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Matemática ·
Filosofia da Educação
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Título Descrição Essa avaliação tratará de descrever um desafio pedagógico e como solucionar esse desafio O desafio pedagógico pode ser algo que aconteceu na própria vida de outrm um noticiário ou até inventar Tal narrativa precisa apresentar momentos em que umuma professorprofessora pode se deparar e até mesmo modificar o planejamento da aula ou do curso A solução precisa ser retirada de um dos últimos quatro textos Ailton Krenak Denise Ferreira Alexsandro Rodrigues et al e Megg Rayara Cada um respeitivamente trata das temáticas meioambiente étnicoracial gênero e sexualidade Com isso o desafio está em conexão com uma dessas temáticas Estou enviando os textos em anexo Precisa ser um texto de 2 páginas uma descrevendo o desafio e outra apresentando a solução digitalizado e em formato PDF O Professor tem programas farejadores antiplágio então qualquer cópia ele pega fácil Muito obrigado pela intenção em ajudar DESAFIO O desafio pedagógico que será descrito ocorreu em uma escola de ensino médio onde a diversidade étnicoracial é evidente Nessa escola havia uma turma com alunos de diferentes origens étnicas incluindo afrodescendentes indígenas e brancos O desafio enfrentado pelo professor era promover um ambiente inclusivo e equitativo que valorizasse a diversidade cultural e étnica dos alunos ao mesmo tempo em que desenvolvesse o conteúdo curricular Durante as aulas o professor percebeu que os alunos afrodescendentes e indígenas muitas vezes se sentiam marginalizados e pouco representados nos materiais didáticos utilizados Consequência disso era um impacto negativo em sua autoestima e motivação para participar ativamente das atividades escolares Como se não bastasse o professor notou que os alunos brancos muitas vezes tinham uma visão limitada sobre a contribuição histórica e cultural das diferentes etnias presentes na sala de aula São diversas as motivações e causas que fazem eclodir o desafio pedagógico do qual ora tratamos uma delas é a persistência de estereótipos e preconceitos enraizados na sociedade que podem se refletir nas relações entre os alunos e até mesmo no próprio conteúdo curricular Ademais existe a falta de representatividade étnicoracial nos materiais didáticos e a ausência de discussões sobre a história e a cultura de diferentes etnias também tendem a contribuir para a invisibilidade e a marginalização de minorias Em adição ainda se verifica uma carência ou melhor uma abordagem fragilizada de tais questões no decorrer da formação dos professores assim apesar da boa intenção educadores muitas vezes podem não se sentirem suficientemente confiantes para lidar com a diversidade étnicoracial da falta de diálogo então decorre a perpetuação de muitos estigmas e preconceitos SOLUÇÃO Uma solução criativa para enfrentar o desafio pedagógico da diversidade étnicoracial é a criação de um projeto interdisciplinar que explore as temáticas étnico raciais de forma inovadora Para tanto inspiramonos nos escritos de Denise Ferreira que ressaltam a importância da representatividade e da valorização das diferentes culturas na educação a proposta consiste em utilizar a arte como uma ferramenta de transformação e reflexão O projeto teria como base a ideia de Mural Cultural no qual os alunos juntamente com o professor seriam responsáveis por criar um espaço de expressão artística que represente a diversidade étnicoracial presente na escola O mural seria desenvolvido em um local central e de grande visibilidade como um corredor ou pátio tornandose uma manifestação concreta do compromisso da escola com a valorização da diversidade Pensamos na construção do mural como um ato coletivo Ele precisa envolver pesquisas sobre as diferentes culturas presentes na comunidade escolar Na etapa da concepção os alunos serão incentivados a realizar entrevistas com seus familiares buscar referências artísticas e literárias de diferentes etnias explorar a música a dança e quasiquer outras formas de expressão cultural que gostarem Com base nessa pesquisa os alunos seriam orientados a criar obras de arte que representem as diferentes etnias utilizando técnicas variadas como pintura colagem escultura ou fotografia Cada obra de arte seria acompanhada de uma breve descrição que destacasse a história e os aspectos culturais do grupo étnico retratado O objetivo final é portanto promover a conscientização e a valorização da diversidade além de incentivar o respeito e a empatia entre os alunos O projeto poderia ser utilizado também como um estopim para o irromper de novos eventos culturais como exposições apresentações musicais e degustações de comidas típicas A gestão da escola poderia aproveitar para convidar artistas e representantes de diferentes etnias para compartilhar suas experiências e conhecimentos com os alunos apresentando desse modo ao processo educativo Assim estamos utilizando a arte como uma forma de expressão e reflexão sobre a diversidade étnicoracial O projeto Mural Cultural advém de uma ideia criativa para o desafio pedagógico REFERÊNCIAS FERREIRA DA SILVA Denise A dívida impagável São Paulo Oficina de Imaginação Política e Living Commons 2019 ¹Universidade de Brasília Brasília Distrito Federal Brasil UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MEGG RAYARA GOMES DE OLIVEIRA O DIABO EM FORMA DE GENTE REXISTÊNCIAS DE GAYS AFEMINADOS VIADOS E BICHAS PRETAS NA EDUCAÇÃO CURITIBA 2017 14 PRÓLOGO Santo Ambrósio usou a amoreira como um símbolo do Diabo pois da mesma maneira que sua fruta começa branca amadurece e fica vermelha e então fica preta assim o Diabo começa glorioso e branco brilha vermelho no poder dele e então fica preto com o pecado Jefrey Burton Russel Ela é o Diabo O Diabo em suas múltiplas denominações Capeta Tinhoso Cão Chifrudo Satanás Satã Demônio Lúcifer Maldito Aquele Cramulhão me assombrou por muito tempo Não se sabe exatamente em que período ou em que região a figura do Diabo se desenvolve mas foi a partir do século XII que ideias esparsas e muitas vezes contraditórias sobre sua figura começam a ser reunidas em uma sistematização dogmática Tereza Renata Silva ROCHA 20122 pela igreja Antes dos séculos V ao XI o Diabo ainda era definido de forma pouco concreta ROCHA2012 Para Filipe Marchioro Pfützenreuter 2012 o personagem chamado Diabo aparece pela primeiravez nos Evangelhosapós Jesus ter sido batizado por João Batista e recolherse no deserto para jejuar por quarenta dias e quarenta noites em preparação para o início da sua atividade messiânica A forma física do Diabo durante os séculos passa por diversas metamorfoses de uma figura angelical para a de um monstro grotesco Daniel Lula COSTA Solange Ramos ANDRADE 2012 p 153 À medida que se afastava de Deus para tornarse seu oponente o Diabo adquiria formas assustadoras Foi no século IX antes do contato da Europa com a África que o Diabo passou a ser representado como um anjo preto e nu 2 Por defender uma educação não sexista além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir às pessoas em geral na primeira vez que há a citação de uma autora transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo gênero e consequentemente para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas 15 A cor preta entre os cristãos passou a ser interpretada como uma representação do mal e a pele preta do Diabo contrastava com a beleza branca dos anjos O preto representa o mal e a poluição Satã sentado em seu trono no Inferno é sempre preto COSTA ANDRADE 2012 p 153 A beleza passa a ser branca e a feiura negra A bondade assume a brancura em contraposição à maldade que é negra Negro passa a significar algo sujo enquanto a limpeza se associa ao branco O inferno é concebido como negro ao passo que o céu é lugar das almas brancas José Geraldo da ROCHA 2010 p 902 O Diabo também foi associado à homossexualidade sendo seus agentes os homossexuais os gays afeminados os viados3 e as bichas condenados ao fogo doinferno No livro Gomorra escrito entre 1048 e 1054 seu autor São Pedro Damião vinculou a homossexualidade à heresia e à lepra com o Diabo Jeffrey RICHARDS 1993 Coincidência ou não na mesma época em que o Diabo ganha cor e forma pele preta chifres patas de cabra e rabo pontiagudo sua associação com a homossexualidade se cristaliza e a sodomia era frequentemente vinculada a bruxaria e ao culto do Diabo RICHARDS 1993 p 147 É então em meados do século XII a partirConcílio de Sienaem 1234que os dispositivos da repressão sexual se estabelecem de maneira firme Assim a inquisição e as irmandades leigas associadas com as ordens mendicantes tornaramse instrumentos de perseguição de hereges e de sodomitas na perspectiva de evitar práticas sexuais desviantes e para se livrar de inimigos RICHARDS 1993 John Boswell pesquisador da Universidade Yale nos Estados Unidos da América morto em 1994 vítima da AIDS4 aos 47 anos foio primeiro a afirmar que a igreja católicanão condenou as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo e do mesmo gênero até o século XII Cynara MENEZES 2011 O professor Carlos Callón da Universidade de Santiago de Compostela na Espanha entrevistado por Menezes 2011 concorda com Boswell e não tem dúvidas de que 3Optei em grafar ao longo deste trabalho o termo viado e não veado por ser assim utilizado pelas pessoas quando se referem de forma depreciativa aos homossexuais masculinos especialmente os mais afeminados 4 Acquired Immunodeficiency Syndrome traduzida para o português como Vírus da Imunodeficiência Humana 16 os traços básicos do preconceito contra a homossexualidade tiveram sua origem na Baixa Idade Média entre os séculos XI e XIV É nessa altura que emerge a intolerância homofóbica desconhecida na Antiguidade Inventase o pecado da sodomia inexistente nos mil primeiros anos do cristianismo a englobar todo o sexo não reprodutivo mas tendo como principal expoente as relações entre homens ou entremulheres MENEZES 2011 Para sustentar suas afirmações Callón consultou códigos legais crônicas históricas prosa literária poesia religiosa e a literatura profana del corpus gallegoportugués medieval Outro argumento utilizado pelo pesquisador é o fato de que até o século XI a história bíblica de Sodoma e Gomorra amplamente difundida para infernizar a vida das bichas não era assim tão conhecida Essa situação só viria a mudar a partir das interpretações do teólogoPedro Damian 10071072 Carlos Callón sustenta sua tese em algumas contradições observadas tanto na igreja quanto na sociedade de um modo geral como por exemplo no ideal de amizade no qual dos hombres podían convivir todo el día mostrar su desinterés por las mujeres expresarse su amor besarse en público o compartir la cama Montse DOPICO 2011 no mesmo período em que se condenam as relações homossexuais Assim as representações do Diabo ora preto ora bicha ora preto e bicha me foram apresentadas muito cedo interferindo na maneira como eu me via e como eu me relacionava com outras pessoas Nasci e cresci numa cidade do interior do Paraná chamada Cianorte num bairro habitado por pessoas que migraram de várias regiões do país em sua ampla maioria oriundas da zona rural da roça mesmo Minha mãe e meu pai vieram do interior de Minas Gerais e trouxeram consigo elementos de uma cultura de tradição católica rural e por isso mesmo na minha infância a figura assustadora do Diabo foi uma presença constante Eleera uma espécie de babá onipresente acessada por minha mãe e outras mulheres pobres da vizinhança para ajudar a educar uma renca de filhos que nem sempre estavam diante de seus olhos Era ele o Diabo que se encarregava de evitar que eu fizesse fofocas ou intrigas proferisse xingamentos palavrões ou mentiras sob a ameaça de me dar de presente um belo gancho na língua Ele me acompanhava pelas ruas matas e escola para tentar impedir que eu me metesse em brigas ou confusões Caso contrário me visitaria à noite e puxaria meu pé durante o sono Na época da quaresma as punições seriam ainda mais severas incluindo o nascimento de chifres e de rabo o que seria o passaporte definitivo para o inferno 17 Caso dedurasse alguém apontando com o dedo fizesse gestos obscenos ou levantasse a mão para tentar agredir uma pessoa mais velha ou mostrasse a língua para alguém o Diabo paralisaria imediatamente essa parte do meu corpo se um galo cantasse naquele exato momento Essa paralisia indicaria que ali estava uma pessoa pecadora uma pagã alguém que não era de Deus e por isso recebeu tal punição O galo era um aliado fiel de minha mãe e a ajudava a controlar minhas atitudes e a de meus irmãos Caso o galo cantasse à noite fora do horário habitual significava que o coisa ruim estava por perto e que eu eou meus irmãos havíamos feito coisas erradas Bastava a presença de um galo exibicionista na vizinhança que cantasse várias vezes no início da noite para minha mãe ter certeza que a gente tinha aprontado O que mais me irritava era saber que o galo sempre estava certo Como ele sabia Sei lá massabia As conversas com minha mãeeram sempre à noite Era ela quem se encarregava de educar seus sete filhos quatro homens duas mulheres e eu uma bicha em formação Meu pai não se preocupava com o que acontecia conosco e sabia muito pouco do que ocorria em casa Durante o dia minha mãe estava sempre ocupada cuidando da casa do quintal da horta do galinheiro eou lavando roupa pra fora Quando ela terminava de lavar a louça da janta com ajuda de minha irmã era hora de nos reunirmos em volta da mesa da cozinha para dividirmos nossas aventuras do dia Era a hora da confissão O cômodo de madeira era iluminado por uma lamparina feita de lata de óleo de soja e alimentada por querosene Na maioria das vezes essas reuniões eram interrompidas por um galo cantor dedoduro que chamava a atenção de minha mãe para o fato de que alguma coisa errada foi feita e que o Diabo estava vindo para puxar o pé de alguém Se além do galo algum assovio fosse ouvido significava que a situação era muito grave e o Diabo estava mandando um de seus assessores o SaciPererê para fazer o reconhecimento da área e identificar com precisão qual era seu alvo O canto do galo o cheiro do querosene a fumaça escura que escapava da chama da lamparina e as múltiplas sombras que se projetavam nas paredes de madeira da cozinha criavam um ambiente dramático e um tanto assustador Esse cenário me induzia a confessar ali mesmo aos sussurros ou em pensamentos as mentiras e os palavrões os furtos de frutas nos quintais dos vizinhos o furto de alguma boneca velha que não recebia a devida atenção de sua dona e as brigas com meus irmãos na esperança de não ser incomodada pela visita indesejada do Cão 18 O ritual de afastaro malque parecia tão perto incluía ainda rezar um PaiNosso umaAve Maria e uma SalveRainha antes de dormir Essa última oração era muito longa e com palavras que eu não sabia o que significavame por isso fiz um resumo Rezarpara mim não era exatamente um ato de fé mas um antídoto para afastar o mal que se anunciava naquele momento e que só se manifestaria à noite Durante o dia então não precisaria rezar e poderia fazer o que eu quisesse desde que minha mãe não visse ou ficasse sabendo Mas tinha o galo o maldito galo dedoduro À noite um arrependimento ainda que momentâneo e motivado pelo medo e algumas orações me manteria a salvo por mais algum tempo O Diabo descrito por minha mãeapresentava muitas semelhanças com aquele narrado por minhas professoras da escola primária e por minha professora de catequese e tinha origem nos ensinamentos cristãos católicos e estava diretamente ligado à noite à escuridão às trevas e a certos comportamentos e trejeitos Logo Deus era a luz a contraposição do Diabo Nessa perspectiva o Diabo que assustava a mim e a meus irmãos era tudo aquilo que fazia oposição a Deus COSTA ANDRADE2012 Como o contraponto da bondade o Diabo mais do que punir teria a função de despertar em mim a fé em Deus À sua maneirana sua infinita simplicidade minha mãe sabia que o Diabo é causa necessária do Deus cristão Carlos de Melo MAGALHÃES Eli BRANDÃO 2012 p 288 Mais do que me atirar no colo do Tinhoso o que ela realmente desejava era que eu me aproximasse de Deus e conquistasse suasimpatia As estratégias educativas utilizadas por ela e a maneira como fez uso da figura do Diabo para me apresentar a determinadas regras sociais aparecem nos estudos de Salma Ferraz 2007 que explica que o Diabo está presente também no mundo das crianças e é ainda o maior fantasma coletivo do Ocidente Sem o Diabo a literatura a teologia e a própria humanidade não seriam as mesmas FERRAZ 2007 É o que Marcos Renato Holtz de Almeida 2016 chama de Pedagogia do Medo uma orientação feita pelos dirigentes da igreja católica aos seus sacerdotes para endurecerem o discurso e o controle moral destacando o incrível poder do Maligno e o lamentável destino das almas que no Inferno chegassem ALMEIDA 2016 Satã seria então de acordo com Tereza Renata Silva Rocha 2012 apenas um agente de Deus Esse agente ora macabro ora extremamente sedutor surgia na forma de uma manga madura balançando no galho mais alto no quintal do vizinho nas bonecas de plástico que minhas colegas de escola exibiam orgulhosas às sextasfeiras no carrinho de doces na porta da escola na 19 buzina intermitente do sorveteiro que transitava incansável pelas ruas do bairro no volume indiscreto que o namorado da vizinha exibia sob a calça de tergal depois do beijo de boa noite Essas e outras situações cotidianas mais do que me ensinar a exorcizar meus desejos me estimulavam a desenvolver estratégias para realizálos Ao deslocar meu passado para o momento presente percebo que ainda que não me desse conta naquela época intuitivamente utilizava algumas artimanhas similares àquelas usadas pelo próprio Diabo ainda que nossos objetivos não fossem osmesmos Para poder transitar eou acessar as almas que pretende possuir esse ser horrendo detestável utiliza múltiplas estratégias bem como adquire formas variadas Como um belo e inocente anjo pode aproximarse das pessoas sem assustálas É possível adquirir forma humana como homem ou mulher e assim seduzir e corromper suas vítimas Seja na forma de anjo ou na forma humana em ambos os casos branquidade beleza e bondade são colocadas no mesmoplano e via de regra são tratados como sinônimos Sob a forma de serpente se esgueira sorrateiramente para chegar ao seu destino sendo quase imperceptível No entanto quando provocado assume formas horripilantes com cifres patas de cabra e rabo pontiagudo e expele fogo pela boca e pelasnarinas As múltiplas maneiras de se apresentar fazem com que o Diabo circule com certa tranquilidade ainda que esteja sob uma vigilância constante Seus disfarces não representam um ajustamento mas uma estratégia de existência em uma sociedade monocultural do ponto de vista religioso e racial modelada a partir de uma visão cristã europeia Não apenas sua forma física é flexível mas todo um repertório discursivo é adaptado de acordo com a situação Tais características não o tornam uma criatura desprovida de personalidade ou identidadeAquiloque se torna visível aos olhos do corpo social pode ser apenas uma encenação uma performance como parte de um jogo que tenta preservar a própria existência física e emocional que está em risco constante Assim entre as múltiplas formas personificadas pelo Diabo a do anjo a do homem a da mulher a da serpente e a de um ser horripilante com chifres patas de cabra e rabo pontiagudo foram e continuam sendo atribuídas a mim em diferentes situaçõescotidianas 20 Bichinha do capeta O primeiro material didático escolar com o qual tive contato foi uma cartilha que tinha o sugestivo nome de Caminho suave5 assinado por Branca Alves de Lima 19112001 que propunha um sistema de alfabetização por meio do uso de imagens Essa cartilha foi uma ferramenta bastante eficaz no processo de me ensinar a ler e a escrever A ilustração da capa mostrava um saudável e bem vestido casalzinho formado por um menino branco de cabelos castanhos claros e uma menina loira de mãos dadas caminhando em direção à escola em meio a um cenário de cores vibrantes que lembrava o filme de Walt Disney Alice no país das maravilhas 1951 Essa imagem afirmava padrões de branquidade e da norma cisgênera6 heterossexual e informava a mim e a outras crianças pobres negras eou Lésbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais LGBT que nossa caminhada dentro da escola não seria assim tãosuave As condições teóricas para que eu fizesse uma leitura crítica dessa imagem vieram algumas décadas mais tarde mas a informação ali presente produzia grande desconforto sendo confirmada ao longo daquele e dos anos seguintes Algumas vezes de maneira explícita em conteúdos que ratificavam uma suposta superioridade da população branca e cis7 heterossexual e outras vezes de maneira menos perceptível simplesmente ignorando a participação da população negra e da população LGBT em nossa sociedade ou ainda em forma de discursos que emergiam de vários lugares especialmente de professoresas e dosdas estudantes colegas de sala ou não 5 Estimase que 40 milhões de exemplares dessa cartilha tenham sido impressos entre os anos de 1948 ano da primeira edição e 1995 ano em que foi retirada do catálogo de livros didáticos do Ministério da Educação 6 A noção de cisgeneridade é proposta pela transexual Julia Serano em 2007 na obra Whipping girl a transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity a partir do exercício de analisar a origem da terminologia trans o outro o desajuste Ligações químicas cruzadas espontaneamente de forma inesperada O oposto disso o termo cis também existe no campo da química orgânica seria a ligação química esperada a mais comum de se ocorrer entre os elementos A ligação química normal Porém as moléculas da química orgânica são imprevisíveis Assim como as subjetividades são imprevisíveis Portanto a cisgeneridade indica a existência de uma norma que produz efeitos de ideal regulatório ou seja efeitos de expectativas e universalização da experiência humana Em termos gerais o que diferentes ativistas e os movimentos transfeministas têm proposto é que a norma cisgênera é uma das matrizes normativas das estruturas sociais políticas e patriarcais cujos ideais regulatórios produzem efeitos de vida e de atribuição identitária extremamente rígidos A atribuição identitária de forma compulsória no momento de registro de cada pessoa define e naturaliza a designação de uma pessoa a um dos polos do sistema de sexogênero ao nascer a partir de uma leitura restrita baseada na aparência dos órgãos genitais Além disso a norma cisgênera afirma que essa designação é imutável fixa cristalizada ao longo da vida da pessoa Maria Luiza Rovaris CIDADE 2016 p 1314 7 Abreviação de cisgêneroa 21 Outras imagens a que fui apresentada ao longo de minha trajetória escolar e que muitas vezes me serviam de espelho procuravam reproduzir as relações de poder que eram observadas em espaços variados no Brasil e em outros países Na maioria das vezes a população negra era retratada de maneira subalternizada ou então reduzida à condição de escravizada afirmando que os espaços nas sociedades ocidentais eram distribuídos a partir do pertencimento racial de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas Muitas dessas imagens ilustravam os livros didáticos outras circulavam de outras formas cartazes revistas jornais novelas e programas humorísticos Aquelas mais depreciativas da população negra eou homossexual eram usadas por colegas de escola para lembrar que a minha cor era sinônimo de miséria feiura criminalidade e submissão e minha sexualidade uma doença contagiosa portanto minha companhia deveria ser evitada Os xingamentos as provocações e os apelidos decorrentes dos meus trejeitos abichalhados e da minha negritude procuravam destacar características consideradas como defeitos para uma sociedade LGBTfóbica8 e racista como a que eu estava inscrita Não demorou muito para que eu fosse informada da estreita relação entre noite escuro e preto como sinônimo do mal com a cor da minha pele preta O Diabo que assustava as pessoas era uma criatura noturna que não se atrevia a aparecer durante o dia à luz do Sol As explicações dadas nas aulas de catequese eram a de que a luz do Sol a claridade espantaria as coisas ruins e tudo o que era mal estava associado à noite à escuridão O Diabo entãoera da noite era escuro logo era preto Preto para melhorse esconder nas sombras e agir sorrateiramente A pele preta seria um disfarce Era a demonização dos pretos A demonização pode ser entendida como uma estratégia quando a figura do Diabo é utilizada visando ao enquadramento social RICHARDS 1993 Peter STANFORD 2003 Essa estratégia estava presente na minha vida na escola principalmente nos xingamentos bicha do Diabo viado do Diabo preto do Diabo muleque do Capeta muleque atentado é o Capeta encarnado Esses discursos colocavam em destaque meu jeito abichalhado e os traços que evidenciavam minha negritude 8 Em algumas situações ao longo deste trabalho farei uso do termo LGBTfobia no lugar do tradicional homofobia quando me referir a diversas identidades que compõem o amplo espectro identitário da sigla LGBT Quando me referir especificamente à hostilidade geral psicológica e social contra pessoas do sexo e do gênero masculino que sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos do sexo e do gênero masculino práticas homoeróticas eou homoafetivas utilizarei o termo homofobia 22 A arma que me parecia mais eficaz naquele momento era a invisibilidade Assim recorria ao corte frequente do cabelo rente ao couro cabeludo para eliminar o traço mais visível de minha negritude Também tomava banhos demorados já que a pele preta era interpretada como sujeira Meu jeito abichalhado exigia uma vigilância constante contribuindo para que eu controlasse meu jeito de andar e de correr a maneira de gesticular mãos e braços e o modo como balançava a cabeça e mexia nos cabelos Eu também tentava controlar meu jeito de falar e o tom da minha voz na expectativa de ser o menos visível Do fundo da sala de aula da última carteira eu observava atentamente tudo o que acontecia na sala e adotava posturas que pareciam atender às expectativas dosas professoresas Nos momentos em que o riso era autorizado eu ria Nos momentos em que o silêncio era exigido eu me calava Assim meu boletim a materialização de uma encenação constante era a prova de que o ajustamento proposto pela escola estava funcionando A escola aparentemente podia controlar meu corpo mas não podia controlar meus segredos e aquele anjo higienizado por obra de um processo disciplinar não era real Era uma personagem que eu interpretava cotidianamente e que me garantia certo sossego e invisibilidade já que eu conseguia convencer a todos que estava internalizando suasimposições Para fugir ou ao menos suavizar algumas situações de constrangimentos eu procurava controlar com certo rigor meus horários de chegada e de saída da escola bem como mudar com frequência meu trajeto dando preferência por ruas pouco movimentadas e por atalhos em terrenos baldios e matagais Eu sempre chegava mais cedo na escola e procurava um lugar tranquilo para esperar a aula começar e procurava sair depois de todo mundo principalmente durante a quinta e sexta séries Tal estratégia nem sempre funcionava e por várias vezes o Diabo soprou no meu ouvido e me encorajou a enfrentar valentões que faziam provocações racistas classistas e homofóbicas Essas provocações procuravam destacar meu cabelo ruim meu uniforme gasto e na maioria das vezes o meu jeito rebolativo de andar que nas palavras de alguns parecia uma lagartixa mal matada Apanhar do viadinho pobre e preto da escola era humilhante e por isso mesmo todas as vezes em que fui desafiada não economizei socos e pontapés reforçando certos discursos de que realmente eu era uma pessoa encapetada por preferir caminhos desertos e por espreitar do fundo da sala de aula Quando provocada não me fazia de rogada e deixava que esses e outros estereótipos atribuídos a mim tomassem forma Era oDiabo encarnado 23 Nos dias que se sucediam a uma briga eu garantia certa popularidade e tinha que narrar repetidas vezes com quem e por que eu brigara O medo que eu despertava em algumas pessoas me garantia certo sossego e andava despreocupadarebolando ou não Mas ainda assim eu preferia transitar por caminhos menos movimentados e me entregar a pensamentos e sonhos que me transportavam para mundos distantes onde eu poderia ter longos e reluzentes cabelos amigas e amigos parecidos comigo e roupas coloridas e brilhantes iguais as que eu via em fotos que estampavam as capas das poucas revistas de fofoca e de moda a que eu tinha acesso Nesses caminhos pouco movimentados eu podia andar e correr como eu bem entendesse mexia mãos braços e cabeça livremente Às vezes flertava com algum estranho de preferência um garoto mais velho que eu supunha já tivesse pentelhos e fosse mais alto que eu Nessas ocasiões eu revelava a menina que habitava em mim mas não abria totalmente a guarda e a qualquer sinal de perigo eu fugia rapidamente evaporava sem deixar sinal Raras foram as situações reais de perigo talvez por conta da eficiência das minhas estratégias talvez por sorte mesmo O fato é que ao longo de toda minha vida nunca pude abdicar totalmente dessas estratégias e também não pude provar o gostinho de andar despreocupada por um caminho plano em linha reta e semobstáculos Em sala de aula eu sempre figurava entre osas melhores da turma e na primeira segunda quinta e sexta séries porém consegui as melhores notas o que não resultou em relações de camaradagem com osas colegas de sala ou uma atenção maior dos professores e das professoras Ao contrário obter as notas mais altas entre as duas turmas de sexta série da escola levou alguns estudantes que antes apenas evitavam minha companhia a falar abertamente o que pensavam a respeito da cor da minha pele do meu cabelo e dos meus trejeitos considerados inadequados para alguém do sexo masculino Foi durante o antigo 2º grau hoje ensino médio que essa situação ficou mais complicada e as cobranças para que eu mantivesse meus cabelos sempre penteados ou domados controlados nas palavras de alguns unhas bem curtas e adotasse atitudes mais viris passaram a ser mais frequentes fazendo com que eu evitasse a companhia da maioria das pessoas As poucas pessoas com quem eu me relacionava fora da escola também controlavam meu corpo meu gestual e impunham modelos de masculinidade que eu não conseguia decifrar Continuava andando por caminhos pouco movimentados dando longas voltas para chegar à escola me esgueirando pelas beiradas A margem se cristalizava a cada dia 24 Parte do problema estava associada à falta de referências positivas a respeito de existências negras e LGBTs e de existências negras LGBTs Naquela época eu ainda não sabia como me definir socialmente embora tivesse certeza de que eu não era uma pessoa cisgênera heterossexual A referência mais próxima e mais recorrente que chegava até meus ouvidos me informava que eu era viado bicha mariquinha mulherzinha sempre de maneira depreciativa Uma possibilidade para reverter esse quadro e tomar contato com outras leituras do corpo negro distinto da norma heterossexual surgiu quando o professor de língua portuguesa apresentou uma lista de livro que deveríamos ler para nos prepararmos para o concurso vestibular Nessa lista figurava o livro Bomcrioulo9 uma obra de Adolfo Caminha publicada pela primeira vez em 1895 O professor alertou que se tratava de uma leitura pesada pois narrava a história de dois marinheiros homossexuais um negro e um branco Amaro e Aleixo respectivamente Ao contrário dos outros livros essa leitura não era obrigatória ficando a critério de cada estudante As recomendações do professor só fizeram aumentar minha curiosidade a respeito do livro e assim juntando alguns trocados que eu ganhava fazendo ilustrações comprei numa banca de jornal no centro da cidade uma edição de 1983 impressa em papeljornal daquela que seria a minha primeira referência de negritude homossexual As outras viriam algum tempo depois nas fotonovelas e nos anúncios classificados das revistas pornográficas que eu desviava discretamente da mesma banca de jornal quando voltava docolégio A leitura de BomCrioulo foi feita às escondidas como se realmente fosse uma obra proibida pornográfica como sugeriu o professor em tom de deboche Coloquei a capa do livro Iracema de José de Alencar sobre a capa original de BomCrioulo para que eu pudesse fazer minha leitura em casa sem ser importunada BomCrioulo segue um esquema linear de construção narrativa o qual se adapta aos cânones estéticos vigentes na época de seu surgimento o Naturalismo Anselmo Peres ALÓS 2010 p 19 sendo a primeira narrativa com um protagonista homossexual10 na literatura latino americana Dario de Jesus GómezSÁNCHEZ 2012 p 26 A obra é ousada ainda por descrever uma relação interracial entre um homem negro e um jovem branco num período em que os espaços na sociedade brasileira eram explicitamente definidos também pelo pertencimento racial 9 Quando BomCrioulo estiver grafado em itálico é porque se refere ao nome da obra e não à personagem 10 Não encontrei ao longo da narrativa de Adolfo Caminha o vocábulo homossexual 25 A ousadia de Caminha morto aos 29 anos de idade lhe rendeu pesadas críticas e a difusão pública da obra foi impedida durante várias décadas o que não é tão surpreendente se leva em conta que nos princípios do século XX a temática homossexual era oposta às temáticas tradicionais SÁNCHEZ 2012 p2627 Amaro o BomCrioulo11 é ao mesmo tempo o primeiro protagonista negro da literatura brasileira e o primeiro protagonista homossexual algo raro nas produções literárias atuais caracterizadas pela invisibilidade tanto de personagens negras12 quanto de homossexuais O livro apesar de todos os estereótipos que apresenta a respeito da homossexualidade negra como apetite sexual incontrolável e propensão ao crime funcionou para mim como um espelho e possibilitou que eu me visse em várias das características de Amaro e Aleixo Amaro embora seja a personagem principal da obra de Caminha 1895 tem sua humanidade questionada ao longo de todo o livro e descrições como rude como um selvagem p 18 pedaço de bruto p 20 um animal inteiro p 20 animal selvagem p 21 Hoje manso como um cordeiro amanhã tempestuoso como uma fera p 38 um animal feroz p 54 orgulho selvagem de animal ferido p 56 são utilizadas para justificar a vigilância constante a que estava sujeito bem como sua dificuldade em viver em sociedade Os raros elogios que Caminha 1983 tece a BomCrioulo dizem respeito ao seu corpo bem torneado e à sua força física descomunal que mais uma vez o aproximam de um animal A bordo todos o estimavam como na fortaleza e a primeira vez que o viram nu uma bela manhã depois da baldeação refestelandose num banho salgado foi um clamor Não havia osso naquele corpo de gigante o peito largo e rijo os braços o ventre os quadris as pernas formavam um conjunto respeitável de músculos dando uma ideia de força física sobrehumana dominando a maruja que sorria boquiaberta diante do negro CAMINHA 1983 p 20 A força física de BomCrioulo associada ao seu gênio instável fazia dele um homem perigoso CAMINHA 1983 p 20 Além disso sua orientação sexual homossexual fazia com que fosse visto como um sujeito obsessivo com sentimentos de posse sobre Aleixo com pouco controle sobre as própriasemoções 11 Ao se referir a Amaro como BomCrioulo o autor recupera o conceito do BomSelvagem de J J Rousseau desenvolvido com a intenção de pensar sua própria civilização Lilia Moritz SCHWARCZ 1996 p 161 12 Houve a opção de padronizar o vocábulo personagem no gênero feminino correspondendo à sua origem etimológica 26 Nas horas de folga no serviço chovesse ou caísse fogo em brasa do céu ninguém lhe tirava da imaginação o petiz era uma perseguição de todos os instantes uma ideia fixa e tenaz um relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de unirse ao marujo como se ele fora do outro sexo de possuílo de têlo junto a si de amálo de gozálo CAMINHA 1983 p 23 Ainda que homossexual Amaro é apresentado com as mesmas características estereotipadas dos homens negros heterossexuais identificados na literatura brasileira no final do século XIX e ao longo do século XX modeladas a partir das ideias de selvageria força e sexualidade exacerbada e incontrolável onde estão adormecidas as pulsões mais imorais os desejos menos confessáveis Frantz FANON 2008 p 154 O apetite sexual de Aleixo não é destacado uma vez que o branco seria assim menos sensual que o homem de cor menos absorvido pela ação corporal embora sua estrutura seja extraordinariamente mais vigorosa Renato da SILVEIRA 1999 p 110 Amaro não consegue escapar do determinismo racial que acompanhou seus passos durante toda a narrativa pois todo homem negro é dotado de um humor instável onde se misturariam indiferentemente virtudes e vícios pouca importância dando à vida dos outros mataria por matar e diante do sentimento humano seria covarde e impassível SILVEIRA 1999 p 109 Amaro então no final do romance mata Aleixo seu grande amor e mais uma vez é preso Dessa vez em definitivo sob a justificativa entre outras coisas pela dificuldade de adaptação e do potencial criminoso do corpo negro homossexual representados por BomCrioulo Ao me reconhecer em BomCrioulo torneime uma pessoa ainda mais introspectiva e tive certeza de que teria trânsito limitado na sociedade e que a única possibilidade de conquistar algum respeito seria adotando em público uma postura nos moldes da norma cis heterossexual No entanto essa era apenas uma estratégia de sobrevivência e não um ajustamento pois essa mesma obra reforçou em mim o desejo por corpos masculinos principalmente aqueles viris parecidos com o de Amaro Muitas vezes invejei a sorte de Aleixo e queria me perder nos braços de Bom Crioulo que não se contentava em possuílo a qualquer hora do dia ou da noite queria muito mais obrigavao a excessos fazia dele um escravo uma mulher à toa propondo quanta extravagância lhe vinha à imaginação CAMINHA 1983 p 38 Lembrome com perfeita clareza o tesão que eu sentia diante das descrições dos atos sexuais entre Amaro e Aleixo Ainda que tivesse uma reduzida experiência sexual algumas das cenas descritas pareciam falar de mim mesma Era uma conversa ao pé do ouvido aos sussurros que eu não ousava repetir em voz alta 27 Uma vez lado a lado com o grumete sentindolhe o calor do corpo roliço a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de contactos impuros um apetite selvagem cortou a palavra ao negro A claridade não chegava sequer á meia distância do esconderijo onde eles tinham se refugiado Não se viam um ao outro sentiamse adivinhavamse por baixo dos cobertores CAMINHA 1983 p 30 O medo a culpa e a vergonha presentes em BomCrioulo faziam parte da minha vida naquele momento tanto por conta do meu pertencimento racial quanto por conta da minha sexualidade A partir do que propõem Michel Foucault 1987 Guacira Lopes Louro 2000 Paula Regina Costa Ribeiro 2003 Jefrey Weeks 1993 2000 e Paula Regina Costa Ribeiro Guiomar Freitas Soares e Felipe Bruno Martins Fernandes 2009 sexualidade é uma construção histórica e cultural que ao correlacionar comportamentos linguagens representações crenças identidades posturas inscreve tais constructos no corpo por meio de estratégias de podersaber sobre os sexos Nem o medo e nem o sentimento de culpa que me acompanhavam cotidianamente foram maiores que minha decisão de colocar em prática aquilo que me dava prazer mesmo que às escondidas Passei então a acreditar que meus problemas teriam fim quando eu me tornasse uma pessoa adulta e poderia vivenciar minha expressão de gênero e minha sexualidade de formas plenas Mas não foi bem assim As interdições continuaram mesmo porque eu precisava trabalhar me sustentar Quem daria emprego a uma bicha preta O que poderia configurar ações passageiras ligadas à minha adolescência que ficariam para trás quando estivesse inscrita em outro grupo em outro momento na verdade representou a abertura de cortinas que até então me impediam de enxergar para mais além e entender que desafiar a ordem significava responder por isso Socialmente falando seja o ensino primário seja no ensino superior assim como nas relações pessoais ou profissionais as regras eram muito similares isto é construídas a partir do pensamento eurocêntrico racista machista cristão e LGBTfóbico que exige ajustamentos das pessoas principalmente daquelas consideradas menos iguais Sendo assim essas práticas operam não só pelo conjunto explícito de interdições censuras por um código negativo e excludente mas também se efetivam sobretudo por meio de discursos ideias representações e 28 práticas que definem e regulam o permitido distinguindo o legítimo do ilegítimo o dizível do indizível Rogério Diniz JUNQUEIRA 2009 Desenvolver essa consciência foi decisivo em minhas escolhas profissionais intelectuais e políticas que me conduziram inicialmente para a universidade depois para o movimento social de negros e negras13 e posteriormente para o movimento LGBT na expectativa também de romper com as amarras que impunham umanormatização Eu não estava totalmente errada De volta para o espaço escolar agora ministrando aulas de arte motivada pela crença de tornar se não suave menos áspero o caminho de muitosas estudantes principalmente negrosas e LGBTs Essa preocupação estava associada ao fato de ter constatado que opiniões baseadas no senso comum eram usadas para justificar e perpetuar situações de racismo dentro e fora da sala de aula Muitas opiniões refletiam nas escolhas das temáticas que eram discutidas em sala de aula contribuindo para a manutenção de uma visão monocultural e eurocêntrica deixando de fora as muitas culturas existentes na sociedade brasileira principalmente a cultura de tradição oral Simone SANTOS 2006 p 4 bastante valorizada nas tradições afrobrasileiras A escolha dos conteúdos a serem trabalhados em sala de aula não se constitui no campo da neutralidade Ela se conecta entre outras coisas com os pontos de vistas pessoais com os valores morais com as escolhas políticas e religiosas dosas profissionais envolvidosas nesse processo Santos 2006 afirma que as pessoas que compõem a instituição os professores diretores e coordenadores pedagógicos que trazem seus valores e atributos morais atitudes estéticas e diferentes linguagens que refletem o mundo externo ao ambiente escolar que se concretizam dentro dele Muitas vezes essas práticas permitem a institucionalização do preconceito e da discriminação racial SANTOS 2006 p 34 13 Movimento Social de Negras e Negros é a luta dosas negrosas na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais que os marginalizam no mercado de trabalho no sistema educacional político social e cultural Regina Pahim PINTO 1993 29 A institucionalização do preconceito e da discriminação racial diz respeito à supervalorização das contribuições europeias para a formação da sociedade brasileira em detrimento das contribuições africanas e afrobrasileiras A escolha de conteúdos com bases exclusivamente europeias pode ser entendida como uma das faces do silêncio uma das muitas formas de operação do racismo Esse silêncio na interpretação do professor Paulo Vinícius Baptista da Silva 2008 além de invisibilizar as contribuições das populações negras para a construção do país opera para ocultar o processo social de desigualdade racial SILVA 2008 Já os discursos que destacavam os trejeitos afeminados de alguns meninos procuravam confirmar que o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres e para o masculino em corpos de homens Berenice Alves de Melo BENTO 2008 p 25 Assim os normatizados são premiados com respeito e oportunidades e castigando as diferenças com desprezos e obstáculos William Siqueira PERES 2009 expondo de forma objetiva que nas sociedades patriarcais heterossexistas não há outra possibilidade se não o ajustamento Se por um lado havia uma cobrança para que os meninos se ajustassem aos códigos de masculinidades considerados naturais por outro se esperava que os estudantes negros se adaptassem às normas de conduta concebidas a partir da experiência da população branca que se coloca como modelo universal de humanidade Maria Aparecida Silva BENTO 2003 p 25 Minha trajetória escolar como estudante e como docente marcada pelo racismo e pela homofobia mas também por enfrentamentos e por um processo de empoderamento me fez refletir a respeito de como seria a experiência de professores negros que expressam identidades de gênero e orientações sexuais que questionam as normas heterossexuais A partir dessas inquietações passei então a problematizar a respeito dos seus trajetos escolares como estudantes e como docentes a fim de investigar quais os mecanismos de poder incidiam eou incidem sobre eles e quais as estratégias de enfrentamento desenvolveram para se manterem na escola 168 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Quase todos meus professores me adoravam mas me lembro que os que lecionavam educação física eram particularmente hostis a mim Um destes professores falou com meu pai porque estava preocupado comigo e disse a ele a meu pai que eu era muito afeminado e que todos meus colegas zombavam de mim Meu pai ao chegar em casa me repreendeu e não duvidou em me culpar pela hostilização sistemática pela qual eu passava no colégio Quando este professor chamou meu pai para falar sobre o meu afeminamento tornouse inevitável e óbvia a patologização do meu corpo como das minhas performances de gênero O que não era tão óbvio é que naquele momento este jovem e atlético professor estava reconhecendo a sua própria impotência para modificar meu afeminamento sua impotência para me fazer o homem que se supunha eu deveria ser e sua impotência para marcar claramente os limites entre ele e eu Giancarlo Cornejo O problema desta pesquisa consistiu em identificar os elementos que incidem de maneira positiva nos processos de subjetivação das experiências de professores negros que fogem à norma cis heterossexual gays afeminados viados e bichas e como esses elementos são agenciados no interior da escola O racismo e a homofobia foram tratados nesta pesquisa como dispositivos de poder tomando como referencial teórico a obra de Michel Foucault que explica que o poder procura atribuir ao corpo alguma utilidade e integrálo em sistemas econômicos FOUCAULT 1999 Recorri à metodologia das autobiografias proposta por Marcio Caetano 2016 por dar conta de processos de criação e recriação de tramas e dramas de sociabilidades e da construção das múltiplas identificações e identidades individuais e coletivas e por considerála adequada para articular as dimensões individuais aos fenômenos de caráter mais amplo CAETANO 2016 p 33 e por permitir um diálogo com minha trajetória pessoal como sujeito como docente e como pesquisadora Antes de me aventurar pelas autobiografias de quatro professores que se reconhecem como gays viados e bichas pretas preparei o terreno com uma intensa pesquisa bibliográfica revezando áreas variadas do conhecimentos como os estudos das relações étnicoraciais os estudos de gênero e diversidade sexual os estudos feministas e as teorizações de Michel Foucault O revezamento de diversas áreas do conhecimento como trajeto para colocar as autobiografias 169 em cena só foi possível graças à utilização do conceito de interseccionalidade que teve uma importância central neste trabalho O conceito de interseccionalidade desenvolvido nos EUA pela jurista negra Kimberlé Crenshaw ainda é pouco utilizado no Brasil dado ao fato que o sucesso alcançado por ele date da segunda metade dos anos 2000 DORLIN 2016 A interseccionalidade possibilitou que discutisse as identidades como múltiples y fluidas y se encuentra con la perspectiva foucaultiana del poder en la medida en que ambas ponen el énfasis en los procesos dinámicos y en la deconstrucción de las categorías normalizadoras y homogeneizantes VIGOYA 2016 p7 Mesmo que o conceito de interseccionalidade não seja acionado diretamente é possível identificálo em trabalhos onde gênero raça e classe se somam já que o gênero não pode ser desassociado coerentemente da raça e da classe como afirma Elsa Dorlin 2009 citada por Vigoya 2016 Ainda assim os trabalhos produzidos no Brasil discutindo homofobia e racismo no ambiente escolar se referem a pequenos domínios e se concentram especificamente em um dos múltiplos marcadores sociais que incidem sobre uma pessoa Constatei que a maioria dos trabalhos que discutem relações étnicoraciais ignora a diversidade de gênero e de orientações sexuais naturalizando a ideia de que a população negra do país é composta especificamente por pessoas cisgêneras heterossexuais A produçãoteórica desenvolvida por feministas brancas e negras cisgêneras contribui para confirmar a heterossexualidade como única orientação sexual possível São raros os trabalhos que problematizam a existência de mulheres bissexuais lésbicas e mais raros ainda trabalhos que discutem as experiências de travestis e mulheres transexuais negras eou brancas Já os trabalhos que discutem gênero incluindo aí a produção teórica de feministas brancas e diversidade sexual tendem a silenciar a respeito do pertencimento racial das pessoas eou grupos de pessoas pesquisados contribuindo para confirmar a ideia corrente de que se tratam de discussões envolvendo o grupo racial branco A exceção se observa nas pesquisas desenvolvidas por um grupo reduzido de professores negros homossexuais que problematizam de maneira recorrente as múltiplas masculinidades especialmente aquelas consideradas periféricas Entre as masculinidades consideradas periféricas por não se encaixarem no padrão imposto pela norma heterossexual branca de classe média são apontadas aquelas exercitadas por 170 homossexuais negros homossexuais pobres homossexuais idosos homossexuais gordos homossexuais ligados ao movimento Hip Hop gays afeminados viados e bichas pintosas Observei que existe uma farta produção teórica problematizando relações étnicoraciais homossexualidade masculina e educação Essas pesquisas porém discutem em sua ampla maioria as experiências de estudantes negros e de estudantes homossexuais masculinos e raramente problematizam a prática docente de professores negros e de professores homossexuais masculinos O debate sobre a prática docente de professores negros homossexuais gays afeminados viados e bichas é praticamente inexistente Ao longo de todo meu processo de doutoramento não tive acesso a nenhuma pesquisa tese dissertação ou artigo que discutisse especificamente esse tema Afirmo então a partir do que propõe o conceito de interseccionalidade que a pesquisa brasileira se caracteriza pelo conhecimento situado ou perspectiva parcial Helena HIRATA 2014 por se concentrar como sugere Deleuze em pequenos domínios Não tive como fugir das pesquisas caracterizadas pelo conhecimento situado ou perspectiva parcial e categorias importantes para este trabalho como negro e homossexual foram discutidas separadamente Apesar da inquestionável importância dessas categorias para o processo de desconstrução de discursos e posturas racistas e homofóbicas constatei que contribuem para naturalizar a heterossexualidade e a branquidade normativa O vocábulo negro tem sua origem associada ao regime escravista e foi utilizado como sinônimo de escravizado portanto rejeitado pela maioria das pessoas negras que conquistavam a liberdade No início do século XX esse vocábulo ainda era associado ao irracional ao feio ao ruim ao sujo ao exótico SOUSA 1983 O empenho do movimento negro organizado ao longo do século XX surtiu efeito e conseguiu atribuir sentidos positivos ao vocábulo negro que passou a ser utilizado como uma categoria identitária para se referir ao grupo racial constituído por pessoas que se autodeclaram pretas e pardas Negro e negra passaram a ser entendidos como raça e não mais como adjetivo 171 Esse processo acabou por incorporar elementos de origem ocidental eurocêntricos portanto como a fixidez dos gêneros masculinos e femininos relacionados ao sexo biológico e a ideia da heterossexualidade como única orientação sexual possível O esforço concentrado para questionar especificamente a branquidade como norma acabou fazendo com que a homofobia como forma de controle fosse naturalizada Ao observar a existência de um dispositivo de racialidade operando sobre a população negra Sueli Carneiro 2005 desconsiderou a multiplicidade de gêneros e de orientações sexuais possíveis e tratou a hetero cis normatividade como extensão da categoria negroa Essa era a opinião de Frantz Fanon 19251961 que afirmou abertamente que a prática da homossexualidade era desconhecida no continente africano antes do contato com o invasor branco e contrariando sua produção teórica que se propunha a ser póscolonial atribuiu as mesmas características negativas aos homossexuais originárias do discurso produzido por religiosos cientistas e juristas europeus Em suas reflexões sobre negrofobia Fanon 2008 classifica os homossexuais masculinos de pecadores pervertidos e paranoicos O professor Molefi Kete Asante 1942 africanista que trabalha na Temple University EUA nega qualquer dignidade aos homossexuais e procura afastálos da construção identitária de tipo afrocêntrico BUSSOTTI TEMBE 2014 Nesse sentido a categoria negroa adquire às vezes de forma intencional outras nem tanto um caráter de normatização quando contribui para naturalizar a cis heterossexualidade Não questiono o fato de que o racismo como dispositivo de controle incida indistintamente sobre as pessoas negras Mas afirmo que ele adquire formas diferentes quando opera sobre pessoas que apresentam gêneros e orientações sexuais distintas da cis heteronormatividade hegemônica Se a categoria negroa reforça e até naturaliza a heterossexualidade a categoria homossexual é utilizada para confirmar a branquidade Os estudos que conduziram a formulação do conceito e do vocábulo homossexual levaram em conta apenas as experiências de homens brancos ocidentais A mesma situação se observa na luta empreendida pelo movimento gay nos EUA e no Brasil que naturalizou uma existência avessa às questões de raça LIMA 2006 172 Ao empreender uma luta contra a homofobia especialmente contra a patologização da homossexualidade o movimento gay incorporou modelos higienizantes de comportamentoa fim de promover uma inclusão sanitarizada dos homossexuais que serviria de modelo para os demais Incluemse nesse modelo padrões de conduta inspirados na cis heterossexualidade e na branquidade hegemônica denunciados como opressores pelos movimentos negros movimentos feministas ativistas lésbicas ativistas travestis ativistas mulheres e homens transexuais brancosas e negrosas Os estudos sobre homossexualidades que emergiram dos estudos feministas na década de 1970 mantiveram a mesma postura e a questão da raça tem sido sistematicamente ignorada GÓIS 2003 O pouco interesse em interseccionar raça e homossexualidade masculina deriva do número reduzido de pesquisadores negros homossexuais gays afeminados viados e bichas em atividade nas universidades brasileiras A raça o gênero e a orientação sexual doa pesquisadora interferem sim na escolha do tema a ser pesquisado GÓIS 2003 RATTS 2007 FIGUEIREDO 2008 O que esta pesquisa confirma é que através da negação a interseccionalidade se materializa A homofobia é acionada como um elemento fundamental na constituição da negritude assim como o racismo é peçachave na construção de uma homossexualidade padrão que procura negar a possibilidade de existências que escapam à normatização e normalização dos corpos A operação do dispositivo de sexualidade e de racialidade é acionada por muitos sujeitos e por muitos grupos de sujeitos que estão na mira desses mesmos dispositivos fazendo o trabalho sujo imposto pelo racismo e pela homofobia No entanto o controle não se efetiva plenamente e muitos corpos escapam Os dispositivos são colocados sob suspeita e as ditas masculinidades periféricas reivindicam uma existência A margem se torna pequena e o centro um desejo A negritude como extensão da cis heterossexualidade e a branquidade como continuidade da homossexualidade são questionadas abertamente pelos gays afeminados viados e bichas pretas Ao se colocarem como homossexuais por se sentirem sexual e afetivamente atraídos por pessoas do mesmo sexo e do mesmo gênero as existências de gays afeminados viados e bichas pretas não se dão no espaço da normatização A homossexualidade e a negritude se apresentam como fragmentos que se somam para questionar aquilo que está posto como regra 173 Se as categorias gays afeminados viados e bichas se mostram como possibilidades de enfrentamento ao processo higienizadorda categoria homossexual a categoria pretoa surge nesta pesquisa como alternativa para questionar a cis heteronormatividade presente na categoria negroa Os termos gay afeminado veado bicha e pretoa ainda são utilizados como adjetivos que se propõem ao ataque a detratação ao escárnio de certos corpos e certas pessoas Ao se apropriar desses termos os sujeitos aos quais se referem tomam para si o direito de existir questionando aquilo que é descrito comonormal Assim ao longo desta pesquisa surgiu uma questão que precisou ser respondida para que ela pudesse ter continuidade quando a existência de um gay afeminado de um viado e de uma bicha preta se efetiva O caráter essencialista presente nesses termos precisou ser problematizado exigindo suas historicizações Os sinais do gay afeminado do viado e da bicha são encontrados no Brasil no século XVI na figura da mulher paciente MOTT 2005 e no século XIX na figura dos incorrigíveis afeminados desenfreados ou homensmulheres SANTOS 1997 que circulavam pelas ruas de SalvadorBA antes mesmo dos frescos dos putos e das Joaninhas do Rossio que ocupavam os parques e passeios do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX GREEN 2000 A existência da bicha preta é exercitada no espaço público por estar atrelada a questões de sobrevivência Como parte de um grupo racial historicamente marginalizado e em desvantagens econômicas a bicha preta precisava ganhar as ruas para ganhar a vida diferentemente da bicha branca bacana e da bicha branca sucesso que podiam experimentar uma existência em espaços reservados sem sofrerem a mesma perseguição policial imposta às bichas pretas Sem que se dessem conta as bichas pretas preparavam o terreno para que as bichas brancas ganhassem as ruas O potencial criminoso presente no corpo do homem preto cis heterossexual apontado por Césare Lombroso BENTO 2002 respingava nas bichas pretas A história de vida de Madame Satã 19001976 Cintura Fina 1921 e Tomba Homem 19352016 todas pretas e marginalizadas foi marcada por perseguições da sociedade e da polícia e por entradas e saídas da prisão 174 Essas existências que atravessam quase todo o século XX apresentam muitas semelhanças entre si e para serem contadas é preciso recorrer aos registros policiais como aconteceu com Yayá Mariquinhas e JoãoRosalina SANTOS 1997 no séculoXIX O simples fato de uma bicha preta transitar por ruas e praças era o bastante para que fosse tratada como suspeita e o suposto potencial criminoso presente em seu corpo potencializado Essa existência vai sendo marcada por resistências e estar na mira da polícia não fez com que elas se enquadrassem às normas de conduta impostas por modelos higienizantes heterossexuais e brancos Ao reclamar o direito de existir no espaço público ainda que pelas bordas a bicha preta foi a cortina de fumaça que permitiu o trânsito da bicha branca Foi ela que permitiu que a bicha branca ampliasse sua área de atuação até ganhar definitivamente asruas Tal processo não se deu sem enfrentamentos mas a história das bichas brancas não passa pelos registros policiais com a mesmaintensidade O controle sobre as existências bichas ou existências anunciadas tem início muito cedo antes mesmo de uma consciência ser construída Os mecanismos de controle que incidem sobre um gay afeminado viado e bicha preta adulta são observados durante suas infâncias com a intenção deliberada de assegurar a cis heteronormatividade branca como única existência possível Muitas vezes esse controle é perceptível apenas para aquelesas que estão na mira dos discursos e das ações normatizadoras Os discursos podem ser dirigidos como mísseis teleguiados ou soltos no ar na expectativa que cheguem aos ouvidos de quem precisa ser atingido Não existem modelos que possam ser tomados como exemplos de mecanismos de controle que incidam da mesma maneira e com a mesma eficiência sobre todos os sujeitos Mas a zombaria o escárnio e o deboche que decorrem da ideia de degradação ou degenerescência ZAMBONI 2016 são constitutivos das infâncias que escapam à branquidade e à cis heterossexualidade normativas As crianças que colocam a cis heteronormatividade branca em dúvida são impedidas de vivenciarem plenamente essa fase de suas vidas e se deparam com discursos e atitudes próprios do mundo adulto 175 A sexualização precoce de seus corpos presente nos xingamentos e apelidos e nos discursos que procuram destacar o perigo que representam para as outras crianças impede que suas infâncias sejam vividas plenamente A criança como dispositivo pedagógico que permite a naturalização da heterossexualidade PRECIADO 2014 autoriza o ataque sobre as infâncias que não estão alinhadas com as normas de sexualidade e de raça Não há pudor em se tentar promover o apagamento de uma infância distintiva da cis heterossexualidade branca A estratégia para que um projeto de sexualidade nos moldes hegemônico se efetive também passa pelo silenciamento Tratar todas as crianças como brancas e cis heterossexuais ou assexuadas se faz necessário o que resulta na certeza de que gays afeminados viados e bichas não tiveram infância É justamente sobre as infâncias que surgem as primeiras reflexões de meus entrevistados que confirmam a certeza de que experimentavam cada um à sua maneira existências que não colocavam a heterossexualidade como um projeto de futuro O controle sobre suas sexualidades e sobre seus pertencimentos raciais partiam da família da igreja e da escola através de discursos e ações que legitimavam a heterossexualidade e a branquidade como elementos que garantiriam uma existência no centro indicando a margem como o lugar adequado para os gays afeminados para os viados para as bichas e para osas pretosas O armário construído com a ajuda da família da igreja e da escola se apresenta como um lugar embora nem sempre seja interpretado dessa maneira Vejo o armário como uma trincheira que permite uma tomada de fôlego para reunir forças para continuar um enfrentamento que não terá fim O prazo de validade de um armário e o uso que se faz dele variam de pessoa para pessoa mas nunca é utilizado como uma ferramenta para promover o ajustamento Tratase de uma estratégia que garante a sobrevivência e não a extinção de um gay afeminado de um viado ou de uma bicha preta O armário precisa ser analisado a partir da experiência de quem fez ou faz uso dele e tratado como um elemento importante na constituição de existências que questionam as normas de sexualidade e de raça 176 Os discursos normatizadores e normalizadores que constroem o armário fornecem as ferramentas para sua destruição O armário é um casulo de onde a bicha preta emerge empoderada disposta a questionar seu lugar no mundo e reivindicar um espaço que não se reduza à margem Se o armário é construído por discursos a bicha também o é Os discursos inventam a bicha Mas a existência bicha é outra coisa e passa por uma apropriação dos múltiplos discursos que tentam reduzila Ao ser popularizado ao ganhar as ruas e integrar o discurso sobre os corpos que escapavam à norma heterossexual o vocábulo bicha trouxe consigo uma carga depreciativa e passou a ser utilizado como um instrumento de agressão hostilidade e marginalidade GREEN 2000 Ao se posicionarem como gay afeminado viado ou bicha os sujeitos desta pesquisa atribuem um sentido positivo aos termos que foram utilizados para agredilos e marginalizálos Há deliberadamente um processo de apropriação de conceitos que procura mantêlos deslocados dos centros formais de poder FRY 1985 impondo uma existência a partir da margem Afirmo que esse processo é contínuo e acompanha a existência de meus entrevistados ao longo de suas vidas Não é possível determinar um momento exato em que uma tomada de posição se inicia pois ela se confunde com os discursos que propõem a normatização Se houve a necessidade de governar as infâncias na expectativa de tornálas cis heterossexuais é porque o perigo se anunciava em sexualidades disparatadas FOUCAULT 1999 projetadas em corpos de crianças ainda que não fossem nominadas As autobiografias de Rogélio Gonçalves Leonardo Camargo Soares da Cruz Rodrigo Pedro Casteleira e Tarciso Manfrenatti confirmam que esse governamento não se efetiva da forma pretendida pois cada um à sua maneira escapou como pôde e continuou de amassaamassa se relacionando afetiva e sexualmente com outros garotos O dispositivo de sexualidade presente nos discursos e nas relações familiares nos discursos e práticas religiosos e escolares produzia performatividades mas não produzia sujeitos Condutas expressas em público nem sempre correspondem a existências e podem ser interpretadas como estratégias 177 Os mecanismos de controle que conduzem pessoas negras gays afeminados viados e bichas ao abandono da escola não são eficazes em sua totalidade e muitos corpos escapam e a formação acadêmica se revela em uma estratégia de enfrentamento bastante poderosa A afirmação de que a bicha não podia se engrenar na máquina estatal ZAMBONI 2016 perde força e a docência se apresenta como uma possibilidade concreta para deslocar as margens para o centro O passado começa a ser revisitado e a escola que se mostrava tão hostil à presença desses corpos agora oferece a mesa e a cadeira doa professora Os fantasmas que assombravam as existências de gays afeminados viados e bichas pretas continuam rondando as salas de aulas e as salas dosas professoresas mas não parecem assim tão assustadores O Diabo em forma de gente construído pelos discursos normatizadores e normalizadores se materializa e agora é ele quem coloca em debate as múltiplas possibilidades de rexistências que questionam os dispositivos de poder que queriam destruílo O racismo e a homofobia se interseccionam e continuam operando sobre as existências de gays afeminados viados e bichas pretas como dispositivos de poder Mas como propõe Foucault onde há poder há resistências Há existências Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 10 CRIANÇAS BICHAS DEMASIADAMENTE FABULOSAS Alexsandro Rodriguesi Steferson Zanoni Roseiroii Jésio Zamboniiii Castiel Vitorino Brasileiroiv Mariamma Fonseca Santanav Resumo Trabalhando a vida bicha enquanto fábula esse texto não apresenta objetivos bem definidos ou mesmo regras de leitura mas antes apenas nuances de corpos e possibilidades de existência Aqui é possível ler começando pelo meio ou por uma das extremidades nada disso importa Há três fábulas e um aviso por um leitor desavisado e em todas as partes encontramse bichas corpos demoníacos reinos fugidios e vidas comunitárias Em uma das fábulas é possível que o corpo seja arremetido a processos de vida poligâmicos e de políticas de amizade impensáveis no contexto da sociedade consumistafamiliar noutra é a arte peralta endemoniada que importa como ponto de afeto há ainda o convite à própria fabulação praticável com os corposcriança que escapam de escafandros por desbotarem Assim portanto a história não começa mas é anunciada algo se passa aqui e de nada importa Serve apenas de convite à vida bicha demasiadamente fabulada Palavraschave Bicha Fábula Criança Segurança Abstract Exploring the fag life as fables this essay does not introduce any defined objectives or even a reading guidance but first shows some bodies nuances and existential possibilities The reading may starts by the middle or by any of its extremities it is not a question to worry There are three fables and a warning from an unaware reader and in all of that there lay some fags demonic bodies fugitive kingdoms and community life In one of the fables bodies may be related to processes of polygamous life and to the friendship polices unthinkable in the parental consumerist society In another it is the demoniac mischievous art that matters to the writing for its affective capacity Still but not last there is an invitation to the fabling an invitation to get away from the diving suit fading with the childishbodies Therefore the story does not begin but it announces there is something going on but it does not matter It is just an invitation to the fag life overly fabled Keywords Fag Fable Child Safety Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 11 Aviso por um leitor desavisado O que você tem em mãos não é exatamente um artigo acadêmico pelo menos não o que costumeiramente se exige de um Se você chegou a esse texto e espera encontrar um objetivo uma estratégia metodológica uma conclusão e um monte de considerações típicas da economia acadêmica aconselhamos que logo feche esse texto ou então deixese surpreender Aqui desenrolamse três fábulas cuja realidade é potência que insistem além de existir Fábulas que por inventarem crianças bichas berram existências impensáveis e iminentemente imanentes Nada temos a oferecer senão essas três fábulas de corpos desbotados demoníacos e embichados três fábulas para serem lidas em ordem qualquer para serem risadas e nada procurarem Apenas a primeira delas recorre aos saberes acadêmicos indiretamente em notas de rodapé a fim de situar nesse terreno tantas vezes inóspito à fabulação um pouco de onde viemos e para onde vamos Mas o que importa mesmo é o que se passa Se nos cabe algum pedido ainda a quem quer que chegue esse texto por favor levemnos a sério tanto quanto na brincadeira Nosso desejo com essas breves intervenções é que as infâncias e as sexualidades possam ser pensadas e vividas de outras maneiras que outras políticas de existência possam se firmar pela afirmação da vida como multiplicidade Há aqui apenas vidas bichas demasiadamente fabuladas O Reino do ArcoÍris delírios de um escafandro Era uma vez um lugarvi em que as criançasvii escapavam aos sistemáticos sequestrosviii por uma série de instituições Esse mundo fabulosoix cheio de feitiços e encantos arrogantes e astuciosos traça o contraponto ao mito de uma infância pura e intocávelx pretenso paraíso perdido da humanidade deturpada Ali as ruas movediças surgem na ponta das línguas só existindo enquanto sinais quaisquer são lançados à deriva no exato intervalo entre a boca que se abre e a palavra que ecoa Em virtude dessa exótica configuração o lugar é chamado Reino do ArcoÍris Nesse reino sem rei e sem demarcações estáticas os corposxi se incorporamxii com vigor instantâneo imediatos como a travessia de um portal mágico Tais feitiços velozes são como aqueles que fazem alguém se tornar adulto a partir de certa idade algo bem diferente das lentas mudanças na carne e nos ossos Um reino todo feito de passagens Mesmo havendo tantas vias inúmeras muitos lá jamais pisaram Foram seduzidos e sequestrados por vidas adultas vidas maduras no limiar da podridão e cheias de fantasmas Pretérito mais que perfeito tinham deixado a criancice de lado afirmandose responsáveis pela negação das alegrias Foram demasiadamente comportados sob medida e com reforço em uma história muito bem contada tantas vezes recontada que passou a existirxiii Os habitantes do Reino do ArcoÍris eram incorpóreos corpos cheios de jeitos trejeitos e ajeitos cores sabores e odores de modo que tudo o que lá existia se movia incessantemente de um modo estranho telepático como a velocidade mais veloz o súbito incomensurável Então se alguém disser que está agindo como criança talvez essa seja uma senha de passagem para o Reino do ArcoÍris Não perca a chance de atravessála pois ela desaparece mais rápido que um piscar de olhos Tendo atravessado o signo e sustentando o movimento incessante a seguir passase a fabricar um corpo criança infâncias se inventamxiv Atraídas as crianças estão em trânsito constante experimentam o que os reinos de verdade querem lhes impedir Algumas que se supõe estarem protegidas pelas governanças e bemdispostas em organizações são vistas tímidas turistas do ArcoÍris Outras camaleonicamente fogem como um turbilhão para onde a vida insiste em escapar E em suas camaleonices fazem toda boa segurança fugir E tanto fogem que nem sequer suas genitálias permanecem Suas camaleonices fazemnas indetectáveis entre meninos e meninas E assim Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 12 metamorfoseiamse bichasxv Na imperceptível inquietude ou na agitação incansável ou ainda em algum ponto qualquer entre estas duas pontas do ArcoÍris um local onde a criança pode insistir emerge para recebêlas Quando seduzidas pelo Adultério o reino dos adultos que traíram a própria crianceria em busca das promessas de poder completude e conforto no invivível ser sempre igual os corpos tornamse estátuas atônitas parecendo formas eternas e imutáveis Mas sentem constante e inevitavelmente a impossibilidade e a dificuldade de permanecerem imóveis As crianças porque bichas perturbam Atrevidas elas vivem o tempo que podem a potência de existir em monstruosidadesxvi convocando seduzindo espezinhando para que todos entrem com elas no Reino do ArcoÍris Bemvindo aos atrevidos e curiosos Ora nesse reino desreinado e encantado das crianças sempre se pode chegar de alguma maneira Diabolicamente está em todo lugar em potência Atentemonos para essas criadoras criaturas que circulam entre nós que nascem em meio a tanta segurança e expectativa a tantos planos de que serão meros produtos reprodutores dos ideais de um sobrenome tornado propriedade privada Elas decepcionam a toda hora frustram as expectativas paternas e sociais e dão muito mas muito trabalho mesmo para serem domadas e adestradas Ainda assim depois de tudo quanto é enquadramento elas borram pintam e bordam Aprendem desde sempre artes da bichice Daí que quando atacam espantamonos com elas Logo dizemos serem de outros planetas E ainda que possam se conectar com outros planetas outros mundos outros seres outras vidas as crianças não falam uma língua estrangeira falam a nossa nas próprias brincadeiras em seus feitiços Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 13 cotidianos Inventam jeitos de dizer que perturbam as ordens gramaticais são das maiores inventoras da língua Com elas o tempo rói sua própria cauda e espanta o calendárioano dos reinos seguros O espaço tornase extremamente volátil e ao mesmo tempo o mais denso possível No Reino do ArcoÍris o tempo tem sempre uma contagem diferente um ritmo diferente um respirar diferente O espaço por outro lado nunca se encontra onde é procurado está sempre além na ultrapassagem Irrequietas e nervosas as crianças adoram saber que podem se deslocar incessantemente tornando o reino sempre outra coisa Frenéticas adoram passear e assustar a pretensa calmaria dos reinos seguros Não há lugar ou forma que segure esses corpos Corpos obesos magricelas musculosos altos ou baixos Corpos femininos ou dissimuladamente másculos corpos travestidos corpos carnavalescos corpos mimetizados Em se tratando de tonalidades novas paletas tiveram que ser inventadas para aquelas crianças pois os contrastes racistas foram perdidos em tons de roxo de púrpura de magenta violeta azul verde oliva escarlate pérola Os cabelos em uma miríade de arquiteturas fazem espetáculos Crianças podem ser tão cabeludas que chegam a não ter mais cabelo E nem sequer precisam Há muito desenvolveram enquanto bichas a arte de confeccionar perucas e pela cidade reinam os desfiles mais exuberantes de camisas toalhas sacos plásticos e todo e qualquer tipo de material que possa fazer as vezes de cabelo Com tantas invenções assim reinam os usos desusos reúsos e abusos Como toda criança bem sabe há nos restos nas sucatas toda uma nova vida a fabular Podese nelas encontrar referências aos heróis à música ao cinema à literatura ao teatro ou qualquer outra coisa Pois elas devoram tudo apropriamse desejosamente em vez de meramente assimilar ou seja elas transformam tudo que engolem para não se tornarem depositárias de uma cultura morta Fazem feitiços com o inócuo e fazem divas reencarnarem Refazendo seus corpos dessa maneira elas se metamorfoseiam inúmeras vezes escapando a identificações e reconhecimentos Seja como for as crianças fazemse fantásticas estrelas candentes Ligeiras e faceiras elas recusam as promessas de serem o futuro da pátria de carregarem o fardo familiar feitas pelos reinos seguros Elas ousam existir como um processo insistente em vez de ficarem aguardando imóveis e protegidas o dia em que poderão ser A seu belprazer prometem apenas o infortúnio das confusões das tagarelices das bichices e das armações Astuciosas riem de toda tentativa de domálas pelo medo enfrentando audaciosas as morais das fábulasxvii Há muito aprenderam o heroísmo das bruxas e a vilania dos mocinhos e não se deixam ser capturadas pela literatura infantilizadora aquela que pretende dizer o que pensar e o que sentir Riem debocham e saltitam bem aos modos do Saci da Cuca da Mula semcabeça do Boitatá da Iara Quando os reinos seguros tentam lhes assustar com suas lendas urbanas Homem do Saco Mulher de Algodão ChupaCabra as crianças piram e ficam fascinadas por esses poderosos monstros elas curtem o horror capaz de lembrarlhes das forças que ultrapassam a herdada forma ideal do humanoxviii Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 14 Rua dos bobos n 0 Suas casas são constantemente visitadas de tão acolhedoras Cheias de exageros gargalhadas e músicas birutas as crianças fazem moradia onde as paredes se abrem para que possam entrar e sair incessantemente Assim não é de se estranhar o número de curiosas visitas a cruzarem os limites da segurança Nos olhares dos adultos para as crianças há sempre uma fixação marcante um olhar esfíngico interrogando judicialmente para que elas se descubram humanos Quase tragados pelo buraco negro que convoca a outros mundos retornam apressados aos reinos de verdade Por um instante cativados relembram como sonho a realidade que viveram brevemente naquele Reino em que tudo brilha Mas houve um dia algo estranho demais um corpo teimou em permanecer seguro cheio de razão enfim adulto no Reino do ArcoÍris Esse corpo dos reinos de segurança cruzou os limites com um fio de Ariadne bem amarrado à cintura a fim de não se perder no labirinto das criancerias das bichices Explorar objetivamente dizia o corpo invasor Queria Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 15 com toda a Razão averiguar a incômoda felicidade das crianças de todas as idades cores jeitos lugares e tempos Cheias de curiosidade as travessas anfitriãs se sentaram com o adulto que logo disparou só partirei desse reino quando descobrir o que fazem vocês serem o que são Implicantes que só as crianças danaram a rir daquele sábio que nada sabia pois elas não eram Não sabe não sabe vai ter que aprender orelha de burro cabeça de ET Frustrado restou ao adulto atônito tudo notificar quantificar e escrever na tentativa de fazer com que aquilo tivesse alguma razão de ser Nada escapava ao adulto que a tudo buscava medir Mas tudo e nada são apenas os dois lados da mesma moeda da pretensão de definir e acabar algo que não cessa À medida que media o adulto ia se transformando em um escafandro uma roupa impermeável para se proteger a qualquer custo do mundo que o provocava tanto mais forte quanto mais tentava fugir Como rebolam essas crianças Aquela dali certamente é uma louca Essa é de longe uma invertida Uma mariquinha O que é aquele pano enrolado na criança Um vestido Ridículo E aquela coisa na cabeça daquela ali Seria aquilo uma peruca Venhamos e convenhamos aquele adulto salvavase ou melhor asseguravase apenas precariamente por seus aparatos de proteção Na sua frágil defesa foram as crianças que começaram a sentir medo Ao Escafandro restava apenas anotar e franzir testas Restava apenas o veredito precisamos salvar essas crianças Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 16 Imediatamente o Escafandro supôs nas crianças todo um nãosaber todo um não sentir um nãoestar e ainda por cima que era também um excesso de ser um além dos limites Essas crianças precisam de limites gritava babando Todas as crianças então limitadas tornavamse nada apenas um projeto uma promessa um ideal Deixavam de rebolar desfaziamse de suas perucas e seus tons de pele embranqueciamse em velocidades assustadoras A mesmidade do rosto apático e da vida asséptica transparecia nos corpos Veredito em mãos o adulto começou a perceber a redução drástica no inúmero de crianças desde que chegou ao Reino do ArcoÍris Logo percebeu em uma fulguração quase imperceptível que elas estavam desbotando Mas o que o Escafandro radiante não sabia era que não se tratava de uma súbita inexistência um desaparecimento no nada As crianças desbotavam para insistir para prosseguir nas sombras da Razãoxix O adulto bem ensinado contava às crianças que ainda iam restando uma história de início meio e fim uma história cheia de ensinamentos As crianças se sentiam sufocadas esquartejadas com a faca no pescoço obrigadas a decidir pela sina sem outra escolha enquanto ouviam a história O incômodo daquela situação contudo levava as crianças a misturarem todas as coisas a quebrarem as lógicas ordenadoras a interromperem abruptamente a história com um atrevimento de arte cruelxx O Escafandro ao mesmo tempo desesperado com o sumiço da audiência e determinado no prosseguimento de sua missão salvadora tirava da roupa que já era ele próprio livros de segurança de medicina de psicologias filosofias teologias juridicices sociologices sexologices pedagogices e também aqueles livros de fábulas de contos e lendas que já não fabulavam mais nada Às crianças restaram as narrativas mortas ou as fábulas com moral da história pensou o Escafandro Sem conseguir mais ver as crianças felicitouse porque as crianças finalmente morreramxxi Devem ter enfim se tornado o que nunca deveriam deixar de ser adultas Conseguiram tornar a criança um ser a ser protegido Esse não é o fim da história porque decerto ela não tem fim As crianças sempre riem de uma história porque ela ajuda a tecer outras e outras em seus fios cheios de nós Pelo meio brotamos como ervas daninhas germinando enquanto somos arrancadas Esvaecemos vez ou outra mas como crianças e porque bichas traçamos aquela linha para além ou aquém do mito da infância A bichinha Vingativa Sentada no tronco mais grosso da maior árvore da Floresta da Fonte Grande estava um corpo de pele negra cabelos crespos enormes e trejeitos afeminados Se as raízes daquela árvore pudessem enxergar e falar com certeza quando elas olhassem para cima diriam que ali estava uma menina muito vaidosa e por algum motivo movidas por intuição diriam ser também perigosa As raízes estariam erradas mas não por completo Aquele corpo não era de uma menina Muito menos apenas de um menino Aquele corpo de aproximadamente um metro e trinta centímetros de altura e extremamente jovem era o que sua aldeia costumava nomear de Bicha E por ter a pele negra era também chamada de bicha preta As raízes errariam sua espécie mas acertariam em cheio seu grau de periculosidade Na Aldeia da Fonte Grande reza a lenda de que crianças da espécie bichapreta são trapaceiras muito espertas e capazes de transformar qualquer um que as toque em sua imagem e semelhança E àquele corpo tantos nomes outros foram dados viado boiola baitola ou simplesmente demônia E era justamente esta última categorização que Vingativa amava de ser chamada bichapreta demônia Tão endemoniada que Vingativa foi o nome adotado por aquela bichapreta assim que descobriu ser absolutamente diferente de seus irmãos todos Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 17 pertencentes à espécie homens de verdade E tão maravilhosa era sua história demônia vingativa que foi assim que ela viuse diante de seu nascimento narrado por um vizinho Seu filho foi uma vingança cometida por Deus por vocês terem roubado aquele pão enquanto você estava grávida desse aí ao seu lado Foi por isso que Deus fez ele se tornar uma bicha preta Foi uma vingança vinda dos céus Desde então Vingativa prefere ser chamada assim No começo ela não entendia o real significado desta palavra Ela só conseguiu compreendêlo quando seus atos começaram também a serem nomeados pelos seus vizinhos E a maioria deles eram chamados justamente de vingança para seu deleite vingativo A questão é que para Vingativa foram criadas diversas classificações que nunca conseguiram representála em sua totalidade A linguagem sempre falhava ao tentar descrever sua singularidade E ela se divertia dava gargalhadas sua barriga chegava a doer sempre que descobria dicionários sendo confeccionados por seus vizinhos inventando sempre mais uma maneira de se referirem a ela Vingativa gargalhava ainda mais alto quando descobria que algumas dessas novas palavras vinham do Norte de uma região em que a bicha preta era tida como inexistente Burros leigos idiotas Eles realmente acham que têm capacidade de falarem tudo o que sou que não sou e posso ser Veja só nem eu mesma sei Ela berrava e logo voltava a dar gargalhadas E foi justamente em uma dessas crises de risos que Vingativa se desequilibrou e quase caiu da árvore Mas por ser absurdamente ágil e por há muito cultivar o crescimento de asas como o de suas amigas criminosas as feiticeiras ela conseguiu se recompor rapidamente cruzou as pernas e se preparou para começar a lixar suas garras que logo em seguida seriam pintadas com o esmalte vermelho roubado de sua mãe Vingativa adora roubar Era quase um ritual para ela entrar em alguma casa para poder saquear roupas e tecidos para fazer sua própria vestimenta E quando prontos acessórios eram apregoados por todo seu corpo Tudo roubado Além claro das tintas que as Mulheres passavam em seus rostos quando tinha festas naquela aldeia E ao modo de Vingativa tudo ia parar em seus cabelos todos os roubos e usos tudo escondia em seu cabelo que muitos mandavam cortar Mas aquela bichapreta demônia adorava o seu cabelo pois além de achálo lindo era também prático Veja só eu tenho um de ninho de passarinho em cima de minha cabeça e já que ninguém ousa tocálo eu não preciso ter medo de esconder tudo aquilo que roubo pois assim como ninho meu cabelo também é muito seguro para o que ali está guardado E enquanto caía Vingativa só conseguia pensar nos desvios que tomaria nos mapas que abandonaria Vingativa sonhava em poder abandonar de vez as trilhas estreitas e sobrecarregadas indicadas pelas escolas em abandonar os trajetos tão precários da boa vontade alheia da boa e conhecida geografia A queda nada lhe dizia senão de rastros indevidos e por isso Vingativa fizerase tão ágil Não entendo essa gente idiota que fica andando por essas trilhas tão insípidas e seguras tão tediosas e tão pouco taciturnas Mas que se danem Eu já consegui achar outros Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 18 caminhos muito mais bonitos e inesperados Mas a tediosa vida mais velha raramente ocupava os pensamentos de Vingativa Raras eram as vezes que algum corpo mais velho lhe convencera a lhe desfrutar e nesses casos eram certamente corpos demoníacos Vingativa gostava mesmo era de estar junto a pessoas de sua idade gostava era da não preocupação classificatória Claro algumas dessas crianças pouco demônias já haviam sido enfeitiçadas pelas regras dos mais velhos e por isso acabavam atrapalhando as brincadeiras de Vingativa com seus amigos Junto aos corpos entretanto despreocupados Vingativa se divertia apagando as linhas feitas no chão de barro que demarcavam os limites da floresta e das trilhas a serem seguidas Elas borravam essas linhas e logo em seguida entravam correndo animadas para explorar aquele lugar outrora proibido a elas Vingativa era uma criança demônia e como era de se esperar adorava estar junto a crianças também demoníacas E por falar em espera Vingativa começava a se impacientar com a demora de um amigo que prometeu encontrála no topo daquela árvore para assistirem juntas ao pôr do sol enquanto planejavam o roubo do dia seguinte Os planos eram de um grande rombo no quintal de um dos vizinhos que vivia chamando Vingativa de palavras ofensivas que ela ainda não entendia muito bem o que diziam mas isso pouco importava Previsivelmente essa criança viada não ficava perdendo seu tempo chateada com ódios alheios Muito pelo contrário Ela sente raiva claro mas também se diverte Dá gargalhadas Faz zombarias Cria caricaturas Escreve cartas anônimas e lança feitiços em seus diários Rasga a calça mancha a blusa predileta some com os batons e perfumes Risca paredes e quebra espelhos Rouba doces e os vende com preços altos para os colegas de classe de que ela menos gosta Ou seja ela não guarda rancor ela faz melhor Vingativa se vinga As Tribichas e Seu Lobato Dizem as más línguas que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar E não cai mesmo Cada raio que escapa das nuvens é uma criança fugindo do céu E elas adoram fugir da monotonia de suas rotinas e fazer viagens sem volta para lugares desconhecidos A calmaria chateia qualquer relâmpago fujão De quando em vez ouvimos seus estrondos e sabemos que mais uma criança serelepe chegou à Terra Como SaciPererê raios chegam sempre de repente e garantem com suas chegadas um espetáculo Nada garante que sua entrada não seja assustadora Sempre que aparecem deixam suas marcas seus rastros estriados E talvez por isso mesmo é que os bichos e as bichas se assustam e se encantam com a existência forasteira dos relâmpagos Por não terem destino certeiro tudo quanto é lugar pode ser surpreendido por um relâmpago fujão Daí que os humanos em suas manias de controle inventaram tecnologias e aparelhos capazes de capturar relâmpagos atrevidos que ousam ultrapassar os limites da segurança Frustrações Raios escapam e em seus ímpetos todo lugar passa a ser ponto de atração Atrativos não lhes faltam em suas fugas bemsucedidas Ora pois que essa é justamente uma história dessas Não de um relâmpago fujão mas de uma casa três vezes atingida pelos raios Um dois três um após o outro e lá se fora a casa de Dona Bicha Alexia borbulhando entre conversas e boatos da comunidade Três vezes atingida ali nasceram três crianças advindas do raio impetuoso e forasteiro e tal qual esperado aquela se tornara a casa das tribichas Aquela decerto não era uma casa de respeito Dona Bicha entretanto não se importava Cuidava de suas crianças Jésila Tefinha e Castiel no maior conforto que Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 19 poderia lhes dar E suas crianças para desgosto da comunidade sempre deram à mãe motivos de orgulho faziam de tudo para aliviar as preocupações da mãe e pouco se importavam de serem chamadas de tribichas Pelo contrário Usavam e abusavam desse poder Cresciam assim tribichas felizes e cedo aprenderam a se lambuzar e se esparramarem pela comunidade onde cresceram Para Dona Bicha Alexia as tribichas por serem tão surpreendentes não eram feitas dos mesmos ingredientes com os quais tantas crianças são feitas Sempre que questionada sobre os modos de agir de seus filhos respondia aos curiosos com um delicioso tom de ironia que seus filhotes tinham em seus corpos restos de faíscas fosforescentes dos relâmpagos Alexia não poupava esforços e ouvidos alhures para falar de suas crianças sempre realçando o que nelas havia de mais surpreendente Dona Bicha sabia que cada uma de suas crianças comportava em si mundos muito diferentes de algumas crianças que por ali viviam E por isso investia sempre de forma aguerrida e sensível com seus filhos Talvez por isso ou por quaisquer outras causas é que Dona Bicha Alexia nunca fora como outras Donas da comunidade Dona Bicha sempre fora demasiadamente dona de seu corpo e nunca quisera se casar Não por falta de pretendentes Ela sempre lhes dizia quando se ajoelhavam que ela se casara com seu próprio corpo com suas próprias escolhas e não trocaria sua liberdade por qualquer outra paixão costumeira E muito disso era o que Dona Bicha desejava para seus pequenos E as tribichas viveram todas as experiências possíveis de aprendizagem e desaprendizagem junto à Dona Bicha De história em história as tribichas aprendiam os segredos da vida Todavia naquela comunidade era comum que em dado momento as crianças trilhassem seus destinos e fossem viver a experiência de construir uma casa e viver sozinhos E quando esse dia chegou Dona Alexia dividiu em sacolinhas de lantejoulas partes iguais de suas economias com seus filhos Para ela aquela economia bastaria para que cada criança fizesse sua própria casa e assim despediuse alegremente A partir de agora vocês terão que viver sozinhos Usem bem esse dinheiro e arranjem um lugar para construírem suas casas e viverem felizes Mas lembremse tomem muito cuidado com estranhos Assim as crianças saíram em busca de um lugar ideal para viverem e trilharam rumo à floresta Muito queriam viver em contato com a natureza com outros bichos e bichas E por isso andaram por dias até encontrarem o lugar em que as três pudessem fazer suas casas perto do que queriam e ainda próximas umas das outras Jésila sempre calma queria sua casa às margens do rio Para ela seria inadmissível viver sem o barulho das águas dos sapos e das pererecas Tefinha gulosa como ela só sonhava em construir uma casa num lugar cercado de frutas legumes e verduras Sua casa inteira deveria se misturar a um pomar carregado Castiel sempre avoada com seus cabelos de algodão azul desejava sua casa nos lugares mais altos para que suas madeixas se misturassem com as nuvens e virassem aconchego para pássaros e borboletas Foi nas terras de Seu Lobato Moreira que encontraram a terra de seus desejos Seu Moreira muito solícito e gentil com as tribichas fechou negócio de imediato As tribichas ficaram muito felizes e encantadas com o Seu Lobato Moreira nem sequer hesitaram quando ele as convidou para passarem alguns dias com ele em sua casa Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 20 Assim poderemos nos divertir enquanto constroem suas casas E dizendo isso arranjou para cada bicha um quarto em sua casa cheio de todas as regalias e fantasias que elas poderiam desejar A bem da verdade Seu Lobato parecia já conhecer cada uma das tribichas Passaram assim um bom tempo se conhecendo e se divertindo rindo e explorando os mistérios que as tribichas lançavam sobre Seu Lobato Moreira As tribichas o fascinavam e ele descobriase sempre um sonhador Em alguns dias Seu Moreira levava as tribichas em um passeio pelo lago noutros visitavam um bambuzal ou o interior de uma floresta Cada uma das tribichas despertava no Seu Lobato um sentimento diferente mas todas em absoluto adoravam sua companhia Contudo não para sempre ali poderiam ficar As tribichas tinham se dado um prazo e aquele prazo aos poucos se esgotava A primeira a partir foi Jésila Ela partiu para a beira do rio munida com todo o material que precisava Levou consigo apenas rolos de filó e cola quente Não queria uma casa que fechasse sua visão para o rio ou que lhe impedisse de ouvir os sons que lhe acalmavam Quando a casa ficou pronta logo chamou seus irmãos e Seu Moreira para verem sua obra A casa era linda e todos se encantaram com a criatividade da casa de Jésila A casa parecia uma saia de bailarina e assim dançaram a noite toda comemorando aquela alegria Depois de muito dançarem e cantarem embalados pelo canto dos grilos sapos e pererecas Seu Lobato Moreira de forma muito delicada e carinhosa disse Meu querido Jésila em noites de frio e chuva saiba que poderá sempre ficar em minha casa Aquele quarto com as cores do mar e cheio de caixinhas de música será sempre seu Venha sempre que precisar ou desejar Jésila carinhosamente abraçou Seu Moreira e lhe respondeu Estarei lá sempre que as noites se fizerem muito molhadas ou frientas E sorriram Tefinha vendo a alegria de seu irmão animouse e dirigiuse ao pomar que escolhera para sua casa Olhava de um lado ao outro para ver o que a natureza lhe oferecia e se encantou com uma parte do pomar em que as frutas se misturavam ao jardim cheio de bougainvilles orquídeas e azaleias E enquanto acertava as ramas e os cipós para sua construção anunciou feliz Debaixo desses caramanchões das bougainvilles serei muito feliz Estarei sempre na companhia de suas flores cores e cheiros E não me faltarão alimentos com essas laranjas mexericas e limões Logo que terminou os arranjos preparou um delicioso chá da tarde e chamou seus irmãos e Seu Lobato Moreira Pontualmente como britânicos os convidados chegaram Encantados com a casa de Tefinha conversaram tomaram chá de flor do campo e fizeram uma dança das flores enquanto se esbanjavam com frutas refrescantes Todos se enfeitaram com as flores de sua casa afinal beleza e perfume exalavam de todos os cantos Para azar da nossa bicha talvez os odores fossem tão agradáveis que inclusive pernilongos se sentiram convidados Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 21 Todas as vezes que os pernilongos não lhe derem sossego lembrese daquele seu quarto na estufa Não se esqueça das melhores laranjas e morangos de minha propriedade Por isso não se acanhe Não deixe os pernilongos beberem de seu sangue Venha sempre que quiser e desejar Dito isso Seu Lobato viu Tefinha sorrir e assentir timidamente Castiel sempre no mundo da lua das nuvens e das estrelas viu que precisava cumprir o trato e pegou a estradinha que a levava até o lugar escolhido para construir sua casa Artista que era Castiel carregava sempre uma bolsa fascinante e tudo o que lá não cabia acabava em seus cabelos Assim no alto de uma bela pedra Castiel tirou plásticos de todas as cores Rolos de plásticos durex fita duplaface tesouras grampeadores adesivos de estrelinhas Em um piscar de olhos lá estava a casa de plástico de Castiel E ela estava muito feliz De longe as irmãs e Seu Moreira ouviram os gritos de Castiel anunciando o jantar Todas subiram a rocha e se sentaram à linda mesa de plástico e começaram a jantar Porém enquanto comiam começaram a suar a suar e a suar a casa de plástico era muito quente Correram para fora e terminaram o jantar sob a luz do lar Seu Lobato sempre muito gentil foi logo dizendo Castiel aquele quarto no sótão cheio de nuvens na parede e perto das estrelas mais lindas continua do jeito que você deixou Todas as vezes que o calor não lhe deixar em paz e começar a derreter seus cachinhos de algodão doce venha O quarto do sótão será sempre seu E Castiel que não perdia tempo foi logo dizendo E é para lá que eu vou Aquela bicha jamais aceitaria viver sem seus cachos de algodão doce Assim passou uma bela noite na companhia de Seu Lobato Moreira Quando bem cedo na manhã seguinte preparavam o café da manhã pela janela avistaram Jésila chegando todo molhado A chuva da madrugada não lhe dera sossego Mas não apenas isso Sapos pererecas grilos e tantos outros bichos ocuparam sua casasaia sem pedir licença e com isso Jésila não resistiu Voltou correndo para a casa do Seu Moreira E com o carinho de sempre logo lhe ofereceu um belo banho quente e sua companhia Após o banho e o café da manhã Jésila Castiel e Seu Lobato eram pura alegria Gostavam de estar juntos Então de repente os três começaram a ouvir espirros cada vez mais próximos Tefinha vinha caminhando e quicando enquanto espirrava e esfregava seu nariz se avermelhando Tefinha se descobrira alérgica a alguma daquelas flores Não precisou nem sequer bater na porta suas irmãs e Seu Moreira já a esperavam na varanda da casa Logo que chegou Seu Lobato Moreira com seus braços fortes pegou Tefinha no colo e a colocou na cama com um maravilhoso chá para curar a alergia E de tempos em tempos lá estava Seu Moreira beirando a cama e lhe fazendo carícias Curiosamente a partir daquele dia ninguém mais falou de construção novamente Descobriram que não era preciso continuar a história de Dona Bicha Alexia Descobriramse para horror da comunidade onde cresceram felizes juntos e não apenas em pares De tempos em tempos Dona Alexia visitava a Casa Alegria Esse foi o nome dado à casa pelos quatro amigos E em todas as visitas ela trazia novidades da comunidade e morriam de rir com as fofocas e os boatos nutridos e inventados sobre as tribichas Só que Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 22 agora não eram mais as tribichas No meio do caminho encontraram um lobo e Seu Lobato acabou por ser mais uma delas Referências ARIÈS P A criança e a vida familiar no Antigo Regime Lisboa Relógio DÁgua 1988 BAPTISTA L A S A fábula do garoto que quanto mais falava sumia sem deixar vestígios cidade cotidiano e poder In MACIEL I M Org Psicologia e Educação Rio de Janeiro Ciência Moderna 2001 p 195209 BAPTISTA L A S Incêndios da infância atrevimento de uma arte cruel Childhood Philosophy Rio de Janeiro v 12 n 23 p 2745 2016 BENJAMIN W O narrador considerações sobre a obra de Nicolai Leskov In BENJAMIN W Magia e técnica arte e política ensaios sobre literatura e história da cultura São Paulo Brasiliense 1987 p 197221 DELEUZE G Lógica do sentido São Paulo Perspectiva 2007 DELEUZE G O que as crianças dizem In DELEUZE G Crítica e clínica São Paulo Ed 34 1997 p 7379 DELEUZE G GUATTARI F Mil platôs capitalismo e esquizofrenia vol 2 São Paulo Ed 34 1995 DELEUZE G GUATTARI F O antiédipo capitalismo e esquizofrenia 1 São Paulo Ed 34 2010 KATZ C S Crianceria o que é a criança Cadernos de Subjetividade São Paulo n esp p 9096 1996 LAPASSADE G SCHÉRER R O corpo interdito Lisboa LTC 1982 LOVECRAFT H P O horror sobrenatural na literatura Rio de Janeiro Francisco Alves 1987 NIETZSCHE F Verdade e mentira no sentido extramoral Comum Rio de Janeiro v 6 n 17 p 523 2001 NIETZSCHE F Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ninguém Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2008 PRECIADO B Manifesto contrassexual São Paulo n1 2014 SCHÉRER R La pedagogía pervertida Barcelona Laertes 1983 SCHÉRER R HOCQUENGHEM G Coir álbum sistemático da infância Trad Eder Amaral Rio de Janeiro UERJ 2016 VIGOTSKI L S Psicologia da arte São Paulo Martins Fontes 1999 VIGOTSKI L S Psicologia pedagógica São Paulo Martins Fontes 2010 ZAMBONI J Educação bicha uma analrqueologia da diversidade sexual 2016 115 f Tese Doutorado em Educação Programa de PósGraduação em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória 2016 i Programa de PósGraduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo ii Universidade Federal do Espírito Santo iii Universidade Federal do Espírito Santo iv Universidade Federal do Espírito Santo v Universidade Federal do Espírito Santo vi Pensar a produção de subjetividade a invenção de maneiras de viver como lugar paisagem ou território implica romper com a concepção hegemônica de um sujeito transcendente ao mundo com a ideia de que subjetivo e objetivo se opõem necessariamente Desse modo o devir a transformação incessante não aparece como corrupção do real seja no imaginário subjetivo ou na destruição objetiva mas como processo inventivo inerente à realidade um devir não é imaginário assim como uma viagem não é real É o devir que faz do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar uma viagem e é o trajeto que faz do imaginário um devir DELEUZE 1997 Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 23 p 77 Sendo assim não há distinção entre real imaginário e simbólico pois todas essas dimensões são plenamente constitutivas da realidade DELEUZE GUATTARI 2010 vii Qualquer que seja o esforço empreendido pelo adulto para definila a criança será sempre bricolada uma bricolagem de que a criança é capaz de se apropriar e produzir por conta própria a ponto de se encantar com suas próprias produções SCHÉRER HOCQUENGHEM 2016 p 291 Por isso a criança implica uma multiplicidade um arranjo fragmentário e dispersivo em vez de referirse a uma unidade personológica faltosa a uma individualidade definida pela incompletude em relação ao ideal de humano viii René Schérer e Guy Hocquenghem 2016 p 155156 desenvolvem o conceito de sequestro para problematizar o lugar das crianças nas sociedades modernas O sequestro é uma relação entre adultos em que a criança se apresenta apenas como objeto supostamente precioso para seus pais único alvo de barganha Por decorrência o sequestro não faz mais que reproduzir as relações sociais existentes enquanto prática que se estabelece sobre as crianças consideradas como valor de troca na sociedade adulta ix Inspirados por Walter Benjamin 1987 procuramos nesse ensaio investir a narratividade dos contos de fadas contra a transcendência e o ascetismo das estruturações míticas do pensamento Dessa maneira pretendemos atacar a mitologia da infância invenção moderna ARIÈS 1988 fabulando criancerias KATZ 1996 como paisagens existenciais que questionam a idealidade do homem adulto como ser acabado ou meta de plenitude A criança pode assim figurar como afirmação inventiva movimento de criação de valores NIETZSCHE 2008 x Sobre o não tocar como princípio pedagógico que orienta a relação entre adultos e crianças no mundo ocidental ver as críticas análises de Georges Lapassade e René Schérer 1982 xi Corpo não corresponde a organismo em nossa concepção Em vez de delimitação e estruturação o corpo remete fundamentalmente a composição e potência Por isso o corpo da criança se orienta muito mais para o inumano ou sobrehumano do que para a emergência do homem em si SCHÉRER HOCQUENGHEM 2016 xii Os incorporais são efeitos dos choques entre os corpos resultados das ações e paixões corporais constituem acontecimentos como um tipo de transformação da realidade distinto das mudanças corporais DELEUZE 2007 DELEUZE GUATTARI 1995 Por exemplo a mudança imediata de faixa etária que ocorre em função do acontecimento aniversário é distinta da modificação corporal mediada por uma série de relações com outros corpos e que resulta em processos de crescimento maturação adoecimento envelhecimento dentre outros xiii Compreendese a produção de verdade a partir de convenções discursivas tramadas coletivamente e implicando a exclusão de outras possíveis verdades como enunciados falsos A mútua exclusão entre verdadeiro e falso bem como a necessidade de um acordo coletivo como substrato da verdade são discutidas por Nietzsche 2001 xiv Infância é a arte de se manter sempre fora de alcance de confundir a lógica adulta pela rapidez de seus deslocamentos À maneira de um rascunho ou de um esboço a Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 24 criança é permanentemente arrancada de cada uma das intervenções que a circunscrevem O essencial é saber se colocar na posição precisa de recolhêla SCHÉRER HOCQUENGHEM 2016 p 190 xv Pensar a bicha implica menos uma imagem identidade e mais as virtualidades de um devir ao mesmo tempo situado e abstrato Zamboni 2016 aposta na bicha como uma potência éticoestética que sacode certezas nos dispositivos de gênero e sexualidade Para nós a bicha não se define pelas suas relações sexuais mas antes pensamos no quanto essa figura variante coloca em evidência impossibilidades nos arranjos centrados da normatividade pretensamente natural da heterossexualidade Como Beatriz Preciado 2014 argumenta a heterossexualidade deve ser a todo o momento reafirmada e produzida em larga escala para se garantir como natural daí portanto a importância da bicha como esse corpo ativamente envolvido no escracho e no escárnio dessa natureza heterocentrada É nesse sentido que usamos ao longo do texto o conceito de bicha xvi Schérer e Hocquenghem 2016 definem o monstro como aquele que se mostra aquele que se aponta na rua ao contrário dos familiares que habitam a intimidade do privado É o monstro que possibilita à criança por meio do rapto a fuga das instituições que a cerceiam A monstruosidade incide em todo sujeito que ousa entrar em contato com as crianças fora dos circuitos codificados e instituídos da família e da escola principalmente sendo logo identificados como perigosos xvii Lev Vigotski 1999 2010 ressaltando a composição estética da fábula ataca a suposta dependência da literatura em relação à moral a uma ideia por trás ou para além do texto Nesse sentido lembra como as crianças subvertem a moral das histórias infantis assumindo perspectivas diversas e produzindo uma multiplicidade de sentidos a partir dos afetos produzidos pela fábula Para Benjamin 1987 a potência e a vitalidade da narrativa dependem do fato de não haver recurso a explicações psicológicas para as ações de maneira que não se pode determinar um único sentido ou explicação cabal para a história sendo possível conviverem infinitas interpretações Na fábula ou na narrativa encontramos resistência a deixaremse tornar meros veículos seja para uma ideia moral seja para uma informação de fatos Há portanto uma dimensão estética criadora de valores a partir dos afetos que resiste à significação de uma moral na elaboração discursiva xviii As crianças sempre terão medo do escuro os homens de mente sensível ao impulso hereditário sempre tremerão ao pensamento de mundos ocultos e insondáveis de vida diferente que quem sabe pulsam nos abismos além das estrelas ou sinistramente oprimem o nosso próprio globo em dimensões perversas que somente os mortos e os dementes podem vislumbrar LOVECRAFT 1987 p 4 xix O corpo desbotado era tão desbotado que impossibilitava o reconhecimento de sua idade ou gênero Desbotou porque gastava muito corpo Vive sempre lutando às vezes vigoroso mas sempre em alerta Esmaeceu a pele devido aos usos táticas desusos astúcias utilizados no presente e no passado em séculos de enfrentamentos BAPTISTA 1999 p 196 Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 25 xx Em qualquer lugar do mundo onde as fronteiras são porosas a infância desvencilha da faca na garganta o céu é visto repleto de imagens de animais de objetos e pessoas de mares e rios de pedaços incompletos de dores e alegrias Imagens que cintilam como estrelas Nesta constelação o passado o presente e o futuro brilham juntos mudam de cor e tamanho A origem e o fim de qualquer trama extinguemse No infinito do céu o tempo é inquieto como a chama soprada pelo vento A faca cravada na garganta da infância é difícil de retirar disse diz e dirá o homem Sem a faca ele tornase o atrevimento de uma arte cruel BAPTISTA 2016 p 42 xxi Schérer LAPASSADE SCHÉRER 1982 SCHÉRER 1983 discute o desejo de morte das crianças que afeta as famílias as escolas e as instituições modernas A DÍVIDA IMPAGÁVEL Denise Ferreira da Silva 33 Por onde começar Desde onde começar a tarefa de expor capturar e dissolver de apresentar o que excede e desafia o pensamento A preocupação que tece o fio que liga os ensaios aqui coletados de uma certa forma sinaliza a impossibilidade indicada por estas perguntas Na verdade é possível dizer que esta compartilha da mesma incompreensibilidade e improbabilidade que tento capturar na imagem poética negra feminista que dá nome a esta coletânea Pois como uma imagem antidialética A Divida Impagável não faz mais do que registrar ao tentar interromper o desdobrar da lógica perversa que oclui a maneira como desde o fim do século XIX a racialidade opera como um arsenal ético em conjunto por dentro ao lado e semprejá adiante das arquiteturas jurídicoeconômicas que constituem o par EstadoCapital Esta lógica perversa a qual chamo de dialética racial tem me ocupado por mais de trinta anos Desde o início quando era estudante no programa de Mestrado em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro e trabalhava como pesquisadora no Centro de Estudos AfroAsiáticos CEAA sob a direção de Carlos Hasenbalg a minha atenção se voltou à representação moderna como momento significativo da subjugação racial Já o título da dissertação de mestrado que defendi em 1991 desenvolvida sob a orientação de Yvonne Maggie O Negro na Modernidade Cor e Exclusão Simbólica na Novela das Oito indica uma apreensão transversal dos conteúdos de um treinamento acadêmico no IFCS e no CEAA que combinava Estudos AfroBrasileiros Yvonne Maggie e Sociologia das Relações Raciais Carlos Hasenbalg Em vez de desenvolver um estudo de audiência ou de texto que explicaria as ideias sobre a negridade que justificariam o fato de as novelas da época empregarem um número insignificante de atores negros e a maioria nos papéis típicos de empregada doméstica ou bandido Eu reverti o movimento analítico e DiAntes do Texto 34 35 para fazer o doutorado eu acompanhei as revoltas em Los Angeles em resposta à absolvição dos policiais que bateram em Rodney King No ano seguinte 1993 acompanhei de longe a revolta dos residentes de Vigário Geral em resposta ao assassinato de 21 pessoas por policiais militares Outros casos de violência policial no Brasil e nos Estados Unidos os quais receberam mais ou menos atenção Entre eles a tortura de Abner Loima por policiais de New York em 1997 e o caso de Amadou Diallo o qual foi morto com 41 tiros dados a queima roupa por quatro membros da Street Crime Unit do Departamento de Polícia de New York em fevereiro de 1999 A lista continua Nos vinte anos que separam aquele evento racial e este momento em que escrevo esta introdução muitos outros homens e mulheres jovens idosos e crianças negras foram mortas ou deixadas morrer pela polícia e outras instituições de aplicação da lei Na maioria desses casos as cortes de administração de justiça não registraram essas mortes como crime em decisões que insistentemente mobilizaram a negridade das vítimas ou dos lugares onde foram mortas como evidência de que a violência total foi uma resposta lógica a uma situação de perigo mortal ou seja o fato de que os que dispararam os tiros se encontravam diante de uma corpo negro ou num território negro Quando se contempla as operações da racialidade num contexto mais amplo global seria quase impossível não concluir que a mesma tem um papel crucial para o capital se a sua ferramenta mais consistentemente empregada no século XX a diferença racial não fosse tão eficaz ao transubstancializar os efeitos de mecanismos coloniais de expropriação em defeitos naturais intelectuais e morais que são sinalizados por diferenças físicas práticas instituições etc Se tomarmos por exemplo os últimos vinte anos é possível compor uma lista longa de eventos globais quase todos relacionados com as guerras locais e regionais que embora causem o deslocamento de populações não parecem ter qualquer efeito sobre a decidi examinar a imagem da sociedade brasileira expressa pela forma como as poucas tramas envolvendo personagens negros foram resolvidas O principal argumento da dissertação de que a representação de negros nas novelas das oito da TV Globo que foram ao ar entre 1979 e 1988 expressava um projeto nacional de modernidade vista como contingente no desaparecimento do negro apesar da então ainda celebrada democracia racial Entre outros argumentos o Negro na Modernidade já apresentava uma versão da ideia que foi desenvolvida na minha tese de doutorado publicada com o título de Toward a Global Idea of Race em 2007 a de que além da lógica da exclusão a explicação sociológica da subjugação racial há uma lógica da obliteração que permeia as ferramentas do conhecimento racial Isto precisamente porque sem ela a construção do sujeito moderno como uma coisa autodeterminada não se sustentaria principalmente após a articulação hegeliana da razão transcendental como Espírito Não há lugar para sumarizar os argumentos desenvolvidos nestes dois textos aqui Só os menciono porque a mim surpreende o fato de que a mesma preocupação anima textos tão diferentes e que respondem a circunstâncias aparentemente diferentes como a minha dissertação de mestrado Rio de Janeiro nos anos 80 a tese de doutorado Estados Unidos nos anos 90 e os experimentos poéticos escritos nos últimos 5 anos que compõem este volume Infelizmente os processos nacionais e globais por traz desta preocupação não são surpreendentes Ao contrário Já nos meados dos anos 80 a violência policial encabeçava a minha lista de evidências de subjugação racial Para mim pelo menos fazia sentido pois eu pertenço à geração de adolescentes negras que viu aumentar no final dos anos 70 a incidência de mortes de jovens negros devido à entrada de armas automáticas e cocaína e à violência policial nas comunidades economicamente defasadas dos morros e periferias da cidade do Rio de Janeiro Em 1992 quando tinha acabado de chegar aos Estados Unidos para onde fui 36 37 começa com o reconhecimento de que o conceito do racial refigura ao nível do simbólico a violência total colonial que sustenta a expropriação monetária e simbólica da capacidade produtiva de terras e corpos nãoeuropeus e porque ele carrega em si este efeito do racial este modo de intervenção a poética negra feminista pode se dar ao luxo de violar a regras do pensamento moderno Na verdade qualquer análise séria do modo corrente de operação do duo EstadoCapital exige uma atenção à gramática racial porque esta organiza o espaço global orientado pela realização da necessidade de dirimir e dissipar os efeitos da racialidade A poética negra feminista vislumbra a impossibilidade da justiça a qual desde a perspectiva do sujeito racial subalterno requer nada mais nada menos do que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido isto é do Mundo Ordenado diante do qual decolonização ou a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos é tão improvável quanto incompreensível O que está em disputa O que precisará ser renunciado para conseguirmos libertar a capacidade criativa radical da imaginação e dela obtermos o que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo outramente Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma Os primeiros pensadores da filosofia natural Galileu 15641642 e Descartes 15961650 e da física clássica Newton 16431727 herdaram a visão da Antiguidade sobre a matéria a noção que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam presentes no pensamento como solidez extensão peso gravidade e movimento no espaço e no tempo De qualquer maneira a afirmação de que a mente humana é capaz de conhecer as propriedades dos corpos com certeza isto é sem a mediação do divino regente e autor do Livro da Natureza baseouse em Os Três Pilares Ontoepistemológicos expropriação e exploração de terras e corpos Nesta lista eu incluo por exemplo a invasão do Afeganistão e do Iraque no início deste século os conflitos incessantes na República Democrática do Congo e depois no Sudão Nigéria Etiópia Eritreia e agora a guerra na Síria Yemen e outros conflitos de baixa intensidade midiática que se observam no Haiti Jamaica Colômbia Venezuela México e nas comunidades economicamente despossuídas no Brasil e Estados Unidos Em combinação com os desastres causadas pelo aquecimento global e pelas políticas neoliberais implementadas pelos governos estas guerras estão por traz da última crise a atingir a Europa a crise dos refugiados a qual entre outras coisas facilitou tanto um endurecimento do aparato de policiamento das fronteiras como o crescimento de discursos e práticas que mobilizam uma forma letal branca de política de identidade De uma certa forma A Divida Impagável oferece uma recomposição possível desta preocupação Em vez de fornecer uma análise de casos específicos ou uma crítica das instituições de aplicação da lei o que faço em outros textos minha manobra aqui é começar com e de uma certa forma aceitar o fato de que a justiça falha diante de corpos e territórios negros os quais ela só pode conceber como excessivamente violentos e desde aí prosseguir com uma exploração das possibilidades abrigadas por esta construção Nesta recomposição este livro também ativa um modo de intervenção a poética negra feminista o qual não somente expõe a perversidade da lógica que transubstancia os resultados da violência total característica da arquitetura colonial em atributos naturais significados por corpos negros mas identifica e mobiliza o excesso que sustenta a lógica como um índice de uma outra imagem do mundo e das possibilidades que esta abriga Este modo de intervenção porque preocupado compelos limites da justiça não precisa levar em consideração as limitações do pensar impostas pelos pilares ontoepistemológicos do pensamento moderno Porque 38 39 tornar também um descritor das condições humanas assim constituindo uma ameaça letal ao ideal da liberdade humana Porém dois elementos entrelaçados do programa kantiano continuam a influenciar projetos epistemológicos e éticos contemporâneos a separabilidade isto é a ideia de que tudo o que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas espaço e tempo da intuição e as categorias do Entendimento quantidade qualidade relação modalidade todas as demais categorias a respeito das coisas do mundo permanecem inacessíveis e portanto irrelevantes para o conhecimento e consequentemente b determinabilidade a ideia de que o conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados para determinar isto é decidir a verdadeira natureza das impressões sensíveis reunidas pelas formas da intuição Algumas décadas depois da publicação das principais obras de Kant Hegel 17771831 tratou da ameaça à liberdade com um sistema filosófico responsável por inverter o programa kantiano através de um método dialético que atingiu dois objetivos a a noção de atualização actualization em que corpo e mente espaço e tempo Natureza e Razão são duas manifestações da mesma entidade a saber o Espírito ou a Razão enquanto Liberdade e b a noção de sequencialidade que descreve o Espírito como movimento no tempo um processo de autodesenvolvimento e a História como a trajetória do Espírito Com essas manobras ele introduz uma versão temporal da diferença cultural representada pela atualização dos diferentes momentos do desenvolvimento do Espírito e postula que as configurações sociais da Europa pósIluminista são o ápice do desenvolvimento do Espírito duas rupturas com a filosofia escolástica Em primeiro lugar os filósofos do século XVII que se autodenominavam modernos criaram um programa do conhecimento preocupado como o que chamaram de causas secundárias eficientes do movimento que geram transformações na aparência das coisas na natureza e não com as causas primordiais finais das coisas ou com o propósito finalidade de sua existência Em segundo em vez de se basearem na necessidade lógica de Aristóteles 384322 aC para garantirem a exatidão de suas descobertas filósofos como Galileu se apoiaram na necessidade característica da matemática ou mais precisamente nas demonstrações geométricas como base para a certeza Indiscutivelmente esses filósofos herdaram textos anteriores sobre a excepcionalidade do Homem sua alma seu livre arbítrio sua capacidade de raciocínio etc No século XVII contudo Descartes introduziu uma separação entre a mente e o corpo em que a mente humana por causa de sua natureza formal adquire a capacidade de determinar a verdade tanto sobre o corpo do homem quanto sobre qualquer coisa que compartilhe seus atributos formais como solidez extensão e peso Essa separação é justamente o que o sistema filosófico de Kant desenvolvido a partir do programa de Newton consolida especialmente a ideia de que o conhecimento é responsável por identificar as forças ou leis limitantes que determinam o que ocorre nas coisas e eventos fenômenos observados1 A arquitetura de um sistema que era sustentado primordialmente pelos poderes da razão e não pelo divino criador justamente o objetivo alcançado por Kant incomodou seus contemporâneos Os últimos viam a possibilidade da determinação formal se 1 Ver KANT Immanuel Critique of Pure Reason Cambridge Cambridge University Press 1998 Em português KANT Immanuel Crítica da razão pura 7a ed Trad Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2010 40 41 do homem Além dos traços externos usados no mapeamento da natureza conduzido pela História Natural os autoproclamados cientistas do homem desenvolveram suas próprias ferramentas formais isto é ferramentas matemáticas como o índice facial para medir corpos humanos esta que se tornaria a base da descrição e da classificação dos atributos mentais dos homens tanto morais quanto intelectuais em uma escala que supostamente registraria o grau de desenvolvimento cultural Segundo no século XX o físico convertido em antropólogo Franz Boas 18581942 previsivelmente executa uma mudança importante no conhecimento da condição humana ao argumentar que os aspectos sociais em vez dos biológicos explicam a variação dos conteúdos mentais morais e intelectuais Dessa maneira ele articula um conceito da diferença cultural que abriga aspectos temporais e espaciais Segundo Boas o estudo dos conteúdos mentais deveria abordar as formas culturais ou padrões de pensamento que surgiram nos primeiros momentos da existência de uma coletividade e foram manifestados pelas crenças e práticas de seus integrantes Ao irromper e consolidarse no tempo ele argumenta as formas culturais não físicas explicam as diferenças mentais perceptíveis morais e intelectuais A escola antropológica inaugurada por ele ou seja a antropologia cultural marcou uma mudança metodológica isto é uma ruptura com as visões etnocêntricas da diferença humana que ecoa com uma mudança importante na física a saber o princípio da relatividade de Einstein2 Na segunda metade do século XX em meados da década de 1970 encontramos a física de partículas no trabalho do filósofo francês Michel Foucault 19261984 abrindo novas perspectivas para o pensamento crítico Foucault estabelece 2 KROEBER Alfred Anthropology Nova York Harcourt and Brace 1948 p1 O Pensar da Diferença Cultural Desde a consolidação do programa kantiano no contexto pós Iluminista a física forneceu modelos para estudos científicos sobre as condições humanas uma tarefa facilitada pela narrativa de Hegel sobre o tempo enquanto a força produtiva e o teatro do conhecimento e da moralidade Infelizmente esses modelos foram bemsucedidos justamente devido ao fato desses textos sobre o humano como uma coisa social terem como base as mesmas rupturas em relação à filosofia medieval precisamente o que sustentou a reivindicação dos filósofos modernos por um conhecimento com certeza isto é a partir de causas eficientes e demonstrações matemáticas que são a base do texto moderno A dialética racial ativada pelas reações ao fluxo de refugiados em direção à Europa é apenas uma repetição do texto moderno Além de persistir na reivindicação da certeza seus enunciados sobre a verdade firmamse sobre os mesmos pilares separabilidade determinabilidade e sequencialidade montados por filósofos modernos para sustentar seu programa de conhecimento Deixe me rever brevemente dois momentos de confecção das ferramentas da dialética racial Primeiro a ciência da vida tal como definida inicialmente por George Cuvier 17691832 embora modelada a partir da filosofia natural de Newton ainda se baseava tanto no modelo descritivo articulado no princípio da história natural quanto introduzia a Vida como causa eficiente e final das coisas vivas Posteriormente no século XIX depois que Darwin 18091882 divulgou suas descrições da Natureza viva em que a diferenciação irrompe como resultado do princípio racional uma causa eficiente que opera no tempo através da força ou seja o princípio da seleção natural ou como resultado da luta pela sobrevivência a ciência da vida passaria a conduzir um programa do conhecimento da existência humana isto é a antropologia do século XIX ou a ciência 42 43 Ao acompanhar as mais recentes reações da Europa em relação à crise dos refugiados vemos como a diferença cultural descreve o mundo contemporâneo atolado no medo e na incerteza a identidade Étnica cria esta situação através dos enunciados que nomeiam o Outro ameaçador isto é os que buscam refúgio na Europa por causa das guerras no Oriente Médio da instabilidade política no Leste e no Norte da África e dos conflitos estimulados pela exploração dos recursos naturais no Oeste da África No Brasil enquanto isso este cenário é manifestado pelos que derrubaram o governo da presidenta Dilma Rousseff e pelo governo atual que está destruindo todos os ganhos sociais dos últimos cem anos e em particular daqueles que só recentemente tiveram seus direitos reconhecidos com base em sua identidade de gênero sexual racial e religiosa social Em ambos os casos a diferença cultural sustenta um discurso moral cujo pilar é o princípio da separabilidade Esse princípio considera o social um todo composto de partes formalmente independentes Cada uma dessas partes por sua vez constitui tanto uma forma social quanto unidades geográfica e historicamente separadas que como tal ocupam posições diferentes perante a noção ética da humanidade identificada com as particularidades das coletividades brancoeuropeias Por isso a intenção poética negra feminista segue a trilha aberta por perguntas como E se em vez de o Mundo Ordenado imageássemos cada coisa existente humano e maisquehumano como expressões singulares de cada um dos outros existentes e também do tudo implicado em quecomo elas existem ao invés de como formas separadas que se relacionam através da mediação de forças E se em vez de procurar por modelos na física de partículas capazes de produzir análises mais científicas e críticas do social nos concentrássemos em suas descobertas mais perturbadoras por exemplo a nãolocalidade como princípio epistemológico e a virtualidade como descritor ontológico O Mundo Implicado por exemplo uma distinção entre o modo de operação do poder jurídicopolítico que se assemelha aos acontecimentos envolvendo corpos maiores tal como expresso nas leis do movimento de Newton e o que ele chama de microfísica do poder que atua primordialmente através da linguagem do discurso e das instituições3 A segunda perspectiva descreve o poderconhecimento como o produtor dos seus próprios sujeitos e objetos e ao atuar no nível do desejo assim como os experimentos da mecânica quântica que inspiraram o princípio da incerteza de Heisenberg mostra como o aparato determina os atributos das partículas em observação Durante séculos como esses exemplos indicam avanços na física pósclássica isto é a relatividade e a mecânica quântica foram cruciais para o desenvolvimento de abordagens teóricas e metodológicas no estudo das questões econômicas jurídicas éticas e políticas que tanto produziram quanto reafirmaram as diferenças humanas4 Infelizmente no entanto tais avanços ainda não inspiraram imagens da diferença sem separabilidade seja a diferença espaçotemporal como nas coletividades culturais Boas ou a diferença formal como no sujeito discursivamente produzido Foucault Previsivelmente eles aprofundaram ainda mais a ideia de cultura e os conteúdos mentais referidos pela mesma como expressões de uma separação fundamental entre grupos humanos em relação à nacionalidade etnicidade e identidade de gênero sexual e racial social 3 Ver por exemplo FOUCAULT Michel Discipline and Punish Nova York Vintage Books 1977 em português FOUCAULT Michel Vigiar e punir Nascimento da prisão 40a ed Trad Raquel Ramalhete Petrópolis Vozes 2012 4 Os Novos Materialistas também baseiamse nas descobertas da física de partículas Ver COOLE Diana e FROST Samantha New Materialisms Ontology Agency Politics Durham Duke University Press 2010 44 45 palavras às coisas tal como são acessíveis aos sentidos no espaçotempo A nãolocalidade expõe uma realidade mais complexa na qual tudo possui uma existência atual actual espaçotempo e virtual nãolocal Sendo assim por que então não pensar a existência humana da mesma maneira Por que não presumir que além de suas condições físicas corporais e geográficas de existência em sua constituição fundamental no nível subatômico os humanos existam emaranhados com todas as coisas animadas e inanimadas do universo Por que não considerar a diferença humana justamente o que antropólogos e sociólogos dos séculos XIX e XX selecionaram como descritor humano fundamental enquanto efeito tanto das condições do espaçotempo quanto de um programa do conhecimento modelado a partir da física newtoniana a antropologia do século XIX e einsteiniana o conhecimento social científico do século XX no qual a separabilidade é um princípio ontológico privilegiado Sem a separabilidade a diferença entre grupos humanos e entre entidades humanas e não humanas possui poder explicativo e significado ético muito limitados Afinal como a nãolocalidade presume além das superfícies em que a noção dominante da diferença é inscrita tudo no universo coexiste tal como Leibniz 1646 1716 descreve isto é enquanto expressão singular de todas as coisas no universo Sem a separabilidade é impossível reduzir o conhecer e o pensar à determinação tanto na distinção cartesiana entre mentecorpo na qual o segundo tem o poder de determinar quanto na redução formal kantiana do conhecimento a um tipo de causalidade eficiente Sem a separabilidade a sequencialidade o pilar ontoepistemológico de Hegel não é capaz de explicar os diversos modos de existência humana no mundo já que a autodeterminação possui uma área muito limitada o espaçotempo de operação Quando a não localidade orienta nosso imagear do universo a diferença não é uma manifestação de um estranhamento irresolúvel mas a como descritores poéticos isto é indicadores da impossibilidade de se compreender a existência com as ferramentas do pensamento que sempre reproduzem a separabilidade e seus pilares a saber a determinabilidade e a sequencialidade Os capítulos que compõem A Divida Impagável vislumbram o que tornase acessível à imaginação o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação Quando em vez da ordem do Sujeito o pensamento atende à infinidade que A Coisa tanto abriga e oferece Aqui as falhas da física de partículas quântica oferecem a possibilidade de pensar fora dos limites da física de corpos clássica Por exemplo o princípio da nãolocalidade sustenta um modo de pensamento que não reproduz as bases metodológicas e ontológicas do sujeito moderno isto é a temporalidade linear e a separação espacial Justamente porque rompe essas articulações do tempo e do espaço a nãolocalidade nos permite imaginar a socialidade de tal maneira que contemplar a diferença não pressupõe separabilidade determinabilidade e sequencialidade os três pilares ontológicos que sustentam o pensamento moderno No universo nãolocal o deslocamento movimento no espaço e a relação conexão entre coisas espacialmente separadas não descrevem o que acontece porque as partículas implicadas entangled isto é todas as partículas existentes existem umas com as outras sem espaçotempo Embora os comentários de Kant sobre o que na Coisa é irrelevante para o conhecimento dispensem considerações metafísicas também sugerem que a realidade descrita na física de Newton e mais tarde na de Einstein 18791955 é um retrato limitado do Mundo porque se refere apenas aos fenômenos em outras Sobre Diferença Sem Separabilidade 46 47 do excesso nos moldes da gramática do Sujeito o argumento movese em direção a A Coisa diante da qual a indiferença ética que justifica o excesso que é violência racial revelase como uma resposta à possibilidade de existir e pensar outramente Aqui o corpo sexual da nativaescrava figura a posição desde a qual o pensamento atende a A Coisa Não como um significante mas por ser sistematicamente rejeitado como significante de qualquer expressão ou atualização do Sujeito O capítulo seguinte Para Uma Poética Negra Feminista A Questão da Negridade Para o Fim do Mundo prossegue com a exploração desta possibilidade indicada pelo corpo sexual da nativaescrava através da delimitação da postura de intervenção que atende ao Mundo Ordenado mas em vez de tentar recompôlo como tal a poética negra feminista retraça enunciados que exibem como este emerge desde uma premissa de profunda separação do Sujeito do Mundo Lendo a negridade contra a corrente de sua função como categoria torna possível atender à separabilidade que inaugura o Sujeito mas em vez de uma manobra que tentaria recuperar suas promessas universalistas ou transcendentais a poética negra feminista retorna ao Mundo e experimenta com a descrição da existência sob a imagem do Mundo Implicado ou Corpus Infinitum Os capítulos seguintes prosseguem com a ativação da capacidade dual da negridade como categoria e referente através de experimentos de pensamento que atendem às duas cenas do Sujeito a cena ética e a cena econômica onde a dialética racial opera como um mecanismo dos pilares do pensamento moderno O terceiro capítulo 1 VIDA 0 NEGRIDADE OU Sobre a Matéria para Além da Equação de Valor confronta a violência racial diretamente Em vez de registrar e tentar deslocar a indiferença à mobilização de violência total contra corpos e territórios negros aqui eu ativo a capacidade interruptiva da negridade e torno sua falta de valor ético em uma ferramenta analítica a qual mobiliza a determinabilidade capaz de expressão de uma implicação elementar Isto é quando o social reflete o Mundo Implicado a socialidade não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes separados mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais virtuais do universo ou seja como Corpus Infinitum Os ensaios que compõem A Divida Impagável não fazem mais do que aproximar a esta imagem do Mundo sem separabilidade e os outros pilares ontoespistemológicos que esta necessita e através dos quais opera Por isso este volume não oferece nem uma teoria nem um método Em vez desses elementos comuns no pensamento moderno o modelo de intervenção que o organiza simplesmente manifesta uma postura de pensamento que não move para aprender decidir e dominar o que contempla Ao contrário porque já começa com a premissa de uma implicabilidade fundamental a todos os níveis o olhar analítico manifestado nestes textos é mobilizado pelo o que atende e por isso sua intencionalidade já esta também mediada ou seja cada movimento do texto cada elemento articulado para formar um argumento está profundamente afetado Desde esta posição já comprometido com o que ainda está para oferecer e com aquilo do qual parte cada capítulo endereça e enfoca de uma maneira específica num aspecto da ordem do pensamento moderno O primeiro capítulo A Ser Anunciado Uma Práxis Radical ou Conhecer nos Limites da Justiça começa por situar a questão da justiça no momento do conhecer mas o faz num movimento contrário ao do conhecimento moderno Quero dizer em vez de seguir o procedimento usual e tentar reconstituir o que examina a saber a violência contra o outro racial como expressão Pela Frente 48 desfazer o texto ético moderno Aqui também esta capacidade interruptiva não leva à delimitação de um outro terreno onde a aplicação das formalizações que constituem o Mundo Ordenado poderia finalmente tornar a justiça universal Porque a coerência do texto moderno depende da oclusão da negridade como índice ético e econômico quando esta última é ativada na decomposição da formulação ética a equação do valor não faz mais do que sinalizar a possibilidade de figurar o Mundo sem determinação ou O último capítulo A Dívida Impagável Lendo Cenas de Valor Contra a Flecha do Tempo dá prosseguimento ao engajamento com as cenas ética e econômica do Sujeito O experimento de pensamento aqui também enfoca as formalizações do pensamento moderno mas em vez da matemática o foco aqui é no processo analítico e em particular na construção dos conceitos e na delimitação do escopo da teoria do capital à qual estes pertencem Numa confrontação direta com o materialismo histórico volto minha atenção a como a sequencialidade opera na delimitação do conceito que compreende a totalidade do modo capitalista de produção a saber o trabalho assalariado O foco central aqui é como a temporalidade linear opera na construção dos conceitos do materialismo histórico de forma a ocluir a colonialidade e a escravidão quero dizer a rejeitar seu poder explanatório do funcionamento do capital propriamente dito mesmo quando aparentemente os inclui Como tudo no Mundo Implicado os ensaios que compõem A Dívida Impagável são nada mais do que um momento o qual registra uma certa configuração de um processo sem fim Eu paro aqui diante deste momento desta versão de um texto que comecei a escrever há mais de trinta anos atrás um texto que continua a ser escrito cada vez que eu compartilho ou outras pessoas compartilham as propostas exercícios e formulações que o compõe IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO Capa Folha de rosto Sumário Ideias para adiar o fim do mundo Do sonho e da terra A humanidade que pensamos ser Referências Sobre o autor Sobre este livro Créditos 3 IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO A primeira vez que desembarquei no aeroporto de Lisboa tive uma sensação estranha Por mais de cinquenta anos evitei atravessar o oceano por razões afetivas e históricas Eu achava que não tinha muita coisa para conversar com os portugueses não que isso fosse uma grande questão mas era algo que eu evitava Quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e companhia recusei um convite para vir a Portugal Eu disse Essa é uma típica festa portuguesa vocês vão celebrar a invasão do meu canto do mundo Não vou não Porém não transformei isso numa rixa e pensei Vamos ver o que acontece no futuro Em 2017 ano em que Lisboa foi capital iberoamericana de cultura ocorreu um ciclo de eventos muito interessante com performances de teatro mostra de cinema e palestras De novo fui convidado a participar e dessa vez nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro faria uma conferência no teatro Maria Matos chamada Os involuntários da pátria Então pensei Esse assunto me interessa vou também No dia seguinte ao da fala do Eduardo tive a oportunidade de encontrar muita gente que se interessou pela estreia do documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra dirigido por Marco Altberg O filme é uma boa introdução ao tema que quero tratar como é que ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos nós construímos a ideia de humanidade Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos justificando o uso da violência 7 A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida trazendoa para essa luz incrível Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra uma certa verdade ou uma concepção de verdade que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história Agora no começo do século XXI algumas colaborações entre pensadores com visões distintas originadas em diferentes culturas possibilitam uma crítica dessa ideia Somos mesmo uma humanidade Pensemos nas nossas instituições mais bem consolidadas como universidades ou organismos multilaterais que surgiram no século XX Banco Mundial Organização dos Estados Americanos OEA Organização das Nações Unidas ONU Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura Unesco Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela mineração Para essa instituição é como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra Se sobrevivermos vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente não comeu e os nossos netos ou tataranetos ou os netos de nossos tataranetos vão poder passear para ver como era a Terra no passado Essas agências e instituições foram configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade E nós legitimamos sua perpetuação aceitamos suas decisões que muitas vezes são ruins e nos causam perdas porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser As andanças que fiz por diferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esse clube da humanidade E fiquei pensando Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção criação existência e liberdade Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam 8 que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem Em vez disso seguimos arrumando um jeito de projetar outras iguais a elas que também poderiam manter a nossa coesão como humanidade Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70 estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias para virar mão de obra em centros urbanos Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos de seus lugares de origem e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral com as referências que dão sustentação a uma identidade vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos Ideias para adiar o fim do mundo esse título é uma provocação Eu estava no quintal de casa quando me trouxeram o telefone dizendo Estão te chamando lá da Universidade de Brasília para você participar de um encontro sobre desenvolvimento sustentável A UnB tem um centro de desenvolvimento sustentável com programa de mestrado Eu fiquei muito feliz com o convite e o aceitei então me disseram Você precisa dar um título para a sua palestra Eu estava tão envolvido com as minhas atividades no quintal que respondi Ideias para adiar o fim do mundo A pessoa levou a sério e colocou isso no programa Depois de uns três meses me ligaram É amanhã você está com a sua passagem de avião para Brasília Amanhã É amanhã você vai fazer aquela palestra sobre as ideias para adiar o fim do mundo No dia seguinte estava chovendo e eu pensei Que ótimo não vai aparecer ninguém Mas para minha surpresa o auditório estava lotado Perguntei Mas todo esse pessoal está no mestrado Meus amigos disseram Que nada alunos do campus todo estão aqui querendo saber essa história de adiar o fim do mundo Eu respondi Eu também Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza Fomos durante muito tempo embalados com a história de que somos a humanidade Enquanto isso enquanto seu lobo não vem 9 fomos nos alienando desse organismo de que somos parte a Terra e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós outra a Terra e a humanidade Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza Tudo é natureza O cosmos é natureza Tudo em que eu consigo pensar é natureza Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi Ele tinha pedido que alguém daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar Quando foi encontrála ela estava parada perto de uma rocha O pesquisador ficou esperando até que falou Ela não vai conversar comigo não Ao que seu facilitador respondeu Ela está conversando com a irmã dela Mas é uma pedra E o camarada disse Qual é o problema Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio na direita tem uma serra Aprendi que aquela serra tem nome Takukrak e personalidade De manhã cedo de lá do terreiro da aldeia as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto Quando ela está com uma cara do tipo não estou para conversa hoje as pessoas já ficam atentas Quando ela amanhece esplêndida bonita com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça toda enfeitada o pessoal fala Pode fazer festa dançar pescar pode fazer o que quiser Assim como aquela senhora hopi que conversava com a pedra sua irmã tem um monte de gente que fala com montanhas No Equador na Colômbia em algumas dessas regiões dos Andes você encontra lugares onde as montanhas formam casais Tem mãe pai filho tem uma família de montanhas que troca afeto faz trocas E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas dão comida dão presentes ganham presentes das montanhas Por que essas narrativas não nos entusiasmam Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante superficial que quer contar a mesma história para a gente Os Massai no Quênia tiveram um conflito com a administração colonial porque os ingleses queriam que a montanha deles virasse um parque Eles se 10 revoltaram contra a ideia banal comum em muitos lugares do mundo de transformar um sítio sagrado num parque Eu acho que começa como parque e termina como parking Porque tem que estacionar esse tanto de carro que fazem por aí afora É um abuso do que chamam de razão Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra Nós a humanidade vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas montanhas e rios Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local alienados de tudo e se possível tomando muito remédio Porque afinal é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter Para que não fiquem pensando que estou inventando mais um mito o do monstro corporativo ele tem nome endereço e até conta bancária E que conta São os donos da grana do planeta e ganham mais a cada minuto espalhando shoppings pelo mundo Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bemestar no mundo todo Os grandes centros as grandes metrópoles do mundo são uma reprodução uns dos outros Se você for para Tóquio Berlim Nova York Lisboa ou São Paulo verá o mesmo entusiasmo em fazer torres incríveis elevadores espiroquetas veículos espaciais Parece que você está numa viagem com o Flash Gordon Enquanto isso a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta nas margens dos rios nas beiras dos oceanos na África na Ásia ou na América Latina São caiçaras índios quilombolas aborígenes a subhumanidade Porque tem uma humanidade vamos dizer bacana E tem uma camada mais bruta rústica orgânica uma subhumanidade uma gente que fica agarrada na terra Parece que eles querem comer terra mamar na terra dormir deitados sobre 11 a terra envoltos na terra A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe Vamos separar esse negócio aí gente e terra essa bagunça É melhor colocar um trator um extrator na terra Gente não gente é uma confusão E principalmente gente não está treinada para dominar esse recurso natural que é a terra Recurso natural para quem Desenvolvimento sustentável para quê O que é preciso sustentar A ideia de nós os humanos nos descolarmos da terra vivendo numa abstração civilizatória é absurda Ela suprime a diversidade nega a pluralidade das formas de vida de existência e de hábitos Oferece o mesmo cardápio o mesmo figurino e se possível a mesma língua para todo mundo Para a Unesco 2019 é o ano internacional das línguas indígenas Todos nós sabemos que a cada ano ou a cada semestre uma dessas línguas maternas um desses idiomas originais de pequenos grupos que estão na periferia da humanidade é deletada Sobram algumas de preferência aquelas que interessam às corporações para administrar a coisa toda o desenvolvimento sustentável O que é feito de nossos rios nossas florestas nossas paisagens Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política que não conseguimos nos erguer e respirar ver o que importa mesmo para as pessoas os coletivos e as comunidades nas suas ecologias Para citar o Boaventura de Sousa Santos a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver nossa experiência como comunidade Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania José Mujica disse que transformamos as pessoas em consumidores e não em cidadãos E nossas crianças desde a mais tenra idade são ensinadas a serem clientes Não tem gente mais adulada do que um consumidor São adulados até o ponto de ficarem imbecis babando Então para que ser cidadão Para que ter cidadania 12 alteridade estar no mundo de uma maneira crítica e consciente se você pode ser um consumidor Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido numa plataforma para diferentes cosmovisões Davi Kopenawa ficou vinte anos conversando com o antropólogo francês Bruce Albert para produzir uma obra fantástica chamada A queda do céu Palavras de um xamã yanomami O livro tem a potência de mostrar para a gente que está nessa espécie de fim dos mundos como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar uma cosmovisão habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial em que tudo ganha um sentido As pessoas podem viver com o espírito da floresta viver com a floresta estar na floresta Não estou falando do filme Avatar mas da vida de vinte e tantas mil pessoas e conheço algumas delas que habitam o território yanomami na fronteira do Brasil com a Venezuela Esse território está sendo assolado pelo garimpo ameaçado pela mineração pelas mesmas corporações perversas que já mencionei e que não toleram esse tipo de cosmos o tipo de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os Yanomami é capaz de produzir Nosso tempo é especialista em criar ausências do sentido de viver em sociedade do próprio sentido da experiência da vida Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo de dançar de cantar E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança canta faz chover O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer tanta fruição de vida Então pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história Se pudermos fazer isso estaremos adiando o fim É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo não como uma metáfora mas como fricção poder contar uns com os outros Poder ter um encontro como este aqui em Portugal e ter uma audiência tão 13 essencial como vocês é um presente para mim Vocês podem ter certeza de que isso me dá o maior gás para esticar um pouco mais o início do fim do mundo que se me apresenta E os provoco a pensar na possibilidade de fazer o mesmo exercício É uma espécie de tai chi chuan Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo é só empurrálo e respirar Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização que queria acabar com o seu mundo Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando reivindicando e desafinando o coro dos contentes Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles com o objetivo de transformálos em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade Muitas dessas pessoas não são indivíduos mas pessoas coletivas células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo Às vezes os antropólogos limitam a compreensão dessa experiência que não é só cultural Eu sei que tem alguns antropólogos aqui na sala não fiquem nervosos Quantos perceberam que essas estratégias só tinham como propósito adiar o fim do mundo Eu não inventei isso mas me alimento da resistência continuada desses povos que guardam a memória profunda da terra aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo Nesse livro e em As veias abertas da América Latina ele mostra como os povos do Caribe da América Central da Guatemala dos Andes e do resto da América do Sul tinham convicção do equívoco que era a civilização Eles não se renderam porque o programa proposto era um erro A gente não quer essa roubada E os caras Não toma essa roubada Toma a Bíblia toma a cruz toma o colégio toma a universidade toma a estrada toma a ferrovia toma a mineradora toma a porrada Ao que os povos responderam O que é isso Que programa esquisito Não tem outro não Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar Cair cair cair Então por 14 que estamos grilados agora com a queda Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos Há centenas de narrativas de povos que estão vivos contam histórias cantam viajam conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo somos parte do todo Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente Em 2018 quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil me perguntaram Como os índios vão fazer diante disso tudo Eu falei Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo eu estou preocupado é com os brancos como que vão fazer para escapar dessa A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil que falam mais de 150 línguas e dialetos Nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro gosta de provocar as pessoas com o perspectivismo amazônico chamando a atenção exatamente para isto os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência Muitos outros também têm Cantar dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte não o horizonte prospectivo mas um existencial É enriquecer as nossas subjetividades que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir Se existe uma ânsia por consumir a natureza existe também uma por consumir subjetividades as nossas subjetividades Então vamos vivêlas com a liberdade que formos capazes de inventar não botar ela no mercado Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável vamos pelo menos ser capazes de manter nossas subjetividades nossas 15 visões nossas poéticas sobre a existência Definitivamente não somos iguais e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro como constelações O fato de podermos compartilhar esse espaço de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças que deveriam guiar o nosso roteiro de vida Ter diversidade não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos 16 DO SONHO E 19 Desde o Nordeste até o leste de Minas Gerais onde fica o rio Doce e a reserva indígena das famílias Krenak e também na Amazônia na fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia no Alto Rio Negro em todos esses lugares as nossas famílias estão passando por um momento de tensão nas relações políticas entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas Essa tensão não é de agora mas se agravou com as recentes mudanças políticas introduzidas na vida do povo brasileiro que estão atingindo de forma intensa centenas de comunidades indígenas que nas últimas décadas vêm insistindo para que o governo cumpra seu dever constitucional de assegurar os direitos desses grupos nos seus locais de origem identificados no arranjo jurídico do país como terras indígenas Não sei se todos conhecem as terminologias referentes à relação dos povos indígenas com os lugares onde vivem ou as atribuições que o Estado brasileiro tem dado a esses territórios ao longo da nossa história Desde os tempos coloniais a questão do que fazer com a parte da população que sobreviveu aos trágicos primeiros encontros entre os dominadores europeus e os povos que viviam onde hoje chamamos de maneira muito reduzida de terras indígenas levou a uma relação muito equivocada entre o Estado e essas comunidades É claro que durante esses anos nós deixamos de ser colônia para constituir o Estado brasileiro e entramos no século XXI quando a maior parte das previsões apostava que as populações indígenas não sobreviveriam à 20 ocupação do território pelo menos não mantendo formas próprias de organização capazes de gerir suas vidas Isso porque a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia e onde sobrevivem os modos que cada uma dessas pequenas sociedades tem de se manter no tempo dando conta de si mesmas sem criar uma dependência excessiva do Estado O rio Doce que nós os Krenak chamamos de Watu nosso avô é uma pessoa não um recurso como dizem os economistas Ele não é algo de que alguém possa se apropriar é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização com toda essa pressão externa Falar sobre a relação entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas a partir do exemplo do povo Krenak surgiu como uma inspiração para contar a quem não sabe o que acontece hoje no Brasil com essas comunidades estimadas em cerca de 250 povos e aproximadamente 900 mil pessoas população menor do que a de grandes cidades brasileiras O que está na base da história do nosso país que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza O Watu esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce entre Minas 21 Gerais e o Espírito Santo numa extensão de seiscentos quilômetros está todo coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de resíduos o que nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma Faz um ano e meio que esse crime que não pode ser chamado de acidente atingiu as nossas vidas de maneira radical nos colocando na real condição de um mundo que acabou Neste encontro estamos tentando abordar o impacto que nós humanos causamos neste organismo vivo que é a Terra que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência Em diferentes lugares do mundo nos afastamos de uma maneira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos povos já nem é percebido Atravessamos continentes como se estivéssemos indo ali ao lado Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para outro que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos Sentimonos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos não para salvar os outros mas para salvar a nós mesmos Há trinta anos a ampla rede de relações em que me integrei para levar ao conhecimento de outros povos de outros governos as realidades que nós vivíamos no Brasil teve como objetivo ativar as redes de solidariedade com os povos nativos 22 O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar porque se durante um tempo éramos nós os povos indígenas que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa o mundo acredita que tudo é mercadoria a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria significando que ela é tudo o que está fora de nós Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares em algumas situações regionais nas quais a política o poder político a escolha política compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços ainda são digamos protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas dos rios das montanhas nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças Porque se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa sentir até em alguns períodos que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos é por estarmos mais uma vez diante do dilema a que já aludi excluímos da vida localmente as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria pondo em risco todas as outras formas de viver pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade que exclui todas as outras e todos os outros seres Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também 23 o nosso avô que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô a avó a mãe o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra O nome krenak é constituído por dois termos um é a primeira partícula kre que significa cabeça a outra nak significa terra Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados das nossas memórias de origem que nos identifica como cabeça da terra como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão sem essa profunda comunhão com a terra Não a terra como um sítio mas como esse lugar que todos compartilhamos e do qual nós os Krenak nos sentimos cada vez mais desraigados desse lugar que para nós sempre foi sagrado mas que percebemos que nossos vizinhos têm quase vergonha de admitir que pode ser visto assim Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado as pessoas dizem Isso é algum folclore deles quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia vai ser um dia próspero um dia bom eles dizem Não uma montanha não fala nada Quando despersonalizamos o rio a montanha quando tiramos deles os seus sentidos considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe a Terra resulta que ela está nos deixando órfãos não só aos que em diferente graduação são chamados de índios indígenas ou povos indígenas mas a todos Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática a nossa ação e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida em qualquer lugar superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída que em última 24 instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias segurança e consumo Como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos que têm tanta origem comum mas que se descolaram a ponto de termos hoje num extremo gente que precisa viver de um rio e no outro gente que consome rios como um recurso A respeito dessa ideia de recurso que se atribui a uma montanha a um rio a uma floresta em que lugar podemos descobrir um contato entre as nossas visões que nos tire desse estado de não reconhecimento uns dos outros Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra eu queria comunicar a vocês um lugar uma prática que é percebida em diferentes culturas em diferentes povos de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia Para algumas pessoas a ideia de sonhar é abdicar da realidade é renunciar ao sentido prático da vida Porém também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos nos quais pode buscar os cantos a cura a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho mas que ali estão abertas como possibilidades Fiquei muito apaziguado comigo mesmo hoje à tarde quando mais de uma colega das que falaram aqui trouxeram a referência a essa instituição do sonho não como uma experiência onírica mas como uma disciplina relacionada à formação à cosmovisão à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado de autoconhecimento sobre a vida e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas Alusão ao rompimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco controlada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton em novembro de 2015 Foram lançados no meio ambiente cerca de 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro o que desencadeou efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas incluindo as aldeias Krenak N E 25 26 A HUMANIDADE QUE PENSAMOS SER Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência Se a gente desestabilizar esse padrão talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura como se caíssemos num abismo Quem disse que a gente não pode cair Quem disse que a gente já não caiu Houve um tempo em que o planeta que chamamos Terra juntava os continentes todos numa grande Pangeia Se olhássemos lá de cima do céu tiraríamos uma fotografia completamente diferente do globo Quem sabe se quando o astronauta Iúri Gagárin disse a Terra é azul ele não fez um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós pensamos ser Ele olhou com o nosso olho viu o que a gente queria ver Existe muita coisa que se aproxima mais daquilo que pretendemos ver do que se podia constatar se juntássemos as duas imagens a que você pensa e a que você tem Se já houve outras configurações da Terra inclusive sem a gente aqui por que é que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência a nossa experiência comum a ideia do que é humano O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno Essa configuração mental é mais do que uma ideologia é uma construção do imaginário coletivo várias gerações se sucedendo camadas de desejos projeções visões períodos inteiros de ciclos de vida dos nossos ancestrais que herdamos e fomos burilando retocando até chegar à imagem com a qual nos sentimos identificados É como se tivéssemos feito um photoshop na 29 memória coletiva planetária entre a tripulação e a nave onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica parecendo uma coisa indissociável É como parar numa memória confortável agradável de nós próprios por exemplo mamando no colo da nossa mãe uma mãe farta próspera amorosa carinhosa nos alimentando forever Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca Aí a gente dá uma babada olha em volta reclama porque não está vendo o seio da mãe não está vendo aquele organismo materno alimentando toda a nossa gana de vida e a gente começa a estremecer a achar que aquilo não é mesmo o melhor dos mundos que o mundo está acabando e a gente vai cair em algum lugar Mas a gente não vai cair em lugar nenhum de repente o que a mãe fez foi dar uma viradinha para pegar um sol mas como estávamos tão acostumados a gente só quer mamar O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação Quando se transfere isso para a mercadoria para os objetos para as coisas exteriores se materializa no que a técnica desenvolveu no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra Todas as histórias antigas chamam a Terra de Mãe Pacha Mama Gaia Uma deusa perfeita e infindável fluxo de graça beleza e fartura Vejase a imagem grega da deusa da prosperidade que tem uma cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo Noutras tradições na China e na Índia nas Américas em todas as culturas mais antigas a referência é de uma provedora maternal Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar detonar e dominar O desconforto que a ciência moderna as tecnologias as movimentações que resultaram naquilo que chamamos de revoluções de massa tudo isso não ficou localizado numa região mas cindiu o planeta a ponto de no século XX termos situações como a Guerra Fria em que você tinha de um 30 lado do muro uma parte da humanidade e a outra do lado de lá na maior tensão pronta para puxar o gatilho para cima dos outros Não tem fim do mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um do lado de cá ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo Isso é um abismo isso é uma queda Então a pergunta a fazer seria Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo Mas temos muito medo do que vai acontecer quando a gente cair Sentimos insegurança uma paranoia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos que confortavelmente carregamos em grande estilo mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo Então talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas Não eliminar a queda mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos divertidos inclusive prazerosos Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar viver no prazer aqui na Terra Então que a gente pare de despistar essa nossa vocação e em vez de ficar inventando outras parábolas que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir com o aparato da técnica Na verdade a ciência inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica Há muito tempo não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista Acabaram os cientistas Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas da mercadoria Antes de essa pessoa contribuir em qualquer sentido para abrir uma janela de respiro a essa nossa ansiedade de perder o seio da mãe vem logo um aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente É como se todas as descobertas estivessem condicionadas e nós desconfiássemos das descobertas como se todas fossem trapaça A gente sabe que as descobertas no âmbito da ciência as curas para tudo são uma baba Os laboratórios planejam com antecedência a publicação das descobertas em função dos mercados que eles 31 próprios configuram para esses aparatos com o único propósito de fazer a roda continuar a girar Não uma roda que abre outros horizontes e acena para outros mundos no sentido prazeroso mas para outros mundos que só reproduzem a nossa experiência de perda de liberdade de perda daquilo a que podemos chamar inocência no sentido de ser simplesmente bom sem nenhum objetivo Gozar sem nenhum objetivo Mamar sem medo sem culpa sem nenhum objetivo Nós vivemos num mundo em que você tem de explicar por que é que está mamando Ele se transformou numa fábrica de consumir inocência e deve ser potencializado cada vez mais para não deixar nenhum lugar habitado por ela De que lugar se projetam os paraquedas Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura o lugar do sonho Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza estou sonhando com o meu próximo emprego com o próximo carro mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode se abrindo para outras visões da vida não limitada Talvez seja outra palavra para o que costumamos chamar de natureza Não é nomeada porque só conseguimos nomear o que experimentamos O sonho como experiência de pessoas iniciadas numa tradição para sonhar Assim como quem vai para uma escola aprender uma prática um conteúdo uma meditação uma dança pode ser iniciado nessa instituição para seguir avançar num lugar do sonho Alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm passagem por eles São lugares com conexão com o mundo que partilhamos não é um mundo paralelo mas que tem uma potência diferente Quando por vezes me falam em imaginar outro mundo possível é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza como se a gente não fosse natureza Na verdade estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo 32 próprio Todos os outros humanos que não somos nós estão fora a gente pode comêlos socálos fraturálos despachálos para outro lugar do espaço O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós Na verdade a gente vive reclamando mas essa coisa foi encomendada chegou embrulhada e com o aviso Depois de abrir não tem troca Há duzentos trezentos anos ansiaram por esse mundo Um monte de gente decepcionada pensando Mas é esse mundo que deixaram para a gente Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras Ok você vive falando de outro mundo mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar Quem vai receber são os nossos netos bisnetos no máximo nossos filhos já idosos Se cada um de nós pensa um mundo serão trilhões de mundos e as entregas vão ser feitas em vários locais Que mundo e que serviço de delivery você está pedindo Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha no pacote encomendado pelos nossos antecessores há algo de pirraça nossa sugerindo que se fosse a gente teríamos feito muito melhor Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas incluindo cada pedaço de nós que somos parte de tudo 70 de água e um monte de outros materiais que nos compõem E nós criamos essa abstração de unidade o homem como medida das coisas e saímos por aí atropelando tudo num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam agindo no mundo à nossa disposição pegando o que a gente quiser Esse contato com outra possibilidade implica escutar sentir cheirar inspirar expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como natureza mas que por alguma razão ainda se confunde com ela Tem alguma coisa dessas camadas que é quasehumana uma camada identificada por nós que está sumindo que está sendo exterminada da interface de humanos muitohumanos Os quase 33 humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada da técnica do controle do planeta E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena por epidemias pobreza fome violência dirigida Já que se pretende olhar aqui o Antropoceno como o evento que pôs em contato mundos capturados para esse núcleo preexistente de civilizados no ciclo das navegações quando se deram as saídas daqui para a Ásia a África e a América é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação de eliminar aqueles povos O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia uma mortandade de milhares e milhares de seres Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rasto de morte por onde passava O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante uma guerra bacteriológica em movimento um fim de mundo tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas Para os povos que receberam aquela visita e morreram o fim do mundo foi no século XVI Não estou liberando a responsabilidade e a gravidade de toda a máquina que moveu as conquistas coloniais estou chamando atenção para o fato de que muitos eventos que aconteceram foram o desastre daquele tempo Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno A grande maioria está chamando de caos social desgoverno geral perda de qualidade no cotidiano nas relações e estamos todos jogados nesse abismo 34
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Título Descrição Essa avaliação tratará de descrever um desafio pedagógico e como solucionar esse desafio O desafio pedagógico pode ser algo que aconteceu na própria vida de outrm um noticiário ou até inventar Tal narrativa precisa apresentar momentos em que umuma professorprofessora pode se deparar e até mesmo modificar o planejamento da aula ou do curso A solução precisa ser retirada de um dos últimos quatro textos Ailton Krenak Denise Ferreira Alexsandro Rodrigues et al e Megg Rayara Cada um respeitivamente trata das temáticas meioambiente étnicoracial gênero e sexualidade Com isso o desafio está em conexão com uma dessas temáticas Estou enviando os textos em anexo Precisa ser um texto de 2 páginas uma descrevendo o desafio e outra apresentando a solução digitalizado e em formato PDF O Professor tem programas farejadores antiplágio então qualquer cópia ele pega fácil Muito obrigado pela intenção em ajudar DESAFIO O desafio pedagógico que será descrito ocorreu em uma escola de ensino médio onde a diversidade étnicoracial é evidente Nessa escola havia uma turma com alunos de diferentes origens étnicas incluindo afrodescendentes indígenas e brancos O desafio enfrentado pelo professor era promover um ambiente inclusivo e equitativo que valorizasse a diversidade cultural e étnica dos alunos ao mesmo tempo em que desenvolvesse o conteúdo curricular Durante as aulas o professor percebeu que os alunos afrodescendentes e indígenas muitas vezes se sentiam marginalizados e pouco representados nos materiais didáticos utilizados Consequência disso era um impacto negativo em sua autoestima e motivação para participar ativamente das atividades escolares Como se não bastasse o professor notou que os alunos brancos muitas vezes tinham uma visão limitada sobre a contribuição histórica e cultural das diferentes etnias presentes na sala de aula São diversas as motivações e causas que fazem eclodir o desafio pedagógico do qual ora tratamos uma delas é a persistência de estereótipos e preconceitos enraizados na sociedade que podem se refletir nas relações entre os alunos e até mesmo no próprio conteúdo curricular Ademais existe a falta de representatividade étnicoracial nos materiais didáticos e a ausência de discussões sobre a história e a cultura de diferentes etnias também tendem a contribuir para a invisibilidade e a marginalização de minorias Em adição ainda se verifica uma carência ou melhor uma abordagem fragilizada de tais questões no decorrer da formação dos professores assim apesar da boa intenção educadores muitas vezes podem não se sentirem suficientemente confiantes para lidar com a diversidade étnicoracial da falta de diálogo então decorre a perpetuação de muitos estigmas e preconceitos SOLUÇÃO Uma solução criativa para enfrentar o desafio pedagógico da diversidade étnicoracial é a criação de um projeto interdisciplinar que explore as temáticas étnico raciais de forma inovadora Para tanto inspiramonos nos escritos de Denise Ferreira que ressaltam a importância da representatividade e da valorização das diferentes culturas na educação a proposta consiste em utilizar a arte como uma ferramenta de transformação e reflexão O projeto teria como base a ideia de Mural Cultural no qual os alunos juntamente com o professor seriam responsáveis por criar um espaço de expressão artística que represente a diversidade étnicoracial presente na escola O mural seria desenvolvido em um local central e de grande visibilidade como um corredor ou pátio tornandose uma manifestação concreta do compromisso da escola com a valorização da diversidade Pensamos na construção do mural como um ato coletivo Ele precisa envolver pesquisas sobre as diferentes culturas presentes na comunidade escolar Na etapa da concepção os alunos serão incentivados a realizar entrevistas com seus familiares buscar referências artísticas e literárias de diferentes etnias explorar a música a dança e quasiquer outras formas de expressão cultural que gostarem Com base nessa pesquisa os alunos seriam orientados a criar obras de arte que representem as diferentes etnias utilizando técnicas variadas como pintura colagem escultura ou fotografia Cada obra de arte seria acompanhada de uma breve descrição que destacasse a história e os aspectos culturais do grupo étnico retratado O objetivo final é portanto promover a conscientização e a valorização da diversidade além de incentivar o respeito e a empatia entre os alunos O projeto poderia ser utilizado também como um estopim para o irromper de novos eventos culturais como exposições apresentações musicais e degustações de comidas típicas A gestão da escola poderia aproveitar para convidar artistas e representantes de diferentes etnias para compartilhar suas experiências e conhecimentos com os alunos apresentando desse modo ao processo educativo Assim estamos utilizando a arte como uma forma de expressão e reflexão sobre a diversidade étnicoracial O projeto Mural Cultural advém de uma ideia criativa para o desafio pedagógico REFERÊNCIAS FERREIRA DA SILVA Denise A dívida impagável São Paulo Oficina de Imaginação Política e Living Commons 2019 ¹Universidade de Brasília Brasília Distrito Federal Brasil UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MEGG RAYARA GOMES DE OLIVEIRA O DIABO EM FORMA DE GENTE REXISTÊNCIAS DE GAYS AFEMINADOS VIADOS E BICHAS PRETAS NA EDUCAÇÃO CURITIBA 2017 14 PRÓLOGO Santo Ambrósio usou a amoreira como um símbolo do Diabo pois da mesma maneira que sua fruta começa branca amadurece e fica vermelha e então fica preta assim o Diabo começa glorioso e branco brilha vermelho no poder dele e então fica preto com o pecado Jefrey Burton Russel Ela é o Diabo O Diabo em suas múltiplas denominações Capeta Tinhoso Cão Chifrudo Satanás Satã Demônio Lúcifer Maldito Aquele Cramulhão me assombrou por muito tempo Não se sabe exatamente em que período ou em que região a figura do Diabo se desenvolve mas foi a partir do século XII que ideias esparsas e muitas vezes contraditórias sobre sua figura começam a ser reunidas em uma sistematização dogmática Tereza Renata Silva ROCHA 20122 pela igreja Antes dos séculos V ao XI o Diabo ainda era definido de forma pouco concreta ROCHA2012 Para Filipe Marchioro Pfützenreuter 2012 o personagem chamado Diabo aparece pela primeiravez nos Evangelhosapós Jesus ter sido batizado por João Batista e recolherse no deserto para jejuar por quarenta dias e quarenta noites em preparação para o início da sua atividade messiânica A forma física do Diabo durante os séculos passa por diversas metamorfoses de uma figura angelical para a de um monstro grotesco Daniel Lula COSTA Solange Ramos ANDRADE 2012 p 153 À medida que se afastava de Deus para tornarse seu oponente o Diabo adquiria formas assustadoras Foi no século IX antes do contato da Europa com a África que o Diabo passou a ser representado como um anjo preto e nu 2 Por defender uma educação não sexista além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir às pessoas em geral na primeira vez que há a citação de uma autora transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo gênero e consequentemente para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas 15 A cor preta entre os cristãos passou a ser interpretada como uma representação do mal e a pele preta do Diabo contrastava com a beleza branca dos anjos O preto representa o mal e a poluição Satã sentado em seu trono no Inferno é sempre preto COSTA ANDRADE 2012 p 153 A beleza passa a ser branca e a feiura negra A bondade assume a brancura em contraposição à maldade que é negra Negro passa a significar algo sujo enquanto a limpeza se associa ao branco O inferno é concebido como negro ao passo que o céu é lugar das almas brancas José Geraldo da ROCHA 2010 p 902 O Diabo também foi associado à homossexualidade sendo seus agentes os homossexuais os gays afeminados os viados3 e as bichas condenados ao fogo doinferno No livro Gomorra escrito entre 1048 e 1054 seu autor São Pedro Damião vinculou a homossexualidade à heresia e à lepra com o Diabo Jeffrey RICHARDS 1993 Coincidência ou não na mesma época em que o Diabo ganha cor e forma pele preta chifres patas de cabra e rabo pontiagudo sua associação com a homossexualidade se cristaliza e a sodomia era frequentemente vinculada a bruxaria e ao culto do Diabo RICHARDS 1993 p 147 É então em meados do século XII a partirConcílio de Sienaem 1234que os dispositivos da repressão sexual se estabelecem de maneira firme Assim a inquisição e as irmandades leigas associadas com as ordens mendicantes tornaramse instrumentos de perseguição de hereges e de sodomitas na perspectiva de evitar práticas sexuais desviantes e para se livrar de inimigos RICHARDS 1993 John Boswell pesquisador da Universidade Yale nos Estados Unidos da América morto em 1994 vítima da AIDS4 aos 47 anos foio primeiro a afirmar que a igreja católicanão condenou as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo e do mesmo gênero até o século XII Cynara MENEZES 2011 O professor Carlos Callón da Universidade de Santiago de Compostela na Espanha entrevistado por Menezes 2011 concorda com Boswell e não tem dúvidas de que 3Optei em grafar ao longo deste trabalho o termo viado e não veado por ser assim utilizado pelas pessoas quando se referem de forma depreciativa aos homossexuais masculinos especialmente os mais afeminados 4 Acquired Immunodeficiency Syndrome traduzida para o português como Vírus da Imunodeficiência Humana 16 os traços básicos do preconceito contra a homossexualidade tiveram sua origem na Baixa Idade Média entre os séculos XI e XIV É nessa altura que emerge a intolerância homofóbica desconhecida na Antiguidade Inventase o pecado da sodomia inexistente nos mil primeiros anos do cristianismo a englobar todo o sexo não reprodutivo mas tendo como principal expoente as relações entre homens ou entremulheres MENEZES 2011 Para sustentar suas afirmações Callón consultou códigos legais crônicas históricas prosa literária poesia religiosa e a literatura profana del corpus gallegoportugués medieval Outro argumento utilizado pelo pesquisador é o fato de que até o século XI a história bíblica de Sodoma e Gomorra amplamente difundida para infernizar a vida das bichas não era assim tão conhecida Essa situação só viria a mudar a partir das interpretações do teólogoPedro Damian 10071072 Carlos Callón sustenta sua tese em algumas contradições observadas tanto na igreja quanto na sociedade de um modo geral como por exemplo no ideal de amizade no qual dos hombres podían convivir todo el día mostrar su desinterés por las mujeres expresarse su amor besarse en público o compartir la cama Montse DOPICO 2011 no mesmo período em que se condenam as relações homossexuais Assim as representações do Diabo ora preto ora bicha ora preto e bicha me foram apresentadas muito cedo interferindo na maneira como eu me via e como eu me relacionava com outras pessoas Nasci e cresci numa cidade do interior do Paraná chamada Cianorte num bairro habitado por pessoas que migraram de várias regiões do país em sua ampla maioria oriundas da zona rural da roça mesmo Minha mãe e meu pai vieram do interior de Minas Gerais e trouxeram consigo elementos de uma cultura de tradição católica rural e por isso mesmo na minha infância a figura assustadora do Diabo foi uma presença constante Eleera uma espécie de babá onipresente acessada por minha mãe e outras mulheres pobres da vizinhança para ajudar a educar uma renca de filhos que nem sempre estavam diante de seus olhos Era ele o Diabo que se encarregava de evitar que eu fizesse fofocas ou intrigas proferisse xingamentos palavrões ou mentiras sob a ameaça de me dar de presente um belo gancho na língua Ele me acompanhava pelas ruas matas e escola para tentar impedir que eu me metesse em brigas ou confusões Caso contrário me visitaria à noite e puxaria meu pé durante o sono Na época da quaresma as punições seriam ainda mais severas incluindo o nascimento de chifres e de rabo o que seria o passaporte definitivo para o inferno 17 Caso dedurasse alguém apontando com o dedo fizesse gestos obscenos ou levantasse a mão para tentar agredir uma pessoa mais velha ou mostrasse a língua para alguém o Diabo paralisaria imediatamente essa parte do meu corpo se um galo cantasse naquele exato momento Essa paralisia indicaria que ali estava uma pessoa pecadora uma pagã alguém que não era de Deus e por isso recebeu tal punição O galo era um aliado fiel de minha mãe e a ajudava a controlar minhas atitudes e a de meus irmãos Caso o galo cantasse à noite fora do horário habitual significava que o coisa ruim estava por perto e que eu eou meus irmãos havíamos feito coisas erradas Bastava a presença de um galo exibicionista na vizinhança que cantasse várias vezes no início da noite para minha mãe ter certeza que a gente tinha aprontado O que mais me irritava era saber que o galo sempre estava certo Como ele sabia Sei lá massabia As conversas com minha mãeeram sempre à noite Era ela quem se encarregava de educar seus sete filhos quatro homens duas mulheres e eu uma bicha em formação Meu pai não se preocupava com o que acontecia conosco e sabia muito pouco do que ocorria em casa Durante o dia minha mãe estava sempre ocupada cuidando da casa do quintal da horta do galinheiro eou lavando roupa pra fora Quando ela terminava de lavar a louça da janta com ajuda de minha irmã era hora de nos reunirmos em volta da mesa da cozinha para dividirmos nossas aventuras do dia Era a hora da confissão O cômodo de madeira era iluminado por uma lamparina feita de lata de óleo de soja e alimentada por querosene Na maioria das vezes essas reuniões eram interrompidas por um galo cantor dedoduro que chamava a atenção de minha mãe para o fato de que alguma coisa errada foi feita e que o Diabo estava vindo para puxar o pé de alguém Se além do galo algum assovio fosse ouvido significava que a situação era muito grave e o Diabo estava mandando um de seus assessores o SaciPererê para fazer o reconhecimento da área e identificar com precisão qual era seu alvo O canto do galo o cheiro do querosene a fumaça escura que escapava da chama da lamparina e as múltiplas sombras que se projetavam nas paredes de madeira da cozinha criavam um ambiente dramático e um tanto assustador Esse cenário me induzia a confessar ali mesmo aos sussurros ou em pensamentos as mentiras e os palavrões os furtos de frutas nos quintais dos vizinhos o furto de alguma boneca velha que não recebia a devida atenção de sua dona e as brigas com meus irmãos na esperança de não ser incomodada pela visita indesejada do Cão 18 O ritual de afastaro malque parecia tão perto incluía ainda rezar um PaiNosso umaAve Maria e uma SalveRainha antes de dormir Essa última oração era muito longa e com palavras que eu não sabia o que significavame por isso fiz um resumo Rezarpara mim não era exatamente um ato de fé mas um antídoto para afastar o mal que se anunciava naquele momento e que só se manifestaria à noite Durante o dia então não precisaria rezar e poderia fazer o que eu quisesse desde que minha mãe não visse ou ficasse sabendo Mas tinha o galo o maldito galo dedoduro À noite um arrependimento ainda que momentâneo e motivado pelo medo e algumas orações me manteria a salvo por mais algum tempo O Diabo descrito por minha mãeapresentava muitas semelhanças com aquele narrado por minhas professoras da escola primária e por minha professora de catequese e tinha origem nos ensinamentos cristãos católicos e estava diretamente ligado à noite à escuridão às trevas e a certos comportamentos e trejeitos Logo Deus era a luz a contraposição do Diabo Nessa perspectiva o Diabo que assustava a mim e a meus irmãos era tudo aquilo que fazia oposição a Deus COSTA ANDRADE2012 Como o contraponto da bondade o Diabo mais do que punir teria a função de despertar em mim a fé em Deus À sua maneirana sua infinita simplicidade minha mãe sabia que o Diabo é causa necessária do Deus cristão Carlos de Melo MAGALHÃES Eli BRANDÃO 2012 p 288 Mais do que me atirar no colo do Tinhoso o que ela realmente desejava era que eu me aproximasse de Deus e conquistasse suasimpatia As estratégias educativas utilizadas por ela e a maneira como fez uso da figura do Diabo para me apresentar a determinadas regras sociais aparecem nos estudos de Salma Ferraz 2007 que explica que o Diabo está presente também no mundo das crianças e é ainda o maior fantasma coletivo do Ocidente Sem o Diabo a literatura a teologia e a própria humanidade não seriam as mesmas FERRAZ 2007 É o que Marcos Renato Holtz de Almeida 2016 chama de Pedagogia do Medo uma orientação feita pelos dirigentes da igreja católica aos seus sacerdotes para endurecerem o discurso e o controle moral destacando o incrível poder do Maligno e o lamentável destino das almas que no Inferno chegassem ALMEIDA 2016 Satã seria então de acordo com Tereza Renata Silva Rocha 2012 apenas um agente de Deus Esse agente ora macabro ora extremamente sedutor surgia na forma de uma manga madura balançando no galho mais alto no quintal do vizinho nas bonecas de plástico que minhas colegas de escola exibiam orgulhosas às sextasfeiras no carrinho de doces na porta da escola na 19 buzina intermitente do sorveteiro que transitava incansável pelas ruas do bairro no volume indiscreto que o namorado da vizinha exibia sob a calça de tergal depois do beijo de boa noite Essas e outras situações cotidianas mais do que me ensinar a exorcizar meus desejos me estimulavam a desenvolver estratégias para realizálos Ao deslocar meu passado para o momento presente percebo que ainda que não me desse conta naquela época intuitivamente utilizava algumas artimanhas similares àquelas usadas pelo próprio Diabo ainda que nossos objetivos não fossem osmesmos Para poder transitar eou acessar as almas que pretende possuir esse ser horrendo detestável utiliza múltiplas estratégias bem como adquire formas variadas Como um belo e inocente anjo pode aproximarse das pessoas sem assustálas É possível adquirir forma humana como homem ou mulher e assim seduzir e corromper suas vítimas Seja na forma de anjo ou na forma humana em ambos os casos branquidade beleza e bondade são colocadas no mesmoplano e via de regra são tratados como sinônimos Sob a forma de serpente se esgueira sorrateiramente para chegar ao seu destino sendo quase imperceptível No entanto quando provocado assume formas horripilantes com cifres patas de cabra e rabo pontiagudo e expele fogo pela boca e pelasnarinas As múltiplas maneiras de se apresentar fazem com que o Diabo circule com certa tranquilidade ainda que esteja sob uma vigilância constante Seus disfarces não representam um ajustamento mas uma estratégia de existência em uma sociedade monocultural do ponto de vista religioso e racial modelada a partir de uma visão cristã europeia Não apenas sua forma física é flexível mas todo um repertório discursivo é adaptado de acordo com a situação Tais características não o tornam uma criatura desprovida de personalidade ou identidadeAquiloque se torna visível aos olhos do corpo social pode ser apenas uma encenação uma performance como parte de um jogo que tenta preservar a própria existência física e emocional que está em risco constante Assim entre as múltiplas formas personificadas pelo Diabo a do anjo a do homem a da mulher a da serpente e a de um ser horripilante com chifres patas de cabra e rabo pontiagudo foram e continuam sendo atribuídas a mim em diferentes situaçõescotidianas 20 Bichinha do capeta O primeiro material didático escolar com o qual tive contato foi uma cartilha que tinha o sugestivo nome de Caminho suave5 assinado por Branca Alves de Lima 19112001 que propunha um sistema de alfabetização por meio do uso de imagens Essa cartilha foi uma ferramenta bastante eficaz no processo de me ensinar a ler e a escrever A ilustração da capa mostrava um saudável e bem vestido casalzinho formado por um menino branco de cabelos castanhos claros e uma menina loira de mãos dadas caminhando em direção à escola em meio a um cenário de cores vibrantes que lembrava o filme de Walt Disney Alice no país das maravilhas 1951 Essa imagem afirmava padrões de branquidade e da norma cisgênera6 heterossexual e informava a mim e a outras crianças pobres negras eou Lésbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais LGBT que nossa caminhada dentro da escola não seria assim tãosuave As condições teóricas para que eu fizesse uma leitura crítica dessa imagem vieram algumas décadas mais tarde mas a informação ali presente produzia grande desconforto sendo confirmada ao longo daquele e dos anos seguintes Algumas vezes de maneira explícita em conteúdos que ratificavam uma suposta superioridade da população branca e cis7 heterossexual e outras vezes de maneira menos perceptível simplesmente ignorando a participação da população negra e da população LGBT em nossa sociedade ou ainda em forma de discursos que emergiam de vários lugares especialmente de professoresas e dosdas estudantes colegas de sala ou não 5 Estimase que 40 milhões de exemplares dessa cartilha tenham sido impressos entre os anos de 1948 ano da primeira edição e 1995 ano em que foi retirada do catálogo de livros didáticos do Ministério da Educação 6 A noção de cisgeneridade é proposta pela transexual Julia Serano em 2007 na obra Whipping girl a transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity a partir do exercício de analisar a origem da terminologia trans o outro o desajuste Ligações químicas cruzadas espontaneamente de forma inesperada O oposto disso o termo cis também existe no campo da química orgânica seria a ligação química esperada a mais comum de se ocorrer entre os elementos A ligação química normal Porém as moléculas da química orgânica são imprevisíveis Assim como as subjetividades são imprevisíveis Portanto a cisgeneridade indica a existência de uma norma que produz efeitos de ideal regulatório ou seja efeitos de expectativas e universalização da experiência humana Em termos gerais o que diferentes ativistas e os movimentos transfeministas têm proposto é que a norma cisgênera é uma das matrizes normativas das estruturas sociais políticas e patriarcais cujos ideais regulatórios produzem efeitos de vida e de atribuição identitária extremamente rígidos A atribuição identitária de forma compulsória no momento de registro de cada pessoa define e naturaliza a designação de uma pessoa a um dos polos do sistema de sexogênero ao nascer a partir de uma leitura restrita baseada na aparência dos órgãos genitais Além disso a norma cisgênera afirma que essa designação é imutável fixa cristalizada ao longo da vida da pessoa Maria Luiza Rovaris CIDADE 2016 p 1314 7 Abreviação de cisgêneroa 21 Outras imagens a que fui apresentada ao longo de minha trajetória escolar e que muitas vezes me serviam de espelho procuravam reproduzir as relações de poder que eram observadas em espaços variados no Brasil e em outros países Na maioria das vezes a população negra era retratada de maneira subalternizada ou então reduzida à condição de escravizada afirmando que os espaços nas sociedades ocidentais eram distribuídos a partir do pertencimento racial de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas Muitas dessas imagens ilustravam os livros didáticos outras circulavam de outras formas cartazes revistas jornais novelas e programas humorísticos Aquelas mais depreciativas da população negra eou homossexual eram usadas por colegas de escola para lembrar que a minha cor era sinônimo de miséria feiura criminalidade e submissão e minha sexualidade uma doença contagiosa portanto minha companhia deveria ser evitada Os xingamentos as provocações e os apelidos decorrentes dos meus trejeitos abichalhados e da minha negritude procuravam destacar características consideradas como defeitos para uma sociedade LGBTfóbica8 e racista como a que eu estava inscrita Não demorou muito para que eu fosse informada da estreita relação entre noite escuro e preto como sinônimo do mal com a cor da minha pele preta O Diabo que assustava as pessoas era uma criatura noturna que não se atrevia a aparecer durante o dia à luz do Sol As explicações dadas nas aulas de catequese eram a de que a luz do Sol a claridade espantaria as coisas ruins e tudo o que era mal estava associado à noite à escuridão O Diabo entãoera da noite era escuro logo era preto Preto para melhorse esconder nas sombras e agir sorrateiramente A pele preta seria um disfarce Era a demonização dos pretos A demonização pode ser entendida como uma estratégia quando a figura do Diabo é utilizada visando ao enquadramento social RICHARDS 1993 Peter STANFORD 2003 Essa estratégia estava presente na minha vida na escola principalmente nos xingamentos bicha do Diabo viado do Diabo preto do Diabo muleque do Capeta muleque atentado é o Capeta encarnado Esses discursos colocavam em destaque meu jeito abichalhado e os traços que evidenciavam minha negritude 8 Em algumas situações ao longo deste trabalho farei uso do termo LGBTfobia no lugar do tradicional homofobia quando me referir a diversas identidades que compõem o amplo espectro identitário da sigla LGBT Quando me referir especificamente à hostilidade geral psicológica e social contra pessoas do sexo e do gênero masculino que sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos do sexo e do gênero masculino práticas homoeróticas eou homoafetivas utilizarei o termo homofobia 22 A arma que me parecia mais eficaz naquele momento era a invisibilidade Assim recorria ao corte frequente do cabelo rente ao couro cabeludo para eliminar o traço mais visível de minha negritude Também tomava banhos demorados já que a pele preta era interpretada como sujeira Meu jeito abichalhado exigia uma vigilância constante contribuindo para que eu controlasse meu jeito de andar e de correr a maneira de gesticular mãos e braços e o modo como balançava a cabeça e mexia nos cabelos Eu também tentava controlar meu jeito de falar e o tom da minha voz na expectativa de ser o menos visível Do fundo da sala de aula da última carteira eu observava atentamente tudo o que acontecia na sala e adotava posturas que pareciam atender às expectativas dosas professoresas Nos momentos em que o riso era autorizado eu ria Nos momentos em que o silêncio era exigido eu me calava Assim meu boletim a materialização de uma encenação constante era a prova de que o ajustamento proposto pela escola estava funcionando A escola aparentemente podia controlar meu corpo mas não podia controlar meus segredos e aquele anjo higienizado por obra de um processo disciplinar não era real Era uma personagem que eu interpretava cotidianamente e que me garantia certo sossego e invisibilidade já que eu conseguia convencer a todos que estava internalizando suasimposições Para fugir ou ao menos suavizar algumas situações de constrangimentos eu procurava controlar com certo rigor meus horários de chegada e de saída da escola bem como mudar com frequência meu trajeto dando preferência por ruas pouco movimentadas e por atalhos em terrenos baldios e matagais Eu sempre chegava mais cedo na escola e procurava um lugar tranquilo para esperar a aula começar e procurava sair depois de todo mundo principalmente durante a quinta e sexta séries Tal estratégia nem sempre funcionava e por várias vezes o Diabo soprou no meu ouvido e me encorajou a enfrentar valentões que faziam provocações racistas classistas e homofóbicas Essas provocações procuravam destacar meu cabelo ruim meu uniforme gasto e na maioria das vezes o meu jeito rebolativo de andar que nas palavras de alguns parecia uma lagartixa mal matada Apanhar do viadinho pobre e preto da escola era humilhante e por isso mesmo todas as vezes em que fui desafiada não economizei socos e pontapés reforçando certos discursos de que realmente eu era uma pessoa encapetada por preferir caminhos desertos e por espreitar do fundo da sala de aula Quando provocada não me fazia de rogada e deixava que esses e outros estereótipos atribuídos a mim tomassem forma Era oDiabo encarnado 23 Nos dias que se sucediam a uma briga eu garantia certa popularidade e tinha que narrar repetidas vezes com quem e por que eu brigara O medo que eu despertava em algumas pessoas me garantia certo sossego e andava despreocupadarebolando ou não Mas ainda assim eu preferia transitar por caminhos menos movimentados e me entregar a pensamentos e sonhos que me transportavam para mundos distantes onde eu poderia ter longos e reluzentes cabelos amigas e amigos parecidos comigo e roupas coloridas e brilhantes iguais as que eu via em fotos que estampavam as capas das poucas revistas de fofoca e de moda a que eu tinha acesso Nesses caminhos pouco movimentados eu podia andar e correr como eu bem entendesse mexia mãos braços e cabeça livremente Às vezes flertava com algum estranho de preferência um garoto mais velho que eu supunha já tivesse pentelhos e fosse mais alto que eu Nessas ocasiões eu revelava a menina que habitava em mim mas não abria totalmente a guarda e a qualquer sinal de perigo eu fugia rapidamente evaporava sem deixar sinal Raras foram as situações reais de perigo talvez por conta da eficiência das minhas estratégias talvez por sorte mesmo O fato é que ao longo de toda minha vida nunca pude abdicar totalmente dessas estratégias e também não pude provar o gostinho de andar despreocupada por um caminho plano em linha reta e semobstáculos Em sala de aula eu sempre figurava entre osas melhores da turma e na primeira segunda quinta e sexta séries porém consegui as melhores notas o que não resultou em relações de camaradagem com osas colegas de sala ou uma atenção maior dos professores e das professoras Ao contrário obter as notas mais altas entre as duas turmas de sexta série da escola levou alguns estudantes que antes apenas evitavam minha companhia a falar abertamente o que pensavam a respeito da cor da minha pele do meu cabelo e dos meus trejeitos considerados inadequados para alguém do sexo masculino Foi durante o antigo 2º grau hoje ensino médio que essa situação ficou mais complicada e as cobranças para que eu mantivesse meus cabelos sempre penteados ou domados controlados nas palavras de alguns unhas bem curtas e adotasse atitudes mais viris passaram a ser mais frequentes fazendo com que eu evitasse a companhia da maioria das pessoas As poucas pessoas com quem eu me relacionava fora da escola também controlavam meu corpo meu gestual e impunham modelos de masculinidade que eu não conseguia decifrar Continuava andando por caminhos pouco movimentados dando longas voltas para chegar à escola me esgueirando pelas beiradas A margem se cristalizava a cada dia 24 Parte do problema estava associada à falta de referências positivas a respeito de existências negras e LGBTs e de existências negras LGBTs Naquela época eu ainda não sabia como me definir socialmente embora tivesse certeza de que eu não era uma pessoa cisgênera heterossexual A referência mais próxima e mais recorrente que chegava até meus ouvidos me informava que eu era viado bicha mariquinha mulherzinha sempre de maneira depreciativa Uma possibilidade para reverter esse quadro e tomar contato com outras leituras do corpo negro distinto da norma heterossexual surgiu quando o professor de língua portuguesa apresentou uma lista de livro que deveríamos ler para nos prepararmos para o concurso vestibular Nessa lista figurava o livro Bomcrioulo9 uma obra de Adolfo Caminha publicada pela primeira vez em 1895 O professor alertou que se tratava de uma leitura pesada pois narrava a história de dois marinheiros homossexuais um negro e um branco Amaro e Aleixo respectivamente Ao contrário dos outros livros essa leitura não era obrigatória ficando a critério de cada estudante As recomendações do professor só fizeram aumentar minha curiosidade a respeito do livro e assim juntando alguns trocados que eu ganhava fazendo ilustrações comprei numa banca de jornal no centro da cidade uma edição de 1983 impressa em papeljornal daquela que seria a minha primeira referência de negritude homossexual As outras viriam algum tempo depois nas fotonovelas e nos anúncios classificados das revistas pornográficas que eu desviava discretamente da mesma banca de jornal quando voltava docolégio A leitura de BomCrioulo foi feita às escondidas como se realmente fosse uma obra proibida pornográfica como sugeriu o professor em tom de deboche Coloquei a capa do livro Iracema de José de Alencar sobre a capa original de BomCrioulo para que eu pudesse fazer minha leitura em casa sem ser importunada BomCrioulo segue um esquema linear de construção narrativa o qual se adapta aos cânones estéticos vigentes na época de seu surgimento o Naturalismo Anselmo Peres ALÓS 2010 p 19 sendo a primeira narrativa com um protagonista homossexual10 na literatura latino americana Dario de Jesus GómezSÁNCHEZ 2012 p 26 A obra é ousada ainda por descrever uma relação interracial entre um homem negro e um jovem branco num período em que os espaços na sociedade brasileira eram explicitamente definidos também pelo pertencimento racial 9 Quando BomCrioulo estiver grafado em itálico é porque se refere ao nome da obra e não à personagem 10 Não encontrei ao longo da narrativa de Adolfo Caminha o vocábulo homossexual 25 A ousadia de Caminha morto aos 29 anos de idade lhe rendeu pesadas críticas e a difusão pública da obra foi impedida durante várias décadas o que não é tão surpreendente se leva em conta que nos princípios do século XX a temática homossexual era oposta às temáticas tradicionais SÁNCHEZ 2012 p2627 Amaro o BomCrioulo11 é ao mesmo tempo o primeiro protagonista negro da literatura brasileira e o primeiro protagonista homossexual algo raro nas produções literárias atuais caracterizadas pela invisibilidade tanto de personagens negras12 quanto de homossexuais O livro apesar de todos os estereótipos que apresenta a respeito da homossexualidade negra como apetite sexual incontrolável e propensão ao crime funcionou para mim como um espelho e possibilitou que eu me visse em várias das características de Amaro e Aleixo Amaro embora seja a personagem principal da obra de Caminha 1895 tem sua humanidade questionada ao longo de todo o livro e descrições como rude como um selvagem p 18 pedaço de bruto p 20 um animal inteiro p 20 animal selvagem p 21 Hoje manso como um cordeiro amanhã tempestuoso como uma fera p 38 um animal feroz p 54 orgulho selvagem de animal ferido p 56 são utilizadas para justificar a vigilância constante a que estava sujeito bem como sua dificuldade em viver em sociedade Os raros elogios que Caminha 1983 tece a BomCrioulo dizem respeito ao seu corpo bem torneado e à sua força física descomunal que mais uma vez o aproximam de um animal A bordo todos o estimavam como na fortaleza e a primeira vez que o viram nu uma bela manhã depois da baldeação refestelandose num banho salgado foi um clamor Não havia osso naquele corpo de gigante o peito largo e rijo os braços o ventre os quadris as pernas formavam um conjunto respeitável de músculos dando uma ideia de força física sobrehumana dominando a maruja que sorria boquiaberta diante do negro CAMINHA 1983 p 20 A força física de BomCrioulo associada ao seu gênio instável fazia dele um homem perigoso CAMINHA 1983 p 20 Além disso sua orientação sexual homossexual fazia com que fosse visto como um sujeito obsessivo com sentimentos de posse sobre Aleixo com pouco controle sobre as própriasemoções 11 Ao se referir a Amaro como BomCrioulo o autor recupera o conceito do BomSelvagem de J J Rousseau desenvolvido com a intenção de pensar sua própria civilização Lilia Moritz SCHWARCZ 1996 p 161 12 Houve a opção de padronizar o vocábulo personagem no gênero feminino correspondendo à sua origem etimológica 26 Nas horas de folga no serviço chovesse ou caísse fogo em brasa do céu ninguém lhe tirava da imaginação o petiz era uma perseguição de todos os instantes uma ideia fixa e tenaz um relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de unirse ao marujo como se ele fora do outro sexo de possuílo de têlo junto a si de amálo de gozálo CAMINHA 1983 p 23 Ainda que homossexual Amaro é apresentado com as mesmas características estereotipadas dos homens negros heterossexuais identificados na literatura brasileira no final do século XIX e ao longo do século XX modeladas a partir das ideias de selvageria força e sexualidade exacerbada e incontrolável onde estão adormecidas as pulsões mais imorais os desejos menos confessáveis Frantz FANON 2008 p 154 O apetite sexual de Aleixo não é destacado uma vez que o branco seria assim menos sensual que o homem de cor menos absorvido pela ação corporal embora sua estrutura seja extraordinariamente mais vigorosa Renato da SILVEIRA 1999 p 110 Amaro não consegue escapar do determinismo racial que acompanhou seus passos durante toda a narrativa pois todo homem negro é dotado de um humor instável onde se misturariam indiferentemente virtudes e vícios pouca importância dando à vida dos outros mataria por matar e diante do sentimento humano seria covarde e impassível SILVEIRA 1999 p 109 Amaro então no final do romance mata Aleixo seu grande amor e mais uma vez é preso Dessa vez em definitivo sob a justificativa entre outras coisas pela dificuldade de adaptação e do potencial criminoso do corpo negro homossexual representados por BomCrioulo Ao me reconhecer em BomCrioulo torneime uma pessoa ainda mais introspectiva e tive certeza de que teria trânsito limitado na sociedade e que a única possibilidade de conquistar algum respeito seria adotando em público uma postura nos moldes da norma cis heterossexual No entanto essa era apenas uma estratégia de sobrevivência e não um ajustamento pois essa mesma obra reforçou em mim o desejo por corpos masculinos principalmente aqueles viris parecidos com o de Amaro Muitas vezes invejei a sorte de Aleixo e queria me perder nos braços de Bom Crioulo que não se contentava em possuílo a qualquer hora do dia ou da noite queria muito mais obrigavao a excessos fazia dele um escravo uma mulher à toa propondo quanta extravagância lhe vinha à imaginação CAMINHA 1983 p 38 Lembrome com perfeita clareza o tesão que eu sentia diante das descrições dos atos sexuais entre Amaro e Aleixo Ainda que tivesse uma reduzida experiência sexual algumas das cenas descritas pareciam falar de mim mesma Era uma conversa ao pé do ouvido aos sussurros que eu não ousava repetir em voz alta 27 Uma vez lado a lado com o grumete sentindolhe o calor do corpo roliço a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de contactos impuros um apetite selvagem cortou a palavra ao negro A claridade não chegava sequer á meia distância do esconderijo onde eles tinham se refugiado Não se viam um ao outro sentiamse adivinhavamse por baixo dos cobertores CAMINHA 1983 p 30 O medo a culpa e a vergonha presentes em BomCrioulo faziam parte da minha vida naquele momento tanto por conta do meu pertencimento racial quanto por conta da minha sexualidade A partir do que propõem Michel Foucault 1987 Guacira Lopes Louro 2000 Paula Regina Costa Ribeiro 2003 Jefrey Weeks 1993 2000 e Paula Regina Costa Ribeiro Guiomar Freitas Soares e Felipe Bruno Martins Fernandes 2009 sexualidade é uma construção histórica e cultural que ao correlacionar comportamentos linguagens representações crenças identidades posturas inscreve tais constructos no corpo por meio de estratégias de podersaber sobre os sexos Nem o medo e nem o sentimento de culpa que me acompanhavam cotidianamente foram maiores que minha decisão de colocar em prática aquilo que me dava prazer mesmo que às escondidas Passei então a acreditar que meus problemas teriam fim quando eu me tornasse uma pessoa adulta e poderia vivenciar minha expressão de gênero e minha sexualidade de formas plenas Mas não foi bem assim As interdições continuaram mesmo porque eu precisava trabalhar me sustentar Quem daria emprego a uma bicha preta O que poderia configurar ações passageiras ligadas à minha adolescência que ficariam para trás quando estivesse inscrita em outro grupo em outro momento na verdade representou a abertura de cortinas que até então me impediam de enxergar para mais além e entender que desafiar a ordem significava responder por isso Socialmente falando seja o ensino primário seja no ensino superior assim como nas relações pessoais ou profissionais as regras eram muito similares isto é construídas a partir do pensamento eurocêntrico racista machista cristão e LGBTfóbico que exige ajustamentos das pessoas principalmente daquelas consideradas menos iguais Sendo assim essas práticas operam não só pelo conjunto explícito de interdições censuras por um código negativo e excludente mas também se efetivam sobretudo por meio de discursos ideias representações e 28 práticas que definem e regulam o permitido distinguindo o legítimo do ilegítimo o dizível do indizível Rogério Diniz JUNQUEIRA 2009 Desenvolver essa consciência foi decisivo em minhas escolhas profissionais intelectuais e políticas que me conduziram inicialmente para a universidade depois para o movimento social de negros e negras13 e posteriormente para o movimento LGBT na expectativa também de romper com as amarras que impunham umanormatização Eu não estava totalmente errada De volta para o espaço escolar agora ministrando aulas de arte motivada pela crença de tornar se não suave menos áspero o caminho de muitosas estudantes principalmente negrosas e LGBTs Essa preocupação estava associada ao fato de ter constatado que opiniões baseadas no senso comum eram usadas para justificar e perpetuar situações de racismo dentro e fora da sala de aula Muitas opiniões refletiam nas escolhas das temáticas que eram discutidas em sala de aula contribuindo para a manutenção de uma visão monocultural e eurocêntrica deixando de fora as muitas culturas existentes na sociedade brasileira principalmente a cultura de tradição oral Simone SANTOS 2006 p 4 bastante valorizada nas tradições afrobrasileiras A escolha dos conteúdos a serem trabalhados em sala de aula não se constitui no campo da neutralidade Ela se conecta entre outras coisas com os pontos de vistas pessoais com os valores morais com as escolhas políticas e religiosas dosas profissionais envolvidosas nesse processo Santos 2006 afirma que as pessoas que compõem a instituição os professores diretores e coordenadores pedagógicos que trazem seus valores e atributos morais atitudes estéticas e diferentes linguagens que refletem o mundo externo ao ambiente escolar que se concretizam dentro dele Muitas vezes essas práticas permitem a institucionalização do preconceito e da discriminação racial SANTOS 2006 p 34 13 Movimento Social de Negras e Negros é a luta dosas negrosas na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais que os marginalizam no mercado de trabalho no sistema educacional político social e cultural Regina Pahim PINTO 1993 29 A institucionalização do preconceito e da discriminação racial diz respeito à supervalorização das contribuições europeias para a formação da sociedade brasileira em detrimento das contribuições africanas e afrobrasileiras A escolha de conteúdos com bases exclusivamente europeias pode ser entendida como uma das faces do silêncio uma das muitas formas de operação do racismo Esse silêncio na interpretação do professor Paulo Vinícius Baptista da Silva 2008 além de invisibilizar as contribuições das populações negras para a construção do país opera para ocultar o processo social de desigualdade racial SILVA 2008 Já os discursos que destacavam os trejeitos afeminados de alguns meninos procuravam confirmar que o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres e para o masculino em corpos de homens Berenice Alves de Melo BENTO 2008 p 25 Assim os normatizados são premiados com respeito e oportunidades e castigando as diferenças com desprezos e obstáculos William Siqueira PERES 2009 expondo de forma objetiva que nas sociedades patriarcais heterossexistas não há outra possibilidade se não o ajustamento Se por um lado havia uma cobrança para que os meninos se ajustassem aos códigos de masculinidades considerados naturais por outro se esperava que os estudantes negros se adaptassem às normas de conduta concebidas a partir da experiência da população branca que se coloca como modelo universal de humanidade Maria Aparecida Silva BENTO 2003 p 25 Minha trajetória escolar como estudante e como docente marcada pelo racismo e pela homofobia mas também por enfrentamentos e por um processo de empoderamento me fez refletir a respeito de como seria a experiência de professores negros que expressam identidades de gênero e orientações sexuais que questionam as normas heterossexuais A partir dessas inquietações passei então a problematizar a respeito dos seus trajetos escolares como estudantes e como docentes a fim de investigar quais os mecanismos de poder incidiam eou incidem sobre eles e quais as estratégias de enfrentamento desenvolveram para se manterem na escola 168 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Quase todos meus professores me adoravam mas me lembro que os que lecionavam educação física eram particularmente hostis a mim Um destes professores falou com meu pai porque estava preocupado comigo e disse a ele a meu pai que eu era muito afeminado e que todos meus colegas zombavam de mim Meu pai ao chegar em casa me repreendeu e não duvidou em me culpar pela hostilização sistemática pela qual eu passava no colégio Quando este professor chamou meu pai para falar sobre o meu afeminamento tornouse inevitável e óbvia a patologização do meu corpo como das minhas performances de gênero O que não era tão óbvio é que naquele momento este jovem e atlético professor estava reconhecendo a sua própria impotência para modificar meu afeminamento sua impotência para me fazer o homem que se supunha eu deveria ser e sua impotência para marcar claramente os limites entre ele e eu Giancarlo Cornejo O problema desta pesquisa consistiu em identificar os elementos que incidem de maneira positiva nos processos de subjetivação das experiências de professores negros que fogem à norma cis heterossexual gays afeminados viados e bichas e como esses elementos são agenciados no interior da escola O racismo e a homofobia foram tratados nesta pesquisa como dispositivos de poder tomando como referencial teórico a obra de Michel Foucault que explica que o poder procura atribuir ao corpo alguma utilidade e integrálo em sistemas econômicos FOUCAULT 1999 Recorri à metodologia das autobiografias proposta por Marcio Caetano 2016 por dar conta de processos de criação e recriação de tramas e dramas de sociabilidades e da construção das múltiplas identificações e identidades individuais e coletivas e por considerála adequada para articular as dimensões individuais aos fenômenos de caráter mais amplo CAETANO 2016 p 33 e por permitir um diálogo com minha trajetória pessoal como sujeito como docente e como pesquisadora Antes de me aventurar pelas autobiografias de quatro professores que se reconhecem como gays viados e bichas pretas preparei o terreno com uma intensa pesquisa bibliográfica revezando áreas variadas do conhecimentos como os estudos das relações étnicoraciais os estudos de gênero e diversidade sexual os estudos feministas e as teorizações de Michel Foucault O revezamento de diversas áreas do conhecimento como trajeto para colocar as autobiografias 169 em cena só foi possível graças à utilização do conceito de interseccionalidade que teve uma importância central neste trabalho O conceito de interseccionalidade desenvolvido nos EUA pela jurista negra Kimberlé Crenshaw ainda é pouco utilizado no Brasil dado ao fato que o sucesso alcançado por ele date da segunda metade dos anos 2000 DORLIN 2016 A interseccionalidade possibilitou que discutisse as identidades como múltiples y fluidas y se encuentra con la perspectiva foucaultiana del poder en la medida en que ambas ponen el énfasis en los procesos dinámicos y en la deconstrucción de las categorías normalizadoras y homogeneizantes VIGOYA 2016 p7 Mesmo que o conceito de interseccionalidade não seja acionado diretamente é possível identificálo em trabalhos onde gênero raça e classe se somam já que o gênero não pode ser desassociado coerentemente da raça e da classe como afirma Elsa Dorlin 2009 citada por Vigoya 2016 Ainda assim os trabalhos produzidos no Brasil discutindo homofobia e racismo no ambiente escolar se referem a pequenos domínios e se concentram especificamente em um dos múltiplos marcadores sociais que incidem sobre uma pessoa Constatei que a maioria dos trabalhos que discutem relações étnicoraciais ignora a diversidade de gênero e de orientações sexuais naturalizando a ideia de que a população negra do país é composta especificamente por pessoas cisgêneras heterossexuais A produçãoteórica desenvolvida por feministas brancas e negras cisgêneras contribui para confirmar a heterossexualidade como única orientação sexual possível São raros os trabalhos que problematizam a existência de mulheres bissexuais lésbicas e mais raros ainda trabalhos que discutem as experiências de travestis e mulheres transexuais negras eou brancas Já os trabalhos que discutem gênero incluindo aí a produção teórica de feministas brancas e diversidade sexual tendem a silenciar a respeito do pertencimento racial das pessoas eou grupos de pessoas pesquisados contribuindo para confirmar a ideia corrente de que se tratam de discussões envolvendo o grupo racial branco A exceção se observa nas pesquisas desenvolvidas por um grupo reduzido de professores negros homossexuais que problematizam de maneira recorrente as múltiplas masculinidades especialmente aquelas consideradas periféricas Entre as masculinidades consideradas periféricas por não se encaixarem no padrão imposto pela norma heterossexual branca de classe média são apontadas aquelas exercitadas por 170 homossexuais negros homossexuais pobres homossexuais idosos homossexuais gordos homossexuais ligados ao movimento Hip Hop gays afeminados viados e bichas pintosas Observei que existe uma farta produção teórica problematizando relações étnicoraciais homossexualidade masculina e educação Essas pesquisas porém discutem em sua ampla maioria as experiências de estudantes negros e de estudantes homossexuais masculinos e raramente problematizam a prática docente de professores negros e de professores homossexuais masculinos O debate sobre a prática docente de professores negros homossexuais gays afeminados viados e bichas é praticamente inexistente Ao longo de todo meu processo de doutoramento não tive acesso a nenhuma pesquisa tese dissertação ou artigo que discutisse especificamente esse tema Afirmo então a partir do que propõe o conceito de interseccionalidade que a pesquisa brasileira se caracteriza pelo conhecimento situado ou perspectiva parcial Helena HIRATA 2014 por se concentrar como sugere Deleuze em pequenos domínios Não tive como fugir das pesquisas caracterizadas pelo conhecimento situado ou perspectiva parcial e categorias importantes para este trabalho como negro e homossexual foram discutidas separadamente Apesar da inquestionável importância dessas categorias para o processo de desconstrução de discursos e posturas racistas e homofóbicas constatei que contribuem para naturalizar a heterossexualidade e a branquidade normativa O vocábulo negro tem sua origem associada ao regime escravista e foi utilizado como sinônimo de escravizado portanto rejeitado pela maioria das pessoas negras que conquistavam a liberdade No início do século XX esse vocábulo ainda era associado ao irracional ao feio ao ruim ao sujo ao exótico SOUSA 1983 O empenho do movimento negro organizado ao longo do século XX surtiu efeito e conseguiu atribuir sentidos positivos ao vocábulo negro que passou a ser utilizado como uma categoria identitária para se referir ao grupo racial constituído por pessoas que se autodeclaram pretas e pardas Negro e negra passaram a ser entendidos como raça e não mais como adjetivo 171 Esse processo acabou por incorporar elementos de origem ocidental eurocêntricos portanto como a fixidez dos gêneros masculinos e femininos relacionados ao sexo biológico e a ideia da heterossexualidade como única orientação sexual possível O esforço concentrado para questionar especificamente a branquidade como norma acabou fazendo com que a homofobia como forma de controle fosse naturalizada Ao observar a existência de um dispositivo de racialidade operando sobre a população negra Sueli Carneiro 2005 desconsiderou a multiplicidade de gêneros e de orientações sexuais possíveis e tratou a hetero cis normatividade como extensão da categoria negroa Essa era a opinião de Frantz Fanon 19251961 que afirmou abertamente que a prática da homossexualidade era desconhecida no continente africano antes do contato com o invasor branco e contrariando sua produção teórica que se propunha a ser póscolonial atribuiu as mesmas características negativas aos homossexuais originárias do discurso produzido por religiosos cientistas e juristas europeus Em suas reflexões sobre negrofobia Fanon 2008 classifica os homossexuais masculinos de pecadores pervertidos e paranoicos O professor Molefi Kete Asante 1942 africanista que trabalha na Temple University EUA nega qualquer dignidade aos homossexuais e procura afastálos da construção identitária de tipo afrocêntrico BUSSOTTI TEMBE 2014 Nesse sentido a categoria negroa adquire às vezes de forma intencional outras nem tanto um caráter de normatização quando contribui para naturalizar a cis heterossexualidade Não questiono o fato de que o racismo como dispositivo de controle incida indistintamente sobre as pessoas negras Mas afirmo que ele adquire formas diferentes quando opera sobre pessoas que apresentam gêneros e orientações sexuais distintas da cis heteronormatividade hegemônica Se a categoria negroa reforça e até naturaliza a heterossexualidade a categoria homossexual é utilizada para confirmar a branquidade Os estudos que conduziram a formulação do conceito e do vocábulo homossexual levaram em conta apenas as experiências de homens brancos ocidentais A mesma situação se observa na luta empreendida pelo movimento gay nos EUA e no Brasil que naturalizou uma existência avessa às questões de raça LIMA 2006 172 Ao empreender uma luta contra a homofobia especialmente contra a patologização da homossexualidade o movimento gay incorporou modelos higienizantes de comportamentoa fim de promover uma inclusão sanitarizada dos homossexuais que serviria de modelo para os demais Incluemse nesse modelo padrões de conduta inspirados na cis heterossexualidade e na branquidade hegemônica denunciados como opressores pelos movimentos negros movimentos feministas ativistas lésbicas ativistas travestis ativistas mulheres e homens transexuais brancosas e negrosas Os estudos sobre homossexualidades que emergiram dos estudos feministas na década de 1970 mantiveram a mesma postura e a questão da raça tem sido sistematicamente ignorada GÓIS 2003 O pouco interesse em interseccionar raça e homossexualidade masculina deriva do número reduzido de pesquisadores negros homossexuais gays afeminados viados e bichas em atividade nas universidades brasileiras A raça o gênero e a orientação sexual doa pesquisadora interferem sim na escolha do tema a ser pesquisado GÓIS 2003 RATTS 2007 FIGUEIREDO 2008 O que esta pesquisa confirma é que através da negação a interseccionalidade se materializa A homofobia é acionada como um elemento fundamental na constituição da negritude assim como o racismo é peçachave na construção de uma homossexualidade padrão que procura negar a possibilidade de existências que escapam à normatização e normalização dos corpos A operação do dispositivo de sexualidade e de racialidade é acionada por muitos sujeitos e por muitos grupos de sujeitos que estão na mira desses mesmos dispositivos fazendo o trabalho sujo imposto pelo racismo e pela homofobia No entanto o controle não se efetiva plenamente e muitos corpos escapam Os dispositivos são colocados sob suspeita e as ditas masculinidades periféricas reivindicam uma existência A margem se torna pequena e o centro um desejo A negritude como extensão da cis heterossexualidade e a branquidade como continuidade da homossexualidade são questionadas abertamente pelos gays afeminados viados e bichas pretas Ao se colocarem como homossexuais por se sentirem sexual e afetivamente atraídos por pessoas do mesmo sexo e do mesmo gênero as existências de gays afeminados viados e bichas pretas não se dão no espaço da normatização A homossexualidade e a negritude se apresentam como fragmentos que se somam para questionar aquilo que está posto como regra 173 Se as categorias gays afeminados viados e bichas se mostram como possibilidades de enfrentamento ao processo higienizadorda categoria homossexual a categoria pretoa surge nesta pesquisa como alternativa para questionar a cis heteronormatividade presente na categoria negroa Os termos gay afeminado veado bicha e pretoa ainda são utilizados como adjetivos que se propõem ao ataque a detratação ao escárnio de certos corpos e certas pessoas Ao se apropriar desses termos os sujeitos aos quais se referem tomam para si o direito de existir questionando aquilo que é descrito comonormal Assim ao longo desta pesquisa surgiu uma questão que precisou ser respondida para que ela pudesse ter continuidade quando a existência de um gay afeminado de um viado e de uma bicha preta se efetiva O caráter essencialista presente nesses termos precisou ser problematizado exigindo suas historicizações Os sinais do gay afeminado do viado e da bicha são encontrados no Brasil no século XVI na figura da mulher paciente MOTT 2005 e no século XIX na figura dos incorrigíveis afeminados desenfreados ou homensmulheres SANTOS 1997 que circulavam pelas ruas de SalvadorBA antes mesmo dos frescos dos putos e das Joaninhas do Rossio que ocupavam os parques e passeios do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX GREEN 2000 A existência da bicha preta é exercitada no espaço público por estar atrelada a questões de sobrevivência Como parte de um grupo racial historicamente marginalizado e em desvantagens econômicas a bicha preta precisava ganhar as ruas para ganhar a vida diferentemente da bicha branca bacana e da bicha branca sucesso que podiam experimentar uma existência em espaços reservados sem sofrerem a mesma perseguição policial imposta às bichas pretas Sem que se dessem conta as bichas pretas preparavam o terreno para que as bichas brancas ganhassem as ruas O potencial criminoso presente no corpo do homem preto cis heterossexual apontado por Césare Lombroso BENTO 2002 respingava nas bichas pretas A história de vida de Madame Satã 19001976 Cintura Fina 1921 e Tomba Homem 19352016 todas pretas e marginalizadas foi marcada por perseguições da sociedade e da polícia e por entradas e saídas da prisão 174 Essas existências que atravessam quase todo o século XX apresentam muitas semelhanças entre si e para serem contadas é preciso recorrer aos registros policiais como aconteceu com Yayá Mariquinhas e JoãoRosalina SANTOS 1997 no séculoXIX O simples fato de uma bicha preta transitar por ruas e praças era o bastante para que fosse tratada como suspeita e o suposto potencial criminoso presente em seu corpo potencializado Essa existência vai sendo marcada por resistências e estar na mira da polícia não fez com que elas se enquadrassem às normas de conduta impostas por modelos higienizantes heterossexuais e brancos Ao reclamar o direito de existir no espaço público ainda que pelas bordas a bicha preta foi a cortina de fumaça que permitiu o trânsito da bicha branca Foi ela que permitiu que a bicha branca ampliasse sua área de atuação até ganhar definitivamente asruas Tal processo não se deu sem enfrentamentos mas a história das bichas brancas não passa pelos registros policiais com a mesmaintensidade O controle sobre as existências bichas ou existências anunciadas tem início muito cedo antes mesmo de uma consciência ser construída Os mecanismos de controle que incidem sobre um gay afeminado viado e bicha preta adulta são observados durante suas infâncias com a intenção deliberada de assegurar a cis heteronormatividade branca como única existência possível Muitas vezes esse controle é perceptível apenas para aquelesas que estão na mira dos discursos e das ações normatizadoras Os discursos podem ser dirigidos como mísseis teleguiados ou soltos no ar na expectativa que cheguem aos ouvidos de quem precisa ser atingido Não existem modelos que possam ser tomados como exemplos de mecanismos de controle que incidam da mesma maneira e com a mesma eficiência sobre todos os sujeitos Mas a zombaria o escárnio e o deboche que decorrem da ideia de degradação ou degenerescência ZAMBONI 2016 são constitutivos das infâncias que escapam à branquidade e à cis heterossexualidade normativas As crianças que colocam a cis heteronormatividade branca em dúvida são impedidas de vivenciarem plenamente essa fase de suas vidas e se deparam com discursos e atitudes próprios do mundo adulto 175 A sexualização precoce de seus corpos presente nos xingamentos e apelidos e nos discursos que procuram destacar o perigo que representam para as outras crianças impede que suas infâncias sejam vividas plenamente A criança como dispositivo pedagógico que permite a naturalização da heterossexualidade PRECIADO 2014 autoriza o ataque sobre as infâncias que não estão alinhadas com as normas de sexualidade e de raça Não há pudor em se tentar promover o apagamento de uma infância distintiva da cis heterossexualidade branca A estratégia para que um projeto de sexualidade nos moldes hegemônico se efetive também passa pelo silenciamento Tratar todas as crianças como brancas e cis heterossexuais ou assexuadas se faz necessário o que resulta na certeza de que gays afeminados viados e bichas não tiveram infância É justamente sobre as infâncias que surgem as primeiras reflexões de meus entrevistados que confirmam a certeza de que experimentavam cada um à sua maneira existências que não colocavam a heterossexualidade como um projeto de futuro O controle sobre suas sexualidades e sobre seus pertencimentos raciais partiam da família da igreja e da escola através de discursos e ações que legitimavam a heterossexualidade e a branquidade como elementos que garantiriam uma existência no centro indicando a margem como o lugar adequado para os gays afeminados para os viados para as bichas e para osas pretosas O armário construído com a ajuda da família da igreja e da escola se apresenta como um lugar embora nem sempre seja interpretado dessa maneira Vejo o armário como uma trincheira que permite uma tomada de fôlego para reunir forças para continuar um enfrentamento que não terá fim O prazo de validade de um armário e o uso que se faz dele variam de pessoa para pessoa mas nunca é utilizado como uma ferramenta para promover o ajustamento Tratase de uma estratégia que garante a sobrevivência e não a extinção de um gay afeminado de um viado ou de uma bicha preta O armário precisa ser analisado a partir da experiência de quem fez ou faz uso dele e tratado como um elemento importante na constituição de existências que questionam as normas de sexualidade e de raça 176 Os discursos normatizadores e normalizadores que constroem o armário fornecem as ferramentas para sua destruição O armário é um casulo de onde a bicha preta emerge empoderada disposta a questionar seu lugar no mundo e reivindicar um espaço que não se reduza à margem Se o armário é construído por discursos a bicha também o é Os discursos inventam a bicha Mas a existência bicha é outra coisa e passa por uma apropriação dos múltiplos discursos que tentam reduzila Ao ser popularizado ao ganhar as ruas e integrar o discurso sobre os corpos que escapavam à norma heterossexual o vocábulo bicha trouxe consigo uma carga depreciativa e passou a ser utilizado como um instrumento de agressão hostilidade e marginalidade GREEN 2000 Ao se posicionarem como gay afeminado viado ou bicha os sujeitos desta pesquisa atribuem um sentido positivo aos termos que foram utilizados para agredilos e marginalizálos Há deliberadamente um processo de apropriação de conceitos que procura mantêlos deslocados dos centros formais de poder FRY 1985 impondo uma existência a partir da margem Afirmo que esse processo é contínuo e acompanha a existência de meus entrevistados ao longo de suas vidas Não é possível determinar um momento exato em que uma tomada de posição se inicia pois ela se confunde com os discursos que propõem a normatização Se houve a necessidade de governar as infâncias na expectativa de tornálas cis heterossexuais é porque o perigo se anunciava em sexualidades disparatadas FOUCAULT 1999 projetadas em corpos de crianças ainda que não fossem nominadas As autobiografias de Rogélio Gonçalves Leonardo Camargo Soares da Cruz Rodrigo Pedro Casteleira e Tarciso Manfrenatti confirmam que esse governamento não se efetiva da forma pretendida pois cada um à sua maneira escapou como pôde e continuou de amassaamassa se relacionando afetiva e sexualmente com outros garotos O dispositivo de sexualidade presente nos discursos e nas relações familiares nos discursos e práticas religiosos e escolares produzia performatividades mas não produzia sujeitos Condutas expressas em público nem sempre correspondem a existências e podem ser interpretadas como estratégias 177 Os mecanismos de controle que conduzem pessoas negras gays afeminados viados e bichas ao abandono da escola não são eficazes em sua totalidade e muitos corpos escapam e a formação acadêmica se revela em uma estratégia de enfrentamento bastante poderosa A afirmação de que a bicha não podia se engrenar na máquina estatal ZAMBONI 2016 perde força e a docência se apresenta como uma possibilidade concreta para deslocar as margens para o centro O passado começa a ser revisitado e a escola que se mostrava tão hostil à presença desses corpos agora oferece a mesa e a cadeira doa professora Os fantasmas que assombravam as existências de gays afeminados viados e bichas pretas continuam rondando as salas de aulas e as salas dosas professoresas mas não parecem assim tão assustadores O Diabo em forma de gente construído pelos discursos normatizadores e normalizadores se materializa e agora é ele quem coloca em debate as múltiplas possibilidades de rexistências que questionam os dispositivos de poder que queriam destruílo O racismo e a homofobia se interseccionam e continuam operando sobre as existências de gays afeminados viados e bichas pretas como dispositivos de poder Mas como propõe Foucault onde há poder há resistências Há existências Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 10 CRIANÇAS BICHAS DEMASIADAMENTE FABULOSAS Alexsandro Rodriguesi Steferson Zanoni Roseiroii Jésio Zamboniiii Castiel Vitorino Brasileiroiv Mariamma Fonseca Santanav Resumo Trabalhando a vida bicha enquanto fábula esse texto não apresenta objetivos bem definidos ou mesmo regras de leitura mas antes apenas nuances de corpos e possibilidades de existência Aqui é possível ler começando pelo meio ou por uma das extremidades nada disso importa Há três fábulas e um aviso por um leitor desavisado e em todas as partes encontramse bichas corpos demoníacos reinos fugidios e vidas comunitárias Em uma das fábulas é possível que o corpo seja arremetido a processos de vida poligâmicos e de políticas de amizade impensáveis no contexto da sociedade consumistafamiliar noutra é a arte peralta endemoniada que importa como ponto de afeto há ainda o convite à própria fabulação praticável com os corposcriança que escapam de escafandros por desbotarem Assim portanto a história não começa mas é anunciada algo se passa aqui e de nada importa Serve apenas de convite à vida bicha demasiadamente fabulada Palavraschave Bicha Fábula Criança Segurança Abstract Exploring the fag life as fables this essay does not introduce any defined objectives or even a reading guidance but first shows some bodies nuances and existential possibilities The reading may starts by the middle or by any of its extremities it is not a question to worry There are three fables and a warning from an unaware reader and in all of that there lay some fags demonic bodies fugitive kingdoms and community life In one of the fables bodies may be related to processes of polygamous life and to the friendship polices unthinkable in the parental consumerist society In another it is the demoniac mischievous art that matters to the writing for its affective capacity Still but not last there is an invitation to the fabling an invitation to get away from the diving suit fading with the childishbodies Therefore the story does not begin but it announces there is something going on but it does not matter It is just an invitation to the fag life overly fabled Keywords Fag Fable Child Safety Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 11 Aviso por um leitor desavisado O que você tem em mãos não é exatamente um artigo acadêmico pelo menos não o que costumeiramente se exige de um Se você chegou a esse texto e espera encontrar um objetivo uma estratégia metodológica uma conclusão e um monte de considerações típicas da economia acadêmica aconselhamos que logo feche esse texto ou então deixese surpreender Aqui desenrolamse três fábulas cuja realidade é potência que insistem além de existir Fábulas que por inventarem crianças bichas berram existências impensáveis e iminentemente imanentes Nada temos a oferecer senão essas três fábulas de corpos desbotados demoníacos e embichados três fábulas para serem lidas em ordem qualquer para serem risadas e nada procurarem Apenas a primeira delas recorre aos saberes acadêmicos indiretamente em notas de rodapé a fim de situar nesse terreno tantas vezes inóspito à fabulação um pouco de onde viemos e para onde vamos Mas o que importa mesmo é o que se passa Se nos cabe algum pedido ainda a quem quer que chegue esse texto por favor levemnos a sério tanto quanto na brincadeira Nosso desejo com essas breves intervenções é que as infâncias e as sexualidades possam ser pensadas e vividas de outras maneiras que outras políticas de existência possam se firmar pela afirmação da vida como multiplicidade Há aqui apenas vidas bichas demasiadamente fabuladas O Reino do ArcoÍris delírios de um escafandro Era uma vez um lugarvi em que as criançasvii escapavam aos sistemáticos sequestrosviii por uma série de instituições Esse mundo fabulosoix cheio de feitiços e encantos arrogantes e astuciosos traça o contraponto ao mito de uma infância pura e intocávelx pretenso paraíso perdido da humanidade deturpada Ali as ruas movediças surgem na ponta das línguas só existindo enquanto sinais quaisquer são lançados à deriva no exato intervalo entre a boca que se abre e a palavra que ecoa Em virtude dessa exótica configuração o lugar é chamado Reino do ArcoÍris Nesse reino sem rei e sem demarcações estáticas os corposxi se incorporamxii com vigor instantâneo imediatos como a travessia de um portal mágico Tais feitiços velozes são como aqueles que fazem alguém se tornar adulto a partir de certa idade algo bem diferente das lentas mudanças na carne e nos ossos Um reino todo feito de passagens Mesmo havendo tantas vias inúmeras muitos lá jamais pisaram Foram seduzidos e sequestrados por vidas adultas vidas maduras no limiar da podridão e cheias de fantasmas Pretérito mais que perfeito tinham deixado a criancice de lado afirmandose responsáveis pela negação das alegrias Foram demasiadamente comportados sob medida e com reforço em uma história muito bem contada tantas vezes recontada que passou a existirxiii Os habitantes do Reino do ArcoÍris eram incorpóreos corpos cheios de jeitos trejeitos e ajeitos cores sabores e odores de modo que tudo o que lá existia se movia incessantemente de um modo estranho telepático como a velocidade mais veloz o súbito incomensurável Então se alguém disser que está agindo como criança talvez essa seja uma senha de passagem para o Reino do ArcoÍris Não perca a chance de atravessála pois ela desaparece mais rápido que um piscar de olhos Tendo atravessado o signo e sustentando o movimento incessante a seguir passase a fabricar um corpo criança infâncias se inventamxiv Atraídas as crianças estão em trânsito constante experimentam o que os reinos de verdade querem lhes impedir Algumas que se supõe estarem protegidas pelas governanças e bemdispostas em organizações são vistas tímidas turistas do ArcoÍris Outras camaleonicamente fogem como um turbilhão para onde a vida insiste em escapar E em suas camaleonices fazem toda boa segurança fugir E tanto fogem que nem sequer suas genitálias permanecem Suas camaleonices fazemnas indetectáveis entre meninos e meninas E assim Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 12 metamorfoseiamse bichasxv Na imperceptível inquietude ou na agitação incansável ou ainda em algum ponto qualquer entre estas duas pontas do ArcoÍris um local onde a criança pode insistir emerge para recebêlas Quando seduzidas pelo Adultério o reino dos adultos que traíram a própria crianceria em busca das promessas de poder completude e conforto no invivível ser sempre igual os corpos tornamse estátuas atônitas parecendo formas eternas e imutáveis Mas sentem constante e inevitavelmente a impossibilidade e a dificuldade de permanecerem imóveis As crianças porque bichas perturbam Atrevidas elas vivem o tempo que podem a potência de existir em monstruosidadesxvi convocando seduzindo espezinhando para que todos entrem com elas no Reino do ArcoÍris Bemvindo aos atrevidos e curiosos Ora nesse reino desreinado e encantado das crianças sempre se pode chegar de alguma maneira Diabolicamente está em todo lugar em potência Atentemonos para essas criadoras criaturas que circulam entre nós que nascem em meio a tanta segurança e expectativa a tantos planos de que serão meros produtos reprodutores dos ideais de um sobrenome tornado propriedade privada Elas decepcionam a toda hora frustram as expectativas paternas e sociais e dão muito mas muito trabalho mesmo para serem domadas e adestradas Ainda assim depois de tudo quanto é enquadramento elas borram pintam e bordam Aprendem desde sempre artes da bichice Daí que quando atacam espantamonos com elas Logo dizemos serem de outros planetas E ainda que possam se conectar com outros planetas outros mundos outros seres outras vidas as crianças não falam uma língua estrangeira falam a nossa nas próprias brincadeiras em seus feitiços Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 13 cotidianos Inventam jeitos de dizer que perturbam as ordens gramaticais são das maiores inventoras da língua Com elas o tempo rói sua própria cauda e espanta o calendárioano dos reinos seguros O espaço tornase extremamente volátil e ao mesmo tempo o mais denso possível No Reino do ArcoÍris o tempo tem sempre uma contagem diferente um ritmo diferente um respirar diferente O espaço por outro lado nunca se encontra onde é procurado está sempre além na ultrapassagem Irrequietas e nervosas as crianças adoram saber que podem se deslocar incessantemente tornando o reino sempre outra coisa Frenéticas adoram passear e assustar a pretensa calmaria dos reinos seguros Não há lugar ou forma que segure esses corpos Corpos obesos magricelas musculosos altos ou baixos Corpos femininos ou dissimuladamente másculos corpos travestidos corpos carnavalescos corpos mimetizados Em se tratando de tonalidades novas paletas tiveram que ser inventadas para aquelas crianças pois os contrastes racistas foram perdidos em tons de roxo de púrpura de magenta violeta azul verde oliva escarlate pérola Os cabelos em uma miríade de arquiteturas fazem espetáculos Crianças podem ser tão cabeludas que chegam a não ter mais cabelo E nem sequer precisam Há muito desenvolveram enquanto bichas a arte de confeccionar perucas e pela cidade reinam os desfiles mais exuberantes de camisas toalhas sacos plásticos e todo e qualquer tipo de material que possa fazer as vezes de cabelo Com tantas invenções assim reinam os usos desusos reúsos e abusos Como toda criança bem sabe há nos restos nas sucatas toda uma nova vida a fabular Podese nelas encontrar referências aos heróis à música ao cinema à literatura ao teatro ou qualquer outra coisa Pois elas devoram tudo apropriamse desejosamente em vez de meramente assimilar ou seja elas transformam tudo que engolem para não se tornarem depositárias de uma cultura morta Fazem feitiços com o inócuo e fazem divas reencarnarem Refazendo seus corpos dessa maneira elas se metamorfoseiam inúmeras vezes escapando a identificações e reconhecimentos Seja como for as crianças fazemse fantásticas estrelas candentes Ligeiras e faceiras elas recusam as promessas de serem o futuro da pátria de carregarem o fardo familiar feitas pelos reinos seguros Elas ousam existir como um processo insistente em vez de ficarem aguardando imóveis e protegidas o dia em que poderão ser A seu belprazer prometem apenas o infortúnio das confusões das tagarelices das bichices e das armações Astuciosas riem de toda tentativa de domálas pelo medo enfrentando audaciosas as morais das fábulasxvii Há muito aprenderam o heroísmo das bruxas e a vilania dos mocinhos e não se deixam ser capturadas pela literatura infantilizadora aquela que pretende dizer o que pensar e o que sentir Riem debocham e saltitam bem aos modos do Saci da Cuca da Mula semcabeça do Boitatá da Iara Quando os reinos seguros tentam lhes assustar com suas lendas urbanas Homem do Saco Mulher de Algodão ChupaCabra as crianças piram e ficam fascinadas por esses poderosos monstros elas curtem o horror capaz de lembrarlhes das forças que ultrapassam a herdada forma ideal do humanoxviii Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 14 Rua dos bobos n 0 Suas casas são constantemente visitadas de tão acolhedoras Cheias de exageros gargalhadas e músicas birutas as crianças fazem moradia onde as paredes se abrem para que possam entrar e sair incessantemente Assim não é de se estranhar o número de curiosas visitas a cruzarem os limites da segurança Nos olhares dos adultos para as crianças há sempre uma fixação marcante um olhar esfíngico interrogando judicialmente para que elas se descubram humanos Quase tragados pelo buraco negro que convoca a outros mundos retornam apressados aos reinos de verdade Por um instante cativados relembram como sonho a realidade que viveram brevemente naquele Reino em que tudo brilha Mas houve um dia algo estranho demais um corpo teimou em permanecer seguro cheio de razão enfim adulto no Reino do ArcoÍris Esse corpo dos reinos de segurança cruzou os limites com um fio de Ariadne bem amarrado à cintura a fim de não se perder no labirinto das criancerias das bichices Explorar objetivamente dizia o corpo invasor Queria Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 15 com toda a Razão averiguar a incômoda felicidade das crianças de todas as idades cores jeitos lugares e tempos Cheias de curiosidade as travessas anfitriãs se sentaram com o adulto que logo disparou só partirei desse reino quando descobrir o que fazem vocês serem o que são Implicantes que só as crianças danaram a rir daquele sábio que nada sabia pois elas não eram Não sabe não sabe vai ter que aprender orelha de burro cabeça de ET Frustrado restou ao adulto atônito tudo notificar quantificar e escrever na tentativa de fazer com que aquilo tivesse alguma razão de ser Nada escapava ao adulto que a tudo buscava medir Mas tudo e nada são apenas os dois lados da mesma moeda da pretensão de definir e acabar algo que não cessa À medida que media o adulto ia se transformando em um escafandro uma roupa impermeável para se proteger a qualquer custo do mundo que o provocava tanto mais forte quanto mais tentava fugir Como rebolam essas crianças Aquela dali certamente é uma louca Essa é de longe uma invertida Uma mariquinha O que é aquele pano enrolado na criança Um vestido Ridículo E aquela coisa na cabeça daquela ali Seria aquilo uma peruca Venhamos e convenhamos aquele adulto salvavase ou melhor asseguravase apenas precariamente por seus aparatos de proteção Na sua frágil defesa foram as crianças que começaram a sentir medo Ao Escafandro restava apenas anotar e franzir testas Restava apenas o veredito precisamos salvar essas crianças Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 16 Imediatamente o Escafandro supôs nas crianças todo um nãosaber todo um não sentir um nãoestar e ainda por cima que era também um excesso de ser um além dos limites Essas crianças precisam de limites gritava babando Todas as crianças então limitadas tornavamse nada apenas um projeto uma promessa um ideal Deixavam de rebolar desfaziamse de suas perucas e seus tons de pele embranqueciamse em velocidades assustadoras A mesmidade do rosto apático e da vida asséptica transparecia nos corpos Veredito em mãos o adulto começou a perceber a redução drástica no inúmero de crianças desde que chegou ao Reino do ArcoÍris Logo percebeu em uma fulguração quase imperceptível que elas estavam desbotando Mas o que o Escafandro radiante não sabia era que não se tratava de uma súbita inexistência um desaparecimento no nada As crianças desbotavam para insistir para prosseguir nas sombras da Razãoxix O adulto bem ensinado contava às crianças que ainda iam restando uma história de início meio e fim uma história cheia de ensinamentos As crianças se sentiam sufocadas esquartejadas com a faca no pescoço obrigadas a decidir pela sina sem outra escolha enquanto ouviam a história O incômodo daquela situação contudo levava as crianças a misturarem todas as coisas a quebrarem as lógicas ordenadoras a interromperem abruptamente a história com um atrevimento de arte cruelxx O Escafandro ao mesmo tempo desesperado com o sumiço da audiência e determinado no prosseguimento de sua missão salvadora tirava da roupa que já era ele próprio livros de segurança de medicina de psicologias filosofias teologias juridicices sociologices sexologices pedagogices e também aqueles livros de fábulas de contos e lendas que já não fabulavam mais nada Às crianças restaram as narrativas mortas ou as fábulas com moral da história pensou o Escafandro Sem conseguir mais ver as crianças felicitouse porque as crianças finalmente morreramxxi Devem ter enfim se tornado o que nunca deveriam deixar de ser adultas Conseguiram tornar a criança um ser a ser protegido Esse não é o fim da história porque decerto ela não tem fim As crianças sempre riem de uma história porque ela ajuda a tecer outras e outras em seus fios cheios de nós Pelo meio brotamos como ervas daninhas germinando enquanto somos arrancadas Esvaecemos vez ou outra mas como crianças e porque bichas traçamos aquela linha para além ou aquém do mito da infância A bichinha Vingativa Sentada no tronco mais grosso da maior árvore da Floresta da Fonte Grande estava um corpo de pele negra cabelos crespos enormes e trejeitos afeminados Se as raízes daquela árvore pudessem enxergar e falar com certeza quando elas olhassem para cima diriam que ali estava uma menina muito vaidosa e por algum motivo movidas por intuição diriam ser também perigosa As raízes estariam erradas mas não por completo Aquele corpo não era de uma menina Muito menos apenas de um menino Aquele corpo de aproximadamente um metro e trinta centímetros de altura e extremamente jovem era o que sua aldeia costumava nomear de Bicha E por ter a pele negra era também chamada de bicha preta As raízes errariam sua espécie mas acertariam em cheio seu grau de periculosidade Na Aldeia da Fonte Grande reza a lenda de que crianças da espécie bichapreta são trapaceiras muito espertas e capazes de transformar qualquer um que as toque em sua imagem e semelhança E àquele corpo tantos nomes outros foram dados viado boiola baitola ou simplesmente demônia E era justamente esta última categorização que Vingativa amava de ser chamada bichapreta demônia Tão endemoniada que Vingativa foi o nome adotado por aquela bichapreta assim que descobriu ser absolutamente diferente de seus irmãos todos Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 17 pertencentes à espécie homens de verdade E tão maravilhosa era sua história demônia vingativa que foi assim que ela viuse diante de seu nascimento narrado por um vizinho Seu filho foi uma vingança cometida por Deus por vocês terem roubado aquele pão enquanto você estava grávida desse aí ao seu lado Foi por isso que Deus fez ele se tornar uma bicha preta Foi uma vingança vinda dos céus Desde então Vingativa prefere ser chamada assim No começo ela não entendia o real significado desta palavra Ela só conseguiu compreendêlo quando seus atos começaram também a serem nomeados pelos seus vizinhos E a maioria deles eram chamados justamente de vingança para seu deleite vingativo A questão é que para Vingativa foram criadas diversas classificações que nunca conseguiram representála em sua totalidade A linguagem sempre falhava ao tentar descrever sua singularidade E ela se divertia dava gargalhadas sua barriga chegava a doer sempre que descobria dicionários sendo confeccionados por seus vizinhos inventando sempre mais uma maneira de se referirem a ela Vingativa gargalhava ainda mais alto quando descobria que algumas dessas novas palavras vinham do Norte de uma região em que a bicha preta era tida como inexistente Burros leigos idiotas Eles realmente acham que têm capacidade de falarem tudo o que sou que não sou e posso ser Veja só nem eu mesma sei Ela berrava e logo voltava a dar gargalhadas E foi justamente em uma dessas crises de risos que Vingativa se desequilibrou e quase caiu da árvore Mas por ser absurdamente ágil e por há muito cultivar o crescimento de asas como o de suas amigas criminosas as feiticeiras ela conseguiu se recompor rapidamente cruzou as pernas e se preparou para começar a lixar suas garras que logo em seguida seriam pintadas com o esmalte vermelho roubado de sua mãe Vingativa adora roubar Era quase um ritual para ela entrar em alguma casa para poder saquear roupas e tecidos para fazer sua própria vestimenta E quando prontos acessórios eram apregoados por todo seu corpo Tudo roubado Além claro das tintas que as Mulheres passavam em seus rostos quando tinha festas naquela aldeia E ao modo de Vingativa tudo ia parar em seus cabelos todos os roubos e usos tudo escondia em seu cabelo que muitos mandavam cortar Mas aquela bichapreta demônia adorava o seu cabelo pois além de achálo lindo era também prático Veja só eu tenho um de ninho de passarinho em cima de minha cabeça e já que ninguém ousa tocálo eu não preciso ter medo de esconder tudo aquilo que roubo pois assim como ninho meu cabelo também é muito seguro para o que ali está guardado E enquanto caía Vingativa só conseguia pensar nos desvios que tomaria nos mapas que abandonaria Vingativa sonhava em poder abandonar de vez as trilhas estreitas e sobrecarregadas indicadas pelas escolas em abandonar os trajetos tão precários da boa vontade alheia da boa e conhecida geografia A queda nada lhe dizia senão de rastros indevidos e por isso Vingativa fizerase tão ágil Não entendo essa gente idiota que fica andando por essas trilhas tão insípidas e seguras tão tediosas e tão pouco taciturnas Mas que se danem Eu já consegui achar outros Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 18 caminhos muito mais bonitos e inesperados Mas a tediosa vida mais velha raramente ocupava os pensamentos de Vingativa Raras eram as vezes que algum corpo mais velho lhe convencera a lhe desfrutar e nesses casos eram certamente corpos demoníacos Vingativa gostava mesmo era de estar junto a pessoas de sua idade gostava era da não preocupação classificatória Claro algumas dessas crianças pouco demônias já haviam sido enfeitiçadas pelas regras dos mais velhos e por isso acabavam atrapalhando as brincadeiras de Vingativa com seus amigos Junto aos corpos entretanto despreocupados Vingativa se divertia apagando as linhas feitas no chão de barro que demarcavam os limites da floresta e das trilhas a serem seguidas Elas borravam essas linhas e logo em seguida entravam correndo animadas para explorar aquele lugar outrora proibido a elas Vingativa era uma criança demônia e como era de se esperar adorava estar junto a crianças também demoníacas E por falar em espera Vingativa começava a se impacientar com a demora de um amigo que prometeu encontrála no topo daquela árvore para assistirem juntas ao pôr do sol enquanto planejavam o roubo do dia seguinte Os planos eram de um grande rombo no quintal de um dos vizinhos que vivia chamando Vingativa de palavras ofensivas que ela ainda não entendia muito bem o que diziam mas isso pouco importava Previsivelmente essa criança viada não ficava perdendo seu tempo chateada com ódios alheios Muito pelo contrário Ela sente raiva claro mas também se diverte Dá gargalhadas Faz zombarias Cria caricaturas Escreve cartas anônimas e lança feitiços em seus diários Rasga a calça mancha a blusa predileta some com os batons e perfumes Risca paredes e quebra espelhos Rouba doces e os vende com preços altos para os colegas de classe de que ela menos gosta Ou seja ela não guarda rancor ela faz melhor Vingativa se vinga As Tribichas e Seu Lobato Dizem as más línguas que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar E não cai mesmo Cada raio que escapa das nuvens é uma criança fugindo do céu E elas adoram fugir da monotonia de suas rotinas e fazer viagens sem volta para lugares desconhecidos A calmaria chateia qualquer relâmpago fujão De quando em vez ouvimos seus estrondos e sabemos que mais uma criança serelepe chegou à Terra Como SaciPererê raios chegam sempre de repente e garantem com suas chegadas um espetáculo Nada garante que sua entrada não seja assustadora Sempre que aparecem deixam suas marcas seus rastros estriados E talvez por isso mesmo é que os bichos e as bichas se assustam e se encantam com a existência forasteira dos relâmpagos Por não terem destino certeiro tudo quanto é lugar pode ser surpreendido por um relâmpago fujão Daí que os humanos em suas manias de controle inventaram tecnologias e aparelhos capazes de capturar relâmpagos atrevidos que ousam ultrapassar os limites da segurança Frustrações Raios escapam e em seus ímpetos todo lugar passa a ser ponto de atração Atrativos não lhes faltam em suas fugas bemsucedidas Ora pois que essa é justamente uma história dessas Não de um relâmpago fujão mas de uma casa três vezes atingida pelos raios Um dois três um após o outro e lá se fora a casa de Dona Bicha Alexia borbulhando entre conversas e boatos da comunidade Três vezes atingida ali nasceram três crianças advindas do raio impetuoso e forasteiro e tal qual esperado aquela se tornara a casa das tribichas Aquela decerto não era uma casa de respeito Dona Bicha entretanto não se importava Cuidava de suas crianças Jésila Tefinha e Castiel no maior conforto que Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 19 poderia lhes dar E suas crianças para desgosto da comunidade sempre deram à mãe motivos de orgulho faziam de tudo para aliviar as preocupações da mãe e pouco se importavam de serem chamadas de tribichas Pelo contrário Usavam e abusavam desse poder Cresciam assim tribichas felizes e cedo aprenderam a se lambuzar e se esparramarem pela comunidade onde cresceram Para Dona Bicha Alexia as tribichas por serem tão surpreendentes não eram feitas dos mesmos ingredientes com os quais tantas crianças são feitas Sempre que questionada sobre os modos de agir de seus filhos respondia aos curiosos com um delicioso tom de ironia que seus filhotes tinham em seus corpos restos de faíscas fosforescentes dos relâmpagos Alexia não poupava esforços e ouvidos alhures para falar de suas crianças sempre realçando o que nelas havia de mais surpreendente Dona Bicha sabia que cada uma de suas crianças comportava em si mundos muito diferentes de algumas crianças que por ali viviam E por isso investia sempre de forma aguerrida e sensível com seus filhos Talvez por isso ou por quaisquer outras causas é que Dona Bicha Alexia nunca fora como outras Donas da comunidade Dona Bicha sempre fora demasiadamente dona de seu corpo e nunca quisera se casar Não por falta de pretendentes Ela sempre lhes dizia quando se ajoelhavam que ela se casara com seu próprio corpo com suas próprias escolhas e não trocaria sua liberdade por qualquer outra paixão costumeira E muito disso era o que Dona Bicha desejava para seus pequenos E as tribichas viveram todas as experiências possíveis de aprendizagem e desaprendizagem junto à Dona Bicha De história em história as tribichas aprendiam os segredos da vida Todavia naquela comunidade era comum que em dado momento as crianças trilhassem seus destinos e fossem viver a experiência de construir uma casa e viver sozinhos E quando esse dia chegou Dona Alexia dividiu em sacolinhas de lantejoulas partes iguais de suas economias com seus filhos Para ela aquela economia bastaria para que cada criança fizesse sua própria casa e assim despediuse alegremente A partir de agora vocês terão que viver sozinhos Usem bem esse dinheiro e arranjem um lugar para construírem suas casas e viverem felizes Mas lembremse tomem muito cuidado com estranhos Assim as crianças saíram em busca de um lugar ideal para viverem e trilharam rumo à floresta Muito queriam viver em contato com a natureza com outros bichos e bichas E por isso andaram por dias até encontrarem o lugar em que as três pudessem fazer suas casas perto do que queriam e ainda próximas umas das outras Jésila sempre calma queria sua casa às margens do rio Para ela seria inadmissível viver sem o barulho das águas dos sapos e das pererecas Tefinha gulosa como ela só sonhava em construir uma casa num lugar cercado de frutas legumes e verduras Sua casa inteira deveria se misturar a um pomar carregado Castiel sempre avoada com seus cabelos de algodão azul desejava sua casa nos lugares mais altos para que suas madeixas se misturassem com as nuvens e virassem aconchego para pássaros e borboletas Foi nas terras de Seu Lobato Moreira que encontraram a terra de seus desejos Seu Moreira muito solícito e gentil com as tribichas fechou negócio de imediato As tribichas ficaram muito felizes e encantadas com o Seu Lobato Moreira nem sequer hesitaram quando ele as convidou para passarem alguns dias com ele em sua casa Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 20 Assim poderemos nos divertir enquanto constroem suas casas E dizendo isso arranjou para cada bicha um quarto em sua casa cheio de todas as regalias e fantasias que elas poderiam desejar A bem da verdade Seu Lobato parecia já conhecer cada uma das tribichas Passaram assim um bom tempo se conhecendo e se divertindo rindo e explorando os mistérios que as tribichas lançavam sobre Seu Lobato Moreira As tribichas o fascinavam e ele descobriase sempre um sonhador Em alguns dias Seu Moreira levava as tribichas em um passeio pelo lago noutros visitavam um bambuzal ou o interior de uma floresta Cada uma das tribichas despertava no Seu Lobato um sentimento diferente mas todas em absoluto adoravam sua companhia Contudo não para sempre ali poderiam ficar As tribichas tinham se dado um prazo e aquele prazo aos poucos se esgotava A primeira a partir foi Jésila Ela partiu para a beira do rio munida com todo o material que precisava Levou consigo apenas rolos de filó e cola quente Não queria uma casa que fechasse sua visão para o rio ou que lhe impedisse de ouvir os sons que lhe acalmavam Quando a casa ficou pronta logo chamou seus irmãos e Seu Moreira para verem sua obra A casa era linda e todos se encantaram com a criatividade da casa de Jésila A casa parecia uma saia de bailarina e assim dançaram a noite toda comemorando aquela alegria Depois de muito dançarem e cantarem embalados pelo canto dos grilos sapos e pererecas Seu Lobato Moreira de forma muito delicada e carinhosa disse Meu querido Jésila em noites de frio e chuva saiba que poderá sempre ficar em minha casa Aquele quarto com as cores do mar e cheio de caixinhas de música será sempre seu Venha sempre que precisar ou desejar Jésila carinhosamente abraçou Seu Moreira e lhe respondeu Estarei lá sempre que as noites se fizerem muito molhadas ou frientas E sorriram Tefinha vendo a alegria de seu irmão animouse e dirigiuse ao pomar que escolhera para sua casa Olhava de um lado ao outro para ver o que a natureza lhe oferecia e se encantou com uma parte do pomar em que as frutas se misturavam ao jardim cheio de bougainvilles orquídeas e azaleias E enquanto acertava as ramas e os cipós para sua construção anunciou feliz Debaixo desses caramanchões das bougainvilles serei muito feliz Estarei sempre na companhia de suas flores cores e cheiros E não me faltarão alimentos com essas laranjas mexericas e limões Logo que terminou os arranjos preparou um delicioso chá da tarde e chamou seus irmãos e Seu Lobato Moreira Pontualmente como britânicos os convidados chegaram Encantados com a casa de Tefinha conversaram tomaram chá de flor do campo e fizeram uma dança das flores enquanto se esbanjavam com frutas refrescantes Todos se enfeitaram com as flores de sua casa afinal beleza e perfume exalavam de todos os cantos Para azar da nossa bicha talvez os odores fossem tão agradáveis que inclusive pernilongos se sentiram convidados Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 21 Todas as vezes que os pernilongos não lhe derem sossego lembrese daquele seu quarto na estufa Não se esqueça das melhores laranjas e morangos de minha propriedade Por isso não se acanhe Não deixe os pernilongos beberem de seu sangue Venha sempre que quiser e desejar Dito isso Seu Lobato viu Tefinha sorrir e assentir timidamente Castiel sempre no mundo da lua das nuvens e das estrelas viu que precisava cumprir o trato e pegou a estradinha que a levava até o lugar escolhido para construir sua casa Artista que era Castiel carregava sempre uma bolsa fascinante e tudo o que lá não cabia acabava em seus cabelos Assim no alto de uma bela pedra Castiel tirou plásticos de todas as cores Rolos de plásticos durex fita duplaface tesouras grampeadores adesivos de estrelinhas Em um piscar de olhos lá estava a casa de plástico de Castiel E ela estava muito feliz De longe as irmãs e Seu Moreira ouviram os gritos de Castiel anunciando o jantar Todas subiram a rocha e se sentaram à linda mesa de plástico e começaram a jantar Porém enquanto comiam começaram a suar a suar e a suar a casa de plástico era muito quente Correram para fora e terminaram o jantar sob a luz do lar Seu Lobato sempre muito gentil foi logo dizendo Castiel aquele quarto no sótão cheio de nuvens na parede e perto das estrelas mais lindas continua do jeito que você deixou Todas as vezes que o calor não lhe deixar em paz e começar a derreter seus cachinhos de algodão doce venha O quarto do sótão será sempre seu E Castiel que não perdia tempo foi logo dizendo E é para lá que eu vou Aquela bicha jamais aceitaria viver sem seus cachos de algodão doce Assim passou uma bela noite na companhia de Seu Lobato Moreira Quando bem cedo na manhã seguinte preparavam o café da manhã pela janela avistaram Jésila chegando todo molhado A chuva da madrugada não lhe dera sossego Mas não apenas isso Sapos pererecas grilos e tantos outros bichos ocuparam sua casasaia sem pedir licença e com isso Jésila não resistiu Voltou correndo para a casa do Seu Moreira E com o carinho de sempre logo lhe ofereceu um belo banho quente e sua companhia Após o banho e o café da manhã Jésila Castiel e Seu Lobato eram pura alegria Gostavam de estar juntos Então de repente os três começaram a ouvir espirros cada vez mais próximos Tefinha vinha caminhando e quicando enquanto espirrava e esfregava seu nariz se avermelhando Tefinha se descobrira alérgica a alguma daquelas flores Não precisou nem sequer bater na porta suas irmãs e Seu Moreira já a esperavam na varanda da casa Logo que chegou Seu Lobato Moreira com seus braços fortes pegou Tefinha no colo e a colocou na cama com um maravilhoso chá para curar a alergia E de tempos em tempos lá estava Seu Moreira beirando a cama e lhe fazendo carícias Curiosamente a partir daquele dia ninguém mais falou de construção novamente Descobriram que não era preciso continuar a história de Dona Bicha Alexia Descobriramse para horror da comunidade onde cresceram felizes juntos e não apenas em pares De tempos em tempos Dona Alexia visitava a Casa Alegria Esse foi o nome dado à casa pelos quatro amigos E em todas as visitas ela trazia novidades da comunidade e morriam de rir com as fofocas e os boatos nutridos e inventados sobre as tribichas Só que Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 22 agora não eram mais as tribichas No meio do caminho encontraram um lobo e Seu Lobato acabou por ser mais uma delas Referências ARIÈS P A criança e a vida familiar no Antigo Regime Lisboa Relógio DÁgua 1988 BAPTISTA L A S A fábula do garoto que quanto mais falava sumia sem deixar vestígios cidade cotidiano e poder In MACIEL I M Org Psicologia e Educação Rio de Janeiro Ciência Moderna 2001 p 195209 BAPTISTA L A S Incêndios da infância atrevimento de uma arte cruel Childhood Philosophy Rio de Janeiro v 12 n 23 p 2745 2016 BENJAMIN W O narrador considerações sobre a obra de Nicolai Leskov In BENJAMIN W Magia e técnica arte e política ensaios sobre literatura e história da cultura São Paulo Brasiliense 1987 p 197221 DELEUZE G Lógica do sentido São Paulo Perspectiva 2007 DELEUZE G O que as crianças dizem In DELEUZE G Crítica e clínica São Paulo Ed 34 1997 p 7379 DELEUZE G GUATTARI F Mil platôs capitalismo e esquizofrenia vol 2 São Paulo Ed 34 1995 DELEUZE G GUATTARI F O antiédipo capitalismo e esquizofrenia 1 São Paulo Ed 34 2010 KATZ C S Crianceria o que é a criança Cadernos de Subjetividade São Paulo n esp p 9096 1996 LAPASSADE G SCHÉRER R O corpo interdito Lisboa LTC 1982 LOVECRAFT H P O horror sobrenatural na literatura Rio de Janeiro Francisco Alves 1987 NIETZSCHE F Verdade e mentira no sentido extramoral Comum Rio de Janeiro v 6 n 17 p 523 2001 NIETZSCHE F Assim falou Zaratustra um livro para todos e para ninguém Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2008 PRECIADO B Manifesto contrassexual São Paulo n1 2014 SCHÉRER R La pedagogía pervertida Barcelona Laertes 1983 SCHÉRER R HOCQUENGHEM G Coir álbum sistemático da infância Trad Eder Amaral Rio de Janeiro UERJ 2016 VIGOTSKI L S Psicologia da arte São Paulo Martins Fontes 1999 VIGOTSKI L S Psicologia pedagógica São Paulo Martins Fontes 2010 ZAMBONI J Educação bicha uma analrqueologia da diversidade sexual 2016 115 f Tese Doutorado em Educação Programa de PósGraduação em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória 2016 i Programa de PósGraduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo ii Universidade Federal do Espírito Santo iii Universidade Federal do Espírito Santo iv Universidade Federal do Espírito Santo v Universidade Federal do Espírito Santo vi Pensar a produção de subjetividade a invenção de maneiras de viver como lugar paisagem ou território implica romper com a concepção hegemônica de um sujeito transcendente ao mundo com a ideia de que subjetivo e objetivo se opõem necessariamente Desse modo o devir a transformação incessante não aparece como corrupção do real seja no imaginário subjetivo ou na destruição objetiva mas como processo inventivo inerente à realidade um devir não é imaginário assim como uma viagem não é real É o devir que faz do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar uma viagem e é o trajeto que faz do imaginário um devir DELEUZE 1997 Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 23 p 77 Sendo assim não há distinção entre real imaginário e simbólico pois todas essas dimensões são plenamente constitutivas da realidade DELEUZE GUATTARI 2010 vii Qualquer que seja o esforço empreendido pelo adulto para definila a criança será sempre bricolada uma bricolagem de que a criança é capaz de se apropriar e produzir por conta própria a ponto de se encantar com suas próprias produções SCHÉRER HOCQUENGHEM 2016 p 291 Por isso a criança implica uma multiplicidade um arranjo fragmentário e dispersivo em vez de referirse a uma unidade personológica faltosa a uma individualidade definida pela incompletude em relação ao ideal de humano viii René Schérer e Guy Hocquenghem 2016 p 155156 desenvolvem o conceito de sequestro para problematizar o lugar das crianças nas sociedades modernas O sequestro é uma relação entre adultos em que a criança se apresenta apenas como objeto supostamente precioso para seus pais único alvo de barganha Por decorrência o sequestro não faz mais que reproduzir as relações sociais existentes enquanto prática que se estabelece sobre as crianças consideradas como valor de troca na sociedade adulta ix Inspirados por Walter Benjamin 1987 procuramos nesse ensaio investir a narratividade dos contos de fadas contra a transcendência e o ascetismo das estruturações míticas do pensamento Dessa maneira pretendemos atacar a mitologia da infância invenção moderna ARIÈS 1988 fabulando criancerias KATZ 1996 como paisagens existenciais que questionam a idealidade do homem adulto como ser acabado ou meta de plenitude A criança pode assim figurar como afirmação inventiva movimento de criação de valores NIETZSCHE 2008 x Sobre o não tocar como princípio pedagógico que orienta a relação entre adultos e crianças no mundo ocidental ver as críticas análises de Georges Lapassade e René Schérer 1982 xi Corpo não corresponde a organismo em nossa concepção Em vez de delimitação e estruturação o corpo remete fundamentalmente a composição e potência Por isso o corpo da criança se orienta muito mais para o inumano ou sobrehumano do que para a emergência do homem em si SCHÉRER HOCQUENGHEM 2016 xii Os incorporais são efeitos dos choques entre os corpos resultados das ações e paixões corporais constituem acontecimentos como um tipo de transformação da realidade distinto das mudanças corporais DELEUZE 2007 DELEUZE GUATTARI 1995 Por exemplo a mudança imediata de faixa etária que ocorre em função do acontecimento aniversário é distinta da modificação corporal mediada por uma série de relações com outros corpos e que resulta em processos de crescimento maturação adoecimento envelhecimento dentre outros xiii Compreendese a produção de verdade a partir de convenções discursivas tramadas coletivamente e implicando a exclusão de outras possíveis verdades como enunciados falsos A mútua exclusão entre verdadeiro e falso bem como a necessidade de um acordo coletivo como substrato da verdade são discutidas por Nietzsche 2001 xiv Infância é a arte de se manter sempre fora de alcance de confundir a lógica adulta pela rapidez de seus deslocamentos À maneira de um rascunho ou de um esboço a Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 24 criança é permanentemente arrancada de cada uma das intervenções que a circunscrevem O essencial é saber se colocar na posição precisa de recolhêla SCHÉRER HOCQUENGHEM 2016 p 190 xv Pensar a bicha implica menos uma imagem identidade e mais as virtualidades de um devir ao mesmo tempo situado e abstrato Zamboni 2016 aposta na bicha como uma potência éticoestética que sacode certezas nos dispositivos de gênero e sexualidade Para nós a bicha não se define pelas suas relações sexuais mas antes pensamos no quanto essa figura variante coloca em evidência impossibilidades nos arranjos centrados da normatividade pretensamente natural da heterossexualidade Como Beatriz Preciado 2014 argumenta a heterossexualidade deve ser a todo o momento reafirmada e produzida em larga escala para se garantir como natural daí portanto a importância da bicha como esse corpo ativamente envolvido no escracho e no escárnio dessa natureza heterocentrada É nesse sentido que usamos ao longo do texto o conceito de bicha xvi Schérer e Hocquenghem 2016 definem o monstro como aquele que se mostra aquele que se aponta na rua ao contrário dos familiares que habitam a intimidade do privado É o monstro que possibilita à criança por meio do rapto a fuga das instituições que a cerceiam A monstruosidade incide em todo sujeito que ousa entrar em contato com as crianças fora dos circuitos codificados e instituídos da família e da escola principalmente sendo logo identificados como perigosos xvii Lev Vigotski 1999 2010 ressaltando a composição estética da fábula ataca a suposta dependência da literatura em relação à moral a uma ideia por trás ou para além do texto Nesse sentido lembra como as crianças subvertem a moral das histórias infantis assumindo perspectivas diversas e produzindo uma multiplicidade de sentidos a partir dos afetos produzidos pela fábula Para Benjamin 1987 a potência e a vitalidade da narrativa dependem do fato de não haver recurso a explicações psicológicas para as ações de maneira que não se pode determinar um único sentido ou explicação cabal para a história sendo possível conviverem infinitas interpretações Na fábula ou na narrativa encontramos resistência a deixaremse tornar meros veículos seja para uma ideia moral seja para uma informação de fatos Há portanto uma dimensão estética criadora de valores a partir dos afetos que resiste à significação de uma moral na elaboração discursiva xviii As crianças sempre terão medo do escuro os homens de mente sensível ao impulso hereditário sempre tremerão ao pensamento de mundos ocultos e insondáveis de vida diferente que quem sabe pulsam nos abismos além das estrelas ou sinistramente oprimem o nosso próprio globo em dimensões perversas que somente os mortos e os dementes podem vislumbrar LOVECRAFT 1987 p 4 xix O corpo desbotado era tão desbotado que impossibilitava o reconhecimento de sua idade ou gênero Desbotou porque gastava muito corpo Vive sempre lutando às vezes vigoroso mas sempre em alerta Esmaeceu a pele devido aos usos táticas desusos astúcias utilizados no presente e no passado em séculos de enfrentamentos BAPTISTA 1999 p 196 Revista Interinstitucional Artes de Educar Rio de Janeiro V 3 N 1 pag 1025 mar jun 2017 Gênero Sexualidade Política e Educação 25 xx Em qualquer lugar do mundo onde as fronteiras são porosas a infância desvencilha da faca na garganta o céu é visto repleto de imagens de animais de objetos e pessoas de mares e rios de pedaços incompletos de dores e alegrias Imagens que cintilam como estrelas Nesta constelação o passado o presente e o futuro brilham juntos mudam de cor e tamanho A origem e o fim de qualquer trama extinguemse No infinito do céu o tempo é inquieto como a chama soprada pelo vento A faca cravada na garganta da infância é difícil de retirar disse diz e dirá o homem Sem a faca ele tornase o atrevimento de uma arte cruel BAPTISTA 2016 p 42 xxi Schérer LAPASSADE SCHÉRER 1982 SCHÉRER 1983 discute o desejo de morte das crianças que afeta as famílias as escolas e as instituições modernas A DÍVIDA IMPAGÁVEL Denise Ferreira da Silva 33 Por onde começar Desde onde começar a tarefa de expor capturar e dissolver de apresentar o que excede e desafia o pensamento A preocupação que tece o fio que liga os ensaios aqui coletados de uma certa forma sinaliza a impossibilidade indicada por estas perguntas Na verdade é possível dizer que esta compartilha da mesma incompreensibilidade e improbabilidade que tento capturar na imagem poética negra feminista que dá nome a esta coletânea Pois como uma imagem antidialética A Divida Impagável não faz mais do que registrar ao tentar interromper o desdobrar da lógica perversa que oclui a maneira como desde o fim do século XIX a racialidade opera como um arsenal ético em conjunto por dentro ao lado e semprejá adiante das arquiteturas jurídicoeconômicas que constituem o par EstadoCapital Esta lógica perversa a qual chamo de dialética racial tem me ocupado por mais de trinta anos Desde o início quando era estudante no programa de Mestrado em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro e trabalhava como pesquisadora no Centro de Estudos AfroAsiáticos CEAA sob a direção de Carlos Hasenbalg a minha atenção se voltou à representação moderna como momento significativo da subjugação racial Já o título da dissertação de mestrado que defendi em 1991 desenvolvida sob a orientação de Yvonne Maggie O Negro na Modernidade Cor e Exclusão Simbólica na Novela das Oito indica uma apreensão transversal dos conteúdos de um treinamento acadêmico no IFCS e no CEAA que combinava Estudos AfroBrasileiros Yvonne Maggie e Sociologia das Relações Raciais Carlos Hasenbalg Em vez de desenvolver um estudo de audiência ou de texto que explicaria as ideias sobre a negridade que justificariam o fato de as novelas da época empregarem um número insignificante de atores negros e a maioria nos papéis típicos de empregada doméstica ou bandido Eu reverti o movimento analítico e DiAntes do Texto 34 35 para fazer o doutorado eu acompanhei as revoltas em Los Angeles em resposta à absolvição dos policiais que bateram em Rodney King No ano seguinte 1993 acompanhei de longe a revolta dos residentes de Vigário Geral em resposta ao assassinato de 21 pessoas por policiais militares Outros casos de violência policial no Brasil e nos Estados Unidos os quais receberam mais ou menos atenção Entre eles a tortura de Abner Loima por policiais de New York em 1997 e o caso de Amadou Diallo o qual foi morto com 41 tiros dados a queima roupa por quatro membros da Street Crime Unit do Departamento de Polícia de New York em fevereiro de 1999 A lista continua Nos vinte anos que separam aquele evento racial e este momento em que escrevo esta introdução muitos outros homens e mulheres jovens idosos e crianças negras foram mortas ou deixadas morrer pela polícia e outras instituições de aplicação da lei Na maioria desses casos as cortes de administração de justiça não registraram essas mortes como crime em decisões que insistentemente mobilizaram a negridade das vítimas ou dos lugares onde foram mortas como evidência de que a violência total foi uma resposta lógica a uma situação de perigo mortal ou seja o fato de que os que dispararam os tiros se encontravam diante de uma corpo negro ou num território negro Quando se contempla as operações da racialidade num contexto mais amplo global seria quase impossível não concluir que a mesma tem um papel crucial para o capital se a sua ferramenta mais consistentemente empregada no século XX a diferença racial não fosse tão eficaz ao transubstancializar os efeitos de mecanismos coloniais de expropriação em defeitos naturais intelectuais e morais que são sinalizados por diferenças físicas práticas instituições etc Se tomarmos por exemplo os últimos vinte anos é possível compor uma lista longa de eventos globais quase todos relacionados com as guerras locais e regionais que embora causem o deslocamento de populações não parecem ter qualquer efeito sobre a decidi examinar a imagem da sociedade brasileira expressa pela forma como as poucas tramas envolvendo personagens negros foram resolvidas O principal argumento da dissertação de que a representação de negros nas novelas das oito da TV Globo que foram ao ar entre 1979 e 1988 expressava um projeto nacional de modernidade vista como contingente no desaparecimento do negro apesar da então ainda celebrada democracia racial Entre outros argumentos o Negro na Modernidade já apresentava uma versão da ideia que foi desenvolvida na minha tese de doutorado publicada com o título de Toward a Global Idea of Race em 2007 a de que além da lógica da exclusão a explicação sociológica da subjugação racial há uma lógica da obliteração que permeia as ferramentas do conhecimento racial Isto precisamente porque sem ela a construção do sujeito moderno como uma coisa autodeterminada não se sustentaria principalmente após a articulação hegeliana da razão transcendental como Espírito Não há lugar para sumarizar os argumentos desenvolvidos nestes dois textos aqui Só os menciono porque a mim surpreende o fato de que a mesma preocupação anima textos tão diferentes e que respondem a circunstâncias aparentemente diferentes como a minha dissertação de mestrado Rio de Janeiro nos anos 80 a tese de doutorado Estados Unidos nos anos 90 e os experimentos poéticos escritos nos últimos 5 anos que compõem este volume Infelizmente os processos nacionais e globais por traz desta preocupação não são surpreendentes Ao contrário Já nos meados dos anos 80 a violência policial encabeçava a minha lista de evidências de subjugação racial Para mim pelo menos fazia sentido pois eu pertenço à geração de adolescentes negras que viu aumentar no final dos anos 70 a incidência de mortes de jovens negros devido à entrada de armas automáticas e cocaína e à violência policial nas comunidades economicamente defasadas dos morros e periferias da cidade do Rio de Janeiro Em 1992 quando tinha acabado de chegar aos Estados Unidos para onde fui 36 37 começa com o reconhecimento de que o conceito do racial refigura ao nível do simbólico a violência total colonial que sustenta a expropriação monetária e simbólica da capacidade produtiva de terras e corpos nãoeuropeus e porque ele carrega em si este efeito do racial este modo de intervenção a poética negra feminista pode se dar ao luxo de violar a regras do pensamento moderno Na verdade qualquer análise séria do modo corrente de operação do duo EstadoCapital exige uma atenção à gramática racial porque esta organiza o espaço global orientado pela realização da necessidade de dirimir e dissipar os efeitos da racialidade A poética negra feminista vislumbra a impossibilidade da justiça a qual desde a perspectiva do sujeito racial subalterno requer nada mais nada menos do que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido isto é do Mundo Ordenado diante do qual decolonização ou a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos é tão improvável quanto incompreensível O que está em disputa O que precisará ser renunciado para conseguirmos libertar a capacidade criativa radical da imaginação e dela obtermos o que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo outramente Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma Os primeiros pensadores da filosofia natural Galileu 15641642 e Descartes 15961650 e da física clássica Newton 16431727 herdaram a visão da Antiguidade sobre a matéria a noção que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam presentes no pensamento como solidez extensão peso gravidade e movimento no espaço e no tempo De qualquer maneira a afirmação de que a mente humana é capaz de conhecer as propriedades dos corpos com certeza isto é sem a mediação do divino regente e autor do Livro da Natureza baseouse em Os Três Pilares Ontoepistemológicos expropriação e exploração de terras e corpos Nesta lista eu incluo por exemplo a invasão do Afeganistão e do Iraque no início deste século os conflitos incessantes na República Democrática do Congo e depois no Sudão Nigéria Etiópia Eritreia e agora a guerra na Síria Yemen e outros conflitos de baixa intensidade midiática que se observam no Haiti Jamaica Colômbia Venezuela México e nas comunidades economicamente despossuídas no Brasil e Estados Unidos Em combinação com os desastres causadas pelo aquecimento global e pelas políticas neoliberais implementadas pelos governos estas guerras estão por traz da última crise a atingir a Europa a crise dos refugiados a qual entre outras coisas facilitou tanto um endurecimento do aparato de policiamento das fronteiras como o crescimento de discursos e práticas que mobilizam uma forma letal branca de política de identidade De uma certa forma A Divida Impagável oferece uma recomposição possível desta preocupação Em vez de fornecer uma análise de casos específicos ou uma crítica das instituições de aplicação da lei o que faço em outros textos minha manobra aqui é começar com e de uma certa forma aceitar o fato de que a justiça falha diante de corpos e territórios negros os quais ela só pode conceber como excessivamente violentos e desde aí prosseguir com uma exploração das possibilidades abrigadas por esta construção Nesta recomposição este livro também ativa um modo de intervenção a poética negra feminista o qual não somente expõe a perversidade da lógica que transubstancia os resultados da violência total característica da arquitetura colonial em atributos naturais significados por corpos negros mas identifica e mobiliza o excesso que sustenta a lógica como um índice de uma outra imagem do mundo e das possibilidades que esta abriga Este modo de intervenção porque preocupado compelos limites da justiça não precisa levar em consideração as limitações do pensar impostas pelos pilares ontoepistemológicos do pensamento moderno Porque 38 39 tornar também um descritor das condições humanas assim constituindo uma ameaça letal ao ideal da liberdade humana Porém dois elementos entrelaçados do programa kantiano continuam a influenciar projetos epistemológicos e éticos contemporâneos a separabilidade isto é a ideia de que tudo o que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas espaço e tempo da intuição e as categorias do Entendimento quantidade qualidade relação modalidade todas as demais categorias a respeito das coisas do mundo permanecem inacessíveis e portanto irrelevantes para o conhecimento e consequentemente b determinabilidade a ideia de que o conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados para determinar isto é decidir a verdadeira natureza das impressões sensíveis reunidas pelas formas da intuição Algumas décadas depois da publicação das principais obras de Kant Hegel 17771831 tratou da ameaça à liberdade com um sistema filosófico responsável por inverter o programa kantiano através de um método dialético que atingiu dois objetivos a a noção de atualização actualization em que corpo e mente espaço e tempo Natureza e Razão são duas manifestações da mesma entidade a saber o Espírito ou a Razão enquanto Liberdade e b a noção de sequencialidade que descreve o Espírito como movimento no tempo um processo de autodesenvolvimento e a História como a trajetória do Espírito Com essas manobras ele introduz uma versão temporal da diferença cultural representada pela atualização dos diferentes momentos do desenvolvimento do Espírito e postula que as configurações sociais da Europa pósIluminista são o ápice do desenvolvimento do Espírito duas rupturas com a filosofia escolástica Em primeiro lugar os filósofos do século XVII que se autodenominavam modernos criaram um programa do conhecimento preocupado como o que chamaram de causas secundárias eficientes do movimento que geram transformações na aparência das coisas na natureza e não com as causas primordiais finais das coisas ou com o propósito finalidade de sua existência Em segundo em vez de se basearem na necessidade lógica de Aristóteles 384322 aC para garantirem a exatidão de suas descobertas filósofos como Galileu se apoiaram na necessidade característica da matemática ou mais precisamente nas demonstrações geométricas como base para a certeza Indiscutivelmente esses filósofos herdaram textos anteriores sobre a excepcionalidade do Homem sua alma seu livre arbítrio sua capacidade de raciocínio etc No século XVII contudo Descartes introduziu uma separação entre a mente e o corpo em que a mente humana por causa de sua natureza formal adquire a capacidade de determinar a verdade tanto sobre o corpo do homem quanto sobre qualquer coisa que compartilhe seus atributos formais como solidez extensão e peso Essa separação é justamente o que o sistema filosófico de Kant desenvolvido a partir do programa de Newton consolida especialmente a ideia de que o conhecimento é responsável por identificar as forças ou leis limitantes que determinam o que ocorre nas coisas e eventos fenômenos observados1 A arquitetura de um sistema que era sustentado primordialmente pelos poderes da razão e não pelo divino criador justamente o objetivo alcançado por Kant incomodou seus contemporâneos Os últimos viam a possibilidade da determinação formal se 1 Ver KANT Immanuel Critique of Pure Reason Cambridge Cambridge University Press 1998 Em português KANT Immanuel Crítica da razão pura 7a ed Trad Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2010 40 41 do homem Além dos traços externos usados no mapeamento da natureza conduzido pela História Natural os autoproclamados cientistas do homem desenvolveram suas próprias ferramentas formais isto é ferramentas matemáticas como o índice facial para medir corpos humanos esta que se tornaria a base da descrição e da classificação dos atributos mentais dos homens tanto morais quanto intelectuais em uma escala que supostamente registraria o grau de desenvolvimento cultural Segundo no século XX o físico convertido em antropólogo Franz Boas 18581942 previsivelmente executa uma mudança importante no conhecimento da condição humana ao argumentar que os aspectos sociais em vez dos biológicos explicam a variação dos conteúdos mentais morais e intelectuais Dessa maneira ele articula um conceito da diferença cultural que abriga aspectos temporais e espaciais Segundo Boas o estudo dos conteúdos mentais deveria abordar as formas culturais ou padrões de pensamento que surgiram nos primeiros momentos da existência de uma coletividade e foram manifestados pelas crenças e práticas de seus integrantes Ao irromper e consolidarse no tempo ele argumenta as formas culturais não físicas explicam as diferenças mentais perceptíveis morais e intelectuais A escola antropológica inaugurada por ele ou seja a antropologia cultural marcou uma mudança metodológica isto é uma ruptura com as visões etnocêntricas da diferença humana que ecoa com uma mudança importante na física a saber o princípio da relatividade de Einstein2 Na segunda metade do século XX em meados da década de 1970 encontramos a física de partículas no trabalho do filósofo francês Michel Foucault 19261984 abrindo novas perspectivas para o pensamento crítico Foucault estabelece 2 KROEBER Alfred Anthropology Nova York Harcourt and Brace 1948 p1 O Pensar da Diferença Cultural Desde a consolidação do programa kantiano no contexto pós Iluminista a física forneceu modelos para estudos científicos sobre as condições humanas uma tarefa facilitada pela narrativa de Hegel sobre o tempo enquanto a força produtiva e o teatro do conhecimento e da moralidade Infelizmente esses modelos foram bemsucedidos justamente devido ao fato desses textos sobre o humano como uma coisa social terem como base as mesmas rupturas em relação à filosofia medieval precisamente o que sustentou a reivindicação dos filósofos modernos por um conhecimento com certeza isto é a partir de causas eficientes e demonstrações matemáticas que são a base do texto moderno A dialética racial ativada pelas reações ao fluxo de refugiados em direção à Europa é apenas uma repetição do texto moderno Além de persistir na reivindicação da certeza seus enunciados sobre a verdade firmamse sobre os mesmos pilares separabilidade determinabilidade e sequencialidade montados por filósofos modernos para sustentar seu programa de conhecimento Deixe me rever brevemente dois momentos de confecção das ferramentas da dialética racial Primeiro a ciência da vida tal como definida inicialmente por George Cuvier 17691832 embora modelada a partir da filosofia natural de Newton ainda se baseava tanto no modelo descritivo articulado no princípio da história natural quanto introduzia a Vida como causa eficiente e final das coisas vivas Posteriormente no século XIX depois que Darwin 18091882 divulgou suas descrições da Natureza viva em que a diferenciação irrompe como resultado do princípio racional uma causa eficiente que opera no tempo através da força ou seja o princípio da seleção natural ou como resultado da luta pela sobrevivência a ciência da vida passaria a conduzir um programa do conhecimento da existência humana isto é a antropologia do século XIX ou a ciência 42 43 Ao acompanhar as mais recentes reações da Europa em relação à crise dos refugiados vemos como a diferença cultural descreve o mundo contemporâneo atolado no medo e na incerteza a identidade Étnica cria esta situação através dos enunciados que nomeiam o Outro ameaçador isto é os que buscam refúgio na Europa por causa das guerras no Oriente Médio da instabilidade política no Leste e no Norte da África e dos conflitos estimulados pela exploração dos recursos naturais no Oeste da África No Brasil enquanto isso este cenário é manifestado pelos que derrubaram o governo da presidenta Dilma Rousseff e pelo governo atual que está destruindo todos os ganhos sociais dos últimos cem anos e em particular daqueles que só recentemente tiveram seus direitos reconhecidos com base em sua identidade de gênero sexual racial e religiosa social Em ambos os casos a diferença cultural sustenta um discurso moral cujo pilar é o princípio da separabilidade Esse princípio considera o social um todo composto de partes formalmente independentes Cada uma dessas partes por sua vez constitui tanto uma forma social quanto unidades geográfica e historicamente separadas que como tal ocupam posições diferentes perante a noção ética da humanidade identificada com as particularidades das coletividades brancoeuropeias Por isso a intenção poética negra feminista segue a trilha aberta por perguntas como E se em vez de o Mundo Ordenado imageássemos cada coisa existente humano e maisquehumano como expressões singulares de cada um dos outros existentes e também do tudo implicado em quecomo elas existem ao invés de como formas separadas que se relacionam através da mediação de forças E se em vez de procurar por modelos na física de partículas capazes de produzir análises mais científicas e críticas do social nos concentrássemos em suas descobertas mais perturbadoras por exemplo a nãolocalidade como princípio epistemológico e a virtualidade como descritor ontológico O Mundo Implicado por exemplo uma distinção entre o modo de operação do poder jurídicopolítico que se assemelha aos acontecimentos envolvendo corpos maiores tal como expresso nas leis do movimento de Newton e o que ele chama de microfísica do poder que atua primordialmente através da linguagem do discurso e das instituições3 A segunda perspectiva descreve o poderconhecimento como o produtor dos seus próprios sujeitos e objetos e ao atuar no nível do desejo assim como os experimentos da mecânica quântica que inspiraram o princípio da incerteza de Heisenberg mostra como o aparato determina os atributos das partículas em observação Durante séculos como esses exemplos indicam avanços na física pósclássica isto é a relatividade e a mecânica quântica foram cruciais para o desenvolvimento de abordagens teóricas e metodológicas no estudo das questões econômicas jurídicas éticas e políticas que tanto produziram quanto reafirmaram as diferenças humanas4 Infelizmente no entanto tais avanços ainda não inspiraram imagens da diferença sem separabilidade seja a diferença espaçotemporal como nas coletividades culturais Boas ou a diferença formal como no sujeito discursivamente produzido Foucault Previsivelmente eles aprofundaram ainda mais a ideia de cultura e os conteúdos mentais referidos pela mesma como expressões de uma separação fundamental entre grupos humanos em relação à nacionalidade etnicidade e identidade de gênero sexual e racial social 3 Ver por exemplo FOUCAULT Michel Discipline and Punish Nova York Vintage Books 1977 em português FOUCAULT Michel Vigiar e punir Nascimento da prisão 40a ed Trad Raquel Ramalhete Petrópolis Vozes 2012 4 Os Novos Materialistas também baseiamse nas descobertas da física de partículas Ver COOLE Diana e FROST Samantha New Materialisms Ontology Agency Politics Durham Duke University Press 2010 44 45 palavras às coisas tal como são acessíveis aos sentidos no espaçotempo A nãolocalidade expõe uma realidade mais complexa na qual tudo possui uma existência atual actual espaçotempo e virtual nãolocal Sendo assim por que então não pensar a existência humana da mesma maneira Por que não presumir que além de suas condições físicas corporais e geográficas de existência em sua constituição fundamental no nível subatômico os humanos existam emaranhados com todas as coisas animadas e inanimadas do universo Por que não considerar a diferença humana justamente o que antropólogos e sociólogos dos séculos XIX e XX selecionaram como descritor humano fundamental enquanto efeito tanto das condições do espaçotempo quanto de um programa do conhecimento modelado a partir da física newtoniana a antropologia do século XIX e einsteiniana o conhecimento social científico do século XX no qual a separabilidade é um princípio ontológico privilegiado Sem a separabilidade a diferença entre grupos humanos e entre entidades humanas e não humanas possui poder explicativo e significado ético muito limitados Afinal como a nãolocalidade presume além das superfícies em que a noção dominante da diferença é inscrita tudo no universo coexiste tal como Leibniz 1646 1716 descreve isto é enquanto expressão singular de todas as coisas no universo Sem a separabilidade é impossível reduzir o conhecer e o pensar à determinação tanto na distinção cartesiana entre mentecorpo na qual o segundo tem o poder de determinar quanto na redução formal kantiana do conhecimento a um tipo de causalidade eficiente Sem a separabilidade a sequencialidade o pilar ontoepistemológico de Hegel não é capaz de explicar os diversos modos de existência humana no mundo já que a autodeterminação possui uma área muito limitada o espaçotempo de operação Quando a não localidade orienta nosso imagear do universo a diferença não é uma manifestação de um estranhamento irresolúvel mas a como descritores poéticos isto é indicadores da impossibilidade de se compreender a existência com as ferramentas do pensamento que sempre reproduzem a separabilidade e seus pilares a saber a determinabilidade e a sequencialidade Os capítulos que compõem A Divida Impagável vislumbram o que tornase acessível à imaginação o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação Quando em vez da ordem do Sujeito o pensamento atende à infinidade que A Coisa tanto abriga e oferece Aqui as falhas da física de partículas quântica oferecem a possibilidade de pensar fora dos limites da física de corpos clássica Por exemplo o princípio da nãolocalidade sustenta um modo de pensamento que não reproduz as bases metodológicas e ontológicas do sujeito moderno isto é a temporalidade linear e a separação espacial Justamente porque rompe essas articulações do tempo e do espaço a nãolocalidade nos permite imaginar a socialidade de tal maneira que contemplar a diferença não pressupõe separabilidade determinabilidade e sequencialidade os três pilares ontológicos que sustentam o pensamento moderno No universo nãolocal o deslocamento movimento no espaço e a relação conexão entre coisas espacialmente separadas não descrevem o que acontece porque as partículas implicadas entangled isto é todas as partículas existentes existem umas com as outras sem espaçotempo Embora os comentários de Kant sobre o que na Coisa é irrelevante para o conhecimento dispensem considerações metafísicas também sugerem que a realidade descrita na física de Newton e mais tarde na de Einstein 18791955 é um retrato limitado do Mundo porque se refere apenas aos fenômenos em outras Sobre Diferença Sem Separabilidade 46 47 do excesso nos moldes da gramática do Sujeito o argumento movese em direção a A Coisa diante da qual a indiferença ética que justifica o excesso que é violência racial revelase como uma resposta à possibilidade de existir e pensar outramente Aqui o corpo sexual da nativaescrava figura a posição desde a qual o pensamento atende a A Coisa Não como um significante mas por ser sistematicamente rejeitado como significante de qualquer expressão ou atualização do Sujeito O capítulo seguinte Para Uma Poética Negra Feminista A Questão da Negridade Para o Fim do Mundo prossegue com a exploração desta possibilidade indicada pelo corpo sexual da nativaescrava através da delimitação da postura de intervenção que atende ao Mundo Ordenado mas em vez de tentar recompôlo como tal a poética negra feminista retraça enunciados que exibem como este emerge desde uma premissa de profunda separação do Sujeito do Mundo Lendo a negridade contra a corrente de sua função como categoria torna possível atender à separabilidade que inaugura o Sujeito mas em vez de uma manobra que tentaria recuperar suas promessas universalistas ou transcendentais a poética negra feminista retorna ao Mundo e experimenta com a descrição da existência sob a imagem do Mundo Implicado ou Corpus Infinitum Os capítulos seguintes prosseguem com a ativação da capacidade dual da negridade como categoria e referente através de experimentos de pensamento que atendem às duas cenas do Sujeito a cena ética e a cena econômica onde a dialética racial opera como um mecanismo dos pilares do pensamento moderno O terceiro capítulo 1 VIDA 0 NEGRIDADE OU Sobre a Matéria para Além da Equação de Valor confronta a violência racial diretamente Em vez de registrar e tentar deslocar a indiferença à mobilização de violência total contra corpos e territórios negros aqui eu ativo a capacidade interruptiva da negridade e torno sua falta de valor ético em uma ferramenta analítica a qual mobiliza a determinabilidade capaz de expressão de uma implicação elementar Isto é quando o social reflete o Mundo Implicado a socialidade não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes separados mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais virtuais do universo ou seja como Corpus Infinitum Os ensaios que compõem A Divida Impagável não fazem mais do que aproximar a esta imagem do Mundo sem separabilidade e os outros pilares ontoespistemológicos que esta necessita e através dos quais opera Por isso este volume não oferece nem uma teoria nem um método Em vez desses elementos comuns no pensamento moderno o modelo de intervenção que o organiza simplesmente manifesta uma postura de pensamento que não move para aprender decidir e dominar o que contempla Ao contrário porque já começa com a premissa de uma implicabilidade fundamental a todos os níveis o olhar analítico manifestado nestes textos é mobilizado pelo o que atende e por isso sua intencionalidade já esta também mediada ou seja cada movimento do texto cada elemento articulado para formar um argumento está profundamente afetado Desde esta posição já comprometido com o que ainda está para oferecer e com aquilo do qual parte cada capítulo endereça e enfoca de uma maneira específica num aspecto da ordem do pensamento moderno O primeiro capítulo A Ser Anunciado Uma Práxis Radical ou Conhecer nos Limites da Justiça começa por situar a questão da justiça no momento do conhecer mas o faz num movimento contrário ao do conhecimento moderno Quero dizer em vez de seguir o procedimento usual e tentar reconstituir o que examina a saber a violência contra o outro racial como expressão Pela Frente 48 desfazer o texto ético moderno Aqui também esta capacidade interruptiva não leva à delimitação de um outro terreno onde a aplicação das formalizações que constituem o Mundo Ordenado poderia finalmente tornar a justiça universal Porque a coerência do texto moderno depende da oclusão da negridade como índice ético e econômico quando esta última é ativada na decomposição da formulação ética a equação do valor não faz mais do que sinalizar a possibilidade de figurar o Mundo sem determinação ou O último capítulo A Dívida Impagável Lendo Cenas de Valor Contra a Flecha do Tempo dá prosseguimento ao engajamento com as cenas ética e econômica do Sujeito O experimento de pensamento aqui também enfoca as formalizações do pensamento moderno mas em vez da matemática o foco aqui é no processo analítico e em particular na construção dos conceitos e na delimitação do escopo da teoria do capital à qual estes pertencem Numa confrontação direta com o materialismo histórico volto minha atenção a como a sequencialidade opera na delimitação do conceito que compreende a totalidade do modo capitalista de produção a saber o trabalho assalariado O foco central aqui é como a temporalidade linear opera na construção dos conceitos do materialismo histórico de forma a ocluir a colonialidade e a escravidão quero dizer a rejeitar seu poder explanatório do funcionamento do capital propriamente dito mesmo quando aparentemente os inclui Como tudo no Mundo Implicado os ensaios que compõem A Dívida Impagável são nada mais do que um momento o qual registra uma certa configuração de um processo sem fim Eu paro aqui diante deste momento desta versão de um texto que comecei a escrever há mais de trinta anos atrás um texto que continua a ser escrito cada vez que eu compartilho ou outras pessoas compartilham as propostas exercícios e formulações que o compõe IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO Capa Folha de rosto Sumário Ideias para adiar o fim do mundo Do sonho e da terra A humanidade que pensamos ser Referências Sobre o autor Sobre este livro Créditos 3 IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO A primeira vez que desembarquei no aeroporto de Lisboa tive uma sensação estranha Por mais de cinquenta anos evitei atravessar o oceano por razões afetivas e históricas Eu achava que não tinha muita coisa para conversar com os portugueses não que isso fosse uma grande questão mas era algo que eu evitava Quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e companhia recusei um convite para vir a Portugal Eu disse Essa é uma típica festa portuguesa vocês vão celebrar a invasão do meu canto do mundo Não vou não Porém não transformei isso numa rixa e pensei Vamos ver o que acontece no futuro Em 2017 ano em que Lisboa foi capital iberoamericana de cultura ocorreu um ciclo de eventos muito interessante com performances de teatro mostra de cinema e palestras De novo fui convidado a participar e dessa vez nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro faria uma conferência no teatro Maria Matos chamada Os involuntários da pátria Então pensei Esse assunto me interessa vou também No dia seguinte ao da fala do Eduardo tive a oportunidade de encontrar muita gente que se interessou pela estreia do documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra dirigido por Marco Altberg O filme é uma boa introdução ao tema que quero tratar como é que ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos nós construímos a ideia de humanidade Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos justificando o uso da violência 7 A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida trazendoa para essa luz incrível Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra uma certa verdade ou uma concepção de verdade que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história Agora no começo do século XXI algumas colaborações entre pensadores com visões distintas originadas em diferentes culturas possibilitam uma crítica dessa ideia Somos mesmo uma humanidade Pensemos nas nossas instituições mais bem consolidadas como universidades ou organismos multilaterais que surgiram no século XX Banco Mundial Organização dos Estados Americanos OEA Organização das Nações Unidas ONU Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura Unesco Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela mineração Para essa instituição é como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra Se sobrevivermos vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente não comeu e os nossos netos ou tataranetos ou os netos de nossos tataranetos vão poder passear para ver como era a Terra no passado Essas agências e instituições foram configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade E nós legitimamos sua perpetuação aceitamos suas decisões que muitas vezes são ruins e nos causam perdas porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser As andanças que fiz por diferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esse clube da humanidade E fiquei pensando Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção criação existência e liberdade Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam 8 que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem Em vez disso seguimos arrumando um jeito de projetar outras iguais a elas que também poderiam manter a nossa coesão como humanidade Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70 estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias para virar mão de obra em centros urbanos Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos de seus lugares de origem e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral com as referências que dão sustentação a uma identidade vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos Ideias para adiar o fim do mundo esse título é uma provocação Eu estava no quintal de casa quando me trouxeram o telefone dizendo Estão te chamando lá da Universidade de Brasília para você participar de um encontro sobre desenvolvimento sustentável A UnB tem um centro de desenvolvimento sustentável com programa de mestrado Eu fiquei muito feliz com o convite e o aceitei então me disseram Você precisa dar um título para a sua palestra Eu estava tão envolvido com as minhas atividades no quintal que respondi Ideias para adiar o fim do mundo A pessoa levou a sério e colocou isso no programa Depois de uns três meses me ligaram É amanhã você está com a sua passagem de avião para Brasília Amanhã É amanhã você vai fazer aquela palestra sobre as ideias para adiar o fim do mundo No dia seguinte estava chovendo e eu pensei Que ótimo não vai aparecer ninguém Mas para minha surpresa o auditório estava lotado Perguntei Mas todo esse pessoal está no mestrado Meus amigos disseram Que nada alunos do campus todo estão aqui querendo saber essa história de adiar o fim do mundo Eu respondi Eu também Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza Fomos durante muito tempo embalados com a história de que somos a humanidade Enquanto isso enquanto seu lobo não vem 9 fomos nos alienando desse organismo de que somos parte a Terra e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós outra a Terra e a humanidade Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza Tudo é natureza O cosmos é natureza Tudo em que eu consigo pensar é natureza Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi Ele tinha pedido que alguém daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar Quando foi encontrála ela estava parada perto de uma rocha O pesquisador ficou esperando até que falou Ela não vai conversar comigo não Ao que seu facilitador respondeu Ela está conversando com a irmã dela Mas é uma pedra E o camarada disse Qual é o problema Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio na direita tem uma serra Aprendi que aquela serra tem nome Takukrak e personalidade De manhã cedo de lá do terreiro da aldeia as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto Quando ela está com uma cara do tipo não estou para conversa hoje as pessoas já ficam atentas Quando ela amanhece esplêndida bonita com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça toda enfeitada o pessoal fala Pode fazer festa dançar pescar pode fazer o que quiser Assim como aquela senhora hopi que conversava com a pedra sua irmã tem um monte de gente que fala com montanhas No Equador na Colômbia em algumas dessas regiões dos Andes você encontra lugares onde as montanhas formam casais Tem mãe pai filho tem uma família de montanhas que troca afeto faz trocas E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas dão comida dão presentes ganham presentes das montanhas Por que essas narrativas não nos entusiasmam Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante superficial que quer contar a mesma história para a gente Os Massai no Quênia tiveram um conflito com a administração colonial porque os ingleses queriam que a montanha deles virasse um parque Eles se 10 revoltaram contra a ideia banal comum em muitos lugares do mundo de transformar um sítio sagrado num parque Eu acho que começa como parque e termina como parking Porque tem que estacionar esse tanto de carro que fazem por aí afora É um abuso do que chamam de razão Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra Nós a humanidade vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas montanhas e rios Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local alienados de tudo e se possível tomando muito remédio Porque afinal é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter Para que não fiquem pensando que estou inventando mais um mito o do monstro corporativo ele tem nome endereço e até conta bancária E que conta São os donos da grana do planeta e ganham mais a cada minuto espalhando shoppings pelo mundo Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bemestar no mundo todo Os grandes centros as grandes metrópoles do mundo são uma reprodução uns dos outros Se você for para Tóquio Berlim Nova York Lisboa ou São Paulo verá o mesmo entusiasmo em fazer torres incríveis elevadores espiroquetas veículos espaciais Parece que você está numa viagem com o Flash Gordon Enquanto isso a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta nas margens dos rios nas beiras dos oceanos na África na Ásia ou na América Latina São caiçaras índios quilombolas aborígenes a subhumanidade Porque tem uma humanidade vamos dizer bacana E tem uma camada mais bruta rústica orgânica uma subhumanidade uma gente que fica agarrada na terra Parece que eles querem comer terra mamar na terra dormir deitados sobre 11 a terra envoltos na terra A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe Vamos separar esse negócio aí gente e terra essa bagunça É melhor colocar um trator um extrator na terra Gente não gente é uma confusão E principalmente gente não está treinada para dominar esse recurso natural que é a terra Recurso natural para quem Desenvolvimento sustentável para quê O que é preciso sustentar A ideia de nós os humanos nos descolarmos da terra vivendo numa abstração civilizatória é absurda Ela suprime a diversidade nega a pluralidade das formas de vida de existência e de hábitos Oferece o mesmo cardápio o mesmo figurino e se possível a mesma língua para todo mundo Para a Unesco 2019 é o ano internacional das línguas indígenas Todos nós sabemos que a cada ano ou a cada semestre uma dessas línguas maternas um desses idiomas originais de pequenos grupos que estão na periferia da humanidade é deletada Sobram algumas de preferência aquelas que interessam às corporações para administrar a coisa toda o desenvolvimento sustentável O que é feito de nossos rios nossas florestas nossas paisagens Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política que não conseguimos nos erguer e respirar ver o que importa mesmo para as pessoas os coletivos e as comunidades nas suas ecologias Para citar o Boaventura de Sousa Santos a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver nossa experiência como comunidade Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania José Mujica disse que transformamos as pessoas em consumidores e não em cidadãos E nossas crianças desde a mais tenra idade são ensinadas a serem clientes Não tem gente mais adulada do que um consumidor São adulados até o ponto de ficarem imbecis babando Então para que ser cidadão Para que ter cidadania 12 alteridade estar no mundo de uma maneira crítica e consciente se você pode ser um consumidor Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido numa plataforma para diferentes cosmovisões Davi Kopenawa ficou vinte anos conversando com o antropólogo francês Bruce Albert para produzir uma obra fantástica chamada A queda do céu Palavras de um xamã yanomami O livro tem a potência de mostrar para a gente que está nessa espécie de fim dos mundos como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar uma cosmovisão habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial em que tudo ganha um sentido As pessoas podem viver com o espírito da floresta viver com a floresta estar na floresta Não estou falando do filme Avatar mas da vida de vinte e tantas mil pessoas e conheço algumas delas que habitam o território yanomami na fronteira do Brasil com a Venezuela Esse território está sendo assolado pelo garimpo ameaçado pela mineração pelas mesmas corporações perversas que já mencionei e que não toleram esse tipo de cosmos o tipo de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os Yanomami é capaz de produzir Nosso tempo é especialista em criar ausências do sentido de viver em sociedade do próprio sentido da experiência da vida Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo de dançar de cantar E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança canta faz chover O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer tanta fruição de vida Então pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história Se pudermos fazer isso estaremos adiando o fim É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo não como uma metáfora mas como fricção poder contar uns com os outros Poder ter um encontro como este aqui em Portugal e ter uma audiência tão 13 essencial como vocês é um presente para mim Vocês podem ter certeza de que isso me dá o maior gás para esticar um pouco mais o início do fim do mundo que se me apresenta E os provoco a pensar na possibilidade de fazer o mesmo exercício É uma espécie de tai chi chuan Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo é só empurrálo e respirar Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização que queria acabar com o seu mundo Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando reivindicando e desafinando o coro dos contentes Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles com o objetivo de transformálos em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade Muitas dessas pessoas não são indivíduos mas pessoas coletivas células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo Às vezes os antropólogos limitam a compreensão dessa experiência que não é só cultural Eu sei que tem alguns antropólogos aqui na sala não fiquem nervosos Quantos perceberam que essas estratégias só tinham como propósito adiar o fim do mundo Eu não inventei isso mas me alimento da resistência continuada desses povos que guardam a memória profunda da terra aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo Nesse livro e em As veias abertas da América Latina ele mostra como os povos do Caribe da América Central da Guatemala dos Andes e do resto da América do Sul tinham convicção do equívoco que era a civilização Eles não se renderam porque o programa proposto era um erro A gente não quer essa roubada E os caras Não toma essa roubada Toma a Bíblia toma a cruz toma o colégio toma a universidade toma a estrada toma a ferrovia toma a mineradora toma a porrada Ao que os povos responderam O que é isso Que programa esquisito Não tem outro não Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar Cair cair cair Então por 14 que estamos grilados agora com a queda Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos Há centenas de narrativas de povos que estão vivos contam histórias cantam viajam conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo somos parte do todo Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente Em 2018 quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil me perguntaram Como os índios vão fazer diante disso tudo Eu falei Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo eu estou preocupado é com os brancos como que vão fazer para escapar dessa A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil que falam mais de 150 línguas e dialetos Nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro gosta de provocar as pessoas com o perspectivismo amazônico chamando a atenção exatamente para isto os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência Muitos outros também têm Cantar dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte não o horizonte prospectivo mas um existencial É enriquecer as nossas subjetividades que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir Se existe uma ânsia por consumir a natureza existe também uma por consumir subjetividades as nossas subjetividades Então vamos vivêlas com a liberdade que formos capazes de inventar não botar ela no mercado Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável vamos pelo menos ser capazes de manter nossas subjetividades nossas 15 visões nossas poéticas sobre a existência Definitivamente não somos iguais e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro como constelações O fato de podermos compartilhar esse espaço de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças que deveriam guiar o nosso roteiro de vida Ter diversidade não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos 16 DO SONHO E 19 Desde o Nordeste até o leste de Minas Gerais onde fica o rio Doce e a reserva indígena das famílias Krenak e também na Amazônia na fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia no Alto Rio Negro em todos esses lugares as nossas famílias estão passando por um momento de tensão nas relações políticas entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas Essa tensão não é de agora mas se agravou com as recentes mudanças políticas introduzidas na vida do povo brasileiro que estão atingindo de forma intensa centenas de comunidades indígenas que nas últimas décadas vêm insistindo para que o governo cumpra seu dever constitucional de assegurar os direitos desses grupos nos seus locais de origem identificados no arranjo jurídico do país como terras indígenas Não sei se todos conhecem as terminologias referentes à relação dos povos indígenas com os lugares onde vivem ou as atribuições que o Estado brasileiro tem dado a esses territórios ao longo da nossa história Desde os tempos coloniais a questão do que fazer com a parte da população que sobreviveu aos trágicos primeiros encontros entre os dominadores europeus e os povos que viviam onde hoje chamamos de maneira muito reduzida de terras indígenas levou a uma relação muito equivocada entre o Estado e essas comunidades É claro que durante esses anos nós deixamos de ser colônia para constituir o Estado brasileiro e entramos no século XXI quando a maior parte das previsões apostava que as populações indígenas não sobreviveriam à 20 ocupação do território pelo menos não mantendo formas próprias de organização capazes de gerir suas vidas Isso porque a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia e onde sobrevivem os modos que cada uma dessas pequenas sociedades tem de se manter no tempo dando conta de si mesmas sem criar uma dependência excessiva do Estado O rio Doce que nós os Krenak chamamos de Watu nosso avô é uma pessoa não um recurso como dizem os economistas Ele não é algo de que alguém possa se apropriar é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização com toda essa pressão externa Falar sobre a relação entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas a partir do exemplo do povo Krenak surgiu como uma inspiração para contar a quem não sabe o que acontece hoje no Brasil com essas comunidades estimadas em cerca de 250 povos e aproximadamente 900 mil pessoas população menor do que a de grandes cidades brasileiras O que está na base da história do nosso país que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza O Watu esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce entre Minas 21 Gerais e o Espírito Santo numa extensão de seiscentos quilômetros está todo coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de resíduos o que nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma Faz um ano e meio que esse crime que não pode ser chamado de acidente atingiu as nossas vidas de maneira radical nos colocando na real condição de um mundo que acabou Neste encontro estamos tentando abordar o impacto que nós humanos causamos neste organismo vivo que é a Terra que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência Em diferentes lugares do mundo nos afastamos de uma maneira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos povos já nem é percebido Atravessamos continentes como se estivéssemos indo ali ao lado Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para outro que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos Sentimonos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos não para salvar os outros mas para salvar a nós mesmos Há trinta anos a ampla rede de relações em que me integrei para levar ao conhecimento de outros povos de outros governos as realidades que nós vivíamos no Brasil teve como objetivo ativar as redes de solidariedade com os povos nativos 22 O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar porque se durante um tempo éramos nós os povos indígenas que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa o mundo acredita que tudo é mercadoria a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria significando que ela é tudo o que está fora de nós Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares em algumas situações regionais nas quais a política o poder político a escolha política compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços ainda são digamos protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas dos rios das montanhas nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças Porque se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa sentir até em alguns períodos que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos é por estarmos mais uma vez diante do dilema a que já aludi excluímos da vida localmente as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria pondo em risco todas as outras formas de viver pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade que exclui todas as outras e todos os outros seres Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também 23 o nosso avô que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô a avó a mãe o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra O nome krenak é constituído por dois termos um é a primeira partícula kre que significa cabeça a outra nak significa terra Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados das nossas memórias de origem que nos identifica como cabeça da terra como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão sem essa profunda comunhão com a terra Não a terra como um sítio mas como esse lugar que todos compartilhamos e do qual nós os Krenak nos sentimos cada vez mais desraigados desse lugar que para nós sempre foi sagrado mas que percebemos que nossos vizinhos têm quase vergonha de admitir que pode ser visto assim Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado as pessoas dizem Isso é algum folclore deles quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia vai ser um dia próspero um dia bom eles dizem Não uma montanha não fala nada Quando despersonalizamos o rio a montanha quando tiramos deles os seus sentidos considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe a Terra resulta que ela está nos deixando órfãos não só aos que em diferente graduação são chamados de índios indígenas ou povos indígenas mas a todos Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática a nossa ação e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida em qualquer lugar superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída que em última 24 instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias segurança e consumo Como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos que têm tanta origem comum mas que se descolaram a ponto de termos hoje num extremo gente que precisa viver de um rio e no outro gente que consome rios como um recurso A respeito dessa ideia de recurso que se atribui a uma montanha a um rio a uma floresta em que lugar podemos descobrir um contato entre as nossas visões que nos tire desse estado de não reconhecimento uns dos outros Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra eu queria comunicar a vocês um lugar uma prática que é percebida em diferentes culturas em diferentes povos de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia Para algumas pessoas a ideia de sonhar é abdicar da realidade é renunciar ao sentido prático da vida Porém também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos nos quais pode buscar os cantos a cura a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho mas que ali estão abertas como possibilidades Fiquei muito apaziguado comigo mesmo hoje à tarde quando mais de uma colega das que falaram aqui trouxeram a referência a essa instituição do sonho não como uma experiência onírica mas como uma disciplina relacionada à formação à cosmovisão à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado de autoconhecimento sobre a vida e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas Alusão ao rompimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco controlada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton em novembro de 2015 Foram lançados no meio ambiente cerca de 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineração de ferro o que desencadeou efeitos a longo prazo na vida de milhares de pessoas incluindo as aldeias Krenak N E 25 26 A HUMANIDADE QUE PENSAMOS SER Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência Se a gente desestabilizar esse padrão talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura como se caíssemos num abismo Quem disse que a gente não pode cair Quem disse que a gente já não caiu Houve um tempo em que o planeta que chamamos Terra juntava os continentes todos numa grande Pangeia Se olhássemos lá de cima do céu tiraríamos uma fotografia completamente diferente do globo Quem sabe se quando o astronauta Iúri Gagárin disse a Terra é azul ele não fez um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós pensamos ser Ele olhou com o nosso olho viu o que a gente queria ver Existe muita coisa que se aproxima mais daquilo que pretendemos ver do que se podia constatar se juntássemos as duas imagens a que você pensa e a que você tem Se já houve outras configurações da Terra inclusive sem a gente aqui por que é que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência a nossa experiência comum a ideia do que é humano O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno Essa configuração mental é mais do que uma ideologia é uma construção do imaginário coletivo várias gerações se sucedendo camadas de desejos projeções visões períodos inteiros de ciclos de vida dos nossos ancestrais que herdamos e fomos burilando retocando até chegar à imagem com a qual nos sentimos identificados É como se tivéssemos feito um photoshop na 29 memória coletiva planetária entre a tripulação e a nave onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica parecendo uma coisa indissociável É como parar numa memória confortável agradável de nós próprios por exemplo mamando no colo da nossa mãe uma mãe farta próspera amorosa carinhosa nos alimentando forever Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca Aí a gente dá uma babada olha em volta reclama porque não está vendo o seio da mãe não está vendo aquele organismo materno alimentando toda a nossa gana de vida e a gente começa a estremecer a achar que aquilo não é mesmo o melhor dos mundos que o mundo está acabando e a gente vai cair em algum lugar Mas a gente não vai cair em lugar nenhum de repente o que a mãe fez foi dar uma viradinha para pegar um sol mas como estávamos tão acostumados a gente só quer mamar O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação Quando se transfere isso para a mercadoria para os objetos para as coisas exteriores se materializa no que a técnica desenvolveu no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra Todas as histórias antigas chamam a Terra de Mãe Pacha Mama Gaia Uma deusa perfeita e infindável fluxo de graça beleza e fartura Vejase a imagem grega da deusa da prosperidade que tem uma cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo Noutras tradições na China e na Índia nas Américas em todas as culturas mais antigas a referência é de uma provedora maternal Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar detonar e dominar O desconforto que a ciência moderna as tecnologias as movimentações que resultaram naquilo que chamamos de revoluções de massa tudo isso não ficou localizado numa região mas cindiu o planeta a ponto de no século XX termos situações como a Guerra Fria em que você tinha de um 30 lado do muro uma parte da humanidade e a outra do lado de lá na maior tensão pronta para puxar o gatilho para cima dos outros Não tem fim do mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um do lado de cá ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo Isso é um abismo isso é uma queda Então a pergunta a fazer seria Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo Mas temos muito medo do que vai acontecer quando a gente cair Sentimos insegurança uma paranoia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos que confortavelmente carregamos em grande estilo mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo Então talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas Não eliminar a queda mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos divertidos inclusive prazerosos Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar viver no prazer aqui na Terra Então que a gente pare de despistar essa nossa vocação e em vez de ficar inventando outras parábolas que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir com o aparato da técnica Na verdade a ciência inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica Há muito tempo não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista Acabaram os cientistas Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas da mercadoria Antes de essa pessoa contribuir em qualquer sentido para abrir uma janela de respiro a essa nossa ansiedade de perder o seio da mãe vem logo um aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente É como se todas as descobertas estivessem condicionadas e nós desconfiássemos das descobertas como se todas fossem trapaça A gente sabe que as descobertas no âmbito da ciência as curas para tudo são uma baba Os laboratórios planejam com antecedência a publicação das descobertas em função dos mercados que eles 31 próprios configuram para esses aparatos com o único propósito de fazer a roda continuar a girar Não uma roda que abre outros horizontes e acena para outros mundos no sentido prazeroso mas para outros mundos que só reproduzem a nossa experiência de perda de liberdade de perda daquilo a que podemos chamar inocência no sentido de ser simplesmente bom sem nenhum objetivo Gozar sem nenhum objetivo Mamar sem medo sem culpa sem nenhum objetivo Nós vivemos num mundo em que você tem de explicar por que é que está mamando Ele se transformou numa fábrica de consumir inocência e deve ser potencializado cada vez mais para não deixar nenhum lugar habitado por ela De que lugar se projetam os paraquedas Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura o lugar do sonho Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza estou sonhando com o meu próximo emprego com o próximo carro mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode se abrindo para outras visões da vida não limitada Talvez seja outra palavra para o que costumamos chamar de natureza Não é nomeada porque só conseguimos nomear o que experimentamos O sonho como experiência de pessoas iniciadas numa tradição para sonhar Assim como quem vai para uma escola aprender uma prática um conteúdo uma meditação uma dança pode ser iniciado nessa instituição para seguir avançar num lugar do sonho Alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm passagem por eles São lugares com conexão com o mundo que partilhamos não é um mundo paralelo mas que tem uma potência diferente Quando por vezes me falam em imaginar outro mundo possível é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza como se a gente não fosse natureza Na verdade estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo 32 próprio Todos os outros humanos que não somos nós estão fora a gente pode comêlos socálos fraturálos despachálos para outro lugar do espaço O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós Na verdade a gente vive reclamando mas essa coisa foi encomendada chegou embrulhada e com o aviso Depois de abrir não tem troca Há duzentos trezentos anos ansiaram por esse mundo Um monte de gente decepcionada pensando Mas é esse mundo que deixaram para a gente Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras Ok você vive falando de outro mundo mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar Quem vai receber são os nossos netos bisnetos no máximo nossos filhos já idosos Se cada um de nós pensa um mundo serão trilhões de mundos e as entregas vão ser feitas em vários locais Que mundo e que serviço de delivery você está pedindo Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha no pacote encomendado pelos nossos antecessores há algo de pirraça nossa sugerindo que se fosse a gente teríamos feito muito melhor Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas incluindo cada pedaço de nós que somos parte de tudo 70 de água e um monte de outros materiais que nos compõem E nós criamos essa abstração de unidade o homem como medida das coisas e saímos por aí atropelando tudo num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam agindo no mundo à nossa disposição pegando o que a gente quiser Esse contato com outra possibilidade implica escutar sentir cheirar inspirar expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como natureza mas que por alguma razão ainda se confunde com ela Tem alguma coisa dessas camadas que é quasehumana uma camada identificada por nós que está sumindo que está sendo exterminada da interface de humanos muitohumanos Os quase 33 humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada da técnica do controle do planeta E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena por epidemias pobreza fome violência dirigida Já que se pretende olhar aqui o Antropoceno como o evento que pôs em contato mundos capturados para esse núcleo preexistente de civilizados no ciclo das navegações quando se deram as saídas daqui para a Ásia a África e a América é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação de eliminar aqueles povos O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia uma mortandade de milhares e milhares de seres Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rasto de morte por onde passava O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante uma guerra bacteriológica em movimento um fim de mundo tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas Para os povos que receberam aquela visita e morreram o fim do mundo foi no século XVI Não estou liberando a responsabilidade e a gravidade de toda a máquina que moveu as conquistas coloniais estou chamando atenção para o fato de que muitos eventos que aconteceram foram o desastre daquele tempo Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno A grande maioria está chamando de caos social desgoverno geral perda de qualidade no cotidiano nas relações e estamos todos jogados nesse abismo 34