvio Romero colocava a questão A República teve a vantagem de revelar este querido povo brasileiro tal qual é enregue a si próprio ou aos seus naturais diretores o que vem a ser a mesma coisa Os vícios e defeitos de sua estrutura social tornaramse patentes aos observadores imapciais e cultos Até a independência este amado Brasil tinha aparecido sempre sob o tutela da realeza portuguesa que o havia dirigido guiado afeiçoado por assim dizer ao sabor de seus planos e desígnios até onde governos podem influir na estrutura das massas populares sobre as quais lhes cumpre velar No regime passado igual tutela havia sido exercida pela monarquia nacional que se poderia considerar em mais de um sentido uma continuação um prolongamento da realeza mãe Poderseia dizer que havia uma força estranha a estorvar o povo no seu andar normal e próprio Hoje este obstáculo jaz desfeito não existe mais tal embaraço ou tal desculpa O observador não divisa um astro estranho a desviarlhe os instrumentos de análise não encontra tropeços no caminho S Romero 1906 Convém contextualizar este fragmento de discussão dizendo pelo menos que ele é parte de uma ampla crítica de Silvio Romero ao livro de Manuel Bonfim A América Latina em que este autor se insurgia contra as teorias racistas e climatológicas para explicar o nosso atraso abrindo a discussão para a questão do imperialismo que ele chamava de parasitismo A virulência de que se revestia a crítica de Silvio Romero é ainda um bom exemplo do tom que assumiram certas polêmicas na época e ao anexar ao livro um folheto que publicara antes sobre os perigos da imigração alemã concentrada no sul do país Silvio deixava claro também que considerava a questão da raça e nacionalidade como mais ampla do que a mestiçagem entre brancos e negros o que seria explicitado em outros trabalhos seus Definindose como observadores da realidade nacional e como seus críticos imparciais os intelectuais brasileiros desse período ao mesmo tempo que definem o restante da população como seus objetos privilegiados de análise se constituem também como categoria social E de certa forma se separam da sociedade em que viviam ao elegerem a raça como primeiro critério de nacionalidade num processo que alguém já chamou de esquizofrênico Esquizofrênico ou paradoxal o resultado da escolha não dependeu inteiramente do que desejassem os intelectuais vivendo num contexto social que a ciência dominante da época definia como incompatível com a civilização ou o progresso e tendo que prestar contas ao mesmo tempo à sua condição de cidadãos dessa nação e de membros daquele universo científico tornavase difícil escapar à ambigüidade O desterro em nossa terra expressão também ambígua criada por Sérgio Buarque de Holanda para expressar os paradoxos desta condição teve no entanto conseqüências interessantes já que as obras desses quatro autores escolhidos como exemplos do intelectual de sua época expressavam com rara felicidade questões que datadas são ainda importantes em nossos debates hoje Se é preciso contextualizar historicamente a sua discussão para entender os seus muitos desdobramentos ou descontinuidades é também possível encontrar uma certa continuidade na análise desses problemas agora com outros nomes O preconceito racial denunciado por Aluísio Azevedo o branqueamento como solução proposta por Silvio Romero a multiplicidade cultural talvez malgrado sua vontade reconhecida por Nina Rodrigues e a resistência do homem do sertão louvada por Euclides da Cunha ocuparam e continuam a ocupar nossos esforços de pesquisa e as páginas dos jornais todos os dias Em suma ao relermos a história intelectual do Brasil é fácil nos perguntarmos qual o critério de inclusãoexclusão de autores ou temas nesta história a menos que se trate de obras tipo omnibus como os sete volumes de Wilson Martins Se as análises mais circunstritas como as de C G Mota e S Miceli criticam justamente generalizações do tipo formação da cultura brasileira ou do caráter nacional ainda temos poucas pesquisas que analisem em profundidade as relações entre a atuação social e a produção intelectual de grupos localizados importantes tanto na construção institucional como na constituição de áreas específicas do saber no Brasil E no entanto a nossa história política parece ter sido propícia à multiplicação de círculos de intelectuais que compartilharam uma linguagem comum teórica e metodológica quando não um projeto institucional Se tornarse nativo parece ter sido o problema principal dos intelectuais brasileiros dos anos 70 do século passado ele não foi tratado do mesmo modo nem vivido da mesma forma por todos os autores contemporâneos daquela geração E como nossa historiografia é ávara em informações sobre a matéria tratada por esses intelectuais e particularmente discreta a respeito de sua atuação social ficamos reduzidos a discutir a opinião dos analistas e passamos a criticálos não pelos seus trabalhos de pesquisa que não temos condição de avaliar mas pela maior ou menor importância atribuída a esses trabalhos pelos que os analisam Os atores do drama intelectual aparecem então como meros suportes de um destino traçado de trás para diante ou alhures e como precursores ou opositores de uma noção de ciência contemporânea de cujo trabalho só se aproveita o que seja coerente com as exigências da ciência social de hoje É como se nas palavras de W G dos Santos Dado que o período científico das ciências sociais no Brasil se inicia com a criação de cursos superiores a importação de professores estrangeiros e a introdução de técnicas de investigação de campo e dado que isto só se verificou no segundo quartel deste século seguese que a exposição da história do pensamento políticosocial brasileiro é extremamente simples até o segundo quartel deste século produziuse ensaios sobre temas sociais a partir de então produziuse ciência W G dos Santos 1978 Isto nos permite também esquecer a contribuição de Silvio Romero ou Capistrano de Abreu como pesquisadores de campo nas áreas da cultura popular e da linguística indígena ou o trabalho de Gonçalves Dias como etnógrafo para ficar em exemplos mais aparentes ignorando assim uma tradição que não só nos absolveria do pecado de não termos história como poderia iluminar ângulos imprevistos de nosso trabalho atual Esta rápida incursão sobre as condições de formação da intelectualidade brasileira nos meados do século passado sugere que a melhor forma de incorporarmos ao nosso debate as contribuições dos intelectuais que nos precederam talvez não seja atrelálos diretamente a configurações de saber já estabelecidas No entanto buscando entendêlos em seus próprios termos é inevitável a cada momento a intrusão do que supomos ser um olhar crítico a respeito da maneira como eles atuavam No final das contas tentar fazer a história de qualquer disciplina pode ser um exercício ilusório já que não podemos nos livrar do peso de nossa própria maneira atual de praticála sem correr o risco de dissolver os contornos do objeto que nos propomos a entender Apesar desta dificuldade não acredito que a única diferença entre uma pesquisa feita por Nina Rodrigues e qualquer pesquisa contemporânea seja apenas a diferença que pode ser expressa pelo que nós já sabemos e ele ainda não sabia O trabalho intelectual não é apenas constituído pela acumulação de informações novas a respeito de velhos temas ainda que a vigência continuada de uma determinada linha de pesquisa certamente aponte para sua relevância na compreensão do desenvolvimento interno de certas áreas do conhecimento A questão das relações raciais pela sua presença recorrente na produção das ciências sociais no Brasil é um bom exemplo disso Mas além de observar a continuidade demonstrada por um certo objeto de pesquisa no âmbito de uma certa disciplina ou anotar a acumulação de conhecimento sobre ele seria preciso também fazer um esforço por reconhecer diferenças na maneira de nomear este objeto na linguagem utilizada para apreendêlo ao longo da história da formação de qualquer disciplina se quisermos entender a sua importância nesta formação Não basta afirmar que as relações raciais por exemplo eram um tema óbvio e que se propunha quase naturalmente aos contemporâneos de Nina Rodrigues uma vez que vários outros temas que hoje nos pareceriam igualmente salientes não mereceram a mesma atenção como este tema também não a mereceu em outros momentos mas sim questionar a maneira pela qual ele recebeu o estatuto que lhe atribuímos e qual o seu lugar entre outros temas importantes naquele momento A relação entre um certo objeto de pesquisa relações raciais e a emergência de uma determinada disciplina a antropologia apenas parece óbvia se compartilharmos a definição biológica subjacente a ambos num dado momento Isto é se aceitarmos que o estudo dos seres humanos é antes de mais nada um estudo de sua morfologia física seremos levados a fazer uma história natural da antropologia tornando também lógica a sua conexão com as ciências médicas Se este é um aspecto importante da história da constituição desta disciplina já que era a maneira como se definiam aquelas relações num certo momento para passar do âmbito de uma história natural para o de uma história social ou política da antropologia é preciso examinar as suas relações com outras disciplinas que se constituíram no mesmo contexto Estas relações não são apenas abstratas correspondências teóricas mas derivam principalmente das relações que determinados grupos sociais mantinham entre si e do lugar por eles ocupados na nossa sociedade Não estou pensando aqui apenas nas disciplinas mais próximas como a sociologia por exemplo mas também em áreas menos prestigiadas do conhecimento que se formaram a partir das relações desses grupos e no mesmo contexto teórico e social como por exemplo a medicina legal Neste sentido não são apenas as continuidade internas a um tema específico como o das relações raciais ou outros igualmente reiterados as que desejo perseguir aqui mas principalmente as suas descontinuidades Isto é como os aparentes desvios no tratamento de um tema ou objeto de pesquisa foram também relevantes na abertura de outros caminhos que não pareceriam nada naturais se vistos apenas de uma perspectiva de filiação teórica ou institucional ou política cada uma delas tomada isoladamente São em suma os percursos de algumas das filhas desmandadas da antropologia refrasenado a expressão de RoquettePinto o que mais me interessa analisar aqui Vejamos em primeiro lugar o que alguns intelectuais escolhidos como exemplos de sua época entendiam por antropologia e como trataram da questão racial já que seu tratamento parece ter sido paradigmático não apenas em termos de constituição interna deste tema mas também da delimitação externa da antropologia no Brasil OS ARGONAUTAS NATIVOS Em outubro de 1856 por sugestão do Instituto Histórico e Geográfico D Pedro II assinou o decreto de criação da Comissão Científica de Exploração destinada a estudar os recursos naturais das províncias do norte do Brasil e nomeou Gonçalves Dias para chefiar a seção de Etnografia A Comissão só se poria a caminho três anos depois e as frustrações e glórias desses exploradores incluindo uma aventura com camelos no sertão do Ceará estão narradas com detalhes por outros autores Braga 1962 Pereira 1943 O que interessa aqui é apontar a forma como começa a ser utilizada entre nós a palavra etnografia e como parecia apropriada à elite intelectual e política da época que o poeta do indianismo fosse chamado a ser o nosso primeiro etnógrafo oficial Gonçalves Dias levou consigo instruções muito detalhadas a respeito de suas tarefas Ele deveria estudar os indígenas do Brasil em seus aspectos físico moral e social deveria moldálos e retratálos em diversas posições empregando a heliografia e o desenho medir sua estatura força muscular e ângulos faciais verificando a aplicação das teorias de Gall e Camper Deveria observar sua atitude mímica hábitos crenças modo de enterrar os mortos vida social grau de cultura disposição das casas e aldeias alimentação métodos de agricultura e comércio e número da população Aprender as línguas das várias nações redigindo sua gramática e um codiguizinho de todos os atos dos indígenas que se assemelhe a uma espécie de Direito Publico Internacional Deveria ainda colecionar múmias crânios armas ornatos utensílios domésticos e de trabalho e instrumentos musicais E levava também o encargo diplomático de recolher as opiniões e queixas dos índios sobre os brancos verificando se não seria possível chamar à indústria tantos braços perdidos Pereira 1943 A mesma orientação utilitária que fizera com que a comissão começasse seus trabalhos pelo Ceará dada a possibilidade de existência de jazidas minerais naquela província se revela também no projeto de relações com os índios O redator das instruções Araujo Porto Alegre apesar de ter demonstrado perceber a amplitude do que seria necessário saber para começar a conhecer os grupos indígenas brasileiros mostrou também pouco espírito prático ao supor que um homem sozinho fosse capaz de recolher todas estas informações Gonçalves Dias por sua vez estava mais interessado nos mestiços achando notável que o Ceará das nossas províncias aquela em que se contam menos escravos e onde se encontram menos indivíduos da raça indígena pura seja ao mesmo tempo a que apresenta os tipos mais belos e mais bem caracterizados de mistura das raças Isto ele escrevia em carta publicada no Jornal do Comércio do Rio em maio de 1859 porque o relatório de seu trabalho na Comissão se chegou a ser redigido perdeuse Poeta e funcionário público aparentemente circulando tão à vontade pela Europa onde foi comprar os instrumentos para seu trabalho como pelo sertão do Ceará onde os exploradores eram chamados de estrangeiros Gonçalves Dias é bem um representante do nativismo romântico que dali para a frente seria impiedosamente criticado pela intelectualidade brasileira O barão de Capanema cunhado e amigo do poeta e também membro da Comissão na seção de Mineralogia escrevendo para ela da Europa tinha ironizado sua missão dizendo que o mundo científico olhava com mais curiosidade para os argonautas dos macacos do que outrora os quarenta séculos para os heróis gauleses E de fato as instruções da Comissão tinham sido transcritas no Boletim da Sociedade de Antropologia de Paris como exemplo do que se deveria fazer nesta área de pesquisa Castro Faria 1952 Daí em diante as palavras etnografia etnologia e antropologia parecem ser usadas quase indiferenciadamente tanto no sentido de pesquisas sobre a cultura material dos índios brasileiros como no da contribuição mais imaterial de índios e negros à nossa cultura mantendo no entanto uma forte ênfase no que hoje qualificaríamos de antropologia física A seção de Antropologia criada no Museu Nacional no âmbito das reformas de 1876 sob a direção de Ladislau Neto a criação dos Arquivos do Museu Nacional onde saiu no mesmo ano o artigo Contribuições para o estudo antropológico das raças indígenas de João Baptista de Lacerda e o curso de antropologia dentro da série de palestras sobre ciências naturais do ano seguinte exemplificam este uso A mesma ênfase se dará depois na Exposição Antropológica de 1882 e na definição das pesquisas sobre os grupos indígenas que especialmente médicos e naturalistas alemães desenvolveram desde o final do século no Museu Paulista e no Museu Goeldi A transformação seguinte que se pode observar em relação às pesquisas sobre os indígenas brasileiros será uma reação mais política do que teórica contra uma visão museológica do índio e o processo que se inicia nos primeiros anos do século passado vai aos poucos constituir uma área específica da antropologia no Brasil Stauffer 1960 Na autodefinição de seus praticantes esta área acabaria por se apropriar do termo etnologia Mantida a ênfase biológica é possível observar algumas variações no emprego desses termos Ao analisar a produção nacional existente em sua época a respeito dos grupos indígenas Silvio Romero já utilizava a palavra etnologia com aquele significado particular conforme a Etnologia Selvagem de 1875 Mas ao começar a pensar no meio e na raça como condicionantes da literatura brasileira e incluindo o negro como um fator etnoantropológico importante em nossa formação cultural passava a usar o termo etnografia aparentemente por julgálo mais abrangente e distinguindoo implicitamente do termo antropologia Diz ele em 1888 que o concurso das diversas raças no espetáculo de nossa história problema peculiar de etnografia brasilica foi a base de todos os meus trabalhos de crítica literária 1953 Criticando a ênfase exagerada que os românticos tinham dado à contribuição do índio para nossa formação como povo insistirá nos três povos antropológica e etnograficamente distintos que entraram nessa formação o português o índio e o negro Embora nunca mencione a definição de Balbi 1826 Silvio Romero talvez acentue no uso do termo etnografia a conotação de classificação dos grupos humanos através de sua língua que ele originalmente possuía talvez a mesma razão da escolha do termo para nomear a seção entregue a Gonçalves Dias na Comissão Científica Se à etnografia parece ficar reservada a definição cultural de um grupo humano antropologia nos textos de Silvio Romero parece referirse exclusivamente ao domínio do biológico nessa definição Esta é também a maneira como Nina Rodrigues vai utilizar a palavra desde as epígrafes como antropologia patológica ou antropologia criminal que encimam seus artigos sobre mestiçagem ou estudos de craniometria na Gazeta Médica da Bahia passando por As Raças Humanas e até Os Africanos no Brasil Ao justificar sua análise do vocabulário das línguas africanas faladas no Brasil Nina Rodrigues parece dar ao termo etnografia a mesma conotação aqui sugerida para o uso dele por Silvio Romero afirmando que o assunto sai dos domínios restritos da linguística para o domínio mais geral da etnografia e da história 1977126 Quanto a Euclides da Cunha todo um capítulo de Os Sertões era dedicado à complexidade do problema etnológico no Brasil no qual mencionando os tipos antropológicos de graus dispares nos atributos físicos e psíquicos que contribuíram para a formação da nossa raça criticava as teorias em voga entre os nossos antropólogos Ai são considerados igualmente discutíveis o branqueamento futuro previsto por Silvio Romero a extensão da miscigenação cultural apresentada por ele e por Nina Rodrigues ou o nativismo de Gonçalves Dias Diz Euclides Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único quando há certo muitos E conclui Não temos unidade de raça Não a teremos talvez nunca Invertemos sob este aspecto a ordem natural dos fatos A nossa evolução biológica reclama a garantia de evolução social 195763 Para ele o mulato dominava no litoral enquanto que no sertão o tipo que prevalecia era o curiboca ambos tendo no entanto o branco como denominador comum Mas Euclides acabava por concordar com Nina Rodrigues no trecho que chama de um parêntese irritante ao afirmar que o mestiço dada a mistura de raças mui diversas é quase sempre desequilibrado Diz ele É que são inviOLáveis as leis do desenvolvimento das espécies e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior se não há esforços que consigam do africano entregue à solicitude dos melhores mestres o aproximarse sequer do nivel intelectual médio do indoeuropeu porque todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança como compreenderse a normalidade do tipo antropolôgico que aparece de improviso enfexando tendências tão opostas 195798 Quanto ao sertanejo graças ao seu isolamento É um retrógrado não é um degenerado Repetindo as conclusões de Nina Rodrigues a respeito de Antonio Conselheiro e seus seguidores já enunciadas nos estudos sobre o bandido negro Lucas da Feira e o regicida Marcelino Bispo Euclides da Cunha afirmara a mesma crença do médico na herança biológica de traços culturais Diz ele O fator étnico preeminente transmitindolhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização E se classificava Antonio Conselheiro como doente nos mesmos termos utilizados por Nina Rodrigues parecia distinguir as duas faces do argumento deste quando afirma Evitada a intusão dispensável de um médico um antropologista encontráloia normal marcando logicamente certo nível da mentalidade humana recuando no tempo fixando uma fase remota de evolução O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado na fase persecutória ou de grandeza o segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização um anacronismo palmar a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos 1957133 Euclides parece ter lido melhor os artigos de Nina Rodrigues sobre o tema do que muitos dos seus discípulos Para todos eles em suma e observadas algumas variações antropologia etnografia e etnologia eram sinônimos de pesquisas ou abordagens que levaram inevitavelmente a pensar a questão da nossa raça isto é do povo brasileiro E ainda que nenhum deles utilizasse esses termos para se referir a uma determinada especialidade ou disciplina parece claro que o campo de estudos que eles cobriam correspondia ao da questão racial Antes de termos tido antropólogos diplomados tivemos então intelectuais que se preocuparam com uma antropologia do brasileiro ainda que suas definições não fossem as nossas e ainda que o sistema educacional não lhes oferecesse a possibilidade de especialização neste campo hoje reconhecido como pertinente às ciências sociais E independentemente do objetivo de descobrirmos predecessores ou reconstituirmos um fio comum na argumentação a respeito dos objetos dessa ciência social parece relevante observar que a chamada geração de 70 abriu perspectivas novas na vida intelectual de seu tempo ao se interessar pela questão da literatura da política ou da religiosidade de membros da comunidade nacional que não eram considerados como parceiros no jogo político Antes de ser pensada em termos de cultura ou em termos econômicos a nação foi pensada em termos de raça Dominante a noção de raça não excluía no entanto uma reflexão a respeito da economia da política ou da cultura mas as subordinava ao âmbito de sua discussão Talvez justamente por ser dominante esta é uma noção quase sempre implícita é difícil encontrar uma definição do que estes autores entendiam por raça a não ser indiretamente ou através de suas propostas políticas indiscutivelmente racistas Temse afirmado que uma ideologia racista teria sido desnecessária inútil no Brasil uma vez que os negros estavam aqui como que naturalmente apartados de qualquer processo de decisão social e que essa sua invisibilidade política aliada à ascensão de alguns indivíduos negros foi o que deu origem ao mito da democracia racial compartilhado pela população e pela elite dominante Degler 1971 Skidmore 1976 Costa 1977 Hasembalg 1979 Na Europa ou nos Estados Unidos inteiramente dedicados à construção de uma sociedade burguesa teria sido necessário erguer uma barreira científica contra a igualdade e a democracia postulados do liberalismo vigente que servisse como justificativa ideológica das desigualdades sociais e da exclusão econômica de parcelas da população definidas por sua incompleta capacidade de participação naquele universo de cidadãos iguais Se nos Estados Unidos essa barreira cumpriu a função de justificar a exclusão do mercado de trabalho de toda uma parcela de sua população nos países imperialistas europeus ela teria facilitado a exploração econômica de povos considerados inferiores No Brasil esta justificativa teria sido inútil e desnecessária uma vez que o liberalismo sendo aqui apenas um adorno social um privilégio de classe ou um discurso estratégico não havia também o risco concreto de deslocamento das classes dominantes pela maioria excluída de voz e voto nos processos de decisão social Dada ainda a existência de uma estrutura de relações sociais apoiada no paternalismo ou no clientelismo vigente entre dominantes e dominados no período de transição da escravidão para o trabalho livre e uma fraca constituição do mercado de trabalho o resultado teria sido uma política de persuasão moral Hasembalg 1979 como elemento determinante na manutenção do sistema de desigualdades sociais Ainda que se possa concordar com a observação de que o favor tenha sido uma mediação universal Schwarz 1977 em nossa sociedade o que de resto não implica em exclusão da violência nem os proprietários mais seguros de sua clientela terão deixado de ouvir atentamente as recomendações de Taunay em seu Manual do Agricultor Brasileiro 1839 Vigilância sem punição é ilusão A punição deve ser escolhida com moderação aplicada razoavelmente conforme a qualidade e a conduta do delinquente e então executada em plena vista de todos os escravos acompanhada de grande solenidade de maneira que a punição de um escravo ensinará e atemorizará os outros Stein 1961 Este conselho que parece ter sido seguido à risca por grande parte dos proprietários de escravos era também coerente com o Código Criminal do Império de 1830 no qual ao lado da extinção das penas infamantes das Ordenações Filipinas se afirmava a manutenção da pena de açoites destinadas aos escravos Talvez se passe com o clientelismo e o paternalismo o que LéviStrauss 1962 afirmou ter ocorrido com o totemismo a ênfase na representação de uma situação de modo a diferenciála muito nitidamente de outras pode levar ao exagero sobre o seu alcance Seja como for as relações entre senhores e escravos os cidadãos e nãocidadãos por excelência certamente não excluíam de seu quadro nem a violência nem a presença de uma legislação discriminatória que deixaria de existir apenas no final do século 19 Antes de se argumentar a respeito da inutilidade de um sistema de segregação racial seria necessário comprovar sua inexistência O que se não implica retornar a um modelo historicista tampouco significa desconhecer a importância da história daquelas relações para a explicação das desigualdades sociais que se apoiavam sobre distinções raciais especialmente num período em que essa história era o presente dos homens que trabalhavam para manter essas desigualdades 30 Em todo o caso não parece ter sido apenas pela persuasão ideológica apoiada em relações de favor entre as raças que os negros e seus descendentes foram socialmente excluídos da participação de vários setores da vida pública brasileira mas também pela manutenção de uma política autoritária em cuja definição a presença da discriminação não pode ser esquecida Essa exclusão parece ter sido também o resultado de uma atuação coerente apoiada por um racismo científico que legitimou iniciativas políticas seja no nível nacional como no caso dos privilégios concedidos à imigração que tiveram como consequência uma entrada maciça de brancos no país seja em nível regional com políticas específicas de repressão das atividades religiosas ou culturais dos negros como em Pernambuco através da ação do Serviço de Assistência a Psicopatas que na década de 30 se especializou na internação e controle das lideranças religiosas do Recife Se não foi explicitado em leis civis discriminatórias como a segregação racial norteamericana o racismo enquanto crença na superioridade de determinada raça e na inferioridade de outras teve larga vigência entre os nossos intelectuais no período do final do século passado e início deste sendo o ponto central de suas análises a respeito de nossa definição como povo e como nação O racismo de Nina Rodrigues tantas vezes chamado a desqualificar suas pesquisas empíricas era partilhado por quase todos os intelectuais importantes de sua geração os quais não só citavam os mesmos autores de Buckle a Gobineau como colocavam a questão racial nos mesmos termos embora nem sempre concordassem com as consequências dessa colocação A tônica de suas manifestações era a analogia que estes intelectuais estabeleciam entre raça e nacionalidade e a definição de nosso povo como uma população de mestiços Num artigo publicado no Jornal do Comércio do Rio em 1903 e que seria reproduzido trinta anos mais tarde como a introdução a Os Africanos no Brasil Nina Rodrigues afirmava Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não pode deixar de impressionar a possibilidade da oposição futura que já se deixa entrever entre uma nação branca forte e poderosa provavelmente de origem teutônica que se está constituindo nos estados do Sul donde o clima e a 31 civilização eliminarão a raça negra ou a submeterão de um lado e de outro lado os estados do Norte mestiços vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e pronta mas associada à mais decidida inércia e indolência ao desânimo e por vezes à subserviência e assim ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas as explorações de régulos e pequenos ditadores É esta para um brasileiro patriota a evocação dolorosa do contraste maravilhoso entre a exuberante civilização canadense e norteamericana e o barbarismo guerrilheiro da América Central E essa visão nos libertará estou certo da insânia de que um sentimentalismo doentio e imprevidente já pensou em nos querer contaminar Não se pode qualificar de outro modo a pretensão de atrair para o Brasil a imigração dos negros americanos Se por extrema infelicidade nossa semelhante aberração de um sentimentalismo criminoso pudesse ser algum dia outra coisa do que aquilo que por felicidade realmente é uma utopia a todos os respeitos sem possibilidade de execução prática no préstimo de um protesto contra a premeditação desse atentado contra a nossa nacionalidade encerrariam os presentes estudos a maior recompensa que ao autor fora lícito esperar quaisquer que pudessem ser os dissabores dele decorrentes Nina Rodrigues 19778 Esta não era a preocupação localizada de um intelectual de província ventilada em nível nacional no ano anterior numa conferência realizada no Rio de Janeiro Silvio Romero dissera quase a mesma coisa estendendo a sua crítica à imigração não controlada Em tais condições se estes são os ensinamentos da história se a nossa nacionalidade é uma nacionalidade lusoamericana e se ela quer continuar a ser o que é para ficar sendo alguma coisa e não se pode conceber que não o deseje porque este monstruoso fato seria único em toda a vida da humanidade se não chegamos ainda a um tal grau de loucura que prefiramos a nós mesmos os estrangeiros isto é os italianos e os alemães que são os que para cá imigram em massa e para os pontos determinados e escolhidos do país se não desejamos erigir em princípio a mania do alienigismo se não nos queremos transformar em outros tantos Calabares preferidores de raças estranhas à nossa própria raça se por outro lado não podemos eficientemente contar com o elemento puramente indígena primitivo porque este além de muito reduzido achase expresso nos altos e longínquos recantos do oeste se também não podemos mais contar com o elemento africano porque o tráfico felizmente acabou nem o ideal de virmos a constituir um novo Haiti ou um outro São Domingos é digno de ser imitado se tudo isto é a verdade irrefragável não temos outro recurso senão apelar para um reforço do elemento português já que europeus de outras origens quaisquer não querem vir cá espalharse um pouco por toda parte e os das duas procedências que nos enviam imigrantes por nefastos erros da aglomerados nas belas regiões do Sul e são hoje um perigo permanente para a integridade da pátria S Romero 1979215 ênfase original Embora discordasse de Silvio Romero em relação à mestiçagem considerando erro deplorável reconhecer a utilidade relativa do cruzamento afrolusitano em que se vai absorvendo o elemento negro da nossa população já que isto apenas ocasionaria uma perda de tempo e de energia para a raça branca além de não acreditar no branqueamento futuro da população Nina Rodrigues colocava a questão nos mesmos termos em que Silvio a analisava Capacidade cultural dos negros brasileiros meios de promovêla ou compensála valor sociológico e social do mestiço árioafricano necessidade do seu concurso para o aclimatamento dos brancos na zona intertropical conveniência de diluílos ou compensálos por um excedente de população branca que assuma a direção do país tal é na expressão de sua rigorosa feição prática o aspecto por que no Brasil se apresenta o problema o negro Nina Rodrigues 1977264 ênfase original Silvio Romero parece ter sido de fato o seu interlocutor preferido excluídas as citações dos autores que tratavam teoricamente da questão da mestiçagem é a ele que Nina Rodrigues mais se refere às vezes para concordar e muitas vezes discordando de suas opiniões Na famosa questão de se Bantos ou Sudaneses contribuíram com maior proporção de seu sangue para a constituição do nosso povo por exemplo eles se separam radicalmente Mas mantêm em comum a necessidade desta interrogação como relevante Silvio Romero por seu lado parecia fazer questão de desconhecer o trabalho de pesquisa de Nina Rodrigues talvez porque não lhe agradassem as conclusões que o médico maranhense tirava de suas investigações empíricas sobre o presente da miscigenação quando ele preferia pôr o acento numa futura população brasileira já branqueada talvez porque desde 1894 Nina Rodrigues se mostrasse em frontal desacordo com ele e dava muita ênfase aos argumentos de seu arquiinimigo José Veríssimo Sobre o Animismo Feiticista publicado em capítulos na Revista Brasileira do Rio em 1896 e sobre um artigo que seria incluído em Os Africanos no Brasil assim se expressava Silvio Romero Depois de proferido o citado rebate sobre o esquecimento em que sempre no Brasil se deixou o estudo de nossas origens africanas apareceram uns pequenos escritos na Bahia acerca do feiticismo dos pretos daquela zona e de alguns levantes que ali se deram por eles promovidos em fins do século XVI e nas primeiras quatro décadas do século seguinte Não deixava de ter algum interesse essas achegas para o conhecimento das aludidas origens mas evidentemente por esse caminho iremos ter às produções anedóticas ao gosto das já referidas a respeito dos índios O que havemos mister é conhecer à luz dos novos processos da ciência social o estado exato das sociedades africanas que enviaram representantes ao Brasil e a parte com que entraram na formação da nova nacionalidade aqui fundada Esta é a questão o mais é esgrimir no ar S Romero 1953238 ênfase original Capistrano de Abreu outro contemporâneo de Nina Rodrigues e que compartilhava com Silvio Romero a crença na preeminência dos grupos Bantos na nossa formação étnica fez em carta um comentário que talvez explique o desconhecimento sistemático que ambos apesar de interessados na questão afetavam pelas pesquisas de Nina Rodrigues preferindo citar os pesquisadores ingleses na África ou trabalhos de norteamericanos Escrevendo a Guilherme Studart em abril de 1906 dizia Capistrano Não achei nada de interessante no trabalho de Nina Rodrigues sobre Palmares em geral não posso tolerálo depois que profanou o crânio do Conselheiro felizmente desagravado pelo incêndio e afirmou que nosso patrício queria passar por novo Messias C de Abreu 1977175 Comentário de historiador mas também uma boa ilustração a respeito de como era vista a especialidade a que Nina Rodrigues se dedicava e que ele próprio qualificava de mutiladora Outra possível explicação para este pretenso desconhecimento poderia estar na formação e no objetivo da produção intelectual destes três autores Silvio Romero jurista como Capistrano dava como ele ênfase ao conhecimento de nossa história e da história dos contingentes humanos que entraram na nossa formação como povo para situar a questão da inclusão de novas raças na nação brasileira através da imigração vista como determinante de seu futuro Nina Rodrigues apesar de não desconhecer a importância do aspecto histórico da questão estava muito mais diretamente envolvido com as suas manifestações contemporâneas com o cotidiano de sua história presente Talvez por isto o intelectual de sua geração que não sendo médico já que entre estes as idéias de Nina Rodrigues tiveram maior vigência como veremos mais se interessou por seus trabalhos tenha sido Euclides da Cunha também preocupado com a análise de um evento muito próximo Como a raça para Nina Rodrigues o meio para Euclides não era uma abstração ou uma generalidade mas estava no centro de suas preocupações e era uma parte fundamental de sua formação teórica Euclides de certa forma resumiu e ultrapassou o pensamento dos intelectuais de sua época a respeito da questão racial contribuindo também para popularizála através do sucesso nacional que foi Os Sertões Falando sobre as populações sertanejas ele juntava numa frase a preocupação com a história o interesse pelo presente e a percepção da importância da imigração em nosso destino como nação A sua instabilidade de complexus de fatores múltiplos e diversamente combinados aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem as tornam talvez efêmeras destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra Retardatários hoje amanhã se extinguirão de todo Além disto mal unidos àqueles patrícios pelo solo em parte desconhecido deles de todo nos separa uma coordenada histórica o tempo Euclides da Cunha 1957 ênfase original À questão angustiante de como pôr em andamento o progresso numa sociedade que parecia ser por definição refratária a ele todos estes intelectuais evolucionistas em maior ou menor grau responderão com o tempo Ao alerta paradoxal de Euclides Estamos condenados à civilização ou progredimos ou desaparecemos Nina Rodrigues respondia com uma colocação muito pragmática E diante da necessidade de ou civilizarse de pronto ou capitular na luta e concorrência que lhes movem os povos brancos a incapacidade ou a morosidade de progredir por parte dos negros se tornam equivalentes na prática Ao otimismo de Silvio Romero com o branqueamento futuro ele respondia com razões de uma ciência politicamente orientada Os extraordinários progressos da civilização européia entregaram aos brancos o domínio do mundo as suas maravilhosas aplicações industriais suprimiram a distância e o tempo Impossível conceder pois aos negros como em geral aos povos fracos e retardatários lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e remota de sua emancipação social Em todos os tempos não passou de utopias de filantropos ou de planos ambiciosos de poderio sectário a idéia de transformarse uma parte de nações as quais a necessidade de progredir mais do que as imitações monomaníacas do liberalismo impõe a necessidade social da igualdade civil e política em tutora da outra parte destinada a interminável aprendizagem em vastos seminários ou oficinas profissionais A geral desaparição do índio em toda a América a lenta e gradual sujeição dos povos negros à administração inteligente e exploradora dos povos brancos tem sido a resposta prática a essas divagações sentimentais Nina Rodrigues 1977264 A aparente relação de heterogeneidade tantas vezes apontada entre a incorporação vicária da ideologia liberal por nossas elites e seu envolvimento concreto no processo histórico da escravidão também percebida por Nina Rodrigues não se desfaz portanto com a negação do racismo institucionalizado ou a afirmação de uma discriminação sutil As formas específicas que ambos possam ter assumido neste país formas que devem boa parte de sua invenção ou legitimação ao trabalho de membros de nossa elite intelectual ainda esperam por análises localizadas para serem desvendadas Os dados globais a respeito do deslocamento da mão de obra nacional substituída pelos imigrantes desde o final do século passado pouco nos dizem a respeito de regulamentações específicas ou da política implícita ou explícita de admissão do fator racial como um possível critério seletivo da força de trabalho brasileira As referências esparsas a respeito da seleção eugênica na expressão de Gilberto Freyre feita entre os candidatos a funções diplomáticas ou a postos de oficial na marinha brasileira Freyre 1936 são também apenas indicativas da importância deste critério A impossibilidade de uma análise exaustiva das consequências efetivas do racismo ou da discriminação racial não nos impede no entanto de observar a sua vigência como elemento constitutivo da visão dos intelectuais brasileiros sobre o nosso povo na passagem do século O momento em que o negro se tornou livre no Brasil coincidiu não só com a emergência de uma elite profissional que já incorporara os princípios liberais à sua retórica como também com o surgimento de um discurso científico etnológico que tentava instituir para ele uma nova forma de inferioridade retomando os ensinamentos de nossa história escravista recente Invertendo a afirmação de Marx Um negro é um negro Em certas circunstâncias ele se transforma num escravo os intelectuais daquele momento tratavam de transformar escravos em negros isto é de constituílos enquanto categorias de análise deixando entre parênteses em sua passagem de máquinas de trabalho a objetos de ciência Silvio Romero a discussão de sua cidadania Quando Nina Rodrigues acentua a dualidade que apesar de todas as igualdades políticas e constitucionais a etnologia estabelece na nossa população 1935133 o envolvimento dos intelectuais nesse movimento se explicita à ciência caberia desmontar a pretensão de uma suposta igualdade entre os homens justificação ideológica da abolição por exemplo Como dizia Nina Rodrigues Como a extinção do tráfico e da escravidão precisou revestir a forma toda sentimental de uma questão de honra e pudonor nacionais afinada aos reclamos dos mais nobres sentimentos humanitários Para darlhe esta feição impressionante foi necessário ou conveniente emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos No entanto os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de uma geração A ciência que não conhece estes sentimentos está no seu pleno direito exercendo livremente a crítica e estendendo com a mesma imparcialidade a todos os elementos étnicos de um povo Não a pode deter a confusão pueril entre o valor cultural de uma raça e as virtudes privadas de certas e determinadas pessoas Nina Rodrigues 197734 De 1850 em diante a questão que despertava as simpatias e os ódios de uma geração não era apenas a da escravidão ou a da abolição dela mas também a da substituição de braços no mercado de trabalho questão política cuja solução seria encontrada na imigração dirigida de trabalhadores europeus A história da imigração neste período já foi bastante analisada eg Hall 1969 embora a contribuição das convicções sobre a superioridade das raças brancas à política imigrantista ainda não seja muito clara Que estas eram convicções compartilhadas por atores importantes no centro de direção deste processo é exemplo a preocupação expressa por Julio Mesquita Filho com a massa impura e formidável de dois milhões de negros subitamente investida de prerrogativas constitucionais que passou a fazer parte da sociedade brasileira depois da abolição O 13 de maio era também analisado por ele como o rompimento de um equilíbrio político através do qual se mantivera À distância a facção semibárbara da população citado em Carone 1972173 Outros exemplos poderiam ser encontrados nas discussões a respeito da possibilidade de importação de trabalhadores chineses ou sírios mais tarde e na constante reiteração de opiniões da classe política a respeito do que pensavam sobre essa possibilidade15 A imigração de trabalhadores brancos embora colocasse outras questões parece ter sido em suma não apenas uma solução para o problema da escassez de mão de obra que o final do tráfico teria ocasionado mas também uma oportuna possibilidade de reverter as previsões alarmistas de um futuro Brasil negro feitas por alguns observadores nacionais e visitantes estrangeiros nos meados do século passado Nina Rodrigues visitando São Paulo em 1903 e afirmando que lá estava o futuro da civilização brasileira maravilhouse com a solução encontrada pelos paulistas Os próprios paulistas acabaram por achar problemática esta solução problemas que passariam a ser fraseados não mais em termos de raça mas de quebra da unidade psíquica idem ibidem Mais importante do que afirmar a inutilidade de uma ideologia racista no Brasil seria talvez notar que ela se constituiu acompanhando a retórica da igualdade formal de uma prática de manutenção de desigualdades sociais e que embora esta prática tivesse a raça como avatar proposto pela ciência num determinado momento esta não seria sua única maneira de expressarse Isto é observar que o racismo tinha seu lugar assegurado dentro de um sistema teórico e político compatível com sua existência Em termos teóricos a ciência da época tinha preparado um terreno onde o racismo se acomodava muito bem Nina Rodrigues parece apenas ter levado às últimas consequências os supostos científicos de seu tempo Quem sabe por ter tentado comprovar empiricamente as crenças de sua geração é que recebeu críticas dos que preferiam deixar ao futuro a solução dos problemas que enunciavam ou que tratavam deles num nível menos científico Silvio Romero por exemplo permitiase num ensaio polêmico chamar o crítico José Veríssimo de tapuio matreiro cafuso decadente feioso caboclo e outros apodos do tipo Romero 1979 E talvez não tenha sido por acaso que alguns intelectuais da passagem do século que explicitamente combateram o racismo em sua produção intelectual como Lima Barreto ou Manuel Bonfim tenham sido ridicularizados enquanto viveram e excluídos de instituições que formal ou informalmente tinham algum significado de aceitação de seu papel Em termos políticos seria preciso refletir um pouco mais cuidadosamente a respeito das implicações que tem utilizar o sistema legal como indicador de presença ou ausência de racismo ou de discriminação racial ou outras em nossa sociedade O legalismo filho dileto do liberalismo da época parece terse instalado aqui curiosamente amolecido por um conjunto de usos sociais e políticos que o contradiziam a cada passo É tão difícil definilo pela sua face repressiva ignorando a persuasiva como analisar o cidadão deixando de lado o senhor Ou deixar de observar que com frequência o senhor depositário do conhecimento de táticas repressivas mais antigas seria partidário da persuasão e que o cidadão legalista e contratual em princípio seria defensor da repressão16 Nina Rodrigues exemplificava esta incongruência ao observar que se se levasse em conta as análises científicas das diferenças raciais na determinação da responsabilidade penal a lei deixaria de cumprir com seu papel de repressão da criminalidade étnica ou primitiva uma vez que a ciência definia seus agentes como irresponsáveis Para os políticos ou para os juristas este problema poderia ser fraseado nos termos utilizados por M Foucault 1975 para descrever a sociedade contratual num país onde ela aparentemente funcionou como legislar uma igualdade formal cotidianamente desmentida nas relações sociais concretas como estabelecer uma homogeneidade como regra geral se a regra social parecia ser o heterogêneo A percepção deste dilema não só faz de Nina Rodrigues um exemplar das aflições do intelectual brasileiro do momento como aponta para os paradoxos que presidiram o nascimento das ciências sociais no Brasil e que ele e outros autores tentaram resolver apelando para um denominador teórico que não pusesse em questão as desigualdades sociais ao mesmo tempo que lhes emprestava algum sentido a ciência evolucionista A sua figura ambígua foi uma perfeita ilustração daqueles paradoxos intelectual urbano filho de escravocrata e plantador mas testemunha de Canudos da Abolição e do primeiro surto brasileiro de industrialização nascido e criado no Império e cidadão da República aos vinte e sete anos produto de um ensino teórico e generalizante além de ornamental mas fervoroso partidário da aplicação empírica da ciência da especialização e da profissionalização e assim por diante Várias dessas características eram compartilhadas por outros intelectuais de sua geração mas poucos dentre eles aliaram uma atuação tão constante na área da institucionalização da ciência às teorias científicas que defendiam A crescente especialização que ocorria na Medicina na época aqui focalizada refinando o conhecimento de determinadas questões e levantando outras não encontrou no entanto correspondência nas ciências sociais que até 1930 não tinham uma base institucional que delimitasse seu campo de atuação e estavam ainda vinculadas a outras áreas do conhecimento No caso da antropologia sua estreia vinculacão com a medicina tanto teórica como pela formação de nossos primeiros antropólogos além de nos levar a enfatizar as estratégias retóricas médicas pode também nos fazer esquecer quão frágeis eram as bases institucionais da própria medicina e quão incipientes suas agências de controle efetivo da população controle que de qualquer forma nunca esteve apenas nas mãos da ciência Na Europa ou ao menos na França onde a ligação de ambas também era notável Clark 1973 parece ter havido uma relação entre a extensão primeiro das instituições médicas e o refinamento depois de mecanismos disciplinares com o aparecimento das especialidades o caso mais analisado sendo o da psiquiatria Foucault 1972 Castel 1978 A espacialização institucional da doença isto é o seu mapeamento via instituições médicas mencionada por Foucault e em pleno andamento na França já no século 18 era o terreno sobre o qual se assentava não só o controle empírico efetivo da população como se assenta hoje a possibilidade de generalização teórica a respeito dessa rede de controles Foucault e Castel empreendem suas análises a partir dessa situação e é ela que torna possível também a oposição quase termo a termo do cidadão atuando no quadro do legalismo com sua definição de regras universais e sua correção do desvio via repressãocoerção e do perito atuando no quadro da disciplina que utilizaria tecnologias brandas de controle via persuasãomanipulação No Brasil além da fragilidade institucional da medicina as noções de cidadania e de perícia surgiram no interior de uma mesma constelação ideológica definida pelo liberalismo mas também pelo positivismo e pelo evolucionismo e para uso efetivo de uma pequena parcela da população o que torna problemática a sua análise naqueles termos Se a cidadania nunca foi estendida nem ideologicamente aos membros da nossa sociedade como um todo os defensores da perícia os especialistas que começaram a atuar desde meados do século passado no país poderiam ou não tomála em conta em suas discussões e em qualquer caso essa incorporação quando ocorreu parece ter sido sempre mais retórica do que referida à prática dos peritos Na análise da atuação de Nina Rodrigues como perito médicolegal e de sua posição ambígua de crítica ao liberalismo e ao positivismo e em defesa da verdadeira liberdade e dos direitos do cidadão será importante a compreensão do contexto social da emergência das especialidades médicas no Brasil frequentemente deixado de lado pelos que analisam a questão As pesquisas que têm sido feitas a respeito da medicalização da sociedade brasileira por exemplo ao utilizar o trabalho de M Foucault como parâmetro teórico trazem seus conceitos para esta discussão Machado e outros 1978 Costa 1976 1979 Analisando as várias técnicas de controle do corpo que se cristalizaram em disciplinas M Foucault contrasta a sua lógica com a lógica do contrato Aparentemente as disciplinas não constituem nada mais do que um infradireito Parecem prolongar até um nível infinitesimal das existências singulares as formas gerais definidas pelo direito ou ainda aparecem como maneiras de aprendizagem que permitem aos indivíduos se integrarem a essas exigências gerais Constituiriam o mesmo tipo de direito fazendoo mudar de escala e assim tornandoo mais minucioso e sem dúvida mais indulgente Temos antes que ver nas disciplinas uma espécie de contradireito Elas tem o papel preciso de introduzir assimetrias insuperáveis e de excluir reciprocidades Em primeiro lugar porque a disciplina cria entre os indivíduos um laço privado que é uma relação de limitações inteiramente diferente da obrigação contratual a aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de contrato a maneira como ela é imposta os mecanismos que faz funcionar a subordinação reversível de uns em relação aos outros o mais poder que é sempre fixado do mesmo lado a desigualdade de posições dos diversos parceiros em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o laço contratual e permitem sistematicamente falsear este último a partir do momento em que tem por conteúdo um mecanismo de disciplina M Foucault 1977b 195 No Brasil mesmo antes da constituição até hoje em processo das instituições médicas e outras para tornar os corpos dóceis disciplinados já estava socialmente assegurada a clara desigualdade de posições dos diversos parceiros sem no entanto referilos a um regulamento comum à mesma lei Quando a lei começou a ser definida como o terreno de expressão de igualdades sociais impossíveis de serem mantidas na prática começou também o lento trabalho jurídico de formalização desta ambigüidade domínio dos casuísmos que só despertam maior atenção quando tratam de temas políticos no sentido estrito e que ainda necessitam de uma análise histórica A normalização dos comportamentos sociais lenta e sutilmente encaminhada por táticas disciplinares na Europa ou nos Estados Unidos não precisou aqui como lá competir a princípio com os poderes da lei ao contrário as disciplinas se constituíram dentro de um quadro jurídico cujos termos de definição eram equivalentes aos seus Certamente ocorreram conflitos entre alguns agentes da lei e certos arautos da disciplina mas acredito que eles tenham tido mais a ver com a distribuição local de poder do que com a heterogeneidade entre o modelo legal e o modelo disciplinar de regência das relações sociais Se as utilizações sociais da medicina têm podido ser vistas como exemplos desse modelo disciplinar a psiquiatria a saúde pública permitindo falar numa medicalização geral da sociedade talvez a análise da constituição de um campo médico intimamente ligado ao jurídico como é o caso da medicina legal contribua para a discussão no sentido de ampliar a compreensão do modo específico pelo qual se tem tentado disciplinar a sociedade brasileira Nossa sociedade se constituiu historicamente como um espaço onde as desigualdades se expressaram tanto nas leis como nas normas sociais em vigência desde o período colonial A tentativa de compreender a acumulação de um conhecimento empírico a respeito da população brasileira que começa a se definir no século 19 e do qual a Escola Nina Rodrigues é apenas um ponto numa constelação mais ampla terá que manter essa história como seu referencial e só se tornará inteligível se observarmos a atuação da medicina como um dos campos do saber onde esse conhecimento vai se cristalizar Não foi com a institucionalização da medicina que se iniciou entre nós uma tecnologia de controle dos corpos dos homens embora ela tenha tido aí um importante papel a desempenhar Este saber é mais antigo e interdisciplinar e se pode ser analisado nos termos utilizados no debate contemporâneo sobra a história das especialidades médicas faz parte da própria história da nossa constituição política Deixar de lado essa complexidade de relações entre as várias ciências na história do controle das populações no Brasil é perder um componente importante de sua inteligibilidade porque só assim poderemos observar as normas dessa sociedade em ação no momento em que começam a cristalizarse em leis e instituições próprias A institucionalização em si mesma em qualquer terreno certamente propiciou o refinamento de táticas de controle das populações mas ainda que certos princípios gerais do chamado poder disciplinar possam ser observados muito cedo em nosso país é só muito tarde em relação a outros países que se instalarão aqui os modos sutis da disciplina e só em algumas áreas os modos mais impositivos e direitos da autoridade tendo tido aqui uma predominância histórica Até hoje a brandura da tecnologia disciplinar para usar a expressão de Castel 1978 se concretiza apenas em alguns espaços institucionais e ainda alcança poucos bastaria comparar as análises de Foucault Castel ou Donzelot 1977 sobre a refinada teia de controle que se estabelece em sua sociedade sobre crianças loucos ou presidiários com o que sabemos do tratamento dispensado a estas categorias sociais no Brasil para verificar isso Assim se a substituição das estratégias de vigilância e punição dos escravos e dos colonos mais tarde de repressão e segregação de loucos delinqüentes ou crianças pela prevenção e correção de desvios do comportamento são estratégias reais utilizadas no controle da população são também estratégias retóricas A substituição da repressão pela prevenção ou correção típica do discurso disciplinar segundo Foucault não passará em muitos casos de uma retórica afinada aos reclamos da ciência contemporânea dificilmente posta em prática numa sociedade tão indisciplinada A época de maior repressão às primeiras manifestações políticas da classe trabalhadora urbana coincidiu também com uma grande produção intelectual de pesquisas sutis para detectar a periculosidade virtual de membros dessa classe crianças homossexuais prostitutas loucos prisioneiros pesquisas cujos resultados seriam no entanto e no contexto social mais amplo ultrapassadas pelas menos sutis medidas de segurança por exemplo inscritas no Código Penal de 1940 produto do Estado Novo Isto não quer dizer que técnicas brandas de correção do comportamento não tenham sido utilizadas em determinadas áreas de atuação dos médicos o trabalho de Arthur Ramos com os escolares do Rio de Janeiro será um bom exemplo dessa utilização Mas acompanhando a trajetória de algumas aplicações dessas técnicas é possível sugerir que ao invés de introduzir diferenças onde havia o suposto da igualdade elas serviram antes para reforçar uma arraigada suposição de desigualdades fosse qual fosse o critério científico utilizado para nomeálas Em suma o mais poder invocado por M Foucault como contribuição específica das disciplinas à distorção da noção de igualdade não parece poder ser enunciado na história política nacional pela incompatibilidade entre o laço contratual e o laço disciplinar a lei e a norma no sentido que lhes dá Foucault foram aqui complementares partes inseparáveis de um mesmo conjunto Entre o legalismo e a disciplina dois termos em que parece deterse mais particularmente a análise contemporânea da constituição das especialidades médicas e para compreender a conexão entre ambas na sociedade brasileira é preciso instalar o terceiro termo da autoridade não apenas legalmente estabelecida ou resguardada por axiomas jurídicos mas também a autoridade pura e simples decorrente de uma posição de poder ou de força A legalização a posteriori dessas posições é outra constante em nossa história política o que faz com que o principal obstáculo às sutilezas disciplinares sejam não artigos legais mas atuações nitidamente fora da lei Isto não implica negar a existência até hiperbolica de dispositivos legais regulando as relações sociais mas reconhecer seu alcance limitado como explicação de determinadas situações em nosso contexto histórico e político Acreditar então que a ausência de um equivalente nacional da lei Jim Crow por exemplo possa indicar a inexistência de discriminação racial ou servir como demonstração de sua sutileza seria ignorar um dado importante na compreensão da chamada questão racial no Brasil Isto é que a atuação política de membros de nossas classes dominantes dentro de um contexto histórico específico levou a uma efetiva mudança na composição da população brasileira e deu uma determinada orientação às relações interraciais antes de preocuparse ou sem se preocupar com a expressão legal dessas alterações Não é preciso supor uma decisão maquiavélica e concertada das lideranças políticas no sentido de branquear a população brasileira ou de excluir os negros do mercado de trabalho para reconhecer a importância de distinções raciais ainda que não formuladas em dispositivos jurídicos para as relações sociais como um todo e suas consequências para a participação dos negros e seus descendentes na vida brasileira Resumindo o contexto intelectual político e institucional em que se desenrola a história da constituição da Escola Nina Rodrigues deve ser visto como uma constelação em que esses fatores ou elementos interagem uns com os outros assim como nossos intelectuais eram também políticos no sentido estrito ou mais amplo da expressão e fundadores de instituições Sua atuação certamente obedecia a injunções do momento a interesses localizados e à própria situação da ciência no período histórico em que viveram Em sua produção intelectual eles recorrerão assim e de acordo com objetivos ou convicções muito específicos ora aos fundamentos teóricos da ciência que professavam ora aos interesses políticos aos quais estavam vinculados ou a projetos institucionais que desejavam ver realizados o que às vezes faz o desespero de quem tenta encontrar um sentido coerente em suas realizações Mas mesmo que este sentido possa ser lido a posteriori em sua atuação seja alocandoos na posição que quase sempre ocuparam de defensores do status quo vigente seja apontando as pequenas iniciativas autônomas que parecem distinguilos do retrato definitivo do intelectual de uma sociedade subdesenvolvida como inevitável epígono de teorias estrangeiras ou dos interesses das classes dominantes ele não se desenha como um sentido linear unívoco ou prédeterminado Ao contrário sua atuação é múltipla contraditória e às vezes surpreendente Ao procurar o racista em Nina Rodrigues encontrei um intelectual genuinamente preocupado com as contradições em que o colocavam suas informações teóricas quando comparadas com suas observações empíricas Ao acompanhar a trajetória de seus discípulos tentando juntar os fios de uma tradição sempre evocada como justificadora de suas ações encontrei muito mais rupturas do que continuidades entre sua produção e a de seu alegado mestre as continuidades sendo ironicamente mais visíveis em linhas de pesquisa não explicitamente referidas à tradição da escola Analisando um grupo de médicos me deparei mais frequentemente com criminólogos psicólogos educadores políticos e até literatos Todos eles explícita e constantemente preocupados com os problemas sociais de seu país ainda que procurassem legitimar essa preocupação enquadrandoa numa prática que por ser definida como profissional e científica lhes aparecia como desvinculada de interesses particulares e dirigida à procura do bem geral Tanto na geração de Nina Rodrigues como na de seus discípulos o país estava se reorganizando como nação reorganização política e econômica que ele e seus seguidores ou ignoram ou se as mencionam em seus trabalhos é para deplorála No caso de Nina Rodrigues o que parecia deplorável era a ausência de uma centralização política nos primeiros anos da República a possibilidade de autonomia concedida aos municípios nas questões de saúde e educação por exemplo limitando o alcance de reformas políticas que poderiam ser cientificamente orientadas por profissionais qualificados da capital dos estados ou do país Apesar de reconhecer explicitamente as diferenças regionais e utilizar seus conhecimentos para desmentir observações feitas por médicos do sul a respeito dos negros por exemplo Nina Rodrigues era favorável a uma centralização do estado nacional visão muito pragmática já que afirmava descentralizador com o Império sou unitário com a República E apesar de durante toda a sua carreira ter saído apenas três vezes do NorteNordeste para estudar no Rio vir a São Paulo e ir a Paris onde morreria seria um equívoco analisar sua contribuição apenas em termos regionais Não só a Faculdade de Medicina da Bahia tinha um peso institucional reconhecido entre os médicos do Rio onde Nina Rodrigues publicou incansavelmente seus trabalhos de pesquisa como ele pretendia explicitamente dar um alcance nacional à sua produção intelectual e a seus esforços pela profissionalização do perito médicolegal A luta pela qualificação profissional foi um dos aspectos de sua atuação que o tornaram conhecido no âmbito nacional Ele esclareceu sua posição a esse respeito numa aula em que denunciava o escândalo que representava a interpretação da Constituição de 1891 feita particularmente pelos positivistas a respeito da liberdade do exercício profissional Sua resposta aos que liam na Constituição a possibilidade de exercer uma profissão sem a qualificação oferecida pelas instituições estabelecidas foi bastante aplaudida na época e ganhou repercussão nos círculos médicos do Rio e de São Paulo onde foi providenciada a sua impressão e distribuição em panfleto avulso Tratavase no entanto não só de impedir o acesso de desqualificados no sentido estrito da expressão ao exercício da medicina como de demonstrar a importância da intervenção do Estado numa sociedade em que ainda coexistem exescravos e exsenhores em que a República acaba de ser proclamada pelo Exército e pela Armada em nome da Nação que precisa providenciar sobre a distribuição artificial de colonos para garantir a sua continuidade histórica e etnica que carece de unidade etnica para poder despreocuparse de lutas de raças que no período de formação em que se acha é obrigada a ter vistas voltadas imediatamente para os povoa que a cercam em condições iguais às suas uns ambiciosos outros de expansão colonial em que as condições regionais e climáticas a fusão incompleta de raças diferentes não permitindo a segura previsão de sua futura constituição definitiva finalmente que se acha presa á Europa pelas necessidades industrias mais comezinhas pela importação de todos os elementos civilizadores Nina Rodrigues 1899a2122 Uma sociedade enfim na qual o problema étnico que se multiplica nesta frase parecia ser a razão principal do desejado controle pelo Estado e ponto crucial ao qual se subordinariam as outras questões na visão de Nina Rodrigues a respeito da sociedade brasileira Ele próprio não viveria para ver completada sua iniciativa de institucionalizar a medicina legal mas deixou seguidores devotados que o fariam em seu nome E se todos eles trabalharam para o estado o que os discípulos iriam deplorar era a excessiva centralização ocorrida depois de 1930 a nova República na expressão de Gilberto Freyre quando teriam sido afastados do cenário político justamente os homens qualificados de quem Nina Rodrigues reclamava maior interesse pela coisa pública particularmente os baianos Ironicamente o grupo social promotor da criação da escola era em grande parte composto por baianos e o alcance nacional de algumas de suas atividades só pode ser atingido justamente devido à centralização promovida a partir da revolução de 30 época em que vários membros do grupo ampliaram a sua atuação E embora nos textos de seus discípulos a luta de classes vá substituir a luta de raças mencionada por Nina Rodrigues a questão da composição racial de nossa população continuará a merecer o seu interesse Arthur Ramos comentando os movimentos negros de sua época e analisando a contribuição cultural de vários grupos étnicos na sociedade brasileira e Afrânio Peixoto discutindo questões de legislação trabalhista ou fazendo a propaganda da higiene pública ilustrarão de outras maneiras com uma outra linguagem este interesse A economia e a política retoricamente afastadas na construção mítica da escola retornam na explicitação da prática profissional de seus membros É a história dessa prática e de seus fundamentos que tentarei acompanhar aqui analisando a produção teórica e a atuação de alguns membros desta Escola sempre que possível apontando para as articulações que parecem existir entre este e outros grupos de intelectuais da época Se esta história é a de um grupo de intelectuais que no processo de se constituir se diferencia de outros grupos criando novos campos de atuação e eventualmente conseguindo institucionalizálos é também um trecho da história de uma elite mais ampla que extrapola os limites das definições profissionais e inscreve sua presença nas instituições que regulam a vida em nossa sociedade22 2 NEXO A maior dificuldade em reconstruir as relações sociais no âmbito das quais Nina Rodrigues atuava consiste no fato de que as informações que mais desejaríamos obter sobre essas relações são aquelas nunca explicitadas pelos que as viveram justamente porque faziam parte de seu cotidiano de implícitos Se é possível reconstruir a sua trajetória profissional e recuperar boa parte de sua produção intelectual ainda que sua obra nunca tenha sido publicada de forma completa como a de seus contemporâneos Silvio Romero ou Euclides da Cunha há ainda muitas dúvidas a esclarecer sobre sua história de vida Seus escassos biógrafos todos abertamente laudatórios parecem dar mais importância ao fato de que ele recebia os estudantes que o procuravam com um relógio na mão para lembrarlhes o passar do tempo Lins e Silva 1945 ou de que costumava praticar o alemão com uma hamburguesa à rua do Hospício nº 149 Andrade Lima 1980 do que ao levantamento minucioso de suas publicações esparsas ou não traduzidas ao esclarecimento das muitas interrogações a respeito de sua atuação pública ou à verificação de suas relações com os cientistas de outros países indicadas nos elogios repetidos pelos discípulos onde e quando Lombroso o teria chamado de Apóstolo da Antropologia Criminal no Novo Mundo22 A relevância para sua carreira burocrática das posições políticas ocupadas por seu sogro figura importante tanto na Faculdade de Medicina da Bahia como na política local e nacional na passagem do século a extensão de sua colaboração com a polícia e o judiciário aos quais prestou tantos serviços suas relações de amizade com outros médicos da época ou que tipo de relacionamento ele mantinha com os candomblés que visitava com frequência são algumas das muitas questões ainda abertas à especulação Na falta de uma correspondência regular de uma biografia cuidadosa ou de depoimentos de seus contemporâneos que ultrapassem o nível do anedótico temos que nos contentar com as informações espalhadas ao longo de seus trabalhos ou com as explicações deles feitas por seus biógrafos e às vezes distorcidas pela admiração23 respeito do caboclo definido pelo poeta como representante legítimo da nacionalidade brasileira Antecipando as discussões sobre a necessidade de imigração dizia ele em 1852 Esse falso patriotismo caboclo espécie de mania mais ou menos dominante levanos a formular quanto ao passado acusações injustas contra os nossos genuínos maiores desperta no presente antipatias e animosidades que a sã consciência e uma política ilustrada aconselham pelo contrário a apartar e adormecer e no passo que faz conceber esperanças infundadas e quiméricas sobre uma reabilitação que seria perigosa se não fora impossível embaraça retarda e empeca os progressos da nossa pátria em grande parte dependente da imigração da raça empreendedora dos brancos e da transfusão de um sangue mais ativo e generoso único meio possível já agora de reabilitação em Veríssimo 1963 Celso de Magalhães que também condenava o elogio do poeta ao que chamava de caboclagem vadia e indolente recolhendo exemplos da poesia popular brasileira afirmava que eles eram todos originários das tradições da raça conquistadora E apontava para a influência negativa do elemento africano sobre o romanceiro português já que com ele entraram também os seus costumes as suas festas os seus instrumentos o seu fetichismo e até a sua língua Talvez um dos primeiros a descrever um desses costumes ele descreve também a mulata em termos muito semelhantes aos utilizados por Nina Rodrigues vinte anos depois Para quem não sabe o que é a Lavagem dáse a explicação Na festa do Bonfim há o costume antigo de irem os devotos lavar o corpo e o pátio da igreja na Quintafeira precedente ao dia da festa Isto tornouse tradicional e popular Hoje o que acontece é que há uma romaria numerosa nesse dia Reúnemse as crioulas os negros tudo promíscuamente e entre cantigas e esgares meionuas com as cabeças esquentas pelo óleoal das barracas vizinhas 42 com os seios á mostra lúbricas com essa lubricidade nojenta da crioula entre risadas e ditos obscenos começam todos a lavagem Isto enjoa e envergonha Magalhães 1873197345 Se parecia haver quase uma tradição estabelecida no meio intelectual maranhense a respeito da importância da questão das relações raciais Nina Rodrigues aparentemente quebrou alguma regra dela ao se interessar pela pesquisa empírica dessa questão Até hoje é tradição oral em São Luis entre historiadores e descendentes de Nina Rodrigues que uma das razões de sua saída de lá deveuse à má vontade com que foram recebidas suas pesquisas iniciais sobre as religiões dos negros locais Em sua obra encontrei apenas duas menções a essas pesquisas num artigo publicado em francês e nunca traduzido e em Os Africanos no Brasil Apesar de compartilhar do interesse de seus conterrâneos pela problemática da miscegenação racial e se publicava seus artigos também na Pacotilha um dos jornais em que Aluísio Azevedo e outros jovens escreviam em muitos outros aspectos Nina Rodrigues não se parece ao retrato do jovem moderno traçado pelo romancista Seus escritos vão de fato filiarse a uma tradição oposta à inaugurada por Gonçalves Dias ou por O Mulato Se como Aluísio também cultuava o demônio da ciência nas palavras de um bispo local era ao mesmo tempo perfeitamente versado na retórica acadêmica e suas honrarias o tocavam muito de perto Seus textos guardam também um acentuado tom oratório muitos deles tendo sido escritos como aulas a presença de um auditório sendo quase palpável em alguns e explicitamente mencionada em outros E se era a favor da ciência positiva da investigação empírica como última instância na análise de qualquer fenômeno combatue sempre a politica positivista ao mesmo tempo que se manteve um crítico permanente das ilusões da catequese e de várias outras ilusões acalentadas por seus contemporâneos De uma curta passagem pelo Rio de Janeiro onde terminou o curso de medicina e realizou a observação clínica que seria sua tese de doutorado também pouco sabemos O único depoimento dessa época é o necrológico de seu colega maranhense segundo Nina Rodrigues também interessado na patologia da raça negra Justo Jansen Ferreira 1906 que pouco nos diz além de narrar alguns incidentes da 43 vida estudantil de ambos Dessa época deve datar no entanto um bom relacionamento com alguns médicos cariocas cujo trabalho elogia na tese e em obras posteriores e já que também continuaria a publicar regularmente seus artigos nas revistas médicas por eles editadas E é possível que nesse período tenham nascido também algumas antipatias expressas mais adiante tanto pelo trabalho do médico João Baptista de Lacerda como pelo psiquiatra Teixeira Brandão figuras importantes da medicina carioca e na institucionalização da antropologia e da psiquiatria no Rio de Janeiro E só ao se estabelecer na Bahia no entanto que as atividades científica e burocrática de Nina Rodrigues se definem claramente Esta atuação será discutida neste capítulo Quanto à sua orientação teórica embora intimamente ligada à sua prática de pesquisa as opções mais duradouras parecem ter sido feitas apenas a partir do momento em que tomou conhecimento da obra de Lombroso e seu grupo e dos trabalhos de Lacassagne e sua equipe em Lyon aos quais dedicou seu primeiro livro e a quem teria visitado pouco antes de morrer na viagem à Europa em 1906 Andrade Lima 1980 Sua admiração pelos principais teóricos do grupo da antropologia criminal italiana e pelos da escola médicolegal francesa permaneceu inalterada ainda que considerasse discutível a aplicação de alguns de seus postulados no cenário brasileiro e não há dúvida de que o trabalho deles serviu de exemplo à atividade que desenvolveu na Bahia O debate a respeito das novas idéias lançadas no âmbito jurídico pelo grupo composto principalmente por Lombroso Ferri e Garofalo particularmente importantes na formação jurídica nacional no final do século e na reforma das nossas leis penais ampliouse no Brasil com a publicação em 1893 de A Nova Escola Penal de Viveiros de Castro e a partir daí passou a ser regularmente mencionado pelos juristas nacionais Nina Rodrigues parece ter começado a prestar atenção a este debate que se desenvolvia no campo do direito desde o momento em que se viu na obrigação de ministrar aulas de Medicina Legal na Faculdade já que antes ele não era referido em seus trabalhos Desde meados do século 19 que a craniometria a craniologia e a antropometria tinham se constituído como áreas específicas do conhecimento médico e foram médicos os que começaram a definir a antropologia como a ciência do homem tanto no sentido de humano 44 como no de masculino como nota Gould 1981 Nos Estados Unidos a chamada escola antropológica americana formouse em torno de Samuel George Morton 17991851 que ficou famoso em sua época pelo estudo sistemático dos milhares de crânios humanos que mediu e pesou recolhidos não só na América do Norte mas também no Egito e na América do Sul Suas pesquisas comparando as medidas cranianas de vários grupos humanos ofereceram o suporte empírico de que o naturalista Louis Agassiz necessitava para a confirmação de sua teoria do poligenismo isto é a origem múltipla das raças humanas contrária à crença dominante na época de que a humanidade tinha se originado do casal bíblico teoria conhecida como monogenismo Mais tarde ambas as correntes seriam confundidas num só termo criaionismo e sua vigência científica praticamente desapareceria diante da proposta evolucionista de Darwin Stanton 1960 Gould 1981 Na França Paul Broca 18241880 médico como Morton aperfeiçoou seus métodos de medida dos crânios humanos criando uma parafernália de instrumentos novos e precisos o craniômetro o craniógrafo o cefalógrafo o estereógrafo e prestando mais atenção ao cérebro que a escola americana não tinha analisado As centenas de crânios que recolheu em todo o mundo e os cérebros que pesou e mediu assim como seu próprio cérebro estão ainda hoje no Museu do Homem em Paris Paul Broca foi também o fundador da Sociedade Antropológica de Paris 1859 depois Escola de Antropologia 1876 que além de oferecer cursos que propagavam suas idéias editava também uma revista de circulação internacional Seu prestígio científico sem dúvida foi um dos responsáveis pela difusão da importância atribuída ao peso e ao tamanho do cérebro das pessoas do sexo feminino e das raças não brancas como critério definidor de sua incapacidade intelectual para não falar em outras incapacidades Broca 1871 Clark 1973 Sagan 1979 O nome mais conhecido dentre estes médicos antropólogos do século passado foi no entanto o do italiano Cesare Lombroso 18361909 criador da antropologia criminal e que não satisfeito em pesar e medir o crânio e seu conteúdo criou toda uma taxonomia de traços faciais e corporais os estigmas que permitissem detectar o que subsistia de nossos ancestrais primitivos nos homens e mulheres contemporâneos levandoos ao crime e à loucura Apesar do nome 45 pelo qual se tornou conhecida a antropologia criminal italiana não se interessava apenas pelo estudo dos criminosos seu objetivo mais amplo era a compreensão das causas das desigualdades sociais Um contemporâneo ilustre de Nina Rodrigues Antonio Gramsci definia os membros deste grupo como Responsáveis pela ideologia difundida de forma intensa pelos propagandistas da burguesia entre as massas do Norte o Sul é a trava que impede o progresso mais rápido do desenvolvimento civil da Itália os meridionais são biologicamente seres inferiores semibárbaros ou bárbaros completos por destino natural se o Sul é atrasado a culpa não é do sistema capitalista ou de qualquer outra causa histórica mas da natureza que fez os meridionais poltrões incapazes criminosos bárbaros compensando esta sorte ingrata com a explosão puramente individual de grandes gênios que são como solitárias palmeiras num árido e estéril deserto Mais uma vez a ciência era responsável pela repressão dos explorados e oprimidos mas desta vez estava vestida com as cores socialistas pretendendo ser a ciência do proletariado Antonio Gramsci 197031 A crítica que o determinismo estreito de Lombroso recebia já em sua época a começar pelos próprios membros de seu grupo como E Ferri levaria Nina Rodrigues a incorporar outras perspectivas teóricas aos seus trabalhos sem abandonar no entanto a suposição básica da hereditariedade como destino que informava a pesquisa de Lombroso e seus seguidores e que em maior ou menor grau era compartilhada por quase todos os cientistas da época Mas a conseqüência mais relevante para esta pesquisa dessa nova concepção penal e política foi o deslocamento da questão da responsabilidade A liberdade de vontade a intenção de atuar conscientemente de determinada maneira em determinada direção deixava de ser relevante no julgamento de um ato ou na análise de um acontecimento uma vez que o comportamento de cada um estava predeterminado pela sua pertinência a certas classes biológicas que se foram pesquisadas e definidas em prisões e hospícios acabaram por 46 ser utilizadas para a sociedade como um todo A questão da responsabilidade deixava de girar em torno do livre arbítrio como na chamada escola clássica de direito e passavase a investigar quais as medidas de defesa social mais adequadas para lidar com aquelas ameaças A necessidade de calcular precisamente qual o grau de periculosidade noção como a de estigma devida ao grupo italiano real ou virtual de cada um deu também uma nova relevância à figura do perito o especialista neste cálculo O perito médico estava de há muito incorporado ao procedimento penal pela realização de autópsias ou de exames toxicológicos e pelo menos na França já era desde 1838 o responsável pelo destino de criminososloucos Castel 1978 Nina Rodrigues invocaria como igualmente relevantes na definição da perícia médicolegal tanto as questões de evidência mais direta ou técnica como as mais sutis de definição do estado psíquico de um acusadopaciente Apesar da ênfase dada por ele à formação especializada do perito este não era um especialista na acepção atual do termo já que seu campo de ação podia ser definido tanto pela demonstração da necessidade de análises químicas quanto do levantamento de índices osteométricos ou dos estigmas físicos eou psíquicos dos pacientesacusados A perícia se definia antes como técnica de auxílio à justiça aglomerado de vários saberes do que como resultado último da compartimentalização desses saberes Daí que ainda fosse possível a Nina Rodrigues ao mesmo tempo que se batia pela especialização do perito lutar para incorporar à sua esfera de atuação campos que lhe seriam progressivamente tomados não pelos leigos como temia mas por outros especialistas o psiquiatra e o criminólogo entre outros Definindo como jurisdição da medicina áreas que estavam entregues aos profanos como dizia fosse o controle de exames cadavéricos por funcionários da polícia fosse a direção de asilos de alienados por não médicos ele colaborou também para abrir a possibilidade de futuras subdivisões internas à medicina A via tortuosa da antropologia criminal como legitimadora da função pericial não foi no entanto a única escolha teórica de Nina Rodrigues A constante atualização de seu conhecimento do debate intelectual contemporâneo explícita em seus textos não só o levou a se inteirar das críticas feitas aos métodos de Lombroso acrescentando ainda algumas de sua própria autoria como a buscar em outras fontes o reforço teórico que suas pesquisas demandavam Em relação a Lombroso o crítico mais importante de sua geração Gabriel Tarde fazia sua aparição em notas nos trabalhos de Nina Rodrigues em seguida à publicação de seu livro La Criminalité Comparée 1886 e provavelmente Nina Rodrigues poderia compartilhar no Brasil da honra atribuída a Tarde de ter sido o primeiro a utilizar a expressão psicologia social Clark 1973 Dado o seu interesse pela questão das relações raciais cedo expresso em seus textos Nina Rodrigues ampliou também a definição de antropologia para além do sentido que este termo tinha no uso feito por Lombroso e seus colegas citando desde os relatos de viajantes ingleses na Africa como o coronel Ellis passando pelos estudos de mitos de Andrew Lang até as reflexões de E B Tylor abundantemente citado por ele tanto a respeito do tópico especial do animismo como das tradições culturais dos povos africanos Além desta bagagem teórica que parecia sólida e dirigida mesmo pelos padrões atuais da prática científica Nina Rodrigues era antes de mais nada um apaixonado pela pesquisa empírica A formação médica se não desprezava as grandes questões filosóficas da época como mostra Berbert de Castro 1973 dava maior atenção à pesquisa empírica localizada e preocupavase em resolver problemas práticos da vida cotidiana Roberto Machado e seus colaboradores 1978 constroem o que parece ser um bom índice dessas preocupações o que as pessoas comiam como moravam suas relações sexuais tudo era do interesse desse profissional da vida e da morte Não é por acaso que antes de serem uma metodologia utilizada pelas ciências sociais os estudos de caso os levantamentos genealógicos e o método comparativo tenham sido procedimentos comuns do trabalho científico entre os médicos No caso de Nina Rodrigues apesar de sua ênfase na observação empírica no registro cuidadoso do particular era também numa análise estrutural da sociedade brasileira que ele estava interessado Ele nunca perderia de vista a relação existente entre o exame de uma menina negra deflorada a análise da cabeça decepada do Conselheiro ou o internamento de um pródigo e as leis gerais que desejava ver regendo a nossa sociedade Essas leis gerais no entanto só se tornam explícitas a partir de um confronto entre a teoria que as informava e a realidade observável é na passagem pelo laboratório de medicina legal que elas se apuram e adquirem uma nacionalidade que não possuíam originalmente É a manipulação técnica dos dados daquela realidade à luz de uma teoria estranha a ela que fundamenta a construção de uma proposta política Não se trata mais aqui de uma medicina social e sua ênfase nas causas morais da doença no aperfeiçoamento do cidadão saudável no contrato social e na possibilidade de o negro dele participar na loucura como produto da civilização ou na autonomia do modelo médico de um modelo jurídico da sociedade Cf R Machado 1978 embora este discurso não tenha sido inteiramente abandonado Tratase antes de uma ciência médica que desiludida com as promessas de igualdade da Abolição e da República se perguntará pelas causas das desigualdades observadas Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde ou da doença para o doente transformavao em objeto individualizado de um saber autorizado e autoritário porque só individualmente se podiam aferir as minúcias de uma contaminação social mas proveniente do mundo da natureza O modelo jurídico e o médico deixavam também de ser heterogêneos entre si e absorvendo um do outro seus saberes específicos juntavamse ambos na produção de mecanismos técnicos para diagnosticar e punir os danos que o indivíduo pudesse causar à sociedade Partindo de um conhecimento do ser humano que nada tinha de jurídico na sua constituição essa nova área do saber se situará na interseção dos modelos médico e legal para produzir um terceiro tipo de conhecimento A autonomia inicial daqueles dois saberes institucionalizados não esconde um substrato comum a ambos na época a visão da sociedade como um corpo a ser conhecido de forma semelhante à que fora utilizada para o conhecimento do corpo humano Assim como os organismos individuais nascem se desenvolvem adoecem e morrem também a sociedade vista como um organismo mais complexo passa por esse processo E se a medicina Clínica cura ou previne Higiene as moléstias do organismo individual e social em sua versão médicolegal ela contribuirá para diagnosticar e indicar o tratamento adequado de acordo com os parâmetros médicos e jurídicos dos atos que atentem contra a normalidade da vida social A passagem pela Medicina e pelo Direito comum à maior parte dos analistas sociais desse período lhes emprestava uma linguagem também comum terreno em que se encontraram o que não impede que suas propostas de solução para problemas definidos de forma semelhante sejam inteiramente distintas Assim se de certa maneira há mais continuidade entre a atuação de Nina Rodrigues e a de um Tobias Barreto que ele afirmava ter sido o primeiro a reclamar a necessidade de constituição da Medicina Legal no Brasil ou de um Sílvio Romero ambos juristas do que entre ele e o médico Souza Lima por exemplo também há uma ruptura de uma análise generalizante de nossa realidade passase à sua observação constante de uma postura de intelectual de gabinete à militância profissional da percepção informada à análise minuciosa sem no entanto abandonar os pressupostos de uma visão mais global que deverá incorporar esses passos Do mesmo modo que mais adiante haverá uma ruptura entre a sua visão teórica e a de seus discípulos mas também uma absorção por parte deles de um método de trabalho e da ênfase em questões que não podem mais ser ignorados Continuidade teórica e ruptura quanto ao método por um lado ruptura teórica e continuidade metodológica por outro em todos os casos uma visão ideológica semelhante No caso de Nina Rodrigues a ênfase da época e de seu campo do saber nas pesquisas experimentais foi o que levou a descer da cátedra e verificar empiricamente as idéias mais ou menos declaradas de sua classe sobre os outros A medicina legal com toda sua bagagem instrumental de aferição e classificação ofereceulhe a mediação técnica e empírica que outras áreas mais gerais do saber não possuíam em seu tempo Num período em que a ciência como legitimadora de opiniões era invocada por todos os analistas de nossos problemas sociais a Medicina Legal foi das primeiras disciplinas a conquistar um espaço institucional próprio e a definir seu agente o perito Especialidade e especialista se encontram em Nina Rodrigues numa combinação perfeita de momento impossível de se repetir Mais adiante a perícia médico legal se fragmentará nas mãos de muitos especialistas mas sua metodologia e alguns dos objetos que Nina Rodrigues definiu ao enfatizar sua existência autônoma e nacional transformados serão apropriados pela antropologia pesquisadores ao mesmo tempo ampliaram o conhecimento da nossa realidade com sua ênfase na investigação empírica Nos exemplos lembrados eram principalmente as moléstias tropicais que ocupavam a sua atenção eram os problemas específicos de nossa sociedade que os interessavam ainda que a orientação teórica de seus estudos permanecesse européia A importância dessas pesquisas experimentais na constituição do campo da medicina deriva então tanto do aprofundamento da pesquisa em determinadas áreas problemáticas segundo passo necessário à sua legitimação como ciência por oposição aos saberes que permaneceram gerais e não especializados quanto da ênfase dada a uma realidade nacional cujo estudo aparentemente não encontrava guarida no ensino excessivamente teórico e apoiado em exemplos europeus das Faculdades O debate a respeito de uma ciência nacional é parte importante desse processo de criação das especialidades médicas num momento em que o conceito de nação era fundamental como definidor da discussão política mais ampla SantAnna 1978 Se a história interna da medicina mostra que a especialização propiciava o questionamento das Faculdades como o único centro de produção do saber médico ou como núcleo gerador de novos favorecer a disposição delas em manter esse estatuto privilegiado Em primeiro lugar sua posição se fortaleceu não apenas pela manutenção de uma unidade política expressa em associações profissionais revistas especializadas e reconhecimento governamental necessária para fazer frente a uma crítica que atingia toda a medicina enquanto ciência mas também pela pertinência a seus quadros de homens que estavam dispostos a levar adiante as mudanças reclamadas e com força política para fazêlo sem abrir mão dos privilégios institucionais conquistados O que levou em segundo lugar à incorporação promovida pelas faculdades tanto das inovações técnicas quanto dos inovadores ampliando o quadro de disciplinas que a medicina passava a abrigar No entanto se o elogio do empírico proposto pela ciência da época levou os médicos nacionais a se debruçarem sobre a nossa realidade nem sempre os resultados de suas pesquisas lhes pareciam lisonjeiros quando comparados com os das nações civilizadas daí o adjetivo de corajosas que a atuação de Oswaldo Cruz ou a contribuição de Nina Rodrigues merecem de alguns biógrafos por terem tocado em pontos sensíveis da sociedade em que viviam O vaivém constante entre a afirmação de nossa especificidade e a confirmação da ciência européia como parâmetro teórico que permitia ou não validála é também uma das marcas dos trabalhos de pesquisa deste período Com Nina Rodrigues a situação não foi muito diferente do que com outros professores das Faculdades da época Mas apanhado num momento particularmente delicado da história do ensino e da prática da medicina sua atuação era às vezes ambígua ele não só levou até às últimas consequências a sua experiência docente de especialização como a ampliou em atuações fora do âmbito da Faculdade às vezes até em conflito com ela Ampliação que entretanto acabou por reverter em benefício de uma extensão e fortalecimento da medicina institucionalizada e resultou numa experiência pioneira de ensino aliado à pesquisa Sua posição ambígua não provinha apenas do fato de ter saído da Faculdade para ir ao encontro dos objetos de análise que escolhera os médicos sempre fizeram isso em sua atividade clínica mas no seu caso tratavase de dar visibilidade a uma área do saber médico mal delimitada no Brasil e de demonstrar sua relevância para a sociedade como um todo através da análise de objetos ainda não definidos como tais À sua permanente preocupação com a aplicação social e política dos conhecimentos médicos vai se juntar a partir de certo momento uma insistência na necessidade da pesquisa e da formação especializada Esta duplicidade de objetivos pode ser claramente percebida em seus textos especialmente nos artigos que periodicamente publicava nas revistas médicas dando conta de suas investigações Se os seus primeiros trabalhos abrangem uma extensão maior do que os títulos sugerem integrando a análise de vários temas no mesmo texto e expressando às vezes cruamente suas opiniões como em Contribuições para o estudo da lepra no Estado do Maranhão de 1888 alguns dos últimos apresentam um tema bem delimitado numa linguagem despojada de qualificativos econômica quase fechada no uso de expressões técnicas como em Das concausas sua doutrina médicolegal de 1905 Nesse sentido sua produção intelectual acompanha a transição pela qual passava a medicina de geral a especializada a técnica fundamentada na análise cuidadosa de questões específicas Mas Nina Rodrigues não se desfez de sua bagagem teórica anterior tornandose um especialista em MedicinaLegal incorporará as preocupações mais abrangentes da medicina social até então em vigência e estas duas influências serão visíveis e estarão ambas presentes em quase todos os seus trabalhos Assim apesar de não corresponderem a dois momentos estanques de sua carreira é possível observar que essas diferenças de abordagem se aglutinam em períodos bem definidos de sua vida profissional indicando uma ruptura que no seu caso não seria definitiva Mesmo antes de terminar o curso de medicina e quando recémformado seus primeiros trabalhos mostram uma ênfase no estudo do comportamento de grupos sociais tentando a extrapolação de análises de casos individuais Não só as doenças dos indivíduos o interessavam mas também todas as manifestações de patologia social desde o estudo de hábitos alimentares que considerasse nocivos à saúde da população Estudo sobre o regime alimentar do Norte 1888 até o de moléstias endêmicas A morféia em Anajatuba 1886 e epidemias A abasia coreiforme epidêmica no Norte do Brasil 1890 Desde aí ele já explicitava também a sua visão da raça negra como elemento patológico na composição de nossa população Contribuição para o estudo da lepra Seus trabalhos desse primeiro período 18861892 mostram também uma característica que se manterá importante em sua atuação a intervenção na realidade social de seu tempo Nina Rodrigues levava o seu cartel de desafio na expressão de Lins e Silva para onde quer que estivessem concentradas as atenções públicas do momento não apenas analisando a questão em foco uma epidemia a necessidade de uma legislação sanitária como participando ativamente na sua resolução Logo após sua chegada em Salvador seu nome é uma presença constante em campanhas polêmicas comissões na redação da Gazeta Médica no Conselho de Saúde Pública etc Inicialmente restrita à Bahia essa presença no cenário médico vai se ampliando até passar a figurar em listas semelhantes em nível nacional e internacional Sua atividade contrasta com o quadro que pintava da vida científica de Salvador uma adaptação forçada dos trabalhos que importamos do estrangeiro Gazeta Médica da Bahia agosto 1891 Nina Rodrigues já era então redatorchefe da Gazeta cargo que ocupou por alguns anos e em outros momentos retornaria ao assunto deixando claro que a intenção de interferência da revista nas relações da medicina com a administração pública era um programa de ação e que ele faria o possível para tirar os médicos baianos daquela penumbra prudente Sua campanha para que o estado da Bahia tivesse uma organização sanitária autônoma sustentada em artigos na Gazeta é um bom exemplo disto Proclamada a República e adotado o sistema federativo recolocavase a questão da autonomia dos estados na gestão de seus interesses Nina Rodrigues descreve a situação das repartições sanitárias naquele momento Neste Estado por exemplo existem uma repartição sanitária federal a inspetoria de saúde do porto duas repartições sanitárias estaduais inteiramente independentes a junta de higiene e a junta vacínica e ainda por cima as repartições municipais pois a esta hora preocupase infelizmente a Intendência da capital em organizar o seu serviço de higiene à parte e independente o que quer dizer cioso também de suas prerrogativas e atribuições e pronto mais tarde a intervir nessa luta esterilizadora de rivalidades recíprocas em que vivem as demais repartições O que nos falta pois para que tudo isto funcione regularmente Exclusivamente uma coisa administração sanitária A necessidade de uma administração superior que paire acima das lutas e rivalidades de repartições que devem ser compelidas a se prestar mútuo auxílio na sua missão comum de zelar pela saúde pública administração que reuna às vantagens de uma direção única os esclarecimentos imprescindíveis de uma corporação consultiva fazse sentir a toda hora e de modo o mais imperioso GMBa fevereiro 1892 Criticando a opção por uma independência impossível e perturbadora das repartições sanitárias a autonomia que Nina Rodrigues defendia na relação do Estado com a Nação se definia de fato por uma forte ênfase na centralização em nível estadual A essa ênfase correspondia também um ataque renovado em outras discussões ao que poderia parecer à primeira vista um duplo da especialização a fragmentação a multiplicação de instâncias de decisão Elogiando o Projeto de regulamento dos serviços de higiene e de assistência públicas para o Estado da Bahia elaborado pelo professor de Higiene da Faculdade de Medicina e transformado em lei em 1892 por ter salvo as duas grandes questões da unidade e da centralização diz ele Num mecanismo simples e muito bem combinado o ilustre professor conseguiu subordinar perfeitamente as atribuições das diferentes autoridades sanitárias e garantir a fiscalização rigorosa de todos os ramos da higiene pública É incontestável que a lei deu ao Conselho mais autonomia e maior soma de atribuições do que as que lhe conferia o Projeto primitivo A intervenção do Conselho na fiscalização dos atos das repartições executivas está clara e terminantemente estabelecida a dependência das diversas corporações sanitárias ficou bem definida Aos poderes sanitários centrais ou estaduais ficam garantidas assim a fiscalização dos atos das autoridades municipais e o direito de representar contra eles quando se descurarem das obrigações que lhe são impostas pela legislação sanitária GMBa setembro 1892 A distribuição hierárquica de poderes acompanhada de uma fiscalização com a possibilidade de intervenção são características que ele defendia também em nível nacional criticando os médicos do Rio de Janeiro ora por achar que desejavam a fragmentação da legislação sanitária deixandoa a cargo dos municípios ora por utilizarem a capital federal como parâmetro de todas as cidades do país Diz Nina Rodrigues A acareação dos dois importantes documentos que se seguem ao mesmo tempo que revigora e fortalece as boas razões com que tenho procurado fundamentar a campanha que vou sustentando na Gazeta Médica em favor de uma organização sanitária federal para o nosso país levame ao espírito a convicção descorçoante de que dentre a própria classe médica brasileira estão nascendo os maiores embaraços à realização deste supremo desideratum dos povos civilizados em matéria de higiene pública Tomamos a confederação norteamericana por modelo ou paradigma da nossa organização política Mas ao passo que a poderosa Associação Médica dos Estados Unidos circundada do maior prestígio de uma tradição gloriosa e dominada do espírito enérgico e resoluto daquele grande povo prossegue por todos os meios e há muitos anos no firme propósito de dotar a sua pátria de uma organização sanitária completa o Conselho Superior de Higiene Pública do Brasil vem em nome da organização democrática autônoma e soberana do governo municipal propor aos poderes públicos que fragmente mutile e desfça a obra ainda incompleta da nossa unificação sanitária preconizando a idéia infeliz em higiene pública da liberdade e independência municipal GMBa março 1892 Os dois documentos a que ele se refere são um Parecer apresentado e adotado na sessão do Conselho Superior de Saúde Pública a 21 de janeiro de 1892 e elaborado pela comissão abaixo especificada37 e uma Petição para que se crie um ministério de saúde pública e se nomeie um ministro ou secretário de saúde pública da Associação Médica NorteAmericana Inspirandose nesse desejo de centralização nacional dos médicos norteamericanos que como ele acentuava já tinham obtido uma vitória em nível estadual com a criação dos State Boards of Health Nina Rodrigues ironicamente criticava a atitude do Conselho Nacional como uma reminiscência da asfixiante centralização a que se tinha habituado durante o Império afirmando que o seu país o seu Brasil é a capital federal Num artigo anterior em que debatera o assunto com o relator do Brazil Médico do Rio de Janeiro Nina Rodrigues explicitara essa aparente contradição Que possamos obter desde já do governo federal uma organização sanitária mais aceitável dificilmente o cremos Gustanos a acreditar com efeito que os atuais legisladores federais educados ainda nessa escola política de absorção centralizadora que por meio século dominou o país já estejam preparados para formular leis capazes de conciliar o respeito pelos interesses higiênicos dos estados com a tendência do governo central a tudo absorver Por isso a uma tal organização que seria a persistência do desprezo sempre revelado pelo centro das necessidades mais imperiosas da higiene pública nas províncias preferimos sem dúvida uma organização transitória mas de existência real que nos possa levar um dia ao ideal das organizações sanitárias a organização centralizada E nisto não há parece a mínima contradição GMBa setembro 1891 Lutando pela aprovação de uma legislação estadual centralizada caminho que lhe parecia o mais viável para chegar a uma centralização federal o que Nina Rodrigues combativa em primeiro lugar era a autonomia municipal que o Conselho defendia A organização municipal autônoma e completamente independente tem provado mal em toda parte entre nós será um desastre completo À exceção das grandes cidades a falta de recursos a pobreza dos municípios a carência de instrução pública e de pessoal habilitado a influência perniciosa de uma política de pequenos interesses tudo isso concorrerá fatalmente para que as mais urgentes e imperiosas necessidades higiênicas nunca passem da letra morta nos regulamentos e nas posturas dos municípios GMBa março 1892 Aqui começava a se definir o tipo de lógica que mais tarde seria retomada em relação à composição étnica de nossa população o atraso do município implicava na sua tutela mas não o eximia de atuar na área da saúde pública o que tornava necessária uma fiscalização permanente garantia de que a legislação sanitária seria cumprida O município nem era tão irresponsável que não pudesse ser penalizado nem tão responsável que pudesse se autoadministrar É necessário que os partidiários da autonomia municipal se compenetrem de que eximirse do dever de não ser nocivo nunca foi uma ação de liberdade A ambigüidade da posição dos municípios podia abrir brechas indesejáveis no mecanismo bem montado da legislação desejada e o mesmo argumento de sua fraqueza que servia de respaldo à exigência de tutela também demonstrava a sua incapacidade de cumprir eficazmente a legislação sanitária A lei baiana concedendo que os municípios tenham os serviços que os seus recursos permitirem é muito de recear que a alegação de falta de meios se torne em breve um pretexto geral para continuar o desprezo que entre nós sempre afetaram os governos municipais por tudo o que diz respeito à higiene pública Nestas circunstâncias é muito provável que a representação do Conselho Geral contra os municípios recalcitrantes nunca surta o mínimo efeito E no entanto como reconhecem todos se a atividade que representa o poder central não tiver o direito de intervir no município direito que surge claramente das disposições da lei orgânica municipal e é inerente à índole das atribuições que em matéria sanitária lhes corresponde bastaria o abandono ou a negligência das autoridades locais de qualquer município para inutilizar os esforços de preservação dos demais e resultaria daí esta monstruosidade que uma municipalidade poderia impedir a ação do governo na mais elevada das suas funções qual é a de proteger a saúde pública em toda a extensão do território GMBa agosto 1892 Mariza Corrêa As ilusões da liberdade 87 Conseqüência irônica da definição ambivalentemente dos municipios a mesma falta de recursos que o impedia de ter uma legislação sanitária autônoma lhe dava a possibilidade de negar a aplicação da legislação estadual ameaçando todo o edificio da organização sanitária nacional A solução encontrada para esse dilema segue uma lógica semelhante à que Nina Rodrigues utilizará na análise da repressão penal dos que considerava irresponsáveis em nossa população Para assegurar um controle adequado da atuação municipal era necessária a intervenção de um agente externo que demonstrasse no entanto seu conhecimento das questões específicas em jogo Este era o segundo ponto enfatizado na luta pela criação de uma legislação estadual a demonstração de que ela se apoiava num conhecimento íntimo da realidade local não acessível ao poder centralizado do Conselho Superior de Saúde Pública Uma ameaça de epidemia de febre amarela na cidade seria o pretexto para dar um tom de alarme à necessidade de medidas urgentes aconselhadas ao governo estadual semelhante ao tom adotado mais tarde quando se vai enfatizar a utilidade da perícia médicolegal na repressão da criminalidade Nomeie um conselho de higiene pública do Estado com um diretor geral de higiene que superintenda todo o serviço sanitário estadual substituindo a direção suprema exercida até hoje pela inspetoria geral de higiene do Rio de Janeiro confiralhe o poder de organizar de acordo com os inspetores da junta de higiene e da saúde do porto e com os recursos de ocasião um serviço sanitário defensivo ao mesmo tempo marítimo e terrestre faça reprimir os dissentimentos que cria esta distinção de serviço federal e serviço estadual prestando o Estado que é quem está ameaçado concurso e auxílio à inspetoria de saúde do porto sacando sobre a economia de vidas e dinheiro que resulta sempre de uma epidemia dominada abra sob sua responsabilidade créditos extraordinários para a instalação modesta dos serviços indispensáveis certo de que todo ele reverterá em beneficio do Estado confie no patriotismo na abnegação e desprendimento garante sanção legal à existência da medicina estatutindo que o exercício desta profissão seja facultado exclusivamente às pessoas diplomadas pelas escolas superiores do país GMBa outubro 1892 Mas é como se quanto mais abrangente se tornava o plano teórico de aplicação do saber médico tanto mais difícil parecia ser a tarefa de análise dos pequenos espaços sociais localizados onde ele podia ser sabotado Enquanto idealizador de um plano de organização sanitária nacional Nina Rodrigues se utilizava de um conhecimento médico que se pretendia universal como médico baiano e intelectual brasileiro percebia claramente onde esses parâmetros internacionais não se encaixavam à realidade que conhecia Se a ciência é cosmopolita e impessoal a sua aplicação está sujeita às surdas imposições dos interesses partidários A desarticulação das agências promotoras da saúde pública numa impossível e perturbadora independência parecia demonstrar que o médico sozinho não daria conta da análise dos vários campos que elas cobriam análise que deveria anteceder um planejamento político que se queria eficaz necessitando da cooperação de outros especialistas nessa tarefa de aprofundar o conhecimento da realidade O próprio médico não reunia mais a soma dos conhecimentos acumulados de sua ciência necessários a este aprofundamento Relação entre extensão e profundidade do campo médico que começava se tornar problemática Esta ambivalência teórica Nina Rodrigues tentará resolver politicamente mediante a proposta de uma formação especial para o médico que quisesse se envolver nas questões da medicina pública Ele próprio descreveria esta tentativa aos seus alunos em 1898 Tendo o governo federal solicitado das faculdades de medicina um plano de reforma do ensino médico no Brasil apresentei em 30 de maio de 1892 a seguinte proposta à Congregação desta Faculdade A Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia propõe ao governo a criação de um título de habilitação particular de médico oficial que será limitandose à simples inspeção do cadáver Carta de 1531892 em Luiz Anselmo da Fonseca 1892 Essa classe da população justamente na que são mais frequentes os exames deste natureza passou a ser não somente analisada por Nina Rodrigues quando a situação se apresentava como ocorria até então em suas férias na província natal ou em seu trabalho inicial na clínica de seu sogro mas será procurada por ele e colocada no centro de suas atenções É como se apenas no momento em que a morte se tornou o eixo de sua atividade médica desde que passou a praticar assiduamente o famoso conselho de Bichat abram alguns cadáveres tivesse ficado claramente definido para ele quais eram os seus objetos preferenciais de análise A dificuldade principal encontrada por ele em sua atuação se expressa no fato de que empenhado num planejamento institucional ele devia se ocupar também em definir constituir os objetos dessa instituição mais propriamente os seus objetos institucionais41 Ao descrever as esferas de ação do perito Nina Rodrigues apontava ao mesmo tempo para os seus objetos de análise a penitenciária o Hospital de Caridade os asilos de alienados lugar dos despossuídos do direito da saúde ou da razão essa classe da população ainda demasiado visível coletivamente nos lugares de que a ciência dispunha para observála Mais do que uma metáfora esta sala apinhada de gente que pede roga reclama e ameaça era um obstáculo concreto a um trabalho de observação que se queria invisível e será sobre ela ou contra ela que se vai erigir uma parcela importante do conhecimento médico que desde aqui já começava a contribuir para a constituição também do conhecimento das ciências sociais Um segundo obstáculo sempre mencionado seria o clínico conceituado causa da ofensa da responsabilidade profissional do médico da polícia e também este Ao mesmo tempo em que lutava para estruturar juridicamente os quadros formais de atuação do perito estrutura que só seria plenamente instituída após sua morte através do trabalho de seus discípulos e definir seus objetos de análise Nina Rodrigues esforçavase também por recortar seu trabalho distinguindoo de outros médicos demonstrado grande habilidade além de desprezálos explicitamente Mas a ênfase numa aplicação imediata dos conhecimentos médicos em sua instrumentalização legal a urgência percebida nos conselhos de intervenção enérgica dirigidos ao Estado apontam para uma visão politicamente bem definida do uso desses conhecimentos Ainda que retoricamente negasse o valor dos interesses mesquinhos da política Nina Rodrigues nunca deixou de atuar politicamente para alcançar seus objetivos como veremos em outros exemplos de sua atividade E ainda que a única tonalidade política que se permitisse dar a seus trabalhos fosse a explícita finalidade de proporcionar o bem comum há um grande silêncio em todos eles e também aqui sobre as consequências para aqueles a quem seriam aplicados os resultados de suas propostas o elemento público na expressão saúde pública por exemplo Como vários de seus pronunciamentos demonstram Nina Rodrigues tinha uma percepção clara de que o bem que desejava para a nossa sociedade poderia não ser exatamente o desejado pela maioria de sua população já que nem sequer eram muitas vezes compreendidas pelos seus pares essa percepção talvez o tenha levado a assumir tão frequentemente a posição de cavaleiro solitário da ciência ao mesmo tempo tornandoo tão atraente para outros médicos também despreocupados com as repercussões sociais de suas propostas ALGO MAIS QUE A ARTE DE CURAR Só a partir do momento em que se estabilizou como professor de Medicina Legal na Faculdade da Bahia e assumiu publicamente este aspecto definidor de sua carreira é que a atuação de Nina Rodrigues parece ter se tornado sistemática e organizada tanto na esfera acadêmica como fora dela A reforma do ensino de 1891 que remanejou professores sem a abertura de concursos foi muito criticada por alguns médicos da época tendo merecido uma larga discussão na Memória Histórica da Faculdade referente a este ano e motivado a troca de notas entre Nina Rodrigues e os que defendiam a realização de concursos publicadas na Gazeta Médica40 Dez anos depois na aula de abertura do curso ele ainda volta ao assunto quase definindo o seu empenho na transformação da medicina legal numa disciplina de fato como legitimação de sua nomeação A reforma foi violentamente atacada e a maior celeuma levantouse em torno das transferências dos professores Não me demorarei em reduzir os motivos reais e os aparentes desta campanha A preocupação dominante de aderir ao novo regime político tornou de grande freqüência naquela época o fato de darse aparência de um zelo extremado pelas formalidades legais como disfarce a um espírito muito anódino de insurreição contra o movimento republicano vitorioso ou de simples justificativa de interesses feridos Importa pouco no nosso caso pesquisar até que ponto na campanha contra a reforma de 1891 influíu esta situação de espírito Sempre entendi que sendo a transferência de professores uma questão de fato só em fatos deviam os professores transferidos fazer consistir a demonstração de que as suas transferências não tinham sido prejudiciais ao ensino Pela reforma de 1891 fui transferido do ensino de Clínica Médica em que era professor adjunto para o ensino de Medicina Pública em que fui nomeado professor substituto É pois o legítimo exercício daquele direito de justificação o que ora exerço indagando ao cabo de dez anos se a minha nomeação foi de fato prejudicial ao ensino da Medicina legal 190232 Dez anos depois ele podia também alinhar os progressos da Medicina Legal no Brasil incluindose na sua história e rever seu programa de atuação A partir daí ele como que esquece uma atuação importante mas mais ou menos fragmentada entre vários interesses e quase todos os seus artigos anteriores a esta data Nessas revisões no entanto se aparece a preocupação em determinar os marcos importantes na história da Medicina Legal e as dificuldades de sua constituição não são mencionadas as condições cotidianas de seu trabalho Em 1892 numa carta relatório ao encarregado da Memória Histórica da Faculdade ele faz uma descrição dessas condições e das resistências sociais que essa última apropriação médica do corpo despertavam É deplorável mesmo o que tenho tido ocasião de observar em relação as autópsias da polícia De ordinário é feito este serviço na pequena sala contígua ao depósito de cadáveres do Hospital de Caridade dependência como é o depósito do mesmo estabelecimento algumas vezes praticamente as autópsias no salão de direção do gabinete de anatomia da Faculdade A curiosidade reúne ali onde se conserva franco o ingresso quanto curioso e desocupado existe nesta terra os quais reforçados pelos parentes aderentes e conhecidos do defunto acabam por constituir uma massa respeitável de espectadores ocupando literalmente as portas janelas e circunvizinhanças do recinto onde se trabalha que invariavelmente é por fim invadido de modo que se torna quase impossível moveremse médicos e ajudantes A repugnância instintiva pelas autópsias que existe tão acentuada na nossa população atrasada e supersticiosa muito agravada ainda por cima com esta exibição impudente desrespeitosa e da mais alta inconveniência de um serviço que a veneração sempre respeitável pelos mortos e o mais elementar bom senso mandam que se faça com os resguardos e acatamento necessários constituiu um embaraço sério a esta ordem de trabalho Em certa classe da população justamente na que são mais frequentes os exames desta natureza além da pressão exercida no momento pelos pedidos rogos e reclamações recorrese muitas vezes a ameaças de desacato ao médico e a seus ajudantes já tendo sido necessário segundo estou informado a requisição de força armada para conter estes indivíduos E por tal forma se entende mal o serviço médicojudiciário entre nós que a um clínico conceituado vi eu já levado por deferências políticas ou pessoais valerse das suas relações de amizade para conseguir que o médico da polícia com ofensa da sua responsabilidade profissional e oficial deixasse de praticar a autópsia que lhe era exigida Como apropriar para esta nova disciplina objetos não definidos como a ela pertinentes como definir um campo mal delimitado no interior da ciência médica nacional Nessa definição e nessa apropriação ele recorreu ao instrumental teórico europeu sem dúvida mas o utilizou como outros experimentalistas da época aplicandoo sobre uma realidade específica sobre questões locais Diz ele explicitamente A par de questões médicolegais que são cosmopolitas invariáveis de aplicação a todos os povos e todas os países grande número há que estão dependentes na sua solução de condições peculiares variáveis de país a país Pretender resolver estas pela aplicação arbitrária e forçada de fórmulas e princípios verdadeiros para certos e determinados povos e climas é falsear o rigor científico que se quer da Medicina Legal pondo em graves compromissos os princípios da justiça e a respeitabilidade da ciência No Brasil tudo está por fazer neste departamento 1902d38 No seu balanço de dez anos de carreira docente na cadeira de Medicina Legal Nina Rodrigues explicitava também o seu programa apresentando o plano da sua ação e do seu ensino níveis que para ele vão sempre juntos 1º Promover a criação no nosso processo judiciário de uma organização da perícia médica com peritos especialistas já pela propaganda universitária já pela demonstração na imprensa da necessidade e oportunidade de tal reforma 2º Promover pelos mesmos meios a criação dos institutos médicoslegais de ensino prático e experimental onde se possam formar os peritos 3º Promover a solução daqueles problemas médicolegais que nos são peculiares ou tem para nós uma feição peculiar em razão do clima da raça da natureza das nossas instituições políticas e judiciárias ou do grau da nossa civilização sempre imperfeitas e incompletas que não eram enfim verdadeiras uma vez que a missão do perito era demonstrar a verdade sirva ela a quem servir A partir de 1892 os livros e artigos de Nina Rodrigues vêm sempre acompanhados de numerosos exemplos a respeito dessa missão saneadora dos erros praticados por médicos que não são especialistas na matéria42 Esses casos vêm quase sempre precedidos da palavra suposto em sua apresentação Suposto caso de defloramento suposta tentativa de homicídio suposta cerebroragia traumática criminosa etc E concluem inevitavelmente com uma apreciação da perícia anterior onde se lêem frases do tipo O exame de corpo de delito constante no documento que analisamos foi incompleto insuficiente e feito com preterição das regras fundamentais admitidas em Medicina Legal para as autópsias em caso de envenenamento Um desses casos relatados o da suposta cerebrotragia tratava da morte da esposa de um engenheiro maranhense que ao consultar Nina Rodrigues parecia levar em conta a sua crescente fama como especialista ao formular a pergunta Foi a autópsia constante da mesma certidão feita segundo as regras e princípios recomendados pela ciência ou ressentese de omissões e lacunas que lhe tiram todo valor não só com relação a existência das lesões descritas como a causa presumida da cerebrotragia a que os peritos atribuem a morte Nina Rodrigues opta pela segunda alternativa e o suposto criminoso é absolvido43 Como em grande parte dos casos que relata neste também a sua opinião parece ter tido um peso importante na decisão dos juízes Não se trata de utilizar aqui a mesma lógica usada por Nina Rodrigues e desqualificar suas análises em termos de interesses políticos que porventura o movessem como parece implícito na apreciação que Gilberto Freyre faz de sua atuação no caso da tentativa de envenenamento do governador de Pernambuco44 Tratase antes de reconhecêlas como táticas políticas parte de uma estratégia mais ampla de autonomizar o campo da medicina legal do da clínica e de marcar fortemente a sua presença no cenário médico e social como um perito diferenciado de seus colegas clínicos gerais ou médicos funcionários da polícia Estes últimos embora em menor grau do que os primeiros já que sua colaboração era indispensável aos acordos de trabalho com a polícia eram também um obstáculo a sua estratégia Deles diz Nina Rodrigues ataques aos colegas desvirtuando os fatos e os princípios científicos com sacrifício impudente da verdade 1904a123 Ao explicar ainda a seus alunos a causa pela qual acreditava ter sido rejeitada sua proposta à Congregação em 1892 Nina Rodrigues deixava claro que se tratava de uma luta política pela ocupação de um espaço bem definido dentro da medicina Não nos tínhamos apercebido de que reunindo a sorte da medicina legal cujos cargos não são ambicionados porque não são retribuídos e implicam em geral em séria responsabilidade à sorte da higiene cujo exercício é procurado pois todos se reputam aptos a exercêla e a receber os vencimentos respectivos tínhamos lavrado previamente a condenação das nossas propostas e alvitres levantando contra eles toda a sorte de interesses profissionais Não seríamos nós todavia que teríamos aceitado e proposto aquela associação senão como medida transitória a fim de ver se conseguíamos trazer para a medicina judiciária o esboço ou arremedo de organização pública que entre nós já possuí a higiene Daqui por diante cumpre advogar a especialização exclusiva da medicina judiciária e defendêla contra todos os óbices a ela opostos partam de legisladores de juristas ou de médicos Além destes inimigos internos concentrados no campo do Direito e da Medicina havia ainda um inimigo externo que ele se dedicaria a combater especialmente Constitui um caso da questão precedente a defesa da medicina contra os ataques dos partidários da liberdade profissional pois nesta se quer compreender a do perito médico 1902d36 Disputa científica que não admitia que fosse colocada em questão a base sobre a qual ela se assentava tratavase de redistribuir no âmbito da medicina e do direito espaços já assignados ou de conquistar novos mas nunca de por em dúvida o saber aí institucionalizado como o faziam os positivistas alvo deste seu discurso Mas mesmo internamente havia dificuldades a vencer uma vez que os próprios médicos seus colegas não pareciam estar tão convencidos quanto deveriam das verdades da ciência que professavam Queixavase ele em 1896 A cartomante Josephina tem residido em diversas partes desta cidade sempre com grande celebridade e clientela ouvida afirmase até por médicos distintos em apuros de concurso na Faculdade De um se diz que fez em concurso diagnóstico psiquiátrico por inspiração da cartomante Tal é a disposição de ânimo da nossa população em geral 18961935199 Se inúmeras eram as dificuldades de constituição do campo da Medicina Legal da definição de sua área e de seus agentes não menores eram os obstáculos à estruturação de um quadro formal onde o perito essa figura nova da qual segundo Nina Rodrigues só existiam dois exemplares na Bahia em 1901 pudesse ao mesmo tempo formarse e atuar Este quadro quando existente não estava constituído no interior das Faculdades de Medicina mas fora delas junto à polícia Todo o material de ensino prático da medicina legal no Brasil está nos serviços médicolegais da polícia Isto aparentemente não foi um problema até o momento em que proclamada a República as províncias tornaramse estados e sua administração passou a ser estadual enquanto as faculdades continuaram sob a administração da União vinculadas ao Ministério do Interior Os médicos que prestavam serviços junto à polícia passaram a ser funcionários do Estado da Bahia sem qualquer vínculo com a Faculdade Desde 1892 e fazendo eco a reclamação de seu antecessor naquele momento ainda o proprietário da cadeira de medicina legal Nina Rodrigues propunha a reabsorção do serviço médicolegal da polícia pela Faculdade só esse serviço terá plena execução quando se realizar uma medida utilíssima proposta pelo ilustre proprietário da cadeira a sua nomeação e do seu substituto para médicos legistas da policia Não creia que seja esta concessão insignificante difícil de obter pela Faculdade de Medicina que conta tantos membros exercendo alta influência na política do Em geral na nossa instrução criminal as verificações periciais mais importantes estão confiadas à polícia judiciária que as faz executar pelos médicos da polícia simples empregados administrativos demissíveis da confiança do chefe de polícia e por isso mesmo aliás muitas vezes com a maior e mais clamorosa injustiça suspeitados pelo público de parcialidade e falta de isenção 1904a20 Não é de admirar que o público pudesse assim pensar se o próprio Nina Rodrigues assinava estas palavras Claramente se vê assim que pelo menos para algumas das conclusões do exame os peritos se guiaram contra todas as regras médicolegais pelas informações que tinham do caso e não por aquilo que observaram diretamente 1904a73 Ou estas é o exercicio da medicina judiciária entregue salvo exceções muito honrosas a médicos de pouco escrúpulo e nenhuma competência científica 1904a26 Ao prevenir a seus alunos sobre a necessidade de possuir o perito uma forte envergadura moral Nina Rodrigues descrevia a um tempo o seu comportamento em relação aos médicos da polícia e de seus oponentes em relação a si próprio No nosso país com os nossos hábitos está o perito de contínuo exposto a ataques mais ou menos violentos pela imprensa E o que é mais para lamentar de ordinário são eles alimentados e provocados por médicos Já não digo das afamadas discussões médicas pela imprensa profana que entre nós tem acompanhado invariavelmente a todas as questões médicolegais de certo valor discussões em que menos se procuram elucidar dúvidas do que agredir e desrespeitar colegas com manifesto prejuízo dos créditos da profissão Casos há mais reprovados ainda de médicos que acobertados na responsabilidade de terceiros estranhos à profissão alimentam os país e do Estado carta relatório in Luiz A da Fonseca 1892 Muito antes de realizarse seu desejo já Nina Rodrigues estabelecera relações informais com a polícia O que não se pode conseguir oficialmente entre a Faculdade e a Chefatura de polícia obtive das minhas relações pessoais com os distintos médicos do serviço médicolegal desta última repartição 1902d43 Esta relação começaria a ser oficializada em 1905 um ano antes da morte de Nina Rodrigues e por iniciativa sua num acordo entre a Secretaria de Polícia e de Segurança Pública e a Faculdade de Medicina Nas bases deste acordo assinado por Nina Rodrigues ficava estabelecido que o Pavilhão Médico Legal da Faculdade mais tarde Instituto Nina Rodrigues seria dirigido pelo professor de Medicina Legal que também seria reconhecido pelo estado como perito oficial Ali passariam a ser feitas as autópsias e outros exames policiais que na época eram realizados em hospitais separados ou num anexo da delegacia No seu ofício ao diretor da Faculdade Nina Rodrigues justificava o acordo e retomava seu argumento E dizer que por longos anos os atos periciais mais importantes se realizaram nesta cidade dentro do edifício da Faculdade de Medicina as autópsias nas suas salas e anfiteatros de anatomia os exames de feridos no antigo Hospital de Caridade que funcionava em edifício compreendido no da nossa escola médica Infelizmente a Faculdade deixou perder então oportunidade tão excelente para prender desde logo em laços indissolúveis o serviço pericial da polícia ao seu ensino prático de Medicina Legal Sobrevieram a mudança do Hospital de Caridade para Nazaré a criação do necrotério deste estabelecimento que passou a receber os cadáveres enviados pela polícia a criação de sala de exames médicolegais na chefatura de polícia e com elas veio a dispersão dos elementos do ensino prático de Medicina Legal que cada vez mais iam fugindo e escapando a esta Faculdade Mas antes de tudo isto já tinha vindo com o governo republicano federativo a repartição nos Estados da direção dos serviços policiais e do ensino superior por dois poderes distintos o do governo do Estado e o da União De fato se o governo do Estado ou do Município chegasse a montar convenientemente repartições suas destinadas ao serviço médicojudiciário desta cidade se poderia dizer que de todo havia escapado à nossa Faculdade de Medicina não mais a superintendência ou a orientação em benefício dos seus cursos desta fonte de ensino prático mas que estariam perdidos para ela não só qualquer coparticipação direta nesses serviços mas ainda os elementos indispensáveis a um curso prático de Medicina Legal útil e proveitoso Terseia constituído assim um centro de estudos médicos de cujas concessões e favores passaria a viver o ensino de Medicina Legal desta Faculdade dela completamente independente senão mais tarde hostil e rival 1905c255256 Essa rivalidade prevista e de certa forma evitada por Nina Rodrigues na Bahia se concretizaria de forma bastante aguda alguns anos depois no Rio de Janeiro a partir da iniciativa de Afrânio Peixoto de apropriar para a Faculdade o saber prático desenvolvido pela polícia tornando claro que se tratava nos dois casos de uma disputa entre dois poderes o médico e o policial sobre um mesmo objeto Ambos acabariam no entanto por encontrar um modo de convivência as bases do acordo que Nina Rodrigues assinou com a polícia baiana seriam reiteradas com poucas alterações ao longo dos anos permanecendo ainda em vigência Estácio de Lima 1979 Tanto suas disputas como sua atuação conjunta talvez possam ser atribuídas à definição comum a ambos sobre sua área de atuação social a polícia médica nasceria de táticas próprias à polícia no controle das populações e era um conceito importante para a ciência médica desde o século 1745 Definindo o papel do perito como o de um técnico Nina Rodrigues ao mesmo tempo enfatizava a sua formação através do contato direto com o contexto social dos problemas de que ele deveria tratar E apesar de em vários artigos especializados oferecer exemplos do aspecto propriamente técnico desse trabalho análises químicas de manchas detalhes de uma autópsia etc ele se insurgia contra a ênfase que seus antecessores na docência da matéria fosse no Rio de Janeiro fosse na Bahia deram a este aspecto Falando sobre a influência perniciosa que exerceu a química toxicológica sobre o ensino da Medicina Legal ele criticava também a influência francesa cujas consequências apontava Em primeiro lugar influindo sobre a organização do ensino e fazendo que em 1854 a medicina legal que então quase se reduzia à toxicologia e à química fosse colocada na antiga seção das ciências acessórias ao contrário do que mais sabiamente havia feito o regulamento de 1832 que a tinha deixado na seção das ciências médicas Naquela seção era a química a ciência predileta a rainha por excelência E podese dizer sem errar que pelo amor revelado pelos estudos químicos pelo respeito que se votava aqui ao saber dos cultores dessa ciência a Bahia foi uma terra de químicos Para isso houve talvez explicação razoável em que afora a anatomia e as clínicas era a química a ciência destinada a ter entre nós maior desenvolvimento prático quer no ensino da farmacologia quer principalmente nas oficinas farmacêuticas que se criavam no país 1902d30 Os três últimos ocupantes de sua cadeira tinham vindo de uma experiência de ensino da química E tanto eles como os encarregados dela no Rio de Janeiro não deram à disciplina o cunho prático proposto por Nina Rodrigues prática que não se esgotasse nas experiências de laboratório mas tentasse resolver o problema latente de sua aclimatação pátria para constituir o verdadeiro ensino brasileiro da Medicina Legal Dessa proposta apoiada teoricamente pela nova orientação impressa à Medicina legal pelos estudos recentes da antropologia criminal nasceu a sua prática de pesquisa A verdadeira criação de um ensino médicolegal no Brasil data do dia ainda bem próximo em que os professores desta disciplina se resolveram espontaneamente a abandonar a grave reserva de sábios e inacessíveis áugures para descer às familiaridades mundanas do exercício e da prática forense Foi então fácil reconhecer que as apartosas e graves dissertações teóricas mesmo quando fruto de assíduos trabalhos de gabinete não eram ainda o ensino da medicina legal pois que a medicina judiciária é uma verdadeira clínica em que só o contato com os males e doentes sociais habilita os peritos a bem servir aos prepostos do saneamento moral da sociedade sejam juízes ou tribunais 1902d 22 Para contrarrestar o argumento do excessivo saber teórico das faculdades era preciso transformar os médicos em pesquisadores para evitar o confronto com o saber nascido da pesquisa médica em laboratórios criados fora das faculdades era preciso incorporálos à Faculdade enfim para contornar a crítica do saber médico como mera cópia de saberes europeus era necessário criar um saber específico a respeito da nossa circunstância ainda que ele se legitimasse com base em teorias européias Esses pontos ao mesmo tempo que resumem o debate que ocorria no interior da ciência médica da época descrevem também as táticas de atuação de Nina Rodrigues para a constituição da Medicina Legal Com o decorrer do tempo no entanto parecia inverterse o sentido da ruptura do saber específico com o saber médico generalizado ao se multiplicarem os objetos desse saber é como se a perícia se tornasse apenas um novo argumento ou uma nova fase da medicina social A atuação inicial de Nina Rodrigues insistindo na criação de um nicho profissional e lutando para mantêlo seria acompanhada de uma extensão do campo da Medicina Legal à medida que áreas cada vez mais amplas da vida social eram incorporadas a ela como objetos de interesse do perito De uma proposta no interior da faculdade à tentativa de aprovação de uma nova lei estadual da colocação insistente da questão para seus alunos à fundação de uma associação e de uma revista especializadas do exame dos casos mais diferentes de atentado à ordem social a sugestões de sua definição e classificação pelos códigos civil e penal Nina Rodrigues ampliou o círculo do debate sobre o papel da Medicina Legal e a importância social do perito Mas não se trata de pensar o seu percurso apenas como uma continuação ou reafirmação dos valores implantados pela medicina social no Brasil na primeira metade do século 19 O momento político era outro os parâmetros teóricos eram diferentes havia todo um elenco de atores sociais em conflito ou em conjunção que não se encontravam presentes antes Os valores da especialização são outros e às vezes diametralmente opostos ao daquele grupo de médicos que pretendeu cobrir toda a sociedade com o manto de Hipócrates A multiplicação dos objetos de interesse do perito começava a configurar antes a possibilidade de uma fragmentação indesejável dessa disciplina ainda mal constituída ameaçando a partilha de seu campo em vários domínios e a alocação de cada novo objeto nomeado a um especialista Nina Rodrigues parece ter tido uma percepção clara dessa possibilidade e terse antecipado a ela ao organizar por exemplo a sua produção científica em torno do eixo da Medicina Legal inclusive incorporando ou rejeitando suas investigações anteriores a partir de determinado momento deste novo ângulo46 Neste sentido o elogio de seus discípulos nomeando os campos de saber por ele percorridos é equivocado e enganador para Nina Rodrigues pareceria impensável destacar a sua criminologia da sua antropologia ou da sua psicologia Esta afirmação se tornará mais inteligível ao observarmos adiante a sua tentativa de apropriação fracassada de mais um objeto de análise o louco que acabou passando ao campo de outra especialidade médica a psiquiatria A oposição ao saber médico genérico em favor de um saber especializado além de estratégia política com o objetivo de enfatizar as vantagens do perito sobre o clínico geral deve ser também relativizada a medicina continuou a ser a ciência referencial de Nina Rodrigues e é este campo mais amplo que definiria em última instância suas alianças políticas Ignorando as dissidências teóricas internas ao campo médico e criticando severamente os profissionais da medicina relutantes na defesa de seus privilégios Nina Rodrigues defendia também sua autonomia em relação ao Estado ao mesmo tempo que reclamava a proteção deste A autonomia das corporações docentes modeladas nas das organizações universitárias alemãs ou inglesas apenas sujeitas à fiscalização do Governo no que toca ao valor profissional dos diplomas tal deve ser hoje a aspiração capital da nossa profissão E nas condições atuais de civilização do país e de riqueza pública só há um meio prático de levála a efeito é a constituição pelo Governo de um patrimônio de direção por ele também fiscalizada e cuja renda garanta o custeio do ensino Aos atuais institutos oficiais de ensino médico não deve estar reservado apenas o papel de escolas profissionais Devem se constituir padrões do ensino médico e grandes centros de cultura das ciências biológicas Quando amanhã destruído o frágil dique da atual exigência da modelação das Faculdades livres nas Faculdades oficiais tiver autorização para conferir diploma de médico quanto hospital quanta reunião de alguns médicos se quiser constituir o abaixamento do nível da instrução clínica encontrará corretivo nas escolas convenientemente organizadas para que se há de apelar como centros de aperfeiçoamento e o Governo saberá onde buscar profissionais na altura de auxiliálo na grave missão de zelar pela saúde pública e pela segurança interna e externa da Nação 1899a48 A ênfase na autonomia da ciência em relação ao Estado não é apenas um ponto retórico do discurso destinado a convencer os republicanos positivistas comteanos ou spencerianos de que a medicina não era uma ciência oficial47 Nina Rodrigues tem o cuidado de distinguir os interesses passageiros da política do momento das consequências duradouras que eles poderiam ter na definição da prática médica Prevendo possíveis disputas políticas entre os estados que possuíam faculdades de medicina e os que não podiam oferecer o seu ensino ao chamar a atenção por exemplo para a atuação de Julio de Castilhos no Rio Grande do Sul tenta mostrar a necessidade de se fortalecer o estatuto de ciência da medicina praticada nas duas faculdades existentes e de reforçar o papel do médico formado por meio do amparo legal de sua atuação Qual de fato a arte médica que existe fora das faculdades atuais Acaso o Sr Dr Castilhos não aplaude a criação de uma faculdade livre que vai ensinar a mesma medicina que as faculdades oficiais perguntava ele numa defesa dos direitos e privilégios dos médicos formados que ficou famosa A autonomia do campo médico sería delimitada pela intervenção reguladora limitativa do Estado evitando que a liberdade de uns se transforme em licença lesiva dos direitos de outros também a instância que conferia legitimidade ao saber médico ao desautorizar outros saberes de cura A constituição da Medicina Legal como uma disciplina autônoma em relação a outras disciplinas médicas é assim uma luta interna a luta maior pela preservação da Medicina institucional que estava sendo posta em questão naquele momento Antes de acompanhar as tentativas de Nina Rodrigues de incorporar os loucos e os negros ao seu esquema teórico objeto das duas últimas partes deste capítulo convém recolocar algumas das questões relevantes para a compreensão da importância da sua carreira como espécie de resumo de uma série de tendências médicas e políticas da época e que foram como que cristalizadas nela A relação problemática entre a expansão e a especialização da medicina parece ser a mais importante dessas questões Num primeiro momento da constituição da medicina institucionalizada no Brasil sua expansão política foi acompanhada tão de perto por uma extensão do saber médico a respeito da população Cf Roberto Machado 1978 que seria impossível separálos e dizer qual desses movimentos precedeu ou determinou o outro Seja como for essa amplitude de saberes essa multiplicação de intervenções na sociedade no limite punha em questão a sua própria definição como ciência Ao mesmo tempo que a institucionalização do saber médico em duas Faculdades garantia a exclusividade da reprodução desse saber exigia também dos médicos uma participação ativa na produção de um conhecimento efetivo da sociedade brasileira Isto é lutando contra a aceitação social de outros saberes de cura o curandeirismo a homeopatia que disputavam o terreno com a medicina tradicional competia aos médicos não apenas vencêlos politicamente o que conseguiram no nível jurídico mas também derrotálos ideologicamente luta ainda em andamento A especialização surgia nesse momento não apenas como uma forma de organizar internamente os diversos ramos da Medicina de maneira a acomodar melhor os progressos do saber mas também para cumprir essa função ideológica Isto não implica em que este movimento possa ser explicado apenas pela pressão dos seus competidores externos já que ele foi primeiro uma reação dos próprios médicos ao estado de sua ciência ao criticarem a ausência de uma produção científica nas faculdades emergindo fora delas Não apenas nos laboratórios ou institutos de pesquisa que pareciam promover uma ampliação do campo médico ao mesmo tempo que o tornavam socialmente mais visível mas também em associações profissionais que reclamavam a reorganização da Medicina e na multiplicação de revistas e jornais especializados e de instituições ou cargos onde o saber médico passava a ser aproveitado Já vimos como Nina Rodrigues clamava contra o desinteresse de seus colegas pelas reuniões da Sociedade Médica da Bahia mais tarde ele estendeu essa reclamação às associações profissionais nacionais por seu silêncio em relação às tentativas de transformar em lei a liberdade profissional 48 Em 1895 com outros médicos baianos ele fundou a Sociedade de Medicina Legal da Bahia tornandose seu primeiro presidente e também um dos redatores e o mais assíduo colaborador da Revista Médico Legal uma das primeiras publicações médicas especializadas do país Dois anos depois encarregado por seus colegas da Faculdade de escrever a Memória Histórica daquele ano o fez narrando com tal severidade e clareza os atos acadêmicos que ela permaneceria inédita até 1976 rejeitada pela Congregação 49 Fora da Faculdade ele levou projetos à Assembléia Legislativa do Estado propondo a reformulação dos serviços médicoslegais da polícia em 1892 e 1896 ao Congresso pela unificação das leis processuais Rio 1896 além de publicar artigos em jornais revistas nacionais e internacionais e livros sobre o assunto A luta de Nina Rodrigues e suas estratégias não eram realmente uma novidade já em 1881 o professor e o preparador de Medicina Legal da Faculdade do Rio de Janeiro tendo protestado contra o fato de serem chamados a fazer perícias toxicológicas para a polícia sem qualquer remuneração foram nomeados médicos consultantes da polícia E mesmo antes disso em 1877 o doutor Souza Lima havia promovido um acordo entre a municipalidade a Secretaria de Polícia e a diretoria da Faculdade e conseguiu abrir o primeiro curso de autópsias forenses do Brasil no necrotério da capital federal 1902d28 Nina Rodrigues foi seu aluno e não hesitava em chamálo o fundador da Medicina Legal brasileira Novidade foi o seu empenho sistemático nessa luta transformando a perícia num tema de tal importância que não só os legisladores foram obrigados a prestar atenção a ela nas propostas de modificações da lei penal ou na resolução de casos judiciais 50 como ela acabou tornandose uma arma ideológica da maior utilidade para as faculdades Instrumento novo que ao legitimar a entrada do médico na área judicial já que invadiu e dominou a nossa prova processual propiciava também o fortalecimento das faculdades ao concentrar a produção de um conhecimento específico sobre nossa realidade Eficácia simbólica que não desprezava o uso do terror fosse sobre a população que protestava contra a mutilação de seus mortos fosse como argumento aos poderes constituídos para comprovar a necessidade da instauração da perícia como elemento de controle dessa mesma população Na representação ao legislativo estadual em 1896 os médicos afirmavam no relato assinado por Nina Rodrigues Assim no estado atual do serviço de polícia a Sociedade de Medicina Legal declara e vos garante que só envenenadores imbecis não poderão contar neste Estado com a impunidade mais segura e infalível 1904a45 Ao evocar o conhecimento íntimo de certos rituais religiosos o perito evocava também o seu perigo para a sociedade De fato eu não creio que os magistrados mais obsedados na observância estrita da letra constitucional que houvessem sancionado em sentença a legalidade e constitucionalidade das curasfeitiços cheguem um dia em obediência à Constituição a justificar os sacrifícios humanos muitas vezes reclamados pelas próprias vítimas e a prostituição sagrada dos cultos das raças inferiores que conosco convivem E todavia deve ter a sua proteção constitucional quer o culto dahomano quer o yorutismo que entre nós existem como hei demostrado em alguns trabalhos 1899a3051 Em segundo lugar se a história da institucionalização desta especialidade mostra o quão intimamente ligadas estavam as disputas científicas e as lutas políticas da época aponta também para a necessária autonomia que cada uma mantinha em relação a outra Definindo precisamente um saber novo delimitando sua área de ação e organizando a sua institucionalização Nina Rodrigues estava sempre atuando politicamente fosse ao requisitar como próprio à Faculdade esse conhecimento que quase lhe escapa fosse fazendo a publicidade dessa disciplina aqui e no exterior fosse agindo no interior de associações profissionais ou tentando fazer aprovar leis que implementassem suas iniciativas acadêmicas Ou ainda ao lutar pela manutenção dos privilégios das faculdades e contra a ampla licença profissional que surgia no horizonte com a República Luta política interna à Medicina ou entre a Medicina e os que queriam pôr em questão seu estatuto de ciência Mas a sua era também uma política orientada pela noção da autonomia que a Medicina deveria manter perante o poder político até para que pudesse instituirse em seu interlocutor Essa exigência de autonomia não excluía a colaboração com o poder político ao contrário ela era necessária para que a medicina legal se transformasse numa disciplina de fato Diz ele em 1898 Para a consecução integral do desideratum a realizor tornase necessário o concurso harmônico do Poder Judiciário que deve ser compelido e habilitado a escolher convenientemente os peritos das faculdades de medicina que devem acharse em condições de poder dar aos peritos a sólida instrução prática que exigem as funções periciais e de uma boa lei sobre o exercicio da medicina que atenda com igual cuidado ao exercicio da medicina clínica profilática e da medicina judiciária e não seja manca e truncada como tem sido até hoje incapaz de compreender que a medicina possa ser mais alguma coisa do que a arte de curar 1904a1213 Ao expor claramente a seus alunos o objetivo a atingir na constituição dessa disciplina ele lhes dava também o exemplo da metodologia adequada para tratar dos objetos que ele elegeu para ela 52 Decidindose por estudar em primeiro lugar as nossas coisas e destacando na contribuição da medicina legal o problema latente de sua aclimatação pátria Nina Rodrigues resolveu também ao examinar a questão da capacidade civil e da responsabilidade penal do brasileiro ir até os seus alicerces mesmos isto é investigar as consequências da interação racial Assim fazendo ele se inscreveu não só no movimento da Medicina de seu tempo que criou a perícia este mandato de expropriação do comum dos homens de qualquer autonomia de decisão Castel 1978143 como também no movimento de criação de uma outra disciplina interessada no ser humano a antropologia Ao apropriarse desta nova disciplina de alguns objetos constituídos pela Medicina Legal a forma escolhida por Nina Rodrigues como a mais adequada para apreendêlos seria ainda sua metodologia por algum tempo AS ILUSÕES DA LIBERDADE Os peritos em Medicina Legal foram os primeiros a reclamarem Nina Rodrigues como seu patrono a ele talvez tivesse lhe agradado mais ser lembrado pelas finas análises das formas mentais a que se aventurou depois de esgotadas as possibilidades teóricas contidas nos resultados das mutilações corporais que ocuparam boa parte de sua carreira médica 53 Nos últimos anos de sua vida o lado psicológico dos problemas que analisava parece ter assumido cada vez mais o primeiro plano em suas preocupações abrindo todo um novo capítulo de interesses em sua biografia intelectual Não que este aspecto fosse desleixado anteriormente basta lembrar a admiração e o conhecimento que sua tese de doutorado e seus primeiros artigos na Gazeta Médica revelavam pelos trabalhos do grupo de Charcot na França mas seu zelo na constituição do campo e na institucionalização da Medicina Legal deixaram entre parênteses as suas análises psicológicas No entanto a preocupação pela morfologia da psicologia humana esteve sempre presente em seus textos e para além das diferenças exteriores de sua manifestação era na comparação de seus elementos constantes que residia a sua busca de compreensão deles era a unidade que superaria a diversidade que o interessava Curiosamente ao tratar de um tema como a mutilação cadavérica que o levava também a refletir sobre sua própria prática profissional ele colocava de forma muito explícita a sua visão teórica enfatizando a importância do método comparativo como instrumento privilegiado de análise 54 A crença na evolução mental dos seres humanos também aparece aí claramente formulada e diretamente vinculada às condições existenciais das Sociedades 55 A ênfase atribuída pelo próprio Nina Rodrigues às análises antropométricas particularmente à craniometria assim como a relevância dada por alguns de seus críticos a este aspecto de sua obra talvez tenham contribuído para tornar quase invisível uma passagem que embora tardia é muito importante em sua carreira o deslocamento da atenção dos aspectos fisiológicos para os aspectos psíquicos do comportamento humano 56 No entanto quanto mais psicológicas se tornavam as observações de Nina Rodrigues tanto mais sociológicas se mostram suas análises mais e mais a loucura por exemplo aparece como expressão das relações sociais entre os homens Isto era mais evidente nos exames periciais que realizava em pessoas da burguesia agrária e de aparente normalidade psíquica do que naqueles feitos em pessoas pobres ou selecionadas por terem cometido atos considerados desviantes em si mesmos homicídios estupros etc É aí que a sua argumentação vai se apoiar cada vez menos nos sinais físicos da doença e cada vez mais numa análise das relações sociais do examinado mostrando a importância que atribui a elas é aí ao alinhar os sinais que considerava indicadores da necessidade de afastar alguém do convívio social que Nina Rodrigues explicitaria as regras desse convívio por ele consideradas normais naturais Assim através de seu detalhado exame da conduta deviante de um senhor de engenho por exemplo homem branco podemos perceber que se nos negros ele observava comportamentos mais grosseiros de repúdio a uma norma social de cuja história estavam excluídos e se nos brancos esse repúdio assume em suas análises formas mais sutis de expressão era só o comportamento dos primeiros que Nina Rodrigues relativizava Ambos eram ameaças sociais e os dois deveriam ser retirados da vida em sociedade mas por razões diferentes os negros porque estavam historicamente defasados em relação a ela os brancos por não terem se adaptado às normas de conduta que eles próprios produziram 57 Sua percepção aguda da intensa diversidade dos casos que analisava não apenas entre si mas principalmente entre eles e as definições correntes nas revistas especializadas estrangeiras aliada a uma visão muito clara dos antagonismos e conflitos no âmbito de nossa Topografando os matizes raciais Como os Intelectuais Brasileiros Representaram os Africanos em suas Teorias Raciais no Final do Século XIX e Início do Século XX Nome do Autor Introdução O Brasil país marcado pela diversidade étnica e cultural também carrega em seu cerne as profundas marcas da história da escravidão e da colonização Nesse contexto as questões raciais emergem como um dos temas mais complexos e urgentes de nossa sociedade Ao longo dos séculos o racismo se entranhou nas estruturas sociais políticas e culturais do país moldando as relações entre os diferentes grupos étnicos e influenciando profundamente a vida dos brasileiros Para compreendermos plenamente as dimensões e implicações do racismo no Brasil é essencial olharmos para além das manifestações superficiais e explorarmos as raízes históricas e estruturais desse fenômeno É nesse contexto que as obras de Lilia Moritz Schwarcz e Mariza Corrêa emergem como importantes pontos de partida para uma reflexão mais profunda e abrangente sobre o tema Em O Espetáculo das Raças Schwarcz nos conduz por uma jornada pelo período que vai do século XIX ao início do século XX explorando as teorias raciais que permearam a ciência e a cultura brasileiras Ao analisar o papel dessas teorias na construção de uma hierarquia racial e na legitimação da desigualdade a autora lança luz sobre as raízes profundas do racismo no Brasil e suas ramificações em nossa sociedade contemporânea Por sua vez em As Ilusões da Liberdade Corrêa nos leva a uma investigação minuciosa da vida e obra de Nina Rodrigues um dos pioneiros da antropologia no Brasil Ao examinar as complexas relações sociais e profissionais que moldaram o pensamento de Rodrigues a autora nos convida a refletir sobre os desafios enfrentados pela historiografia ao tentar reconstruir o passado e sobre as limitações de nossa compreensão da complexidade da experiência humana Ao unir essas duas perspectivas somos confrontados com a urgência de reconhecer e confrontar as raízes profundas da desigualdade e da discriminação que ainda permeiam nossa sociedade À medida que mergulhamos mais fundo nas reflexões desses trabalhos somos desafiados a olhar para além das narrativas dominantes e a reconhecer as lacunas e limitações de nossa compreensão da complexidade da experiência humana Nesse sentido esta introdução busca lançar luz sobre o debate em torno das questões raciais no Brasil e destacar a importância de uma abordagem multidisciplinar e crítica para compreendermos plenamente as dimensões e implicações do racismo em nossa sociedade Ao refletirmos sobre as lições do passado e as lutas do presente somos convidados a trabalhar juntos pela construção de um Brasil mais inclusivo e igualitário para todos os seus cidadãos Nas próximas linhas iremos colocar sob escrutínio os trabalhos de proeminentes intelectuais como Lilia Moritz Schwarcz e Mariza Corrêa cujas obras lançam luz sobre as complexidades das questões raciais no Brasil Ao explorarmos essas análises e reflexões buscamos estabelecer um fio de articulação dialógica viva e orgânica entre os autores promovendo um diálogo interdisciplinar que nos permita avançar na compreensão e no enfrentamento dos desafios impostos pelo racismo em nossa sociedade Discussão No segundo capítulo de As Ilusões da Liberdade Mariza Corrêa analisa de forma meticulosa as complexas relações sociais e profissionais de Nina Rodrigues um dos pioneiros da antropologia e medicina legal no Brasil A autora revela as dificuldades enfrentadas na reconstrução de sua trajetória destacando a escassez de documentação e a predominância de relatos laudatórios que ofuscam uma compreensão crítica e abrangente de seu trabalho e influências Corrêa aponta destaca que A maior dificuldade em reconstruir as relações sociais de Nina Rodrigues reside na falta de informações explícitas e na natureza implícita dessas relações nunca plenamente detalhadas pelos que as viveram Esta citação resume um dos principais argumentos de Mariza Corrêa no capítulo 2 de As Ilusões da Liberdade Ela destaca a dificuldade que os historiadores enfrentam ao tentar reconstruir as relações sociais e profissionais de figuras históricas como Nina Rodrigues A ausência de documentação detalhada e explícita torna essa tarefa ainda mais desafiadora pois muitas das interações e influências importantes são apenas mencionadas de maneira implícita ou anedótica Esse ponto é crucial para entender as limitações e os desafios da historiografia especialmente quando se trata de personagens cujas vidas foram predominantemente registradas por biógrafos laudatórios que não se preocuparam em fornecer uma análise crítica e abrangente Além disso essa citação levanta uma questão pertinente sobre a natureza da memória e da documentação histórica A forma como as relações sociais são registradas ou a falta dela pode distorcer a compreensão que temos de figuras históricas perpetuando uma visão fragmentada e muitas vezes romantizada de suas vidas e contribuições A citação portanto não apenas ilumina o trabalho de Corrêa mas também oferece uma reflexão sobre a prática da historiografia em geral A obra enfatiza que as biografias existentes são predominantemente elogiosas dando mais atenção a aspectos superficiais de sua vida pessoal Essa abordagem gera um conhecimento fragmentado e insuficiente para uma análise crítica A ausência de correspondências regulares e publicações completas de sua obra dificulta ainda mais a compreensão das complexas redes de influência e interação que moldaram seu trabalho Martianiano do Bonfim um colaborador próximo de Nina Rodrigues recebe pouca atenção em seus escritos apesar de sua importância Esse fato exemplifica como muitas figuras significativas na trajetória de Nina Rodrigues são mencionadas de forma passageira ou implícita subestimando suas contribuições e o contexto mais amplo em que operavam Corrêa destaca passagens vívidas nos escritos de Nina Rodrigues onde ele descreve suas observações de forma quase lírica ou aterradora Essas descrições como sua emoção ao ver o embarque de africanos retornando à pátria ou as autópsias realizadas em Salvador oferecem uma janela para suas experiências pessoais e emocionais enriquecendo a compreensão de sua prática médica e social A autora argumenta que a atuação social de Nina Rodrigues é uma parte inseparável de sua produção intelectual Escrevendo na primeira pessoa e situando os eventos no contexto político e social da Bahia ele fornece um testemunho valioso do período Essa abordagem confere uma dimensão humana e contextual a seus escritos que vai além da mera descrição científica Corrêa sugere que o contexto social maranhense teve uma influência significativa na escolha dos temas de Nina Rodrigues Seu trabalho reflete um diálogo contínuo com o debate intelectual nacional e sua experiência baiana moldando sua perspectiva e enfoque analítico Essa conexão regional é crucial para entender a evolução de suas ideias e práticas A mudança de Nina Rodrigues para Salvador marcou uma nova fase em sua carreira intensificando seu envolvimento com as questões sociais e culturais da cidade A Bahia com sua rica diversidade cultural e desafios sociais ofereceu um cenário vibrante que influenciou profundamente sua pesquisa e prática médica O contato de Nina Rodrigues com a obra de Lombroso e de teóricos da antropologia criminal italiana e francesa teve um impacto duradouro em sua orientação teórica Apesar de reconhecer as limitações de aplicar esses postulados ao contexto brasileiro ele encontrou neles um ponto de partida valioso para desenvolver suas próprias ideias e metodologias A influência de teóricos como Lombroso Ferri e Garofalo é evidente na formação jurídica de Nina Rodrigues Seu envolvimento com o debate sobre novas ideias penais e a publicação de A Nova Escola Penal em 1893 demonstram como ele ajudou a moldar o pensamento jurídico no Brasil contribuindo para reformas penais significativas Nina Rodrigues começou a ministrar aulas de Medicina Legal o que ampliou seu interesse pelo campo jurídico Essa nova responsabilidade acadêmica o incentivou a explorar mais profundamente as interseções entre medicina direito e sociedade refletindo uma abordagem interdisciplinar em sua produção intelectual Mariza Corrêa em As Ilusões da Liberdade apresenta uma análise crítica e detalhada das complexidades da vida e obra de Nina Rodrigues Ao abordar as influências intelectuais as lacunas documentais e a rica produção intelectual do médico Corrêa oferece uma visão nuançada que desafia as narrativas simplistas e elogiosas revelando um retrato mais completo e humano de um dos grandes pensadores brasileiros Comparando com o cenário contemporâneo podemos observar como a ciência moderna com suas redes sociais e comunicação instantânea difere radicalmente do contexto de Nina Rodrigues Hoje a documentação e a transparência são muito mais acessíveis permitindo uma reconstrução mais precisa e menos anedótica das trajetórias intelectuais No entanto o desafio de separar o elogio acrítico da análise substancial permanece especialmente em um mundo onde as imagens públicas são constantemente moldadas e remoldadas pela mídia As ilusões da liberdade de Corrêa ecoam nos desafios modernos de discernir entre o superficial e o significativo na era digital onde as histórias pessoais e profissionais se entrelaçam de maneiras complexas e às vezes enganosas A análise das obras As Ilusões da Liberdade de Mariza Corrêa e O Espetáculo das Raças de Lilia Moritz Schwarcz revela um rico diálogo sobre as questões raciais e sociais no Brasil especialmente nas transições do século XIX para o século XX Enquanto Corrêa explora a trajetória de Nina Rodrigues pioneiro na antropologia e medicina legal brasileira Schwarcz examina as bases científicas e institucionais do racismo no país Ambas as obras são fundamentais para entender as complexas interações entre ciência sociedade e política no contexto brasileiro Em As Ilusões da Liberdade Corrêa destaca as dificuldades em reconstruir a trajetória de Nina Rodrigues devido à escassez de documentação explícita e à predominância de relatos laudatórios Nina Rodrigues que atuou nas áreas de antropologia e medicina legal é frequentemente apresentado de maneira superficial com biografias que se concentram em anedotas triviais Corrêa critica essa abordagem argumentando que ela obscurece uma análise mais profunda e crítica de suas contribuições e influências Por outro lado Schwarcz em O Espetáculo das Raças aborda o racismo científico e institucional que permeou a sociedade brasileira entre 1870 e 1930 A autora demonstra como as teorias raciais foram usadas para justificar e naturalizar as desigualdades sociais e econômicas travestindose de ciência positivista Essas teorias foram promovidas por intelectuais e cientistas que sob a fachada de objetividade científica perpetuaram um sistema de dominação racial e social Ambas as autoras exploram as influências intelectuais que moldaram seus sujeitos de estudo Corrêa aponta como Nina Rodrigues foi influenciado por teóricos da antropologia criminal como Lombroso Ferri e Garofalo Esses pensadores italianos e franceses contribuíram para a formação das ideias de Rodrigues embora ele tenha adaptado seus postulados ao contexto brasileiro Schwarcz por sua vez destaca como as teorias raciais europeias foram importadas e adaptadas pelos cientistas brasileiros servindo aos interesses das elites e perpetuando o racismo institucionalizado A escassez de documentação detalhada é um tema central nas obras de Corrêa e Schwarcz Corrêa lamenta a falta de correspondências e publicações completas de Nina Rodrigues o que dificulta uma análise crítica de sua trajetória Schwarcz ao reconstituir a afirmação profissional de médicos e advogados brasileiros também enfrenta desafios documentais mas utiliza uma abordagem histórica rigorosa para revelar as pretensões hegemônicas desses profissionais Ambas as obras contextualizam seus sujeitos de estudo dentro das dinâmicas sociais e políticas de suas épocas Corrêa situa Nina Rodrigues no contexto da Bahia explorando como suas experiências locais influenciaram sua prática médica e suas teorias antropológicas Schwarcz por sua vez analisa como as instituições científicas e jurídicas brasileiras do final do século XIX e início do século XX foram moldadas por ideologias racistas que buscavam legitimar as desigualdades sociais Corrêa critica as narrativas laudatórias que dominam as biografias de Nina Rodrigues argumentando que elas obscurecem uma compreensão crítica de sua vida e obra Schwarcz em contraste utiliza uma abordagem crítica para dissecar as narrativas científicas e institucionais que promoveram o racismo no Brasil Ambas as autoras portanto buscam superar as narrativas superficiais e anedóticas oferecendo análises mais profundas e críticas Corrêa e Schwarcz destacam a importância da produção intelectual de seus sujeitos de estudo Nina Rodrigues com suas descrições líricas e aterradoras oferece uma janela para suas experiências pessoais e emocionais enriquecendo a compreensão de sua prática médica e social Schwarcz por sua vez analisa como as teorias raciais promovidas por médicos e advogados brasileiros moldaram as percepções e políticas raciais no Brasil com impactos duradouros na sociedade A interdisciplinaridade é uma característica marcante das obras de Corrêa e Schwarcz Corrêa explora as interseções entre medicina direito e sociedade refletindo uma abordagem interdisciplinar em sua análise de Nina Rodrigues Schwarcz como antropóloga utiliza uma abordagem histórica e sociológica para dissecar as instituições científicas e jurídicas brasileiras revelando as raízes profundas do racismo institucionalizado As análises de Corrêa e Schwarcz permanecem relevantes no contexto contemporâneo O racismo difuso na sociedade brasileira mencionado por Schwarcz ainda é uma realidade e sua discussão permeia todos os segmentos sociais A necessidade de uma análise crítica e profunda das origens e evolução do racismo é crucial para combater suas manifestações modernas Corrêa ao destacar as lacunas documentais e narrativas superficiais também nos lembra da importância de uma historiografia rigorosa e crítica Comparando com o cenário contemporâneo podemos observar como a ciência moderna com suas redes sociais e comunicação instantânea difere radicalmente do contexto de Nina Rodrigues Hoje a documentação e a transparência são muito mais acessíveis permitindo uma reconstrução mais precisa e menos anedótica das trajetórias intelectuais No entanto o desafio de separar o elogio acrítico da análise substancial permanece especialmente em um mundo onde as imagens públicas são constantemente moldadas e remoldadas pela mídia Mariza Corrêa em As Ilusões da Liberdade e Lilia Moritz Schwarcz em O Espetáculo das Raças apresentam análises críticas e detalhadas das complexidades das questões raciais e sociais no Brasil Ao abordar as influências intelectuais as lacunas documentais e as redes de poder que moldaram suas épocas ambas as autoras oferecem visões nuançadas que desafiam as narrativas simplistas e elogiosas revelando retratos mais completos e humanos de figuras e instituições fundamentais para a compreensão da história brasileira No correr das páginas da história e ao cronicar os reflexos de um passado na estrutura atual os personagens que moldaram os dias passados continuam a ecoar em nossos tempos presentes Assim somos convidados a articular nossas reflexões a saga reflexiva levada a cabo por Franz Fanon escrita em letras vívidas de luta e resistência ressoa ainda hoje nas estruturas sociais e psicológicas do Brasil contemporâneo Nascido numa ilha distante suas palavras ecoam na atualidade como um chamado à reflexão sobre as cicatrizes do colonialismo e suas consequências na formação da identidade e da subjetividade Na teia complexa das relações sociais brasileiras as questões raciais ainda reverberam entrelaçadas com os fios da discriminação e da desigualdade estrutural Como psicólogo clínico confrontome diariamente com as feridas abertas pelo racismo cujas raízes se entranham profundamente na psique e na vida cotidiana das pessoas Emerge então a necessidade premente de dialogar sobre os processos subjetivos subjacentes ao sofrimento gerado pela racialização um tema muitas vezes negligenciado nas discussões contemporâneas Nesse emaranhado de reflexões as obras de Fanon surgem como faróis iluminando caminhos antes obscurecidos pela sombra do preconceito e da opressão Seus escritos não apenas desnudam as estruturas coloniais que moldaram a experiência negra mas também lançam luz sobre as intricadas teias de poder e privilégio que permeiam a sociedade brasileira Ao mergulhar nas páginas de Pele negra máscaras brancas somos confrontados com a dolorosa realidade da interiorização da inferioridade por parte do homem negro um reflexo das estruturas coloniais que ainda persistem em nosso tecido social Fanon nos lembra que o sofrimento do homem negro não é apenas uma questão individual mas sim o resultado de séculos de opressão e marginalização cujas raízes se estendem até os dias de hoje Entretanto as reflexões de Fanon também nos desafiam a transcender as limitações de uma análise unidimensional Ele nos lembra que nem todo sofrimento do homem negro é exclusivamente devido à racialização destacando a importância de um diagnóstico diferencial sensível às múltiplas facetas da experiência humana Todavia um olhar de escrutínio sobre o cenário contemporâneo do Brasil somos confrontados com os limites de nossa própria narrativa Ainda há vozes silenciadas histórias não contadas experiências não reconhecidas As obras de Fanon embora profundamente pertinentes também revelam lacunas em nossa compreensão da complexidade da experiência negra especialmente quando se trata das vivências de mulheres pessoas LGBTQIA e outras minorias dentro da comunidade negra Assim ao refletirmos sobre os ensinamentos de Fanon somos chamados não apenas a reconhecer as injustiças do passado mas também a enfrentar os desafios do presente com coragem e determinação Suas palavras continuam a ecoar como um lembrete poderoso de que a luta pela igualdade e pela justiça é uma jornada contínua que exige não apenas reflexão mas também ação concreta e comprometimento com a transformação estrutural de nossa sociedade nossa jornada através Ao concluirmos das páginas de O Espetáculo das Raças de Lilia Moritz Schwarcz e do capítulo 2 de As Ilusões da Liberdade de Mariza Corrêa somos confrontados com um mosaico complexo de reflexões sobre as questões raciais e sociais que ecoam no Brasil contemporâneo Nessas obras encontramos não apenas análises críticas e detalhadas das complexidades do passado mas também uma provocação para repensarmos nossas estruturas sociais e políticas à luz das lições aprendidas Ao mergulharmos nas reflexões de Schwarcz sobre o racismo científico e institucional que permeou o Brasil nos séculos XIX e XX somos confrontados com a urgência de reconhecer e confrontar as raízes profundas da desigualdade e da opressão que ainda persistem em nossa sociedade Suas análises meticulosas nos convidam a examinar criticamente as narrativas que sustentam as estruturas de poder e a trabalhar incansavelmente pela construção de um futuro mais justo e equitativo para todos s brasileiros Por sua vez os escritos de Mariza Corrêa nos desafiam a olhar para além das narrativas dominantes e a reconhecer as lacunas e limitações de nossa compreensão histórica Ao examinar as complexas relações sociais e profissionais de figuras como Nina Rodrigues Corrêa nos lembra da importância de uma abordagem crítica e abrangente ao estudar o passado uma abordagem que reconheça tanto os feitos quanto as falhas de nossos antepassados Ao unir essas duas perspectivas somos convidados a refletir sobre as interseções entre passado presente e futuro As lições do passado nos fornecem um ponto de partida para entender as injustiças do presente enquanto nossas ações no presente moldam o curso do futuro Ao reconhecermos as falhas e as limitações de nossos sistemas e instituições podemos trabalhar juntos para construir um Brasil mais inclusivo e igualitário para todos os seus cidadãos Nas linhas finais desse trabalho queremos consignar que não podemos nos dar ao luxo de ficar indiferentes ou complacentes Somos chamados à ação chamados a nos levantar contra a injustiça e a trabalhar pela construção de um mundo onde todos tenham a oportunidade de prosperar A jornada rumo à igualdade e à justiça pode ser longa e árdua mas é uma jornada que vale a pena empreender Que as reflexões desses dois trabalhos nos inspirem a seguir adiante com coragem determinação e empatia na busca por um futuro mais luminoso e inclusivo para todos Referências Schwarcz Lilia Moritz O Espetáculo das Raças Cientistas Instituições e Questão Racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 Corrêa Mariza As Ilusões da Liberdade A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1998 Fanon Frantz Pele negra máscaras brancas São Paulo Edições Ubu 2017