·

Cursos Gerais ·

Linguística

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Preview text

Matraga, n° 9 - outubro de 1997 SOB O SIGNO DOS CLÁSSICOS Claudio Cezar Henriques - UERJ RESUMO O artigo contém o estudo de aspectos pertinentes acerca do termo "clássico", tão relevante para o estudo da língua literária e dos cânones da literatura, buscando informações nas áreas da Filologia e da Teoria da Literatura. A pretensão é demonstrar o poder de influência e a responsabilidade da crítica literária (acadêmica ou jornalística), seja a do recorte teórico-literário, seja a do recorte linguístico-gramatical, nas possíveis conceituações do que é "clássico". palavras-chave filologia literatura clássico — Esse é um livro clássico da literatura! Que significado ou significados se apresentam quando alguém usa esse adjetivo em relação a uma obra literária? A princípio, quer-nos parecer que o termo, conforme o interlocutor, pode ser recebido sob dois entendimentos antinômicos: um deles encaminharia para o enaltecimento e a louvação; o outro, para o aborrecimento e a depreciação. Por tratar-se de adjetivo de campo semântico bastante vasto, é bem provável que a reação positiva se vinculasse às ideias de correto, estrito, metódico, sistemático, formalístico, normal, exemplar, típico, ilustrativo... E a reação negativa estaria, talvez, ligada a sentidos como pedantesco, comum, estereótipo, usual, soez, corriqueiro, contínuo, imutável, trivial... São, na verdade, interpretações que envolvem basicamente dois conjuntos significativos, a saber: o tempo (cronológico) e o estilo. É clássico porque é antigo; daí poder ser tradicional, faraônico, medieval, decadente, rançoso... Mas também é clássico porque tem elegância e bom gosto; daí poder ser nobre, culto, castiço, esmerado, fino, acadêmico... Sobre a etimologia da palavra, empregada pela primeira vez na língua portuguesa no século XII , ensina-nos Antenor Nascentes7: Do lat. classicu.. de primeira classe, de primeira ordem (aplicado por Aulo Gélio aos escritores). Da significação de homem notável na sociedade por pertencer à primeira classe, passou à de homem notável nas letras. Matraga, n° 9 – outubro de 1997 antologias que acompanham cada indivíduo desde sua iniciação como leitor. No Brasil, alguns desses livros estiveram ao lado de gerações de estudantes dos antigos cursos primário e médio: João Ribeiro e sua Seleta Clássica (de 1905), Fausto Barreto e Carlos de Laet e sua Antologia Nacional (de 1915), Sousa da Silveira e seus Trechos Seletos (de 1919 e a 1a edição, aumentada em 1935 como complemento prático às suas Lições de Português), Antenor Nascentes e seu Idioma Nacional (a série didática teve, inicialmente, quatro volumes, publicados de 1927 a 1929, aos quais se juntou um quinto volume em 1935). Depois da criação dos cursos de Letras, surgiram também outros tipos de antologias e livros didáticos, que se voltavam mais para o ensino de Literatura. Mencionemos como exemplo a coleção Unidades Literárias, de Virgínia Côrtes de Lacerda, adotada por muitos anos nos cursos clássico e científico (antecessores privilegiados do atual 2o grau). Na segunda metade do século, fizeram muito sucesso (e de certo modo ainda fazem, pois são constantemente reeditadas e preços populares) as coletâneas organizadas e comentadas por Manuel Bandeira chamadas Poesia da Fase..., onde se reuniam poemas segundo o estilo de seus autores. Mais adiante, com a evolução dos estudos literários, os livros de literatura já não apenas seguem o percurso cronológico, mas também os enfoques temáticos das obras: Literatura Brasileira em Curso e Literatura Portuguesa em Curso, organizados pela Profa Dra Irène Côrtes Riedel na década de 70, se impuseram no mercado editorial e acadêmico, mostrando como se poderia estudar as literaturas de Língua Portuguesa a partir de uma abordagem intertextual e temática. Os dois recortes que tratavam do mesmo objeto seguiram, separados, o seu caminho. Não temos a pretensão de discutir aqui como se desenvolveram ou se construíram dos problemas decorrentes dessa dicotomia acadêmica e pedagógica. Vamos apenas lembrar que, junto com a crise institucional da educação nacional nos últimos vinte e cinco anos, há hoje na esmagadora maioria das escolas brasileiras uma indefectível tensão no ensino de língua e de literatura: os especialistas estão à solta. Em linguagem direta, sem querer discutir as causas deste fato: professores de Português não gostam de Literatura; professores de Literatura não gostam de Português – e, pior: surgiu um espécime enigmático, o professor de Redação, que parece autorizado a não tratar nem de Gramática nem de Literatura. Como se fosse possível estudar língua sem literatura (e vice-versa) e produzir textos sem ambas. Hoje, no 2 grau, a regra é Português e Literatura serem duas disciplinas independentes; no 1 grau, o especialista de um recorte (seria melhor chamá- lo de apreciador ou entusiasta: afinal, os baixos salários do magistério não permitem mesmo que o professor se especialize...) faz vista grossa para o outro recorte e tenta se safar na garantia, pelo menos, de seu emprego. Os cursos de Letras, infelizmente, fazem muito pouco para reverter esse quadro e lançam contingentes de profissionais segmentados, interessados exclusivamente em língua ou em literatura, num mercado de trabalho que Matraga, n° 9 - outubro de 1997 não requer tal especialização. Somemos a isso o fato de as nossas Faculdades de Letras, privilegiando a pesquisa e desprezando o ensino, ampliarem essa pulverização de conhecimentos e seguirem criando microrrecortes extremamente importantes para a discussão acadêmica dos recortes básicos, mas danosamente esquecidos de sua condição de estudos focalizados, que não têm a dimensão do campo teórico a que se vinculam. O literário investe no sub-recorte da Teoria da Literatura, de cada uma das Literaturas de Língua Portuguesa, da Literatura Comparada... O gramatical investe nos sub-recortes da Sintaxe ou da Morfologia, da Filologia (Românica e Portuguesa), de cada uma das correntes da Linguística... Falta dar aos cursos de Letras sua real e primeira função: preparar os quadros do magistério de Português para as escolas de nível médio. Para isso, é preciso retirar dos cursos de graduação a ineficiente aparência de sofisticação acadêmica especializada, dando-lhe um perfil global de veiculador e transmissor de conhecimentos compatíveis com as reais necessidades do ensino. Vejamos como um nexo relativo, porém pertinente, o que Harold Bloom, professor catedrático nas universidades de Yale e Nova Iorque, declarou em recentíssima entrevista a respeito do que ele chama de coalizão, que representa hoje nos Estados Unidos cerca de 70% dos professores em meio de carreira, cultuadores fanáticos da Escola do Ressentimento, entre aspas, "feministas", "marxistas", "neo-historicistas”, “materialistas culturais e teóricos" de inclinação francesa – Lacan, pseudo-Lacan, pseudo-Derrida, pseudo-Foucault (todas essas expressões são dele): A crítica literária está morta, ou quase morta, na academia americana. Haverá de sobreviver, porque é parte da literatura e a literatura vai sobreviver, mas terá de mover-se para fora da academia. Eu agora digo a todos os meus melhores alunos de graduação para não cursarem pós-graduação nessa área. Façam qualquer outra coisa, garantam a sobrevivência do jeito que for, mas não como professores universitários. Sintam-se livres para estudar literatura por conta própria, para ler e escrever seus livros; porque a próxima geração de bons leitores e críticos terá de vir de fora da universidade. Virão de outros ambientes, como os editores, a mídia, as agências de publicidade e de relações públicas e outras esferas profissionais, como direito ou medicina. E, talvez, a longo prazo, isto seja mesmo saudável. Talvez fosse o caso de perguntar por que o próprio Bloom permanece como professor universitário. Certamente não é por questão de sobrevivência, Matraga, n° 9 – outubro de 1997 já que seu mais recente livro (O Cânone Ocidental) vendeu mais de 65 mil exemplares em menos de um ano – fato que deve servir para que suas previsões sobre a crítica literária sejam bastante questionadas. Entretanto, o episódio da "votação para autor" (acontecido na Universidade de Chicago e por ele mencionado no citado livro) mostra que há realmente motivos para preocupação, pois demonstra como a maciça impregnação das atitudes "politicamente corretas" e "pseudo-demo-críticas" da sociedade externa aos meios universitários está se transformando em práticas influenciadoras cada vez mais prioritárias e institucionais no ambiente acadêmico. O crítico norte-americano analisa vinte e seis autores. É o que ele chama de o "cânone ocidental" (confessemos que a palavra "cânone" só não é sinônima de "clássico" porque essa contém algumas complicidades semânticas meio indesejáveis aos meios acadêmicos), subdividido em três eras: a aristocrática, a democrática e a caótica. Sua lista, pois não deixa de ser uma lista, é uma viagem que começa com Dante Alighieri, no século XIII, e termina com Jorge Luís Borges e Samuel Beckett. E isto nos coloca diante do cânone da questão que envolve o "reconhecimento" de um texto clássico. Relembremos historicamente alguns significados referentes ao emprego dessa palavra: Uma quantidade de significados pode ser distinguida, mas sobretudo: (a) pertencente à primeira linha ou autoridade; (b) pertencente à literatura ou arte da Grécia e de Roma, e é um escritor cujo trabalho é de primeira linha e cuja excelência é geralmente reconhecida. Originalmente um scriptor classicus escrevia para as classes superiores; um scriptor proletarius, para as classes inferiores. Gradualmente, para os romanos, o termo clássico passou a significar um autor de primeira classe. Durante a Idade Média, a palavra significava apenas que um autor era estudado (em sala de aula), independente de seu mérito. No Renascimento, somente os principais trabalhos de autores gregos e latinos eram considerados como de importância exponencial, e o ideal humanista estabeleceu a visão de que os melhores autores clássicos tinham atingido a perfeição. Hoje em dia, existe a tendência de usar o termo clássico num destes três sentidos: (a) de primeira classe ou notável; (b) antigo; (c) típico. O adjetivo clássico usualmente aplica-se a tudo que se refira à Grécia e a Roma. Quase sempre existe a implicação "o melhor”, um padrão de excelência digno de imitação. Quando aplicado à literatura, o termo clássico sugere que o trabalho tem as qualidades de Manazga, n°9 - outubro de 1991 ordem, harmonia, proporção, equilíbrio, disciplina... Resumindo, nada lhe pode ser tirado ou adicionado sem causar-lhe algum dano (J. A. Cuddon).16 Se, por outro lado, a questão é abonuar uma estrutura sintática ou um determinado emprego vocabular, devemos reconhecer que, a par do trecho escolhido de um autor assumir seu papel comprovador, o autor selecionado também assume um nível de excelência diante do leitor da obra teórica. Para a gramática tradicional, escritores ou autores clássicos são os que, independentemente da época em que viverem ou da escola a que pertencem, podem ser apresentados como modelos de ‘boa linguagem’. Esse conceito está hoje um tanto abalado (Jean Dubois et alii).17 Mas o abalo que esse conceito sofre, se não é relativo, pelo menos é interpretativo. Com isso, pretendemos dizer que, nos dias de hoje, não desapareceu a necessidade de existirem ‘clássicos’. Talvez tenha aquela Poderosíssima Trindade, em sua sábia onipotência, criado categorias especiais de ‘clássicos’, mas de forma imposta à comunidade consumidora, embora sempre sujeitos à uma decisão autoritária dos detentores dessa jurisdição. Nessa nova ótica da (pós-) modernidade teórica, um primeiro tipo de texto clássico designaria uma obra da literatura reconhecida universalmente pelos seus méritos excepcionais e perduráveis. Assim, a Ilíada é um clássico da literatura mundial, o Hamlet da literatura inglesa, A Carta Escarlate da literatura americana, Os Lusíadas da literatura portuguesa, etc (Harry Shaw)18. Um outro tipo de clássico seria aquela obra que dá prazer à minoria que intensa e permanentemente se interessa pela literatura. Permanece vivo, porque a minoria, ansiosa de renovar a sensação de prazer, é eternamente curiosa e está, portanto, empenhada num eterno processo de redescoberta. Um clássico não sobrevive por qualquer razão ética. Não sobrevive por ser conforme a determinados cânones ou porque o esquecimento o aniquilaria. Sobrevive Manazga, n°9 - outubro de 1991 92 porque aquela minoria apaixonada é tão impossível desfendê-lo, como é impossível à abelha desdenhar a flor (Arnold Bennett)19. Um terceiro conceito de texto clássico caracterizaria, ‘em sentido mais comum, um trabalho que merece interesse duradouro, marcado pela individualidade e pela universalidade’ (Joseph T. Shipley)20. Nesse sentido, desde que assim apresentado pela crítica acadêmica, pela crítica jornalística ou pelos professores de língua e/ou literatura, qualquer autor pode ser considerado clássico, em sua conotação universal, nacional, regional ou individual. José de Alencar, Augusto dos Anjos, Nélson Rodrigues - para ficarmos só com três exemplos da Literatura Brasileira - são autores clássicos? Para um leigo, uma resposta afirmativa provavelmente será bastante natural. Porém, para um especialista, a resposta também pode ser “- Em certa medida.” ou “- Depende do ponto de vista teórico e do enfoque cronológico.” ou algo semelhante. Por exemplo, sobre Manuel Bandeira, escreveu Rocha Lima: Firme-se, então, esta primeira verdade. O nosso poeta sagrou-se, antes de tudo, um virtuoso no trabalhar os mais delicados matizes da língua portuguesa, em cuja história ascendeu à posição de grande clássico da poesia brasileira contemporânea21. O que estamos querendo dizer é que o termo “clássico” apresenta a inevitável conotação de “autor ou obra de primeira classe, superior; autor que se lê nas escolas (nas classes), porque considerado excelente”22, associada à também inevitável denotação que caracteriza um tipo e estilo de trabalho criativo, seja nas obras dos autores gregos e romanos, seja nas obras dos períodos literários chamados de Classicismo e Neoclássicismo. Se concordarmos, no entanto, que este termo costuma ser aplicado a tudo que seja aceito como modelo de excelência ou como uma obra de valor e relevo cultural duradouros, então teremos um vasto campo de trabalho para justificar a leitura da produção literária de algum autor. Italo Calvino23 assim resumiu essas justificativas: Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: Estou relendo... e nunca Estou lendo... Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se Manazga, n°9 - outubro de 1991 93 reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecê-los por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. O seu clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição do barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível. F. Schlegel, num fragmento publicado em 1800, e Sainte-Beuve, em artigo publicado pela primeira vez em 1850, afirmavam algo que se insere no espírito paradoxalmente genérico e restritivo das definições de Calvino: Uma obra clássica da literatura é aquela que nunca pode ser completamente compreendida. Porém, também ‘é a obra sobre a qual todas as pessoas que são instruídas, e que estão se instruindo, devem sempre desejar aprender mais’ (F. Schlegel)24. Um verdadeiro clássico, numa definição que eu gostaria de ouvir, é um autor que contribui para o enriquecimento da mente humana, que realmente aumentou seus tesouros, que a fez avançar um passo, que 94 Matraga n° 9 - outubro de 1997 descobriu alguma inequívoca verdade moral ou que mais uma vez tenha se apasado de alguma paixão eterna naquele coração onde tudo parecia concebido e explorado; que reproduziu seu pensamento, sua observação, ou sua descoberta - sem importar a forma - mas ampla e vasta, refinada, sensível, saudável e bela em si mesma; que fala a todos num estilo só seu, mas que a despeito disso pertence a todo o mundo, num estilo que é novo sem neologismos, novo e antigo, facilmente contemporâneo em qualquer época(Sainte- Beuve). Sob esta perspectiva, textos clássicos são os bons textos dos bons autores, o que inclui os antigos escritores (cujas obras perduram qualitativamente até hoje e se considera que perdurarão para sempre) e os contemporâneos (desde que unanimemente tenham reconhecida sua genialidade). Seria uma afirmação indiscutível, se não partisse de um pressuposto discutível, que Jorge Wanderley, poeta e tradutor (poeta tradutor?), explica com zelo ao falar da efemeridade das antologias. (...) tem o tradutor plena consciência dos perigos envolvidos na seleção de poemas contemporâneos, uma vez que o tempo poderá mostrar fragilidades na escolha. Por outro lado, alguns poemas de larga e longa reputação nem sempre se mostram dignos dos pedestais onde se fincam ou foram fincados. Clóvis Monteiro, não quanto aos autores, mas aos estilos, também se refere a essa questão, com a preocupação de combater uma espécie de culto desvirtuado dos modelos passados ou das afoitezas perturbadoras. (...) tem estado o problema da língua nacional no Brasil a mercê das paixões de duas correntes que não se harmonizam, nem se podem entender. Uma, estimulada pela convicção de que já não é a mesma, em nossos dias, a língua aqui implantada pela gente lusa, julga-se com o direito de aceitar e defender tudo o que tende a afastar- la do padrão português; pelo contrário, aferra a cânones clássicos antigos e zelosa da pureza do idioma, que se mostra prevenida contra quaisquer aquisições novas, inclusive de vocabulário, como se não fosse morta a língua que não acompanha a evolução espiritual e social do povo a que pertença. Por qualquer desses caminhos não nos será possível chegar a bom termo."