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Recebido em 21 Jun 2022 Aprovado em 27 Jul 2022 Publicado em 12 Ago 2022 DOI 1018554rtv15i26236 v 15 n 2 Maio Ago 2022 Revista Triângulo ISSN 21751609 A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE BOURDIEU E A POBREZA APORTES NA ANÁLISE DAS DESIGUALDADES EDUCACIONAIS BOURDIEUS SOCIOLOGY OF EDUCATION AND POVERTY CONTRIBUTIONS TO THE ANALYSIS OF EDUCATIONAL INEQUALITIES LA SOCIOLOGÍA DE LA EDUCACIÓN DE BOURDIEU Y LA POBREZA APORTES AL ANÁLISIS DE LAS DESIGUALDADES EDUCATIVAS Estela Caroline Freitas Melo Email estelafmelohotmailcom Natália Aparecida Morato Fernandes Email nataliafernandesuftmedubr Universidade Federal do Triângulo Mineiro UFTM RESUMO Este artigo relaciona a pobreza no Brasil com as possibilidades de acesso e êxito na educação Mediante pesquisa bibliográfica contextualiza sobre as características da pobreza no país e orientado pela teoria de Bourdieu privilegiando seu olhar sobre a educação como um processo social que contribui para a reprodução e conservação das desigualdades intenta provocar questionamentos sobre o sistema educacional Conclui que a educação sozinha não é um instrumento capaz de superar todos os limites impostos às diferentes classes sociais do país mas se configura como estratégia fundamental de transformação social PALAVRASCHAVE Pobreza Bourdieu Desigualdades ABSTRACT This article relates poverty in Brazil to the possibilities of access and success in education Through bibliographic research it contextualizes the characteristics of poverty in the country and guided by Bourdieus theory privileging its view of education as a social process that contributes to the reproduction and conservation of inequalities intends to provoke questions about the educational system It concludes that education alone is not an instrument capable of overcoming all the imposed limits on the different social classes of the country but it is configured as a fundamental strategy for social transformation KEYWORDS Poverty Bourdieu Inequalities RESUMEN Este artículo relaciona la pobreza en Brasil con las posibilidades de acceso y éxito en la educación A través de la investigación bibliográfica contextualiza las características de la pobreza en el país y guiado por la teoría de Bourdieu privilegiando su visión de la educación como un proceso social que contribuye a la reproducción y conservación de las desigualdades pretende suscitar interrogantes sobre el sistema educativo Concluye que la educación por sí sola no es un instrumento capaz de superar todos los límites impuestos a las diferentes clases sociales del país pero se configura como una estrategia fundamental para la transformación social PALABRASCLAVE Pobreza Bourdieu Desigualdades 58 Revista Triângulo ISSN 21751609 INTRODUÇÃO Os limites do sistema educacional em relação ao contexto socioeconômico do país podem se expressar em diferentes problemáticas Visando a superação destes limites e mudanças paradigmáticas neste campo é necessário primeiramente conhecer os mecanismos que os mantém e reproduzem A análise crítica sobre as relações sociais que se formam desde a vida escolar tornase uma importante ferramenta por possibilitar inferir sobre as influências da vulnerabilidade socioeconômica no desenvolvimento do indivíduo e desta forma traçar estratégias para a inclusão e equiparação de oportunidades para todos A inclusão social é um tema amplamente discutido em ambientes acadêmicos e políticos porém ainda hoje é possível observar uma grande diferenciação de acesso à espaços sociais e à educação para pessoas em situação de pobreza Para analisar as desigualdades sociais e educacionais na realidade brasileira recorremos especialmente à Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu O autor considera que as oportunidades de acesso e êxito escolar são resultados de uma seleção desigual com rigor distinto para os alunos de diferentes classes sociais e afirma que o sistema escolar é um dos fatores mais eficazes de conservação social pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural BOURDIEU 2007 p41 Bourdieu evidencia que não é suficiente apenas enunciar as desigualdades dentro do sistema educacional pois é necessário descrever os mecanismos que auxiliam para a sua manutenção Enfatizase neste artigo1 os conceitos do sociólogo considerados significativos para a análise proposta como a definição de Capital Cultural que segundo o autor é transferido da família para as crianças e influencia nas suas experiências sociais como a educação O capital cultural apresentase assim como uma hipótese no entendimento da desigualdade no desempenho escolar expressado por crianças de diferentes classes sociais Segundo Nogueira e Nogueira 2002 p 17 Bourdieu proporciona uma nova perspectiva de interpretação da escola e da educação relacionando o desempenho escolar a origem social e formulando uma resposta original e bem fundamentada para o problema das desigualdades escolares Onde se via 1 Este artigo deriva da pesquisa de mestrado intitulada Inclusão social e escolar a partir da condicionalidade de educação do Programa Bolsa Família realizada junto ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Triângulo Mineiro 59 Revista Triângulo ISSN 21751609 igualdade de oportunidades meritocracia justiça social Bourdieu passa a ver reprodução e legitimação das desigualdades sociais Fundamentado na metodologia da pesquisa bibliográfica que segundo Gil 2008 é desenvolvida a partir de fontes bibliográficas já elaboradas material que se constituí principalmente de livros e artigos científicos Evidenciase que ao analisar a relação entre pobreza e o acessoêxito educacional é possível identificar os seus limites eou lacunas na educação e nas políticas públicas a fim de impulsionar novas pesquisas e ações que privilegiem aspectos pouco assistidos Estes estudos contribuem para propiciar a participação de Estado e sociedade civil em processos socioeducacionais apropriados às necessidades da população preconizando e respeitando suas singularidades Objetivase assim perceber a relação entre a pobreza e a educação evidenciadas pela Teoria de Pierre Bourdieu em especial ao que concerne as desigualdades educacionais Em sua primeira parte este artigo aborda a pobreza no país sua conceituação características e indicadores Em seguida pontua alguns conceitos de Bourdieu evidenciando seu olhar sobre a educação como um processo social de reprodução das desigualdades Intenta assim provocar questionamentos sobre o sistema educacional no Brasil seu papel na contribuição da manutenção da estrutura e ordem social e a discrepância no acesso à educação e êxito para estudantes oriundos de classes sociais em situação de vulnerabilidade socioeconômica A POBREZA NO BRASIL Com o intuito de compreender o que é a pobreza seus efeitos e abrangência na educação buscase aqui a sua conceituação Jaccourd 2010 afirma que segundo a literatura sociológica a definição de pobreza varia dependendo da época ou sociedade e por este fator existe uma dificuldade e arbitrariedade para uma definição concreta e universal A autora evidencia que a pobreza no Brasil está estreitamente ligada com a precariedade e falta de oportunidades no mercado de trabalho para grande parte da população a necessidade de fortalecer os direitos sociais e construção da cidadania e a manutenção da ordem social A pobreza e o pobre remetem questões centrais à sociedade de um lado os problemas referentes à ordem econômica em um contexto de mercado de trabalho restritivo no que se refere à criação de empregos trabalho e renda de outro lado problemas de ordem política referentes à construção dos direitos sociais e da cidadania Mas os pobres e a pobreza remetem ainda ao questionamento da própria regulação da ordem 60 Revista Triângulo ISSN 21751609 social sua ordem de produção de riquezas e de manutenção da estabilidade social JACCOURD 2010 p 122 Giddens e Sutton 2017 p 168 definem a pobreza como a condição de falta de acesso ao que é considerado básico ou normal dentro de uma sociedade Os autores pontuam que na Sociologia reconhecese dois conceitos de pobreza a absoluta sendo baseada na subsistência material para sustentar as necessidades básicas que garantem a existência saudável de um indivíduo comida abrigo vestimenta e a relativa definida culturalmente de acordo com o padrão geral de vida em uma sociedade específica A pobreza relativa não é mensurada por um padrão universal porque as necessidades básicas de um país podem ser consideradas como luxos em outras realidades De acordo com Demo 2012 a pobreza como encontramos na nossa sociedade é definida pela desigualdade a marginalização opressiva e a falta de acesso às vantagens sociais O autor distingue e descreve dois horizontes típicos da pobreza a pobreza socioeconômica e a pobreza política O primeiro expressa a carência material e precariedade do bemestar social a fome o desemprego a mortalidade infantil as doenças entre outros O segundo horizonte da pobreza política em relação à realidade brasileira se refere a dificuldade histórica de o pobre superar a condição de objeto manipulado para atingir a de sujeito consciente e organizado em torno de seus interesses DEMO 2012 p 20 As políticas sociais que visam o enfrentamento das desigualdades normalmente são voltadas para a questão econômica da pobreza deixando de lado a esfera política o que segundo o autor gera tendências de manutenção da estrutura social Embora exista o esforço para delimitar a pobreza da população por indicadores quantificáveis com o intuito de viabilizar o trabalho de pesquisadores instituições de pesquisas e políticas públicas que atuam no enfrentamento à pobreza devese considerar o seu caráter amplo e subjetivo A partir desta perspectiva Codes 2008 pontua sobre a multidimensionalidade da pobreza considerando que historicamente as formulações e análises sobre a pobreza ampliaram sua percepção associando múltiplas dimensões à problemática O que efetiva a percepção de que a pobreza é um fenômeno social complexo referente à negação de oportunidades e a um conjunto de fatores e privações socioeconômicas abrangentes e interrelacionadas que se retroalimentam dificultando a sua superação pois envolve aspectos de diversas naturezas materiais subjetivos assim como dimensões políticas e sociais relacionadas à questão CODES 2008 p 25 61 Revista Triângulo ISSN 21751609 Soares 2009 p 37 considera que o argumento mais forte a favor de linhas subjetivas é que a pobreza deve ser definida de acordo com os padrões vigentes em uma dada sociedade em uma determinada época Referindose ao Brasil o autor aponta que o sistema de proteção social foi orientado durante décadas para a parte rica da população do país negligenciando a população pobre e mais necessitada Recentemente houve um crescente conjunto de políticas públicas visando o bemestar social e orientandose para as demandas da parte mais pobres da população e assim a definição de uma linha de pobreza é importante por razões políticas e deve ser definida politicamente A pobreza não é um conceito necessário em todas as sociedades e em todos os momentos históricos Em uma sociedade próspera e altamente igualitária como a dos países nórdicos a pobreza não é mais um conceito relevante tanto que estes países abandonaram abordagens absolutistas e estão muito contentes de chamar de pobreza a renda dos 20 mais pobres ou algo semelhante Já em qualquer sociedade desigual em que uns têm ou pelo menos confessam ter preocupação com os que estão na parte inferior da distribuição de renda a pobreza passa a ser um conceito inescapável para caracterizar os que lá estão SOARES 2009 p 44 Existem assim vários critérios e indicadores que definem metodologicamente a pobreza O Banco Mundial estabelece que a linha de pobreza é definida pela renda diária do indivíduo porém no Brasil conforme afirma Soares 2009 não existe uma linha de pobreza oficial O autor evidencia que cada política pública e instituição utiliza critérios diferentes e contraditórios entre si para definir e conceituar uma linha de pobreza sendo que a maioria delas é calculada por métodos nutricionais considerando a ingestão diária de calorias inferior ao mínimo necessário Neste trabalho não delimitaremos em aspectos quantitativos a pobreza contudo consideraa como uma expressão da desigualdade no país e neste sentido é visto como pobre o cidadão e as famílias que estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica com os seus direitos sociais restritos e a necessidade de auxílios do Governo eou sociedade para atender as suas necessidades básicas como alimentação vestimenta e moradia RELAÇÃO ENTRE POBREZA E EDUCAÇÃO EM BOURDIEU A teoria bourdieusiana objetiva inicialmente superar os modos subjetivistas e objetivistas de conhecimento voltados para analisar as relações sociais Como alternativa deste desafio teórico Bourdieu apresenta um tipo de conhecimento que tem como objeto as estruturas e relações objetivas externas aos indivíduos e sua interiorização buscando perceber a 62 Revista Triângulo ISSN 21751609 articulação entre as práticas subjetivas e as estruturas sociais Esta abordagem chamada praxiológica buscaria investigar como essas estruturas encontramse interiorizadas nos sujeitos constituindo um conjunto estável de disposições estruturadas que por sua vez estruturam as práticas e as representações das práticas NOGUEIRA NOGUEIRA 2021 p 24 Bourdieu 2009 desenvolve a partir deste princípio de produção internalizada nos indivíduos o conceito de habitus que é o sistema de disposições estruturadas a partir do meio social Segundo Nogueira e Nogueira 2021 a posição social do indivíduo conduziria a incorporação de um conjunto de disposições específicas que o orientariam em diversas situações sociais proporcionando vivências típicas consolidada na forma de um habitus adequado a esta posição o que levaria o indivíduo a agir como membro típico de um grupo ou classe social reproduzindo as características do seu grupo de origem e da estrutura na qual foi formado Partese desta conceituação inicial da teoria do autor para definir a especificidade da Sociologia da Educação de Bourdieu que caracteriza cada indivíduo em termos de uma bagagem socialmente herdada NOGUEIRA NOGUEIRA 2021 p 51 e analisa as implicações da herança familiar nas desigualdades escolareseducacionais A questão educacional está presente em toda a obra de Bourdieu criticando as concepções da escola como democratizadora de oportunidades e propagadora de uma cultura universal neutra como também afirmando o seu caráter de classe os mecanismos escolares de reprodução cultural e social e os seus efeitos sobre o sucesso escolar e destino educacional social e profissional dos egressos Bourdieu considera que não é suficiente enunciar o fato da desigualdade diante da escola é necessário descrever os mecanismos objetivos que determinam a eliminação contínua das crianças desfavorecidas BOURDIEU 2007 p 41 Como mecanismo principal o sociólogo evidencia o capital cultural2 e o ethos que são sistemas de valores transferidos da família para as crianças e influenciam nas suas experiências taxas de êxito destino escolar e atitudes face à instituição escolar O autor pontua que o local da residência durante os estudos as características demográficas da família como o seu tamanho a formação escolar e o nível cultural dos pais e avós também contribuem na vida escolar Tais características permitem a partir de uma análise multivariada um cálculo com previsões de escolarização da família eou do estudante 2 Outros conceitos são essenciais no pensamento de Bourdieu porém enfatizase a definição de Capital Cultural limitandose aos conceitos considerados significativos para a análise proposta 63 Revista Triângulo ISSN 21751609 Investigando sobre o sistema educacional da França na segunda metade do século XX Bourdieu analisa questões que ainda hoje são relevantes e atuais no Brasil Afirma por exemplo que as oportunidades de chegar ao ensino secundário médio e a níveis superiores dependem do nível cultural do meio familiar e as chances são mais altas para crianças oriundas de classes mais favorecidas Bourdieu 2007 revela que estas crianças herdam hábitos e treinamentos úteis para as tarefas escolares além de saberes gostos um bom gosto traduzido em cultura livre que é condição implícita para o êxito em algumas disciplinas escolares destacando que O privilégio cultural tornase patente quando se trata da familiaridade com obras de arte a qual só pode advir da freqüência regular ao teatro ao museu ou a concertos freqüência que não é organizada pela escola ou é somente de maneira esporádica Em todos os domínios da cultura teatro música pintura jazz cinema os conhecimentos dos estudantes são tão mais ricos e extensos quanto mais elevada é a sua origem social BOURDIEU 2007 p 45 O capital cultural apresentase como uma hipótese no entendimento da desigualdade no desempenho escolar expresso por crianças de diferentes classes e pode existir sob três linhas distintas No estado incorporado que se caracteriza pela inculcação e assimilação de uma transmissão hereditária pode ser adquirido no essencial de maneira totalmente dissimulada e inconsciente e permanece marcado por suas condições primitivas de aquisição BOURDIEU 2007 p 75 São disposições culturais duráveis e singulares no indivíduo de transmissão implícita adquiridas principalmente do capital cultural construído e incorporado pelo conjunto familiar O estado objetivado que são os bens culturais como livros pinturas dicionários monumentos e instrumentos É um capital transmissível em sua materialidade e depende do capital incorporado para sua produção e apropriação simbólica pois ele só existe e subsiste como capital ativo e atuante de forma material e simbólica na condição de ser apropriado pelos agentes e utilizado como arma e objeto das lutas que se travam nos campos da produção cultural E o estado institucionalizado que é a objetivação do capital cultural por meio de reconhecimento institucional como o certificado escolar ou diploma Certidões de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura permitindo a conversão do capital cultural em capital econômico gerado por um determinado capital escolar BOURDIEU 2007 p 78 64 Revista Triângulo ISSN 21751609 Bourdieu evidencia que o sistema educacional realiza uma superseleção desigual e severa dos alunos das classes menos favorecidas transformando as desvantagens sociais em desvantagens escolares Para o sociólogo a tradição pedagógica se posiciona ancorada em ideais de igualdade e universalidade tratando os educandos como iguais em direitos e deveres independentemente de suas desigualdades Este posicionamento serve como máscara e justificativa para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida ou melhor dizendo exigida BOURIDIEU 2007 p 53 favorecendo os privilégios para quem por sua bagagem e herança familiar já os possui A educação formal neste sentido exclui os questionamentos sobre as diferenças dos alunos e quais seriam os meios mais eficazes para de fato propagar o conhecimento e as habilidades de uma forma que abrangesse efetivamente a todos De acordo com Nogueira e Nogueira 2002 na teoria bourdieusiana A escola não seria uma instância neutra que transmitiria uma forma de conhecimentos intrinsicamente superior e que avaliaria os alunos a partir de critérios universalistas mas ao contrário seria uma instituição a serviço da reprodução e legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes NOGUEIRA NOGUEIRA 2002 p 28 A normatização das desigualdades entre as classes é vista sob a aparência de dom natural algo que seria inato a eles o que também é evidenciado na prática cultural O acesso a museus e obras culturais é uma vantagem das classes altas cultivadas e segundo Bourdieu só a escola poderia criar a aspiração à cultura diminuindo a distância cultural entre as classes sociais O autor observou que a comunicação na escola e as práticas pedagógicas exigem o domínio prévio de um conjunto de habilidades e referências culturais que apenas os membros das classes mais favorecidas possuem Assim os professores acreditariam estar transmitindo uma mensagem igual para todos os alunos como se estes possuíssem os mesmos instrumentos de decodificação contudo os instrumentos seriam conhecidos apenas por alunos advindos de classes altas que têm a cultura escolar como extensão da cultura familiar e já foram familiarizados a linguagem e conteúdos utilizados na escola NOGUEIRA NOGUEIRA 2002 No livro A reprodução Bourdieu e Passeron 2019 expõem a seleção desigual entre estudantes originários das classes superiores e das classes populares em especial em relação ao capital linguístico Para os autores a língua não é apenas um instrumento de comunicação mas ela fornece além de um vocabulário mais ou menos rico um sistema de 65 Revista Triângulo ISSN 21751609 categorias mais ou menos complexo BOURDIEU PASSERON 2019 p 97 Ou seja dependendo da complexidade linguística transmitida pela família os estudantes poderão ter a aptidão para decifrar e manipular estruturas complexas como também compreender a língua escolar Estas exigências escolares de compreensão e manejo da língua se manifestam desde os primeiros anos de escolaridade e continua exercendo influência nos níveis médios e superiores De acordo com os autores os estudantes de classes menos favorecidas que chegam ao ensino superior são submetidos a uma superseleção e o conjunto das características sociais determinam diretamente as probabilidades diferentes que os originários das diferentes classes têm no seu destino escolar Bourdieu enfatiza que a linguagem é a parte mais inatingível e atuante na herança cultural e um dos maiores critérios na falta de acesso e êxito acadêmico equalizado Quando se refere ao ensino superior considera que não se pode conceber educandos iguais em direitos e deveres frente à língua universitária e frente ao uso universitário da língua sem se condenar a creditar ao dom um grande número de desigualdades que são antes de tudo desigualdades sociais BOURDIEU 2007 p 56 Apresenta também o conceito de capital social expondo que é a vinculação a grupos sociais um conjunto de recursos que são adquiridos a partir das relações de uma rede de pessoas A existência e manutenção destas redes não é natural mas o produto de um trabalho da produção e reprodução de relações duráveis e úteis O capital social está interrelacionado ao capital cultural e ao capital econômico e cada grupo depende de um reconhecimento mínimo entre os membros ou seja eles precisam ser homogêneos em algum ponto de conexão que se faça essencial para a constituição e manutenção das relações O volume de capital social que um agente individual possui depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital econômico cultural simbólico que é posse exclusiva de cada um daqueles a quem está ligado BOURDIEU 2007 p 67 Esta legitimação da cultura das classes sociais mais favorecidas manifesta no jovem dessa classe uma dificuldade de reconhecer as suas disposições e aptidões culturais apreendidas desde a infância sugerindo que é algo natural da sua própria personalidade Ao contrário o jovem de classes menos favorecidas sendo incapaz de perceber o caráter arbitrário e impositivo da cultura escolar tenderia a atribuir suas dificuldades escolares a uma inferioridade que lhes seria inerente definida em termos intelectuais falta de inteligência ou morais fraqueza de vontade NOGUEIRA NOGUEIRA 2021 p 30 Bourdieu evidencia que se 66 Revista Triângulo ISSN 21751609 considerarmos as desigualdades sociais como condicionantes do sucesso escolar e do conhecimento cultural seríamos obrigados a perceber que a suposta equidade propagada no sistema educacional é injusta e que estamos protegendo reproduzindo e conservando os privilégios das classes mais favorecidas ao invés de transmitir estes privilégios de forma aberta para todas as classes sociais O sociólogo afirma que Com efeito para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos é necessário e suficiente que a escola ignore no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais Em outras palavras tratando todos os educandos por mais desiguais que sejam eles de fato como iguais em direitos e deveres o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura BOURDIEU 2007 p 53 A posse de capital cultural favoreceria o êxito escolar de acordo com Nogueira e Nogueira 2021 a partir de três perspectivas Primeiro facilitando a aprendizagem de conteúdos e códigos transmitidos pela escola por meio de esquemas mentais a relação com o saber as referências culturais e o domínio da língua culta que seriam trazidos de casa por crianças de meios culturalmente favorecidos e distantes eou estranho para outras crianças Em segundo lugar proporcionando um melhor desempenho nos processos de avaliação formal e informal pois esta vai além da verificação das aprendizagens incluindo um julgamento cultural estético e moral dos estudantes exigências que são atendidas plenamente apenas por alunos que foram previamente socializados nos valores exigidos Segundo a teoria bourdieusiana o exame avaliação é um processo patente de seleção e eliminação atendendo a normas implícitas que retraduzem e especificam na lógica propriamente escolar os valores das classes dominantes BOURDIEU PASSERON 2019 p 199 E por último pelo capital de informações adquirido sobre a estrutura e modo de funcionamento escolar conhecimentos a respeito da qualidade acadêmica prestígio social e retorno financeiro das instituições cursos e áreas do conhecimento Como consequência deste processo de reprodução e legitimação da dominação de uma classe sobre a outra apresentado por Bourdieu e Passeron 2019 os saberes tradicionais são desvalorizados As desigualdades sociais são reforçadas e reproduzidas na escola contribuindo assim para a manutenção da estrutura e ordem social O acesso a oportunidades e êxito educacional e também profissional continua mesmo com uma educação pública e supostamente universal nas mãos de uma pequena parcela da sociedade aqueles que já são 67 Revista Triângulo ISSN 21751609 privilegiados no contexto familiar cultural e frequentemente econômico De acordo com Nogueira e Nogueira 2021 p54 para Bourdieu o capital cultural seria o elemento de herança familiar que tem o maior impacto nas desigualdades escolares Segundo os autores Bourdieu diminui o peso dos fatores econômicos em comparação aos fatores culturais e expõe que o capital econômico e social funciona muitas vezes apenas como meios auxiliares na acumulação de capital cultural permitindo o acesso a certos estabelecimentos de ensino a bens e serviços culturais e ao aproveitamento e benefício escolar decorrente destas oportunidades CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base no exposto é possível perceber a interrelação entre pobreza desigualdade social e desigualdades educacionais além de questionar sobre a reprodução destas desigualdades a partir da organização da sociedade e da educação formal A Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu nos apresenta uma perspectiva coerente e ainda atual para interpretar e analisar a educação a escola e a situação educacional no Brasil considerando suas vantagens e desvantagens relacionada em especial com a população pobre ou seja em situação de vulnerabilidade socioeconômica População que para além de carências econômicas apresenta um capital cultural que não é privilegiado pela educação formal e enfrentam a repressão do acesso aos mínimos sociais e serviços de qualidade Garantir uma educação de qualidade pública e universal para todos os indivíduos é um dos fatores de maior importância para equalizar e efetivar oportunidades e consequentemente propiciar a mobilidade social Vale lembrar que a educação sozinha não é um instrumento capaz de superar todos os limites impostos às diferentes classes sociais do país mas se configura como estratégia fundamental de transformação da sociedade Os métodos de ensino e a escola como instituição devem ser analisados e repensados crítica e constantemente para que seus objetivos sejam de fato alcançados Bourdieu 2007 evidencia que o sistema de ensino não é neutro que as chances não são iguais para todos Os alunos saem de pontos de partida diferentes alguns estão desde o início em uma posição desfavorável ao que é exigido concretamente e implicitamente no processo educacional dificultando assim a obtenção de um desempenho acadêmico equiparado entre as diferentes classes sociais 68 Revista Triângulo ISSN 21751609 REFERÊNCIAS BOURDIEU Pierre A génese dos conceitos de habitus e de campo In BOURDIEU Pierre O poder simbólico 12 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2009 p 5973 BOURDIEU Pierre A escola conservadora as desigualdades frente à escola e à cultura In NOGUEIRA Maria Alice CATANI Afrânio org 9 ed Escritos de educação Rio de Janeiro Vozes 2007 p 3964 BOURDIEU Pierre O capital social notas provisórias In NOGUEIRA MA CATANI A org 9 ed Escritos de educação Rio de Janeiro Vozes 2007 p 6569 BOURDIEU Pierre Os três estados do capital cultural In NOGUEIRA MA CATANI A org 9 ed Escritos de educação Rio de Janeiro Vozes 2007 p 7179 BOURDIEU Pierre PASSERON JeanClaude A Reprodução elementos para uma teoria do sistema de ensino Tradução Reynaldo Bairão 7 ed Petrópolis RJ Vozes 2019 CODES Ana Luiza Machado de A trajetória do pensamento científico sobre pobreza Em direção a uma visão complexa Brasília IPEA 2008 Disponível em httpswwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFsTDstd1332pdf Acesso em 14 ago 2020 DEMO Pedro Política Social educação e cidadania 13 ed Campinas Papirus 2012 GIDDENS Anthony SUTTON Philip W Conceitos essenciais da Sociologia Tradução Claudia Freire 2 ed rev São Paulo Unesp 2017 GIL Antônio Carlos Métodos e técnicas de pesquisa social 6 ed São Paulo Atlas 2008 JACCOURD Luciana O Programa Bolsa Família e o combate à pobreza reconfigurando a proteção social no Brasil In CASTRO J A MODESTO L Bolsa Família 20032010 avanços e desafios Brasília IPEA 2010 P 101135 Disponível em httpswwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFslivroslivroslivrobolsafamiliavol1pdf Acesso em 14 ago 2020 NOGUEIRA Cláudio M M NOGUEIRA Maria Alice A sociologia da educação de Pierre Bourdieu Limites e contribuições Educação e Sociedade ano XXIII nº 78 Abril2002 Disponível em httpswwwscielobrpdfesv23n78a03v2378pdf Acesso em 17 Ago 2021 NOGUEIRA Maria Alice NOGUEIRA Cláudio M Martins Bourdieu a Educação 4 ed Belo Horizonte Autêntica 2021 SOARES Sergei Suarez Dillon Metodologias para estabelecer a linha de pobreza objetivas subjetivas relativas multidimensionais Rio de Janeiro IPEA 2009 Disponível em httpswwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFsTDstd1381pdf Acesso em 14 ago 2021