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Faculdade de Letras RETÓRICA DA ALTERIDADE PORTUGAL E PORTUGUESES NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Ficha Técnica Tipo de trabalho Tese de Doutoramento Título RETÓRICA DA ALTERIDADE PORTUGAL E PORTUGUESES NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Autor Luíra Freire Monteiro Orientador Doutor António Martins da Silva Júri Presidente Doutor João Maria Bernardo Ascenso André Vogais 1 Doutor a Maria Fernanda Fernandes Rollo 2 Doutor Carlos Eduardo Pacheco Amaral 3 Doutora Maria Manuela Bastos Tavares Ribeiro 4 Doutor António Martins da Silva 5 Doutor Antônio Paulo Cabral de A Avelãs Nunes Identificação do Curso 3º Ciclo em História Área científica História Especialidade Identidades práticas e representações no mundo contemporâneo Data da defesa 24042013 Classificação Aprovada com distinção e louvor por unanimidade além de indicada para publicação RESUMO A presente investigação tem como principal objetivo evidenciar o discurso dos historiadores brasileiros a respeito de Portugal e dos portugueses no contexto da formação da sociedade brasileira quando a presença portuguesa na América deu ensejo à constituição de variadas representações A retórica da alteridade que buscamos identificar tomou como lastro as formas de identidade que os historiadores estabeleceram para o Brasil fazendo de Portugal e seu povo importante ponto de inflexão nessa construção As noções de Irmandade e Ambiguidade serviram como baliza para analisar as narrativas históricas em suas diversas perspectivas circunscritas à primeira centúria após a Independência o que nos permitiu analisar os modos com que aqueles historiadores referenciavam os portugueses no tempo real daqueles existentes no tempo histórico cristalizados nas fontes por eles utilizadas No sentido de dar inteligibilidade aos diversos contextos aqui abordados no qual estavam inseridos os historiadores elegidos optamos por estruturar o presente texto em três distintos tempos determinantes para compreensão das mudanças efetivadas na sociedade brasileira em sua formação Palavraschave Historiografia brasileira Portugueses Identidade Alteridade ABSTRACT This research has as main objective to highlight the speech of Brazilian historians about Portugal and the Portuguese in the context of the formation of Brazilian society when the Portuguese presence in America gave rise to the formation of various representations The rhetoric of alterity that we seek to identify took as ballast the identity forms that historians settled for Brazil making of Portugal and its people an important point of inflection in this construction The notions of brotherhood and ambiguity served as goal to analyze the historical narratives in their diverse perspectives circumscribed to the first century after independence which allowed us to analyze the modes with which those historians referred the Portuguese in real time of those existing in historical time crystallized in the sources they used In order to give intelligibility to diverse contexts discussed here in which selected historians were inserted we chose to structure the present text in three distinct times crucial for understanding the changes that take effect in Brazilian society in its formation Keywords Brazilian Historiography Portuguese Identity Alterity RÉSUMÉ Cette recherche a lobjectif principal de mettre en évidence le discours des historiens brésiliens à propôs du Portugal et des portugais dans le cadre de la formation de la société brésilienne lorsque la présence portugaise à lAmérique a donné lieu à la contitution de plusieurs représentations La rhétorique de laltérité quon cherche à identifier a pris comme base les formes didentité que les historiens ont établies pour Le Brasil em faisant du Portugal et de son peuple um point important dinflection dans cette construction Les notions de fraternité et dambiguïté ont été utilisées comme limite pour analyser les narrations historiques dans leurs points de vue divers et circonscrits au premier siècle après lindépendance ce qui nous a permis de décomposer les modes avec lesquels les historiens ont référé les portugais en temps réel de ceux existent dans le temps historiques et cristallisés par lês sources quils ont utilisé Pour donner de lintelligibilité aux différents contextes ici traités dans lequel lês historiens choisis étaient inseres on a decide de structurer ce texte em trois différents moments déterminants pour la comprehension dês chancgements réalisés à la société brésilienne dans as conformation Mots clés Historiographie brésilienne Portugais Identité Altérité Ao meu pai Lucas Hygino Monteiro Que há muito sonhara com Coimbra E à minha mãe Iraci Que nem sabia onde era Mas que tinha um sorriso lindo In memorian AGRADECIMENTOS Considero a gratidão um dos sentimentos mais perfeitos valorizador da vida humana proporcionando alegria ao coração de quem a nutre Como essa alegria permeia minha existência avolumada depois de assentar o ponto final de um texto que foi construído passo a passo ao longo dos últimos quatro anos não poderia deixar escapar este momento para dizer da gratidão que sinto pelas pessoas que de variadas formas me auxiliaram nessa construção Façoo também pela necessidade de firmar nomes que se fizeram pródigos na amizade na dedicação no amor e na capacidade de suportar os dias cinzentos que existiram quando da feitura desta tese À Lucira em primeira mão quero agradecer a ousadia da mudança da loucura de permitir um intervalo à vida construída até então para arquitetála em novos patamares Obrigada Lulu pelo apoio emocional e financeiro pela descoberta comum das ruas coimbrãs e de tantas outras de variadas cidades do Velho Mundo nas quais andamos para ampliar a experiência Obrigada por compartilhar a saudade junto com a meia de leite da confeitaria Vênus os doces da Briosa o vinho da Taberninha que nos tiraram da linha e findaram por nos obrigar a novas andanças Ao Flávio que manteve o brilho do chão branco e o verde do jardim os livros limpos os cães alimentados a integridade do lar a relação saudável Agradeço pelo zelo pelo compartilhamento da solidão nos dois lados do Atlântico pelo cuidado com Lucas num segundo tempo pela lágrima da despedida e pela alegria do regresso Pelas conversas sobre a tese pela indicação de livros pelo compartilhamento de um tempo angustiante para os dois mas que se tornou marco em nossas vidas com direito àquele café no fim da tarde território de uma rotina que poucos sabem como perfeita saiba de meu coração devedor Ao meu filho lindo Lukete cuja ausência me roubou o sono e que em pleno aflorar adolescente pediume seu mundo de volta A ti querido meu obrigada por ter aprendido a viver com migalhas de mãe nesses quatro anos sem nunca deixar de me amar e de orar por mim Ao amigo Carlos Alberto receptivo desde antes de nos conhecermos pessoalmente que tanto me ensinou a viver em Portugal alertandome para a compreensão de seu povo com o olhar de quem vinha de outras terras Com a propriedade dos bons observadores e a sagacidade mansa dos sábios Agradeço também a Margarida Adônis que me ensinou da arquitetura das belas casas de Coimbra do percurso da cidade e dos nomes das ruas das melhores cantinas da universidade e dos pratos ali servidos bem como das sutis nuanças da vida portuguesa Uma portuguesa tão brasileira que nem mesmo ela sabe A ti amiga fica minha gratidão pois o carinho é mais precioso que a palavra burilada Ao Ângelo Reisinho Lebre que mesmo sem o notar proporcionou o insight que resultou na definição da temática desta tese Aos professores do doutoramento que me ensinaram cada um à sua maneira novas abordagens históricas outros modos de ver e decifrar o mundo Um agradecimento especial ao meu orientador Doutor Antônio Martins da Silva mais que professor mais que orientador um mestre que me guiou pelas sendas tortuosas da pesquisa com mansidão e segurança sem imposições pessoais Mesmo à distância deu me a liberdade necessária para que me posicionasse como historiadora no construto do texto apontando caminhos decifrando enigmas clarificando o obscuro e aplainando suas dubiedades como só um grande mestre sabe fazer Os méritos porventura existentes neste texto devemse unicamente à sua capacidade As falhas são minhas assumidamente como aprendiz que sou Obrigadíssima meu Orientador Um agradecimento especial ao Anderson Barbosa criador da ilustração da capa e ao Douglas Costa um anjo barroco mineiro que conheci em Coimbra e que se tornou para mim uma ponte entre o Brasil e Portugal além de um amigo a quem devo enormes e repetidos favores Aos bons portugueses receptivos e amáveis que de alguma forma me ajudaram durante minha estadia em Coimbra sem o olhar desconfiado que dirigem normalmente às brasileiras Especialmente a dona Maria de Fátima Paiva cuja casa é pura expressão do encontro de Portugal África e Brasil tal qual a extensão de sua recepetividade para comigo e os meus Dentro da Faculdade de Letras um agradecimento especial à Senhora Liz Dália antiga secretária do Instituto de História Econômica e Social à Senhora Aída Gouveia e à Doutora Manuela Saraiva da Secretaria de Pósgraduação pela constante disponibilidade em resolver meus pleitos Ao Deus que me sustenta todos os dias e que me proporciona a alegria de estar aqui Pequena lista de poucas abreviações IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro HGB História Geral do Brasil CGS Casa grande e Senzala SM Sobrados e Mocambos SUMÁRIO Introdução 01 Parte I A Irmandade como retórica em tempos de construção da nação 15 Capítulo 1 Um projeto para a história da nação emancipada 24 11 Reconhecendose no outro e o outro é Portugal 36 Capítulo 2 A nação como continuação da colônia 44 21 Os herois do Brasil 50 22 O caráter civilizatório da colonização portuguesa 60 23 A admirável monarquia Bragantina 72 Conclusão da Parte I 86 Parte II Tempos de mudanças tempos de alteração da retórica 90 Capítulo 3 Em busca de um sentimento nacional 100 31 Impiedosos fazedores de novos caminhos 106 Capítulo 4 A exploração colonial como perspectiva 119 41 De vanguarda a parasitas 122 42 O caráter predatório e dissoluto dos Bragança 135 43 A cepa e seus viçosos ramos 148 Capítulo 5 A tentativa de superação da herança portuguesa 158 51 O português livre da Renascença 164 52 A metamorfose de livres a tristes 172 Conclusão da Parte II 180 Parte III Em tempos de reencontro o ressurgir da irmandade 186 Capítulo 6 Uma nação impregnada de Portugal 194 61 Uma mentalidade plástica 198 62 Casa grande à portuguesa 206 63 Na esquina do mundo um povo multifacetado 218 Capítulo 7 O passado como obstáculo ao futuro 227 71 Um Portugal pouco europeu 231 72 Semeadores dos verdes campos da América 242 Conclusão da Parte III 250 Considerações finais 255 Evidências 266 Bibliografia utilizada 274 Bibliografia consultada 299 1 INTRODUÇÃO É inegável o quanto a presença portuguesa ainda ocupa lugar no seio da sociedade brasileira onde parece ter se cristalizado no dono da padaria do boteco ou do armazém reinvenções de João Romão personagem de Aluísio de Azevedo em O Cortiço1 Em opaca alusão aos métodos do Império Português no processo colonial o romance clássico do autor brasileiro findou por se tornar uma das primeiras construções discursivas de Portugal de largo alcance personificado na figura do taberneiro luso expressando também o desconforto que existia em relação aos portugueses no Brasil pós independência depois de séculos de submissão colonial Bem antes porém em pleno século XVII os poemas de Gregório de Matos 2 o Boca do Inferno já expressavam certo desprezo e despeito contra os reinóis enraizados no comércio e nos cargos administrativos da então colônia tomados como elementos de uma elite crescentemente representada como usufrutuária e exploradora A rivalidade entre portugueses e brasileiros para além da vida social foi sobejamente retratada na literatura dos dois países quase como uma vingança a expressar um rancor construído nas engrenagens coloniais e alastrado quando do estabelecimento da Corte na América época em que vicejaram os chistes e as paródias Fortalecida desde então nas repartições do governo na Marinha onde ocupava mais de um terço dos cargos e até nas ocupações mais modestas a presença portuguesa tornouse se não um incômodo quase um 1 No romance realista do século XIX o português Romão foi descrito como um homem ríspido de tamancos a gritar com seus caixeiros por trás de um balcão descortinando também a realidade da sociedade brasileira naquele momento A despeito da existência de outros personagens oriundos de Portugal como o pacífico cavouqueiro Jerônimo e Miranda comerciante enriquecido no comércio atacadista e feito barão da coroa João Romão teve preponderância no romance pela sordidez de seu personagem ávido por enriquecer Dono do cortiço mourejava incessantemente mas não tinha pudores em mentir nem roubar para angariar lucros 2 A cada canto um grande conselheiroQue nos quer governar cabana e vinhaNão sabem governar sua cozinhaE podem governar o mundo inteiro Em Soneto bem conhecido Obras de Gregório de Matos Rio de Janeiro Oficina Industrial Graphica 1930 2 acinte à identidade nacional que aos poucos tomava formas 3 Nesse contexto as construções discursivas avolumaramse como expressão de um antilusitanismo que marcou o tempo político do império brasileiro mas que deitou raízes naquela sociedade durante alguns décadas após a instauração da república Como fator político o antilusitanismo perdeu forças a partir dos anos trinta com a aceleração do desenvolvimento capitalista e a crescente aproximação diplomática entre os dois países A mudança de foco sobre as questões nacionais favoreceram o estabelecimento de outros bodes expiatórios4 desvanecendo aos poucos a negativa separação entre Portugal e Brasil ao tempo em que novos discursos ensejavam outros olhares sobre Portugal sem a marca amarga da espoliação e humilhação próprias dos processos colonizatórios Mais recentemente as produções da televisão e do cinema brasileiro oportunamente lançaram mão da representação de personagens portugueses correntes na história brasileira de forma a acentuar a aura de reencontro entre os dois países Séries como O quinto dos Infernos5 A Muralha6 e filmes como Carlota Joaquina7 Desmundo8 entre outros mais antigos fecundaram mais uma vez o olhar do brasileiro sobre Portugal e os portugueses A despeito dessa reaproximação e das diferenças e semelhanças que a mesma acentuou os estudos sobre a construção da identidade nacional9 asseveram que no período colonial 3 Sobre o surgimento desenvolvimento e aniquilamento do sentimento antilusitano ver SOUSA Ricardo Luíz de O antilusitanismo e a afirmação de nacionalidade Politéia História e sociedade Vol 5 nº 1 p 133151 2005 4 O termo é de ROWLAND Robert Manuéis e Joaquins A cultura brasileira e os portugueses Etnográfica Vol V nº 1 p 157172 2001 5 Minissérie escrita por Carlos Lombardi Margareth Boury e Tiago Santiago e dirigida por Wolf Maia e Alexandre Avancini apresentada pela primeira vez em 2002 6 Baseada no romance de Dinah Silveira de Queiróz direção de Denise Saraceni Luis Henrique Rios e Carlos Araújo Sua estréia no Brasil data de 2000 7 Direção de Carla Camurati de 1995 8 Direção de Alain Fresnot de 2002 9 Entre esses citamos ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 1985 RIBEIRO Darci O povo brasileiro formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das letras 1995 SODRÉ Nélson A ideologia do colonialismo Rio de Janeiro MECISEB 1961 REIS José Carlos As identidades do Brasil Rio de Janeiro FGV 2003 ORLANDI Eni Puccinelli Discurso fundador a formação do país e a construção da identidade nacional Campinas Pontes 2003 MELLO E SOUZA Laura de Os desclassificados do ouro Rio de Janeiro Graal 1982 da mesma autora O sol e a sombra Política e administração na América portuguesa do século XVIII São Paulo Companhia das 3 inexistiu no Brasil a noção de brasilidade da forma como a entendemos atualmente Independente do local de nascimento fosse da colônia fosse oriundo da metrópole não existiam exotismos no projeto colonial sendo todos considerados portugueses súditos do rei a ele devendo obediência A nação portuguesa10 adentrara pelos campos da América neles se robustecendo não deixando espaço para identidades alternativas que levassem à desintegração do projeto colonial Se ao longo dos tempos outras identidades foram sendo criadas paulistas pernambucanos baianos lusoamericanos tratavamse mais de identidades locais ou regionais mas que não se desvinculavam de um reconhecimento maior onde Portugal era o reino a cabeça o berço 11 O grito do Ipiranga desvaneceu em definitivo esse convencimento lançando a nova nação em busca de sua própria face e com ela a constatação da face do outro no caso Portugal mais especificamente de brasileiros diante de portugueses Não obstante mesmo separados os laços não se quebraram no todo Até meados do Século XX era comum entre os brasileiros mais idosos ao se referir a Portugal trocar o substantivo pelo carinhoso ou debochado título de meu avozinho assim como em algumas regiões era acentuado o brocardo de que todo brasileiro um dia foi português12 letras 2006 MELLO Evaldo Cabral de Rubro veio o imaginário da restauração pernambucana Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 MOTTA Carlos Guilherme 1822 Dimensões São Paulo Perspectiva 1972 do mesmo autor Viagem incompleta a experiência brasileira São Paulo SENAC 1999 PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses americanos brasileiros identidades políticas na crise do Antigo Regime luso americano Almanack brasiliense nº 3 p 6981 2006 JANCSON István Na Bahia contra o Império São Paulo Hucitec Salvador EdUFBA 1976 PRADO Júnior Caio Ideias gerais sobre a revolução no Brasil Formação do Brasil contemporâneo São Paulo Brasiliense 1999 STUMPF Roberta Filhos da Minas Americanos e Portugueses identidades coletivas na Capitania das Minas Gerais 17631792 Dissertação de mestrado em História Universidade de São Paulo 2001 10 Para a discussão do conceito de nação e nacionalismo ver HOBSBAWN Eric Nações e nacionalismos desde 1780 Programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 especialmente o capítulo A nação como novidade da revolução ao liberalismo 11 A propósito ver CARVALHO José Murilo A construção da ordem Rio de Janeiro Campus 1980 MOTTA Carlos Guilherme Viagem Incompleta A experiência brasileira São Paulo SENAC 1999 especialmente os capítulos Peças de um mosaico e Ideias de Brasil formação e problemas LIMA Oliveira Formação histórica da nacionalidade brasileira Rio de Janeiro Leitura 1944 PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses americanos brasileiros identidades políticas na crise do Antigo Regime luso americano Almanack brasiliense nº 3 p 6981 2006 BARMAN Roderick J Brazil the forging of a nation 17981852 Stanford Stanford University Press 1988 MOTTA Carlos Guilherme 1822 Dimensões São Paulo Perspectiva 1972 especialmente o capítulo Brasileiros nas Cortes Constituintes de 18211822 e A interiorização da metrópole 18081805 SOUZA Iara Pátria coroada o Brasil como corpo político autônomo São PauloUNESP 1999 12 NASSER David Portugal meu avozinho Rio de Janeiro O Cruzeiro 1965 p 29 4 Essa relação tão delicada no dizer de OLIVEIRA13 tem enfrentado desníveis no decorrer dos séculos e consoante a conjuntura pode ser de aproximação ou de distanciamento A experiência portuguesa no Brasil por sua vez apresentou duas fases distintas que marcaram as delicadas relações entre esses povos Uma diz respeito à colonização nas terras do Novo Mundo criando uma colônia que se tornou independente no século XIX Outra fase tomou forma quando da vinda de imigrantes portugueses para a antiga colônia no contexto do movimento emigratório que atingiu a Europa nos finais do século XIX e início do XX Na primeira fase não se fala de emigração posto serem as terras coloniais extensão das terras portuguesas de um império colonial que se apresentava como um trunfo de ouros14 no contexto político e econômico da época Os portugueses partiram como se nunca tivessem saído de casa segundo Eduardo Lourenço15 e foram descritos como senhores da terra capazes de castigar mutilar e matar todos os demais povos submetidos ao seu mando Por conseguinte o português continuou a ser português na América mera expansão da Lusitânia As marcas dos três séculos da colonização portuguesa não passaram incólumes e até nossos dias persistem como ponto de inflexão importantíssimo na emergência da identidade brasileira Fomos portugueses um dia mas nos tornamos brasileiros Como filhos ou irmãos não se pode negar tal parentesco Apesar das relações conturbadas dos dois lados do Atlântico dos chistes e das paródias nunca foi fácil ser português no Brasil nem brasileiro em Portugal O contato entre o colonizador e o colonizado engendrou uma nova cultura que desfeitos os laços políticos fala de variadas formas de um povo que de longe nos é tão parecido Da colônia nasceram as memórias que gestaram a história contemporânea do Brasil uma história que fala do outro de um outro que se lançou no mundo desconhecido num mar de monstros de medos indecifráveis que ousou construir novas formas de viajar e de viver e que sujeitou povos distintos de si adaptandose a eles Esse outro foi quem idealizou um lugar transformandoo à custa de sangue suor e lágrimas de dor e de saudade não só 13 OLIVEIRA Lúcia Lippi Nós e eles Relações culturais entre brasileiros e imigrantes Rio de Janeiro Editora FGV 2006 p 117 14 É de autoria de Gilberto Freyre essa alusão Vide Casa Grande e Senzala pag 198 15 LOURENÇO Eduardo A nau de Ícaro São Paulo Cia das letras 2001 p50 5 suas mas de outros povos por ele dominados Foi quem traçou um modelo quem fez um cadinho quem transformou a terra bruta em solo fértil numa dinâmica entre mundos expressa na dificuldade em distinguir a identidade coletiva naquele espaço onde a distinção em ser português e ser brasiliano ou mazombo encontrase envolta numa discussão profunda sobre identidades16 Dos séculos em que atuou como agente ativo da colonizaçãorestaram memórias de uma experiência que deu certo e que de variadas formas se transformaram em história A segunda fase dessa experiência bem diferente é representativa de um Portugal empobrecido politicamente inexpressivo no contexto europeu cujos nacionais buscaram novas terras para sobreviver à pobreza e ao desamparo de seus líderes Era preciso documentos para entrar em terras dantes de Portugal Já não eram mais senhores antes disso eram pobres e estrangeiros buscando sustento numa terra que já havia sido sua submetidos ao destino de viver fora de sua pátria obrigados a desenvolver estratégias e astúcias na arte da sobrevivência Essa outra fase da experiência exprimiu a recriação da própria identidade portuguesa no além mar como uma das muitas estratégias dos migrantes portugueses Das vivências conjuntas com os compatriotas dos espaços diferenciados de sociabilidade das práticas de migração e das escolhas e formas de trabalhar além de certas características de personalidade que vão além da temática deste trabalho restaram memórias evidências que o tempo desmanchou em quase lendas apesar de mais próximas e mais vivas que as do tempo da colônia De ambas as fases cristalizaramse discursos retratos falados sobre Portugal e de sua população entre os brasileiros que muitas vezes mesclaram ambas as experiências mesmo que essas tivessem distintas temporalidades Retratos que mesmo passados séculos chegaram aos nossos dias representadas a partir de um importante veículo de recriação do passado o discurso histórico apoio fundamental do processo de construção do imaginário nacional17 16 As variadas perspectivas dessa discussão são abordadas por JANCSÓN István PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identi dade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme Viagem incompleta A experiência brasileira Formação Histórias São Paulo SENAC 1999 Ver também PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses americanos brasileiros identidades políticas na crise do Antigo Regime luso americano Almanack brasiliense nº 3 p 6981 2006 17 GODOY João Miguel Teixeira de Formas e problemas na historiografia brasileira Revista de História da UNISINOS v 13 nº 1 p 6677 JanAbr de 2009 6 Sendo a historiografia brasileira um dos principais veículos que possibilitaram a disseminação de muitos desses discursos representações simbólicas do país e de seus habitantes que se transmutaram parcialmente para as terras da América não há porque não desvendála como importante fonte de investigação posto ser a mesma por si só uma representação do passado18 e um lugar de memória social19 memória que ganhou sentido no trabalho de reflexão da escrita realizada pelo historiador a partir de demandas pessoais sociais e políticas de seu presente A historiografia aqui referida expressa uma teia discursiva que envolve na atualidade parte do conhecimento brasileiro sobre Portugal criando mitos e imagens a respeito mesmo que convergentes e divergentes distintos e paradoxais entre si A não uniformização dessa produção já revela de per si a sua própria historicidade e sua renovação não exclui o presente nem o lugar social de seus muitos autores Diante da construção discursiva que caracteriza a historiografia brasileira voltada aos estudos da formação dessa sociedade levantamos alguns problemas que nortearam nossa investigação Como o historiador brasileiro construiu Portugal e os portugueses dentro da dimensão temporal Como ele os entendeu Quais as ressignificações que os historiadores deram às representações já existentes Como foi representado o povo português que participou da formação brasileira como sujeitos de nossa história as nuances e entendimentos de sua formação seu papel no contexto brasileiro suas estratégias de sobrevivência e astúcias seus interesses sociabilidades seu imaginário e as problemáticas existentes na formação de um novo espaço no contexto do mundo moderno com suas permanências e rupturas Eis os problemas lançados para esta investigação O cerne de nossa proposta como se pode vislumbrar diz respeito à construção de um Portugal e dos portugueses pelos historiadores brasileiros Não se trata do português e do Portugal reais verdadeiros perdido nas brumas do tempo e cujo legado restou apenas em vestígios objetificados pela pesquisa histórica em sua ânsia de reconstrução de regeneração de um passado que se esconde que não se deixa ver em todas as dimensões do real que oferece apenas a verossimilhança de si porque inventado a partir de presente do historiador e de seus embates 18 MALERBA Jurandir A história escrita teoria e história da historiografia São Paulo Contexto 2006 19 NORA Pierre Entre memória e história a problemática dos lugares Projeto História nº 10 p 0728 1993 7 São os livros de história do Brasil mas não apenas que carregam ao longo dos anos e dos séculos os discursos que os historiadores fizeram daquele país e de seu povo Na práxis de construção da própria história construiuse também a história do outro cristalizandose interfaces que dialogam entre si sejam portuguesa holandesa francesa africana ou indígena e que justificam a brasilidade e sua alteridade de forma positiva ou negativa dependendo do contexto Assim partimos do princípio de que a historiografia enquanto prática de construção identitária constrói também outras identidades além da pretendida e em seu metier mesmo que de modo incidental articula a retórica do outro o nãoser o avesso do ser São esses discursos que buscamos na prática da história do Brasil A construção da historiografia brasileira é preciso destacar não se deu de forma uniforme bem ao contrário Padecendo de toda sorte de imposições pela antiga metrópole de imbricação de vivências entre brasileiros e portugueses de turbulência de pensamentos contraditórios de ideologias díspares de distintos interesses e até da ambigüidade de se ter como brasiliano no espaço colonial expressa uma multiplicidade de discursos reveladores na busca de uma identidade Por historiografia brasileira é mister esclarecer que consideramos o conceito em sua polissemia e no contexto desta investigação nos termos firmados por Carbonell20 a história do discurso um discurso escrito e que se afirma verdadeiro que os homens têm sustentado sobre seu passado aberto à análise e recomposição de sua constituição 21 Os documentos históricos firmados quando da escrita do passado sujeitos à análise da narrativa e dos seus enfoques das interpretações e das visões de mundo do uso das evidências de métodos para sua composição assumem o cariz do que aqui se nomeia como historiografia Por sua vez os autores desses documentos são aqui tratados como historiadores consoante o entendimento de Falcon22 e Koselleck23 ao estabelecer que o que dá forma a tal 20 CARBONELL CharlesOlivier Historiografia Lisboa Teorema 1992 p 6 21 Cf GODOY João Miguel Teixeira de Formas e problemas da historiografia brasileira Revista de História da UNISINOS v13 nº 1 p 6677 JanAbr 2009 22 FALCON Francisco J C A identidade do historiador Estudos Históricos n 17 p 730 1996 23 KOSELLECK Reinhardt historiaHistoria Madrid Editorial Trotta 2004 e Id Los estratos del tiempo estúdios sobre la historia Barcelona Ediciones Paidós 2001 Os estudos de história conceitual desenvolvidos por Koselleck apontam as longas e importantes modificações no que hoje conhecemos como História Como um singular plural ou coletivo a História segundo Koselleck passa a designar a partir do século XVIII em seu sentido moderno numa só palavra os fatos o relato destes e o conhecimento científico 8 identidade é a autoconsciência de ter produzido ou tentado produzir um texto de História bem como aquele que é reconhecido por têlo produzido Tais ressalvas são imprescindíveis para que se entenda o que pode e o que não pode ser considerado um trabalho de historiografia no Brasil24 visto que os espaços acadêmicos para cursos de História naquele país surgiram somente com a fundação das Faculdades de Filosofia Ciências e Letras de São Paulo em 1934 e do Rio de Janeiro em 1935 Foram estes espaços que formaram as primeiras turmas de historiadores no país cuja produção de profissionais veio à tona dez anos depois de maneira tímida o que demonstra que durante muitos anos a história do Brasil foi escrita pelos eruditos homens que se dedicaram a escrever a história da nação Francisco Iglesias25 apontou que no Brasil oitocentista o ofício do historiador foi executado por uma categoria mais abrangente de intelectuais a dos homens de letras Não sendo profissionais da História diplomatas professores médicos advogados párocos militares comerciantes dedicavamse a esse campo do conhecimento de forma sistemática e apaixonada acumulando um saber cuja principal fonte de legitimidade era o trabalho de pesquisa documental o trabalho de consultar reunir criticar e copiar documentos manuscritos A história escrita nesse contexto onde não havia historiadores de ofício mas De tal consideração surgem duas perspectivas uma com o foco no sujeito e outra no texto A primeira parte da premissa da existência de certo tipo de profissional especializado praticante de um ofício intelectual que consiste em saber produzir um tipo específico de conhecimento no caso conhecimento histórico que se materializará em um texto reconhecido como de História pelos demais praticantes do ofício Na segunda perspectiva há a questão de existir ou não características capazes de conferir o caráter de História a um determinado texto sendo irrelevante o fato de que quem o produziu ser considerado ou não um historiador As contestações sobre o período da assunção deste sentido moderno da História apresentado por Koselleck são feitas por YILMAZ L Como a História deveria ser escrita ou deve mesmo ser escrita Ágora v 11 nº 1 p 2129 2005 24 Mesmo que existam inúmeras obras sobre o Brasil produzidos ao longo de seu processo colonizador é ponto pacífico não se tratar de obras de caráter historiográfico posto não atenderem aos requisitos mínimos para merecer esta catalogação ficando as mesmas no campo da literatura ou de aporte documental A respeito ver RODRIGUES José Honório Teoria da história do Brasil São Paulo Progresso Editorial 1949 SODRÉ Nelson Werneck O que se deve ler para conhecer o Brasil Rio de Janeiro CBPE 1945 GUIMARÃES Manoel Salgado Nação e Civilização nos trópicos Estudos históricos nº 1 1988 ARRUDA José Jobson e TENGARRINHA José Manuel Historiografia lusobrasileira contemporânea Bauru EDUSC 1999 IGLESIAS Francisco Historiadores do Brasil Belo Horizonte EUFMGIPEA 2000 KANTOR Íris Esquecidos e Renascidos historiografia acadêmica lusoamericana São Paulo HUCITEC Salvador Centro de Estudos Baianos 2004 entre outros Por outro lado mesmo que se considerem alguns trabalhos como historiográficos pende sobre os mesmos o cariz de não se enquadrarem como uma historiografia tipicamente brasileira 25 IGLÉSIAS Francisco José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira Estudos Históricos nº 1 p 5578 1988 9 eruditos está visceralmente ligada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro encontrandose naquela instituição os parâmetros para sua realização como será exposto mais adiante Os intelectuais que produziram estudos tidos como históricos no período anterior às Faculdades de História conviveram segundo Iglesias26 com duas situações uma de crise profunda no campo do poder cuja marca era a incerteza política e a outra era o processo de aprimoramento dos trabalhos históricos através das relações com outros campos do saber surgindo daí uma tensão entre o historiador e o político Somente com o surgimento dos citados cursos de História na década de 1930 e com a formação dos mesmos ao longo dos anos seguintes e a produção que daí adveio é que o trabalho do historiador deixou de ser amador para se tornar um ofício Em razão disto utilizamos indistintamente os termos intelectuais homens de letras e historiadores para aqueles que se dedicaram aos estudos históricos tornandose autores reconhecidos pelos seus pares ou assim o sendo posteriormente Do mesmo modo consideramos como historiográficos os trabalhos por eles produzidos desde que expressem uma crítica do processo histórico tornandoo inteligível dados imprescindíveis a um trabalho dessa natureza As obras escolhidas fazem parte do chamado cânone da historiografia brasileira e nelas Portugal foi tratado não como temática principal bem ao contrário a discussão do Brasil se expõe em perspectiva Nem por isso essa discussão obscureceu Portugal como sujeito da história brasileira pois é na relação entre Brasil e Portugal e no entendimento do primeiro que se representou o segundo São esses discursos que nos dispomos a investigar posto que nomeadas vezes passem despercebidos nas discussões sobre o próprio Brasil fixando se de forma explícita ou insidiosa na memória dos leitores dessa historiografia A seleção das obras utilizadas como fontes para a investigação recaiu na produção de autores de nacionalidade brasileira e cujos textos temas e campos de trabalho vinculamse à história do Brasil Tal escolha por evidente exclui os chamados cronistas coloniais bem como os brasilianistas27 cujos trabalhos a nosso ver não expressariam as formações 26 Ibidem p 61 27 Entendese por brasilianistas os autores estrangeiros especialmente estadunidenses e franceses que se dedicaram a analisar a realidade histórica do Brasil favorecendo seu crescimento e robustecimento Alguns autores compreendem tratarse de um movimento iniciado desde a terceira década do século XX com a 10 discursivas que tentamos desvendar como principal objetivo desta investigação seja a criação de uma identidade para o Brasil onde se faz necessário a construção de um discurso que fala do outro representandoo Esta seleção pode ser tomada como artificial e discutível apesar de tratarse de trabalhos de valor reconhecido e incontestado É artificial no sentido de que elimina muitas outras obras e autores que poderiam bem representar os chamados períodos históricos aqui trabalhados Entretanto é consabido que toda e qualquer seleção e periodização é contestável por se tratar de uma entre tantas outras estratégias de abordagem e de atribuições de sentido Tal limitação por sua vez é intrínseca à reflexão teórico metodológica que cerca o presente trabalho Não foi nossa intenção dado o tempo que tivemos para realizar a investigação proposta além das limitações formais impostas pelas normas da academia abordar toda a obra dos autores escolhidos nem nos prendemos às possíveis mudanças de pensamento que porventura existisse em cada um deles salvo em casos que tais mudanças foram expressivas e estiveram diretamente vinculadas ao objeto do presente trabalho A escolha de determinadas obras teve como critério serem as mesmas quase uma síntese de pensamento de seu autor no quadro de um tempo determinado Nosso esforço é o de compreender dialogar e mediar o diálogo sempre apoiados na sensibilidade da origem social da formação intelectual enfim do lugar social e da data dos historiadores aqui contemplados cujo trabalho possibilita a compreensão das representações discursivas que buscamos sobre Portugal e seu povo e que foram reelaboradas ressignificadas conforme o contexto de sua produção Nosso intuito é alcançar uma compreensão mais ampla dessas representações sucessivas mas não maciça entrada de profissionais franceses nas recém criadas universidades brasileiras Na maioria das vezes porém os autores dedicados à questão entendem ter sido o Brasilianismo um movimento fomentado a partir da Revolução Cubana e encabeçado por historiadores norte americanos devidamente financiados e interessados na realidade específica do Brasil Por terem acesso ilimitado aos arquivos nacionais vetados para os pesquisadores brasileiros foram tomados como agentes da Agência de Inteligência americana no contexto das ditaduras militares sofrendo rejeição por parte dos intelectuais nacionais A respeito ver PONTES Heloisa Brasil com z Estudos Históricos v 3 nº 5 p 5572 1990 SEBE José Carlos Introdução ao nacionalismo acadêmico os Brasilianistas São Paulo Brasiliense 1984 BEIGUELMAN Paula Cultura acadêmica nacional e Brasilianismo In BOSI Alfredo Org Cultura brasileira temas e situações São Paulo Ática 1987 11 suprimidas que são expressas na chamada historiografia brasileira no contexto social de sua produção Tomamos as obras que nos serviram de fonte ao longo da investigação como textos produtores de sentidos forjados construídos elaborados por historiadores que se ocuparam em discutir analisar e até descrever Portugal e os portugueses tornandose assim meios de constituição de sentidos Partimos deste princípio para buscar na historiografia não apenas os fatos escondidos por trás da ideologia ou da imaginação frutos dos lugares sociais dos variados autores cuja escrita foi aqui utilizada como fonte bem como a continuidade entre esta imaginação e a produção de sentidos no contato entre estes escritores e um mundo tangível que apesar de efetivamente observado não é um dado neutro a ser simplesmente apreendido pelo historiador A escolha de obras que vieram a ser pertinentes para o objetivo central da investigação teve como fio condutor as formas de identidades representadas pelos intelectuais por meio de suas narrativas em diversas perspectivas orientadoras sobre o passado O recorte cronológico da produção de tais obras por sua vez fixa desde a segunda metade do século XIX com o elogio da colonização portuguesa no dizer de Reis28 até a década de trinta do século XX cuja produção marca mesmo que de forma ambígua a identidade portuguesa no Brasil As noções da Irmandade e Ambigüidade existentes mesmo que de forma distintas na historiografia trabalhada são tomadas aqui como fio condutor no levantamento da retórica a ser desvendada Pela primeira entendese a crença de que Brasil e Portugal são pátrias irmãs com culturas que ao longo de sua história se fundem numa só cultura brasileira O termo lusobrasileiro é indicativo dessa noção reunindo sob tal denominação as duas nações criando uma categoria liminar A Ambigüidade cuja raiz se encontra na historicidade da colonização é pouco refletida na produção historiográfica ao se referir aos portugueses observase uma indefinição quanto a real nacionalidade de quem se falava posto serem os lusitanos considerados culturalmente muito próximos dos brasileiros quase não se podendo tratálos como 28 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora da FGV 2003 p 23 12 estrangeiros exóticos ou até mesmo imigrantes29 A questão do surgimento do sentimento nativista ou da idéia de nação no contexto da colônia poderia dirimir a dificuldade de muitos autores em ver os portugueses como diferentes dos brasileiros assumindo uma retórica do outro30 Não obstante na maioria dos casos a noção de irmandade é perpassada pela de ambiguidade em face da artificialidade da construção oitocentista de tal distinção que findou por se refletir na historiografia das décadas seguintes nomeadamente aquela que reflete os primórdios do fluxo imigratório português para o Brasil31 Tendo como base essas construções metodológicas tomamos a historiografia como a expressão de uma teia discursiva que envolve parte do conhecimento brasileiro sobre Portugal Essa teia constitui as chamadas evidências32 desta investigação e a partir da mesma verificase a criação de um discurso que se reflete tanto na identidade brasileira quanto no construto identitário do próprio português visto que segundo CILLIA as identidades nacionais e sociais são produzidas reproduzidas transformadas e destruídas pela linguagem e outros sistemas semióticos33 Para melhor exposição do tema esta dissertação encontrase estruturada em três partes sendo a primeira voltada exclusivamente à elucidação da formação da narrativa histórica no Brasil como estratégia de consolidação da nação e da tentativa de criação de uma identidade nacional após a emancipação política A este período denominamos Tempo de Construção no qual a história da nação começa a ser criada e redefinida alijada da produção portuguesa Destacamos nesse contexto a criação do Instituto Histórico e 29 Sobre a questão há que ter em conta as circunstâncias que favoreceram que a fronteira entre os dois grupos fosse fluida e mal definida determinada mais por circunstâncias específicas e conjunturais do que por quaisquer critérios gerais ou objetivos Ao nível da produção dos discursos de legitimação do processo de construção da nova nação se expressa a mesma dificuldade de definição em termos políticos e históricos da diferença entre a antiga metrópole e o novo estado imperial ou onde se deveria situar a ruptura e quais as continuidades a serem valorizadas Qual o papel a atribuir a Portugal aos portugueses e à casa de Bragança na construção de uma cultura e de uma identidade nacionais Tratase de um problema de fundo que foi obtendo respostas diferentes e contraditórias ao longo do século XIX e durante a primeira metade do século XX 30 GOMES Artur Nunes Sob o signo da ambigüidade configurações identitárias no espaço português do Rio de Janeiro Dissertação de mestrado em Antropologia UNICAMP 1998 p 70 31 OLIVEIRA Lúcia Lippi de Nós e eles Relações culturais entre brasileiros e imigrantes Rio de Janeiro FGV 2006 A autora chama atenção para o crescente desinteresse acadêmico sobre a experiência portuguesa no Brasil após a Independência Tal temática apresenta escasso número de investigações se comparadas com as pesquisas sobre outros grupos nacionais que imigraram para o Brasil na mesma época 32 Cf HARTOG François As evidências da história O que os historiadores veem Belo Horizonte Autêntica 2011 33 CILLIA Rudolf REISIGL Martin WODAK Ruth A construção discursiva das identidades nacionais São Paulo Contexto 2003 13 Geográfico do Brasil IHGB como agente dessa construção posto que sua produção tornouse o parâmetro para reprodução durante boa parte do século XX da historiografia produzida regionalmente no Brasil Para tanto destacamos a obra de Von Martius e Francisco Adolpho Varnhagen como exemplar para a proposta daquele crucial momento histórico Conquanto Von Martius não tenha escrito um trabalho de história apenas uma proposta de como deveria se pautar a historiografia doravante produzida utilizamos seu texto como demonstrativo da identidade pretendida pelo IHGB e pelo próprio trono doravante Por sua vez entendemos que a retórica da brasilidade foi desenvolvida nos escritos de Varnhagen mesmo que enlaçada com a exmetrópole portuguesa A segunda parte tem como pretensão demonstrar como a República após sua instauração provocou uma substancial mudança nas propostas monárquicas do Instituto e de como a retórica oitocentista foi modificada mesmo dentro da mesma instituição São tempos de mudanças tanto no contexto sociopolítico brasileiro quanto nos modos daqueles que escreviam sua história perceberem o país e suas relações com o outro Para tanto buscamos desvendar as obras de Capistrano de Abreu para entender como e por que se modificou a narrativa historiográfica em relação a Portugal e seus nacionais na compreensão do Brasil no contexto do IHGB No mesmo contexto republicano e numa nova arena de produção de um discurso histórico de caráter mais independente e sem vínculos institucionais buscouse revelar as extrusões existentes na historiografia brasileira em relação às interpretações anteriores A verificação de tentativas de superação dos liames com Portugal bem arquitetados na historiografia oitocentista e que perderam espaço para modelos de história onde o próprio Brasil era posto em dúvida nos levaram a buscar nas obras de Manoel Bomfim e Paulo Prado o desvio até então não encontrado a antítese que ainda não se ousara fazer Nas suas obras ácidas e sagazes onde o Portugal romantizado foi morto e outras construções discursivas assumiram seu lugar buscamos desvendar a retórica do outro Novos olhares e narrativas inovadoras sobrevieram àqueles autores a entrada em cena dos enfoques de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda é demonstrativa de que o Brasil mudara muito nos cem anos após sua emancipação política assim como o próprio mundo mudara A terceira parte de nossa dissertação ocupase desse novo tempo que chamamos de Tempos de reencontro período no qual ocorreu a plena recomposição das relações entre os dois países a demonstrar um Brasil que ainda buscava se descobrir ao mesmo tempo 14 em que tentava se desvencilhar da onipotente presença portuguesa restos coloniais arraigados no fazer de uma sociedade em busca da própria face Para adentrar de vez no território da investigação propriamente dita fazse necessário dizer que nosso propósito quando nos referimos a Portugal no título deste trabalho nunca foi de limitar nossa pesquisa aos feitos do Estado Português e de seus mandatários A Historiografia brasileira não trata apenas disso e resumir o olhar de tantos autores a uma história exclusivamente política seria enfadonho O português é aqui uma extensão de Portugal e seus atos suas maneiras suas astúcias cristalizadas na produção que nos serviu de fonte só enriquecem o mosaico desenhado pelos brasileiros ao longo das décadas sobre Portugal Afinal são os portugueses os agentes de sua própria pátria que neles se personifica Vejamos sua presença na historiografia do e sobre o Brasil 15 PARTE I A IRMANDADE COMO RETÓRICA EM TEMPOS DE CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO Há corrente convicção entre os historiadores brasileiros que a história produzida nos primeiros séculos depois do aporte português no Brasil não pode ser reconhecida em primeira mão como sendo brasileira apesar de arquitetada no ambiente colonial por homens que viveram e participaram da construção da colônia 34 Sendo a conquista de parte das terras americanas e sua posterior colonização um feito português cumpriu aos mandatários daquele império a tarefa do registro assim como da própria administração do vasto território Frei Vicente de Salvador Jean de Léry Brandão Antonil são nomes entre tantos outros que gravaram os primórdios da história brasileira testemunhas vivas do tempo narrado Cartas diários de viagens memórias crônicas relatos documentos administrativos instruções entre tantas outras perfazem as fontes originais que expressam a presença portuguesa nas terras do Novo Mundo registros sobre a terra nova que passava a integrar o notável império ultramarino português De conteúdo variado assim como suas formas esses documentos que definem o surgimento de um novo espaço no cenário mundial apregoam também a percepção de seus autores acerca do lugar as ordens desejos determinações e conselhos que marcaram indelevelmente a chamada América Portuguesa Ao construírem uma extensão do seu reino original nos liames do chamado pacto colonial os portugueses também construíram a 34 A propósito da questão ver ARRUDA José Jobson TENGARRINHA José Manuel Historiografia lusobrasileira contemporânea Bauru EDUSC 1999 DIHEL Astor Antônio A cultura historiográfica brasileira dos IHGB aos anos trinta Passo Fundo EDUPF 1998 RODRIGUES José Honório Teoria da história do Brasil São Paulo Companhia editora nacional 1978 Do mesmo autor História da história do Brasil Historiografia colonial São Paulo Companhia editora nacional 1979 e História e historiadores do Brasil São Paulo Fulgor 1963 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 2003 IGLESIAS Francisco Historiadores do Brasil Belo Horizonte EDUFMG Nova Fronteira 2000 MACHADO Ironita Cultura historiográfica e identidade Passo Fundo EDUPF 2001 entre outros 16 própria imagem como administradores feitores capatazes proprietários e também como marinheiros náufragos degredados aventureiros entre tantas outras representações que foram sendo gravadas no tempo pelos documentos redigidos ao longo do mesmo De indistinto modo o fizeram outros autores nascidos na colônia cujos nomes guardam lugares nas narrativas desse período Sendo a nova terra de nomenclatura variada35 uma extensão do reino português sua história seria também a história de Portugal a qual integrava ou deveria integrar tal qual a história das demais colônias portuguesas e dos territórios onde Portugal marcou presença É pois na imbricação das histórias desses dois lugares que nasceu o caráter ambíguo da historiografia colonial escrita por portugueses nascidos em Portugal ou na América e que também se reconheciam como mineiros pernambucanos baianos e tantas outras naturalidades oriundas das capitanias pátrias em miniaturas no contexto colonial36 Foi da necessidade de registrar a história do império que se fundou a Academia Real de História Portuguesa em 1720 reproduzindose em Lisboa o consórcio de homens cultos surgido quando do Renascimento por toda Europa37 Em seu auxílio foi determinado que uma instituição da mesma natureza fosse organizada no Brasil38 no sentido de dar 35 Ilha de Vera Cruz Terra de Santa Cruz 1500 Terra Nova e Terra dos Papagaios 1501 Terra de Santa Cruz do Brasil América Terra do Brasil 1507 são nomes comumente usados nos documentos de distintas épocas que demonstram a versatilidade dos usos na nomeação da nova extensão do império português na América A riqueza de denominações denuncia a dificuldade de nomeação das terras portuguesas na América e até o presente ainda se discute o significado de Brasil e até mesmo de sua forma escrita A respeito ver CARVALHO José Murilo de O Brasil e seus nomes Revista de História da Biblioteca Nacional Ano 2 nº 23Agosto 2007 36 A diferença entre nação país e pátria conceitos lautamente encontrados nos documentos que remontam à colonização do Brasil e utilizados no presente texto ancorase nos estudos de JANCSÓN István e PIMENTA João Paulo Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTTA Carlos Guilherme Viagem incompleta a experiência brasileira Formação Histórias São Paulo SENAC 1999 37 CAJUEIRO Renato Luís Bacellar Letrados DEl Rey os conselhos de história e o poder real em Portugal na primeira metade do século XVIII Dissertação de mestrado em História Universidade Federal Fluminense 2007 38 No Brasil a história oficial foi escrita entre os séculos XVI e XIX pelos chamados cronistas ultramarinos instituídos oficialmente após a Restauração Portuguesa em 1640 Repetia se pois uma prática de escrita institucionalizada já em uso pela Espanha desde os princípios da colonização de suas possessões n a América Foi Felipe II quem oficializou o cargo de cronistamor das Índias de Castela dandolhe a missão de corrigir ordenar e custodiar todas as descrições geográficas do Novo Mundo além de escrever uma história geral do lugar A respeito ver RODRIGUEZ Maria Tereza Nava Reformismo ilustrado y americanismo La Real Academia de La Historia 17351792 Tese de doutorado em História Universidade Complutense de Madri 1988 p 199 José Veríssimo Serrão sobre o assunto sugere que muitas vezes esse título foi meramente honorífico assinalando que a fundação da Academia Real demarcou o período de declínio dos 17 assistência na empreitada à congênere metropolitana dandose início assim a uma história lusobrasileira Acintosamente nomeada como Academia Brasílica dos Esquecidos39 a primeira instituição40 formada para a escrita da história do Brasil ficou marcada pelo hibridismo e ambigüidade da condição dos letrados americanos considerados inferiores aos seus pares do reino aos quais competia usar ou não os escritos dos acadêmicos da colônia O desejo de incorporação ao orbe literário metropolitano dos eruditos americanos que integravam a instituição e negados desde a formação da academia no reino reverteuse em indisfarçada mágoa quase a exigir um olhar mais acurado do rei aos esforços empreendidos pelos seus súditos na tarefa colonial41 Os Esquecidos cujo estabelecimento foi festejado nos círculos acadêmicos da Europa cedo deixaram de existir sendo substituídos por uma nova academia de nome também jocoso Os Renascidos o que revela o caráter satírico de seus integrantes e da instituição Outros estabelecimentos da mesma natureza existiram na colônia 42 e nos seus quadros figurava muitos dos nomes que compuseram a primeira em sua maioria também ligada aos grêmios literários portugueses e a outras academias da península o que vem provar mais uma vez a existência de uma teia de relações intrapessoais que unia acadêmicos americanos e reinóis num projeto que propiciava o estreitamento dos vínculos entre a colônia e a metrópole mas que também permitia aos primeiros uma percepção privilegiada croniciados muito embora oficialmente os cargos tenham sido preservados até o século XIX SERRÃO José Veríssimo A historiografia portuguesa Lisboa Verbo 1973 v 3 p 57 39 A Academia Brasílica dos Esquecidos foi fundada em 1724 por ordem do capitãogeral Vasco Fernandes César de Meneses governador da Bahia a qual competiu a coleta de informações e dados pertinentes a serem enviados à metrópole a fim de serem anexados à Monumental História de Portugal que se encontrava em redação pela Academia Real A propósito ver KANTOR Íris Esquecidos e Renascidos historiografia acadêmica lusoamericana 17241759 São Paulo Hucitec 2004 p 203 PEDROSA Fábio Mendonça Op cit p 26 40 Apesar dos Esquecidos serem apresentados sempre como o primeiro movimento academicista da colônia não se pode negar a existência de pequenos núcleos acadêmicos antes dessa data uma vez que os mesmos são referidos pelos próprios Esquecidos A respeito ver CASTELO José Aderaldo O movimento academicista no Brasil 16411808 São Paulo Conselho Estadual de Cultura vol I tomo I 1969 p 85 41 Segundo Holanda da insatisfação dos intelectuais coloniais que se julgaram esquecidos quando da convocação para composição do quadro da Academia Real Portuguesa originouse a denominação da academia brasílica expressando a jocosidade bem própria dos ilustrados Cf HOLANDA Sérgio Buarque de Capítulos de literatura colonial São Paulo Brasiliense 1991 42 Outras instituições foram organizadas no mesmo período na América Portuguesa entre elas citamos as de de maior destaque como a Academia dos Felizes 1736 a Militar 1740 e a dos Seletos 1752 En quanto as duas últimas sediaramse na cidade do Rio de Janeiro a Academia dos Felizes localizouse na cidade de Salvador primeira capital da colônia 18 da territorialidade colonial e das condições de efetivação da soberania portuguesa nesse espaço Coagidos pelas exigências da academia metropolitana aos estudos e escrita das academias coloniais restou um papel secundário posto devesse ser a história brasílica parte integrante da história de Portugal43 Oficializada a produção dos letrados coloniais deveria voltarse para as necessidades metropolitanas distanciandose da crônica da vida social Negouse à posteridade pois com essa prática o registro escrito da realidade colonial dos embates e queixumes dos colonos que também se consideravam esquecidos pelos governantes portugueses44 Por conseguinte o teor dos escritos dos letrados que compunham essas academias ficava assim indelevelmente comprometido pela parcialidade e pelos interesses que perpassavam sua escrita no jogo político que pontuava a relação metrópole e colônia 45 As dissertações 43 É PEDROSA quem esclarece sobre a necessidade de uma escrita das possessões americanas com o propósito de coligir informações sobre a Nova Lusitânia devendo esse material ser enviado para a Corte a fim de ser anexado à monumental História de Portugal que estaria sendo redigida pela Academia Real de História Portuguesa As dificuldades de redação da história brasílica eram imensas principalmente no tocante às colônias Para solucionar este problema o governo metropolitano correspondia com o vicerei do Brasil Vasco César de Meneses D João V ordenou que o vicerei do Brasil fizesse coligir as informações precisas para a composição da História Portuguesa encargo da Academia Real na parte relativa ao Brasil PEDROSA Fábio Mendonça Op cit p 24 44 Essa insatisfação pode ser constatada pelo grande número de rebeliões coloniais e aqui citamos as mais expressivas Revolta da Cachaça 16601661 Conjuração do Nosso Pai 1666 Revolta de Beckman 1684 Guerra dos Emboabas 17081709 Revolta do Sal 1710 Guerra dos Mascates 17101711 Motins do Maneta 1711 e Revolta de Felipe dos Santos 1720 sendo as citadas consideradas como movimentos nativistas de caráter bem específico e localizado Os movimentos que exigiam emancipação política tornaramse realidade com a Conjuração Mineira 1789 Conjuração Carioca 1794 Conjuração Baiana 1798 Conspiração dos Suassunas 1801 e Revolução Pernambucana 1817 Sobre as guerras indígenas que grassaram o período destacamos a Confederação dos Tamoios 15551567 Guerra dos Aimorés 15551673 Guerra dos Potiguares 15861599 Levante dos Tupinambás 16171621 Confederação dos Cariris 16861692 Revolta de Mandu Ladino 17121719 Guerra dos Manaus 1723 1728 Resistência Guaicuru 17251744 Guerrilha dos Muras todo o século XVIII e Guerra Guaranítica 17531756 Estudos recentes apontam que esses conflitos não deram origem a qualquer sentimento nacional ou à percepção de antagonismos extremos que opusesse portugueses e brasileiros enquanto tais apesar de alguns autores procurarem atribuílos a um sentimento nacionalista Talvez por isso mesmo não tenham alçado um lugar de destaque a ponto de serem registrados nas crônicas do período A respeito ver JANCSÓ István e João Paulo G PIMENTA 2000 Peças de um Mosaico ou Apontamento para o Estudo da Emergência da Identidade Nacional Brasileira MOTA Carlos Guilherme org Op cit p 170 45 Nos estatutos da Academia brasileira encontravamse claramente determinados como objetivos da mesma a escrita da história brasílica e a realização de certames literários prática corrente nas academias européias Não obstante pesquisas mais específicas sobre o tema evidenciaram na atuação da instituição o ideário encomiástico e as práticas laudatórias como estratégia de valorização dos seus membros da conservação do prestígio simbólico perante a corte portuguesa além do aprofundamento dos laços com a elite local Exéquias 19 ali chanceladas tinham como foco os feitos militares eclesiásticos e políticos centrandose principalmente na história natural46 de forma a construir uma narrativa de pleno interesse da Coroa tais fatos demonstram que a sociabilidade intelectual da colônia estava mais interessada na visibilidade que a atividade promoveria perante a corte lisboeta que na prática da escrita da história como um registro do real possível47 No horizonte dos acadêmicos brasílicos a expectativa de retribuição da mercê régia era um elemento de mobilização importante de tal maneira que a escrita da história podia ser transformada em moeda de barganha no jogo político entre os colonos e os poderes centrais como nos mostra Kantor Descrever as ações relevantes ser nominalmente incluído como bom servidor da Coroa numa relação histórica ou numa gazeta impressa representava uma estratégia para obter a remuneração dos serviços prestados ao rei48 Demonstrado o teor da história escrita durante a colônia evidenciase o caráter da classe que a produzia bem como a composição desses lugares de produção histórica e o lugar social dos seus membros Os acadêmicos coloniais não eram e nem poderiam ser súditos comuns sem nenhuma visibilidade social Eram na totalidade membros da chamada elite públicas e homenagens aos nobres que visitavam a colônia eram rigorosamente cumpridas pelos acadêmicos de então a demonstrar que o encômio e a bajulação tinham também uma função de reforço do corpo político do Estado 46 O padrão formal da narrativa histórica na colônia caracterizouse por uma imbricação entre o empenho erudito e a especulação teológicopolítica da própria história ao combinar diferentes modalidades de narração e técnicas de exposição de dados As reconstituições de episódios estudos genealógicos hagiografias exéquias panegíricos poesias corografias catálogos mapas de rendimentos excertos de legislação e até tratados internacionais compuseram a produção desses lugares constituindose como um gênero ligado à arte da memória ou assumindo o caráter de documentação informativa ou comprobatória que integravam memoriais administrativos necessários à obtenção das remunerações de serviços prestados à Coroa As especificidades da história que se deveria ali produzir tinham representantes responsáveis pelos estudos e pela coleta de dados ficando a cargo de Inácio Barbosa Machado a escrita da história militar ao padre Gonçalo Soares Franca a história eclesiástica o ouvidorgeral do cível Luís Siqueira da Gama assumia a história política assim como o desembargadorchanceler Caetano de Brito e Figueiredo a história natural De todas inegavelmente foi a última que apresentou a maior produção Conforme PEDROSA Fábio Mendonça Op cit p 22 47 Como matriz fundadora da historiografia brasileira é certo que as práticas e procedimentos das academias portuguesas foram reproduzidos pelos homens de letras da então colônia Explica se então por esse viés a ausência de narrativas sobre os entrechoques entre a sociedade colonial e a coroa portuguesa posto que a maioria das dissertações produzidas nesses espaços voltavase para a história natural revelando a cultura letrada brasílica e os diversos níveis de sociabilidade intelectual no Brasil setecentista 48 KANTOR Iris Op cit p 98 20 colonial49 indiferentes ao movimento da sociedade com os olhos voltados tão somente para o reino e para seus interesses de classe o que os impedia de nutrir sentimentos localistas como aconteceu nas academias provinciais da França 50 Sendo a educação formal apanágio de poucos elemento de valorização no espaço colonial constituiuse naturalmente como elemento de reprodução da ordem social e de ostentação51 em meio a uma população marcadamente inculta graças à proibição régia da existência de impressos52 e da circulação dos mesmos além dos limites da metrópole53 Daí reputarse como inviável que homens que não pertencessem a essa elite tivessem acesso à educação formal de modo a poder integrar um espaço de letrados como as ditas academias Impõese neste momento importante esclarecimento de forma a situar a natureza da história produzida nesses lugares de saber e que deriva de uma questão identitária pois sendo a colônia uma extensão de Portugal condição plenamente reafirmada nos escritos 49 Cf PEDROSA Fábio Mendonça Sol Oriens in Occidus Contribuições para o estudo da Academia Brasílica dos Esquecidos Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro UERJ 2001 p 158 Em seu texto o autor esclarece a composição daquele espaço de saber que contava entre os seus 155 membros precipuamente eclesiásticos senhores de engenho proprietários de fazendas de gado e magistrados públicos Do total de membros somente 36 representariam o núcleo efetivo dos acadêmicos restando aos demais a participação esporádicas nas sessões cabendo apenas a quatro deles a tarefa de escrever dissertações históricas Também apresenta estimativas interessantes sobre o dito quadro ao enumerar que dos trinta e seis participantes efetivos 23 eram naturais do Brasil e destes 20 eram baianos sendo os demais naturais de Portugal Somente 9 dos 36 membros tinham cursado a Universidade de Coimbra tendo os demais recebido educação primária nos colégios jesuítas Nesse universo 16 acadêmicos eram eclesiásticos 7 seculares e 9 regulares em sua maioria jesuítas A maioria de brasileiros não frequentara a Universidade 50 ROCHE Daniel Op cit p 188 Roche demonstra que as academias das províncias francesas apesar da manutenção de relações estreitas com as academias parisienses participaram ativamente do jogo político entre as periferias e o centro político chegando mesmo a nutrir a formação de um sentimento localista em oposição a Paris Majoritariamente compostas por magistrados e burgueses as academias provinciais promoveram ideais de progresso do espírito humano e uma visão cívicopedagógica da História 51 Cf VILLALTA Luiz Carlos O que se fala e o que se lê língua instrução e literatura In MELO E SOUSA Laura org NOVAIS Fernando Op cit p 339 52 SOUTHEY Robert Op cit p 48 FONSECA Thaís Nívia de Lima Letras ofícios e bons costumes civilidade ordem e sociabilidades na América portuguesa Belo Horizonte autêntica 2009 p 127 53 Não obstante as idéias eram divulgadas a partir de três suportes os livros estrangeiros geralmente escritos em outra língua as cópias manuscritas e a linguagem oral Era prática comum dos letrados se reunirem para leitura coletiva assim como era usual o empréstimo de livros de interesse comum de uso interditado Além dos livros a circulação de cartas e pasquins revelava a expressão artística e as redes de sociabilidade destacandose entre as mesmas a prática de versejar como importante suporte literário do território colonial JANCSÓN István A sedução da liberdade cotidiano e contestação política no final do século XVIII In MELLO E SOUSA Laura de Op cit p 399 21 históricos e seus habitantes súditos diretos da monarquia que ali reinava54 não há que se falar em uma história brasileira mas uma história lusobrasileira na qual o Brasil era confirmado como um apêndice português e sua história uma parte da história de Portugal A singularidade da sociedade colonial não poderia assim ser pensada em oposição ao Velho Mundo55 e a história apenas reforçava o pacto político forjado no âmbito do sistema colonial56 Tais características se refletiram em sua recepção como ambígua pouco representativa e portanto pouco brasileira A constatação do cariz daqueles discursos fez com que mesma sofressem certa repulsa pelos intelectuais do pósindependência que consideraramna como obras de estrangeiros cheias de falsidades a respeito do povo e do Brasil57 Evidentemente a história feita em tais condições não poderia ser recepcionada como uma história marcadamente nacional que expressasse as diferenças entre a Metrópole e a colônia Inexistia nessa história produzida durante o período colonial o reconhecimento 54 PIMENTA defende a tese de que durante os três primeiros séculos a identidade política dos colonos era construída a partir do substrato comum de serem súditos de um mesmo rei formando assim indistintamente a grande nação portuguesa fossem nascidos em Portugal ou na colônia Mesmo que se chamassem pernambucanos baianos ou paulistas eram todos portugueses submetidos a um só governo e jurisdição Somente em meados dos setecentos com a complexificação do sistema colonial e a agudização das diferenciações metrópolecolônia a identidade lusa começa a sofrer progressivo desgaste integrandose à questão a idéia de América para alem de uma referência geográfica geral mas também como espaço de identificação e de atuação política ocasionado pelas rupturas de pacto colonial no continente como foi o caso da luta nas treze colônias britânicas 1776 e na colônia francesa de SaintDomingues 1791 Tais datas segundo o autor citado são fundamentais na modificação da identidade coletiva colonial politizando a passandose doravante a ser lusoamericana Diferente portanto dos chamados reinóis essa nova identidade ganhará ares definitivos quando da instalação da corte no Rio de Janeiro com a intensificação das discussões políticas que se tornarão mais abrangentes vindo a se refletir na re fundação de uma percepção de si Português da América nas duas primeiras décadas do século XIX passou a ser uma distinção especial na medida que identificava um súdito em um espaço de atuação política que se tornara segundo os objetivos da corte o espaço central dos destinos da monarquia Para o autor a historiografia brasileira tem atuação marcada pelo anacronismo ao fazer uso de termos como brasileiros e nacionais mesmo tratando de contextos em que os mesmo inexistiam A propósito ver PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses Americanos Brasileiros Identidades políticas na crise do Antigoregime Lusoamericano Almanack Brasiliense nº 3 Maio2006 pp 6981 55 Segundo ODÁLIA No caso brasileiro havia entre seus intelectuais o acalento do sonho de que a então colônia poderia ser um dia a cabeça do Império de que fazia parte Por isso ela fora pensada como o natural prolongamento da Monarquia e do Império portugueses numa relação de igualdade e nunca de sujeição Esse sonho ganhou dimensões especiais após 1808 mas se desfez no dia seguinte ao da independência In ODÁLIA Nilo As formas do mesmo ensaio sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Viana São Paulo UNESP 1977 56 NOVAIS Fernando Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial 17771808 São Paulo HUCITEC 1979 57 MATOS Raimundo José da Cunha Dissertação acerca do sistema de escrever a História Antiga e Moderna do Império do Brasil Revista do IHGB Rio de Janeiro nº 26 p 121143 1863 22 de Portugal como um outro distinto do Brasil objeto desta investigação A produção histórica desse período não revelava um Portugal diferente do Brasil naturalizando o entrelaçamento manso e pacífico entre colônia e metrópole ao tempo em que ocultava outros processos sociais o que vem a darlhe um cariz de parcialidade a embotar qualquer percepção de Portugal como corpo político distinto sem a alteridade necessária à presente investigação Demarcase pois o não uso desses escritos na presente investigação O aprofundamento das relações metrópolecolônia bem como a conjuntura política reinol refletiuse na produção desses lugares de saber que decaiu com a vinda da corte portuguesa para o Brasil e mais tarde com a equiparação da colônia à vicereino fatos que mudaram completamente o contexto político colonial A abertura de seus portos às chamadas nações amigas parece ter desfeito as contradições e ambigüidades do sistema extinto em 1816 com a elevação do Brasil a Reino Unido A pretensa inferioridade foi diluída diante da constante presença de estrangeiros em suas ruas assim como a entrada de produtos industrializados o que permitia que se ratificasse a impressão de que o Brasil era uma extensão da Europa58 ao qual se pensava pertencer A busca por parâmetros da civilidade do Velho Mundo fundamentou uma imprescindível ligação com a Europa no sentido de nela se fazer incluso O estabelecimento de instituições centralizadoras que transformassem a colônia na sede provisória da monarquia portuguesa principalmente os de caráter cultural como a Imprensa Régia a Biblioteca o Real Horto e o Museu Real somados à vinda da Missão Francesa59 caracterizouse como o primeiro passo para que o Brasil se assumisse como centro produtor e reprodutor de sua cultura e sua memória 58 Cf ALENCASTRO Luís Felipe de Vida privada e ordem privada no Império In ALENCASTRO Luís Felipe de Org NOVAIS Fernado Dir História da vida Privada no Brasil A corte e a modernidade nacional São Paulo Cia das Letras 1989 p 89 59 Enquanto no plano econômico a Inglaterra representava o principal interlocutor para a nova sede do império português no plano das idéias a França asseguraria os modelos com os quais se buscava pensar e viabilizar um modelo de organização nacional para o Brasil A despeito da invasão napoleônica a Portugal passos significativos neste sentido foram dados por D João VI ao chamar à nova sede do império português a Missão Francesa oito anos após a chegada e instalação da Corte no Rio de Janeiro Se o ideário político revolucionário francês era recusado pelos futuros construtores do Estadonação a França era contudo percebida em sua função civilizatória para o Brasil função esta restrita eminentemente ao plano da cultura Estar afinado com os princípios da civilização àquela altura do século XIX significava estar de alguma forma em sintonia com as regras da cultura francesa instância legitimadora por excelência de um projeto civilizador E portanto com a vinda da Missão Francesa ao Brasil e os desdobramentos daí decorrentes que um significativo passo é dado no sentido de transformar a França em modelo de civilização para as elites 23 A instituição de Reino Unido parece ter sido determinante para a efetivação da Independência brasileira tornada realidade diante das exigências do Vintismo Uma vez independente revelouse no país o vazio ideológico em que se desenvolvera o processo de emancipação fazendose necessário preencher esse espaço por meio de uma ação deliberada e racional orientada no sentido de construir o que não havia para além de um arcabouço jurídicoadministrativo60 No plano políticoideológico as delimitações de um trajeto que fizesse da colônia uma nação e da massa herdada da colônia em povo era a exigência do momento A sobrevivência do país independente se confundia pois com a capacidade política de suas classes dirigentes realizarem com sucesso a missão política fundamental do século XIX estruturar e tornar efetivo um projeto de Nação Guardadas as especificidades do momento o certo é que o imperador Pedro I apoiou a fundação de novas instituições de saber bem como a formação de uma elite intelectual autônoma capaz de escrever a história da nova nação estabelecendose por tal via a garantia de uma identidade própria Não obstante seu apoio não se concretizou imediatamente e somente alguns anos após sua abdicação do trono do Brasil e mesmo após sua morte foram lançados os fundamentos de uma instituição que teria como missão a realização desse projeto construir a nação brasileiras forjadoras do futuro Estado nacional A propósito ver GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da História Acervo v 4 nº 1 p 135143 1989 60 Os mecanismos jurídicos já garantiam meios de se fazer criar uma identidade coletiva distinta da identidade étnica regional ou mesmo territorial consoante o Decreto de 14 de Janeiro de 1823 definindo se a partir de então o que seria um cidadão no Estado recém nascido os direitos civis e participação política no mesmo A respeito ver RIBEIRO Gladys Sabina O Tratado de 1825 e a construção de uma determinada identidade nacional os seqüestros de bens e a Comissão mista BrasilPortugal In CARVALHO José Murilo de Nação e cidadania no Império Novos Horizontes Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007 CERVO Amado MAGALHÃES José Calvet Depois das caravelas as relações entre Portugal e Brasil 18082000 Brasília Editora da UnB 2000 ANDRADE Carolina Naciff de O Tratado de paz e amizade como fonte de direito a Comissão Mista BrasilPortugal os direitos das gentes e as relações internacionais na época da Independência Monografia de conclusão da graduação em História da Universidade Federal Fluminense 2002 24 CAPÍTULO 1 UM PROJETO DE HISTÓRIA PARA A NAÇÃO EMANCIPADA A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro61 em 1838 respondeu à lógica do contexto da emancipação política do país norteandose pela tarefa primeira de criar uma história para a nação Assim como na Europa dos oitocentos a história deveria ter um papel importante e até mesmo fundamental a desempenhar na elaboração de uma narrativa nacional que permitisse a construção ou rearranjo de determinadas peculiaridades da nova nação a fim de darlhe a visibilidade necessária Forjado para realizar a monumental tarefa de compilar metodizar e guardar fatos e nomes no sentido de compor uma história nacional almejavase nesse arranjo a recriação de um passado singular a partir da ordenação dos fatos e da solidificação dos mitos de fundação O IHGB vinha para satisfazer assim os critérios de uma vertente historiográfica eminentemente brasileira formada não apenas por brasilienses62 mas também por 61 Doravante ao nos referimos à instituição trataremos sempre pela sigla IHGB pela qual é usualmente tratada 62 O termo é da época e foi usado pela primeira vez por Hipólito da Costa ao lançar o Correio Brasiliense em 1822 no sentido de diferenciar os filhos dos portugueses nascidos no Brasil dos próprios portugueses moradores do país Buscavase assim a demarcação de uma identidade coletiva onde os brasilienses eram entendidos como os naturais e brasileiros quem negociava ou se estabelecera no Brasil Foi José da Silva Lisboa no mesmo ano que definiu o brasileiro como o natural do Brasil considerandoos como animais que ainda não atingiram sua plenitude assim referindose aos indígenas Somente no período pósindependência o termo foi introduzido na linguagem do poder por Carneiro de Campos Ao declarar que o adjetivo brasileiro doravante não significaria apenas o lugar de nascimento mas também de uma qualidade na esfera política o deputado deu um novo significado enquadrandoo como designativo dos partidários de um projeto político constitucional para o Brasil encabeçado por Pedro I independente do seu lugar de nascimento Somente quando foi definida a idéia de nação da qual se encarregou a primeira geração do IHGB o termo brasileiro tornouse um substantivo pátrio A propósito ver VAINFAS Ronaldo Dicionário do Brasil imperial 18221889 Rio de Janeiro Objetiva 2002 MACHADO Humberto Fernandes NEVES Lúcia Maria Bastos Pereira das O império do Brasil Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 25 portugueses que assumiriam a nova nacionalidade cujo papel consistia em explicar a questão nacional superando a narrativa das academias coloniais Aos intelectuais que tomariam assento nesse lugar de saber cumpria atender a essa necessidade básica da nova nação em vias de consolidação Impulsionados pela urgência e pela consciência da tarefa que tinham a realizar esses historiadores deveriam se tornar os forjadores da pretendida nacionalidade Careceriam pois desvendar a formação do Brasil construindo sua história divulgandoa e solidificandoa nas gerações futuras63 Sendo Portugal a primeira referência daqueles intelectuais com a Europa esta não se limitava à antiga metrópole alastrandose mesmo para outros países No plano econômico o principal interlocutor do Brasil era a Inglaterra que ali impusera sua presença desde a abertura dos portos no plano cultural o modelo provinha da França tida como instância legitimadora de um projeto de civilidade almejado naquele momento histórico 64 O contrário podese dizer do ideário politicorrevolucionário daquele país plenamente recusado pelos então construtores da nação brasileira A vinculação à Europa mesmo que fosse ponto pacífico ao novo projeto de nação em alguns aspectos parece não ter ultrapassado o nível da retórica não se adequando às muitas inovações culturais do Velho Mundo Um exemplo disso foi a manutenção no neófito IHGB das mesmas regras para inserção de membros das academias setecentistas A tradição historiográfica iluminista se fez presente também na concepção de história professada pelo instituto o que pode ser facilmente identificado no tratamento linear dado ao desenvolvimento da história e à sua instrumentalização como mestra da vida contida 63 A instituição principal instituto científico do Brasil no século XIX foi inspirada na cultura iluminista francesa em especial no Institut Historique de Paris Os objetivos estabelecidos por seus membros na escrita da história nacional orbitaram ao redor da idéia do esclarecimento das elites as quais em seguida se encarregariam de esclarecer o restante da sociedade Isto é a preocupação com a sistematização de uma história do Brasil se viabilizou durante a consolidação do Estado Nacional brasileiro dentro do qual a civilização do Brasil se daria do topo da pirâmide social para a sua base Assim a nação brasileira deveria surgir como o desdobramento de uma civilização branca e européia nos trópicos A respeito ver NAXARA Márcia Regina Capelari Pensando Origens para o Brasil no Século XIX História e Literatura In História Questões Debates Curitiba n 32 p 4764 2000 p 50 DIEHL Astor Antônio Op cit p 27 64 Um contato de natureza cultural com a França não era na verdade novo se pensarmos que já quando da vinda da família real para o Brasil em 1808 passos significativos neste sentido foram dados por D João VI ao receber na nova sede do império português a Missão Francesa oito anos após a chegada e instalação da Corte no Rio de Janeiro A língua francesa como forma de expressão culta de uma elite intelectualizada ficava patente na publicação de artigos e comentários naquele idioma pela revista Minerva brasiliense Estar afinado com os princípios da civilização àquela altura do século XIX significava estar de alguma forma em sintonia com as regras da cultura francesa A propósito ver GUIMARÃES Manuel Luís Salgado Op cit p 140 26 em seu brasão A tradição particular do iluminismo português se tornou marca na geração fundadora daquele espaço65 onde as práticas eruditas de investigação já existentes desde fins do Século XVII foram gradualmente incorporadas marcando o início da autonomização disciplinar e da profissionalização do ofício do historiador no Brasil mesmo que a história como disciplina autônoma e independente ainda não estivesse institucionalizada66 Por conseguinte os membros daquele espaço não eram nem poderiam ser historiadores de ofício com formação específica para os estudos históricos eram diletantes determinados numa missão de construir um passado para o país Apesar de escolhidos por critérios sociais não se pode negar as disposições intelectuais dos mesmos que diante da tarefa assumida passaram a referir a si e aos demais autores de trabalhos históricos como historiadores historiógrafos e cronistas67 definição dada precipuamente pela instituição a qual eram ligados lugar que institucionalizava suas falas autorizandoas 65 A discussão em torno do Iluminismo e de seus reflexos em Portugal é tema polêmico entre os historiadores O ambiente intelectual luso em virtude de ter articulado as idéias modernas com a tradição católica é comumente identificado nas historiografias brasileira e portuguesa como um caso a parte quase um contraponto à Modernidade européia Alegase ter sido o Iluminismo em Portugal pautado pela articulação entre as idéias modernas e a tradição católica o que findou por se refletir em seu cariz eclético O emprego desse termo como elemento definidor da prática iluminista portuguesa está presente em obras de filosofia e história produzidas no século XX como as dos historiadores portugueses José Sebastião da Silva Dias José Esteves Pereira e António Braz Teixeira Não obstante apesar de contraditório é inelutável o fato de o Iluminismo português ter obtido relevante recepção por parte dos membros do IHGB instituição mantida pelo Estado monárquico brasileiro que tinha no Catolicismo sua religião oficial A respeito da discussão sugerimos a leitura de CARVALHO Flávio Rey de Revisitando o Iluminismo contribuições para o estudo do caso português Revista Tempo de Conquista nº 5 2009 Do mesmo autor Um Iluminismo português A reforma da Universidade de Coimbra 1772 São Paulo Annablume 2008 MACEDO Jorge Borges de Estrangeirados um conceito a rever Bracara Augusta Revista cultural de regionalismo e história da Câmara Municipal de Braga nº 28 p 184187 1974 SÉRGIO António Breve interpretação da história de Portugal Lisboa Livraria Sá da Costa 1998 GUIMARÃES Manuel Luís Salgado Nação e civilização nos trópicos Estudos Históricos nº 1 1988 p 527 HAZARD Paul O pensamento europeu no século XVIII Lisboa Editorial Presença 1989 66 A respeito bem observou GUMARÃES nos moldes seguintes Quando se pensa em campos disciplinares no Brasil no século XIX é muito difícil pensálos a partir de uma lógica e de um sistema de fronteiras hoje plenamente constituído e plenamente assentado Certamente isso não era assim no século XIX e esses homens de letras transitavam em termos de suas discussões pelos campos mais variados como a etnologia a etnografia a história e a lingüística Uma gama muito variada de questões ocupou aqueles que além de tudo tiveram como tarefa pensar a Nação de forma mais geral sobretudo pensála de um ponto de vista de uma história nacional GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Uma história da história nacional textos de fundação In LIMA Ivana Stolze CARMO Laura do Org História social da língua nacional Rio de Janeiro Edições Casa de Rui Barbosa 2008 p 397 67 A diferença entre eles era estabelecida conforme o posicionamento do escritor diante do que fora relatado e a extensão do conteúdo abordado A diferença entre o historiador e o historiógrafo não é explicitada nos 27 Em meio ao processo de consolidação do Estado Nacional assinalado por disputas regionais coube ao IHGB o dever de sistematização de uma história tida como oficial congregando entre seus membros a elite intelectual brasileira bem como a elite política e econômica da época O recrutamento de membros a partir de determinantes mais sociais que intelectuais é explicado em primeira mão por ter na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional68 seu idealizador fato que se revelou no quadro institucional bem marcado por uma teia de relações pessoais Por conseguinte o espaço do IHGB sobressaiu se também como uma extensão do círculo ilustrado imperial elencandose entre seus membros vogais do Supremo Tribunal procuradores desembargadores e chefes da Secretaria dos Negócios do Império69 documentos institucionais do IHGB conforme faz mostra o trabalho de HRUBY abaixo referenciado No entanto os dicionários no século XIX faziam a distinção entre estes dois literatos Historiador e historiógrafo escreviam histórias mas de diferente modo e por diversas circunstâncias Historiógrafo era um literato pensionado do Estado ou de um príncipe para escrever a sua história e correspondia quase sempre ao que se chamava cronista O historiador por sua vez era um literato que compunha uma história sem ser pensionado e quase sempre não contemporânea cabendolhe generalizar os motivos as ligações com outros fatos e as conseqüências apresentando obras estruturais dentro de um conjunto organizado O historiógrafo por sua vez constituíase num simples analista que referia acontecimentos reunia materiais ao passo que o historiador escolhiaos colocavaos em ordem examinava os fatos julgava os homens e as coisas devendo ser menos adulador e mais imparcial que o historiógrafo Já nos dicionários no início do século XX o termo historiador passa a englobar estas duas acepções Por sua vez os escritos dos cronistas sempre foram tomados como um gênero menor sem pretensão de obra acabada limitada a uma missão a um episódio posto serem trabalhos conjecturais baseados em presunções evidências incompletas pressentimentos ou suposições Esta convicção sobre os cronistas se estabeleceu a partir dos escritos coloniais chegando mesmo aos nossos dias A propósito da discussão ver HRUBY Hugo Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra A história do Brasil no IHGB 18891912 Dissertação de mestrado em História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2007 Sobre o conceito ver SILVA A de M Dicionário da língua portuguesa Lisboa A José da Rocha 1858 v 2 p 144 FARIA E de Novo Dicionário da língua portuguesa para uso dos portugueses e brasileiros Lisboa Tipografia Lisboense de José Carlos DAguiar Vianna 1850 v 3 p 678679 Que escreve história ou escreve sobre a vida da humanidade O que conta ou narra um acontecimento um fato ou sucesso Historiógrafo escritor de história Cronista cronógrafo o que é encarregado oficialmente pelo Estado ou por um príncipe de escrever a história de uma época VALENTE A L dos S Dir Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa Lisboa Tipografia da Parceria Antonio Maria Pereira 1911 v 1 p 901 Aquele que escreve sobre história o que escreve história narrador Historiógrafo aquele que escreve a história de uma época cronista historiador MORENO A Dicionário complementar da língua portuguesa ortoépico ortográfico e etimológico com um glossário de arcaísmos Porto Educação Nacional 1936 68 A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi fundada em 1817 por D João VI com o objetivo de promover o desenvolvimento da agricultura lavoura e pecuária do Reino Unido Só dez anos depois ocorrida a independência do Brasil é que a SAIN veio a funcionar fazendo parte de um conjunto de medidas que visavam entre outros objetivos a centralização do Estado Sobre o termo indústria aplicado à nomenclatura da instituição devese destacar que o mesmo não tinha a mesma conotação no século XIX referindose a empreendimento de natureza econômica fosse em qualquer de suas áreas 69 Já observara SCHWARCZ que fazia parte dessa lista do instituto nada menos que dez conselheiros do Estado seis desses sendo senadores Portanto aí estava reunida a nata da política imperial boa parte dela 28 Esse conjunto de membros bem se assemelhou a uma sociedade de corte dada a sua composição que reproduzia a organização das extintas academias setecentistas fosse como membro efetivo ou sócio honorário Tal caráter foi acentuado pelo patrocínio pessoal assumido pelo próprio imperador do Brasil D Pedro II70 cujas oblações incrementavam o orçamento da instituição formado em mais de 75 de dotações estatais para além da primeira O estrato social da mais alta elite letrada do qual os membros do IHGB faziam parte importou e adaptou doutrinas científicas para a interpretação da realidade brasileira como o Iluminismo o Positivismo e o Evolucionismo71 que serviram para criar uma história legitimadora de posições políticas dos altos grupos sociais e do próprio Estado 72 O marco da produção a ser realizada doravante teria como pauta a aproximação do Brasil com a Europa embora um pouco distanciado de Portugal Esse projeto elaborado pelas elites coloniais que chegavam ao Império mantendose no poder73 exigia um simbolismo a ser construído de modo a sedimentar a arquitetura da nação e demandava a edificação de uma identidade própria autônoma capaz de se fazer reconhecer pelas demais nações 74 A função pragmática dessa produção centrada na simplificação dogmática e teleológica e num esquema de fatos e imagens da nacionalidade representava o substrato do projeto de construção da história do Brasil Deveria pois ser registro de uma memória que ensejaria uma epopéia nacional a partir de fatos grandiosos bem como a própria fisionomia nacional a paisagem do Brasil ancorada em sua memória físicogeográfica Dessa forma tanto a epopéia quanto a paisagem brasileira deveriam ser além de preservadas continuamente acionadas por um sentimento que deveria ser enfatizado doravante o nascida em Portugal e fiel defensora da Casa de Bragança SCHWARCZ Lílian Moritz O espetáculo das raças cientistas instituições e a questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 2000 p 46 70 Ao fazer uma análise da hierarquia interna existente no IHGB SCHWARCZ observou algumas divisões curiosas em relação aos seus sócios que se diferenciavam em Efetivos Correspondentes Honorários e Beneméritos Enquanto a posição de presidente honorário era cativa do imperador a de presidente era exclusiva de políticos renomados Já aos sócios que adentravam por méritos acadêmicos eram reservadas majoritariamente as funções de secretários eou oradores In SCHWARCZ Lílian Moritz Op cit p 163 71 Cf DIEHL Astor Antônio Op cit p 30 72 SAES Décio A formação do Estado burguês no Brasil 18881891 Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 73 RICÚPERO Rodrigo A formação da elite colonial 15301630 São Paulo Alameda 2009 74 Os mecanismos jurídicos já garantiam meios de se fazer criar uma identidade coletiva distinta da identidade étnica regional ou mesmo territorial consoante o Decreto de 14 de Janeiro de 1823 definindo se a partir de então o que seria um cidadão no Estado recém nascido os direitos civis e participação política no mesmo A respeito ver RIBEIRO Gladys Sabina O Tratado de 1825 e a construção de uam determinada identidade nacional os seqüestros de bens e a Comissão mista BrasilPortugal In CARVALHO José Murilo de Op cit p 356 CERVO Amado MAGALHÃES José Calvet Op cit p 124 ANDRADE Carolina Naciff de Op cit p 68 29 patriotismo concebido não mais como referência de uma determinada região como se dera nos tempos coloniais mas relacionado com o território brasileiro e seu passado comum que lhe deu forma75 Esse passado colonial por sua vez não deveria ser apagado nem visto de maneira crítica Bem ao contrário deveria ser visto como um caminho para o estabelecimento do projeto monárquico e sua história deveria ser como um desenvolvimento contínuo desde o descobrimento até aquela data Escrever história de desordens entre portugueses e brasileiros em especial a da Independência significaria abrir espaço para polêmicas conflitos de interpretações e disputas tudo aquilo que questionava o funcionamento do próprio sistema político e intelectual e que não interessava à nova nação pela ótica de seus dirigentes Mas como se faria essa construção considerandose as tensões e embates havidos no processo de emancipação política e as próprias dificuldades enfrentadas ao longo dos anos subseqüentes ao fato76 O que interessava às elites locais marcadas por séculos de 75 Ver ROUANET Maria Helena Eternamente em Berço Esplêndido São Paulo Siciliano 1991 GUIMARÃES Manoel Salgado Livro de fontes da historiografia brasileira Rio de Janeiro FAPERJEdUERJ 2010 76 A presença portuguesa no Brasil apresentou uma dualidade característica após a Independência Em grande número os portugueses se dividiram em dois grupos que acatavam ou não a emancipação política Não obstante essa divisão a Assembléia Constituinte de 1823 concedeulhes privilégios jurídicos e políticos não sendo considerados estrangeiros desde que concordassem com a Independência e não se envolvessem em lutas contra a efetivação da mesma Todavia esse tratamento privilegiado não necessariamente se refletiu no tratamento que os imigrantes receberam do povo pois a marca da lusofobia e o antilusitanismo que eclodiram naquele momento histórico foram visibilizadas na ocorrência de episódios violentos alicerçados na visão do português como representante da dominação colonial que continuava sua prática espoliativa a partir do abuso dos preços da cobrança de aluguéis a preços exorbitantes de vender seus produtos a preço acima do valor de mercado sempre suspeitos de práticas comerciais menos honestas A lusofobia no Brasil era um reflexo dessa suposta exploração econômica que os imigrantes portugueses exerciam sobre os brasileiros para muitos dos quais era inaceitável que os antigos colonizadores do Brasil continuassem a dominar diversos setores da economia nacional A lusofobia era fomentada também em grande parte pela posição de destaque que os lusitanos continuaram a ocupar no Brasil mesmo após a independência Os portugueses concentravamse nas cidades e grandes centros urbanos ao contrário de outros imigrantes que tendiam a ficar no campo Muitos portugueses eram proprietários de imóveis e pensões e dominavam o comércio varejista no Brasil Em consequência tinham contato direto com o público e eram vistos com desconfiança pela população A propósito ver RIBEIRO Gladys Sabina Mata galegos os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha São Paulo Brasiliense 1990 Da mesma autora ver Os rolos do tempo O antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro 18891930 Niteroi UFF 1987 e A liberdade em construção identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado Rio de Janeiro RelumeDumará 2002 FAUSTO Bóris Trabalho urbano e conflito social Rio de Janeiro DIFEL 1977 Ver também SALES Iraci Galvão Trabalho progresso e sociedade civilizada São Paulo HUCITEC 1986 ALENCASTRO Luis Felipe de Proletaires et esclaves immigrés portuguais et captifs 30 patrimonialismo e pautadas num sistema econômico escravocrata alavancado por uma monarquia a se destacar em seu caráter de elemento exótico no quadro político do Novo Mundo Como permitir a manutenção das instituições anteriores à independência sem ocasionar traumas e fraturas no corpo social Como mostrarse separado de Portugal se este representava a primeira referência com a civilizada Europa Em 14 de novembro de 1840 foi proposto um concurso acadêmico por Januário da Cunha Barboza secretário perpétuo da instituição Seu objetivo era escolher um plano para escrever a história do Brasil A existência de tal concurso é demonstrativa de quanto os membros do Instituto se encontravam angustiados diante da imensa tarefa a realizar77 Fazer do Brasil uma nação munidos da pretensão de atingir um modelo idealizado de civilização europeia estava longe de ser simples pois o país reunia uma série de condições problemáticas passado colonial recente instituições públicas escassas e em muitos casos inexistentes populações marginalizadas marcadas pela passividade e totalmente avessas à prática da cidadania78 O sentido do concurso era o de definir um caminho um roteiro que permitisse a superação de tais obstáculos que contemplasse as diversas ambições por trás da escrita da história e também satisfizesse a ambição científica latente nos quadros do IHGB de realizar tal construção 11 Reconhecendose no outro e o outro é Portugal Foi a proposta formulada pelo naturalista alemão Karl Philipp Von Martius em 1845 que permitiu o deslindamento da questão O ensaio intitulado Como se deve escrever a história do Brasil79 deflagrou as linhas mestras do projeto capaz de garantir uma identidade ao Brasil dandolhe o contorno da civilização pretendida Estabelecia também as bases do que deveria ser uma história científica da nação brasileira e as proposituras necessárias à africanins a Rio de Janeiro 18501872 Cahiers du CRIAR nº 4 Publications de lUniversité de Rouen 1984 77 Odália obtempera ter sido um grande problema a transformação da ex colônia em nação visto que só a mágica seria capaz de converter uma colônia marcada por séculos de rapinagem e escravidão numa nação independente e soberana de um dia para outro Necessário seria uma grande estratégia capaz de consolidar essa possibilidade na mentalidade da população e esta estratégia fecundou nas idéias de Von Martius Cf ODÁLIA Nilo Introdução Varnhagen São Paulo Ática 1979 p 16 78 WELLING Arno Estado história e memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova fronteira 1988 p 88 79 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Como se deve escrever a história do Brasil In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Livro de fontes da historiografia brasileira Rio de Janeiro EdUERJ 2010 Originalmente publicado na RIHGB t VII 1845 pp 381403 31 confecção de um discurso histórico ideal àquele momento De tais propostas tornouse possível identificar uma história dita nacional mesmo que traçada por um estrangeiro depreendendose na mesma a forma e o lugar estabelecidos para o português enquanto sujeito dessa narrativa Mesmo sendo bávaro Martius estava longe de ser um desconhecido dos homens de letras do Brasil posto que já houvesse visitado o país em missão científica Também publicara uma obra intitulada Viagem pelo Brasil em parceria com Johann Baptist Von Spix80 Apesar da formação e do interesse pelas ciências da natureza Martius era herdeiro da tradição iluminista e sócio correspondente do IHGB desde sua fundação o que chancelou a excelente receptividade que obteve seu trabalho no certame 81 Sua percepção do que as elites que fizeram a Independência queriam para o Brasil foi decisiva para a construção de sua proposta exitosa Mas o queriam essas elites para o Brasil Diante da resposta de difícil esclarecimento dúvida esta já revelada no próprio concurso do IHGB cujos integrantes mostravam dificuldade na definição de uma proposta identitária cumpria fazer uma nova questão O que não queriam essas elites para o Brasil Em que se expressava a vontade das elites brancas em relação ao pretendido projeto de criação de uma identidade nacional Guimarães assevera que as elites nacionais desprezavam o índio o negro o protestantismo o republicanismo e por extensão os seus próprios vizinhos da América Latina82 Tais identificações não sendo aceitas pelas elites nacionais não poderiam fazer parte do projeto 80 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von SPIX Johann Baptist Von Viagem pelo Brasil 18171820 Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Edusp 1981 Mesmo se tratando da apresentação dos resultados colhidos numa expedição de botânica e zoologia o texto dos dois autores revela um apreço pela totalidade da sociedade colonial brasileira e se destaca pelos estudos etnográficos de sua população Nele já é possível encontrar alguns argumentos que serão utilizados na monografia vencedora do concurso do IHGB como a presença indígena na colônia seus hábitos e a certeza dos autores da inferioridade dos mesmos aos quais consideraram uma civilização decaída Destacam também o modo de vida dos colonos seu cotidiano e estratégias de sobrevivência dados importantes para Martius que os sugere como preciosos como objeto de investigação do historiador oitocentista 81 Apenas dois trabalhos foram apresentados neste concurso Além de Martius concorreu Henrique Júlio de Wallenstein cônsul geral da Rússia no Rio de Janeiro cujo trabalho propunha o estudo da História do Brasil por décadas nos moldes do romano Tito Lívio ou do cronista português João de Barros e privilegiava a história política A história civil eclesiástica e literatura deveriam constar como observação no fim de cada capítulo Sua biografia foi publicada pelo IHGB após seu suicídio em 1843 Ver Revista do IHGB nº 21 abril de 1844 82 GUIMARÃES Manoel Luís Salgado Nação e civilização nos trópicos O IHGB e o projeto de uma história nacional Estudos históricos v 1 nº 1 p 527 1988 32 de nação que se queria para o Brasil Contudo como fugir da dura realidade nacional marcada pela imagem de grande laboratório racial criada a partir dos relatos de viajantes e naturalistas83 que encontravam guarida e larga difusão entre os intelectuais brasileiros e que viam nesse amálgama um impeditivo para o futuro pretendido 84 A proposta de Martius parece ter sido moldada para solucionar a questão apesar de não se adequar plenamente com o pensamento das elites brasileiras As primeiras linhas de seu 83 Tais relatos que muitas vezes ao diminuírem os homens realizavam movimento contrário quando o objeto observado era o meio a natureza exótica bela poderosa hiperbolizada em contraste com a pequenez do elemento humano selvagem desinteligente inferior NAXARA Márcia Regina Capelari Cientificismo e Sensibilidade Romântica em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX Brasília Ed UnB 2004 84 À visão dos viajantes que teceram suas considerações sobre o Brasil uniramse as variadas teorias de época tais como ideais positivistas o biologismo de Darwin o evolucionismo de Spencer o determinismo de Taine os estudos sobre o meio e o clima de T Buckle e a criminologia de Lombroso para citar algu mas Esse ideário foi incorporado na obra de intelectuais como Silvio Romero Euclides da Cunha e Nina Rodrigues entre outros onde o Brasil aparecia condicionado pelo seu passado colonial como um amálgama de raças não havendo ali portanto uma raça pura Com base em premissas deterministas eou evolucionistas muitos consideraram que a miscigenação dera origem a um povo composto por subraças fraco doente vadio marcado pela degeneração e por isso incapaz de obter algum êxito em constituir uma nação Guiados por uma suposta emergência do progresso e atribuindo o atraso do país a sua composição racial alguns entenderam serem urgentes posicionamentos e providências para que o mal que vinha sobretudo da raça negra e das más influências da escravidão não proliferasse desviando o Brasil do caminho sem voltas do progresso A respeito ver CUNHA Euclides Os Sertões São Paulo Cultrix 1973 Primeira edição de 1902 ROMERO Sílvio O Evolucionismo e o Positivismo no Brasil Rio de Janeiro Livraria Clássica de Álvares Companhia 1895 Do mesmo autor O Brasil social Rio de Janeiro Typographia Jornal do Commercio 1907 e Provocações e debates Rio de Janeiro Imprensa moderna 1910 NINA RODRIGUES Raimundo Os mestiços brasileiros Rio de Janeiro se 1889 Do mesmo autor O animismo fetichista dos negros baianos Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1935 As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil Bahia Progresso 1957 Primeira edição de 1894 e Os africanos no Brazil São Paulo Nacional 1988 Primeira edição datada de 1933 Sobre a discussão da recepção e difusão das teorias eugenistas no Brasil ver também SKIDMORE Thomas E Preto no branco raça e nacionalidade no pensamento brasileiro Rio de Janeiro Paz e Terra 1976 ODÁLIA Nilo O ideal de branqueamento da raça na historiografia brasileira Contexto v 03 nº 7 p 127136 1977 VENTURA Roberto Estilo tropical história cultural e polêmicas literárias no Brasil 18701914 São Paulo Companhia das Letras 1991 AZEVEDO Célia Maria Marinho de Onda negra medo branco o negro no imaginário das elites século XIX Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 SCHWARCZ Lilia Moritz O espetáculo das raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 2000 CÂNDIDO Antonio Introdução ao método crítico em Silvio Romero São Paulo USP 1988 CORRÊA Mariza As ilusões da liberdade A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil Bragança Paulista EDUSF 1998 NAXARA Márcia Regina Capelari Cientificismo e Sensibilidade Romântica em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX Brasília Ed UnB 2004 NAXARA Márcia Regina Capelari A construção da identidade um momento privilegiado Revista Brasileira de História v11 nº 2324p 181190 set91ago 92 RAGO Luzia Margareth Do cabaré ao lar a utopia da cidade disciplinar Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 REIS José Carlos As Identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro FGV 2001 SOUZA Neusa Santos Tornarse negro as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social Rio de Janeiro Graal 1983 33 trabalho já esclareciam a tônica de seu argumento centrado no cariz distintivo da população brasileira e no reconhecimento de três diferentes etnias formadoras da sua composição social a branca os portugueses a vermelha os indígenas e a negra os africanos Seu ensaio se ocupou em esclarecer o lugar social de cada uma dessas etnias destacando em primeira mão os ameríndios a chamada raça cor de cobre85 Para tanto traçou em detalhes o que seria válido investigar naquele grupo étnico e que poderia explicar a formação da nação discurso bem acalentado no âmbito da literatura romântica indigenista tão em voga naquele momento86 Aos negros também dedicou um lugar na sociedade brasileira embora se verifique não ter havido esmero da parte autoral em oferecer uma perspectiva detalhada sobre a participação desses na composição da história nacional87 Por último referenciou a raça branca representada pelo português no contexto da formação brasileira Foi o imperativo civilizacional que fez com que aquele autor destacasse Portugal no concerto dos elementos formadores do Brasil Em Martius o português surgiria como o poderoso e essencial motor da obra colonial no Brasil posto ter sido ele quem deu as 85 A ideologia romântica em voga na Europa ensinou a Martius que somente o que era nativo poderia ser entendido como nacional Desse modo os elementos verdadeiramente nativos do Novo Mundo seriam os povos indígenas que lá se encontravam antes da chegada dos colonizadores portugueses Por esse ponto de vista não havia dúvida de que o índio representava a essência da nacionalidade O encontro das três raças proporcionara um povo também renovado mas essencialmente nativo e nesse ponto consistiria a expressão da nacionalidade que a elite tanto buscava apesar de não se reconhecer em dois dos seus elementos formadores o índio e o negro 86 A literatura indigenista nasceu no bojo do manifesto romântico brasileiro encabeçado por Gonçalves Magalhães e Araújo Porto Alegre através da revista Nitheroy em 1836 Os românticos brasileiros inspirados pela definição de bom selvagem de Jean Jacques Rousseau projetaram no índio o espírito do homem livre e incorruptível criando uma imagem literária totalmente idealizada bem diferente da realidade dos próprios indígenas A primeira geração desse movimento foi representada pelo poeta Gonçalves Dias 18231864 fortemente influenciado pelas obras de Almeida Garret e Alexandre Herculano Na prosa o romantismo foi representado em primeira mão pela obra de José de Alencar 18291877 Iracema 1865 e Ubirajara 1874 Cf CÂNDIDO Antônio Formação da literatura brasileira Belo Horizonte Itatiaia 1981 87 Quando trata da raça preta ou etiópica Martius findou por se preocupar mais com o discurso em torno do tráfico do que propriamente discutir a raça como faz com as outras duas Para ele a introdução dos escravos negros no Brasil fez com que o país tivesse um desenvolvimento bem diferenciado dos seus vizinhos continentais não se envolveu entretanto na questão deixando aos historiadores a obrigação da descoberta sobre as virtudes e desgraças desse fato para a formação nacional Em relação ao índio cujo trato era extremamente positivo na literatura da época romantizada e nativista Martius se refere da mesma forma demonstrando acreditar terem os mesmos um passado glorioso com a existência de uma grande e desconhecida civilização também nas terras brasileiras para além das três bem conhecidas Astecas Incas e Maias A circunstância porém de não se terem achado ainda semelhantes construções no Brasil às outras da América certamente não bastam para duvidar que também neste país reinava em tempos muito remotos uma civilização superior In MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Idem p64 34 condições e garantias morais e físicas para um reino independente que foi se formando caudalosamente88 ao longo de três séculos Nesta linha de raciocínio o autor enfatizou as peculiaridades da colonização instaurada pelos descobridores do Brasil sublinhando a mentalidade portuguesa da época distinta do restante da Europa no concernente às causas da imigração Não devemos julgar a emigração desses colonos portugueses para o Brasil como ela se operava no século XVI e que lançou os primeiros fundamentos do atual império segundo os princípios que entre nós regulam as empresas de colonização Hoje em dia as colonizações são com poucas exceções empresas de particulares e nascem quase exclusivamente da necessidade de trocar uma posição pobre e apertada por outra mais livre e agradável Estas emigrações quase só têm lugar nas classes dos agricultores e artistas e quase nunca nas dos nobres e abastados Mas assim não aconteceu nos primeiros tempos da colonização no Brasil Elas eram então uma continuação dessas empresas afoitas e grandiosas dirigidas para a Índia e executadas ao mesmo tempo por príncipes nobres e povo dessas empresas que tornaram a nação portuguesa tão famosa como rica Também não nasceu esse desejo de emigrar de crises religiosas como por exemplo aconteceu na Inglaterra ele era antes uma conseqüência das grandes descobertas e empresas comerciais dos portugueses sobre a costa ocidental da África do Cabo Moçambique e Índia As mesmas razões gerais e poderosas que imprimiram a uma das nações mais pequenas da Europa um movimento tão poderoso que a impeliram para uma atividade que fez época na história universal induziramna igualmente à emigração para o Brasil89 Martius tencionava esclarecer que a descoberta e colonização do Brasil não se deveram a um fato isolado dos portugueses uma surpresa um acontecimento sem idealização bem ao contrário tanto a descoberta quanto a colonização tinham nas façanhas marítimas comerciais e guerreiras lusas sua justificativa O cariz português que ensejou o Brasil também teria bem antes grande influência sobre a política e o comércio da Europa mudando sua face e alterando sua história É nesse contexto de mudanças do Velho Mundo que os portugueses revelaram o Brasil cuja história para Martius estava indelevelmente articulada com a história daquele continente onde se destacavam como eméritos 88 É interessante destacar que Martius representou Portugal repetidas vezes em seu texto como um rio caudaloso que inundaria com suas águas todas as paisagens ao seu redor submergindoas e dominandoas 89 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Op Cit p 73 35 descobridores e navegadores Eram os portugueses um povo do qual os brasileiros deveriam se orgulhar de ter como pais fundadores tamanha sua capacidade e audácia na descoberta e na formação de novos lugares O português era por seus méritos um europeu excepcional assim como o eram os ingleses com sua capacidade inovadora e os franceses com seu ideário liberal mesmo que em temporalidades distintas Apesar de diferenciar positivamente o povo português no contexto europeu Martius revelou de modo incidental o Velho Mundo como espaço homogêneo sem diferenças internas e sem hierarquias sociais Em nenhum momento aquele autor identificou os portugueses como ibéricos revelando uma diferença bem em voga no contexto norte americano90 Ele os trouxe ao seu texto como legítimos representantes da superior civilização europeia herdeira dos gregos e romanos oriundos de uma raça pura e em decorrência os mais capacitados a formar uma nova nação independente e capaz como o Brasil assim poderia vir a ser Disso necessariamente se segue o português que como descobridor conquistador e senhor poderosamente influiu naquele desenvolvimento o português que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que o português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor91 Essa ligação esse vínculo entre o Brasil e a Europa foi estimulado por Martius em sua monografia entendendoo como de suma importância para a configuração identitária da nova nação Visava por conseguinte a manutenção das instituições anteriores à independência anseio maior da elite local posto estar consolidada como tal a partir de tais instituições O temor das arruaças e levantes que marcaram o chamado Primeiro Reinado nomeadamente de brasileiros contra os portugueses numericamente superiores no governo e cargos públicos e que findaram por provocar a abdicação de Pedro I estavam impressas 90 Alguns anos após a independência americana ocorrida em 1774 a entrada de cidadãos europeus nos Estados Unidos da América passava pelo crivo das diferenças internas dentro da própria Europa A sigla WASP é bem representativa do imigrante que se queria para os nascentes EUA brancos anglosaxões e protestantes A condição de católico ensejou inúmeros dissídios internos nos EUA envolvendo diretamente os irlandeses que apesar de considerados saxões não eram protestantes Alguns marcos geográficos do próprio continente definidores de certas identidades como alpinos ibéricos balcânicos entre tantos outros são demonstrativos das diferenças internas que sempre marcaram a história européia e que foi vislumbrada por muitos intelectuais de fora do continente como uma heterogeneidade excludente Um bom exemplo é o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil onde o autor destaca as diferenças de Portugal em relação à Europa assunto abordado na terceira parte do presente trabalho 91 Ibdem p 64 36 na memória dessa elite Desejavase pois um ambiente nacional de paz e conciliação entre os diversos estratos sociais e este não poderia ser atingido se mais uma vez fossem demarcadas diferenças entre portugueses e brasileiros entre as muitas existentes evitando se traumas e fraturas no corpo social em parte apaziguado desde a subida ao trono do imperador D Pedro II em 194092 Também não se conjecturava dar maior visibilidade às massas de despossuídos que integravam a população brasileira marcada pelas cores e pelos levantes violentos ocorridos nos últimos anos Por conseguinte a proposta de Martius buscava enfatizar a necessidade de se firmar na historiografia a ser escrita o branco português como ator principal da formação nacional Para tanto admoestava sobre a necessidade dos historiadores estudarem pormenorizadamente e de forma comparativa a história do comércio entre a Índia e as Américas assim como o comércio do paubrasil dos metais e pedras preciosas e por fim das plantas tropicais úteis e conhecidas na Europa no sentido de formalizar em definitivo o vínculo entre Portugal e Brasil açodado num amálgama cultural revelador A independência cortara os laços políticos com Portugal mas não conseguiria jamais desfazer a presença dos portugueses num Brasil que buscava suas próprias formas que tencionava construirse e que só o conseguiria se desse o maior destaque possível à presença portuguesa na América uma América diferente por ser uma América monárquica ordeira e civilizada bem distinta das demais repúblicas latinas juncadas de caudilhos e mandatários e cravadas pelas dissidências A porta de entrada para o Brasil na Europa encontravase em Portugal metrópole que se destinou à aventura de tornar o território americano numa extensão de si legandolhe não só a língua mas os costumes as práticas e todo um modelo de sociedade que se ancorava numa mentalidade única para seu tempo e que por isso teve seus empreendimentos reiterados pelos demais estados do Velho Mundo Na mentalidade portuguesa poderseia identificar as causas de algumas particularidades do sistema colonial pois o português que 92 O interregno de nove anos que marcou a abdicação de Pedro I e a coroação de Pedro II originou o Período Regencial cuja história se destaca pelos várias rebeliões ocorridas em todos os níveis sociais e nas distintas regiões na jovem nação Entre as maiores citamos Balaiada 18381841 Cabanagem 18321840 Sabinada 183371838 e Farroupilha 18351845 Dentre estas contamse três revoltas de escravos a Revolta das Carrancas 1833 em Minas a Revolta dos Malês 1835 Salvador e a Revolta de Manuel Congo 1838 no Rio de Janeiro O cariz comum de todos os movimentos citados era a insatisfação com o poder central do Rio de Janeiro as dificuldades econômicas o aumento dos impostos e a nomeação de governadores sem respaldo local 37 no princípio do século XVI emigrava para o Brasil levava consigo aquela direção de espírito e coração que tanto caracterizou aqueles tempos93 O trono brasileiro também era alvo de tais considerações posto que descendente da família real portuguesa deveria ser assim mantido expressando a união entre esses dois mundos que se antes caminharam unidos não se encontravam totalmente desentrelaçados Aliás o trono brasileiro mostrava se como excelente representação desse entrelaçamento a ser mantido posto ser ocupado por um imperador brasileiro filho e netos de portugueses ostentando os nomes das principais casas reais européias Para o historiador que se aventurasse a desbravar a história da nação Martius propôs a obrigação de desvendar como a poesia a retórica e todas as demais ciências de Portugal faziam dele um lugar especial no concerto das nações européias posto serem por ele profundamente influenciadas No desdobramento desse conhecimento deverseia identificar e apontar a mesma influência portuguesa na vida científica moral e social do Brasil94 Portugal deveria ser o ponto de partida para todos os estudos que se pretendiam empreender doravante no Brasil no sentido de criar uma identidade para a nova nação Esta identidade não poderia prescindir do vínculo com a Europa e este poderia ser vitalizado pela investigação das ciências e artes da legislação portuguesa e de todos os recônditos coloniais que guardassem os reflexos da vida européia Ao historiador competiria sobretudo transportarnos à casa do colono e cidadão brasileiro ele deve mostrarnos como se vivia nos diversos séculos tanto nas cidades como nos estabelecimentos rurais como se formavam as relações do cidadão para com seus vizinhos seus criados e escravos e finalmente com os fregueses nas transações comerciais Ele deve juntarnos o estado da igreja a escola levarnos para o campo às fazendas roças plantações e engenhos Aqui deve apresentar quais os meios segundo que sistema com que conhecimentos manejavam a economia rústica lavoura e comércio colonial Não é destituído de interesse saberse como e aonde se introduziram pelos colonos pouco a pouco árvores e plantas européias como pouco a pouco se desenvolveu o sistema presente qual a parte que em todos estes movimentos tiveram a construção naval a 93 Ibidem p 75 94 Ibidem p 78 38 navegação e o conhecimento dos mares principalmente daqueles que foram sulcados pelos portugueses95 No trecho citado podemos identificar várias possibilidades de estudo sobre o agente colonizador português no Brasil colonial No campo e na cidade no litoral e no interior Martius procurou enfatizar a necessidade de se destacar múltiplas facetas do português no sentido de acentuar o vínculo do Brasil com a Europa e consequentemente seu cariz civilizador A pátriamãe antes considerada a própria nação deveria ser exaustivamente investigada de modo que todas as características da sociedade portuguesa pudessem ser vistas sentidas tocadas e reproduzidas no Brasil sedimentandose assim a cultura portuguesa na América que deveria continuar a ser portuguesa católica e monárquica Na descrição dos homens europeus que aportaram no Brasil Martius encontrou elementos emblemáticos para construir as características da colonização portuguesa e da formação da sociedade brasileira O seu português era valente audacioso combatente e por isso mesmo deveria ser sempre mostrado de forma favorável positiva e representado a partir de quatro tipos ideais o descobridor os navegadores o religioso os jesuítas o conquistador os bandeirantes e o senhor os senhores de engenho amplamente reproduzidos na historiografia local nas décadas seguintes Indígenas e negros seriam coadjuvantes no processo capitaneado pelos portugueses No reconhecimento inicial dessa formação habilmente comparada à inglesa na qual os povos célticos dinamarqueses romanos anglosaxões e normandos participaram é que Martius mostrou destreza ao justificar como providente essa predestinação que originou uma nação nova e maravilhosamente organizada96 Trazia à baila assim uma original visão sobre a nação em formação desconstruindo o discurso da inferioridade nacional alicerçado na mácula da mestiçagem para erigir valores que se pautariam nessa mesma mestiçagem que ao invés de danosa teria permitido a própria edificação da nação Não obstante a mestiçagem não deveria ser vista de forma tão negativa para o futuro nacional posto ter a mesma uma validade determinada quando as características físicas das raças inferiores seriam erradicadas97 definindose o futuro da nação pela ligação aos valores 95 Ibidem p 99 96 Ibidem p 65 97 Essa hipótese já havia sido aventada por Robert Southey em sua História do Brasil Op cit p 184 Outros autores alguns anos depois também lançaram mão dessa hipótese para lastrear seus argumentos em relação à mestiçagem originária do processo colonizatório Sílvio Romero foi um dos maiores exemplos 39 portugueses sólidos significantes posto que provenientes de uma sociedade organizada e superior98 O sangue Português em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças Índia e Etiópica Em a classe baixa tem lugar esta mescla e como em todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores e por meio delas se vivificam e se fortalecem assim se prepara atualmente na última classe da população brasileira essa mescla de raças que daí a séculos influirá poderosamente sobre as classes elevadas e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o Império do Brasil é chamado99 Evidenciase no texto do citado autor o paradoxo relativo à sua visão do valor positivo da composição racial brasileira em primeira mão ele louvara a mestiçagem e em seguida reconheceua como um problema na constituição da nova nação sinalizando para um futuro no qual esse obstáculo seria removido 100 Dessa forma Martius alcançou as pretensões da elite nacional ao resolver dois problemas com apenas um golpe através da lógica assimilacionista onde o inferior deveria se adaptar às condições impostas pelo superior tornandose igual a ele Assim desapareciam negros índios e mestiços que tanto incomodavam essa elite a ela se adaptando e subsumindo Apesar do teor preconceituoso e hierarquizante que perpassaram suas proposições nesse sentido há que se louvar o esforço daquele intelectual no desenvolvimento de um modelo original para a sociedade brasileira e não a mera implantação de um modelo alienígena e inadequado Seu texto além de tentar orientar a feitura de uma narrativa nacional ofereceu uma explicação e uma solução para uma situação inquietante às pretensões da elite 98 A respeito ver ODÁLIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Viana São Paulo UNESP 1997 p 39 99 Ibdem p 68 100 O modelo apresentado por Martius efetivamente reconheceu a diferença existente na sociedade brasileira para depois anulála A diferença precisava ser eventualmente invalidada para que o brasileiro pudesse pensarse como moderno ocidental europeu dentro de parâmetros considerados civilizados Ao mesmo tempo em que se queria outro o Brasil aspirava à condição de ser esse mesmo outro E esse outro era o português ao qual Martius descrevia como um sangue poderoso capaz de diluir as demais marcas étnicas que escureciam a grande raça brasileira mas que em breve graças aos mesmos seria finalmente branqueada tornandose igual do mesmo tom que seus descobridores brancos Em nenhum momento Martius questionou sobre a natureza dessa mestiçagem as formas e o meio na qual a mesma veio a ocorrer no território colonial Para o bávaro a mestiçagem era um fim em si mesmo que num futuro próximo seria eliminada por completo Aos vencidos só restaria segundo sua proposta a participação passiva no projeto da nova nação e apenas na medida em que fossem absorvidos ou integrados racial e culturalmente pelos valores brancos única fonte de legitimação posto que deles decorresse os valores básicos da nova nacionalidade valores esses defendidos e produzidos pelas elites brancas locais pelo Estado brasileiro e pela Coroa 40 nacional Ao seu modo Martius forneceu aos brasileiros uma nova forma de ver o Brasil e de se ver no Brasil Forneceu também de modo sutil sua apreensão do outro fosse esse o branco português o negro ou o índio Observase também no ensaio analisado a perspectiva de mostrar a superioridade de um sangue o europeu português branco caucasiano perante os demais grupos inferiorizados que serviram apenas como anteparo no constructo de um povo europeu ao qual deveria o Brasil unirse se quisesse ingressar no rol das nações ditas civilizadas Justificava aquele autor para tanto a influência decisiva do sangue da raça branca ou caucasiana no desenvolvimento da futura nação101 sobrepondose às raças etiópicas e indígenas na formação da obra colonial instaurada nos trópicos Ao abordar a presença portuguesa no Novo Mundo como elemento essencial foise construindo uma identidade nacional não apenas para o próprio Brasil mas também para Portugal sempre mostrado como uma civilização e uma raça superior capacitada a dominar o amplo território americano do qual se apossou e cuja herança deveria ser aclamada e resguardada pelo povo brasileiro Essa herança deveria ser tomada como parte fundamental na construção da identidade nacional e sua memória deveria ser sempre objeto de afirmação e de aclamação nacional Para Martius quem se encarregasse de escrever a História do Brasil jamais deveria perder de vista os elementos que concorriam para o desenvolvimento do homem102 o que vem demonstrar o quanto estava aquele autor preocupado sobretudo com as especificidades da formação histórica base da identidade nacional 101 É oportuno relevar que o autor mesmo considerando a superioridade da raça branca não fez referência aos demais povos europeus que participaram dessa mesma composição social nos distintos momentos históricos Franceses e holandeses num primeiro momento depois seguidos por italianos alemães espanhóis e suíços entre outros assim como japoneses e outros povos orientais tiveram inegável influência na formação social do Brasil nomeadamente em regiões e situações específicas Entretanto sua presença foi formalmente ignorada no ensaio de Martius A respeito da presença de outros grupos europeus no ambiente brasileiro ver SEYFERT Giralda Nacionalismo e identidade étnica Florianópolis FCC 1982 ALENCASTRO Luís Felipe RENAUX Maria Luiza Caras e modos de migrantes e imigrantes In ALENCASTRO Luís Felipe org NOVAIS Fernando Dir História da vida privada no Brasil Império a corte e a modernidade nacional São Paulo Cia das letras 1997 FREYRE Gilberto Ingleses no Brasil Rio de Janeiro 1977 LEVY Stella O papel da migração internacional na evolução da sociedade brasileira Revista de saúde pública v 1 nº 9 1974 WERNECK Luís Peixoto de Lacerda Ideias sobre colonização Rio de Janeiro se 1855 ROCHE Jean A colonização alemã e o Rio Grande do Sul Porto Alegre Globo 1969 OLIVEIRA Lúcia Lippi Nós e eles Relações culturais entre brasileiros e imigrantes Rio de Janeiro Editora da FGV 2006 entre tantos outros 102 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Op Cit p 389411 41 Do encontro da mescla das relações mútuas e mudanças dessas três raças formouse a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular103 A particularidade da história do Brasil entretanto passava pela delimitação de diferenças entre ser brasileiro e ser estrangeiro entre ser uma sociedade com uma formação peculiar que revelasse a singularidade nacional e que se diferenciava de todas as outras cujos elementos originais estavam contidos agora num novo lugar Um problema se alçava como se pensar singular sem perder as próprias raízes Como pensar em diferenciarse do português colocálo como um outro sem desviarse de um projeto de modernidade que nascera na Europa projeto este acalentado pelas elites brasileiras Sendo a história uma espécie de espelho onde os homens de determinada comunidade se reconhecem vislumbrando os traços comuns mesmo em diferentes grupos internos fazia se necessária a construção de uma história capaz de fazer os grupos nacionais reconhecer se num passado comum Para tanto Martius determinou o predomínio do branco europeu ou seja do português na história do Brasil Essa referência se fazia tão necessária quanto poderosa para o projeto de criação da história nacional posto que a herança portuguesa fosse o importante vínculo que ligaria o país ao continente europeu local por excelência da civilização e parâmetro que o Brasil pretendia atingir na arquitetura da nação afastandose de uma identidade latino americana O Brasil não poderia abrir mão dessa ancestralidade pois era justamente ela que garantia o seu pedigrée e logo a possibilidade de inserção no mundo civilizado das Luzes do progresso As proposições de Martius sobre a colonização portuguesa em acordo ou desacordo constituíram um referencial privilegiado na construção das narrativas sobre a história da nação brasileira Um referencial não por ser o único mas por apresentar de forma organizada e sistematizada uma série de prescrições para a escrita da memória nacional principalmente em relação ao passado colonial104 Seu referencial ao ser reproduzido pela historiografia nacional foi consumido também por um público mais amplo os estudantes de todo o país105 consumidores de manuais didáticos que reproduziam a historiografia 103 Ibidem p 401 104 Para uma análise da produção historiográfica destes autores pensando a construção de uma identidade para o passado colonial brasileiro conferir REIS José Carlos Op cit 105 O projeto de construção da nação também se alicerçou no Arquivo público do Império além do IHGB e no Colégio Pedro II todos criados na Regência de Pedro Araújo Lima Às três instituições competia respectivamente a manutenção da memória nacional a escrita da história e sua divulgação e consumo O 42 produzida no IHGB consolidando as idéias ali contidas nas várias gerações influenciadas pelas representações traçadas em seu projeto original O papel do português como agente do processo civilizatório formou a matriz do pensamento oitocentista brasileiro fabricando identidades estanques fechadas e padronizadas como se pode observar na historiografia praticada no período e que adentrou o século XX a despeito das diversas mudanças que ocorreram na sociedade brasileira A proposta de Martius também enfatizou uma concepção de identidade reforçada dentro de uma racionalidade de coesão valores de fidelidade lealdade e devoção à nação e à Monarquia bragantina A questão da identidade era sobretudo politizada e sua propositura de escrita da história era nitidamente engajada politicamente 106 As ideias de integração e quadro de membros desses espaços era frequentemente comum o que impedia disparidades nas finalidades de cada um deles permitindose assim que muitos dos historiadores do IHGB atuassem também como professores do Colégio Pedro II ou tivessem cargos no Arquivo público A divulgação da historiografia do IHGB será amplamente consumida pelos alunos do Colégio Pedro II instituição educacional de maior destaque do país à época que visava a formação de quadros políticos e intelectuais para os postos da alta administração principalmente pública e cujos alunos pertenciam em maioria à elite política e econômica do país Seu programa de ensino era referência para as demais instituições de ensino brasileiras sendo reproduzido por todo território para reconhecimento formal do Ministério de Educação Os professores possuíam um status acadêmico equiparado aos catedráticos do ensino superior muitas vezes sendo eles mesmos os integrantes das cátedras nos dois níveis de ensino tendo como atribuição docente a escrita de compêndios usados pelos alunos além da elaboração dos programas de ensino participando das principais decisões políticas e pedagógicas do colégio Desse modo a reprodução da história chancelada pelo IHGB se dava de modo corrente sem maiores oposições sendo consumida por várias gerações sem contestações ou ressalvas a partir da produção didática do próprio colégio Não à toa aquela instituição de ensino médio era considerada a menina dos olhos do Imperador contando com o apoio direto de seu patrono que fazia questão de inspecionar as instalações físicas e os dormitórios em suas visitas freqüentes ao local acompanhar os exames dos alunos os processos de seleção de seus profissionais a produção intelectual de seus professores e exalunos mantendo inclusive um de seus netos como aluno regularmente matriculado quando a regra era educar os descendentes da família imperial na Europa Sobre a instituição ver o trabalho de ANDRADE Vera Lúcia Cabana de Queiroz Colégio Pedro II um lugar de memória Tese de doutorado em História social Universidade Federal do Rio de Janeiro 1999 CALDAS Karina Ribeiro Nação memória e história a formação da tradição nos manuais escolares Dissertação de Mestrado em História Universidade Federal de Goiás 2005 106 CÉSAR afirma que Martius propôs uma história calculada mensurada bem refletida para combater os oponentes do regime Essa história militante seria o ponto máximo a que a história pragmática poderia chegar segundo aquele autor In CÉSAR Temístocles Américo Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XI um ensaio da história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p 206 REIS por sua vez pondera que de acordo com Martius um enfoque deveria ser esperado da produção do historiador ser patriótico despertando o amor pelo Brasil Na defesa de um país unido deveria também ser monárquico e cristão lutando contra a desconfiança entre as províncias contra a fragmentação do território e a agitação republicana Era dessa história que o Brasil recémindependente e suas elites precisavam para levar adiante a nova nação Uma história que realizasse um elogio ao Brasil aos seus heróis portugueses do passado distante mas também do presente que expressasse uma incondicional confiança em seus descendentes Uma história que não falasse 43 de pedagogia nacional através da história são extremamente fortes nos trechos finais do texto de Martius uma integração e um fim político que seriam perseguidos com verdadeira obsessão pelos historiadores do período de acordo com os ensinamentos de Martius Nunca esqueça pois o historiador do Brasil que para prestar um verdadeiro serviço à sua pátria deverá escrever como autor Monárquico constitucional como unitário no mais puro sentido da palavra107 Com o marco fundador de Martius estava dado o passo inicial para a constituição através da historiografia de uma imagem do Brasil de uma representação do passado de uma narrativa nacional que conferisse sentido ao todo heterogêneo da nascente nação Ao que Martius chamou de sugestões explicitadas em sua monografia tornouse um modelo a ser adotado pelos historiadores do IHGB oitocentista instituindose pois o que chamamos de retórica da alteridade Seu trabalho conseguira responder as inquietações dos membros daquele conclave diante da tarefa inovadora e provocativa que tinha nos meados do século desenvolver uma arquitetura nacional que mitigasse todos os problemas existentes na passagem da condição de colônia para o jaez de nação Não à toa o IHGB alçou à qualidade de instituição oficial da escrita da história do Brasil vindo representar um tempo específico da produção histórica brasileira durante o período imperial O projeto para a execução dessa narrativa já estava posto e legitimado pela chancela institucional do IHGB estando aberta a estrada para a invenção da nação Missão esta que caberia a Francisco Adolfo Varnhagen desempenhar em função da negativa de Martius que considerou a empreitada além das suas forças e disposição recusando em suas palavras à glória de empresa tão árdua108 de tensões de separações de conflitos exclusões contradições pois uma história assim levaria o Brasil à fragmentação abortandose um Brasil que lutava para se constituir em uma poderosa nação In REIS José Carlos Op cit p 28 107 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Op Cit p 409 108 Ibdem p 415 44 CAPÍTULO 2 A NAÇÃO COMO CONTINUAÇÃO DA COLÔNIA A marca elitista exarada pela produção historiográfica do IHGB veio à tona num dos trabalhos de maior relevância daquela instituição A História Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal109 de Francisco Adolfo Varnhagen110 foi a melhor expressão da produção daquele espaço de saber para seguirmos as colocações de Michel de Certeau cujas delimitações desempenharam um papel decisivo na construção de uma certa historiografia e das visões e interpretações que ela propôs na discussão da questão nacional e de suas ligações com o outro Varnhagen nasceu no Brasil em 1816 filho de pai alemão e mãe portuguesa Por obrigações profissionais de seu pai mudouse para Portugal aos sete anos de idade onde iniciou seus estudos no Colégio Militar da Luz Frequentou a Academia da Marinha e integrou o 2º Batalhão da Artilharia lutando ao lado de D Pedro pela disputa do trono após a morte de D João VI Cursou o Colégio dos Nobres e a Academia de Fortificações recebendo diploma de engenheiro permanecendo na carreira das armas No interregno de suas atribuições dedicouse à pesquisa histórica escrevendo Reflexões críticas sobre o escrito do Século XVI impresso com o título de Notícia do Brasil obra de proficiência para ingresso à Academia Real de Lisboa Aos 24 anos licenciouse da vida militar em Portugal mudandose para o Rio de Janeiro onde pleiteou a nacionalidade brasileira garantida pelo Decreto imperial de 24 de setembro de 1844 Não se tratava de um homem 109 Para maior fluidez do texto doravante trataremos esta obra apenas como HGB 110 Pelos muitos serviços prestados ao trono de Pedro II recebeu em 1871 o título de Barão de Porto Seguro sendo elevado a Visconde com as honras do mesmo titulo três anos mais tarde Sua produção bibliográfica é abundante com dezenas de títulos em parte publicados via IHGB De sua lavra é também a História das lutas contra os holandeses no Brasil e História da Independência do Brasil marcos nos estudos historiográficos do século XIX 45 de dotes financeiros cargos políticos ou títulos nobiliárquicos Seu ingresso no IHGB foi facilitado pela indicação de Antônio Meneses Vasconcelos de Drummond ministro plenipotenciário do Império em Lisboa que apontou a idoneidade intelectual de Varnhagem como capacidade que o habilitava a integrar aquele espaço Premiado pela Academia Real de Lisboa em 1839 impossibilitou os membros do IHGB de ignorar sua presença sendo assim convidado para assumir a secretaria cargo reservado àqueles que adentravam o instituto por méritos acadêmicos Considerado como pai da história do Brasil Varnhagen fez da HGB sua obra maior lançada em 1854 Seu texto constituiuse a partir de investigação em farta documentação referente ao Brasil evidenciando o conhecimento do autor sobre os arquivos europeus aprofundados nas muitas visitas que realizou quando do exercício da atividade diplomática A coletânea nasceu da necessidade de se ter uma história verdadeiramente nacional em inegável confronto com a tida estrangeira História do Brasil de Robert Southey sendo seus enredos temáticos enunciados no próprio título verdadeiro monumento à civilização lusa111 A História Geral do Brasil de Varnhagen foi considerada por muitos estudiosos112 como uma história da administração portuguesa na América ou mesmo um capítulo da história de Portugal Num período em que a maioria dos autores não conseguia ultrapassar os limites da crônica sua HGB tornouse uma contribuição rara que contrastava com a historiografia nacional de até então marcada por trabalhos de pouco fôlego e acentuadamente regionais Sua argumentação histórica apesar das muitas críticas tornouse quase um modelo para seus contemporâneos sendo seu discurso reiterado em inúmeras outras obras de diversos historiadores até metade do século XX Como já afirmado anteriormente o paradoxo dominante nesse período colocava Portugal de um lado como um inimigo que escravizara o Brasil durante séculos escorchandoo sob o peso de impostos tomandolhe as riquezas tratando seus naturais como súditos de 111 O título integral da obra máxima de Varnhagen é História Geral do Brasil do seu descobrimento colonização legislação desenvolvimento e da declaração da independência e do império escrita em presença de muitos documentos inéditos recolhidos nos arquivos do Brasil de Portugal da Espanha e da Holanda 112 Como exemplo citamos João Capistrano de Abreu Sobre o Visconde de Porto Seguro In Ensaios e Estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Sociedade Capistrano de Abreu 1931 pp 193217 José Honório Rodrigues compartilhou a percepção de Abreu em Teoria da História do Brasil São Paulo Companhia editora nacional 1978 p 151 46 segunda classe impondolhe o ônus da escravidão e da miscigenação negra Os portugueses por sua vez também herdavam parte dessa culpabilidade sendo acusados de agentes indiretos dessa exploração por cobrarem alugueis extorsivos juros alucinantes roubarem 113 nos pesos e medidas das vendas freges e botequins enfim responsabilizados pela carestia de preços enfrentada pelas camadas populares Essa mácula impregnou o imaginário nacional configurando a lusofobia disseminada pela sociedade brasileira no pósindependência ao tomar dimensões nunca dantes imaginadas Na antítese Portugal era também o representante da Europa da modernidade da razão da civilização e do cristianismo e os portugueses que viviam no Brasil eram tidos também como organizadores sociais agentes valorizados e exaltados do mundo do trabalho portal de acesso ao progresso e civilização Essa atormentada relação com Portugal tornouse um permanente ponto de tensão para a historiografia dos oitocentos fazendo com que a antiga metrópole sempre fosse uma questão limítrofe na narrativa nacional o que exigia demasiados apuros na escrita da história114 não obstante a proposta decisiva de Von Martius para resolução da questão Coube a Varnhagen a desconstrução do imbróglio e a partir de seu lugar social firmou a identidade nacional longe da dualidade extremada que marcara as relações BrasilPortugal ainda abaladas pela chamada Causa Brasil115 Aquele autor conseguiu impor pela sua 113 Os conflitos ocorridos no início do século XX entre brasileiros e portugueses culpabilizados pelas crises econômicas decorrentes da má gestão econômica republicana são prova do alargamento da lusofobia que ultrapassou os tempos monárquicos Os termos utilizados em itálico são originários do texto de RIBEIRO Gladys Sabina Mata galegos os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha São Paulo Brasiliense 1990 114 A respeito ver KHALED JR Salah Hassan A construção da narrativa nacional brasileira A escrita da nação em Barbosa Martius e Varnhagen Dissertação de mestrado em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2007 p 107 115 A Causa Brasil se originou no contexto da regência do príncipe D Pedro iniciada após a partida de D João VI pra Portugal em 24 de abril de 1821 Com os cofres públicos desfalcados de numerário conduzido a Lisboa quando da partida do rei e com a cessação de receitas previstas a regência teve um início difícil obrigando D Pedro à dependência do Congresso de Lisboa do qual tanto desconfiava A dinâmica política no Brasil implantada quando da Regeneração vintista portuguesa e caracterizada pela existência das cortes deliberativas pelo soberano constitucional pela própria regência e pelos governos autônomos das províncias favoreceu a adesão plena ao governo lisboeta e a nãosubordinação política e econômica à regência do Rio de Janeiro pelas Juntas governativas das províncias do norte especificamente do Pará Piauí Maranhão e Bahia Quanto às províncias do sul embora prestassem lealdade ao príncipe regente se recusavam a apoiálo financeiramente tolhendo em definitivo as finanças em seu mandato O decreto que referendou a existência das Juntas Governativas nas províncias vista pelos brasileiros como o início de um inovador governo constitucionalista revelador de que a população do Brasil apoiava a Revolução do Porto subordinandoas 47 escrita a real necessidade do Brasil independente não se esquecer dos laços com Portugal não assentando seu destino sobre uma ruptura cultural com a antiga metrópole A ruptura já realizada quando da emancipação deveria estabelecerse substancialmente no plano político116 mantendose a identidade portuguesa como parte da identidade nacional que deveria defender os valores lusos já calcados nas terras americanas há tantos séculos e já bem conformados no seio dessa elite brasileira que bem reconhecia nos lusos seus antepassados diretamente ao governo de Lisboa e a exigência da volta incontinenti do príncipe a Portugal além da decisão de transferir para Lisboa o Desembargo do Paço a Mesa de Consciência e Ordens o conselho da Fazenda a Junta do Comércio e a Casa de Suplicação alem da adoção de um governador de armas em cada província e a destituição dos filhos do Brasil de todos os cargos públicos repercutiu como um risco iminente da ruína do Império Brasílico que perderia todas as conquistas auferidas desde a chegada da real família podendo mesmo cindirse em dois Sob esta ameaça d Pedro conquistou o apoio de grande parte da elite nacional que a partir de um documento contendo mais de oito mil assinaturas exigiu que o mesmo não respeitasse a determinação das Cortes gerais originando o Dia do Fico Nesse contexto a Causa Brasil se configurou como uma campanha pela integridade do Reino do Brasil mesmo que separado do Reino de Portugal diante da nomeada intransigência das cortes Liderada pelo advogado Hipólito José da Costa a partir do Correio Braziliense primeiro periódico redigido por um brasileiro a Causa Brasil buscava unir as províncias dissidentes em torno de um projeto único calcado na emancipação política do Brasil buscando forjar um distanciamento da Nação portuguesa aniquilandose sua imagem e impondo um modelo de cidadania brasileira fidelidade ao Príncipe a à monarquia representativa Para tanto vários documentos foram escritos dois dos mais importantes da lavra de José Bonifácio constituindo juízo de valor sobre o ser português e sobre o ser brasileiro Começavase assim a tecer uma identidade do brasileiro contra o português considerado desde já o outro Embora partilhasse das idéias de um império luso brasileiro organizado sob instituições liberais e dotando com os mesmo direitos as duas partes integrantes Hipólito se rendeu à convicção que somente a emancipação salvaria a antiga colônia da fragmentação territorial e política cogitada quando do episódio de ordem de prisão dos deputados brasileiros quando de sua apresentação às Cortes e após a recepção das determinações acima citadas A Causa Brasil para além do desejo de constitucionalismo alentado por parte dos brasileiros findou por tornar em ação separatista convergindo para o exacerbamento do um sentimento antilusitano por muitos anos presente no Brasil Sobre o tema sugerimos a leitura de MACHADO Humberto Fernandes NEVES Lúcia Maria Bastos Pereira das O império do Brasil Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 RIBEIRO Gladys Sabina A liberdade em construção Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume Dumará 2002 CARVALHO José Murilo A construção da ordem a elite política imperial Rio de Janeiro Campus 1980 CARVALHO Manuel Emílio Gomes de Os deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa Brasília Senado FederalUNB 1979 OLIVEIRA LIMA Manuel de O Movimento político da Independência 18211822 Belo Horizonte Itatiaia 1989 MONTEIRO Tobias História do Império a elaboração da Independência Brasília INL 1972 NEVES Guilherme Pereira das Del Imperio luso brasileño al Imperio del Brasil 17891822 In AMINO Antonio Dir De los imperios a las Naciones Iberoamerica Zaragoza Ibercaja 1994 116 Essa perspectiva de Varnhagen parece se espelhar na postura de Pedro I que empregava o termo Independência no sentido exclusivo de autonomia política sem rompimento formal com Portugal mesmo quando declarava inimigas todas as tropas enviadas ao Brasil pelas Cortes sem o seu consentimento MACHADO Humberto Fernandes NEVES Lúcia Maria Bastos Pereira das O império do Brasil Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 197 48 O esforço de Varnhagen de construir uma narrativa que não alastrasse o fosso separador de Brasil e Portugal pode ser constatado em carta de sua autoria dirigida ao imperador Dom Pedro lI em cujo texto justificou sua escolha dos fundamentos definidores da identidade nacional brasileira enquanto herança da colonização européia Sendo esses fundamentos os marcos constitutivos de sua obra fez questão de destacar que buscou sua inspiração numa inovadora perspectiva de nacionalidade de forma a não acirrar o apelo antilusitano bem presente no Brasil naquele momento histórico a demonstrar não ter sido contaminado pela mágoa que marcara as últimas décadas Buscava pois Inspirações de patriotismo sem ser no ódio a portugueses ou à estrangeira Europa que nos beneficia com ilustração tratei de pôr um dique a tanta declamação e servilismo à democracia e procurei ir disciplinando produtivamente certas idéias soltas de nacionalidade117 Num processo muito próprio ao caso brasileiro a construção da idéia de Nação feita por Varnhagen não se assentou numa oposição à antiga metrópole portuguesa muito ao contrário A nova Nação brasileira se reconhecia enquanto continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa Estado Nação e Coroa foram mostradas em seu trabalho enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica relativa ao problema nacional sendo a formação da identidade brasileira umbilicalmente ligada à nacionalidade portuguesa base de sua narrativa No exercício de arquitetar uma identidade para o Brasil aquele autor optou por definir também o outro em relação a esse Brasil e esse outro não seria Portugal como veremos mais adiante Caracterizou pois a Portugal como parte coesa de um projeto que não se encerrou quando da Independência bem ao contrário o Brasil foi transformado em Nação por estratégia do Estado monárquico português que se enraizara na América pela manutenção de sua dinastia Sua História geral do Brasil portanto não foi uma história de rupturas políticas de contendas e desentendimentos mas como uma história de permanências de perenidades sendo o papel de Portugal determinante para seu desenrolar 117 GUIMARÃES Manoel Luís Nação e civilização nos trópicos o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional Estudos Históricos op cit p 06 49 Ao autor não interessava detratar Portugal terra na qual por tanto tempo vivera e bem conhecia e onde nascera sua mãe O entendimento de Varnhagen era de que a manutenção dos laços entre a antiga metrópole e sua excolônia seria essencial para a demarcação de uma identidade brasileira que deveria ser criada na construção da nação Daí não haver interesse em se desvincular do projeto elitista de fazer crer a existência de laços entre os dois lados do Atlântico unindoos o que evidencia que Varnhagen soube bem dar prosseguimento à proposta de Martius A certeza de serem agentes civilizatórios evidenciada na escrita de Varnhagen no tocante aos portugueses corrobora essa junção de seu trabalho com a proposição de Martius A história do Brasil não deveria ser construída sem essa imbricação e sua história deveria ser parte da história da própria Europa assim como a história da Europa deveria conter também uma história do Brasil pois fora o sucesso da empreitada dos povos europeus os portugueses especificamente que fizera do Brasil um lugar melhor retirandoo de um estado selvagem e depreciado para mostrálo ao mundo em todo seu esplendor administrado por uma monarquia e organizado como os mais modernos Estados do Velho Mundo Achegado ao seio da mãe Europa berço da cultura ocidental relicário da civilização branca e católica assim era o Brasil de Varnhagen para quem se tencionasse distanciarse desse modelo triste seria seu destino açodado pela leniência dos africanos que enegrecia sua população e pela obtusidade dos indígenas incapazes de construir uma sociedade mais ampla e com densa organização posto que imersos em práticas bárbaras 118 Só a ligação 118 O cuidado adotado por Varnhagen nesse contexto estava diretamente relacionado com a prática adotado por muitos brasileiros no pósindependência de alterarem seus nomes de batismos por apelidos que os diferenciassem dos portugueses já considerados outro povo Os nomes preferidos faziam menção à ancestralidade indígena cuja literatura romântica bem resgatara ou a contextos políticos ou naturais Bons exemplos dessa prática são os do Visconde de Jequitinhonha Francisco Gomes Beltrão e do jornalista Francisco José Corte Real que escolheram passar a ser chamados de respectivamente Francisco Gomes Brandão Montezuma posteriormente Francisco Gê Acaiaba de Montezuma e Francisco José CorteNacional e em seguida CorteImperial Outros exemplos remetem à família Galvão que trocou seu nome para Carapeba ao pernambucano José Maria Migueis que tornouse José Maria Migueis Bemtevi e ao padre Pedro Antônio de Sousa que passou a assinarse como Pedro Antônio Cabrabode Joaquim José da Silva transformouse em Joaquim José da Silva Jacaré e Bernardo Luís Ferreira Portugal ao retornar da prisão depois do envolvimento na Revolução de 1817 passou a assinarse simplesmente Bernardo Luís FerreiraTais mudanças levaram O Espreitador Constitucional favorável à causa portuguesa a afirmar que Portugal jamais pensara que seus netos abandonariam os nomes e sobrenomes dos antepassados para adotar orgulhosos os de Caramurus Tupinambás Congo Angola ou Assuá entre tantos outros O próprio regente 50 aos portugueses poderia dar o necessário teor da superioridade européia ao trono reinante cuja origem estava assentada do outro lado do oceano Elogiar os colonizadores do passado significava legitimar as elites do seu presente Relatar os feitos da era dos descobrimentos portugueses era uma forma de celebrar a figura do monarca D Pedro II Dignificar a civilização portuguesa representandoa de forma positiva significava construir uma identidade para o Brasil assim como destacar qualidades da bravura portuguesa permitia a construção de heróis necessários à consciência cívica Vejamos como ele desenvolveu seus argumentos em torno de três contextos o caráter heróico do colonizador a capacidade criativa da monarquia bragantina e o gênio civilizador contido no esforço português ao tomar posse das terras americanas 21 Os herois do Brasil A idéia de que a missão da história era preservar a memória das vidas e feitos dos grandes homens do passado esteve presente de forma marcante no pensamento dos historiadores da estirpe de Varnhagen dentro do IHGB119 A produção das biografias dos varões ilustres por letras armas e virtudes fazia parte do programa histórico do grêmio e era objeto de dedicação dos seus artífices nas páginas da Revista bem como nos livros e memórias ali produzidos O visconde de Porto Seguro não fugiu a esta regra e sua Historia geral do Brasil foi deliberadamente povoada de passagens ou momentos biográficos procurando futuro imperador D Pedro I adotou o nome do último imperador asteca Guatimozin para filiar se à Maçonaria Os estudos de SEYFERT sobre esse fenômeno social brasileiro comprovam ter sido o mesmo parte de uma estratégia deslusitanizante nascida no contexto do pós independência mesmo que tenham predominado os nomes tradicionais da onomástica portuguesa nos nascidos durante o Primeiro Reinado ou em data anterior SEYFERT Giralda Op cit p 96 119 Segundo Maria da Glória de Oliveira a constituição de um panteão nacional seria uma preocupação recorrente dos letrados em torno do IHGB produzindo biografias memórias necrológios e notas biográficas nas páginas da sua Revista entre outros impressos A necessidade de arrancar do esquecimento os nomes ilustres afinavase com o ambicioso empenho da agremiação em coligir documentos para a elaboração da história nacional tendo em vista as demandas políticas peculiares à consolidação do Estado monárquico no Segundo Reinado In OLIVEIRA Maria da Glória Escrever vidas narrar a história A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista Tese de doutorado em História Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2009 p 10 51 fixar os nomes daqueles que deveriam ser lembrados pelos seus feitos 120 Na celebração dos feitos destes herois estaria o mito fundador do Brasil O processo de formação da nação brasileira para Varnhagen era resultado da ação de indivíduos que se destacaram por seus atos de coragem e bravura tornandose heróis da nação recém fundada No sentido de cristalizar essa percepção aquele autor lançou mão do recurso sensibilizante da criação de heróis como estratégia para sedimentar a unidade territorial e a irmandade da neófita nação121 Na obra de Varnhagen os atores e a dinâmica social convergiram para o ponto teleológico da formação da sociedade brasileira entendida sobretudo mas não exclusivamente como a constituição da base territorial e da etnia Para ele o processo de colonização entre os séculos XVI e XIX foi a implementação de uma política desejada planejada e executada pelo Estado português forjando as ações sociais Pouco ou nada existiria de socialmente espontâneo devendo os comportamentos se coadunar aos objetivos e expectativas do Estado português para serem positivamente avaliados Tal como Martius Varnhagen também desdobrava o papel desempenhado por Portugal como idealizador das façanhas marítimas capaz de definir estratégias e astúcias para vencer as dificuldades do empreendimento sendo o acaso ou a sorte elementos existentes mas pouco decisivos para o destino da pátria portuguesa que levara civilidade e cultura para as inóspitas terras americanas Nesse sentido as páginas da HGB expressam a arquitetura de um panteão de heróis que representariam o Estado português no seu fazer civilizador homens em sua totalidade que ao longo dos mais de três séculos de presença da Coroa portuguesa na colônia constituíram as bases necessárias para a fundação do Império do Brasil no século XIX Em larga medida em sua obra principal verificase a tentativa de construção de um conjunto 120 Para um estudo sobre o papel das biografias nos escritos de Varnhagen conferir SANTOS Evandro dos Templos da pesquisa templos da escrita A biografia em Francisco Adolfo de Varnhagen Dissertação de mestrado em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2009 121 Segundo Laura Nogueira Oliveira embora a Historia geral do Brazil não se limitasse a uma galeria de homens ilustres seria apropriado afirmar que Varnhagen pretendeu construir um panteão nacional Afinal as ações vitoriosas aquelas que a seu ver haviam levado à edificação do Estado nacional brasileiro foram realizadas por homens que se constituíam esses sim na exemplaridade a ser imitada no presente OLIVEIRA Laura Nogueira A palavra empenhada recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen Tese de doutorado em Letras Universidade Federal de Minas Gerais 2007 p 219 52 composto majoritariamente por brancos portugueses ou descendentes a parte integrante desse processo de definição da nação os detentores da história 122 Para atingir seus fins Varnhagen procurou destacar personagens e fatos marcantes na história do Brasil colonial em sua narrativa de uma forma tal que permitisse fixar a mesma na memória nacional Para tanto utilizou episódios dentre estes alguns emblemáticos para se compreender as representações por ele produzidas sobre os colonizadores a saber a expedição de Martin Afonso de Souza e a administração do primeiro governador geral do Brasil Tomé de Souza os primeiros nomes de seu panteão A história de seus feitos seria uma forma de perpetuar os nomes daqueles que seriam os primeiros construtores do Brasil Herois de origem branca e européia ou seja portuguesa a quem Varnhagen proporia a elevação de monumentos em sua memória Celebrálos seria uma estratégia discursiva para se cultuar valores e sentimentos do seu tempo a unidade territorial a centralização do poder a defesa contra os inimigos internos e externos e o elogio da herança portuguesa Em sua narrativa Varnhagen buscou descrever em minúcias os feitos de Martin Afonso123 para construílo como o primeiro herói da nação dando destaque a sua capacidade empreendedora no início do processo de colonização do Brasil Para nosso autor colonizar 122 Cf ODÁLIA Nilo Op cit p 12 Embora Varnhagen consagrasse sua obra nas palavras de José Honório Rodrigues à memória dos produtos dos grandes homens de pensamento não se pode esquecer que ele não fez uma mera escolha com base em suas opções ideológicas filosóficas e científicas A respeito ver RODRIGUES José Honório Rodrigues História da história do Brasil vol II tomo I São Paulo Companhia Editora Nacional 1988 p 17 Sobre a mesma questão embora com novo enfoque para Arno Wehling o historiador sorocabano não compusera apenas uma história dos grandes homens A sua narrativa da saga dos heróis teria sido caldeada com outras personagens ou seja as entidades coletivas tais como os agentes mesológicos as etnias e sua miscigenação as instituições sociais e políticas os grandes personagens e o próprio reino português Vide WEHLING Arno Op cit p 158 Em nosso entendimento porém o Visconde de Porto Seguro não se preocupou em construir uma galeria de brasileiros menos ainda em constituir os elementos fundamentais da dinâmica social na colônia Sua narrativa explicita a presença portuguesa como onipresente num universo em que todos os demais elementos seriam coadjuvantes da mesma na construção de um tecido social cuja arquitetura seria totalmente uma obra lusa mesmo que lamentavelmente marcada por cores distintas 123 A descrição da viagem de Martim Afonso ao Brasil apontada como o primeiro movimento de caráter colonizador realizado por Portugal tomaria duas longas e minuciosas seções da sua Historia geral do Brazil Para a sua elaboração fez uso do Diário de Pero Lopes de Souza documento descoberto por Varnhagen em suas peregrinações pelos arquivos europeus O Diário de Pero Lopes de Sousa foi publicado com as anotações de Varnhagen em Lisboa em 1839 e reimpresso no Rio de Janeiro pelas páginas da Revista do IHGB em 1861 Conferir Carta do Sr F A de Varnhagen á redação acerca da reimpressão do Diário de Pero Lopes que lhe servirá de prólogo Revista da IHGB Tomo 24 p 0308 1861 53 significava civilizar e nesse empreendimento inexistiria uma relação de superioridade por parte da metrópole em relação à submissa colônia bem ao contrário a colônia só podia ser entendida como uma extensão de Portugal dele herdando todas as excelentes características que ensejaram homens valorosos e cujos feitos heróicos deveriam ser salmodiados na memória da pátria Assim a colônia seria a mesma coisa que o reino não havendo diferenças dissensões rupturas entre uma e outro nos quatro séculos de colonização que pudessem lastrear um separatismo que se verificava após a emancipação política Tal postura de Varnhagen encontra justificativa se considerarmos suas atividades como diplomata brasileiro em Portugal e cujo exercício ele fazia questão de dar continuidade na construção de uma história livre de extrusões pacífica pela própria natureza ao defender as boas relações entre as duas nações Martin Afonso de Souza seria a personificação do português na narrativa de Varnhagen um homem de prodígio e de valor A sua presença nas terras brasílicas significaria a instauração do poder e da ordem e de suas ações daria a colônia os primeiros passos Se Gama para Varnhagen era o navegador Cabral o descobridor Martin Afonso seria o colonizador por excelência Ele traduzia os elementos necessários para a implantação do Estado português na colônia uma vez que tinha a missão de organizála e administrála no contexto de uma ordem metropolitana Na narrativa de Varnhagen identificamse três preocupações básicas para a consolidação do domínio português no Brasil primeiro a questão do estabelecimento da ordem e da disciplina segundo a delimitação dos limites da colônia terceiro a posse da terra bem como sua distribuição em forma de sesmarias O êxito da obra a ser realizada pelo colonizador dependeria do cumprimento destes pontos habilmente cumpridos pelo mandatário do império português e graças à sua perícia o Brasil existia Além de um agente de governo Martin Afonso também teria sido um modelo de civilizador e em decorrência de seus feitos um heroi nacional Ele era o fundador da primeira vila sinônimo de povoamento ordem e civilidade Na fundação de São Vicente e outras vilas estaria a origem européia da província de São Paulo o lugar de nascimento daquele historiador Era este o ethos a ser valorizado e celebrado como motor da formação da nacionalidade brasileira na retórica de Varnhagen Do êxito do esforço afonsino tronou 54 se possível a implantação das capitanias hereditárias124 sendo por tal feito eleito como um dos ilustres varões da história do Brasil pelo visconde de Porto Seguro Na descrição da sua conduta Varnhagen procurou destacar os adjetivos necessários àqueles que deveriam governar a nação de seu tempo amoldando a sociedade para um tipo específico por ele idealizado para levar adiante os destinos do país Em todas as fases da imposição dos valores europeus e brancos vemos surgir a marca de heróis que resumiam em si as qualidades esperadas do cidadão e da Nação Outro herói estimado na Historia geral do Brasil o primeiro governador geral Tomé de Souza congregaria no pensamento de Varnhagen a importante característica para a legitimação da presença e da herança portuguesa na América a centralização do poder responsável pela regeneração do Brasil Diante de uma colônia viciosa pela promiscuidade dos índios com os colonos e fragmentada pelo fracasso ou mau governo das capitanias hereditárias Varnhagen apontou a existência de uma liderança como uma forma de moralização e unificação do povo125 A descentralização promovida pelas capitanias hereditárias e a proliferação de cristãos gentilisados além da presença de expedições invasoras francesas seriam corrigidas com a formação do primeiro Governo Geral de Tomé de Souza na ótica de Varnhagen para quem a formação do Governo Geral significaria o estabelecimento da ordem e do poder centralizador na colônia elementos necessários para o seu desenvolvimento moral e econômico O visconde de Porto Seguro encontraria em Tomé de Souza o símbolo para traduzir esta página da história do Brasil e assim representar os portugueses que construíram uma civilização em solo americano Tomé de Souza mostrado na HGB como nobre exemplar do sangue português seria mais um ilustre varão a ser celebrado por Varnhagen que assim o descreveu filho natural 124 Em relação à divisão do Brasil em capitanias hereditárias Varnhagen teceria severas críticas por ser uma ameaça à unidade e ordem da colônia havendo pois a necessidade da constituição de um governo centralizador e forte Cf História geral do Brasil seções XI e XII p 347 125 Não se pode perder de vista que para o historiador monárquico era vital trazer do passado exemplos de centralização de poder e preservação da unidade territorial temas importantes se considerados o panorama político vivido pelo autor no chamado Período Regencial e primeiras décadas do Segundo Reinado A questão é esmiuçada por MATTOS Ilmar Rohloff de O Tempo Saquarema a formação do Estado imperial São Paulo Hucitec 2004 55 duma das primeiras casas do reino distinto por seus grandes dotes governativos e pelo valor e prudência que provara em muitas ocasiões difíceis na África e na Ásia 126 Trazer para a sua narrativa os feitos do primeiro governador geral de certa maneira era forma de mostrar que o reinado de D Pedro II justificavase num passado que prezava pela construção da unidade e estabelecimento de um governo central que sufocasse qualquer proposta de fragmentação ou desmoralização É interessante perceber como Varnhagen mostravase fascinado por figuras do Estado que congregavam características fortes como pulso firme rigor sobriedade e comando Tomé de Souza o fascinava justamente por ter estes atributos o que pode ser verificado na leitura de seu texto recheado de expressões louvativas à capacidade administrativa e ao espírito intrépido daquele colonizador127 Mem de Sá seria outra personagem a ser cultuada como modelo de governo por Varnhagen aproximando muitas das suas ações ao legado de Tomé de Souza uma vez que também seria um regenerador do Brasil na luta contra franceses e indígenas Tal qual Martin Afonso e Tomé de Souza Men de Sá fora eleito como um dos construtores do Brasil tendo sua imagem erguida no panteão daqueles que no período colonial contribuíram de maneira operosa na constituição da futura nação Nas páginas da sua Historia ao contrário dos indígenas e africanos que tinham lugares prédeterminados nas seções abundavam biografias de proeminentes portugueses ou descendentes entremeandose no relato dos eventos a demonstrar que estes eram os legítimos sujeitos da história em sua maioria homens de Estado governadores militares religiosos senhores entre outros128 126 Ibidem seção XIII p 393 127 Ao longo das seções XV e XVI Varnhagen esmerouse em detalhar cada medida tomada por Tomé de Souza mostrando o sistema de terror que impôs sobre os índios o uso dos serviços dos jesuítas na conversão desses e moralização dos costumes dos colonos a constituição de um aparato administrativo e de proteção do território e das fronteiras e a instituição da ordem127 Para ele Tomé de Souza havia cumprido a sua missão o Brasil estava constituído a autoridade e a lei haviam feito sentir suas fôrças beneficas e a moral publica ganhára muito Ibidem p 216 128 Em relação à supremacia do masculino na formação da identidade nacional percebida na história narrada por Varnhagen assim como nos demais historiadores aqui elencados salvo poucas exceções Paul Gilroy teceu as seguintes afirmações A integridade da nação se torna a integridade da sua masculinidade De fato ela só pode ser uma nação se a versão correta da hierarquia de gênero tiver sido estabelecida e reproduzida GILROY Paul Entre campos nações culturas e o fascínio da raça São Paulo Anablume 2007 p 156 56 Ao destacar a história desses herois o visconde de Porto Seguro deixava evidente que a obra nacional era fruto do motor civilizacional da matriz portuguesa A história do Brasil era o resultado da ação de homens brancos cristãos e defensores do Estado monárquico como forma legítima de governo Foi construída assim pela pena de Varnhagen a mais bem documentada representação do português enquanto agente e administrador de uma nova civilização na América e cujos nomes de destaque estavam inscritos em definitivo num panteão de heróis que originaram a nacionalidade brasileira Foram esses herois na perspectiva histórica de Varnhagen que concentraram em suas mãos os rumos da história contando inúmeras vezes com a intervenção da Providência divina posto serem predestinados a desvendar e colonizar digase civilizar o mundo desconhecido Assim a mística que cercava o descobrimento do Brasil em sua narrativa ganhava coesão configurandose como uma prova de que os portugueses eram o povo escolhido a trazer a luz da civilização e da fé cristã para as terras e gentes dos trópicos129 Nas dificuldades da descoberta da conquista e da colonização emergiram todos os heróis apresentados em seu panteão e que passaram desde então ao plano de reconhecimento da população brasileira indo do administrador comum à figura do monarca e seus descendentes Nesse sentido Varnhagen definiu a história como uma mestra por fornecer exemplos de vidas a serem imitadas pelos homens do seu tempo Seus heróis tinham que ser tomados como modelos ao derrotar aqueles que puseram em risco a possibilidade da nação se instituir como uma unidade apresentando as forças viris necessárias à construção e manutenção da nacionalidade Era de tipos como aqueles que o Brasil emancipado politicamente necessitava denotando que o laço fraterno com Portugal ainda continuava a existir mesmo sob nova perspectiva Esse laço pode ser bem observado na construção dos tipos que tiveram destaque no panteão constituído pelo autor onde há uma clara distinção e até mesmo antagonismo entre as personalidades apresentadas como modelares os portugueses e seus seguidores e todos os demais que não se enquadravam naquele modelo De um lado ele mostrou 129 Tal abordagem é reveladora de que aquele intelectual aceitava de bom grado as proposições do Padre Antônio Vieira a respeito do Quinto Império e da própria predestinação do povo português cujo ethos clamava por ter ciência desse papel 57 homens130 brancos cristãos estadistas e lusófonos de outro os elementos indígenas africanos estrangeiros e nãolusófonos enfim os outros rotulados por marcas negativas reveladoras da real intenção do autor em elevar o elemento português como um modelo a ser apreciado e reconhecido os seus feitos heróicos Assim aquele autor engendrava em seu texto sua estratégia de detratação de qualquer elemento que não se enquadrasse no modelo colonizador luso de forma a valorizar ao máximo possível o elemento luso como o colonizador por excelência de um Brasil que atingira sua maioridade e que doravante caminhava com autonomia A leitura da narrativa daquele autor é reveladora da medida utilizada pelo mesmo em relação aos personagens da história nacional a partir do posicionamento que cada um assumia em relação à colonização portuguesa no Brasil Aos favoráveis que trabalharam no empreendimento colonial Varnhagen mostravaos como elementos exemplares personalidades marcadas por um cariz positivo construindo a partir de seus exemplos os heróis da história nacional Em relação aos que não se enquadravam nesse modelo os outros tomavaos por vencidos que caso não fossem destruídos tanto no passado quanto no presente condenariam a nação a permanecer na selvageria a cair sob o domínio de estrangeiros ou a sofrer o esfacelamento de seu território pelas mãos dos revoltosos regionais Inobstante sendo sujeitos virtuosos ou não todos habitaram o universo da sua obra131 no sentido de reforçar as representações positivas que ele construía ao longo da narrativa em 130 Evidente ter Varnhagen construído sua narrativa histórica numa perspectiva masculina As mulheres foram personagens ausentes ou secundários na narrativa da Historia geral do Brasil No caso das índias apareciam como meras figuras de atração para os colonizadores pelas suas belezas e dotes corporais Atendiam apenas ao principio da reprodução quando não eram associadas à luxúria e traição As portuguesas por sua vez ocupavam uma posição de inferioridade ou de coadjuvância nos feitos de seus companheiros filhos e netos os grandes homens Para uma crítica do discurso essencialmente masculino e misógino na historiografia brasileira conferir RAGO Margareth Sexualidade e identidade na historiografia brasileira Revista Aulas Dossiê Identidades Nacionais v 1 nº 02 p 136 OutNov 2006 131 Indígenas negros e estrangeiros anotados pelo visconde de Porto Seguro como detentores de atributos negativos apresentavam esse julgamento porque eram contrários ao mundo civilizado branco cristão católico e europeu Eles seriam uma ameaça à viabilidade da colonização processo necessário para a emergência da nação independente Anunciálos na sua narrativa era uma forma de ressaltar a grandiosidade dos desafios enfrentados pelos colonizadores vitoriosos Esse outro perigoso a ser vencido foi amplamente mencionado por Varnhagen sendo recorrente sua acusação dos malefícios provocados por indígenas ferozes invasores estrangeiros e o problemático tráfico negreiro No caso do governo de Men de Sá o historiador sorocabano destacou que foi um dos que a historia deve considerar como dos mais profícuos para o Brazil o 58 relação ao português Observese que não interessava se o outro era também europeu e portanto civilizado seu tratamento negativo foi dirigido também aos invasores franceses e holandeses quando de suas incursões ao território brasileiro Se avessos ao processo civilizatório português Varnhagen não titubeava em apontar o extermínio como solução auferindo que a civilização almejada para o Brasil era a portuguesa e nenhuma outra Mesmo que o decantado Velho Mundo fosse considerado o lócus da civilização por excelência fazse interessante destacar que na narrativa varnhageniana o laço que se deveria impor era com Portugal não importando o restante da Europa A civilização almejada portanto seria a portuguesa e nenhuma outra Todavia cumprenos questionar a pretensão daquele autor ao desdenhar do modelo civilizatório das demais nações européias a exemplo da França e dos Países Baixos mostrando o modelo português como um exemplo único a ser seguido pela neófita nação Não nos esqueçamos que Varnhagen era um súdito fiel de uma monarquia a bragantina que dominava tanto o Brasil quanto Portugal há vários séculos e que na construção de sua narrativa deveria ter seus feitos destacados garantindolhe o lugar na história e a manutenção do trono Para tanto não haveria na história francesa em primeira mão exemplos a serem seguidos pelos brasileiros cuja sociedade deveria ser perpassada pela ordem pela aceitação das leis do país e pelas determinações do trono Os revolucionários franceses não inspiravam Varnhagen e em decorrência das lutas sociais empreendidas naquela nação defeituosamente republicana ele não a mostrava como modelo da civilidade pretendida para o Brasil Este modelo era único e bem conhecido era o modelo português o que deveria ser seguido a fim de se garantir o poder reinante monárquico e a ordem nacional Apesar do excepcional destaque dado aos portugueses como construtores da nação verificase que Varnhagen não se eximiu de qualificar também alguns portugueses como sem virtudes dandolhes a pecha de traidores e corruptores dos hábitos e costumes dos primeiros colonizadores ao se adequarem ao cotidiano dos indígenas Todavia como já qual se pode dizer ter sido elle alvo principalmente das invasões francezas assim das dos Indios Ibdem p 267 A preocupação com os outros internos indígenas e externos negros e estrangeiros pode ser facilmente identificada na produção dos membros do IHGB publicada na Revista em pleno século XIX e mesmo nos anos iniciais do século XX a demonstrar o quanto a diversidade étnica brasileira foi pouco recepcionada por seus historiadores como um elemento da especificidade do país 59 afirmamos anteriormente sua estratégia em ressaltar a existência de comportamentos desviantes visava tão somente destacar com maior coerência a nobreza de caráter dos demais que não se dobraram aos costumes da terra e que mantinham a disciplina necessária à realização de um processo civilizacional Estes primeiros colonos meio afeitos já aos hábitos dos Bárbaros enlaçados com suas famílias e sem prestigio algum perante eles foram a pior praga que podia cair sobre a recente colônia A mesma facilidade de trato que por intermédio desses cristãos gentilizados tinham os novos colonos para se derramarem pela terra não só os pervertia como os expunha a serem inocentemente sacrificados às mãos dos gentios quando se arredavam um pouco mais A par destes males resultava outro maior A colônia se dissolvia os acostumados a obedecer perdiam o hábito da disciplina e o chefe começava a não ter força para fazerse temer e respeitar132 Fazse interessante destacar que na HGB verificase uma construção de personagens marcadas sempre por aspectos negativos para expressar bem a dualidade com que o autor construiu sua narrativa Em relação a esses Varnhagen não os tratou como de somenos bem ao contrário Seu discurso alardeou a existência das derrotas e destruições justificadas como resultantes do distanciamento do projeto português fosse por vontade própria fosse por decorrência de um estado anterior à própria colonização Dentre esses personagens destacamos sua visão extremamente negativa sobre os indígenas133 e rivais da colonização portuguesa assim como os invasores holandeses e franceses revoltosos regionalistas e de forma mais sutil os republicanos das Américas Para Varnhagen esses sempre 132 Ibdem Secção XIII p 216 133 Para homens como Martin Afonso os índios seriam um dos grandes empecilhos ao processo de ocupação e domínio do Brasil Reforçando sua imagem negativa dos indígenas e confrontando os adeptos do indianismo romântico do IHGB Varnhagen mostrou ao longo da descrição dos êxitos e fracassos das capitanias e o quanto a sua selvageria e violência teria ceifado vidas e obstruído o projeto colonial português133 Em suma para o visconde de Porto Seguro o protagonismo de personagens como Martin Afonso estava no fato de carregarem no sangue europeu o desejo de ordem uma das bases fundantes do Estado Para ele inexistia uma civilização anterior aos portugueses mesmo que existissem grupos humanos com uma organização específica antes dos mesmos Na ótica de nosso autor civilização era aquela existente na Europa especialmente em Portugal a quem cumpria o dever de transformar esses grupos amoldandoos a um modelo ordeiro onde predominava a fé a lei e o rei Assim já se observa que Varnhagen procurou interpretar o mundo à sua própria maneira tergiversando em alguns pontos do modelo de história desejado pelo IHGB e que tinha na proposta de Martius o seu modelo escolhido 60 terminariam vencidos pelas mãos dos homens virtuosos que não é demais reafirmar eram sempre brancos colonizadores ou lusófilos134 À exceção no panteão erguido por Varnhagen vamos encontrar dois nomes especiais o de Henrique Dias e o de Felipe Camarão cujas memórias ficaram para a posteridade como os grandes heróis da Batalha dos Guararapes guerra final contra os holandeses que permitiu a retomada de parte do Brasil ao um Portugal restaurado Henrique Dias era um negro e seu companheiro Felipe Camarão indígena Juntos com André Vidal de Negreiros branco os três perfizeram o heroísmo que Varnhagen quis mostrar ao Brasil heroísmo que dispensou as diferenças étnicas e se uniu em defesa de um projeto superior o domínio português na América Na união das três etnias tal qual recomendado por Martius em prol de tal ideação mais uma vez nosso autor celebrou a dominação portuguesa desta feita consentida e acastelada pela população nativa e pelos escravos que também viam no português o senhor das terras americanas Nesta perspectiva a história do Brasil escrita por Varnhagen seria a confluência de biografias de varões ilustres que em diferentes momentos lutaram em nome de um Estado forte e centralizado capaz de forjar uma nação soberana a partir de um processo civilizatório Da mesma forma no entrelaçamento destas biografias individuais emergiria a grande biografia da nação aquela que encontrava suas raízes no solo português Sua narrativa da criação do Brasil pelos portugueses a partir da construção de heróis tornouse posteriormente largamente reproduzida nos manuais didáticos que ostentaram as imagens desses heróis de forma a que seus semblantes fossem gravados pela população nacional que freqüentava a escola transcendendo seus rostos à própria menção de seus nomes Definiase assim uma identidade nacional almejada e minuciosamente planejada 22 O caráter civilizatório da colonização portuguesa Para além da sutil construção de heróis Varnhagen inseriu em seu projeto toda uma engenharia que lastreou o Estado Português como uma entidade civilizatória expressão utilizada de forma copiosa em sua narrativa135 Buscava pois justificar a presença 134 OLIVEIRA Laura Nogueira Op cit p 89 135 A rigor o conceito de civilização referese a uma grande variedade de fatos resultando na dificuldade de precisão do termo O ancestral da palavra civilisation é o conceito de civilité cujo desenvolvimento expressa 61 portuguesa na América assim como a consecução do empreendimento colonial em todos seus desdobramentos Suas escolhas historiográficas revelam o quanto o visconde de Porto Seguro ratificou o projeto historiográfico de Von Martius ao tributar aos colonizadores erigidos em sua narrativa como heróis a imagem de motor da civilização nos trópicos Os portugueses imersos na epopéia de conquista e defesa de parte do território americano para o estabelecimento do poder real e da fundação de uma nova civilização tinham como objetivo a transformação do comportamento dos distintos povos ali ajuntados africanos e nativos bárbaros carecedores de ascender a uma condição superior de civilidade 136 É sob essa ótica que as ditas ações civilizatórias encetadas pelo Estado português apareceram com destaque na obra de Varnhagen O estado de civilização na retórica daquele autor mantinha uma luta contínua contra o estado de barbárie que espreitava o homem e o assaltaria e dominaria tão logo ficasse desamparado dos controles criados pelo homem mas que pairavam sobre ele na figura onipotente do Estado Para nosso autor a condição humana tinha cariz precário sendo incapaz de se sustentar sem que existisse ao seu lado na qualidade de suportes indispensáveis a comunidade a sociedade e a Nação Mas foi ao Estado enquanto expressão primeira da uma antítese fundamental da autoimagem do Ocidente a qual opõe o cristianismo romanolatino da Idade Média de um lado ao paganismo e à heresia incluindo o cristianismo orientalgrego A sociedade do Ocidente empenhouse nas guerras de colonização e de expansão primeiramente em nome da cruz e depois pela civilização Desse modo o termo civilização conservou sempre um resquício da missão em que a cristandade latina e o cavaleiroeuropeu superior poderiam e deveriam forçar a alteridade à ação transformadora do comportamento humano civilizandoo O termo portanto constitui expressão e símbolo de uma formação social peculiar forjada na Europa a sociedade de corte e remete a uma identidade que no decorrer da constituição dos Estados nacionais associou o conceito de cultura à civilização pois a cultura ocidental seria resultado da civilização Ao ser incorporado no dicionário no Século XVIII o termo ganhou o sentido moderno de resultado de um processo de aperfeiçoamento da humanidade isto é o processo de civilização se traduz como o caminhar do progresso em direção à modernização tecnológica e à sofisticação dos hábitos humanos cujo parâmetro seria a Europa ocidental Essa idéia foi exportada da Europa para o mundo como sendo um processo coletivo ininterrupto com o qual a humanidade estaria comprometida desde suas origens e o ritmo de sua variação dependeria somente das diferentes épocas e lugares e é sob tal perspectiva que Varnhagen o insere em sua obra STAROBINSKI Jean As máscaras da civilização São Paulo Companhia das Letras 2001p 1320 136 De acordo com Elias o conceito de civilização expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo pois o termo condensa tudo em que a sociedade ocidental se julga superior a sociedades antigas ou a sociedades contemporâneas normalmente entendidas como atrasadas Assim o conceito descreve como a sociedade ocidental representa o que lhe é especial e distintivo das demais e o que lhe orgulha o nível de sua tecnologia seus hábitos o nível de desenvolvimento de sua cultura científica entre tanto outros A respeito ver ELIAS Norbert A sociedade de corte investigação sobre a sociologia da realeza e a aristocracia de corte Rio de Janeiro Jorge Zahar Editores 2001 p 40 A mesma questão é abordada em STAROBINSKI Jean Op cit p 1320 62 Nação que se delegou o poder de zelar para que tais condições surgissem de forma racional e deliberada O homem abandonado a si mesmo retroagiria quando desamparado pela ordem e pela lei que nasceriam do Estado na ótica varnhageniana Dessa visão de mundo nasceu a idéia de Brasil constante em sua HGB na qual o Estado Português teve papel de destaque posto atribuir ao mesmo a existência do povo e da nação brasileira Todo o seu raciocínio histórico foi desenvolvido em virtude do princípio básico de que o Estado é o gerador de nações e povos e que toda atividade humana que pudesse pôr em risco essa função devia ser combatida como um atentado aos legítimos interesses da Nação137 Fixouse no Brasil desde então a noção de que o Estado chegara antes como uma entidade superior dando ensejo posteriormente à nação Em decorrência de suas escolhas sedimento da tese constante na HGB observase que Varnhagen data o início da história do Brasil a partir apenas da chegada de Pedro Álvares Cabral e sua tripulação à nova terra em 1500 antes disso nada era interessante a ponto de integrar sua narrativa sobre a formação do Brasil Com base nessa premissa aquele historiador engenheiro militar formado pela Escola de Cadetes de Portugal foi taxativo ao reconhecer ser dos portugueses a propriedade do lugar o Brasil pertencia a Portugal seu descobridor e a mais ninguém fossem os nativos que o habitavam desde tempos imemoriais ou os espanhóis franceses e holandeses que adentravam seu litoral Lastreava se assim a representação do português como senhor do Novo Mundo com o fito de ali implantar uma civilização Nascia também a chamada América Portuguesa tão cara à versão varnhageniana posto só compreender o Brasil como extensão de Portugal país este surgido no orbe entre as nações civilizadas regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos e que dentro de algumas gerações se havia de organizar uma nação mais rica e considerável do que a mãepátria138 Esse argumento foi repetido ao longo de sua narrativa num esforço notável de bem fixar um atributo dos portugueses no Novo Mundo agentes da civilização onde o português descobridor embasava a construção de uma identidade de Portugal pátriamãe mostrada na HGB como um imenso rio tal qual Martius referenciava que congregaria as 137 A respeito ver ODÁLIA Nilo Op cit p 41 138 Ibidem secção XVIII p 294 63 contribuições dos pequenos afluentes de outros povos para a formação da identidade nacional brasileira Todavia diante do esforço do autor em apresentar Portugal como um Estado civilizador indaguemos em que consistia a civilização tão exaltada a ser engendrada nas terras descobertas e apossadas Em que versava o processo civilizatório português tão alardeado em sua História Geral Como esse processo expressara resultados Em busca de sentidos para sua argumentação Varnhagen fez uso de dois elementos marcantes no empreendimento colonial a religião e a guerra mostrandoos sempre como estratégias utilizadas pelos portugueses para realização de seu projeto civilizador A religião para ele deu o contributo necessário como instrumento civilizador sendo um anteparo uma sólida barreira que tinha por fim impedir o colono de perder sua condição humana passando a chafurdar na barbárie estado de degradação a ser evitado a todo preço Exemplos desses desregramentos eram abundantes na colônia e nosso autor lançou mão dos mesmos para demonstrar o esforço de padres e missionários a fim de evitar a fuga do cristão para as amarras da barbárie que assolava as terras americanas antes da chegada benfazeja dos civilizadores em muitos casos não obtendo resultado favorável ao seu esforço Vendose em pequeno número e bem desamparados os cristãos em cada uma das capitanias começaram por afazerse a muitos usos dos bárbaros nos objetos domésticos e nas primeiras necessidades Destes adotaram o uso do tabaco de fumo e com tanto amor que se tornou geral e passou à Europa e já no século seguinte constituíam um dos ramos da indústria e produção do Brasil Quis a igreja oporse ao uso declarandoo rito gentílico e prelado houve que chegou a proibilo com pena de excomunhão dando alguma vez como penitência aos que fumavam trazerem na igreja os pytimbaos ou grandes charutos ao pescoço mas foi tudo debalde139 Varnhagen mesmo esforçandose para patentear o português como elemento civilizado contraditoriamente mostrou sua gradual aproximação com os costumes bárbaros de negros e índios ao fazerem uso de certos produtos comuns na colônia Na ocasião ele clamou também contra o contato íntimo entre homens brancos e mulheres de cor ato incompreensível em sua concepção de mundo Buscava porém justificar esses atos como 139 Ibidem secção XXIII p 212 64 oriundos de um ambiente de penúria e desamparo tamanha eram as dificuldades enfrentadas pelos primeiros colonos A religião em seu cariz regenerador teria um papel importante para adequar tais comportamentos sendo a mesma utilizada e mostrada por aquele autor como o instrumento do estado para que seus agentes diante da espinhosa missão não perdessem o original feitio Em sua concepção providencialista e metafórica da história a presença de Deus e de Sua Sabedoria se efetivavam sob a forma de uma ação fornecedora de benesses e graças aos portugueses dignos filhos do divino e pais da nação A religião enquanto instrumento civilizatório também foi mostrado pelo historiador como instrumento educativo em sua mais difícil missão que era o resgate dos bárbaros de sua natureza degradante Varnhagen destacou no trabalho realizado pelos jesuítas a educação elemento profundamente entranhado à religião a qual juntamente com a lei e a autoridade compôs a tríplice base para a efetivação do processo civilizatório da colônia pelos portugueses Em sua narrativa a religião tiraria as gentes da miséria moral e espiritual nas quais estavam inseridas A expiação desses povos foi rigorosamente datada pelo autor e se iniciara com o descobrimento e a colonização pela Europa cristã ou especificamente católica Da mesma forma como a providência abençoava os portugueses lançava sua fúria contra os bárbaros e seus costumes que deviam submeterse ao poder real de Portugal e seu projeto civilizatório sob pena da danação eterna Observemos que Varnhagen lançou mão do recurso sensibilizante de mostrar aos católicos do império um Portugal guiado pelo divino a desempenhar um papel predeterminado no âmbito sobrenatural com o fito de fazer expiar dos seus pecados e crueldades a escória nativa bárbara avessa às normas da cristandade Sua leitura tendeu a remeter o leitor a trechos da história bíblica em que a posse da terra e a consequente expulsão dos filisteus eram promessas divinas que se cumpriram quando os portugueses chegaram ao Brasil subjugando os bárbaros que ali habitavam de forma espúria pois não eram seus donos Outros trechos com o mesmo teor são encontrados ao longo de sua narrativa asseverando que Com a chegada do Cristianismo do rei da lei e da razão da paz da cultura da civilização com a chegada dos europeus a este território o Brasil surgiu e integrouse no seio da Providência140 140 Ibidem secção XXXI p 337 65 Era entendimento de Varnhagen que o Brasil se realizara no seu destino manifesto somente quando da chegada dos portugueses competindo aos mesmos inserilo no rol das nações civilizadas ao implantar na sociedade ali criada as regras da cristandade expressas nos deveres apregoados pela fé católica Assim nosso autor fazia uma conexão entre os tempos coloniais e o seu próprio tempo tempos imperiais no qual à Igreja e ao seu clero fora reservado um lugar social cercado de especialidades graças à manutenção da instituição do Padroado141 Contudo por mais comprometido que estivesse com o catolicismo como instrumento de civilização associado nessa tarefa com o Estado o historiador mostrouse um crítico implacável toda vez que a Igreja ou seus representantes agiram a seu ver contra a presença do Estado Quer estivesse analisando Portugal do século XV ou em datas anteriores quer se detivesse em análises sobre o Brasil colonial ou independente o critério maior para a avaliação da atividade da Igreja pautouse sempre nas relações de subordinação da mesma aos interesses do Estado português Quer falasse da Inquisição quer analisasse a atuação dos jesuítas no Brasil toda vez que a intervenção da Igreja pudesse de leve ferir ou sensibilizar a ação do Estado monárquico português pondo em perigo sua unidade eou seu poder Varnhagen não titubeava assumindo vigorosamente a defesa do último142 141 Pertinente destacar que o Padroado como parte da política regalista portuguesa teve continuidade no Brasil emancipado por via da Constituição de 1824 que estabeleceu em seu artigo 5º a religião católica como religião do império permitindo excepcionalmente a liberdade de culto desde que sem símbolos exteriores A ingerência da coroa nos assuntos religiosos no entanto somada a outros fatores como o contingente de escravos a presença cada vez maior de imigrantes protestantes e a grande extensão territorial se revelaram como danosos para o processo de cristianização do Brasil que se oficialmente era católico em sua realidade se movia às margens das práticas e dogmas da Igreja revelando a precariedade com que foi conduzida a cristianização no território no período colonial Apesar da ambigüidade exarada da relação população e clero é inegável a integração de atos religiosos com o cotidiano nacional onde os grandes momentos da existência eram vividos no ambiente do templo católico A proximidade da família imperial mais especificamente da princesa Isabel e seus filhos e a Igreja no entanto é reveladora da preocupação de Varnhagen em dar ênfase a alguns aspectos nomeadamente ligados à sacralidade Sobre o tema ver HAUCK J F História da igreja no Brasil Segunda época A igreja no Brasil no século XIX Petrópolis Vozes 1992 142 Mesmo que em seu texto haja elogios à atuação dos jesuítas no que tange à sua contribuição ao soerguimento moral da colônia Varnhagen não se esquivou de tecer severa crítica a sua atuação quanto aos indígenas fonte de grandes males que punham em perigo a estabilidade do governo e da própria colônia e que motivou a expulsão dos membros da companhia de Jesus Para Varnhagen Os jesuítas pregavam mais com a palavra do que com o exemplo pois que não começaram por libertar os que lhes davam obediência Não temos nenhuma sorte de prevenções contra os ilustrados filhos de Santo Inácio que tão assinalados serviços prestaram à instrução pública e ao cristianismo mas quando os documentos acusam deles algumas irregularidades não trataremos de as contar com artificiosos disfarces que antes pareceriam adulação 66 No esforço civilizatório português onde a religião não obteve resultados e em casos mais específicos como as invasões estrangeiras a guerra foi relatada sempre como um pressuposto do empreendimento Para aquele historiador a construção colonial foi efetivada no combate na guerra na disputa da terra contra os invasores de forma a que Portugal pudesse se impor como seu dono onde deveria implantar uma nova civilização A guerra seria assim o instrumento de imposição de um modelo desejado pelos civilizadores Esse modelo era colocado em primeira mão pela educação religiosa onde a fé a lei e o rei eram postos como princípios orientadores da sociedade que se formava Submeterse a tais princípios significava adequarse ao modelo civilizatório que se queria para o lugar e ao qual teriam que se submeter e adaptar todos os demais povos Do contrário a nãorecepção desses princípios deveria ser entendida como uma oposição a ser severamente combatida pelo Estado português por meio de seu instrumental bélico Tratavase de um novo contexto de aplicação da chamada guerra justa travada contra bárbaros e pagãos desde o período da Reconquista e sobre a qual o autor não fez maiores menções143 Em diferentes pontos de sua narrativa Varnhagen acentuou a atuação bélica portuguesa144 de forma a que seu leitor entendesse que no contexto narrado não bastava a determinação injusta Ibdem secção XXIV p 393 Por esse viés é possível compreender porque não há um único padre ou missionário em seu panteão de heróis Nem Anchieta cujo trabalho nas missões permitiu a melhoria das comunicações entre colonizadores e indígenas graças à formulação de uma gramática foi merecedor de um papel de destaque em decorrência do rompimento de relações entre a coroa portuguesa e os jesuítas em 1759 Seu nome é citado junto com o do padre Manoel da Nóbrega como os dois jesuítas a quem o Brasil devia os maiores serviços embora o autor reconhecesse como demorado o recurso da catequese Ibdem secção XIV p 201 143 Varnhagen faz ligeira intervenção crítica sobre o tema aproveitando para destacar para além da política dos jesuítas a piedade dos reis como causa para que os índios fossem chamados à civilização Aproveita o contexto para lançar chispas contra as pregações de Frei Bartolomeu de Las Casas a quem nomeou de pseudofilantrópico e negreiro com pretensões de transportar à América toda a Etiópia Ibidem secção XIV p 220 e secção XLIII p128 e seguintes 144 No Livro I Varnahagen relata a guerra comandada por Martin Afonso de Sousa contra a invasão dos franceses no Maranhão mais adiante justifica a penosa guerra contra os índios na conquista do território da Paraíba Essas guerras perpassam toda sua narrativa pois existiram em diversos pontos do território colonial A Batalha dos Guararapes em que descreve a invasão holandesa até sua expulsão é narrada no Livro II a partir da p 187 tendo continuidade no Livro III tamanha a minúcia do autor Nesse livro Varnhagen reporta se à Revolta do Maneta e a Revolta dos Mascates e dos meios utilizados para findar o levante À guerra dos Emboabas não deu grande destaque mas Varnhagen mostrou toda sua fúria lusitana ao narrar em clima de júbilo a destruição do quilombo de Palmares pelos bandeirantes paulistas A Revolução Pernambucana de 1817 é abordada no Livro V de uma forma que sua narrativa justifica porque o historiador foi declarado pelos seus pares como um defensor da causa dos Bragança e não da Causa do Brasil 67 inexorável da providência mas que a posse da terra consubstanciava e representava o resultado da ação do homem conquistador em sua superioridade civilizatória perante os demais Eram nessas guerras contra índios negros rebelados quilombolas calvinistas franceses e mercadores dos Países Baixos que Portugal espelhava sua ascensão sobre os demais povos e especialmente àqueles reunidos na ambiência colonial num contexto no qual índios e negros não tinham importância nem destaque Mesmo sem o desejar as idéias contidas na HGB findaram por lançar seu autor num certo impasse que na realidade da nação que buscava se constituir aflorara como um problema central para essa mesma constituição a questão racial Lembremonos que ao tempo da escrita da História geral do Brasil a escravidão ainda era uma forte realidade a ser observada nos espaços rural e urbano assim como a questão indígena elevada a um patamar especial pelo romantismo A existência dessa hierarquia entre distintos povos permitia que se falasse em projeto civilizatório como sinônimo de projeto colonizatório embora resultasse como um impeditivo para os fins que se buscava seja a construção de uma identidade nacional unificada e centralizada em torno de uma autoridadepoder existente desde os primeiros anos da colônia Por conseguinte Varnhagen se defrontou com alguns problemas fundamentais que findaram por se constituir como eixos de sua narrativa Como representar o português como o grande rio civilizacional no contexto de raças para estabelecer uma identidade comum Como resolver a questão da existência de raças perante a supremacia portuguesa Como instituir essa união numa narrativa recheada de representações negativas contras as ditas raças145 145 Para aquele autor os indígenas com seus modos bárbaros de vida terseiam perpetuados no solo brasileiro se a providência divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo e a civilização trazidos pelas caravelas portuguesas viessem por termo a tão triste e depravado estado Ao longo da Historia geral do Brasil os indígenas seriam apontados como entraves à colonização atacando e destruindo povoações Eles seriam responsáveis pelo pânico e desordem da sociedade que se instaurava em terras tropicais mostrando se inconstantes e portanto não confiáveis como aliados no processo de colonização do Brasil Eram sempre anotados ao longo de sua narrativa como um dos grandes obstáculos na superação dos limites do litoral rumo ao interior Neste sentido ele elogiava e saudava os feitos dos bandeirantes paulistas no seu aprisionamento e uso como mãodeobra As bandeiras em última análise seriam a civilização dessas gentes perdidas nas brenhas destas terras Em síntese o visconde de Porto Seguro definia as gentes que viviam no Brasil como desgraçadas que em vez de habitarem tão bello solo apenas o possuíam em quanto não se exterminavam umas ás outras em guerras que eram miseraveis a pôder de ferozes HGBsecção IV p88 Em relação aos negros pouco se ocupou nosso autor dos mesmos Para o visconde de Porto Seguro os traficantes negreiros fizeram uma má ação ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de 68 No processo de permanente escrita invenção e embates de narrativas 146 de sua História Geral do Brasil nosso autor definiu os rumos por onde resolveria as questões anteriormente expostas A escolha do que deveria ser a nova Nação acabou por parecer como a natural decorrência de uma situação histórica em que a oposição entre culturas e civilizações diferentes impôs um vencedor a cultura e a civilização dos brancos que trazia em seu arsenal de armas não só as de natureza guerreira como também outras mais efetivas e sofisticadas vistas como os atributos de uma civilização superior Assim nosso autor referenciava sua apropriação do discurso raciológico tão em voga no século XIX discurso este bem absorvido pelos intelectuais brasileiros da época e que se encontrava explícito nas orientações de Von Martius para a operação historiográfica dos membros do IHGB147 A Europa mais especificamente Portugal com tudo o que significava em termos de cultura e civilização deveria ser o modelo ao qual se apegaria a nova Nação onde as diferenças raciais não eram tidas como elementos dissonantes e excludentes Bem ao contrário era o processo civilizatório que unificava tais diferenças pois Se da união nasce a força da desunião somente fraqueza resulta e o maior ascendente que em todos os países tem tido a civilização sobre a negrarias Ao abordar o concurso dos negros para a obra colonial e nacional Varnhagen se limitou a registrar que a oferenda do povo africano seria os pés e braços para o trabalho na colônia repetindo a máxima conhecida do missionário jesuíta André João Antonil Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente In ANTONIL André João Cultura e opulência do Brasil Belo Horizonte Itatiaia São Paulo EDUSP 1982 p 89 146 Varnhagen tinha consciência disso mesmo sabendo da força da sua obra e não poucas vezes refez os caminhos da escrita e reescrita da sua História geral do Brasil bem como na produção de outros escritos como a Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654 e a Historia da Independencia do Brasil até ao reconhecimento pela antiga metrópole comprehendendo separadamente a dos sucessos occorridos em algumas províncias até essa data 147 A respeito bem nos ensinara Odália que foi sobre a estrutura racial que dissimulava uma realidade de estrutura de classes que convergiram todos os esforços de interpretação da história de parte significativa dos intelectuais brasileiros do século XIX e das primeiras décadas do século XX demonstrando de maneira eloqüente que em primeiro lugar uma opção de sociedade já havia sido feita tendo como paradigma a sociedade européia e em segundo que essa opção era também uma forma de integração a essa sociedade integração que demandava uma metamorfose dos elementos espúrios da estrutura racial índios e negros pelo remédio da fusão ou miscigenação racial Contudo se num primeiro momento a pura e simples fusão racial parecia conduzir pacificamente à opção feita num segundo a rejeição sofrida por essa solução tranqüila pela comunidade científica européia à qual repugnava o hibridismo racial do homem brasileiro obrigava a uma reavaliação do nosso passado colonial de maneira que se amoldasse às condições impostas pela opção feita Assim se a opção por um modelo europeu de sociedade parecia ser apenas conseqüência natural de nossa experiência histórica os obstáculos teóricos que surgiram da comunidade científica européia deveriam ser analisados ratificados e principalmente retificados em razão daquela mesma experiência Cf ODÁLIA Nilo Op cit p 19 69 barbárie vem de que esta composta de elementos dissolventes não se une ao passo que a nação civilizada que com ela se põe em contacto tem nas suas mesmas leis os laços de união148 A partir de tal consideração na escritura da sua Historia geral do Brasil que Varnhagen elegeu como um dos principais mitos fundadores da nacionalidade brasileira a união de raças149 díspares entre si mas comuns em finalidades seja o estabelecimento de uma nacionalidade que se reconheceria com uma herança única a portuguesa A tríade brancosnegrosíndios proposta por Martius encontrou final guarida na obra varnhageniana para quem esta união era resultante da vitória da ordem e da civilização brancas numa América marcada pela mestiçagem Eis o segundo aporte para respaldar sua tese sobre o projeto civilizatório português a atividade bélica na qual se uniram os diferentes elementos étnicos para defender o projeto português constituir uma nova sociedade e formar um povo Realizavase finalmente no texto do historiador do IHGB o ideal civilizatório tão arduamente defendido Com esse fito Varnhagen fez da Batalha dos Guararapes o lócus de congregação das distintas etnias o lugar onde a civilização se faria vitoriosa ao soterrar as diferenças para se forjar identidade e lealdade em torno de um projeto comum o projeto colonial português Outros heróis surgiram em sua narrativa e que representariam essa união só possível no contexto do ideal civilizador Vidal de Negreiros Felipe Camarão e Henrique Dias eram os guerrilheiros ideais para o sucesso da empreitada militar contra o inimigo bem como os varões ilustres que formariam a nação brasileira Estes eram os eleitos de Varnhagen para servirem a sua causa a invenção de um mito fundacional para o Brasil Ao menos era a verdade que ele desejava acreditar ou fazer crível 148 Ibidem secção XLVII p307 149Varnhagen foi o primeiro ideólogo a formular concretamente a teoria do branqueamento da população brasileira Dessa união de raças nosso autor construiu a identidade comum do Brasil bem representada no mestiço mas que ao cabo de algumas gerações se tornaria novamente na essência do europeu vencedor Purificado depois de passar pelas agruras da miscigenação seriam eliminadas as excrescências desse cruzamento espúrio e retificados os erros históricos dentro de uma nova realidade histórica Ao novo homem branco assim nascido competia tomar consciência de seu ser ao conhecer de que etnias surgiu como o seu caráter foi forjado no combate na conquista e reconquista da terra no desbravamento dos sertões e florestas O ideal do branqueamento da raça é a culminação de um processo de fazer do Brasil uma sociedade branca e européia ideal permanente que aqui se revela sob a forma de um confronto de civilização e que vai se matizando diferentemente com o decorrer de nossa história 70 A unidade etnicorracial vislumbrada no episódio da invasão holandesa ajudaria no processo de consolidação da unidade territorial tão necessário no momento da escrita da HGB Esta preocupação de Varnhagen ficou evidente nas passagens em que estas personagens figuravam sendo sempre destacados pela associação à causa da civilização bravura e disciplina e capacidade de seguir a liderança Além disso tinham importância pela forma como comandavam seus homens na condição de militares e também de pedagogos pois suas tropas eram formadas por suas gentes E ao liderálos no campo de batalha também ensinavam qual era o caminho da civilização cujas regras se amparavam em grande parte nas normas da cristandade católica Estes homens eram exaltados por Varnhagen150 porque lutaram com bravura como coadjuvantes ao lado dos colonos portugueses contra o inimigo estrangeiro e a favor do projeto de Portugal 150 Em sua narrativa de variadas passagens percebese que naquele acontecimento histórico a guerra de expulsão dos holandeses no qual se congregaram três distintos grupos étnicos ao elemento português foi dado um lugar especial e mais elevado como grande autor da nação sendo os demais meros coadjuv antes Sendo negro Henrique Dias e índio Felipe Camarão Varnhagen faz questão de demonstrar certa inferioridade bélica desses comandantes ao destacar que A gente que desembarcara com Henrique Dias havia sido encontrada à borda de um mato pelo capitão das guardas de Nassau Carlos de Toulon que com setecentos homens fora buscála e lhe fizera um grande número de prisioneiros ficando no campo oitenta e sete mortos e constando que havia sido ferido o próprio Henrique Dias Do Camarão sabemos que se achava às margens do Uma com os seus guerreiros quando ao aproximarse o coronel Koin com mil soldados se retirou mui a tempo pelos matos evitando combate Ibdem secção XXXI p 312 Em relação ao negro Henrique Dias Varnhagen não apresentou tantos dados biográficos mas seguiu a mesma linha de raciocínio procurando mostrar seus valores como soldado e fiel seguidor dos ideais coloniais Mesmo ao elogiálo o historiador sorocabano não deixou de registrar as marcas herdadas da sua condição racial que por vezes se manifestavam no guerreiro Henrique Dias era bravo fogoso e ás vezes desabrido e mais valente para obrar que apto para conceber Naturalmente loquaz desconhecia o valor do segredo e discrição nas empresas mas era dotado de coração benévolo e uma alma benfazeja Ibdem p 16 Na descrição do índio Camarão ficou bem perceptível a sua visão do que significava esta adesão à cultura européia como uma saída para a condição de barbárie D Antonio Filippe Camarão traduzindose este apelido do de Poty que levava como selvagem e que significa o mesmo unido á causa da civilização desde o estabelecimento da capitania do Ceará não cessara jamais de prestar serviços importantes já contra os franceses na costa do norte já contra os holandeses na Bahia e em Pernambuco já contra os próprios selvagens Ao vêlo no fim da vida tão bom cristão e tão diferente do que fora e do que haviam sido no mato os seus pais não ha que argumentar entre os homens com superioridade de gerações sim deve abismarnos a magia da educação que ministrada embora à força opera tais transformações que de um bárbaro prejudicial á sociedade se pode conseguir um cidadão útil a si e à pátria O ilustre comendador Camarão era mui bem inclinado comedido e cortês e no falar mui grave e formal e consta que não só lia e escrevia bem como que não era estranho ao latim Era um tipo do soldado modesto que combate pela pátria na ideia de não ter feito mais do o seu dever Ibdem p19 Ao longo da narrativa chefes militares como André Vidal de Negreiros ganhariam em quantidade de páginas e de elogios maior destaque Vidal de Negreiros na sua leitura era homem tão superior que necessitaria um Plutarcho para aprecialo A sua biografia era também muito mais profícua em dados e fatos Filho de portugueses branco nascido no Brasil Varnhagen abre nota de rodapé com os elogios constantes na obra de Barleus sobre a atuação de Vidal de Negreiros no 71 Sendo as nações constituídas como narrativas como afirmou Said151 é corrente que estas congreguem nas suas tramas a dimensão mítica procurando fabricar um começo sublime Esta concepção de história articulada com as tradições inventadas e seu mito fundador permitiu a Varnhagen interpretar o Brasil como um só corpo territorial étnico e político e que suas instituições marcadamente plurais encontrassem uma unidade quase natural quando pensadas à luz do passado colonial Nessa dimensão mítica aquele historiador inventou um começo sublime onde as diferenças deixaram de existir para ensejar um povo que deveria tomar consciência de que os seus diferentes sujeitos raciais formavam uma suposta unidade e essa unidade expressava a realização final do projeto civilizatório português Com tais argumentos Varnhagen compôs o mito fundador do Brasil152 de um Brasil português e não de um Brasil brasileiro A proclamada união das três raças em sua ótica celebrava a dominação portuguesa com o consentimento e a colaboração da população nativa sendo essa dominação superior a todas as demais posto que derrotara índios negros franceses e holandeses A superioridade proposta na narrativa de Varnhagen baseavase na predominância de valores que fizeram do português o vencedor dentro de um processo histórico idealizado no qual estava o homem branco conquistador e católico e a barbárie indígena e negra A idealização do vencedor foi feita pela contínua referência à civilização superior que impôs seus padrões incluindose aí os traços característicos de seu portador o homem branco ele mesmo produto de condições históricas e de concepções idealizadoras de seu ser e de sua atuação na história A mistura ali não era a possibilidade da existência da diversidade era a adesão ou rendição ao projeto colonial europeu branco cristão católico masculino Significava enfim a conflito Vidalius homo audax callidus e prout animum intendisset pravus aut industrius in Parahyba terris populationibus incendisque grassatus maximus damnis afflixerat Lusitanorum molas agrosque cannis passim sachareis consito Ibdem secção XXXI 14 e seguintes 151 SAID Edward Wadie Cultura e imperialismo São Paulo Companhia das Letras 2005 p 13 152 A associação desta imagem do panteão das três raças como marco fundador da idéia do Brasil como paraíso racial como se percebe por exemplo na produção didática brasileira repete a lógica da necessidade de sempre se buscar uma origem primeira uma mitologia e uma tradição no passado como forma de legitimação A propósito dessa criação ver RIBEIRO Renilson Rosa Colônias de Identidades Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil Dissertação de mestrado em História Cultural Universidade Estadual de Campinas 2004 72 aceitação da legitimidade da força e autoridade do povo conquistador ao qual ele se esforçava para representar a partir de variados adjetivos e fatos Essa pureza arquitetada na História Geral do Brasil concretizaria na verdade o viés principal de sua obra mostrar o Brasil como uma continuidade de Portugal nação cuja superioridade racial bélica cultural já fora bem provada nas guerras de conquista de dominação e de civilização do território denominado não como América portuguesa mas como Brasil desde seus primórdios Neste sentido podese constatar que a narrativa da história do Brasil nos moldes projetados por Varnhagen não foi somente a história de uma conquista mas foi também prioritariamente a constatação discursiva da dita superioridade de uma cultura de uma civilização de um modo de vida e de um pensamento sobre outras formas rotuladas de primitivas que acabam por ser interpretadas como um estado de barbárie No exercício de mostrar o Brasil como fruto dessa superioridade insistiu aquele autor em ser o estado imperial comandado por D Pedro II o sucessor de Portugal na América e que somente a colonização lusitana poderia ter garantido a unidade nacional o que bastava à historiografia imperial para desqualificar as outras experiências coloniais Mostrava assim sua fidelidade ao imperador e aos seus antecessores diretamente envolvidos na grande obra de civilização do Brasil 23 A admirável monarquia Bragantina A leitura da HGB parece desnudar de forma insistente a fartura de herois criados por Varnhagen com o fito de solidificar a proposta mestra de sua obra seja a união de Brasil e Portugal Seus heróis no entanto não se limitaram aos súditos portugueses empenhados na tarefa colonizadora sobre os quais nos reportamos no item recém concluído Acima e para além daqueles existiriam heróis maiores capazes de vislumbrar o futuro e de traçar estratégias para realizar planos que dignificassem o Brasil permitindo a sua existência enquanto nação que agora buscava se reconhecer como una imbatível autônoma Para esse fim Varnhagen se esforçou em convencer a partir de seu texto que a essência que o Brasil buscava naquele momento estava em seu passado mítico desde a sua origem primeira unificado contínuo e eterno153 Para tanto deverseia compreender que os 153 Cf HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Rio de Janeiro DPA 2001 p 53 73 tempos coloniais foram tempos do nascimento da nação nos quais o Brasil fora gestado em sua essência pela vontade e poder dos reis operosos da dinastia bragantina cujo herdeiro assumira o trono brasileiro Tais tempos foram mostrados por Varnhagen como um período de labor de realizações de sonhos e determinações de uma monarquia empenhada no sucesso da empreitada colonial A existência da nação datava de 1500 com o descobrimento do Brasil pelos portugueses período que atingira seu ápice em 1808 ano da vinda da família real para o Brasil para ele data a ser celebrada com júbilos posto que destacasse o Brasil entre as demais nações do continente conferindolhe um caráter semelhante a de outras nações européias Completavase ali a obra colonial assim como se iniciava a transformação do Brasil em corpo político autônomo 154 sob o legado de uma paternidade portuguesa e bragantina de todas as formas possíveis elogiada por nosso autor para quem A madureza da independência procederia da carta régia sobre a abertura dos portos e por conseguinte ao mês de janeiro de 1808 com mais glória para o Brasil que destarte remontou a sua emancipação colonial em época anterior a de todas as repúblicas continentais hispano americanas155 Para Varnhagem foi a vontade do então príncipe regente D João VI ao instalar sua corte no Brasil que permitiu o amadurecimento da nação tornandoa independente com a abertura dos portos e a elevação em 1816 a Reino Unido Sob seu reinado o Brasil perdera o estatuto de colônia equiparandose ao próprio reino abandonado pelo então príncipe regente por vontade própria mesmo que num momento de perigo para vir reinar no Brasil Essa emancipação fora feita sem lutas nem discórdias de forma pacífica a demonstrar que as esporádicas sublevações de colonos não tinham sentido diante da magnanimidade de D João VI 154 Segundo François Hartog para os historiadores franceses do século XIX à semelhança de Varnhagen no Brasil a nação é ao mesmo tempo uma evidência uma arma política um esquema cognitivo e um programa histórico Ao longo de todo o século os historiadores tentaram entender este momento fundador e portanto inscrevêlo e darlhe sentido no longo percurso da história In HARTOG François O século XIX e a história o caso Fustel de Coulanges Rio de Janeiro Editora da UFRJ 2003 p 24 155VARNHAGEN Francisco Adolfo de História da Independência do Brasil São Paulo Melhoramentos 1922 p 241 74 O período joanino no Brasil foi construído de forma especialmente favorável no texto de Varnhagen que elogiou à exaustão a atuação de D João VI criador e ordenador das condições para o estabelecimento do Brasil como corpo político autônomo Foi o seu governo que oxigenou as acanhadas relações sociais até então existentes no Brasil que melhorou as cidades insalubres que estimulou a cultura que rechaçou as insatisfações que uniu e transformou habilitando a antiga colônia à condição de autônoma Para o visconde de Porto Seguro em razão de sua administração o avô paterno de D Pedro II era se não o primeiro imperador ao menos o verdadeiro fundador do império do Brasil por ter lançado os alicerces da obra em que seu filho e neto iriam depois reinar A pretensão de construir o Império do Brasil era documentada por Varnhagen com o manifesto de guerra feito à França por D João em 1º de maio de 1808 Nessa declaração teria o regente afirmado que no Brasil iria criar um novo império citação bem destacada pelo historiador paulista como prova de seu argumento Destarte Varnhagen construiu em sua narrativa um ambiente propício à definição do heroísmo que pretendia solidificar na figura de D João VI Instalado no Brasil com sua corte reinando dos dois lados do Atlântico D João foi mostrado trazendo para a mesma como face opositora ao estado de emancipação do Brasil as exigências dos revolucionários do Porto que ao contrário dos desejos do rei desejavam submeter o Brasil ao antigo estado de colônia humilhando espoliando destruindo a nação criada por D João VI com sua presença e seus atos inovadores As cortes de Lisboa na sua sanha liberal foram mostradas na HGB como o elemento responsável pela retirada de D João VI e de sua família assim como pela dissolução do Reino Unido efetivando uma nunca pretendida separação entre Brasil e Portugal Estava já lançado o pomo da discórdia mas como se as cortes não quisessem que de forma alguma se questionasse a todo o tempo a procedência dele não parou nas suas providências de opressão Para si haviam sido liberais haviam abolido a inquisição proclamado a imprensa livre a negação do veto e dos privilégios eclesiásticos e seculares e eis que começam sem esperar ao menos a reunião dos deputados do Brasil a legislar contra este estado isto quando a província e corte do Rio de Janeiro sofria dolorosamente pela falta de subsídios e falência do banco e quando o príncipe regente escrevia do Rio a seu augusto pai lastimando sua situação e falta de meios para acudir às 75 despesas da sua corte sem outras mais rendas que as da província e pedindolhe inclusivamente que não comprometesse a dignidade de seu filho que também era a sua156 Com este enredo Varnhagen mostrou uma parcela da sociedade portuguesa os revolucionários e membros das Cortes como uma gente que se levantava audaciosamente contra seu rei e seus propósitos coagindoo a e atormentandoo com o fito de submetêlo as suas vontades para assim ganhar vantagens Ele não se aprofundou em buscar as razões pelas quais D João VI se submetera àquelas pretensões ao deixar o Brasil submisso à vontade das cortes eximindose de toda e qualquer responsabilidade visto que El rei amava muito o Brasil e viase nele bastante querido157 Ao mesmo tempo em que Varnhagen criou a figura de um monarca determinado amado pelo povo do Brasil profundo conhecedor da arte da política e estrategista por excelência preocupado com as coisas do Brasil nosso historiador criou mesmo a contragosto o povo português como contrário aos desejos de seu rei As lutas liberais na narrativa de Varnhagem foram do interesse apenas dos portugueses voltadas apenas para as suas benesses e não para o rei para seus herdeiros para a dinastia de Bragança e muito menos para o Brasil Mesmo sem querer destoando do seu enredo primeiro em mostrar sempre o Brasil como uma extensão de Portugal Varnhagen arquitetou os portugueses vintistas como uma gente que não amava o Brasil para além dos seus interesses pecuniários Quem amava o Brasil era a dinastia admirada pelo historiador cujas pretensões sempre foram de soerguimento de transformação de melhorias para com aquela parte da América Em sua narrativa com o fito de mostrar o quanto os Bragança amavam o Brasil preocupandose com o seu futuro caberia a D Pedro príncipe herdeiro concretizar a missão iniciada pelo pai monarca que levaria seu projeto de criação de um império adiante dandolhe ordens e instruções de como proceder A partir do regresso da família real e das pressões das Cortes D Pedro seria o protagonista do processo de independência soerguendose contra as mesmas Foi desse modo aclamado como homem íntegro e corajoso pelo historiador príncipe altivo capaz de realizar o destino do Brasil ao evitar seu regresso à condição de colônia Diante das ameaças das Cortes os levantes nas diferentes 156 Ibidem p 399 157 Ibidem p 417 76 partes do Reino e os confrontos entre brasileiros e realistas o D Pedro descrito por Varnhagen se sobressairia como liderança e única via de se preservar a integridade do Brasil evitando o caos vivenciado pelas excolônias espanholas tomadas pela onda republicana que se fragmentaram em suas lutas pela independência 158 A opção por ficar no Brasil era tida como a mais acertada para o bem da futura nação uma vez que para o historiador monarquista significava a manutenção da casa reinante da ordem e da unidade Não faltaram Portugueses que vissem nesta resolução do príncipe desobediência deslealdade e até traição entretanto é certo que ele não fez mais que seguir os impulsos da prudência e a recomendação de seu próprio pai antes de partir para a Europa A agitação no Brasil não podia ser maior Abandonar nesta conjuntura aos furores das tempestades políticas a terra que o hospedara e a seu pai no momento do perigo deixar entregue aos horrores da anarquia a pátria dos seus filhos a joia mais preciosa da coroa que por direito de sucessão lhe devia um dia caber fora mais que deslealdade a seu pai fora ingratidão ao país acolhedor fora um crime ante a humanidade O príncipe seguiu o partido que devia seguir mas esta generosa resolução era já um primeiro ato de rebeldia aos decretos das cortes tudo o mais que se segue foi consequência lógica dele Toda a filosofia se abisma e cala onde há fatos tão contraditórios como sobrenaturais e o historiador confuso ao buscar a explicação das causas e dos efeitos se prosternam ante a sábia Providencia que nos havia destinado o príncipe D Pedro para personificar no ato da separação a integridade do Brasil159 Observese que para Varnhagen a Providência teve ação em relação à decisão principesca de ficar no Brasil rebelandose contra as ordens das cortes e decidindose ao enfrentamento de modo a manter a integridade do Brasil A independência assim não seria apenas um fato político originado por interesses contraditórios mas uma ação divina que destinara a D Pedro a honra de ser o primeiro imperador do Brasil O sobrenatural se 158 Para Martha Victor Vieira a unidade da nação foi propiciada não pelo papel desempenhado por D Pedro Foi a política das Cortes que facultou a união das províncias a favor da emancipação que se irmanaram em torno de um projeto que dispersava as diferenças entre aqueles territórios permitindo uma aproximação que nunca existira durante a colônia Em Varnhagen essa aliança das províncias a união do Brasil num só Estado congregando de norte a sul províncias tão distantes entre si foi beneficiada pela oposição às atitudes das Cortes pelo príncipe e não como um ato político da coletividade Cf VIEIRA Martha Victor Varnhagen um intelectual monarquista Revista Intellectus v 2 nº 5 p 112 2006 p 7 159 Ibidem p 427 77 tornou sujeito ativo na narrativa de Varnhagen no seu esforço de construir a figura de um herói nacional que pôs em risco a própria vida em defesa da terra que o acolheu legado de seu pai e herança de seus filhos Toda a vontade do príncipe resultou também de um poder maior que findou por sacralizálo como o principal agente da emancipação brasileira iniciada por seu pai A trama em torno das ações e reações do príncipe regente no processo de independência do Brasil foi posta em primeiro plano na narrativa de Varnhagen embora ele não se furtasse a apresentar diversos sujeitos envolvidos no episódio A consolidação da emancipação foi narrada enfim como fruto dos eventos políticos coordenados por D Pedro mesmo que apoiado pelas autoridades do Estado O Brasil de Varnhagen bem como o novo Império nos trópicos teria sido obra das mãos do D Pedro I o grande herói do ato político juntamente com seu pai os grandes personagens tradicionalmente presentes nas páginas dos manuais escolares e memorizados há tempos pelas crianças e jovens nas aulas de História160 Se o período colonial fora fértil na produção de heróis a narrativa da emancipação política só comportava os nomes de D João VI e D Pedro I cuja biografia se confundiria com a própria história da fundação do Império do Brasil nas páginas da primeira edição da História geral do Brazil e posteriormente da História da Independência do Brasil Para o visconde de Porto Seguro o Sete de Setembro foi a recoroação de um projeto de longa data remontando os feitos da dinastia dos Bragança protetora do Brasil A independência proclamada por D Pedro era em sua narrativa o único caminho para o Brasil Observese o quanto aquele historiador mascarava a realidade da própria nação ao estipular a inexistência da ruptura entre a realidade da colônia e o novo império formado na pósemancipação161 Para aquele homem de letras D Pedro proclamara a emancipação 160 Para uma reflexão sobre o papel dos heróis nacionais no ensino da História como parte do projeto de fabricação da identidade nacional brasileira conferir MICELI Paulo Celso O mito do herói nacional São Paulo Contexto 1994 e FONSECA Thais Nivia de Lima História e Ensino de História Belo Horizonte Autêntica 2003 161 Segundo Wilma Peres Costa é relevante observar que a continuidade enfatizada por Varnhagen decorreu de uma postura política e não do reconhecimento de algo realmente existente pois ele próprio reconhecia que na época da Independência a unidade não existia Bahia e Pernambuco algum tempo marchavam sobre si e o Maranhão e o Pará obedeciam a Portugal e a própria província de Minas chegou a estar por meses emancipada Cf COSTA Wilma Peres A Independência na historiografia brasileira In 78 em resposta aos apelos paternos por ser um bom filho que em tudo adulava o pai obedecendo fielmente aos seus ditames Era mostrado assim como portador de um caráter brilhante que lhe concedia coragem e disposição para defender o Brasil o que vem a demonstrar o quanto era importante para Varnhagen a defesa de D Pedro I 162 Se não era possível a manutenção do Reino Unido que fosse preservada a emancipação do Brasil completo em sua autonomia e preservado em sua integridade 163 Esta data de celebração não significava para aquele historiador a ruptura com Portugal pois ali se mantinha como rei D João VI Significava portanto a manutenção de um estado já deliberado em 1808 que os dois monarcas não deixaram soçobrar mantendo um projeto há muito acalentado segundo as palavras de Varnahgen O Brasil conta ainda hoje e contará eternamente o dia 7 de setembro como o primeiro do ano no calendário das festividades nacionais E com fundamento Nesse dia nasceu a nação renascendo são e salvo o reino que emancipara El rei D João VI o principado que criara D João IV o estado que fundara D João III Tambem por todas estas razões devera Portugal festejar este dia pois de certo que sem a resolução tomada em 7 de setembro de 1822 não poderá regozijarse de ver hoje tão próspero e alimentando em grande parte o seu comércio e marinha mercante este seu filho descansando à sombra do solo bragantino e seguro esperamos em Deus de correr a sorte de outros que não foram tão afortunados O Brasil não deveu a D Pedro a sua emancipação que essa consumada estava desde 1808 e era impossível retroceder até em vista do tratado celebrado em 1810 com Inglaterra deveulhe porém a sua integridade e deveulhe a sua integridade e deveulhe a monarquia que foi símbolo de JANCSÓ István Org Independência história e historiografia São Paulo HUCITECFAPESP 2005 p 345378 162 A preocupação em fazer justiça à memória de D Pedro I era apresentada pelo próprio Varnhagen nas suas cartas ao Imperador D Pedro II Era necessário começar por não me constituir adulador para melhor encaminhar commigo o leitor a crer o que logo depois digo em tópicos mais melindrosos e essenciais à heroicidade Como chronista poderei ser mais adulador ou panegyrista como historiador produziria effeitos negativos Creio que faço justiça ao Sr D Pedro 1º Cf Carta ao imperador D Pedro II 14 de julho de 1857 In LESSA Clado Ribeiro de Correspondência ativa de Francisco Adolfo de Varnhagen Rio de Janeiro Instituto Nacional do LivroMinistério da Educação e Cultura 1961 p 247 163 A preservação da integridade de um Brasil uno ou melhor que se desejava uno na história do Visconde de Porto Seguro é mostrada como uma realidade desde os tempos coloniais A narrativa da luta pela defesa da unidade territorial e política remontava aos tempos coloniais em episódios como a fundação do governo geral de Tomé de Souza as guerras contra os holandeses a criação do principado e a vinda da família real Assim Varnhagen buscava homogeneizar as diferenças gritantes existentes na sociedade colonial tudo no sentido de conferir sentido aos seus argumentos 79 ordem no interior e de confiança no exterior e por fim veio até deverlhe a dinastia pela sua abdicação feito muito a tempo para a poder salvar164 Na sua HGB o Brasil era um legado transferido entre dinastias e 1822 significava apenas uma mudança de um tempo em que se encaminhava junto com Portugal para um tempo em que se estava pronto para construir seu próprio futuro 165 D Pedro I havia preservado a integridade da nação que seus antepassados originaram e cabia ao seu filho D Pedro II consolidar o Império mantendo a ordem a unidade e o progresso Com o primeiro imperador a independência e o império ficam proclamados assim como a D Pedro II legítimo herdeiro do legado do pai e avô consagrado na existência dos chamados símbolos da pátria Em nome deste novo fato a independência o passado deveria ser reorganizado e interpretado não mais como parte do Império português mas do nascimento político do Brasil Assim pelo ideal centralizador do qual Varnhagen era portavoz e artífice da história os Bragança inauguraram dois importantes momentos na América a emancipação sem lutas nem dissídios e a instalação de uma monarquia no continente fazendo do Brasil um reino antes mesmo que as demais colônias ali existentes pudessem exigir sua autonomia166 Sua estratégia em mostrar que o Brasil se tornara corpo político autônomo desde 1808 com a abertura dos portos e a instalação da corte é reveladora da sutil intenção em colocar o país na dianteira das demais nações latinoamericanas posto que emancipada bem antes que as demais Ao mesmo tempo escamoteava a criação das repúblicas latinas tirando lhes visibilidade diante da implantação de um império monárquico no continente Na medida em que traçava a diferença entre o Brasil uma monarquia e os demais países do continente todos republicanos Varnhagem definia quem era o outro a partir do critério 164 Ibidem p 438439 165 ARAÚJO Valdei Lopes de A experiência do tempo conceitos e narrativas na formação nacional brasileira 18131845 São Paulo HUCITEC 2008 p 20 166No contexto somente os EUA já haviam se tornado independentes desde 1776 Em relação a chamada América Latina as lutas pela emancipação tiveram início desde 1809 no Equador em Venezuela 1810 Colômbia 1810 e México 1810 adentrando os anos seguintes com as declarações da Argentina 1815 Paraguai 1811 e Chile 1818 em 1821 com a emancipação do Peru República Dominicana Guatemala e Panamá em 1825 da Bolívia e em 1828 do Uruguai Os demais países que se formaram depois dessa época tal como seus predecessores optaram pelo sistema republicano em franca diferenciação com o Brasil um império nos trópicos 80 político das diferenças quanto às formas de organização do Estado pois em sua leitura de mundo os grandes inimigos externos do Brasil eram as repúblicas latinoamericanas Os vizinhos latinos ao corporificar a forma republicana de governo se tornavam o outro que não se deveria ser a barbárie que se deveria rechaçar do destino brasileiro e contra a qual se lutava Portugal nunca seria o outro bem ao contrário era a formação a continuidade o exemplo Do mesmo modo ao salientar 1808 como o ano da emancipação política aquele autor evitava respaldar outros nomes envolvidos no processo como os irmãos Andrada principalmente José Bonifácio de Andrade e Silva 17631838 constituído como o Patriarca da Independência167 no imaginário republicano alguns anos depois Para o visconde de Porto Seguro o enredo histórico para a compreensão da criação da nação exigia que a mesma fosse obra da realeza lusitana e nunca resultante de uma luta enfurecida de civis com finalidades distintas dos dois lados do Atlântico que apartara o Brasil de Portugal O estabelecimento de uma monarquia constitucional nos trópicos governada por um herdeiro natural da casa dos Bragança confirmava o discurso da continuidade da emergência do Brasil como um legado da Coroa portuguesa de um processo iniciado desde o reinado de D João IV e que durou até o de D João VI e concretizado pelo regente filho D Pedro o primeiro imperador do Brasil168 Esta monarquia seria a responsável de 167 Varnhagen seria o representante de uma rede historiográfica antipatriarca apresentando José Bonifácio com ambigüidade e reservas A sua dessacralização era uma tarefa não apenas política e ideológica mas também uma questão de família uma vez que José Bonifácio havia ofendido o pai de Varnhagen na época da fundição de Ipanema em Sorocaba Não seria por mero acaso que a Historia geral do Brazil teria uma seção inteira dedicada à reabilitação da memória do tenentecoronel Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen 17831842 seu pai enquanto o patriarca era lembrado em uma nota quase no fim do tomo II O pai e o patriarca são personagens em tramas urdidas pela pena de Varnhagen Nos dois casos estão expressos os limites da imparcialidade de um historiador questão segundo Hannah Arendt decisiva no século XIX para toda historiografia que procurava se afastar da poesia e da lenda e que no entanto era difícil de reconhecer A respeito ver CEZAR Temístocles Américo Em nome do pai mas não do patriarca ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen História vol 24 n 2 p 207215 2005 168 Segundo Michel Foucault este tipo de narrativa histórica serviria para fortalecer o poder do soberano Ela seria uma espécie de ritual do poder mostra que o que os soberanos e os reis fazem jamais é vão jamais inútil ou pequeno jamais abaixo da dignidade da narrativa Tudo quanto eles fazem pode e merece ser dito e é preciso guardar perpetuamente sua lembrança o que significa que do menor feito e gesto de um rei se pode e se deve fazer uma ação brilhante e uma façanha e ao mesmo tempo inscrevese cada uma de suas decisões como uma espécie de lei para seus súditos e de obrigação para seus sucessores Michel Foucault Em defesa da sociedade Curso no Collège de France 19751976 São Paulo Martins fontes 2000 p 77 78 81 acordo com a interpretação de Varnhagen pelo estabelecimento de uma sociedade pela promoção do progresso a manutenção da ordem a preservação da unidade territorial e a defesa do projeto civilizacional europeu Era a essa monarquia que o Brasil deveria agradecer sua existência no rol das nações civilizadas do mundo posto que pela determinação e coragem de seus membros saíra do abismo da barbárie para o panteão da modernidade sendo forjada para ser grande Por outro lado aquele historiador também pensava Portugal com cuidados entendendoo como um estado mui pequeno para deixar de ser influído na Europa pelas potências maiores169 A ligação com o Brasil soava diante dessa consideração como proveitosa para as duas partes posto ser a possessão ultramarina um lugar especial para o destino português cujo comércio e a navegação foram mantidos por longos séculos graças à inovadora produção da colônia americana Todavia a ligação BrasilPortugal que mais interessava àquele intelectual tinha esteio no parentesco real da dinastia Bragança a quem Varnhagen devotava profunda admiração 170 sendo sua HGB uma expressão inconteste desse sentimento Não obstante ao narrar o governo de D João VI Varnhagen não se eximiu de algumas críticas não de críticas ao rei mas aos seus assessores171 numa tênue tentativa de mostrar imparcialidade Se houve desventuras em seu governo estas se deveram aos fracos dotes dos assessores do rei nunca ao próprio descrito sempre como o Enéias do nosso império numa alusão ao herói troiano Para Varnhagen D João teria sido o principal protagonista das tramas da independência do Brasil o verdadeiro pai da nação brasileira ao libertála de um Portugal que queria submeter seu rei humilhando sua monarquia D João VI era 169 Ibidem secção LIV pag 231 170 Lembremonos ser o Brasil ao tempo da escrita da HGB comandado por um Bragança D Pedro II e o trono português estar ocupado por D Pedro V 18531861 filho de D Maria II primogênita de Pedro I e brasileira de nascimento Havendo lançado o primeiro volume da História Geral do Brasil em 1854 e o segundo em 1857 evidenciase que sua escrita tenha sido influenciada pela lamentável e trágica morte da soberana portuguesa ocorrida em 1853 num dia aziago para os Bragança 15 de novembro A ligação entre os irmãos é afirmada na correspondência imperial que registra a comoção causada pelo luto nos irmãos residentes no Brasil 171 A grande crítica de Varnhagen é dedicada ao ministro dos negócios D Fernando José de Portugal 1752 1817 o marquês de Aguiar por ter cometido erros inadmissíveis para a sua função especialmente tendo conhecida experiência administrativa como governador da Bahia e vicerei do Rio de Janeiro Infelizmente porem o marquês de Aguiar aliás prudente íntegro e sensato com todos os seus anos de mando no Brasil desconhecia o país em geral era pouco instruído e sobretudo nada tinha de grande pensador original para ser o estadista da fundação do novo império Minguado de faculdades criadoras para sacar da própria mente e da meditação fecunda as providências que as necessidades do país fossem ditando o marquês de Aguiar parece ter começado por consultar o almanaque de Lisboa e à vista dele terse proposto a satisfazer a grande comissão que o príncipe lhe delegara Ibidem p 316 82 visibilizado pelo discurso moralista do visconde de Porto Seguro como bom filho pai e rei por conta do seu fervor religioso Era apresentado como perfeito modelo de um soberano amante do povo D João era naturalmente bom religioso e justo A história de Portugal lhe chama por Antomasia o Clemente e o carinho e delicadeza com que se ocupou da augusta mae enferma e o não querer cingirse a coroa real pelo fácil meio de uma abdicação que podia insinuar nos evidencia como foi bom filho Sua devoção e ânimo religioso eram tão reconhecidos que não faltou quem chegasse a caluniálo de supersticioso De seu espírito de justiça e retidão temos exemplos patentes no modo como recompensou tantos dos seus bons servidores e nós pessoalmente recolhemos outros dos papeis originais de muitos expedientes de negócios desse tempo no Brasil que vimos e em cujas margens encontramos de sua própria letra notas suficientes para comprovar que o príncipe tinha no coração gravado sentimento de que a verdadeira missão dos reis e observar a lei e administrar justiça à grei172 Ao construir o perfil de D João VI Varnhagen procurou por intermédio de um discurso francamente conservador estabelecer um modelo de governo superior que era também português assim como fazer sua própria interpretação sobre o processo de emancipação O excelente governo de D João VI não estava apenas no seu perfil de homem bom mas na sua capacidade de manter a unidade entre as partes constituintes do Brasil e de estabelecer a ordem sufocando as insurreições locais Para o visconde de Porto Seguro a prova da habilidade de governar com a ordem e o progresso de D João VI foi a sua atuação no combate à Revolução Pernambucana de 1817 marcada pela extremada violência empregada por determinação real contra os revoltosos assunto sobre o qual tergiversou A forma como o historiador abordou a questão é denunciadora de sua parcialidade ao construir uma história de herois portugueses de reis magnânimos de governos de paternais doçuras embora incapaz de lançar olhos para as necessidades e súplicas do povo brasileiro No seu tribunal da história o rei foi ascendido à condição de herói no panteão nacional por evitar a fragmentação da futura nação enfrentando a insurreição Os revoltosos por sua vez contaminados por posições ultraliberais ideais enciclopedistas e boataria sobre os 172 Ibidem secção LII p 156 83 supostos excessos praticados no Rio de Janeiro seriam no mesmo tribunal varnhageniano condenados sem piedade por atentarem contra a honra do rei Em defesa deste destacou o ato de perdão de D João VI contra aqueles a quem chamava de pérfidos os corifeus da revolução173 que receberam a régia clemência advertindo serem os reis a imagem do Deus de misericórdia O modo como Varnhagen se impunha como julgador de uma questão característico da cultura historiográfica de sua época ajudou a conferir legitimidade à sua narrativa pautada em veredictos condenatórios aos que atentassem contra os interesses da pátria tão amada pela benquista monarquia portuguesa Ao sensato leitor brasileiro que tenha refletido no estado próspero do Brasil que se colige de quanto fica referido nas precedentes secções deixamos que sinta e decida em consciência se lhe parece que haveria motivos para que em alguma extensão maior do Brasil se intentasse uma revolução contra o benéfico Sr D João e contra a integridade do seu predileto reino de novo criado então verdadeiramente centro e cabeça de um grande império maior que os dois romanos que estendia seu poder na atual Oceania às ilhas de Solor e Timor na Ásia aos estados de India portuguesa e à feitoria de Macau em África aos terrenos de Moçambique de dependências ao reino de Angola e às ilhas de S Thomé e de Cabo Verde e na Europa ao reino de Portugal com ilhas adjacentes de Madeira e Açores se é que estas e sobre tudo aquela se devem considerar como da Europa174 O destino do Brasil como nação segundo Varnhagen não estava em datas como 1817 e muito menos 1789 tempos de revoltas e insurreições Em nome do discurso da centralização política e da unidade territorial do Império base de sua narrativa Varnhagen desvalorizou fatos históricos ao tempo que celebrou e deu destaque a outros eventos e personagens Assim procedeu em relação à Revolução Pernambucana de 1817 bem como a Conjuração Mineira de 1789 configuradas como verdadeiras tragédias para a sociedade brasileira pelo historiador monarquista pois significavam a emergência de uma república dentro do íntegro império lusobrasileiro Como toda ameaça republicana que pairava no ar no passado e no presente ela era objeto do ataque voraz de sua pena nas páginas da 173 Ibidem secção LII p 177 174 Ibidem secção LIV p 231 84 Historia geral do Brasil e de outros escritos celebrando a retomada pelas tropas da ordem real e os julgamentos dos revoltosos tudo pela manutenção de uma nação que se queria conforme sua narrativa una e em favor da qual advertia e aconselhava Um detalhe porém se faz notar em sua interpretação sobre a formação do Brasil como corpo político autônomo Ao enfatizar as continuidades entre a colônia e a nação aquele historiador soterrou pelo discurso unificador e hegemônico as diferentes identidades que tinham se forjado na colônia Sendo a força coesiva do conjunto lusoamericano indiscutivelmente a Metrópole e o continente do Brasil representasse para os colonos pouco mais que uma abstração para a Metrópole o Brasil era algo muito concreto a unidade cujo manejo impunha esta percepção Destarte a apreensão de conjunto das partes a que genericamente se chamou de Brasil estava apenas no interior da burocracia estatal portuguesa175 Para Varnhagen no entanto o Brasil era português e queria continuar a sêlo rejeitando e se antepondo ao seu lado brasileiro Queria mesmo emancipado ser outro Portugal potência mundial grande nação imperial continuidade do grande projeto português A idéia de povo brasileiro de homem brasileiro tão necessária naquele momento crucial da formação nacional inexistiu de forma expressa no texto de Varnhagen mas podese aduzir que o autor o percebia como igual àquele existente no período colonial que tinha em Portugal sua pátria mãe visto que para aquele historiador a nação mesmo colocadas as diferenças nada mais era que uma continuidade da colônia Indispensável dizer que na arquitetura histórica efetivada por Varnhagen a homogeneidade identitária era elemento imprescindível para dar sentido a uma monarquia vista por muitos como mais portuguesa que brasileira e mais voltada para os interesses de Portugal que do próprio Brasil Essa bifurcação não servia para os fins daquele historiador para quem a idéia de totalidade de homogeneidade e de unidade era imprescindível para 175 Aqui retomamos os estudos de István Jancsó e João Paulo Garrido Pimenta que afirmam da inexistência de uma identidade marcadamente brasileira nos anos finais do século XVIII e início do XIX e nenhuma identidade política coletiva ultrapassava o regional O que havia eram identidades variadas que apresentavam três diferenças básicas a regional a americana e a portuguesa JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo Garrido Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme Org Op cit p 140 85 cobrir como se fosse o manto real o mosaico de identidades que existia no Brasil recém independente e que necessitava ser aplainado em defesa dos ideais monárquicos Para aquele autor a identidade brasileira seria uma criação portuguesa assim como o Brasil também o era e não deveria haver dissensões internas nem externas A monarquia por sua vez consagrada na figura de D João VI e especialmente D Pedro I seria o amálgama da identidade nacional criada em sua narrativa A exaltação ao imperador do Brasil também serviria para fazer lembrar o seu descendente D Pedro II a demonstrar que aquele historiador não fugia aos compromissos do IHGB com o seu mecenas176 agregandose mais uma vez aos propósitos designados por Martius Para o autor o poder esteve sempre com D Pedro I pois havia nascido para cumprir o destino de herói nacional A regência pelas lentes varnhageniana teria sido a preparação final para que o príncipe Pedro de Alcântara brasileiro de nascimento e herdeiro imemorial do nobre sangue português assumisse a liderança do Estado imperial brasileiro Ao transcrever a carta enviada por D Pedro I ao seu filho Varnhagen a transformou em uma espécie de testamento que delegava o futuro de um Império cuja história ainda estaria viva e latente esperando ser escrita Meu querido filho e meu Imperador muito lhe agradeço a carta que me escreveu eu mal a pude ler porque as lágrimas eram tantas que me impediam o ver agora que me acho apesar de tudo um pouco mais descansado faço esta para lhe agradecer a sua e para certificarlhe que em quanto vida tiver as saudades jamais se extinguirão em meu dilacerado coração Deixar filhos pátria e amigos não pode haver maior sacrifício mas levar honra illibada não pode haver maior glória Lembrese sempre de seu pai ame a sua e minha pátria siga os conselhos que lhe derem aqueles que cuidarem na sua educação e conte que o mundo o ha de admirar e que eu me dei de encher de ufania por ter um filho digno da pátria Eu me retiro para a Europa assim é necessário para que o Brasil sossegue o que Deus permita e possa para o futuro chegar àquele grau de prosperidade de que é capaz Adeus meu amado filho 176 A propósito ver GUIMARÃES Lucia Maria Paschoal Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 18381889 Revista do IHGB v 156 nº 388 p 459613 JulSet 1995 86 receba a benção de seu pai que se retira saudoso e sem mais esperanças de o ver D Pedro de Alcântara Bordo da Nau Warpite 12 de abril de 1831177 Para Varnhagen este fora o momento ideal para mostrar D Pedro I como o herói comum de Brasil e Portugal posto ter renunciado a herança paterna o trono do Brasil como forma de defendêlo das mãos dos revolucionários portugueses178 Do mesmo modo sacrificara em defesa de Portugal sua saúde e vida ao partir para defender os interesses da filha que enfrentava imensas dificuldades para assumir o trono 179 Em relação ao infante D Pedro II nosso autor insistiu em mostrálo como herdeiro do Império sendo esta a sua missão legitimada não apenas pela trajetória da dinastia bem como pela própria história daquele presente a do Segundo Reinado que deveria ser documentada organizada e escrita pelo historiador sorocabano Conclusão da Parte I A História geral do Brasil seria assim a epopéia que interpretou e legitimou o Império para o próprio Império ou seja para os diferentes sujeitos que constituíam esta comunidade imaginada Criavase de tal modo uma robusta identidade nacional atrelada a Portugal e recepcionada pelas gerações seguintes como a mais coerente história do país até então escrita por um brasileiro Varnhagen pela sua HGB foi considerado o pai da história do Brasil destacandose como o mais prolífico historiador brasileiro do Oitocento A produção histórica de sua lavra não foi superada por nenhum outro numa época que a história feita por brasileiros se limitava em grande parte à crônica Ao coligir documentação inédita e desentranhar fatos desconhecidos aquele historiador inaugurou a história nacional como bem observou o jornalista e historiador Maximiano Lopes Machado 18211895 177 Francisco Adolfo de Varnhagen Historia geral do Brasil op cit 1857 p 443 178 A respeito dessa questão sugerimos o trabalho de BITTENCOURT Vera Lúcia Nagib Da alteza Real ao Imperador O Governo do Príncipe D Pedro de abril de 1821 a outubro de 1822 Tese de doutorado em História Social Universidade de São Paulo 2006 p 145 e seguintes 179 A luta pela sucessão do trono português após a morte de D João VI não é obviamente abordada por Varnhagen Não obstante em sua História da Independência do Brasil ao narrar as negociações de reconhecimento de Portugal sobre a emancipação aquele historiador impõe ao leitor a percepção de D Miguel como um herói ao defender pelas armas a dissolução das cortes e restabelecer o poder absoluto de D João VI Posteriormente com o fito de mais exaltar a figura do bom e venerado rei D Miguel é mostrado como um fantoche político manipulado pela mãe e por um bando de conspiradores A respeito ver VARNHAGEN Francisco Adolfo Op cit p 239 e seguintes 87 Ficamos estacionários à espera que mandassem da Corte uma história completa do Brasil e a história geral foi a de Varnhagen na qual declina para os historiadores parciais o exame dos fatos relativos a cada uma das partes do todo180 Varnhagen se superou ao instituir um discurso fundador para o país numa época em que o mesmo era mais que necessário Não obstante os elogios feitos ao seu trabalho inaugural por nomes como Ferdinand Denis e Von Martius seu lançamento no Brasil suscitou protestos de alguns membros adeptos do indigenismo romântico em voga no IHGB insatisfeitos com a abordagem de seu autor em relação aos nativos Em contrapartida D Pedro concedeulhe o título de Visconde de Porto Seguro numa alusão ao lugar original onde aportaram os navegadores portugueses Apesar da crítica avassaladora ao seu trabalho Varnhagen tornouse um expressivo nome na historiografia por ele inaugurada e que findou por coroar o IHGB como o lócus por excelência da produção da história nacional nas últimas décadas do século XIX À produção daquele momento FIGUEIRA denominou de historiografia burguesa181 cuja circulação e consumo foram restritos a uns poucos que se interessavam pelo tema e com cabedal suficiente para aquisição das obras geralmente editadas e publicadas na Europa em tiragens curtas porém com formato extenso Quando a pedagogia da disciplina de História adotou os primeiros livros didáticos coube à produção do IHGB imprimir suas idéias e intenções no espaço educacional brasileiro 182 O ensino de História que se fazia pela memorização de datas e vultos nacionais sobretudo nas séries iniciais fez a história se tornar o meio mais importante de forjar a memória coletiva convertendoa em História nacional183 A proposta do IHGB se consolidou nesse momento quando a construção da identidade nacional em todos os seus desdobramentos saiu do espaço erudito para tomar os bancos escolares ali influenciando toda uma geração Assim a HGB deixou de ser uma leitura de ilustrados para ser reproduzida nos manuais durante muitas décadas notadamente pelos membros dos institutos históricos existentes 180 MACHADO Maximiano Lopes História da província da Paraíba Parahyba se 1912 p III 181 FIGUEIRA Pedro de Alcântara Ensaios de História Campo Grande EDUFMS 1997 182 A respeito ver KUHLMANN JR Moysés Raízes da historiografia educacional brasileira 18811922 Cadernos de Pesquisa vol 106 p 159171 Mar 1999 183 Cf TOLEDO Maria Aparecida Leopoldino Tursi A história ensinada sob o império da memória questões de História da disciplina História v 23 n 12 2004 88 em diversas localidades do país e que integravam a docência nas escolas e colégios brasileiros A constituição do saber histórico disciplina estratégica para o estabelecimento do substrato de formação e transmissão da idéia de nação em seu caráter pedagógico cooperou no sentido de criar uma cultura histórica cujo tom de interpretação do mundo esteve de acordo com os pontos de vista dessa elite Desse modo a arquitetura historiográfica existente na HGB foi facilmente assimilada pelos estudantes brasileiros de uma época em todas as suas dimensões A perspectiva de Portugal como pátriamãe dos portugueses como agentes civilizatórios da dinastia dos Bragança como benfeitores do Brasil findou por tornarse a cabal demonstração da irmandade que nos unia a Portugal sendo assimilada sem críticas nem discussões em seu tempo tornandose uma verdade inconteste repassada por gerações184 Gravada em primeira mão nos livros escolares do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro a história de Varnhagen serviu como um espelho para refletir as imagens existentes na HGB por todo o país Se o IHGB representou o lugar específico da produção histórica brasileira durante o período imperial não se pode dizer o mesmo daquela instituição depois que a força avassaladora do republicanismo adentrou o Brasil às portas do século XX A expulsão de Dom Pedro II causou um impacto profundo entre seus membros mesmo que entre eles já houvessem simpatizantes do novo sistema não apenas pelo simbolismo de sua proteção mas também pelo corte abrupto da subvenção do imperador tornada inexistente na república Por quarenta e um anos reinou o IHGB como espaço de produção da história oficial brasileira Só a instauração do regime republicano mudou esse estado de coisas Considerado um ninho de sebastianistas o IHGB sofreu sutil repúdio por parte dos jacobinos brasileiros o que obrigou à instituição buscar uma imagem de neutralidade entre sua produção e a vida política brasileira nos primeiros anos da república conforme observado por HRUBY185 Nesse novo contexto político outros historiadores reescreveram 184 As principais teses da História Geral do Brasil de Varnhagen vigoraram pelo século XX e podem ser identificadas sem maiores elucubrações no Livro para o Exame de Admissão ao Curso Ginasial publicado pelos governos militares na década de 60 em pleno século XX 185 HRUBY Hugo Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra A história do Brasil no IHGB 18891912 Dissertação de mestrado em História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2007 Segundo o autor essa neutralidade mesmo perseguida a todo custo foi posta à prova quando da morte do imperador em 1892 quando a república já era uma realidade A cadeira que o mesmo ocupara quando ainda freqüentava as sessões do instituto sempre fora mantida vazia Após sua morte foi 89 a história do Brasil absorvendo a discussão de nação e dandolhe novos significados A retórica foi renovada em conseqüência das novas idéias e das novas propostas de construção de outras identidades para o país coberta com um véu negro e um retrato a óleo do seu presidente de honra tomou lugar de destaque naquele espaço Mesmo quando da aproximação entre os republicanos e iagagebeanos em 1894 franqueada pela visita oficial de Prudente de Morais presidente recém empossado à sessão de aniversário do instituto mantevese o lugar de honra de D Pedro II As relações do IHGB e o governo ampliaramse desde então O fim da Revolução Federalista foi marcado pelas cordiais e respeitosas felicitações ao presidente pela pacificação no sul do país Da mesma forma ocorreu quando do reatamento das relações Brasil com Portugal em 1894 e de outros acontecimentos nacionais de forma a fixar o lugar do Instituto junto ao governo republicano 90 PARTE II TEMPOS DE MUDANÇA TEMPO DE ALTERAÇÃO DA RETÓRICA Os anos de transição do século XIX para o XX se configuraram como um momento privilegiado na constituição da história brasileira Entendido como um aglutinador de uma série de episódios relevantes que ocasionaram alterações estruturais no país e que se destacaram pela extinção da escravidão pela expulsão da família imperial e pela implantação da República o momento se distendeu aos trinta primeiros anos do novo século quando se verificaram os efeitos sociais das ocorrências do século anterior O Tenentismo o Movimento operário a fundação do Partido Comunista o Movimento Modernista foram desdobramentos do passado recente num momento ao qual chamamos tempo de mudanças mudanças que alteraram a fisionomia da nação que em pouco faria seu primeiro centenário186 Os efeitos de tantos acontecimentos se materializaram na perspectiva dos pensadores brasileiros e em sua produção187 também afetada pelos acontecimentos mundiais como a eclosão da I Guerra e a Revolução Socialista Em sua historicidade tal produção teve como destaque a tendência eminentemente crítica aliada à disposição em esquadrinhar a cultura 186 As exigências acadêmicas para a feitura desse texto não nos permitem um aprofundamento do contexto histórico que pode ser referendado facilmente em trabalhos específicos sobre o Brasil Não obstante sempre que necessário tentaremos esclarecer a circunstância no qual se verificaram tais mudanças de forma a permitir ao leitor a compreensão do momento histórico que nos serve de contexto 187 Grande parte dos literatos que lançaram obras nesse período era integrante da cognominada Geração de 1870 e seus trabalhos confluíam para temas conteúdos e possibilidades da nação da democracia das formas de trabalho e das instituições políticas no contexto da crise social e política dos anos 70 Repetiam pois o mesmo movimento português amparandose na maioria das vezes nas teorias de Oliveira Martins Eça de Queiroz e Teófilo Braga e das conferências do Cassino Lisbonense das experiências históricas da Comuna de Paris da república espanhola da crise do capitalismo do debate entre socialistas e anarquistas No Brasil este grupo liderado por nomes como os de o Machado de Assis André Rebouças Rio Branco Rui Barbosa Joaquim Nabuco Tobias Barreto Castro Alves e Sílvio Romero tinha como fito único a decifração do enigma nacional A propósito ver Cândido Antônio Formação da Literatura brasileira momentos decisivos Belo Horizonte Editora Itatiaia 1981 ALONSO Ângela Idéias em movimento a geração 1870 na crise do BrasilImpério São Paulo Paz e Terra 2002 91 nacional e darlhe orientação diversa daquela que fora comum nos tempos imperiais pois os tempos eram novos o que exigia a renovação do pensamento nacional A decifração do chamado enigma brasileiro marcou o pensamento da época assim como a ascensão de novos atores na cena mundial o que permitiu o afloramento de novas perspectivas para se ver e se pensar o Brasil que se estruturava em busca de uma nova identidade A identidade criada para o Brasil no contexto do IHGB oitocentista mostrava ter encontrado eco na memória nacional na transição dos séculos Apesar de perder aos poucos seu lugar de destaque como espaço de produção de saber188 a avaliação positiva do passado colonial e imperial assim como a crença na excelência das tradições herdadas dos colonizadores portugueses e da ação da igreja católica construída naquele âmbito ainda marcava densamente o pensamento historiográfico no início do século XX Para os defensores do modelo de brasilidade atrelado a Portugal defendido por Martius e Varnhagen a nacionalidade deveria simbolizar a defesa e a valorização do singular O novo modelo que se expandia como ideal no contexto americano era observado com desconfiança e desconforto por uma elite que secularmente miravase pelo espelho europeu e que olhava de esguelha para o estabelecimento dos EUA como um padrão para o continente A sociedade americana em ascensão fruto da colonização inglesa e do protestantismo189 não poderia ser tomada como um paradigma para o Brasil devendo prevalecer a herança secular portuguesa e católica estabelecida desde os tempos coloniais mesmo que as principais influências já houvessem se desvirtuado com o fim do sistema monárquico brasileiro Imprescindível afirmar ser esta a expectativa dos admiradores da monarquia numa forçosa tentativa de adaptação aos novos tempos 188 O pontual declínio do IHGB como instituição oficial de constituição da história nacional é ponto de intersecção da época Com a implantação da república o IHGB desdobrouse em dezenas de institutos locais inaugurados em diversos estados da federação com o fito de estudar a história desses lugares Em seu lugar firmouse a Academia Brasileira de Letras fundada em 1897 como um espaço político mais favorável aos eruditos no contexto republicano 189 A obra de Eduardo Prado A ilusão Americana é representativa dessa vertente Nela o autor negava as virtudes atribuídas ao republicanismo norteamericano tecendo uma sofisticada defesa da monarquia nacional e da necessidade de o Brasil manterse independente perante as demais nações A respeito ver PRADO Eduardo A ilusão Americana Brasília Senado Federal Conselho Editorial 2003 p 87 e seguintes Originalmente o livro foi lançado em 1893 Sua antítese tem na obra de Raul Pompeia a principal representação ao congregar e consagrar os argumentos a favor do nacionalismo republicano em sua luta marcado pelo forte sentimento antilusitano 92 Em contrapartida levantavase em coro o discurso impetuoso dos republicanos a exigir um corte abrupto com Portugal cujos laços corporificados no combatido governo de D Pedro II pareciam não ter sido extintos pela expulsão dos Bragança A presença lusa na vida socioeconômica do país no início do século XX deveria ser energicamente extirpada num esforço coletivo para quebrar as correntes que uniam ainda Brasil e Portugal para tanto incentivavamse movimentos sociais muitas vezes violentos contra os portugueses forçados a assumir a nacionalidade brasileira sob o risco de serem expulsos do país190 Para os republicanos a Europa representava um padrão falido um passado que deveria ser esquecido mormente haver um modelo a ser absorvido pela nação independente que abominava o sistema monárquico a América e a modernidade A nacionalidade seria assim para aqueles o resultado da luta contra o passado da construção de uma nova sociedade organizada politicamente pelos nacionais e na qual as classes empresariais brasileiras que apoiaram o movimento teriam destaque As esperanças no futuro por sua vez ensejavam uma terceira versão dessa recriação identitária ao tomar como base não mais a ligação à Velha Europa ou à Nova América O ufanismo das condições naturais da terra191 somado aos valores das três raças justificava tais expectativas que encontraram solo fértil na cultura local O que se deveria valorizar no novo século não eram o passado nem suas construções o que valeria a partir do novo momento era a valorização do nacional do brasileiro em sua essência de uma diversidade 190 A presença portuguesa no Brasil no início do século foi motivo de acirrados conflitos em todas as esferas sociais Vistos com desconfiança os portugueses se tornaram o cerne de algumas situações de conflito estudadas por RIBEIRO Gladys Sabina em Mata galego Os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha São Paulo Brasiliense 1989 Coleção Tudo é História Da mesma autora é válido ler A liberdade em construção identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado Rio de Janeiro RelumeDumaráFAPERJ 2001 191 Afonso Celso foi o mais poderoso representante dessa corrente com sua obra Por que me ufano do meu país disponível em wwwebooksbrasilorg Nessa o autor admoesta à p 53 Não deveis prezar a vossa terra só porque é vossa terra o que aliás bastaria Sobejam motivos para que tenhais também orgulho da vossa nacionalidade A natureza não constitui o seu exclusivo e principal título de vanglória Ousa afirmar muita gente que ser brasileiro importa condição de inferioridade ignorância ou má fé Ser brasileiro significa distinção e vantagem Assistevos o direito de proclamar cheios de desvanecimento a vossa origem sem receio de confrontar o Brasil com os primeiros países do mundo Vários existem mais prósperos mais poderosos mais brilhantes que o nosso Nenhum mais digno mais rico de fundadas promessas mais invejável Nesse mesmo texto o autor dedica um capítulo inteiro aos portugueses tecendo considerações elogiosas ao papel dos portugueses na formação nacional assim como no panorama cultural mundial o que vem provar que o antilusitanismo da época não fora tomado como referencial no pensamento daquele autor Defender o Brasil não significava mesmo em ambiente republicano execrar Portugal como queriam alguns 93 expressa não apenas na constituição de seu povo mas igualmente na própria natureza tão apreciada em sua singularidade pelos outros fossem europeus ou americanos Apesar do esforço de valorização do nacional desapegado de qualquer modelo externo parte da intelectualidade local paradoxalmente se mostrava extremamente pessimista com o destino do país imbuída nos princípios evolucionistas assentados sobre a desigualdade da raça e a realidade da miscigenação que para esses teria comprometido severamente os chamados alicerces da nação Esse enigmático panorama perpassava o pensamento nacional que buscava compreender o futuro do país com base nesses dados Em meio à defesa de modelos para o Brasil e de criações identitárias os publicistas do regime se esforçavam para escamotear as conturbações políticas econômicas e sociais dos primeiros anos da República pela crença de que a ordem e o progresso lema estampado na flâmula nacional reinariam doravante e transformariam o país192 A eclosão da primeira guerra mundial193 validou os argumentos defendidos pelos próprios republicanos de que a Europa era um território decadente em contraponto com a América os EUA modelo de civilização e do futuro que se impunha A decantada decadência europeia atrelada a um modelo de governo o sistema monárquico não deveria interessar à nova identidade desejada devendose sobrepujar o modelo oitocentista construído no âmbito do IHGB para com o passado histórico português Se a Europa era o atraso não havia 192 O movimento republicano brasileiro foi fortemente influenciado pelo Positivismo posto que aquele defendesse a exaltação das ciências e valorizasse o capitalismo industrial como mecanismos que proporcionariam o progresso da humanidade Por tal via os militares brasileiros que implantaram na marra o republicanismo tomaram como prioritária a industrialização do país e com tal fito fizeram uma reforma econômica nas primeiras semanas do governo A Política do Encilhamento como foi denominada a estratégia econômica buscava incentivar o crescimento econômico nacional por meio do crescimento industrial Para isso foi permitida a emissão de uma grande quantidade de papel moeda visando garantir o crédito na implantação de novas indústrias e o pagamento de salários dos novos empregos entre outros desafios o que resultou num transitório momento de euforia ante a abertura de um grande número de empresas e da agitação crescente na Bolsa de Valores do rio de Janeiro O momento foi desfeito peloo crescimento brutal dos preços e surgimento de uma crise econômica sem precedentes Sem grandes preocupações com as necessárias mudanças na situação social e econômica do país como um todo os republicanos no poder mostraramse indispostos a romper com as estruturas exploradoras que sacrificavam a população brasileira ficando a riqueza nacional concentrada em poucas mãos enquanto predominava o sistema monocultor voltado à satisfação do mercado externo 193 Inegável porém que o Brasil muito lucrou com o conflito entre as nações européias A exportação da borracha teve aumento expressivo assim como a de muitos produtos agrícolas como café cacau e açúcar Frente à impossibilidade de importações de produtos europeus dezenas de cafeicultores brasileiros capitalizados pelo aumento das exportações reinvestiram seus créditos na abertura de novas indústrias o que favoreceu a industrialização brasileira tão sonhada pelos republicanos 94 justificativa em se fomentar esse passado tal era a realidade a ser considerada na produção historiográfica do período Mas como pensar um Brasil desvinculado de Portugal se grande parte da intelectualidade local tinha uma mentalidade marcadamente européia assim como a elite brasileira se via como tal O Brasil balizado pelo atraso econômico pelo clima e pela mestiçagem passou a ser denunciado por alguns homens de letras194 que clamavam reformas para a sociedade que ainda não conhecera nem a ordem nem o progresso em seu esteio modernizante palavra tão em voga naquele contexto A desorganização do Estado a falta de patriotismo as inúmeras doenças o arraigado analfabetismo a mestiçagem e a indiferença das elites foram mostrados por distintos grupos como problemas que requeriam soluções imediatas para que o Brasil pudesse se modernizar O quadro de crises daquele momento histórico somado aos diversos movimentos simbólicos195 que eclodiram no período denunciavam o clima de efervescência social e de crise que atingiria seu ápice com a Revolução de Trinta196 A modernidade como parte do programa republicano tornouse anseio da época assumindo contornos próprios num país gestado fora do tempo e do espaço no qual o moderno se afirmara como tal Se para alguns o modelo de modernidade estava representado pela dinâmica América a pujança do Velho Mundo ainda parecia como extremamente sedutora para a elite nacional cuja intensa ligação com a Europa fazia com que se verificasse cruamente o atraso cultural brasileiro e todas as diferenças existentes entre os dois mundos Se o almejo do momento era a modernidade essas diferenças deveriam ser combatidas e ultrapassadas 194 Alberto torres Olavo Bilac e Monteiro Lobato são os nomes mais representativos do período e que logo após a eclosão da primeira guerra se esforçaram para diagnosticar os problemas locais A propósito ver PÉCAUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil Entre o povo e a nação São Paulo Ática 1989 195 A Semana de Arte Moderna de 1922 desencadeou a revolução estética a renovação da organização operária se delineou com a fundação do Partido Comunista Brasileiro a criação do Centro Dom Vital de orientação católica prenunciou a renovação espiritual No campo político a revolta do Forte de Copacabana em sua primeira etapa consagrou o panorama de crise e de mudança no Brasil dos anos vinte A respeito ver TRINDADE Hélgio Integralismo São Paulo DIFEL 1974 196 A chamada Revolução de Trinta será tratada na terceira parte desta dissertação 95 Com esse fito criouse um audacioso projeto de cunho político embora atrelado a um projeto cultural a riqueza produzida pela civilização do café resultou na formação de um mecenato constituído por latifundiários empresários banqueiros funcionários públicos de alto escalão e políticos com o fito de adquirir obras e produzir artistas no sentido de incrementar a cultura nacional197 No contexto de comemoração dos cem anos da independência aflorou o chamado Movimento Modernista para combater o romantismo e o passado por ele construído198 bem como toda e qualquer expressão que não se adequasse a uma almejada estética da vida moderna urbana e industrial e que tinha em São Paulo seu exemplar máximo Simbolicamente 1922 foi o ponto de partida para a prevalência do tema nacional no qual o ideário de modernização de unificação cultural e política do país se impôs repassando se ao Estado a incumbência de realização O projeto político paulista apoiado nesse discurso nacionalista criou corpo nesse momento impondose graças à força da economia cafeeira reduzindo outras visões sobre a formação do Brasil a identidade de seu povo a diversidade de sua constituição a meros enfoques regionais sem cariz generalizante São Paulo assumiuse como um modelo e tornouse conforme planejado a cabeça da nação apoiada na figuração do bandeirante como o pai da pátria199 Debaixo de si o restante do 197 O florescimento das artes em São Paulo dos anos vinte entretanto não estava aberto a todos os artistas ou era patrocinado por todos os aristocratas Na verdade o grupo de aristocratas que se divertia com o mecenato e o grupo de artistas que se beneficiava com esse mecenato eram muito reduzidos Somente uma elite ilustrada e artistas ou intelectuais bem relacionados é que participavam deste movimento renovador O que se assiste de fato é uma reinvenção modernista que buscou suprir as necessidades de uma aristocracia ávida da novidade européia 198 Segundo Lúcia Oliveira o Modernismo não combatia apenas o romantismo por considerálo sentimental préracional e prémoderno Arvoravase também contra o Realismo demasiado preso ao cientificismo e ao pessimismo que considerava as raças e o clima nacionais como caracteres negativos da mesma forma se opunha ao Parnasianimo demasiado preso a rígidos cânones que impediam a criatividade própria da Modernidade In OLIVEIRA Lúcia Lippi A década de vinte e as origens do Brasil moderno São Paulo UNESPFAPESP 1997 199 Prevalecia no discurso paulista a união do colonizador português homem exclusivo do primeiro século após o descobrimento com a índia americana apurada na reclusão característica da Serra do Mar o que findou por forjar uma raça superior capaz de dominar o Brasil e tornálo uma nação moderna Ao mesmo tempo em que o discurso modernista unia criava também uma aura de desprezo pelo restante do país acentuadamente mestiço filho de branco com negras e portanto inferior aos rijos paulistas A respeito ver Mota Marly Silva da A nação faz cem anos A questão nacional no centenário da independência Rio de Janeiro Editora FGVCPDOC 1992 96 país arcaico diferente inferior pronto a assumir uma nova identidade na qual se extirpava a tradição de se ter como uma continuação de Portugal200 A questão da identidade nacional foi pautada numa concepção evolucionista da história tendo o progresso como idéia central e a possibilidade de realização do país visto como atrasado em relação a um mundo civilizado201 Para tanto tomouse como chave para compreensão da diferenciação entre os povos binômios como progressoatraso civilizaçãobarbárie e povoelite dando ensejo a uma crise de identidade onde os discursos do século passado passaram por severas modificações Tal crise se evidenciou também no entrechoque entre o velho e o novo entre as necessidades oriundas dos movimentos sociais e as determinações do sistema acirrando o descontentamento da população para com as oligarquias dominantes Não à toa a sociedade brasileira no início do século XX foi marcada por inúmeros confrontos que deram a tônica do que deveria mudar na república que parecia ter mais semelhanças que diferenças com o Império A ausência da participação democrática dos cidadãos na condução dos negócios públicos a precária condição de vida e de trabalho dos operários em meio à incipiente 200 Três vertentes modernistas marcarão essa arquitetura do brasileiro e da brasilidade nos anos vinte A primeira vertente modernista Verdeamarela tinha como proposta o total abandono das influências portuguesas e européias devendo a cultura nacional se voltar aos mitos fundadores buscandose a alma brasileira no seu passado mitológico na vida autêntica das cidades do interior e do contato do homem com a natureza A segunda vertente Antropofágica propunha a apropriação das ideias europeias pelo canibalismo cultural transformando aquelas em ideias nacionais A terceira vertente buscava se incorporar à cultura mundial entendendo o Brasil como parte de um todo Sobre o Movimento Modernista brasileiro ver ÁVILA Afonso O Modernismo São Paulo Perspectiva 1979 BRITO Mário da Silva História do modernismo brasileiro Antecedentes da Semana de Arte Moderna Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 CACCESE Neusa Festa Contribuição para o estudo do modernismo São Paulo Instituto de estudos BrasileirosUSP 1971 TELES Gilberto Vanguarda européia e modernismo brasileiro apreciação e crítica dos principais movimentos vanguardistas Petrópolis Vozes 1977 MORAES Edmundo A brasilidade modernista Rio de Janeiro Graal 1978 201 Jacques Le Goff analisou as concepções de progresso na história mostrando que a idéia explícita de progresso desenvolveuse entre o nascimento da imprensa no século XV e a Revolução Francesa estando vinculada ao desenvolvimento da ciência e da técnica Salientou pois que o grande século do progresso foi o XIX encontrando sua expressão mais acabada na filosofia de Augusto Comte a demonstrar que a filosofia do progresso não estava inevitavelmente ligada ao espírito democrático Aquele historiador ainda assinalou que na segunda metade do século a ideologia do progresso deu novos passos adiante com as teorias cientificistas e filosóficas de Darwin e Spencer marcando o entrelaçamento da idéia do progresso com o ideário de uma necessidade benfazeja Por tal modo difundiuse a ideologia do progresso originária de uma Europa a do século XIX que confundia a sua civilização com a civilização ênfase no original LE GOFF Jacques História e memória Campinas Editora da UNICAMP 2003 p 235 e seguintes 97 industrialização a adesão as idéias socialistas e anarquistas o domínio dos coronéis nos campos o messianismo e o cangaço faziam crer na extrema necessidade de mudança das instituições brasileiras A Guerra do Contestado 191216 as revoltas da Vacina 1904 e da Chibata 1910 a Greve Geral Operária 1917 a Revolta do Forte 1922 a Revolta de 1924 e a Coluna Prestes ambas lideradas pelos chamados Tenentes além da contestação cultural do Movimento Modernista 1922 são reveladores de que a nação ainda não se encontrara em pleno século XX Essa insatisfação expressa nos movimentos sociais se alastrou também para o campo literário que sofreu uma renovação de seus temas A preocupação com a realidade nacional ocupou não apenas as obras de ficção mas também os ensaios artigos e comentários dos eruditos onde se fixava a crítica às instituições tidas como elementos de cristalização e acomodação de uma estrutura de poder que resultava na cegueira às reivindicações das vastas camadas da população brasileira Foram os aspectos mais tristes e pobres do país que representaram a realidade nacional nesse início de século O sertão o interior os subúrbios e a natureza que já apareciam romanceados passaram a ser retratados como modelos de atraso e seus personagens se distanciaram da estética anterior Se o sertanejo no século findo fora considerado um forte naquele momento deixava de ser ordeiro e servil assim como o caipira deixava de ser saudável e trabalhador e o suburbano de ser alegre e expansivo já alertara NAXARA202 As representações do brasileiro para com as massas de despossuídos do país foram as mais negativas possíveis a denunciar a insatisfação dos intelectuais diante de um Brasil que adentrara ao século XX entorpecido com seu passado desnorteado diante do destino de ordem e progresso alardeado pelos republicanos e que parecia não querer se realizar jamais No campo da História as mudanças ocorreram mesmo que de forma lenta e sutil em face da manutenção do enfoque racialista na produção historiográfica do período Apesar de frutos desse tempo de mudanças de um ambiente efervescente tanto no sentido político quanto no campo da cultura poucos foram os trabalhos de historiadores que incorporaram de pronto as variadas teorias nacionalistas da época Até os anos trinta a cultura historiográfica brasileira pouco destoou daquela produzidas no século anterior guardando as mesmas limitações e em muitos casos sequer tomando conhecimento do progresso das 202 NAXARA Márcia Regina Capelari Estrangeiro em sua própria terra representações do brasileiro 18701920 São Paulo Annablume 1998 98 ciências sociais naquele período A grande distinção que o historiador brasileiro teve naquele conturbado momento foi seu afastamento do oficialismo 203 marca visceral da produção oitocentista e que resultou em novas formas de se enxergar o país e escrever sua história de uma forma mais autônoma caso de Capistrano de Abreu204 que demonstrou uma incipiente preocupação com as experiências de habitantes do Brasil dando ao povo a atuação de sujeito da história mesmo que de forma tímida 205 Além de Abreu outros nomes se destacaram como uma ruptura às teorias da época quebrando o paradigma vigente e construindo um discurso não apenas sobre o Brasil mas sobre o outro o elemento colonizador caso de Paulo Prado e Manoel Bonfim Homens de letras nascidos nos Oitocentos mas que diante dos novos rumos políticos e sociais tomados pelo Brasil nas últimas décadas lançaram suas obras modificaram a retórica da alteridade de até então onde o europeu fora representado sob as mais positivas formas sendo ponto pacífico o elogio ao colonizador 203 Segundo SEVCENKO a nova ordem instaurada após a consolidação do regime republicano brasileiro na qual os governadores passaram a ter um lugar de prestígio antes ocupado pelos intelectuais ocasionou o afastamento dos últimos desiludidos com o regime ante o grande número de conflitos populares severamente coibidos pelo governo A expressão histórica de Euclides da Cunha Esta não é a república dos meus sonhos revela o sentimento dos que lutaram pela dissolução da monarquia mas que em poucos anos perderam as ilusões ante os rumos tomados pelo novo regime SEVCENKO Nicolai Literatura como missão tensões sociais e criação cultural na Primeira República São Paulo Companhia das letras 2003 204 Este foi o caso de José Capistrano Honório de Abreu que procurou trilhar novos caminhos na lide historiográfica e sobre os quais trataremos nas próximas páginas Sobre aquele historiador DIHEL faz questão de destacar a obra de Capistrano de Abreu como uma exceção por buscar estar em sintonia com o desenvolvimento do pensamento historiográfico estrangeiro nomeadamente o alemão e francês Cf DIHEL Astor Antônio Op cit p 57 205 É imprescindível dizer que mesmo havendo uma maior ênfase na atuação popular na construção da nação e portanto na de sua história ainda vigorava a idéia de que existiam fatores maiores e anteriores ao indivíduo cuja vontade nada ou muito pouco podia fazer O povo em sua diversidade não apenas racial mas também psicológica e cultural era visto como ativo na ocupação do território mas era também frequentemente considerado passivo na produção de uma verdadeira independência na implementação do progresso ou de um verdadeiro conhecimento sobre si mesmo Mister lembrar que a busca de peculiaridades essenciais de uma população justificavase no início do século XX pela crença na existência de um caráter nacional expresso através da cultura e regido pelos fatores psicológicos e raciais Esta perspectiva favorecia interpretações norteadas por pressuposto essenciais e ahistóricos que justificavam a naturalização dos fenômenos sociais Sobre a problemática ver LEITE Dante Moreira O caráter nacional brasileiro História de uma ideologia São Paulo Ática 1976 e GONÇALVES Marco Antônio e MAGGIE Yvonne Pessoas fora do lugar a produção da diferença no Brasil In BOAS Gláucia Villas GONÇALVES Marco Antônio Org O Brasil na virada do século o debate dos cientistas sociais Rio de Janeiro Relume Dumará 1995 99 No concernente ao nosso objeto de estudo esse desvio das interpretações anteriores configurado na escrita de Bomfim e de Prado se constitui como novas e necessárias perspectivas frutos de um momento privilegiado para as diversas tentativas de compreensão da cultura e da história brasileiras elevando para um centro nodal a questão da identidade nacional Em meio ao turbilhão de mudanças e de inovadoras perspectivas sobrepunhase a presença de Portugal como elemento balizador da discussão nacional No mesmo período não se pode negar as dificuldades na relação entre os dois países cujas relações diplomáticas foram abruptamente cortadas Vejamos as perspectivas sobre a antiga metrópole que emergiram nesse tempo de transição 100 CAPÍTULO 3 EM BUSCA DE UM SENTIMENTO NACIONAL O historiador que marcou com seu trabalho a cultura historiográfica brasileira nos primeiros anos do século XX foi José Capistrano de Abreu206 membro ao IHGB desde 1887 Autodidata empenhado no estudo de geografia psicologia sociologia antropologia e história Abreu apesar de ratificar o perfil do homem de letras do Oitocento se destacou por pensar uma produção historiográfica distinta daquele realizada até então As várias áreas do conhecimento pelas quais se interessou muito influenciaram sua produção historiográfica fornecendolhe um caráter interdisciplinar da mesma forma que a leitura de inúmeros teóricos permitiulhe a vinculação ao historicismo como paradigma de estudos207 À guisa de apresentação fazemos questão de destacar esse historiador como o diferencial a exceção à regra dominante do período aqui tratado como um tempo de mudanças Mudanças políticas e sociais que como já frisamos anteriormente não se refletiram de imediato na produção historiográfica no mesmo período mas que podem ser observadas em produções lançadas nos anos posteriores208 206 Oriundo do Ceará extremo Nordeste Capistrano de Abreu apesar de haver estudado na Faculdade de Direito de Recife não teve nessa profissão o seu maior interesse sendo reprovado nos primeiros anos do curso Segundo Iglesias Capistrano pode ser visto como um precursor da historiografia do cotidiano modismo atual já por ele visto no que tem de significativo IGLESIAS Francisco Historiadores do Brasil Belo Horizonte EDUEMGNova fronteira 2000 p 117 Rodrigues classificavao como o primeiro historiador moderno e progressista do BrasilRODRIGUES José Honório Op cit p 411 207 A leitura atenta da correspondência de Capistrano de Abreu permite encontrar as referências daquele autor com muitos pensadores tais como Taine Buckle Comte Spencer Sombart Ratzel e Ranke a demonstrar o quanto interessava àquele historiador as correntes do pensamento europeu no campo das ciências sociais 208 Ao estudar as implicações do movimento modernista na ampliação da cultura histórica brasileira DIHEL elencou alguns autores que incorporaram elementos do modernismo em seus textos Apesar de Capistrano de Abreu ter tido íntima vinculação com os membros do mencionado movimento não se percebe traços mais fortes da retórica nacionalista em suas obras O mesmo não se pode dizer dos escritos de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda reconhecidos por Dihel como autores fundamentais de um modernismo maturado Considerando ainda que as idéias marxistas foram um dos motores do movimento operário e consequentemente do movimento modernista o autor reputa como tal as obras de Caio Prado Jr e Nelson Verneck Sodré In DIHEL Astor Antônio Op cit p175 e seguintes 101 A vinculação de Abreu a algumas proposições filosóficas da época refletiuse em seu trabalho evidenciando sua preocupação pelo documento pela busca da autenticidade pela verdade das fontes pelo esforço de análise objetiva Ao romper com o característico das crônicas descritivas e das abordagens políticas da história sem a menção preponderante aos grandes nomes e datas importantes tão comuns no meio e no seu tempo Abreu abriu um novo caminho para uma nova história colonial ao eleger novas abordagens novos objetos outras perspectivas historiográficas que lhe deram o destaque merecido A obra de Capistrano de Abreu ao contrário da de Varnhagen não foi prolífica publicando alguns poucos trabalhos específicos de história sendo os mais destacados O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI 1883 Capítulos de História Colonial 1907 e Caminhos antigos e povoamento do Brasil publicado em 1930 três anos após sua morte209 Não obstante Abreu tornouse o historiador por excelência do início do século e seus escritos serviram como referencial para muitos dos autores que lhe sucederam tamanha sua inovação e a perspicácia de suas observações Num tempo de mudanças profundas no panorama nacional buscava sobretudo entender a formação da nacionalidade brasileira em todas suas singularidades e para isso se tornou um leitor atento da HGB de Varnhagen lançada em primeira mão no ano de seu nascimento 1853 De reconhecimento comum o trabalho de Varnhagen lançara as bases de uma formação da nação no campo da história porto seguro para consagrar sua visão de mundo Apesar de celebrar o louvável trabalho livromonumento de uma época Abreu não se eximiu de constatar da necessidade de ir além completálo preencher as lacunas documentais e temáticas presentes naquela obra tarefa que se tornaria verdadeira obsessão210 Sua intenção era superar o que chamara de quadros de ferro traçados por 209 Capítulos de História Colonial é considerada a obra mais importante daquele historiador que para além da composição de obras históricas a importância do trabalho está vinculada à recuperação e edição de valiosos textos do período colonial tais como a História do Brasil de Frei Vicente de Salvador Cultura e opulência do Brasil de André João Antonil e Diálogos das grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão Dessas duas últimas obras coubelhe a identificação da autoria De espírito ousado parecenos que o esforço metódico de produção de um texto eralhe cansativo em demasia posto considerarse sempre sujo e aliviado ao concluir um trabalho 210 Apesar de elogiar o esforço de Varnhagen Capistrano de Abreu denunciou as falhas da HGB na qual o autor foi capaz de como um antiquário estabelecer e datar documentos como um trabalhador possante explorador infatigável que muitas vezes surgia exausto e ensaguentado trazendo nas mãos pérolas e corais In Necrológio Apesar do esforço Capistrano queixavase da incapacidade de Varnhagen de dar aos fatos uma explicação convincente sem traçar um enredo histórico que permitisse averiguar até onde um fato era o desenrolar do outro passando assim do papel de crítico de documentos para a de narrador No mesmo 102 Varnhagen na HGB e que foram reproduzidos largamente nos manuais escolares de história pátria como o de Joaquim Manuel de Macedo211 Com esse fito tornouse um dos anotadores da 3ª edição da Historia geral do Brasil ao lado de Rodolfo Garcia tarefa que lhe proporcionou subsídios para a realização de uma reescrita da história que seria concebida pela diferença em relação à HGB Aquela para Abreu seria um texto hermético demasiado longo de leitura exaustiva incapaz de conquistar leitores distantes Necrológio Capistrano de Abreu não temeu em afirmar que Varnhagen não fora além de escavar documentos demonstrarlhes a autenticidade solver enigmas desvendar mistérios nada deixar de fazer a seus sucessores no terreno dos fatos Compreender porém tais fatos em suas origens em sua ligação com outros fatos mais amplos e radicais de que dimanaram generalizar as ações e formularlhes teorias representálos como consequência de duas ou três leis basilares não conseguiu nem conseguiloá ABREU José Capistrano de Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos 1ª série Rio de Janeiro Civilização brasileira 1976 p 202 Em outros momentos pareceu desconfiar da autenticidade dos documentos apresentados por Varnhagen Ainda não pude verificar onde ele colheu os esclarecimentos a respeito do assalto inglês na Bahia Não figuram na primeira edição Provavelmente encontrou os documentos em Simancas onde deveriam estar se não os tirou porque ho je cheguei à desoladora convicção de que nosso ilustre historiador roubava papeis Carta ao Barão do Rio Branco 3031887 In RODRIGUES José Honório org Correspondência de Capistrano de Abreu vol 1 Rio de Janeiro Civilização brasileira 1977 p 117 211 O manual de história pátria de Joaquim Manoel de Macedo é representativo da produção didática de membros do IHGB o que vem provar a preocupação daquele espaço de saber não apenas com a produção da história mas também com sua legitimação a partir da feitura de manuais Tal discussão fora iniciada desde 1840 por Justiniano José da Rocha professor de História Pátria no Colégio Pedro II e membro do IHGB Ao reconhecer que existiam poucos compêndios disponíveis sobre o assunto instou ao Instituto nomear uma comissão especial a fim de organizar um compêndio de História do Brasil o que não foi de pronto ocorrido ante a obstrução de Januário Da Cunha Barbosa que indicava como o mais representativo o compêndio do sócio Pedro de Alcântara Bellegarde Somente com o pedido formal do diretor do Conselho de Instrução Pública Eusébio de Queirós em 1860 o IHGB se dispôs a renovar a produção de compêndios indicando Joaquim Manoel de Macedo para o empreendimento Aquele autor além de primeiro secretário do IHGB era também professor do Colégio Pedro II e durante algumas décadas seu manual intitulado Lições de História do Brasil foi o mais utilizado nos colégios brasileiros pois seu trabalho congregava Didática Currículo e Saberes escolares cerne do ato de professorar Macedo era médico de formação ligado à família imperial da qual se tornou preceptor e professor dos filhos da princesa Isabel Seu romance A Moreninha é considerado a obra inaugural do romance brasileiro que lhe deu fama e fortuna para além de tantos outros trabalhos de cunho literário que marcaram sua carreira A partir da década de 60 muitos dos membros do IHGB que já eram professores tornaramse também autores didáticos chamados para engrossar um filão novo do mercado mas que se anunciava absolutamente promissor o mercado editorial A transposição didática dos saberes produzidos e armazenados pelo Instituto também se constituía em uma fonte a mais de rendimentos para muitos além de uma maneira de divulgar para um público mais amplo o conhecimento sistematizado pela agremiação A respeito ver MACEDO Joaquim M Lições de História do Brasil Rio de Janeiro Typografia Imparcial 1861 Para aprofundamento do tema sugerimos a leitura de HILSDORF Maria Lúcia WARDE Míriam CARVALHO Marta de Apontamentos sobre a História da escola e do sistema escolar no Brasil In GARCÉS OLZ SAUTER GO org Gênesis y desarrollo de los sistemas educativos Iberoamericanos siglo XIX Tombo I Universidad de Antioquia Espanha Cooperativa Editorial Magistério 2004 p127202 Com especialidade MARIOTTO HAIDAR Maria de Lourdes O ensino secundário no império brasileiro São Paulo GrijalboEDUSP 1972 103 da chamada elite intelectual e que por isso mesmo exigia que fosse refeita como forma de aproximar o povo de sua história A reescrita da história nacional deveria ocorrer a grandes traços e largas malhas afastandose em definitivo da tradição não muito antiga de narrativa do passado nacional na qual a cronologia dos acontecimentos era mais importante que a atuação humana O fio condutor dessa reescrita deveria levar à compreensão da formação da nacionalidade do nascimento coletivo de um sentimento nacional capaz de unificar a diversidade dos grupos humanos que originaram o povo brasileiro Abreu tencionava mostrar pois como os grupos étnicos se uniram para além da língua comum da religião e da antipatia ao reino passando a pensar num Brasil emancipado unificado que se via como povo como comunidade A justificativa para tal empreendimento se dava pela compreensão da impossibilidade de Varnhagen ter construído uma identidade nacional verdadeira visto que ao tempo da escrita da HGB poucos anos após a emancipação política o espírito nacional não se constituíra de todo estando ainda em formação 212 No especial tempo de mudanças que vivia era natural que aquele historiador se inquietasse com o passado agora posto à prova em todos os seus matizes Abreu compreendia a instauração da república como o elemento unificador da nação e nesse sistema governativo apesar dos variados problemas que irrompiam desde sua instauração já se fazia possível vislumbrar um rascunho do que poderia vir a ser a mesma213 A captação desse espírito só seria possível com a consolidação da própria nação experiência que ocorreria por uma tomada de consciência do que seria a nação em si e de como a mesma se formara ao longo dos séculos Ao mesmo tempo tal consciência é que permitiria aquela consolidação dando ensejo à solidez da idéia de nação que para Capistrano de Abreu teria na escrita de sua história a condição de possibilidade para se 212 Para tanto fazse necessário lembrar que a escravidão só fora abolida em 1888 o que indicava forte impeditivo para que grande parte dos trabalhadores nacionais tivesse consciência de uma suposta e inexistente cidadania em meados do século XIX Demais grupos formadores da nacionalidade mesmo livres não eram agentes políticos da nação emancipada o que descaracterizava a unidade inicial da colônia vigorosamente defendida nas muitas páginas da HGB 213 Só após a instauração do sistema governativo republicano é que todos os brasileiros maiores de 18 anos e que fossem alfabetizados passaram a ter acesso ao direito de eleger seus representantes Antes disso o voto era restrito a cidadãos que provavam ter certo nível de renda exigência que afastava a grande maioria da população do exercício de cidadania definidor do espírito de nação NICOLAU Jairo História do voto no Brasil Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002 104 aperfeiçoasse o processo formativo214 Esta tarefa deveria ser cumprida com a maior brevidade pois aquele autor vislumbrava no contexto dos primeiros anos da república considerável fragilidade dessa consciência nacional além de significativo risco de dissolução da proclamada unidade nacional diante das mudanças provocadas pela instauração de um novo sistema de governo Originouse dessa urgência sua proposta de uma história escrita sem se deter nos grandes eventos sem citar os grandes nomes ou os pormenores dos acontecimentos dos últimos tempos sem minúcias nem detenção nos detalhes que ainda não estavam amadurecidos o suficiente para ser compreendidos em sua historicidade O desvendamento da trajetória que levou à formação da nação e a lenta gênese de um sentimento nacional se configuraram como pontos de inflexão de seu trabalho nomeado pelo autor como história íntima da nação Nesta a noção de territorialidade teve lugar de destaque posto seu autor haver deslocado o eixo geográfico da experiência colonial do litoral para o interior Saiu assim do espaço dos engenhos e da produção açucareira alma da colônia para o interior do território colonial no espaço chamado sertão215 a fim de compreender os desdobramentos mais profundos da formação nacional revelando uma intimidade ainda desconhecida Para tanto aprofundou os estudos geográficos que em sua obra se fundiram como parte integrante da historicidade nacional a demonstrar como as relações do homem com a natureza foram fundamentais para a ligação das diversas partes do território colonial através de escusos caminhos e trilhas A história íntima interna de Capistrano de Abreu seria assim quase complementar à chamada história externa litorânea de Varnhagen216 214 Vêse pelo exemplo acima que Capistrano de Abreu já definira desde o final do século XIX uma finalidade para a história que divergia da visão do próprio IHGB cujo brasão apresentavaa como mestra da vida Abreu já antevia os fins políticos da própria história e do papel do historiador 215 Em 1902 foi lançado Os Sertões de Euclides da Cunha que retratava a epopéia da vida sertaneja em sua luta diária contra a paisagem e a incompreensão das elites governamentais O substrato dessa obra amparase na ocorrência da Guerra de Canudos 18961897 onde um pequeno povoado no interior da Bahia Arraial de Bom Jesus ou Belo Monte se constituiu às margens da presença do Estado desde o século anterior Assumiu sua liderança Antônio Conselheiro na república recém instaurada o que acentuou seu crescimento chamando a atenção das autoridades locais determinadas a extinguir o grupo sob a alegação de se tratar de um conluio de monarquista As colocações de Euclides da Cunha sobre o Brasil do final de século são reveladoras de sua visão sobre a existência de dois Brasis um do litoral e outro do interior que se diferenciavam pelos fatores da raça do meio ambiente e do momento histórico refletindo o determinismo de Taine que também influenciou o trabalho de Capistrano de Abreu 216 Para Capistrano de Abreu a História de Varnhagen era litorânea porque era portuguesa A história da intimidade da formação nacional não poderia ter o mesmo cenário pois se iniciara em épocas diversas assim como em diversos lugares permitindo a abertura de veredas que uniam silenciosamente os distintos pontos 105 Não obstante Abreu tentou se afastar de um modelo de abordagem histórica que construía a história do Brasil a partir do descobrimento num desdobramento da colônia em império tipificado na História Geral do Brasil de Varnhagen Para ele o Brasil tinha uma história que antecedia à presença portuguesa ajuizando os nativos como integrantes de uma sociedade que se transmutou com a chegada de brancos e negros o que possibilitou a datação histórica a partir dessa chegada O chamamento dos demais grupamentos étnicos como sujeitos da história de formação do Brasil para além da presença portuguesa foi mais um destaque em sua análise ao considerar que as distinções culturais de índios e negros quase se dissolveram no cadinho da formação nacional A narrativa estabelecida a partir de temáticas217 e não mais como uma evolução de fatos encadeados em si solidificou o cariz inovador ao seu trabalho diferenciado pela análise do modo de vida dos homens comuns das suas estruturas de pensamento das suas questões cotidianas Capistrano de Abreu se esmerou no desvendamento de como havia se dado o povoamento do interior as formas de ocupação do território os desequilíbrios e contrastes da sociedade colonial a diversidade territorial a fragmentação e as incomunicabilidades Marcou assim um novo modo de se escrever a história brasileira 218 além de trazer à tona grande parte da história do Brasil do século XVII219 da qual pouco ou nada se sabia e em decorrência tornouse um membro de destaque no IHGB ao qual frequentava precariamente além de ser considerado um precursor da moderna historiografia do país num alargamento territorial que se formara a partir de uma corrente interior mais volumosa e mais fértil que o tênue fio litorâneo A propósito ver o capítulo IX de Capítulos de história colonial 217 Os Capítulos de história colonial foram organizadoa a partir dos seguintes temas Antecedentes indígenas Fatores exóticos Os descobridores Primeiros conflitos Capitanias hereditárias Capitanias da coroa Franceses e espanhóis Guerras flamengas Os sertões Formação dos limites e Três séculos depois Por sua vez Caminhos antigos e povoamento do Brasil tem a seguinte compleição Sólis e primeiras explorações Os Guaianases de Piratininga Atribulações de um donatário Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil Os primeiros descobridores de Minas Documentos históricos Esquema das bandeiras A bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira Sobre uma história do Ceará Tricentenário do Ceará Fragmento de um prólogo Vale lembrar ser este último livro uma compilação de escritos esparsos organizado postumamente 218 Para Daniel Mesquita o tratamento dado à história no início do século XX por Capistrano de Abreu teve grande influência nas obras futuras de Paulo Prado Sérgio Buarque de Holanda e até mesmo de Gilberto Freyre A respeito ver MESQUITA Daniel Os descobrimentos de Capistrano Rio de Janeiro ApicuriEdPUC 2010 219 Capítulos de história colonial obra principal retrata o processo colonial encerrandose ao fim do século XVII O século seguinte representava para Capistrano de Abreu o momento de possibilidades de inserção do Brasil conquanto nação emancipada no concerto das nações civilizadas o que lhe parecia campo pouco seguro para o trabalho do historiador Suas preocupações nesse sentido não obstante podem ser acompanhadas em sua correspondência organizada por José Honório RODRIGUES 106 Apesar de desejar ser o diferencial em relação ao trabalho de Varnhagen Capistrano de Abreu nele se amparou para repensar a história nacional ao considerar o empenho daquele historiador na descoberta e detalhamento dos documentos referentes ao Brasil220 Elogiava a profundidade da pesquisa documental encetada pelo Visconde de Porto Seguro e de seu profundo conhecimento dos diversos arquivos europeus tão freqüentados por Varnhagen e nos quais nunca fora Usava pois do artifício de Bernardo de Chartres 221 ao se apropriar dos escritos de Varnhagen para deles recuperar a face da história a partir de novas ferramentas teóricas 31 Impiedosos fazedores de novos caminhos Abreu tentou em todos os sentidos resgatar no ambiente colonial um sujeito histórico que pudesse se diferenciar do colonizador português na tentativa de se desprender da criação varnhageniana Sua geração ao contrário da de Varnhagen vivera o questionamento e dissolução de um modelo social tipicamente luso tendo se defrontado com problemáticas relativas à construção da nação e da identidade nacional Esse tempo de transição abriu espaço para o questionamento da relação de continuidade histórica entre Portugal e Brasil o chamado lusoamericanismo bem como o questionamento do sentido do valor em relação à antiga metrópole Concomitante à crise do Império aflorou a reavaliação do papel de Portugal em relação ao Brasil e se este seria um desdobramento da antiga metrópole premissa do IHGB ou uma nação que se constituíra de forma particular e autônoma Questionavase pois se a continuidade caso existisse não seria justamente a raiz dos problemas sociais e políticos ou de outro modo se a herança portuguesa não seria a causa dos males da sociedade brasileira222 Neste contexto de reavaliações e questionamentos nasceu a obra de Abreu 220 ABREU José Capistrano de Sobre o Visconde de Porto Seguro Op Cit p 133 221 Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes Assimvemos melhor e mais longe que eles não porque nossa vista seja mais apurada ou nossa estatura mais alta mas porque eles no elevam até o nível de toda sua gigantesca altura observara Chartres cujas palavras foram resgatadas por LE GOFF em Os intelectuais na Idade Média São Paulo Brasiliense 1993 p 25 No artigo Sobre o Visconde de Porto Seguro Ensaios e estudos 1ª série Rio de Janeiro Civilização brasileira 1975 pag 25 e seguintes Capistrano fez alusão a uma reescrita da história a partir dos erros e acertos de Varnhagen 222 Exemplo dessa reavaliação é a grande popularidade entre os intelectuais do período no Brasil da obra O Brasil e as colônias portuguesas 1880 de Oliveira Martins que observara que a colonização do Brasil acontecera em meio à decadência da metrópole Para aquele autor as incursões de Portugal na África e no Brasil descritas como uma triangulação ao tempo que formavam um sistema de exploração colonial bem 107 voltada a perscrutar a formação da identidade brasileira no ambiente da colônia Para tanto escolheu refazer o cenário histórico afastandose dos engenhos litorâneos e da grande empresa portuguesa nos quais era predominante a presença estatal para voltarse ao avesso da história do lugar chamado Brasil Em Abreu o sujeito colonial se diferenciou daqueles encontrados em Varnhagen A partir do conceito de transoceanismo aquele autor estabeleceu a sutil diferença entre o português que ia à colônia com o fito de enriquecer ou realizar um mandato daquele que ia para se estabelecer ali se fixando indefinidamente buscando novas terras nos interiores formando famílias trasladando os parentes do reino para a lida colonial Com tal fito passou a estudar as famílias portuguesas que inauguraram os povoamentos abriram caminhos definiram fronteiras guerrearam entre si pela posse da terra dandolhe rostos e nomes e evidenciando um português diferente que não teve o transoceanismo como perspectiva de vida posto deixasse para trás Portugal e desenvolvesse relações afetivas com o espaço colonial elegendoo como o ambiente onde faria sua vida onde habitaria doravante Desconstruíase por tal viés um tipo mítico o português navegador cujas águas salgadas dos mares pareciam compor o próprio sangue tão perene era seu destino e vontade de lançarse ao mundo desvendandoo para se apoderar de tudo que oferecia de diferente e precioso Em contrapartida revelavase um português retraído taciturno dedicado à terra e à família compenetrado em ganhar a vida com o esforço diário Diferente este português trazido à história por Abreu desbravara os sertões fazendo daquele espaço o seu lugar de domínio como homem comum sem vantagens nem benesses um típico sujeito do ambiente colonial exterior ao contexto da empresa portuguesa embora a favorecesse de uma maneira especial à parte com seu empenho de explorar as novas terras e povoálas Em Abreu as figuras dos degredados dos náufragos e dos desertores de Portugal foram referendadas como os primeiros habitantes portugueses nas terras da América tendo como expoente Diogo Álvares Correia mais conhecido por Caramuru223 Para aquele historiador sucedido por redundar em colonização embora malogrado por estar na raiz do declínio do Império português 223 O náufrago português nascido em Viana do Castelo em 1475 foi acolhido pelos tupinambás após presenciar o massacre dos companheiros de viagem ao chegar em terra firme Reza a lenda que seu livramento se deu em decorrência de ter sido achado semimorto sobre as pedras da praia ou por ter feito uso 108 tratavase de homens cuja opção em viver na nova terra não derivara da própria vontade mas de alguma punição caso dos degredados ou de algum infortúnio caso dos náufragos e dos desertores224 Aos dois primeiros entendemos tratarse do tipo transoceânico cujos pés fixaramse na nova terra embora seus pensamentos e desejos voltassemse constantemente para Portugal Aos últimos que fugiam das amarras da sociedade portuguesa e que por vontade embrenhavamse nas matas americanas furando lábios e orelhas e rendendose aos rituais dos nativos parece ser parte do que Abreu tomou como a energia geradora da nação brasileira Homens fortes intemeratos resolutos esses portugueses foram considerados por Abreu como os verdadeiros construtores da colônia os domadores da natureza dos trópicos os civilizadores de negros e nativos os engenheiro de uma nova raça moldada pelas condições ambientais de cinco regiões geográficas diferentes ligadas entre si graças a abertura de caminhos e implantações de povoados Viver na colônia foi uma resolução de vida de caráter peremptório e não uma missão determinada pelo empreendimento colonial de durabilidade efêmera Assim tornaramse senhores descobridores colonizadores empenhados na feitura de caminhos que internalizassem a colônia para que tomassem posse de sesmarias que a povoassem por dentro unindo as diferentes partes do território que aos poucos se definiu em sua imensidão de uma arma de fogo atingindo um pássaro que estava nas proximidades o que causou temor e respeito por parte dos nativos que assistiram ao fato Sua permanência com os nativos brasileiros tornouo profundo conhecedor dos costumes indígenas o que contribuiu para tornála importante mediador no contato inicial entre nativos com os jesuítas eou agentes da coroa portuguesa para quem prestou alguns serviços dela recebendo posse de terras e honrarias Sua história foi noticiada pelo jesuíta Simão de Vasconcelos em 1680 tendo nela se inspirado Frei José de Santa Rita Durão que escreveu o poema Caramuru em 1781 224 Em decorrência dessa análise contida na obra de Capistrano de Abreu foi reproduzida ao longo dos anos na historiografia brasileira a representação negativa de que os elementos formadores da nova sociedade provinham da escória da sociedade portuguesa sem que se observasse o contexto no qual se encontraria a explicação da transformação de um homem comum num facínora da distinção entre crime e pecado da aplicabilidade das penas civis e religiosas enfim da própria historicidade da metrópole nos séculos da colonização Essa proposição a nosso ver só permitiu o aprofundamento da lusofobia ao reproduzir um perfil abjeto que remontava aos séculos de colonização em relação aos migrantes portugueses do início do século XX considerados como elementos indesejáveis em seu país de origem e que levavam consigo um histórico pouco exemplar que causava repúdio e que se refletia em última análise em relações marcadas pela animosidade e desrespeito entre brasileiros e portugueses Em oposição a esta versão da história destacamos o trabalho de Afonso Celso citado anteriormente que procurou desconstruir a negatividade de ter sido grande parte da primitiva população colonial formada por degredados portugueses 109 Indiferente se os sujeitos que brotaram da documentação analisada eram portugueses de nascimento ou seus descendentes Abreu construiu os portugueses que fizeram o Brasil por dentro fomentando sua alma ensejando uma brasilidade que só se revelou séculos depois Com índias negras ou portuguesas esses homens foram esculpidos como os patriarcas da nação aqueles que fizeram vicejar uma nova população nos trópicos destinada ao trabalho de amansar a terra e de fazêla dar frutos Com esse viés Abreu fez uma espécie de corte entre os tipos portugueses que participaram da empresa colonial225 De um lado ele colocou o homem comum o colono aventureiro com disposição para viver na nova terra nela criando raízes de outro ele dispôs o colonizador o português que por determinação real foi escolhido para desempenhar alguma missão com o fito de realizar algum aspecto na empresa colonial A respeito desses agentes Abreu os revelou como homens audazes contratados pelos poderes públicos para pacificar certas regiões em que os naturais apresentassem mais rija resistência podendo cativar legalmente a indiada autorizados a distribuir hábitos e patentes aos companheiros mais esforçados226 Em partes de sua obra não é difícil identificar a atuação desses agentes cuja presença e ação demarcaram importantes momentos na formação da sociedade brasileira gravados no montante da documentação utilizada pelo historiador na escrita de sua história e da qual não pode fugir Em sua história os grandes nomes portugueses adquiriram nova dimensão dandose visibilidade a personalidade e ações ainda pouco abordadas pelos historiadores nacionais a começar por D Henrique heroi da Reconquista e de D João II sábio e previdente até Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral Sobre o último o liame mais forte a unir Portugal e Brasil patenteouse na escrita abrelina as minúcias da expedição que culminou com o descobrimento e a chegada de seus membros na nova terra a ponto de destacar a doação por parte do rei de um barrete bento 225 Esse corte é explícito em sua obra pois se nos Capítulos da história colonial Abreu referenciou os atos das grandes navegações e descobertas portuguesas citando atos de reis e de seus mandatários nos Caminhos Antigos e povoamento do Brasil ele se voltou a investigar o homem comum e sua trajetória na experiência colonial 226 ABREU José Capistrano de Caminhos antigos e povoamento do Brasil p44 110 enviado pelo papa em prol do sucesso da empreitada Todavia a história escrita por Abreu não pode ser considerada a história dos grandes homens como o foi a de Varnhagen caracterizandose como um desvio das pretensões do autor da HGB Mostra disso são as marcantes representações que ele fez de Portugal na transição das idades Média e Moderna como estratégia para tentar explicar alguns aspectos percebidos na formação da sociedade brasileira O Portugal revelado na narrativa abrelina era um espaço de contradições flagrantes tomado pelo poder do catolicismo a dominar todos os recônditos da vida social embora inexistente na intimidade dos lares Para Abreu o português seicentista era pouco devoto e conquanto tivesse sua vida marcada por atos da liturgia católica transitava numa sociedade marcada pela violência onde a rudeza e a agressividade imperavam imprimindo nas pessoas o mesmo cariz Em Abreu o Portugal seiscentista era um império onde As cominações penais não conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligiase a morte pelo fogo e o confisco de todos os bens Com a rudeza de costumes que assinala aqueles tempos a segurança da própria pessoa família e haveres dependia em grande parte da força e energia individual daí freqüentes homizios agressões feridas e mortes que habituavam à contemplação da violência e da dor infligida ou recebida O espetáculo de penar não repugnava porque ninguém tinha em muita conta o padecimento físico Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caráter perverso não tinham nesses tempos semelhante significação O mal que elas causavam não se reputava demasia todos estavam sujeitos a padecêlo Mas se a dor física ou moral alcançava molificar a rijeza da índole inacostumada à paciência e a reflexão ou se a paixão a inflamava então o sentimento irrompia em clamores prantos e contorsões semelhando os meneios da demência furiosa227 Dessa sociedade que banalizava a violência e o sofrimento físico onde a dor era um demarcativo das relações sociais Abreu ensejou adentrar na compreensão da personalidade do português que colonizou o Brasil O homem oriundo desse meio não poderia ser afável sendo a bestialidade e a intolerância a marca dos portugueses que povoaram os seus escritos recheados de vivências que retratavam a aspereza da vida colonial repetição da 227 Ibidem p 48 111 vida na metrópole228 A experiência do sertão nada teve de romântica em Abreu bem ao contrário os tempos coloniais foram a reprodução da sociedade portuguesa acentuada em razão das dificuldades do novo lugar O português ali contido foi pois compreendido em razão de seu tempo e seu ambiente no compósito de sua historicidade sendo mostrado por Abreu como um fragueiro abstêmio de imaginação ardente propenso ao misticismo caráter independente não constrangido pela disciplina ou contrafeito pela convenção o seu falar era livre não conhecia rebuços nem eufemismos de linguagem A têmpera era rija o coração duro À dureza da têmpera correspondia extensamente um aspecto agreste a força muscular era tida em grande apreço Cercear com um revés de montante uma perna de boi por meia coxa ou deceparlhe quase todo o pescoço eram feitos dignos de recordação histórica229 Essa dureza de caráter e bravura indômita se refletiria para Abreu como uma justificativa para certos atos perpetrados pelos colonizadores à maneira do tratamento empregado ao lidar com os povos indígenas africanos e estrangeiros invasores sem piedade na aplicação de castigos nem meneios em relação à sua sobrevivência As punições empregadas no ambiente colonial contra as gentes submissas eram tidas como verdadeiros atos de sadismo pelos contemporâneos daquele historiador diante das narrativas de atrocidades230 resgatadas nos documentos de época A respeito Abreu fez relembrar da pertinente historicidade dos homens e da sociedade investigada na qual o espetáculo de penar não 228 Com essa finalidade Abreu fez questão de destacar excertos dos escritos de Domingos de Loreto Couto na descrição do português primitivo No nosso reino de Portugal entre Celorico e Trancoso habitavam povos tão brutos e silvestres como animais indômitos tão rudes que uma família não entendia a língua da outra com menos de duas léguas de distância Nem nos deve admirar a barbaridade destes povos os indígenas quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descentes a tanta brutalidade que matavam e comiam aos que dos povos vizinhos se apanhavam ou em guerras ou em ciladas Couto Domingos de Loreto Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco Anais da Biblioteca Nacional V 24 1902 p 45 citado à p 187 e seguintes de Capítulos de História Colonial 229 ABREU José Capistrano de Capítulos de história colonial São Paulo Publifolha 2000 p 467 230 Há muitas passagens na narrativa de Capítulos de História Colonial sobre a violência empregada pelos portugueses sobre as demais gentes A entrega de prisioneiros franceses a uma tribo de antropófagos para que fossem por eles devorados as estratégias de aproximação com os indígenas com o fito de escravizálos a descrição das chamadas práticas medievais empregadas por um certo Francisco Caldeira de Castelo Branco na Capitania do Pará contra os nativos da região a execução à espada e punhal de crianças e mulheres indígenas devastados pela fome a emasculação praticada contra os índios entre tantos outros foram fatos utilizados por Abreu para dar visibilidade aos ares bestiais que demarcaram os tempos coloniais 112 repugnava porque ninguém tinha em conta o padecimento físico 231 fato que se refletira no cotidiano colonial por ser este uma extensão da sociedade portuguesa No contexto daquela sociedade por sua vez o mesmo colono de aspecto severo disposto a entregar franceses para os antropófagos mutilar índios e a castigar negros nas terras da América lusa foi mostrado como uma grande massa da nação sem direitos pessoais um Terceiro Estado sem visibilidade numa sociedade marcada por uma hierarquia nitidamente transportada para o Brasil232 Numa e noutra o povo era elemento de somenos mas era seu labor que dera forma ao Brasil e que era mostrado como componente decisivo para se abranger o contexto histórico da colônia Era a história desse povo em sua luta pela conquista territorial e sua consolidação que permitiria a construção da identidade brasileira nos republicanos tempos em que as populações simples tomavam foros de sujeitos políticos Esses fortes e cruéis homens mais endurecidos na severidade da empreitada foram mostrados pelo historiador cearense não apenas como artífices de atos de heroísmo mas na faina diária da vida na colônia sendo executados ou executando os nativos mentindo ou usando de artifícios para auferir lucros angustiados pelas dívidas enfrentando a criminalidade corrente e a pirataria vitimados pelos ódios e paixões doentes de fome comendo terra e ratos para sobreviver rodeados pelos rios encachoeirados e pelas serras ínvias Assumiram assim na escrita de Abreu a inegável condição de pais da nação posto que mostrados como indivíduos que edificaram sua vida e por conseguinte construíram um novo lugar que ao longo dos séculos se transformou na nação brasileira O povo 231 Observese que à época da escrita de seus Capítulos as mentalidades sequer eram cogitadas como campo de investigação da história embora o historiador cearense já tomasse tal abordagem como possível no desvendamento de uma problematização capaz de revelar um tempo que se queria conhecer Ao longo de seus textos emergiram diversas abordagens que alguns anos depois seriam apontadas como características de uma história dita das mentalidades 232 Ao empenharse no estudo das formas de distribuição de terras principalmente em relação às capitanias hereditárias e da hierarquia existente na sociedade colonial Abreu entendeu que a organização feudal que ocorrera na história portuguesa na média idade fora reproduzida no Brasil por ordem de D João III desde 1534 Todavia é inegável que aquele historiador tentava mostrar a América Portuguesa como uma recriação da Europa com sua organização e valores já que tinha na propriedade da terra a base de sua sociedade Ao fazêlo ele não questionou as especificidades do Medievo português nem as características próprias do feudalismo luso Tencionava apenas dar continuidade a uma visão bem própria do IHGB que defendia o nexo com a Europa e seus valores como forma de visibilizar o construto civilizatório nacional Por outro lado abriu caminho para uma tese preciosa abraçada pelos historiadores marxistas brasileiros a partir da década de 40 tais como Caio Prado Jr Alberto Passos Guimarães e Nélson Werneck Sodré 113 brasileiro seria assim uma invenção do povo português dele se originando num amálgama inovador até desabrochar como tal após a independência Ao mostrar a sociedade portuguesa como um império de costumes rudes Abreu teceu cuidadosamente uma trama capaz de justificar alguns aspectos da vida colonial dos quais muito se falava o extermínio indígena por exemplo mas que até então não haviam sido analisados sob um enfoque que permitisse trazer à tona o processo histórico que lhes originara Na perspectiva daquele autor o conhecimento da vida social portuguesa permitiria a ampliação do conhecimento sobre o Brasil em sua formação proporcionada graças ao caráter dos homens oriundos de uma sociedade eminentemente superior e portanto civilizadora Esta superioridade foi carreada também de um pressuposto étnico no qual a raça branca representada no Brasil pelo português superpunhase às demais A despeito de muitos estudiosos afirmarem não haver em Abreu uma discussão de raça são diversas as passagens na sua narrativa que demonstram seu ponto de vista a respeito O autor não discutiu nem problematizou a questão racial apenas se apropriou do tema e o conduziu consoante sua perspectiva pessoal fixando na historiografia uma retórica que lhe parecia tão natural quanto aos seus contemporâneos233 233 Aos índios ele chamou de selvagens sanguinários rancorosos e antropófagos material mais próprio para a escravatura do que para a conversão Cf Capítulos da história colonial p 55 Fez questão de descrever a violência indígena contra os colonos chegando aos pormenores de chacinas e barbáries de forma a bem fixar a solidez de suas afirmativas Em algumas passagens de seus textos Abreu sequer considerou os indígenas como humanos referindose aos mesmos como de natureza distinta daqueles O bruto com seu instinto rasga horizontes sem vacilar o homem porém que de uma vez penetrou na caatinga e lhe falhou a memória na escolha de uma vereda é uma vítima que só um milagre o salvará Cf Caminhos antigos e povoamentos do Brasil p 51 Sobre o extermínio dos indígenas Abreu se mostrou indiferente e até cruel ao se reportar ao domínio pleno dos portugueses sobre os nativos numa única frase Só no século seguinte se remediou o mal Idem p78 Sua narrativa sobre as índias é escancaradamente pejorativa mostrandoas como mulheres interesseiras que lubricamente procuravam os portugueses para deles engravidar posto considerálos de qualidade genética superior aos de sua própria etnia Abreu sequer cogitou se os indígenas seriam capazes de elucubrar mentalmente a idéia de superioridade racial mas se esmerou em conduzir seu leitor à plena aceitação da afirmativa Com esse fito descreveu as nativas como interesseiras nos bens dos ricos marinheiros aos quais se ofereciam sexualmente com a intenção de receber benefícios Sobre os negros bem menos presentes na narrativa daquele autor ainda encontramos excertos capazes de demonstrar seu ponto de vista imbuído na certeza da superioridade racial dos brancos Tal afirmação pode ser patenteada quando Abreu tratou do contato entre portugueses e franceses nas terras coloniais reconhecendo nesses últimos uma maior capacidade de relacionamento com os indígenas se comparados aos portugueses Estes de espírito mais aberto trato mais agradável inteligência mais ágil gênio mais alegre não viciados pelo contato diuturno com raças inferiores aprenderam a língua acataram alguns até adotaram os 114 Assim a perspectiva de recriação da civilização pelos colonos portugueses marca exponencial do trabalho de Varnhagen também foi abordada por Abreu embora ressignificada Se em Varnhagen a construção de uma civilização nos trópicos teve um caráter heróico a partir de grandes nomes em Abreu a tarefa foi patenteada graças à têmpera rija do português comum que oriundo de uma sociedade de sólidos costumes debelara todas as demais Por conseguinte negros e índios foram expostos como inferiores diante desse português aos quais tiveram que se submeter numa relação de dominaçãosubmissão inexplicável pela inferioridade numérica dos ditos dominadores Em Abreu essa relação teve como substrato não a força física nem a superioridade das armas mas uma força moral234 cunhada numa sociedade severa despida de compaixões cuja população desenvolvera atributos que possibilitaram o domínio de povos e da própria natureza em favor de suas necessidades e desejos A superioridade portuguesa foi acentuada na narrativa de Abreu ao demonstrar o pleno convencimento desse atributo pelos estratos mais humildes da população colonial negros índios mulatos e mamelucos O reconhecimento dessa superioridade pela população da colônia foi exposta pelo autor ao narrar a invasão holandesa contra a qual todos lutaram juntos pela liberdade divina proporcionada apenas pelos verdadeiros donos da terra235 costumes captaram a simpatia dos indígenas isto é dos produtores e pouco a pouco foram preponderando Idem p 29 Por raças inferiores podemse depreender os índios mais ainda os negros cujo contato com os portugueses fora anterior à colonização estabelecendose desde as primeiras navegações nas costas da África O destaque é de nossa lavra 234 De acordo com Patrícia Chagas na história das chamadas relações raciais têm ocorrido a clara divisão dos atributos do corpo como sendo mais fortes nos negros e os atributos da mente como características quase que exclusivas dos brancos Para aquela autora a hierarquia capitalista impôs a compreensão de que os atributos físicos representavam características negativas pois o corpo era inferior à mente e subordinado a ela CHAGAS Patrícia de Santana Pinho Em busca da Mama África Identidade africana cultura negra e política branca na Bahia Tese de Doutorado em Ciências Sociais UNICAMP 2001 p 86 Nesta perspectiva tornase plausível porque para Abreu negros e índios portadores de atributos físicos foram submetidos pelos portugueses brancos de origem européia portadores de atributos mentais Pelo mesmo enfoque atribuiuse à astúcia e à inteligência um lugar geográfico a Europa e uma identidade racial branca O fato é que ao padronizar a partir de caracteres somáticos os grupos humanos existentes no Brasil tendo os portugueses europeus e brancos como padrão de humanidade e civilização superior Abreu determinou os lugares sociais e políticos que cada um desses grupos deveria assumir na sociedade contemporânea 235 Os termos são da lavra do próprio Abreu em Capítulos da história colonial p 1234 e são reveladores do entendimento do autor sobre a preponderância dos portugueses no contexto da sociedade colonial 115 A festejada liberdade então deveria ser entendida como um benefício concedido pela metrópole a um espaço que não se considerava diferente mas como uma expansão do reino português cuja conquista e colonização o fez senhor e possuidor de um pedaço da América denominado Brasil Defender a colônia dos invasores holandeses e franceses assumia o significado de defender Portugal de aceitar sua dominação manifesta no chamado Pacto Colonial de se submeter sem queixas à crescente espoliação de reconhecê lo como dominador Por outro lado defender Portugal e sua propriedade poderia significar sentirse súdito partícipe do reino distante e poderoso que se destacara pela ousadia das navegações pela descoberta de novas terras pela força de submeter diferentes raças e culturas na formação de um novo espaço Defender Portugal significaria acima de tudo sentirse português ou dele dependente mesmo sendo mazombo mulato curiboca negro ou índio Nesse enlace de diferentes etnias unidas pelo ideal de manutenção da colônia Abreu construiu um entendimento sobre a inexistência de qualquer outra identidade além da portuguesa no seio da colônia Para ele a identidade do colono não era diferente da do reinol a despeito das múltiplas formas de tratamento entre a população resgatadas em sua pesquisa documental Em Abreu o ser português era uma certeza inelutável de todos os habitantes da colônia mesmo que este fosse chamado de brasileiro Todavia o sentirse português foi mostrado pelo historiador como perpassado pela inferioridade em relação aos reinóis beneficiários diretos de dádivas da coroa e por isso sujeitos diretos das antigas sátiras236 A menor qualidade do português da América frente aos chamados filhos de Portugal aflorou no aprofundamento da condição colonial e no amadurecimento político da crescente população autóctone para quem Os triunfos colhidos em guerra contra os estrangeiros as proezas dos bandeirantes dentro e fora do país a abundância de gado animando a imensidade dos sertões as copiosas somas remetidas para o governo da metrópole as numerosas fortunas o acréscimo da população influíram 236 Basta lembrarmos as sátiras de Gregório de Matos o Boca do Inferno em relação ao português que se mudava para a colônia em resposta a outras tantas que existiam no reino Vem degredado por crimes ou fugido do pai ou por não ter o que comer salta no cais descalço despido roto trazendo por cabedal único piolhos e assobios curte vida de misérias amiúda roubos ajunta dinheiro casa rico e ocupa os cargos da república MATOS Gregório Crônicas do viver baiano setecentista O Burgo In SPINA Segismundo A Poesia de Gregório de Matos São Paulo EDUSP 1995 116 consideravelmente sobre a psicologia dos colonos Os descobertos auríferos vieram completar a obra Não queriam não podiam mais se reputar inferiores aos nascidos no alémmar os humildes e envergonhados mazombos do começo do século XVII Por seus serviços por suas riquezas pelas magnificências da terra natal contavamse entre os maiores beneméritos da coroa portuguesa237 No trecho citado já se faz reconhecer que as diferenças existiam mesmo que o historiador não tenha demonstrado intento de se aprofundar na temática sob pena de desvirtuar seu pensamento Havia de forma indubitável certa hierarquia entre reinois e colonos o que pode ser percebido nos documentos da época Como exemplo citamos uma correspondência dos vereadores da Câmara de Vila Rica solicitando ao trono que os filhos de Portugal tivessem preferência sobre os naturais da terra no acesso aos cargos Considerandose os principais artífices das riquezas da terra verdadeiros dilatadores do império os autores do documento traçaram a distinção entre colonizadores os reinois e colonos os que nasceram na América portuguesa num indicativo de que tais diferenças foram construídas dentro da própria colônia de forma a beneficiar uma elite em formação Por outro lado a leitura dos autos da devassa da Inconfidência Mineira desvenda uma parte das identidades coletivas do século XVII na colônia Há naquele documento 74 ocorrências para a palavra América que em pouco menos da metade dos casos designa o todo da América Portuguesa referindose em muitos momentos unicamente à capitania das Minas Os chamados filhos das minas referenciavam os nascidos na localidade ou filhos da América Três identidades distintas foram utilizadas no citado documento a saber a mineira como expressão do específico regional a americana numa expressão de alteridade com os metropolitanos os europeus e por último a portuguesa Em decorrência Abreu também fez uso ao longo de seus textos de vários designativos para demonstrar a existência de variadas identidades dentro da colônia embora não as tenha utilizado para problematizar uma postura política de enfrentamento com a metrópole Para Abreu o que havia era a vontade dos colonos em obterem da Coroa o mesmo tratamento dispensado aos reinóis que se diferenciar dos mesmos o que ratifica a percepção de que a identidade portuguesa pelos colonos era muito forte mesmo decorrido 237 Ibidem p 173 117 mais de um século desde o início do processo colonial Buscavase pois uma equivalência e não um distanciamento que denunciasse uma vontade de construir outra identidade que não a portuguesa num espaço onde parecia inexistir qualquer sentimento de oposição à metrópole pelos colonos nem qualquer ideário de formação de uma nova nação liberta das exigências metropolitanas238 Fosse qual fosse o designativo dos habitantes das distintas regiões da extensa colônia este não podia ser compreendido como uma identidade oposta à portuguesa Em Abreu o Brasil só se tornou brasileiro após a Independência quando o espírito da nação aflorou consolidandose com a própria nação Só então o colono aos poucos perdeu sua identidade original a portuguesa assumindo outra a brasileira Para aquele historiador tal qual Varnhagen a nação foi feita a partir de um ato político e não como resultante da montagem de uma comunidade modernamente inventada que se concretizou mediante símbolos práticas comportamentos e valores firmemente ancorados na vida social239 Embora Abreu não tenha reproduzido a história heroica do Oitocento sua escrita naturalizou representações compostas na historiografia do IHGB do século passado fazendoo sem críticas nem discussões e permitindo mesmo sem o notar sua reprodução A conotação depositada por aquele historiador aos portugueses merece destaque posto a história por ele escrita nascesse de um tempo onde eram rotos os laços entre Brasil e Portugal Os primeiros anos do século tempo em que lançou seus Capítulos fora um tempo de plena perseguição política e acentuado desprezo aos portugueses residentes no país Envolvidos nas lides do movimento operário os lusos eram considerados quando trabalhadores 238 Rodrigues considera que Abreu já vislumbrara o gene da independência nos conflitos entre colonos e reinóis acirrados por uma pretensa superioridade dos últimos mas não se interessara por alguns movimentos que ocorreram nos três primeiros séculos de colonização tal qual a chamada Conjuração Mineira Para Abreu aquele movimento não se configurou como um fato histórico sendo apenas um pensamento sem ação que não caberia numa obra que não se voltava para a história das ideias Outras ações revoltosas também foram descartadas de sua narrativa por serem concebidas como movimentos que visavam apenas modificações em alguns aspectos do chamado Pacto Colonial mas sem objetivar uma separação política RODRIGUES José Honório Op cit p 178 239 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 p19 118 usurpadores de empregos quando empreendedores exploradores dos brasileiros visto que exerciam controle sobre grande parte do comércio e das casas de aluguel240 O anterior e breve rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal em 1894 seguido pela indigesta Lei da grande naturalização e a sutil tentativa de travamento dos capitais escoados pelas remessas dos imigrantes portugueses são denunciadores do sentimento antilusitano que dominara o país logo após a proclamação da república alastrandose pelos anos seguintes em sessões populares de espancamento perseguições e agravos gratuitos Em meio aos turbulentos confrontos entre portugueses e brasileiros Abreu parece não ter sido abalado em seus propósitos de analisar objetivamente a realidade investigada tomando como base a informação colhida nas fontes utilizadas o que vem a demonstrar sua independência em relação aos poderes constituídos Sendo o discurso histórico de Abreu arquitetado a partir de qualidades positivas do povo português mesmo quando a monarquia não mais existia restanos destacar as razões daquele historiador em manter uma abordagem bem definida pelos historiadores oitocentistas mas que já não encontrava razões de ser no novo milênio Mesmo que a estrutura narrativa de seus trabalhos não comungasse com o estilo do século passado o lugar concedido por aquele historiador aos portugueses no seio da nação brasileira foi determinante para que se ratificassem os próprios brasileiros como descendentes de uma população forte capaz de construir seu próprio destino como os portugueses tão bem o souberam fazer Abreu buscava assim reproduzir um modelo já esposado por Martius e deliberadamente amoldado por Varnhagen fazendoo também à sua maneira Mesmo na República ele não construiu representações negativas do povo português de forma a não se afastar das orientações do seu lugar social o do historiador do IHGB Sua história é uma história de lutas e de vitórias vitórias de um lusoamericanismo diáfano do qual resultou a grande nação brasileira herdeira direta da grande nação portuguesa pátriamãe Uniase assim a história do Brasil com uma história universal nela dissolvendose 240 Cf CARVALHO José Murilo de Os bestializados O Rio de Janeiro e a república que não foi São Paulo Companhia das letras 1999 p43 119 CAPÍTULO 4 A EXPLORAÇÃO COLONIAL COMO PERSPECTIVA Ao tempo em que Abreu reforçava os laços que uniam Brasil e Portugal Manoel Bomfim241 se lançou no cenário nacional com uma obra sobre as razões do atraso que dominava as nações latinoamericanas entre elas o Brasil Médico por formação aquele 241 Manoel Bomfim intelectual sergipano nasceu em 08 de agosto de 1868 na cidade de Aracaju numa família de proprietários de engenhos Aos dezessete anos mudouse para a Bahia onde iniciou o curso de medicina mas o concluiu no Rio de Janeiro em 30 de julho de 1890 onde apresentou a tese Das Nefrites Em 1891 foi nomeado médico da Secretaria de Polícia tornandose um ano mais tarde tenentecirurgião da Brigada Policial Casouse com Natividade Aurora de Oliveira e se mudou para Mococa no interior do Estado de São Paulo com o objetivo de clinicar Teve dois filhos Aníbal e Maria sendo que esta veio a falecer com um ano e dez meses Desiludiuse com a medicina no ano de 1894 justamente por não ter conseguido salvar a filha Depois de abandonar a medicina regressou ao Rio de Janeiro e passou a se dedicar aos estudos sociais e a educação A princípio escreveu artigos para jornais ministrou aulas particulares ensinou português ciências e história natural e revisou provas tipográficas Em maio de 1896 Manoel Bomfim foi convidado pelo então prefeito da cidade do Rio de Janeiro Francisco Furquim Werneck de Almeida para ocupar o cargo de subdiretor do Pedagogium cargo que assumiu em 25 de junho daquele ano Criado em 16 de agosto de 1890 pelo governo provisório através do decreto No 677 o Pedagogium tinha a função de coordenar e controlar as atividades pedagógicas do país e de ser um centro impulsionador e estimulador de reformas e melhorias para o ensino público em contraponto à situação sofrível da realidade escolar brasileira Pouco tempo depois em março de 1897 Bomfim tornouse o Diretor Geral da instituição Escreveu livros de medicina livros didáticos para o primeiro e segundo graus e trabalhos de história onde pretendia compreender as causas dos males que assolavam o Brasil e a América Latina As suas obras históricas foram A América Latina Males de Origem 1905 O Brasil na América 1929 O Brasil na História 1930 e O Brasil Nação 1931 Também legou à cultura brasileira uma importante e ampla obra intelectual Além dos livros já citados escreveu ainda Cultura e educação do povo brasileiro 1931 O fato psíquico 1904 Noções de Psicologia 1916 Pensar e dizer estudos do símbolo e do pensamento 1923 e Métodos do teste com aplicações à linguagem do ensino primário 1928 Bomfim também teve relevante atuação na imprensa brasileira Foi redator e secretário de A República e da Revista Pedagogium diretor da Revista Pedagógica Educação e Ensino e um dos fundadores da revista quinzenal Universal Redigiu a revista Leitura para Todos e escreveu artigos para os jornais O Correio do Povo O Comércio Ilustração Brasileira O País Notícia e Tribuna Devido a sua vasta experiência pedagógica produziu diversos livros didáticos destinados ao curso primário e ao ensino médio Entre eles podemos citar Compêndio de Zoologia geral 1902 Lições e leituras para o primeiro ano 1922 Lições e leituras livro do mestre 1922 e Crianças e homens 1922 Com Olavo Bilac escreveu três obras didáticas que tiveram forte influência da formação inicial de gerações e gerações de brasileiros Livro de composição para o curso complementar das escolas primárias 1899 Livro de leitura para o curso complementar das escolas primárias 1901 e Através do Brasil livro de leitura para o curso médio 1910 Bomfim faleceu em 1932 aos 64 anos no Rio de Janeiro 120 intelectual interessouse em investigar a história brasileira e da América Latina após estudar na França onde se defrontou com a visão dos europeus sobre os latinoamericanos aos quais se atribuía inaptidão para o progressocivilização em decorrência de uma pretensa inferioridade racial característica de povos ditos mestiços Em face de tal destino anunciado pelas elites letradas européias e da submissão passiva da intelligentsia latinoamericana que passou a elaborar soluções locais para suas complexas realidades em matéria racial242 Bomfim assumiu o papel de denunciador dessa visão negativa da Europa sobre a América Seu trabalho inicial América latina males de origem configurouse como um libelo contra a ignorância interesseira243 das condições e da história social e política no passado e no então presente da América Latina criação europeia Bomfim esposou no início do século XX uma tese que se opunha à perspectiva da historiografia do IHGB na qual a união do Brasil com Portugal nos ligaria à civilização ocidental fazendonos possuidores das mesmas características das nações européias ou ao menos tendo alguma semelhança com as mesmas Se para o IHGB o colonizador era um agente civilizacional que trouxera para a colônia americana todo um aparato que dera à mesma o cariz de civilidade almejada para Bomfim não se encontrava no Brasil do início da centúria nenhuma das peculiaridades que tipificassem a ambicionada civilização pois dela só possuíase os encargos inexistindo qualquer um dos benefícios inerentes à condição de nação civilizada244 As benesses da civilização inexistiam no Brasil assim como nos demais países colonizados pelos ibéricos no continente cuja situação socioeconômica se assemelhava ao Brasil num contexto há muito definido como América Latina Ao fugir do padrão estabelecido pelo Instituto Bomfim sugeriu uma nova consciência nacional ao defender a necessidade do país se voltar para as nações vizinhas Esse olhar sobre o outro mais próximo deveria servir como um espelho que permitisse ao próprio 242 A propósito ver SANTOS Ricardo Ventura MAIO Marcos Chor Qual retrato do Brasil Raça biologia identidades e política na era da genômica Mana vol10 nº 1 p 1835 Abril de 2004 243 O termo é utilizado pelo autor em América Latina males de origem Rio de Janeiro Topbooks 2005 à pag 44 244 A respeito o autor esclarece da total inexistência na América Latina dos pressupostos de uma sociedade dita civilizada Nem paz nem ordem nem garantias políticas nem justiça nem ciência nem conforto nem higiene nem cultura nem instrução nem gozos estéticos nem riqueza nem trabalho organizado nem hábito de trabalho livre muitas vezes nem mesmo oportunidade de trabalhar nem atividade social nem instituições de verdadeira solidariedade e cooperação nem ideais nem glórias nem beleza Ibidem p 134 121 Brasil compreenderse não mais como uma extensão da Europa mas como uma criação defeituosa dela posto que marcado em sua formação por um cruento processo de exploração econômica que dilapidara grande parte de suas riquezas naturais e cuja população resultara desse processo Ressaltese que aquele autor reconhecia as diferenças existentes na formação da sociedade brasileira frente às nações vizinhas o que impedia que as mesmas fossem tomadas como um todo homogêneo O que unia essas nações além de sua localização espacial era a exploração colonial e os resultados que esta deixara no continente o subdesenvolvimento Em decorrência dessa percepção rechaçava o uso do termo latinoamericano como uma expressão identitária compreendendoo como parte de um discurso geoideológico articulado pelos franceses desde o período napoleônico no sentido de estender sua dominação ao chamado Novo Mundo245 O lusoamericanismo seria também uma identidade equivocada defendida por historiadores que transitavam num contexto híbrido onde a monarquia dominava com sua aura portuguesa abrasileirada ou brasileira com um caráter português de olhos fitos na Europa Para Bomfim não haveria uma identidade comum entre os povos da América posto a mesma ter sido destroçada pela sanha furiosa do colonizador cujas marcas se perpetuaram no panorama dessas nações atrasadas apesar de estabelecidas em terras férteis e pujantes O subdesenvolvimento por conseguinte não tinha como causa a mestiçagem das populações americanas como o queriam os franceses e demais pensadores europeus Em Bomfim o infortúnio dessa América dita latina tinha como raiz a colonização e os povos que a impuseram Por tal viés Manoel Bomfim não pretendia construir Portugal com as mesmas características dos historiadores do seu tempo pois sua compreensão a respeito do Brasil era diferente posto que o próprio país adentrasse há pouco num contexto diverso A monarquia não mais existia e os ares da república a qual Bomfim tanto admirava pareciam querer expurgar da memória nacional a imagem do português enquanto agente de um projeto civilizador Foram as condições sociais e os anseios daquele momento histórico que permitiram que se efetuasse uma mudança na construção dessa memória posto ser esta 245 BOMFIM Manoel O Brasil na América O Brasil na América caracterização da formação brasileira Rio de Janeiro Topbooks 1997 122 um espaço de lutas e de disputas do qual o próprio historiador fez parte 246 A transmissão dessa memória por sua vez esteve ligada à busca estratégica da identidade de uma sociedade em plena mutação247 Na investigação das condições sociais e políticas do caráter e das tradições dos ibéricos se estabeleceu a obra de Bomfim a denunciar uma América e um Brasil que parecia não se ver a divagar no desejo de ser propiciado por décadas de exploração mascarada em processo civilizatório Ao fazêlo buscou reconstruir a história da expansão ultramarina dos ibéricos alicerçada na ambição desmedida que findou por lançálos na decadência inevitável A visão de Bomfim sobre a Europa e a própria América foi determinante na modificação do olhar dos historiadores brasileiros sobre o outro num tempo em que o próprio Brasil se transformava 41 De vanguarda a parasitas O desvendamento da história da nação portuguesa marcou grande parte do primeiro trabalho de Bomfim cujo texto revelou uma nação mergulhada num profundo atraso cultural e econômico se comparado aos países vizinhos em pleno século XIX Tal panorama contrastava com seu passado glorioso repleto de feitos únicos no concerto geral das nações que a colocou na vanguarda do progresso Em Bomfim o original povo português foi vigoroso altivo e brilhante posto que capaz de reconhecerse como tal mesmo sob o domínio estrangeiro sobrepujandoo e constituindo se numa nacionalidade perfeita para sua época assumindo também em poucos séculos um incontrastável poder em terra e absoluto nos mares Ao tempo de sua expansão graças à alentada capacidade de sua população Portugal ofuscou a história dos demais povos europeus sendo mostrado pelo historiador sergipano como um império dos mais possantes e fecundos coautor da Era dos Descobrimentos num desdobramento de ações que culminou com a conquista e colonização do vasto território americano denominado Brasil Entretanto neste inegável passado glorioso de Portugal vislumbravase uma série de erros e abusos por parte de seus governantes e de suas elites que findaram por lançar o país num inexorável destino tornandose incapaz do autossustento já no setecento A expropriação 246 HALBWACHS Maurice A Memória Coletiva São Paulo Vértice 1990 p 53 247 MASTROGREGORI Massimo Historiografia e tradição das lembranças In MALERBA Jurandir org A história escrita teoria e história da historiografia São Paulo Contexto 2006 p 70 123 das riquezas alheias foi o mecanismo encontrado para suprir as veleidades construídas ao longo dos séculos numa nação que se formou guerreira mas que adentrou no terreno fácil das aventuras e da depredação de tantos territórios acostumandose à prática parasitária que findou por minar sua energia criadora Na narrativa bomfiniana enquanto a América se desvencilhava do colonialismo sufocante de suas metrópoles européias 248 Portugal plasmavase em profunda inatividade social contaminado por uma intensa fraqueza alardeadora de sua incapacidade em manterse soberana e livre diante de outros povos A análise arguta daquele historiador tomou como referência a formação do estado português cujos desdobramentos históricos compuseram seu caráter final de uma forma tão profunda a ponto de ser transmitida às elites coloniais boa parte de suas distorções A personalidade social portuguesa seria pois resultante do entrelaçamento cultural possibilitado pela presença de romanos seguidos de visigodos alanos e suevos No entanto a presença árabe na Península foi determinante para a deformação do caráter português com suas práticas inescrupulosas calcadas num belicismo desenfreado e numa extorsão sem medidas Civilização expansiva e guerreira na construção bomfiniana os árabes impuseram ao coração português seu gosto em acumular o melhor das riquezas fruto das rapinas e dos saques sobre os vencidos Ao longo de séculos de contato a prática mercantil e a tributação de territórios foram métodos apreendidos pelos governantes portugueses249 vindo a tornarse a principal fonte de riqueza de príncipes e fidalgos pelos séculos seguintes à conquista da Ibéria realizada a partir das mesmas práticas do invasor Se a rapina para Bomfim fora apreendida pelos ibéricos no contato com os árabes da 248 Observese que Bomfim analisou a independência colonial como um processo de formação de nações carreado pela vontade soberana de suas populações e não como atos políticos dos governos metropolitanos como o fizeram Varnahgen e Capistrano de Abreu sob a égide do IHGB Para ele as independências das nações americanas foram produtos da luta social contra a exploração de suas metrópoles após séculos de exploração e genocídio A emancipação somente se concretizou quando as ditas metrópoles já haviam mergulhado na decadência absoluta 249 A respeito da recepção dos métodos dos muçulmanos pelos governantes portugueses Bomfim buscou mostrar o quanto a prática do saque se tornara comum entre os governantes portugueses Para o hisotriador tratouse de um dos processos de fazer receita o processo geral e Afonso Henriques inventou um seu novo genere pugnandi assaltar furtivamente os castelos árabes quasi per latrocinium No rol dos crimes da fidalguia daqueles tempos figura invariavelmente a pilhagem o roubo Quando faltam castelos sarracen os saqueiamse uns aos outros coisa que o estado de guerras sucessivas entre as próprias nações cristãs permite e favorece A guerra é um sistema de rapinas e a rapina para eles os reis portugueses se tornou uma ocupação normal Ibidem p 878 124 península o furto de idéias e de conhecimentos também foi acrescentado ao cariz português Esse furto é expressivo na decisão portuguesa de partir para o Oriente para África e a própria Índia territórios bem conhecidos pelos chamados sarracenos que abriram o mundo ao português desvendandolhes os segredos desses lugares O conhecimento obtido nesse contato foi para Bomfim decisivo na realização da chamada expansão ultramarina e que assim mostrada tirou o brilho da empreitada portuguesa por não ter nenhum ineditismo Se na Ibéria o português já demonstrava ter aprendido as práticas mouras tomandoas como se suas fossem lançado ao mundo o português tornouse um navegador por excelência e sua arte trazia em si a conquista a guerra o saque como parte da estratégia de expansão de Portugal Não obstante em Bomfim os avanços da técnica naval e dos instrumentos de navegação desenvolvido em Sagres só valeriam de respaldo à certeza da vasta e freqüente apropriação do conhecimento das idéias e dos projetos dos povos árabe presentes na Península De parágrafo em parágrafo Bomfim construiu um português despido de brios dedicado a satisfazer seus próprios desejos Se até então o modelo de historiografia vigente no Brasil representava o luso como homem heróico de honra distinção e coragem a partir de Bomfim tal imagem começou a ser desfeita Para dar suporte à sua tese faziase necessário provar que o português se igualava a um ladrão cruel um salteador que atravessara os mares para se impor contra os povos americanos apropriandose de suas riquezas e destruindo sua cultura assim como já o fizera em outros lugares do mundo aos quais chegara por ter aprendido a dominar os oceanos e mares A presença portuguesa em variados lugares se fez marcar pelos atos de covardia e ferocidade e no Brasil mais especificamente a conquista territorial se fizera pela violência e agressão contra os povos nativos e até contra a própria natureza do lugar dizimada para ceder espaço a uma agricultura perversa Estranho à terra o cultivo estabelecido pelos portugueses a empobrecia enquanto os lucros dali auferidos permitiam o levantamento de palácios suntuosos de catedrais forradas do ouro na longínqua metrópole ouro extirpado à força das minas e aluviões pelas mãos nodosas de homens mortos de fome e sedentos de justiça social A violência que marcou o processo colonizatório episódio bem explorado no texto de Bomfim lastreou sua consideração a respeito da total ausência de civilidade dos 125 portugueses comparandoos aos mesmos selvagens por eles chacinados na América Nem civilizado tampouco civilizador o português tinha como seu real intento apenas a ambição posto que houvesse se acostumado com a perspectiva de tomada de riquezas e tesouros deixada pelos árabes e pelas Cruzadas Só essa ambição justificava que os povos ibéricos tivessem se lançado ao mar tomando por simulacro da empresa colonial uma religião cujas práticas destruíam culturas e escravizavam povos Na historicização das aventuras portuguesas pelos mais variados lugares onde estiveram é que Bomfim corporificou o argumento inicial de degeneração da nação portuguesa que aos poucos se transformou num parasita sobrevivendo apenas das riquezas produzidas longe de seu território Para aquele historiador o português não tinha temores nem rédeas e só a lei da natureza o dominava O contato com povos díspares parecia ter aleijado seu caráter e o cariz altivo modificouse em pura prepotência o domínio dos mares tirara dele o respeito ao outro a quem sempre via como um ser inferior e pronto a ser dominado a ser posto ao seu serviço à sua disposição A riqueza das terras alheias deveria ser sua se necessário pela força à espada ou punhal Para que perder tempo em desatarraxar os brincos das mulheres quando era tão simples cortarlhe as orelhas Para que regularizar tributos monopolizar comércio coisas para o porvir quando se podia arrasar a cidade e levar todo o ouro de uma vez para bordo Tais indagações foram repetidas por Bomfim ao narrar o contexto das grandes navegações portuguesas em clara alusão à obra de Oliveira Martins250 Todavia como já afirmado anteriormente a pretensão de Manoel Bomfim era explicar os males que assolavam no início do século XX a América Latina males que para ele se originaram no sistema colonial Se no primeiro momento Bomfim reconheceu a grandiosidade de Portugal enquanto império colonial ele também não escondeu a decadência desse império e procurou explicar as causas que a originaram O conhecimento das causas da decadência do império português deveria servir para que se reconhecesse por analogia os diversos problemas do Brasil e da América Latina e que haveria solução para eles desde que se assinalassem os mesmos e houvesse uma ação para combatêlos Com esse fito Bomfim inovava na forma de escrever história apontando problemas e desenvolvendo soluções praticando assim uma história combatente no dizer 250 Ibidem p 267 126 de LeGoff251 Afastado propositadamente do alvitre historiográfico do IHGB aquele intelectual se esmerou em apontar a decadência portuguesa iniciada ao mesmo tempo em que se firmava a colonização brasileira de forma a destruir deliberadamente as representações existentes até então na produção intelectual nacional no concernente a Portugal Não havia na retórica bomfiniana os herois nem os agentes civilizadores que povoaram a história dos tempos coloniais na retórica dos historiadores do IHGB Havia contudo ambição desenfreada e total despudor pela vida humana proporcionados por um povo que em seu próprio território permitira que fossem eliminadas sistematicamente todas as aspirações de liberdade ao erguer um sistema de escravidão espiritual do porte da Inquisição Ao passo que os demais povos europeus252 completavam a sua evolução e se estabeleciam definitivamente aplicando as descobertas da ciência às reais necessidades da vida criando a indústria moderna normatizando o trabalho fundando a riqueza estável pela produção inteligente completando seu desenvolvimento econômico os portugueses foram mostrados por aquele autor como totalmente distanciados desse concurso de progresso Enquanto os ânimos fortalecidos pela ciência iam lutando e se libertando para atingir o estado de emancipação de espírito dos fins do século XIX em diversos países europeus os portugueses tornavamse na ótica bomfiniana alquebrados e corroídos tanto econômica quanto politicamente perdidos na sua ânsia de apropriação da riqueza alheia sem maiores preocupações com os avanços da ciência e da técnica A modernidade parece não ter encontrado espaço nas sociedades ibéricas segundo Bomfim e o desapego ao progresso científico e artístico foi apontado como predominante para a degradação dos Estados da península A Ilustração portuguesa para aquele historiador foi o marco inicial de sua deterioração aferrada tão somente às letras e ao bacharelismo a olhar com desdém os albores do cientificismo que inundava o Velho Mundo como se a ele pudesse ter livre acesso apenas a partir das riquezas auferidas de suas colônias Bomfim destacava não ser possível encontrar um único representante português ou espanhol entre os homens que fundaram a cultura moderna e dominaram a natureza ou naqueles que refizeram a filosofia racionalista que iluminou as gentes na conquista da justiça e da liberdade 251 Le Goff Jacques Combates pela história Lisboa Editorial Presença 1989 252 Entendase que a respeito desses povos o autor referenciava diretamente os franceses e ingleses cuja organização social sempre foi tomada como paradigma da modernidade pelos intelectuais brasileiros 127 Esse desencontro de mundos tão próximos esse caminhar eqüidistante das nações europeias subsidiou a argumentação de Bomfim ao destacar o quanto Portugal se aprofundara num processo degenerativo sem voltas se comparado ao robustecimento das demais nações do Velho Mundo Ao tempo que aquelas pouco ou nada eram no panorama mundial Portugal surgira coberto de glórias de fronte alteada pelos sucessos de suas descobertas e pela plenitude de seus domínios mundo afora Enquanto a Europa engatinhava para a modernidade Portugal já exibira uma organização social e política que servira de modelo Mas sua altivez se perdera ao só enxergar a pimenta e o açúcar como os luminares de seu presente e os albores de seu futuro Os lucros oriundos de suas experiências ultramarinas injetaram em seus governantes a loucura da ostentação majestática e fradesca que resultou numa nação de estufa253 ainda no século XVII arrastada por seus governantes a uma vida pedinte e miserável Em decorrência tornouse cem anos depois num país desolado e despovoado aferrado às suas colônias para sobreviver Parasiticamente254 Ao fazer uso da metáfora de parasitismo para esclarecer a relação de exploração e domínio da metrópole sobre a colônia causadora de assimetrias e desequilíbrios como a hipertrofia do Estado e a distância social e política entre o povo e a elite evidenciouse no texto de Bomfim a articulação entre a vida prática e a ciência Tal dinâmica refletiu a coerência entre os interesses cotidianos do historiador e as perspectivas de orientação e formas de representação do passado usadas por ele na composição do conhecimento histórico científico Sendo Bomfim médico por formação entendemos como natural seu interesse pelas representações biológicas das quais era um conhecedor largamente usadas e difundidas em seu tempo como evidente recurso homológico de análise social O uso de tal homologia em sua argumentação repetiu a prática de seu tempo ao fazer a conexão entre dado organismo biológico e o organismo social português considerando a justaposição entre um e outro255 Seu biologismo não era infundado visto que foi 253 O termo é do autor e pode ser encontrado em América Latina males de origem à p117 254 O recurso à metáfora organicista tem relação com autores como SaintSimon Comte Spencer e Durkheim além de Charles Darwin Haeckel Ribot e Tarde de quem tomou as noções de evolução hereditariedade instinto adaptação e imitação A respeito das metáforas utilizadas pelo medido sergipano ver UEMORI Celso Noboru Dominação e consentimento na obra A América Latina Males de origem de Manoel Bomfim História em Revista v 14 p 81100 Dez2008 255 Apesar de usar de tal analogia Bonfim rejeitava a aplicação à sociedade de conceitos biológicos e de categorias darwinistas como a luta pela existência e a lei de sobrevivência dos mais aptos pois entendia que o elogio da livre concorrência pelos evolucionistas quanto à afirmação das diferenças inatas entre as etnias 128 ressignificado como método de interpretação da vida social sem no entanto constituir uma identidade entre um e outro Para aquele autor Portugal adentrou na prática parasitária no momento em que se lançou ao mar em busca de um novo caminho onde pudesse ter acesso aos cobiçados produtos do Oriente que lhe valeram grandes lucros e pujante enriquecimento A esta fase Bomfim denominou de parasitismo heróico visto que o organismo social ainda não se sedentarizara destacandose como vanguarda entre os países vizinhos a darlhe exemplos de competência e destinação para liderança continental Era livre aquele Portugal que se lançara em busca de novidades e riquezas que modificaram a face da Europa alterando suas estruturas e ao mesmo tempo mantendo as de sua sociedade Era livre porque era uno indiviso e sua prática só o engrandecia posto que repetisse os feitos da antiguidade clássica ao apropriarse de riquezas alheias exibindoas e repartindoas com quem pudesse pagar Era livre aquele Portugal pois era independente de riquezas e lugares específicos tudo o que existia estava à sua disposição pois o Mundo era seu Seu heroísmo consistia no devassamento do desconhecido no desvendamento dos segredos de sítios exóticos no domínio de outras culturas na submissão de tantos povos às suas vontades Só aos livres esse heroísmo era permitido Tal liberdade contudo foi desfeita com a execução do empreendimento colonial obra que exigiu um agigantamento grotesco da nação que se tornava metrópole e que para tanto dividia seu próprio corpo como forma de dominar em absoluto o que até então só o fizera de forma relativa No caráter paralisante do chamado exclusivo metropolitano Bomfim ancorou sua metáfora biológica dandolhe novos significados a demonstrar a degeneração do organismo sociopolítico português aos poucos deformado pela prática exploratória que levou a efeito sobre a colônia americana parasitandoa As práticas e estratégias da metrópole sobre a colônia se assemelhavam para ele às ventosas do parasita a sugar tudo de onde fosse possível vislumbrar o enriquecimento estariam em flagrante contradição com as idéias do evolucionista Sobre a temática afirmara que Darwin nunca pretendeu que a lei de seleção natural se aplicava à espécie humana como o dizem os teoristas do egoísmo e da rapinagem In América Latina males de origem p 288 Segundo aquele autor a ideologia liberal e o método evolucionista se fundariam na transposição indevida para o campo social do conceito darwinista de luta entre as espécies o que levava à apologia da livre concorrência entre indivíduos Ao contrário do que diziam os evolucionistas a luta pela sobrevivência seria substituída na sociedade pelo concurso e solidariedade entre os homens e só poderia ser empregada em termos sociais em sentido figurado devido às relações de dependência e cooperação 129 posto que assim o fazia Portugal há séculos acostumado que fora à aventura e ao saque Àquele autor não importaram os desafios da empreitada os medos as mortes as doenças e todas as dificuldades superadas pelos colonizadores posto que bem decantadas por outros historiadores portugueses e brasileiros Sua tese foi às entranhas do processo colonizatório na tentativa de desmascarar o que até então não havia sido mostrado aquilo que não havia sido historicizado e compreendido em seu âmago Seu discurso se configurou como profunda crítica ao discurso ideológico de sua época erguendose solitário como um contradiscurso disposto a fazer aflorar as incongruências da produção intelectual daquele momento Tomada como a principal categoria de análise o parasitismo permitiu que Bomfim pensasse a sociedade colonial como uma estrutura na qual os indivíduos e grupos tinham funções mas não vontades pessoais Havia uma racionalidade subjacente moldando as vontades o desejo único de se apossar da riqueza produzida como objetivo único em todas as classes e grupos O parasitismo era o sujeito que controlava como uma força exterior mas nunca transcendental que determinava e submetia a vida e o comportamento de todos nos dois lados do Atlântico de forma a garantir o funcionamento e a conservação da máquina de produzir e extorquir riqueza Em Bomfim o vocábulo que definia as feições do empreendimento colonial que demonstrava seu espírito que se adequava às práticas do exclusivo metropolitano era Exploração Uma exploração típica dos parasitas em relação às suas presas numa prática desdobrada em variados matizes e iniciada na colônia americana com a chamada preação indígena originada no contato com as práticas tribais do continente negro A análise do processo colonial realizada por aquele intelectual abandonou a discussão de civilização tão acalentada pelos historiadores do IHGB para adentrar no terreno da exploração do homem pelo homem introduzindo o enredo da teoria marxista ainda pouco recepcionada pelo pensamento social brasileiro no início do século A perspectiva marxista se revela na narrativa bomfiniana no embate entre parasitas e parasitados de explorados e exploradores numa alusão direta à luta de classes decantada no Manifesto Comunista Contudo aquele autor não se limitou a isso Em nosso entendimento a principal preocupação de Bomfim consistia em desmistificar tanto ideológica quanto cientificamente o pessimismo das teorias raciais justificadoras dos problemas existentes nas excolônias ibéricas Ao usar a homologia do parasita o autor não abandonou o enredo 130 marxista que continuou inserido de forma difusa em seu texto mas o fez indo além ao mostrar o parasitado como um organismo maior superior rico e capaz de sustentar o parasita o Brasil e a própria América seriam detentores de tais adjetivos Da mesma forma sua linguagem construiu os Estados metropolitanos como parasitas inferiores minúsculos fracos num certo sentido e acima de tudo dependentes Abertamente ele foi apologético do Brasil e para sêlo construiu uma imagem profundamente negativa de Portugal num tempo em que a lusofobia já dominava a população nacional considerada portadora de um caráter inferior do qual resultavam os muitos problemas nacionais Para Bomfim a verdadeira origem dos profundos males do continente tinha no colonialismo suas raízes históricas combinada com a dominação interna imposta pelas elites dirigentes Entretanto foi a ampliação da prática parasitária que ocasionara a degradação de Portugal que sedentário e alijado do processo produtivo europeu em escala crescente e cada vez mais dependente da exploração do trabalho em suas colônias decaiu em sua própria força Uma força que nada mais era que o disfarce de sua incapacidade de lutar contra a natureza de não ter necessidade de apurar os seus processos nem de por em contribuição a inteligência por não ter aprendido a tirar da natureza sua subsistência e sim do trabalho de outro grupo Entranhada no âmago do tecido social português essa prática se alastrou a todos os âmbitos da sociedade portuguesa inaugurada por sua monarquia sobre os súditos que se destinaram a dar sentido à colônia com seu trabalho explorandoos a partir da cobrança de tributos dízimos e monopólios num desdobramento incomum e avassalador O Estado português assim tornarase um parasita da colônia americana fato repetido pela Igreja que cedo se transformara em parasita direta da colônia e do Estado português Com a nobreza sucedia a mesma coisa ao parasitar o trabalho escravo nas colônias ou parasitando o próprio Estado por meio de sinecuras e pensões Quanto ao português comum empenhado na faina colonial esse também fez uso dessa prática ao submeter pela força o indígena obrigandoo a trabalhar e posteriormente quando o genocídio e a belicosidade dos sobreviventes impediram a continuidade dessa exploração ao lançarem mão do trabalho do africano reificado no eito Em tal contexto Bomfim definiu os principais traços do português colonizador ascendente direto da elite brasileira que herdara seu nome e por conseguinte sua tradição O autor o descreveu como um homem que sonhava com 131 O lucro imediato O colono encontrou na escravidão o processo sonhado algumas centenas de escravos e um chicote para cada turma eis tudo que era preciso Ele não tinha que apurar a inteligência nem desenvolver atividade Se os lucros não lhe pareciam bastantes era só aumentar o número de escravos Já ignorante já retrógrado por educação como ele iria pensar em modificar os processos de produção aperfeiçoar instrumentos de trabalho dar tratos aos talentos para achar lavouras mais remuneradas quando tinha um meio seguro infalível e simples crescer o número de escravos Tiravase ao escravo quatorze dezesseis horas de trabalho por dia mas esse trabalho se fazia segundo processo tão grosseiros e primitivos que não produzia o que se poderia produzir em três ou quatro horas de trabalho inteligente Que importava isso ao colono Ele via as coisas em grosso O provérbio português Antes pilado a pilão que comprado a tostão era sua divisa O essencial era que a receita viesse exonerada de qualquer despesa Àquelas inteligências sumárias este fato se afigurava como garantia absoluta do bom negócio tudo é lucro Ideal256 Embora o autor tenha demonstrado um colono empenhado na faina colonial interessado nos ganhos produtivos fez questão de enfatizar o cariz sádico dos mesmos denunciando o trato brutal do chicote e o exagero no uso da força física e da tortura sobre a massa escrava Essa prática atroz oriunda dos métodos de uma sociedade marcada pelo descaso com a dor e o sofrimento humano já abordados por Capistrano de Abreu foi diagnosticada por Bomfim como parte do processo parasitário ao se apossar do organismo para dele retirar vantagens Para tal fim não se fazia necessário procedimentos mais refinados que o emprego do pau do pano e do pão Da mesma forma também realçou um português desinteressado dos avanços de seu próprio tempo que inaugurou a escravidão na América quando a Europa se livrava dos estatutos da servidão por antever no assalariamento maiores vantagens A narrativa bomfiniana impôs a compreensão de que tais vantagens não eram significativas para o português imerso numa cultura que centrava o lucro embora distanciado de maiores investimentos Ao tempo em que o capitalismo deu seus primeiros passos como sistema econômico e que a denominada acumulação primitiva alçara a condição de estágio preparatório para a revolução industrial os portugueses optaram pela escravidão dandolhe um novo significado Mesmo que aquela prática proporcionasse grandes lucros Bomfim não a entendeu como uma nova forma de acumulação apenas a analisando sob o viés da 256 Ibidem p 1467 132 dominação e exploração que marcava a atividade parasitária posto que os lucros do período nunca fossem revertidos em prol de outros empreendimentos senão a compra e venda da massa humana transportada nos tumbeiros para mourejar nos canaviais e nas minas A fixação na prática de auferir vantagens sem maiores investimentos foi justificativa para que aquele autor aprofundasse sua apreciação negativa sobre os lusos Para Bomfim fora a própria cultura parasitária arraigada em Portugal que aleijara seu povo empobrecendo seu pensamento castrando sua habilidade criativa anulando sua capacidade de reinventarse sem tencionar ajustarse aos avanços científicos de seu próprio tempo Em decorrência tornarase ignorante alienado incapacitado diante das exigências de um mundo em plena mutação ofuscado pelo brilho do ouro e dos diamantes e embriagado pelo cheiro doce das caixas de açúcar A retórica bomfiniana que mostrava um português ignorante marcado pelo atraso e pela inexistência de instrução formal fazia eco ao discurso antilusitano que destacava o analfabetismo e as dificuldades com as contas enfrentadas pelos caixeiros lusos e cujas falhas resultavam na multiplicação de anedotas e chistes impiedosos pela população em geral contra aqueles imigrantes A ressignificação dessa visão preconceituosa pelo autor por sua vez é demonstrativa do quanto o sergipano foi influenciado pelas práticas de seu tempo no ambiente do Rio de Janeiro principal reduto dos portugueses numa América que outrora lhes pertencera A colônia na visão de Bomfim nada mais fora que um rico organismo infectado por um parasita que lhe minara as forças deixandolhe com deformidades que careciam de cuidados sob pena de transformaremse em aleijões permanentes A metrópole por sua vez fora um dia uma nação briosa formada por um povo valoroso que fora conduzido por seus governantes a uma prática parasitária inicialmente perpassada por ações heróicas que em parte lhe dignificavam Não obstante o aprofundamento dessa prática dera uma nova feição ao antigo Portugal heróico que ao investir na empresa colonial caíra no sedentarismo doentio que findou por transformálo num Estado decadente improdutivo a sustentarse da exploração da mão de obra fosse aquela acorrentada nos tumbeiros ou pela prática da tributação Segundo o autor o parasitismo impunha três efeitos malévolos o enfraquecimento do parasitado com a exploração de uma classe sobre as demais ocasionando gritante desigualdade as violências exercida sobre ele obrigandoo à continuidade de serviços para 133 os parasitas seja no âmbito individual seja no âmbito nacional e a adaptação do parasitado às condições de vida que lhe eram impostas suplantada numa certa paralisia social Tais efeitos ocorriam em todas as facetas da vida coletiva e podiam ser notados em várias dimensões da sociedade brasileira Mas como Bomfim explicou o parasitismo português em relação à sua colônia americana Como ele esclareceu a prática espoliativa do Estado Português em relação ao Brasil O autor foi claro ao demonstrar que no plano econômico e administrativo o Estado em Portugal no concernente à sua colônia americana faltava muito para que se reconhecesse como Estado moderno garantidor protetor órgão da nação seu defensor e representante Os serviços públicos eram nulos e da máquina administrativa constava tão somente o fisco seguido pelas tropas e pelos justiceiros do rei Com tal análise Bomfim seccionava o Brasil colonial do Portugal metropolitano mostrandoos como diferentes desunidos pela própria condição de espoliação perpetrada pelo segundo contra o primeiro Não havia portuguêsbrasileiros ou lusoamericanos no contexto colonial como fomentado amplamente na historiografia oitocentista Havia tão somente parasitas e parasitados exploradores e explorados organismos distintos embora um contivesse o outro para sua própria desgraça Tal destino podia ser analisado no plano social brasileiro onde o parasitismo português atuou de forma profunda nomeadamente na vida intelectual e moral daquela nação De livre e indivisa sua população se tornou heterogênea instável fragmentada quase uma sociedade de castas Seus traços se replicaram por conseguinte na sociedade parasitada ao que Bomfim denominou de hereditariedade social seja a herança do caráter da metrópole de suas leis suas instituições seus traços psicossociais daí decorrendo os grandes problemas existentes no Brasil do início do século Tais problemas não poderiam ser encarados como fruto de uma sociedade marcada pela mestiçagem bem ao contrário não fora a questão racial que definira o caráter nacional mas as imposições e transposições originárias de uma metrópole defeituosa Essa herança social findou expressa no conservantismo próprio das sociedades latino americanas impondolhe uma paralisia impeditiva de mudanças e que se tornou mais problemática por ser próprias das classes dirigentes clamava Bomfim Tais classes em decorrência se opunham a qualquer inovação ou mudança e o pensamento político nacional consistiu sempre em encontrar estratégias para impossibilitar quaisquer tentativas 134 de reforma De acordo com o autor das qualidades transmitidas pelos portugueses aos brasileiros a mais sensível e interessante também a mais funesta foi o conservantismo não se podia dizer obstinado por ser em grande parte inconsciente mas que se poderia chamar propriamente um conservantismo essencial mais afetivo que intelectual 257 Tal conservantismo seria o elo a unir Brasil e Portugal mesmo depois da separação e que lastreava um ponto comum na identidade das duas nações Esse conservantismo do qual falou Bomfim refletiuse na educação bacharelesca tão estimada pelas classes dirigentes nacionais fato que as levou a interpretar os problemas estruturais sem buscar entender as condições históricas nas quais encontravamse também inseridas258 Vêse assim que Bomfim era uma excelente observador da realidade nacional contestando o pensamento hegemônico brasileiro e latinoamericano como um todo por entender sua formação elitista seu nascedouro de aleijão cujos desdobramentos findariam por impedir o desenvolvimento do continente de forma que o mesmo nunca alçasse os ares de civilização que ainda não tinha mas que era ansiada a todo custo 42 O caráter predatório e dissoluto dos Bragança A crítica às elites dirigentes do Brasil marcou grande parte dos escritos históricos de Bomfim que problematizara sobre o tema com o fito de investigar a origem da mesma forjada desde a colônia e que se tornou governante do Brasil após sua independência259 257 De acordo com Antônio Cândido o conservantismo foi uma das ideias fundamentais de Manoel Bomfim talvez a que seja politicamente mais importante do seu livro e sem dúvida uma das mais fecundas e esclarecedoras para analisar a sociedade brasileira tradicional assim como as suas sobrevivências até nossos dias Cf CÂNDIDO Antônio Radicalismos Estudos avançados Vol 4 nº 8 1990 p 13 258 Segundo BARONI o sistema educacional brasileiro foi seriamente afetado pelo bacharelismo português e por decorrência sempre valorizou a instrução erudita desvalorizando os saberes do povo Para o autor tal disparidade findou por colocar o indivíduo ao nível da produção intelectual de sua época mas não permitiu que desenvolvesse o espírito de observação tão necessário para refletir sobre as especificidades de seu meio Cf BARONI Márcio Henrique de Morais Entre o continente e a nação São Paulo Annablume 2004 p 76 259 Rodrigo Ricúpero se voltou também a entender a formação da elite colonial esclarecendo nuanças sequer aventadas no trabalho de Bomfim sobre a dita formação O autor deu ênfase às estratégias da coroa portuguesa para manter na colônia a sua face visível materializada em seus vassalos residentes que em troca de benefícios no jogo patrimonialista de honras e mercês levaram a cabo a empreitada colonial Fora m esses residentes o germe da chamada elite colonial ancorada na tríade terratrabalhopoder que por si só já os transformava em agentes de dominação portuguesa restando aos mais humildes interessados em viver na colônia se engajarem como soldados em uma campanha qualquer para poder ali chegar A análise daquele autor desmistifica a corrente de pensadores brasileiros que ajuizava os súditos portugueses que fizeram a colonização do Brasil como apenas infames e degredados de forma a reafirmar a inferioridade moral da 135 Para tanto indagou Donde veio o que valem os que conduzem esta pátria 260 Seu interesse pelo tema brotou da decepção pessoal para com os rumos tomados pelo país em plena consolidação da República Nascido nos tempos da monarquia Bomfim aderiu à propaganda republicana ainda bem jovem e sempre defendeu aquele sistema de governo Não obstante ao testemunhar no panorama político republicano as mesmas desídias existentes no sistema anterior desencantouse ante aquilo que chamou de degradação dos costumes Seu texto evidenciou um desabafo e uma contestação à política nacional e seus desdobramentos pois se anteriormente o historiador antevira um futuro condigno para o Brasil desde que o país se esforçasse para superar os vícios contraídos desde os tempos coloniais naquele momento revelava um desencanto com a direção que o Brasil tomara afirmando da impossibilidade de divisão dos destinos nos planos da normalidade261 população nacional Por outro lado mostra que desde os primórdios da colonização já havia notável diferença no trato da Coroa Portuguesa em relação aos seus súditos havendo aqueles privilegiados assim como outros totalmente desassistidos RICÚPERO Rodrigo Op cit p 99100 Sobre o mesmo tema Luís Filipe Alencastro elencou dois tipos coloniais distintos o homem ultramarino e o homem colonial de forma a diferenciar os vassalos reais que participaram do processo colonial Enquanto o primeiro atuava pelo Império para aproveitar as recompensas na metrópole o segundo circulava por várias regiões mas apostava sua promoção social e econômica em uma determinada região do Império No conjunto da sociedade Alencastro esclareceu ser necessário incluir várias categorias de vassalos com pretensões bem mais limitadas que os primeiros e dispostas a atuar em áreas restritas com visto nas mercês concedidas pela Coroa O autor é taxativo ao afirmar que eram essas mercês fossem materiais ou simbólicas sumamente importantes na transferência de valores estamentais da metrópole para a colônia onde se fazia mais que necessário recriar as hierarquias sociais vigentes em Portugal com a promoção de setores da baixa nobreza ou mesmo plebeus que passaram a formar o topo da sociedade colonial embasados nas honrarias e propriedades conferidas pela Coroa garantindose assim o substrato econômico para que essa elite em formação pudesse desempenhar as tarefas que lhe cabiam na empresa vinculados à administração direta e indireta de partes do Brasil Para Alencastro porém os homens ultramarinos pouco se interessavam pelas mercês posto já serem nobres e só buscavam principalmente benefícios materiais no Reino para lá voltando ou dirigindose para outras áreas do Império tão logo concluíam suas tarefas na colônia Ao contrário o homem colonial via nas mercês mais importantes terras e cargos administrativos e hábitos da Ordem de Cristo e os foros de cavaleiro os elementos necessários para a montagem de seu patrimônio representativo dos grupos que formariam a leite colonial no Brasil In ALENCASTRO Luís Felipe O trato dos viventes formação do Brasil no atlântico Sul séculos XVIXVII São Paulo Companhia das letras 2000 p 103 260 Bomfim Manoel O Brasil Nação Rio de Janeiro Record 1988 p 40 261 Em fins dos anos vinte tempo da escrita de seu trabalho só publicado em 1931 o país era dominado por oligarquias regionais coronéis que determinavam as leis e a justiça em sua própria região que nomeavam os juízes e que diziam quem deveriam ser os párocos nas localidades por eles dominadas As eleições eram fraudadas o eleitor sofria coação para votar em candidato determinado pelos líderes políticos das regiões as verbas federais eram direcionadas para os interesses desses mandatários cuja hegemonia somente foi quebrada com a chamada Revolução de Trinta Sobre a vida política nacional do período Bomfim assim referenciou sua percepção Assisti se bem que obscuro e humilde a todas as lutas transes e contendas da implantação do regime republicano para ver ao cabo de um decênio largaremse os homens à ceva bruta 136 O rumo incerto no qual enveredara o Brasil resultava para Bomfim das escolhas e da postura de sua elite política organizada para dessangrar o país voltada apenas aos interesses próprios e com o fito único de auferir vantagens para si e os seus O parasitismo assim voltava à tona como meio de análise daquele historiador desta feita sobre parte da população brasileira herdeira direta do sangue e das qualificações que tipificavam a corte portuguesa portadora dos mesmos vícios ostentados pela elite nacional e reconhecida por Bomfim como a expressão máxima do parasitismo português Foi no sentido de denunciar a corrupção dessa elite que Bomfim elaborou uma tessitura entre seus integrantes e os Bragança a quarta dinastia dos reis portugueses A vontade dos governantes nascidos naquela casa imperou no Brasil desde 1640 quando ascenderam ao trono português perdurando até 1889 com a expulsão dos seus representantes e a extinção do sistema monárquico no Brasil Para Bomfim tal interregno representou um tempo de submissão no qual a torrente das práticas exploratórias bragantinas invadiu o Brasil nele se fixando de forma traiçoeira capaz de se reproduzir e se fazer identificar como natural do lugar262 O produto dessa reprodução naturalmente poderia ser identificado com facilidade na elite que dominava o panorama nacional que fossada foi a lameira onde desapareceu o pouco de brio dos dirigentes E tanto que consagrada indiscutivelmente a República nos últimos vinte anos vimola definida na inteira degradação dos costumes políticos Já nem importam os nomes que eles não modificariam esse parecer Contudo ensinaram muito esses vintes últimos anos tudo que se poderia aprender de um mundo totalmente podre Aprendi então como os nossos dirigentes são incapazes de compreender e realizar a democracia como temem a liberdade que nunca conheceram aprendi como se mostra a degradação de uma classe por definição do escol como se organiza o Estado para a exclusiva injustiça até a torpeza e o roubo como é preciso não ser honesto nem sincero nem apto Vi como evolui a corrupção como se consagra a infâmia e a ignorância como é livre o poder para atentar contra as mais humanas das tradições brasileiras a da bondade e da compaixão E assim se fez o esquema das qualidades precisas a um político para ser estadista na República Brasileira Ibidem p212 A visão do autor teve amparo em sua larga experiência e proximidade com os próceres do poder em face de seu próprio lugar social Oriundo de família rica do Nordeste do país o médico Bomfim falava de um lugar privilegiado embora contraditoriamente contra os de sua própria classe 262 Observese que aquele autor enfatizou o poderio dos Bragança no Brasil e sua provável infecção pela citada dinastia apenas nos dois primeiros séculos da colonização Para ele esse foi o espaço de tempo suficiente para que se germinasse a idéia de pátria na colônia posto que nos setecentos multip licaramse os movimentos e levantes contra a metrópole fruto da consciência plena de que o Brasil não era uma extensão de Portugal mas um celeiro de onde os lusos tiravam seu sustento sem pedir nem pagar Assim ele deu visibilidade à sua idéia de que a América Portuguesa era apenas uma criação dos historiadores que deturparam as tradições ao falsearam a história trazendo para o Século XIX apenas o sentimento de nação brasileira quando este já existia desde os setecentos Sendo Bomfim um republicano de primeira ordem explicase por este viés seu esforço de fazer valer a inexistência ou a pequena existência de uma América Portuguesa ressaltando a experiência de um Brasil uma comunidade imaginada em si e para si com todas as implicações que a nacionalidade pressupõe Buscava assim retirar da memória nacional uma 137 Para Bomfim o mal não advinha de um sistema político exclusivo posto defender repetidas vezes que Portugal tivera na dinastia de Avis uma liderança segura capaz de ter lançado com destaque aquela nação no contexto europeu mesmo que moldados na guerra e na violência O mesmo não podia dizer dos Bragança263 os grandes responsáveis pela dissolução de um Portugal que de heróico perdeuse num vazio sem volta por ser liderado por uma estirpe marcada pela ganância e pelo enriquecimento sem critério tornandose apenas um Estado parasitário independente da genialidade de seu povo e de sua formação Assim sua oposição não se dava contra o sistema monárquico exclusivamente mas especialmente contra os próprios Bragança cujo último remanescente governara o país durante a juventude do historiador quando aquele integrava as hostes dos que viam a república como o remédio necessário para sanar os males da sociedade brasileira oitocentista A questão em pauta não estava atrelada apenas a um sistema político mas às idiossincrasias de uma linhagem marcada fortemente por tantos defeitos de caráter que os legara sem maiores dificuldades aos seus descendentes políticos mesmo que nascidos em outro contexto De antemão já se depreende que aquele autor tornara a fazer uso do conceito de herança social para desenvolver seus argumentos sobre os graves defeitos por ele apontados nas classes dirigentes nacionais Seu ponto de vista sobre esse espólio foi mostrado de forma indubitável no excerto seguinte Sobre a energia renascente de germes vivazes a deprimente influência de uma direção que foi desde logo contaminação estiolamento corrupção irresistivelmente operante diabolicamente perversa porque veio de cima Recebendo em fatalidade de herança o que de útil pudesse haver na alma portuguesa o Brasil teve que herdar a tradição e as normas dos dirigentes dali a sorte de uma nação feita com a direção dos mesquinhos governantes teve de ser o fermentar de misérias em que se resume nossa vida nacional Não houve colônia que tanto sofresse das condições de governo em que se achava ao tornarse soberana e livre Depois de ter sido durante quase dois séculos carne viva para a varejeira simbologia monarquista intrinsecamente ligada à história colonial pautada pelo engrandecimento e valoração dos monarcas portugueses como esteio de sagração nacional 263 Observese que Manoel Bomfim destacou a prática exploratória dos Bragança como um legado mental maldito repassado à elite brasileira marcadamente gananciosa e despida de preocupações para com o destino coletivo Não obstante o autor reconhecia notável distinção entre os Avis e os próprios Bragança desconsiderando a existência da linhagem de sangue entre as duas dinastias que juntamente com a Afonsina originaramse da casa ducal de Borgonha Ao distanciar as práticas de governança dos Avis da dos Bragança Bomfim resvalou no próprio argumento de transmissão de mentalidade por ele utilizado à farta contra a extinta casa imperial brasileira e a elite nacional uma vez que considerava os Avis uma liderança segura virtude inexistente nos descentes brigantinos 138 lusitana o Brasil acabou incluindo em sua vida o próprio Estado que de lá emigrara na plenitude da ignomínia bragantina264 A degradação do organismo social brasileiro assim teria ocorrido em razão do caráter de sua formação histórica que lhe imprimiu o caráter de celeiro português de onde tudo se tirava e nada era reposto A prática dos dirigentes portugueses por sua vez não cessou quando extinto o pacto colonial assumindo outras dimensões quando da mudança da corte o que ocasionou extorsões de outra natureza num círculo vicioso pelo qual os governantes portugueses nunca perderam seus benefícios o que não se pode afirmar em relação ao próprio Portugal Tal afirmação a nosso ver marca o aprofundamento da tese inicial de Bomfim ao adentrar na exploração bragantina quando radicada em terras da excolônia O Brasil assim como toda América Latina parasitado pela metrópole que o colonizara infelizmente findara por reproduzir um outro parasita sua própria elite mesmo que livre do primeiro Se em América Latina Bomfim se prendera à formação da sociedade brasileira aleijada pelo abuso constante do processo colonial num segundo momento o historiador se voltou a mostrar que os abusos continuaram a ocorrer a exploração e os malfeitos não cessaram haja vista a continuidade do mesmo caráter dos dirigentes portugueses nos governantes brasileiros O parasita não seria mais as gentes de Portugal mas seus reis e mandatários representados pelos fugidos de 1808 que aqui se acoitaram265 e que antes mesmo de habitarem as terras brasileiras originaram a elite local imersa nos mesmo vícios que os aprofundou pelo contato direto com a corte brigantina na capital do recém vicerreino Para aquele historiador faziase necessária a reavaliação da história do país nomeadamente a partir de sua independência cujo processo havia sido falseado tanto no plano político quanto nos escritos históricos E foi no intuito de denunciar tais falsificações266 que Bomfim se debruçou a reconstituir a formação nacional a partir de uma tônica na qual os Bragança eram elementoschave na compreensão das desordens 264 Ibidem p 41 265 Ibidem p 140 266 Sobre as considerações do autor sobre a falsificação da história brasileira por seus historiadores sugerimos ver O Brasil na História deturpação das tradições degradação política Rio de Janeiro Francisco Alves 1930 Segundo Rebeca Gontijo a reinterpretação da história brasileira sofreu significativa demanda no início do século XX momento em que Bomfim se dispôs a fazer uma reflexão sobre a história e a historiografia nacional mesmo que seu projeto não fosse metodologicamente guiado ou que o mesmo propusesse uma teoria da história GONTIJO Rebeca Manoel Bomfim e a escrita da história do Brasil Recife Massangana 2010 139 características da sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX Observese que mesmo voltado à reinterpretação do nacional Manoel Bomfim não conseguia desvincular sua análise da história de Portugal nem se afastar da influência portuguesa como uma dominante na formação da sociedade brasileira Assim ao se referir à presença de D João VI no Brasil com sua corte Bomfim não interpretou aquele momento pela tradição oitocentista que o considerava especial ímpar na formação da nacionalidade Para o historiador O que se passou com o Brasil com D João VI se medrou foi abafando mentindo infectando oprimindo dissolvendo as boas energias sociais desfigurando as formas naturais e salutares da nação deixando sobre elas as suas estratificações de misérias estratificações que nos cobrem até hoje Quem negará que os governos passam sobre o nosso Brasil no mesmo cortejo de mentiras abjurações extorsões e despotismo em que viviam os torpes dirigentes das épocas de D João V e D Maria267 A revisão de Bomfim à historiografia tradicional pode ser verificada em sua crítica aos governantes portugueses e àqueles que administraram a colônia a partir das ordens desses governantes Essa ótica pode ser tomada como inovadora pois mesmo mantenedora de uma proposta historiográfica na qual os destinos do Brasil estavam sempre atrelados ao passado colonial e a Portugal emergiu como uma ressignificação do papel da monarquia lusitana no contexto colonial fugindo do estereótipo consagrado pelo IHGB Assim Bomfim usou de uma releitura da história da colônia para revelar dirigentes impiedosos distanciados dos anseios populares cujos governos se pautaram mais pelo excessivo rigor na tributação e na aplicação de penas que no cuidado e na defesa dos interesses da população colonial Por tal viés Bomfim denunciou também que as mesmas práticas se reproduziam com natural facilidade no contexto republicano cujos dirigentes se destacaram pelas mesmas mentiras e despotismo dos tempos coloniais Embora desiludido com os rumos tomados pela política nacional Bomfim demonstrou que a doutrinação republicana ainda encontrava ecos em seus ouvidos posto tomar como o grande exemplo dos males da nação D Pedro I herdeiro do trono brasileiro 268 Em 267 Ibidem p 46 268 Necessário destacar que a proclamação da república no Brasil se pautou na implantação de um imaginário denso voltado à legitimação do regime e que tinha por propósito atingir a população sob a forma de 140 subcapítulo intitulado O Bragança ao Natural Bomfim realçou sua tese contra o artífice da farsa da Independência de conveniência tramada entre pai e filho com o intuito de enganar os constitucionalistas portugueses O Brasil feito soberano nas grosseiras tramóias do filho de D João VI teve de consumir o primeiro decênio de sua vida autônoma em debater se no atoleiro a que o atiraram a título de libertálo E é por isso que se rebuscamos os como e os porquês da nação brasileira devemos insistir ainda nos processos e atos do príncipe embusteiro a quem nos entregamos seguindolhes os efeitos até que em 1831 cai pela gangrena o que já era esfacelo Esses longos nove anos patenteiam a miséria política do Brasil inoculado de bragantismo Se não fora a dolorosa depressão resultado da peçonha que nos embebia senhora dos seus sentidos a Nação desde logo o teria eliminado porque o filho de Carlota Joaquina não tinha nem a coragem nem o talento necessário para o inteiro efeito da maquinação que urdira Houvesse nele qualquer valor de estadista teria construído um Estado forte e eficaz pois que se fez chefe de um povo na crise da juventude e da liberdade Em vez disso Pedro I foi um tampo sobre o Brasil que se erguia Foi apenas um Bragança Faltavalhe tudo que distinguisse o estadista heróico do simples aventureiro velhaco269 O discurso antilusitano de Bomfim imputado então à dinastia bragantina parecenos eivado de um antagonismo só justificado pelo republicanismo do autor tamanho o ódio destilado em suas palavras contra D Pedro I cuja memória firmada até final do século símbolos alegorias rituais e mitos complementares à própria ideologia do sistema Entre a variada simbologia utilizada pelos republicanos não se pode deixar de destacar a criação de um novo panteão de heróis bastante diferenciado daquele criado pelos historiadores do IHGB portugueses em sua maioria No seu bojo oportunamente vigorava a figura do antiheroi e este não poderia ser outro senão D Pedro I cuja biografia foi aos poucos desconstruída pela propaganda republicana elaborada no bojo do próprio Império mesmo diante da severa restrição legal desde o chamado Primeiro Reinado 18221831 Naquele período existia proibição imperial de se promoverem ataques à figura do imperador e promover as idéias republicanas o que forçava os jornais ao uso de artifícios para publicizar atos e posturas de D Pedro I que repercutiam de forma extremamente negativa em sua imagem e que findaram por ser diretamente associadas ao mesmo de forma definitiva e absorvidas plenamente pela historiografia do regime A respeito ver NEVES Lúcia Maria Bastos MOREL Marco e FERREIRA Tânia Maria História e Imprensa Representações culturais e práticas de poder Rio de Janeiro DPA 2006 LESSA Mônica Leite FONSECA Silvia Carla Pereira de Brito Entre a Monarquia e a República Imprensa pensamento político e historiografia 18221889 Rio de Janeiro EdUERJ 2008 FONSECA Silvia Carla Pereira de Brito A idéia de República no Império do Brasil Rio de Janeiro e Pernambuco 18241834 Tese de doutorado em História Universidade Federal do rio de Janeiro 2004 CARVALHO José Murilo de A Formação das almas O Imaginário da República no Brasil São Paulo Companhia das letras 1990 ALVES Caleb Faria Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano Bauru EDUSC 2003 269 Ibidem p 48 141 XIX era do príncipe que livrara o Brasil dos grilhões portugueses E foi contra essa memória historicamente construída que Bomfim se voltou ao considerar como um engodo a declaração de independência nacional promovido entre D João VI e Pedro I num acinte aos diversos movimentos emancipatórios ocorridos desde o setecento e liderados por brasileiros270 Tais movimentos foram violentamente combatidos resultando em enforcamentos degredo e prisão dos seus líderes A farsa da independência bragantina para Bomfim era um desrespeito aos brios nacionais construída com o intuito de fraudar os dois lados do Atlântico pois o que existia na intenção de Pedro I era tão somente desunir para unir mais adiante mantendo o poder dos Bragança a todo custo em ambos os territórios numa estratégia familiar demonstrativa dos interesses privados de seus membros em detrimento dos interesses das duas nações As variadas questões que marcaram o Primeiro Reinado foram usadas por Bomfim para justificar a inexperiência política do então imperador assim como seu caráter violento pouco conciliador marcado por uma alma tingida no absolutismo de um governante ausente das grandes questões sociais com ações claramente demarcadas pelo interesse pessoal Uma das mais vívidas questões sobre a estratégia exploradora dos Bragança quando da feitura da Independência foi o pagamento de vultosa indenização paga a Portugal que forçou o Brasil a se endividar junto à Inglaterra fornecedora do empréstimo de dois milhões de libras esterlinas A sangria econômica ocasionada por tal endividamento teve severas repercussões na vida nacional já abalada pelo levantamento total das reservas monetárias quando do retorno de D João VI a Portugal em abril de 1821 A negociação bragantina de reconhecimento da independência pelos demais países europeus também foi 270 É preciso recordar que o republicanismo havia sido a principal corrente ideológica entre os revoltosos de Minas Gerais em 178889 dos alfaiates baianos em 1789 e em 181719 em Pernambuco assim como durante toda a década de 1820 O problema é que em se tratando de Brasil todos esses movimentos republicanos foram ou ao menos poderiam ser interpretados como revoltas regionais contra a autoridade centralizada e uma ameaça à integridade territorial da América Portuguesa O sistema de monarquia centralizada estabelecera uma forte presença institucional desde 1808 e esse fator foi determinante no sucesso da manutenção do império que desbravou com ferocidade qualquer intenção nesse sentido Conforme MAXWELL esses movimentos foram encarados pela elite local como ameaças à ordem social sofrendo contestação por parte da mesma que se uniu fortemente em defesa do trono nomeadamente os proprietários de terra para quem o republicanismo sempre fora associado a uma liberdade que talvez chegasse à igualdade o que causaria sérios problemas numa sociedade hierarquizada em termos sociais e raciais Cf MAXWEEL Keneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da Independência In MOTA Carlos Gulherme Op cit p 177 e seguintes 142 abordada por Bomfim como exemplar da incapacidade política do então imperador que não hesitava em favorecer os interesses externos em desfavor do Brasil por ter profunda convicção ser este o seu destino o de provedor de toda Europa Os grandes enclaves financeiros de seu reinado foram mostrados como a prova viva de sua incompetência política aliado ao desejo vivaz do sangue bragantino em explorar Foram muitos os argumentos de Bomfim que solidificaram sua análise sobre a estratégia política dos Bragança para dominar Portugal e Brasil concomitantemente mesmo quando a conjuntura política se erguia como um impeditivo Nesses percebese o esforço do autor em lapidar adjetivos a respeito do imperador de forma a demolir o mito fundador da nacionalidade brasileira271 Na construção de Bomfim D Pedro I o pretenso articulador de nossa independência não passava de um oportunista e interesseiro que planejara minuciosamente a forma de ser rei tanto do Brasil quanto de Portugal pois só agia para os seus exclusivos interesses com alma de puro português para quem a união continuava a ser um desejo vivaz Bomfim não esclareceu o que seria a alma do puro português nem o portuguesismo a que se referiu em algumas citações denotando controvérsias em seu pensamento que buscou a todo custo separar os defeitos da monarquia lusitana do caráter do povo português e sobre o qual já aprofundara em seu trabalho anterior É provável que essa alma fosse uma referência à tradição absolutista que dominou o cariz da monarquia bragantina tradição 271 Dentre as múltiplas citações encontradas nas obras daquele autor denegrindo a imagem de Pedro I destacamos duas por considerálas bem representativas do estilo do historiador e que podem ser encontradas em seu livro O Brasil nação às páginas 57 e 98 Uma das taras de Pedro I como no antepassado Afonso VI era a vulgaridade e a grosseria suja das gentes de sua privança Chulamente preguiçoso dando em portuguesismo o que lhe faltava de verdadeiro talento o embusteiro constitucionalista de 1821 uma vez entronizado foi o tipo acabado do Bragança pérfido absorvente cruel inexorável tirano Mas faltoulhe coragem para dar à tirania caráter franco relativamente leal Sua referência aqui ao portuguesismo como um adjetivo oposto a certas habilidades inexistentes em Pedro I revelase como um termo pejorativo dentre os muitos utilizados pelo autor ao referirse ao imperador o que dá a seu texto um caráter lusófobo por tratarse de um termo que exara o cariz do povo português Outro exemplo bem reproduzido por Bomfim sobre o imperador caracterizao como Curto de inteligência falho de sentimento Pedro I não compreendeu a extensão dos feitos ligados ao ato que lhe fora ditado por José Bonifácio e julgou poder voltar atrás do gesto do Ipiranga Uma vez aclamado e coroado considerandose definitivamente empossado no domínio do Brasil tratou de voltar com ele ao seio de seu Portugal para a reconstituição do sonhado Império lusobrasileiro 143 esta herdada por Pedro I e bem cultivada por sua mãe D Carlota Joaquina que provinha de família de absolutistas em Espanha272 Considerandoo como portador de sangue de déspota Bomfim atribuiu a dissolução da assembléia constituinte brasileira em 1823 por Pedro I como resultante de seu perfil Amparado na absoluta divergência entre os interesses brasileiros que inspiravam a feitura da primeira Carta Magna do recém independente país e os interesses bragantinos na pessoa do então imperador só restara ao mesmo desfazer os reais interesses do Brasil em favor dos interesses próprios Seu ato materializado na criação de um Poder Moderador uma excrescência juridicopolítica que mobilizou os debates públicos por todo o século XIX no Brasil273 concedeulhe uma atribuição maior que os três poderes que marcavam as democracias Desde a outorga da Constituição de 1824 o quarto poder foi considerado como maléfica invenção chave mestra da opressão da nação brasileira o garrote mais forte da liberdade dos povos pelo liberal Frei Caneca cujo pensamento era divulgado nos jornais de seu tempo O cariz absolutista do poder moderador entretanto foi amplamente divulgado pela obra de Zacarias Vasconcelos publicada apenas em 1860 274 É provável que a opinião de 272 A marca absolutista de Pedro I foi atrelada pelo historiador a inúmeros atos imperiais tais como dissolução da assembléia constituinte implantação do Poder Moderador a violência extremada exercida contra os revolucionários da Confederação do Equador a declaração de guerra à Província cisplatina o assassinato de líderes oposicionistas entre tantos outros Sobre o absolutismo nos Bragança ver AZEVEDO Francisca L Nogueira de Carlota Joaquina na Corte do Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Ver também PEDREIRA Jorge COSTA Fernando D João VI um príncipe entre dois continentes São Paulo Companhia das letras 2008 273 O modo pelo qual a historiografia sobre o período caracterizou o poder moderador alicerçouse em grande parte em argumentos de natureza jurídica e política construídos durante o acirrado debate sobre o tema que teve lugar no período o que contribuiu para consolidar uma memória sobre o Estado monárquico que em parte se fundamenta em premissas segundo as quais a interpretação e a prática do quarto poder não teriam se alterado ao longo do período imperial constituindose como o leme conforme expressão de Raymundo Faoro que dirigiu a unificação territorial o Estado centralizado e a alternância dos partidos Sobre o tema consultar entre outros OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles A Astúcia Liberal relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro 18201824 São PauloBragança Paulista ÍconeUFS 1999 LUSTOSA Izabel Insultos impressos A guerra dos jornalistas na Independência São Paulo Companhia das Letras 2000 NEVES Lucia B P das Corcundas constitucionais e pésdechumbo A cultura política da Independência 1820 1822 Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003 MOREL Marco BARROS Mariana Monteiro de Palavra imagem e poder O surgimento da imprensa no Brasil do século XIX Rio de Janeiro DPA 2003 VAINFAS Ronaldo Dir Dicionário do Brasil Imperial Rio de Janeiro Objetiva 2002 FAORO Raimundo Os donos do poder formação do patronato político brasileiro Rio de Janeiro Globo 1984 274 VASCONCELOS Zacarias de Góes e Da natureza e limites do Poder Moderador Rio de Janeiro Typographia Universal de Laemmert 1862 144 Bomfim a respeito de Pedro I tenha nascido dessas fontes marcadamente vinculadas ao Partido Liberal do Império e que também ensejaram o movimento republicano Foi nas contradições e dilemas dos atos do imperador que Bomfim buscou respaldo no sentido de demarcar negativamente sua personalidade de forma a enfatizar o cariz predatório e dissoluto dos Bragança a reminiscência portuguesa que restou no domínio da pátria Insistentemente o autor afirmou das intenções dos Bragança em relação à realização da Independência acordo firmado entre pai e filho que daria lucros às duas partes O fingimento também é uma característica acentuada por Bomfim em relação a D Pedro I que sendo um déspota no Brasil mostravase como liberal em Portugal considerandose um sucessor necessário de D João VI Os embates entre Miguelistas e Pedristas foram para Bomfim apenas uma guerra de interesses da própria família marcada pelo personalismo e sem maiores preocupações para com os destinos de Portugal Ostentava desamor a Portugal desamor que ia até o vitupério e timbrava em afirmar que dali nada queria 275 quanto aos do Brasil Somente quando o trono do Brasil estava assegurado à descendência pedrista é que o imperador renunciou visando dominar o trono português naquele momento nas mãos do próprio irmão Em O Brasil Nação Bomfim trouxe à baila o relacionamento de portugueses e brasileiros no período pósindependência mesmo que limitado ao mundo político A volta da corte portuguesa à Europa não foi impeditivo para que muitos lusos preferissem ficar no Brasil participando diretamente das ações políticas da época 276 e formando um loquaz 275 Ibidem p 94 276 Um dos melhores exemplos do europeu que preferiu ficar é o de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos arquivista real que chegou ao Brasil em 1811 Foi responsável pelos Manuscritos da Coroa coleção de 6000 códices por ele organizada e catalogada Das 186 cartas redigidas à família em Portugal Marrocos enseja seu desprezo pelo Brasil A gente é indigníssima soberba vaidosa libertina os animais são feios venenosos eu não gosto de prenderme a esta terra que julgo para mim de degredo Estou tão escandalizado com este país que dele nada quero e quando daqui eu sair não me esquecerei de limpar as botas na beira do cais para não levar o mínimo vestígio desta terra Quando se trata das más qualidades do Brasil é para mim matéria vasta de ódio e zanga e julgo que até dormindo praguejo contra ele Três anos depois sua opinião é diferente posto as melhorias auferidas em seu nível de vida e o consequente crescimento do patrimônio pessoal Vivo em paz e abundância e com aquelas comodidades de que tanto precisava com uma boa casa bem arranjada de tudo com escravos e outras conveniências A aversão a este país é um grande erro de que há muito tempo me considero despido corrigese referindose à boa situação com que Deus me favoreceu Em 1817 Marrocos foi nomeado Secretário de Estado dos Negócios do Reino por Thomaz Antônio Villa Nova Portugal principal ministro e conselheiro de D João VI e em 1821 foi promovido a encarregado da direção e arranjamento das reais bibliotecas do Rio e de Salvador com ordenado anual de 500000 reis onde permaneceu mesmo depois da volta da corte Após a Independência Marrocos tornouse um alto funcionário do império e em 1824 desligouse das bibliotecas 145 contingente de portugueses em sua maioria vinculado ao trono Depois da efetivação da Independência esse contingente passou a ser visto com maus olhos pelos patriotas posto seguirem com forte ingerência no poder ao aglutinaremse em torno do Partido Português Para Bomfim a cáfila dos que ficaram era o que tinha de pior no Brasil pois não expressava amor à nação e só tinha olhos para seus interesses pessoais tal como o próprio Pedro de Alcântara Utilizando trechos da obra de Armitage Manoel Bomfim esqueceu momentaneamente do heroísmo português vigorosamente decantado em O Brasil na América ao qual nos reportaremos no próximo tópico para denunciar a ação desse poderoso grupo radicado em várias províncias principalmente no Rio de Janeiro Salvador Recife e Belém que havia contemplado com desgosto a convocação da Assembléia e aplaudiu sua dissolução Juntamente com a elite brasileira esses portugueses foram mostrados em Bomfim como um escol desinteressado das questões nacionais e voltados apenas aos próprios interesses tal qual Pedro I Consoante Bomfim Pedro I era um covarde pois fingia que amava o Brasil mas era português seu coração277 Tanto o era que toda diplomacia do país estava nas mãos de portugueses Estes por mais liberais que se mostrassem em sua terra no Brasil eram profundamente corcundas pois as eminências dos poderes públicos durante o reinado de Pedro I eram com raras exceções restos da Disforme anacrônica e imprestável mobília dos palácios de D João VI os carcomidos cangaços do antigo velho cruel e ridículo absolutismo português278 Observese que a essa altura nosso autor não mais diferenciou o servidor português dos próprios monarcas visibilizando a todos principalmente a chamada elite nacional imersa nos mesmos hábitos difundidos pelo Bragança com a mesma negatividade que deu ênfase em seu trabalho inaugural para assumir o cargo de oficial maior da Secretaria de Estado dos Negócios do Império onde se manteve até sua morte Seu nome conta como um dos autores do texto da primeira constituição brasileira Cf GOMES Laurentino 1808 São Paulo Planeta do Brasil 2007 Ver também SCUHLTZ Kirsten Versalhes tropical Rio de Janeiro Civilização brasileira 2008 O exemplo de Marrocos não é único Centenas de portugueses aqui ficaram por imposição do ofício como é o caso do batalhão da Brigada Real da Marinha que teve que permanecer no Rio de Janeiro onde ficara parte da real família Outro grupo ficou por interesses próprios como é o caso de Marrocos considerando o patrimônio pessoal amealhado com o passar dos anos em grande parte oriundo das mercês reais e que não poderia ser trasladado para Portugal 277 Ibidem p103 278 Ibidem p105 146 Sobre a vasa de 15000 despejados das naus fujonas de 1808 qualquer estatura de homem devia aparecer mas foram os parasitas imundos que ganharam a partida Como legítima vermina proliferaram tanto que se voltaram 4000 em torno do lorpa asqueroso e mau não chegou a haver diferença de nível do Estado que aqui se implantara e o Brasil ficou pertencendo e por longos anos pertencerá a esse brasileiros de D João VI em quem a nacionalidade é iludida mascarada traída deturpada para a miséria do que tem sido sempre a política brasileira Aqui estabelecido o Estado Português veio a degradarnos completamente com todas as características da sua política Até as nossas tradições se perverteram pois que tivemos mascarando a essência do Brasil os brasileiros de D João VI a serviço do lusitanismo renitente Sobre a nação ingênua e confiante eles se estenderam numa crista infectante vivaz o bragantismo e nunca mais nos foi possível descascar dessa miséria279 A história na urdidura de Bomfim adquiriu contornos duros tamanha a sisudez de seu pensamento e a dureza de sua linguagem e sua análise sobre o Brasil esbarrou numa perspectiva de culpabilidade constante que anularam outras suas perspectivas de observar a sociedade brasileira como um espaço dinâmico capaz de se reinventar Ao mesmo tempo em que aquele historiador vislumbrou a formação de uma nação já em pleno século XVII onde o sentimento nacional já se evidenciava em movimentos sociais que clamavam por liberdade onde o historiador já identificara um povo bem definido com consciência de si concomitantemente ele anulou essa mesma nação ao transferir para os Bragança e a elite nacional todos os encargos pelos problemas brasileiros de pleno século XX Sua narrativa não nos permite vislumbrar os antagonismos e as contradições de classe que deveriam existir num espaço onde uma elite dominava consoante sua vontade e suas necessidades totalmente desconectadas do restante da sociedade Apesar de viver em um tempo de notáveis levantes populares já referidos anteriormente Bomfim parece ter se esquecido dos mesmos para mostrar uma nação homogênea inerte e incapaz de se libertar dos próprios males adquiridos ou criados Em sua retórica a dinâmica natural da sociedade brasileira altiva em seus primeiros tempos pareceu ter medrado diante da presença portuguesa vivaz dinâmica sempre capaz de reinventarse É possível que tal certeza o tenha levado a indicar uma proposta de educação conscientizadora como remédio necessário à mitigação do problema Em sua premissa o 279 Ibidem p 230 147 povo necessitava ser capaz de criticar sua própria sociedade através de mecanismos apropriados que o tornasse capaz de transformála livrandose da pesada herança social que deformara seus governantes e a si próprio lançado na ignorância e no desinteresse pelos rumos da nação Para tanto esse povo deveria consumir uma historiografia não falseada pelos poderosos recheada de inverdades de mitos falsos Daí a necessidade de reescrita da história nacional extirpando da mesma as deturpações que viabilizavam a história universal em favor apenas das nações européias Ao historiador competia alijarse do pensamento aculturado de modo a construir uma história que permitisse ao brasileiro se reconhecer como sujeito central de sua própria história mesmo que a contrapelo Num desdobramento da mesma solução Bomfim enxergara também a revolução socialista como única saída para um país degradado por sua elite política distanciada da alma da nação a demonstrar que as utopias revolucionárias ou calcadas numa educação popular libertadora280 já encontravam eco no Brasil antes mesmo de serem recepcionadas no restante do continente fato que distinguiu Bomfim como adepto de uma utopia à frente de seu tempo e lugar 43 A cepa e seus viçosos ramos A leitura de variadas biografias sobre Manoel Bomfim atesta ter sido sua vida pacata e ordeira sem sobressaltos tais salvo algumas perdas familiares que o diferenciasse de outros homens de sua época e justificassem profundas modificações em suas visões de mundo281 Apesar da aparente tranqüilidade de sua vida observase em seus diversos 280 A proposta da educação conscientizadora foi expressa em seu livro O Brasil na América publicado em 1926 antecipandose no tempo e espaço em que os programas educativos eram tomados como uma solução precisa contra os graves problemas sociais que grassavam não apenas o Brasil bem como toda América Latina Entendendose a liberdade como superação da alienação e que a transformação do mundo pressupunha a efetivação dessa liberdade muitos teóricos latinoamericanos apregoaram como solução a chamada Filosofia da Libertação cujas primeiras manifestações foram identificadas nos movimentos operários do Brasil Argentina e México no final dos anos 60 conforme observação de DUSSEL Enrique América latina dependência y liberación Antologia de ensayos antropológicos y teológicos desde La preposición de um pensar latinoamericano Buenos Ayres Fernando Garcia 1973 Sob a mesma perspectiva a proposta revolucionária de Bomfim foi exposta em O Brasil nação livro de 1931 281 A respeito ver AGUIAR Ronaldo Conde O rebelde esquecido tempo vida e obra de Manoel Bomfim Rio de Janeiro Topbooks 2000 Nesta obra o autor faz questão de destacar a personalidade calma de Manoel Bomfim dado a poucos arroubos apesar da linguagem apaixonada e até agressiva que marca sua narrativa e que tipificava um estilo de sua época Outros autores ratificam a mesma perspectiva sobre aquele historiador tais como ALVES FILHO Aluísio Manoel Bomfim combate ao racismo educação popular e democracia racial São Paulo Expressão popular 2008 GONTIJO Rebecca Manoel Bomfim e a escrita 148 trabalhos modificação de seus pontos de vista de suas opiniões não obstante o autor enfatizar a inexistência de mudanças de sentimentos ou novidades de pensamento Certas contradições encontradas na argumentação de sua obra são de difícil explicação tamanha a disparidade entre as mesmas nomeadamente quando fez referência a Portugal que é o que nos interessa de pronto282 Em relação às construções de Portugal e dos portugueses Bomfim demonstrou no decorrer de suas obras históricas contradições e ambigüidades difíceis de entender mesmo reconhecendo evidentes mudanças de enfoque que vão do socioeconômico para o cultural e que podem ter ocasionado alterações em seus pontos de vista 283 Lowy buscou justificar essas guinadas de pensamento ao denominálas como flutuações de natureza temporária284 admitindo tal qual Mannheim285 a relação entre a categoria dos intelectuais e as classes relação esta que cedo ou tarde sobreviria em sua obra Seriam então meras flutuações temporárias as ambiguidades existentes nos textos de Bomfim oriundo de uma família de latifundiários Seria a trajetória de Bomfim a exemplificação do intelectual oriundo da classe dominante que temporariamente escapou do círculo de interesse de sua classe e passou a defender os oprimidos para mais tarde retornar à sua origem da história Recife Massangana 2010 Essa faceta do sergipano se torna explícita no episódio em que se tornou alvo do escarnecimento do critico literário mais temido de seu tempo o advogado Sílvio Romero que lançou 25 artigos nos jornais cariocas desdenhando da argumentação de Bomfim em seu livro América Latina males de origem além de um volume com o mesmo título e sua antítese Convidado pelo editores para rebater as idéias de seu crítico Bomfim se reservou o direito de silenciar no debate evitando a contra argumentação Para alguns esse silenciamento foi uma das causas além de seu inovador ponto de vista sobre o tema na contracorrente do pensamento hegemônico de então de seu ostracismo no campo intelectual alguns anos depois do lançamento do seu primeiro livro tornandose um autor quase desconhecido já em meados do século XX 282 É no seu segundo livro de história O Brasil na América caracterização da formação brasileira escrito em 1925 mas só publicado quatro anos depois que a lusofobia com que o mesmo se fez reconhecer no início do século sofreu modificações pujantes que marcaram a idéia daquele autor na obra citada 283 Existem casos de intelectuais que mudaram radicalmente de opinião ao passarem por momentos revolucionários Um dos grandes exemplos dessa ocorrência diz respeito às mudanças havidas nas obras de Guizot e Carlyle posteriormente à Revolução de 1848 explicada por Lukács O primeiro mesmo tendo reconhecido a função da luta de classes na história depois da revolução esmerouse em apontar o equívoco da mesma e em defender os interesses da monarquia Por sua vez Carlyle deixou de ser um vigoroso crítico das mazelas produzidas pelo capitalismo para se tornar depois da dita revolução um apologista do sistema Em outros termos esses ideólogos abandonaram a análise em bases materiais científicas passando a defender a idéia do compromisso entre a ordem burguesa e os restos feudais 284 LOWY Michel As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchaussen São Paulo Busca Vida 1991 285 MANNHEIM KARL Ideologia e utopia Rio de Janeiro Zahar 1972 149 A nosso ver essa perspectiva não coaduna com a trajetória do combatido autor se consideramos o contexto no qual estava inserido seja a exacerbação do pensamento nacionalista no Brasil na década de 20 O Movimento Modernista influenciado profundamente pelo nacionalismo parece ter conquistado Bomfim daí advindo sua perspectiva de fomento à consciência e à coesão nacionais à extinção da dualidade PortugalBrasil tão fremente em sua obra primeira e o redirecionamento de suas últimas críticas à monarquia lusitana por esta não ser representativa desse Brasil que ele tanto defendera Vinte e dois anos após ter escrito América Latina males de origem no qual denunciou as mazelas provocadas pela colonização empreendida por portugueses e espanhois Bomfim retomou o tema da herança social como elemento formador do caráter nacional Em O Brasil na América lançado em 1929 aquele historiador se esforçou para definir o perfil do povo brasileiro a partir daquilo que denominou de cepa portuguesa numa extraordinária guinada em direção a uma abordagem da nacionalidade dentro do cânone consagrado pelo Romantismo radicalmente contestado em sua obra anterior A questão dos laços com Portugal mais uma vez voltava à sua obra No cenário intelectual brasileiro do período continuava presente a preocupação com a identificação de um caráter nacional como forma de definição de uma identidade ainda em construção Em fins dos anos vinte o debate ainda era válido oscilando entre as teorias de degenerescência racial ocasionada pelo cruzamento com raças ditas inferiores e as teorias que previam uma regeneração embranquecedora dos povos mestiços num panorama de hierarquia entre as raças Dentre os extremos a noção de um caráter nacional que permitiria definir e distinguir os traços de personalidade coletiva de um povo juntamente com a noção de hereditariedade social serviu como anteparo das proposições daquele intelectual286 em sua luta para reverter o termo das equações hegemônicas sobre o tema Para ele um povo não era inferior por natureza mas historicamente inferiorizado a partir de teorias e proposituras filosóficas que nada tinham de científicas O uso do 286 De uma forma geral a degeneração serviu de matriz comum a diferentes visões sociais entre 1880 e 1930 quando seu suporte científico entrou em declínio A propósito ver SUSSEKIND Flora VENTURA Roberto Op cit p 17 LEITE Dante Op cit p 251 150 instrumental histórico para alertar sobre tal engodo foi fundamental para traçar a diferença entre Manoel Bomfim e grande parte dos intelectuais seus contemporâneos287 Todavia como poderia o historiador Bomfim aduzir uma identidade positiva para o brasileiro considerandose a validade de sua premissa de hereditariedade social se tratara o povo português como um parasita historicamente contumaz na prática do saque e da rapina em sua obra inaugural Com tal perspectiva como poderia clamar pelo valor da mestiçagem tão combatida pelas teorias racialistas se a herança portuguesa era inegável elemento de formação da nacionalidade brasileira Essa aparente encruzilhada parece ter permitido um desdobramento da visão de Bomfim refletindose na nova abordagem que aquele historiador fez acerca do povo português e que se caracterizou como a grande guinada de sua obra Oportunamente o desdobramento de novas situações no contexto republicano ocorrido nos trinta primeiros anos do século XX exigiu que novas proposituras fossem desenvolvidas no sentido de firmar o lugar do Brasil no contexto regional Ao tempo da escrita de outro texto iniciado pouco depois das comemorações dos cem anos de independência nacional a palavra de ordem era conhecer desvendar investigar e mapear o Brasil e a sua realidade bem como traçar simultaneamente os contornos da identidade nacional conforme observara MOTTA288 A necessidade de um despertar para a importância de colocar no papel a avaliação correta do passado a interpretação segura do então presente e as sugestões valiosas para o futuro da nação era ponto pacífico para balizar a produção intelectual do período A adesão ao Romantismo e a busca pela identidade nacional demarcavam as exigências intelectuais da época o que tornava a discussão da formação da nação uma temática extremamente relevante mesmo para Bomfim historiador completamente disperso no que concerne a um lugar institucional que legitimasse seu discurso Seu posicionamento mesmo evidenciando 287 Foi por privilegiar as tensões no processo histórico de produção de diferenças entre colonizado e colonizador em suas análises que Bomfim pôde questionar as teorias de Gustave Le Bon 18411931 Louis Agassiz 18071873 e Joseph Arthur de Gobineau 18161882 entre outros e criticar duramente intérpretes da América Latina como José Ingenieros 18771925 Carlos Octavio Bunge 18751919 e Lucas Ayarragaray 18611944 defensores do determinismo racial e da inferioridade do negro e do índio 288 MOTA Marly Silva da Op cit p 29 151 uma necessidade comum daquele momento histórico289 foi construído de forma autônoma sem o devido resguardo institucional que funcionasse como anteparo a suas colocações ou como um estimulador de temáticas Com esse fito foi escrito O Brasil na América cujos primeiros capítulos descerraram a formação histórica brasileira a partir de seu principal veio os portugueses cujo cariz marcou as novas perspectivas bomfinianas para fundear a construção de uma identidade nacional Dessa feita o parasitismo como categoria analítica foi abandonado em prol do desvendamento das qualidades essenciais do português que o fizeram se destacar no cenário mundial Tal caracterização tinha como escopo segundo o próprio autor verificar até que ponto se refletiu nas nossas qualidades e no nosso proceder 290 Intentava dessa forma dar relevância ao papel do Brasil em meio às demais nações da América Latina marcada pelo caudilhismo e pelos arroubos revolucionários que a transformavam num continente em eterna luta fratricida cuja origem era apontada como decorrente da mestiçagem característica desses povos Foi clamando por um Portugal Heróico que Bomfim abriu o primeiro capítulo de O Brasil na América deixando estupefato o leitor que consumiu América Latina ante a revolução operada na forma daquele autor compreender e retratar o português Na formação daquela nacionalidade Bomfim redescobriu um povo excepcionalmente vigoroso e disciplinado capaz de grandes feitos de caráter nobre marcado pelas ações heroicas Para tanto bastou desenterrar os celtiberos do Estrabão ou relembrar os façanhudos lusitanos com o respectivo Viriato291 para descobrir a dianteira assumida por povos díspares quando da conquista de um território e a célere convicção de uma identidade comum os brasileiros tinham muito dos portugueses Para Bomfim o povo português tinha gênio político unificado no desejo de ser materialmente grande pela riqueza um povo com virtudes e vontade para transformar esse desejo em necessidade de dominar o mar como realização de seu destino Pelo seu valor primeiro merecia fortuna e glória bem acima do que lhe era concedido por pertencer a 289 Atentese também na mesma década ocorreram episódios considerados paradigmáticos na história do país consagrados como marcos fundadores de um novo Brasil tais como a fundação do Partido Comunista a Semana de Arte Moderna e a primeira manifestação do Movimento Tenentista 290 Ibidem p 67 291 Ibidem p 40 152 uma pátria distinta indestrutível e inconfundível no conjunto da Ibéria292 Assim esse povo moldado não mais no saque e na rapina mas na resoluta disciplina de ser grandioso de alma marcada pelo vigor e pela determinação foi trazido ao contexto de sua obra como a cepa formadora da nacionalidade brasileira cuja especificidade a fez ser destaque no contexto americano já não mais como um parasita a sugar o sangue brasileiro a apropriar se das riquezas encontradas nessa parte da América que lhes encheriam as burras e permitiria a dissolução final mas como uma gente decidida a encontrar seu próprio lugar num mundo cada vez maior alargado em grande parte pela ousadia lusa Ao aprofundarse no tema Bomfim traçou um exercício de correlação entre portugueses e espanhóis como modo de diferençar o Brasil de seus vizinhos latinoamericanos Em seu texto o espanhol293 foi mostrado como bem diferente do português ficando com o segundo a figuração de senhor de uma personalidade benemerente capaz de se adaptar a diferentes culturas melhor talhado pelas vicissitudes aperfeiçoado pela disciplina profundo nas decisões tenaz nas realizações294 Se assim o fora o português dos tempos do descobrimento assim deveria ser o brasileiro uma criação tipicamente portuguesa acreditava Bomfim ao estreitar laços de um parentesco até então marcado por contradições e ambiguidades Sob tal enfoque não há como negar a aproximação do autor declaradamente republicano mesmo que desencantado dos historiadores monarquistas Para aqueles que criaram a idéia de uma nação unitária e indivisa obra realizada pelo governo imperial295 o Brasil em muito se diferençava dos demais países da América Latina Fazendo a distinção entre duas Américas a lusobrasileira e a hispanoamericana salientaram características das nações de colonização espanhola associandoas ao caudilhismo ao militarismo a instabilidade 292 Ibidem p 19 293 Sobre o espanhol Bomfim se refere como um povo de caráter duro ousado apreciador de espetáculos sanguinolentos rude e arrogante inclinado para atos violentos capazes de justificar a natureza bélica das nações vizinhas da América Latina Ibidem p 77 294 Ibidem p 76 295 Um dos discursos mais fortes do período é o de Oliveira Lima em O Movimento político da Independência 18211822 Belo Horizonte Itatiaia 1989 Sobre a criação da diferença entre o Brasil e o restante da América Latina ver também MALATIAN Tereza Oliveira Lima e a construção da nacionalidade Bauru EDUSC 2001 GRACINDO Eliane IOKOI M Gricoli Org América Latina Contemporânea desafios e perspectivas Rio de Janeiro Expressão cultural 1996 Col América Raízes e Trajetórias OLIVEIRA Lúcia Lippi A questão nacional na Primeira República São Paulo Brasiliense 1990 TORRES João Camilo de Oliveira Intérpretes da realidade brasileira introdução à história das idéias políticas no Brasil Rio de Janeiro José Olímpio Editoras 1969 153 política e às guerras civis A nação brasileira em contraponto se distinguia pela idéia de unidade e estabilidade política no discurso intelectual graças ao feitio da ocupação e colonização portuguesa e sobretudo pela presença imponente da monarquia lusitana nos trópicos antes e depois da independência De tal modo enfatizouse a noção de comunidade indivisa forjada pelos portugueses em oposição à de comunidade fragmentadas das possessões espanholas que o discurso nacionalista findou por opor a suposta paz e estabilidade política da monarquia brasileira ao caos e à anarquia das demais repúblicas do continente perspectiva que foi repetida por Bomfim mesmo que o Brasil já houvesse ultrapassado seus tempos monárquicos e experimentasse o sistema republicano Sua alusão a muitas das características enaltecidas pelos historiadores oitocentistas teve como foco a definição de um lugar de destaque a ser assumido pelo Brasil no grande teatro da América como já mencionado anteriormente Para tanto sua anterior preocupação com o desvendamento do colonialismo como expressão do imperialismo europeu parece ter sido superada por esta nova perspectiva Para tanto faziase mais que necessária a contextualização histórica da nação bem nascida criação de uma poderosa cepa cujos ramos desdobraramse num novo povo o brasileiro296 O patriotismo a consciência da nacionalidade a história de lutas e de heroísmo de genialidade de celtiberos e lusitanos coroada na articulação do primeiro Estado moderno da Europa e refletida no ordinário do português deveriam servir como prova cabal de que as mesmas existiam no povo brasileiro herança lusa aos seus descendentes americanos Em suas considerações ao se reportar a capacidade indômita do português ele buscou obstinadamente mostrála no caráter do brasileiro As virtudes germes na história de Portugal e que fizeram daquele recanto uma pátria distinta indestrutível e inconfundível no conjunto da Ibéria atual essas virtudes nós as encontramos como forças essenciais no 296 A perspectiva assumida por Bomfim em relação ao caráter nacional português por sua vez refletido de pronto no povo brasileiro permitiu àquele historiador enveredar por uma nova seara ao argumentar sobre a formação de um novo povo na América O passar dos séculos na visão bomfiniana e as especificidades da vida na América aperfeiçoaram o cariz português que amalgamado com o caráter dos nativos originou um novo povo Para tanto aquele autor lançou mão de mais uma homologia biológica ao comparar os portugueses da Ibéria a uma cepa específica cujos ramos transplantados para o Brasil originaram uma nova árvore Esta árvore inegavelmente tinha os mesmos elementos da cepa original embora mesclada com novos elementos de outra cepa a cepa americana nativa Deste modo o discurso daquele autor concebeu a nação como um organismo homogêneo consagrado na fusão de nativos com lusos resultante no povo brasileiro único indiviso original estando ausentes de seu meio os antagonismos e as contradições de classe 154 germinar desse Brasil delas se fazem as qualidades que nos distinguem entre outras nações americanas297 Ao enaltecer aspectos positivos no cariz português Bomfim praticou um exercício de identidade às avessas fazendo com que o brasileiro se reconhecesse no português num espelhamento tal qual referido por Hartog298 Tal reconhecimento se deu ao nível de uma irmandade que deveria ser mantida de modo que todo o processo histórico de formação nacional não fosse sopesado apenas pela via do binômio colonizadorcolonizado Se a empresa colonial havia tido vultosos lucros com a exploração do Brasil não se poderia desdenhar do contributo dos próprios portugueses para o engrandecimento da nação construída também com o sangue e o suor luso assim como dos demais povos formadores aos quais também deu o devido destaque Com esse intuito Bomfim fez da nação um sujeito entendendoa como uma força modeladora de consciências uma estrutura uma entidade supramaterial cuja construção exigia o esquecimento do seu próprio passado tal como ensinara Ernest Renan299 Sua intenção pareceu ser a de apagar da memória histórica brasileira os antagonismos as contradições a violência do processo colonial para consolidar a vontade de ser uma nação unificando vontades consciências e ações em torno de um objetivo comum Em decorrência seu proceder se assemelhou aos dos historiadores de viés nacionalista assumidamente iagagebeanos para os quais a nação deixou de ser objeto para ser parâmetro300 elaborando assim o que foi denominado de biografia da nação301 uma entidade abstrata e idêntica a si mesma que exigia por si só os acontecimentos os temas e 297 Ibidem p 102 298 HARTOG François O Espelho de Heródoto Belo Horizonte Editora da UFMGAutêntica 1999 p 141 299 Para Renan a narrativa sobre nação exige o esquecimento posto ser aquela comum entre as pessoas que vivem no mesmo território sendo esse comum uma produção artificial na maioria das vezes gestada pela violência Dessa forma a nação nada mais era que uma produção humana histórica fazendose necessário esquecer tudo que lembrasse sua gestação nesse tempo histórico definido Exemplificava pois o caso da França cuja construção implicou na união de dois territórios distintos a França do Norte e a França de Midi à custa do extermínio e do terror durante quase um século Cf RENAN Ernest O que é uma nação Rio de Janeiro Brasiliense 1987 300 A expressão foi cunhada por Homi Bhabha ao se referir à narrativa de Ernest Renan e pode ser encontrada na obra O local da cultura Belo Horizonte Editora da UFMG 1998 301 O termo é de autoria de SILVA Rogério Forastière da Colônia e Nativismo A história como biografia da nação São Paulo HUCITEC 1997 155 os sujeitos históricos que deveriam ser esquecidos ou poderiam permanecer para sempre na narrativa nacional302 O discurso de Bomfim num primeiro momento parece ter sido movido por uma força centrífuga posto dispersar os atores históricos da América Latina colocandoos em campos distintos consoante o cariz do colonizador brasileiros eram diferentes dos demais latinos haja vista que Portugal em muito se distinguia dos vizinhos espanhóis tal reconhecimento não estabelecia qualquer noção de superioridade entre os envolvidos protestava o autor Por outro lado ao tempo que tentava constituir o caráter da nação a partir da noção de hereditariedade social aquele historiador considerava a necessidade de aplainamento das vontades das consciências das ações com esse fito dando relevância a um movimento centrípeto de unificação das muitas diferenças geográficas econômicas raciais encontradas no Brasil O conceito de nação em Bomfim é expressão do ideário nacionalista brasileiro fixado no historicismo romântico no qual a nacionalidade se fundava no espírito ou caráter peculiar de um povo herança da raça língua história que por sua vez compunham os fundamentos de uma comunidade A naturalização das nações entendidas como destino político inerente aos homens303 inscreviase na esfera da montagem de uma comunidade construída historicamente e em função da qual daria forma objetivo e direção à vida de seus habitantes O universo simbólico serviria como guia das ações humanas uma vez que atenderia à necessidade de legitimação inerente ao arcabouço institucional quando este não pudesse mais ser mantido pela memória do indivíduo Daí a necessidade de construção de 302 Bomfim efetivamente faz essa seleção na narrativa da nação o que pode ser claramente percebido quando de sua abordagem sobre a participação dos africanos na formação nacional e a ausência dos conflitos entre escravos e colonizadores e a omissão ao Quilombo de Palmares em O Brasil na América Ao comentar como os negros foram inseridos na obra de Bomfim Celso Uemori advertiu para o fato de que Manoel Bomfim efetivamente afirmara que a influência dos negros foi menor se comparada à dos índios Cf UOEMORI Celso Nobrou Explorando em campo minado a sinuosa trajetóri a intelectual de Manoel Bomfim em busca da identidade nacional Tese de Doutoramento em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2006 Tal afirmação teve a nosso ver o objetivo de enfatizar que o povo brasileiro resultara da mistura preponderante entre europeus e índios e apagar seu antagonismo a exploração de classes e a violência Ao suprimir o negro de seu esquema teórico no limite ele estava negando a concepção de luta de classes pois desaparecia de sua narrativa a vítima das vítimas a máquina de trabalho quem produzia a riqueza e de quem se extorquia excedente Em outras palavras com a supressão dos negros tornou se possível afirmar a origem cabocla do brasileiro e a reiteração da idéia de que no Brasil a escravidão foi branda Se em alguns textos Bomfim esboçou a existência de reação entre colonos e colonizadores nesse ponto de sua trajetória ele fez questão de arquitetar um subterfúgio de modo a fugir da proposição 303 Cf HOBSBAWN Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 p 28 156 um universo nacional capaz de organizar o espaço público num processo de constituição de identidade implicando tanto a acentuação dos traços de semelhança e homogeneidade como a diferenciação em relação ao outro Foi sobre essa identidade que Manoel Bomfim se reportou em seu Brasil na América partindo da configuração do outro para se reconhecer como tal Ao tempo em que reconheceu no português um dos gênios formadores da nacionalidade brasileira afastouo de pronto desta mesma nacionalidade tornandoo um estrangeiro um estranho Portugal teria sido o fator dominante o determinante na formação do Brasil mas tais outros valores humanos foram inclusos na sociedade brasileira que ela se tornou completamente diversa Dessa forma Bomfim contraditoriamente praticou o que Hartog304 mais uma vez denominou de identidade relacional Frente ao eu ou ao nós do pertencimento ao Brasil ele colocou o estrangeirismo do outro o português que mesmo sendo considerado uma cepa elemento primordial na constituição de um novo lugar não poderia ser considerado jamais como um brasileiro Ao separar portugueses de brasileiros em sua narrativa do período colonial Bomfim facilitou a identificação dos primeiros em sua retórica não deixando dúvida a quem se referia pois a ambigüidade de ser português na colônia inexistiu em sua narrativa diferenciandoa essencialmente das abordagens de Varnhagen e Abreu Há uma linha divisória entre portugueses e brasileiros nos escritos daquele historiador que designa por reinóis os portugueses de origem Seus filhos e descendentes nascidos no Brasil sob o jugo colonial não eram portugueses mas brasileiros Em sua análise a colônia não era uma extensão de Portugal mas um novo lugar formado por uma gente disposta a desgarrarse de vez de Portugal pátria de origem que nunca fora recriada em terras americanas Assim não haveria uma América portuguesa fracionada dividida com colonos de olhos fitos para o alémmar mas um Brasil criado desde os momentos iniciais do descobrimento onde se ajuntavam as gentes mais díspares para arquitetar a nação a partir das condições de vida que ali encontrou305 Em decorrência de tal perspectiva o enredo civilizatório 304 HARTOG François Ibidem p 34 305 A justaposição de contrários traçada por ele ressaltou a fusão de tradições lusa e indígena o que gerou uma síntese a cultura brasileira entendida por Bomfim não como puramente lusa nem tão somente indígena mas original em sua formação Forjada para além do confronto de civilizações da imposição cultural e da aculturação havia um amálgama de culturas onde predominaram as trocas os compartilhamentos num esforço onde se denota que o autor tudo fez para suprimir as asperezas e conflitos a ponto de afirmar não ser 157 vigorosamente defendido pelos ihagagebeanos inexistira em Bomfim que vira o Brasil como uma civilização específica e não como uma cópia malfeita da Europa A idéia de Brasil enquanto lugar peculiar já existira no intuito daqueles que atravessavam o oceano para ali se estabelecer já defendera aquele historiador306 contrariando o discurso vigente até então de que o Brasil teria sido uma extensão de Portugal A mencionada separação entre brasileiros e portugueses e a aversão ao termo lusobrasileiro em Bomfim foi tomada por muitos como prova de seu sentimento lusófobo o que expressa um equívoco evidente Não se observa nos demais historiadores brasileiros a linguagem apaixonada de Bomfim ao se referir ao povo português linguagem esta que ensejou muitas das críticas feitas ao seu trabalho e que no entanto foi expressão de seu tempo307 Observese que a rudeza do processo colonial findara há menos de um século mas as representações discursivas do português como um povo determinado estavam intrinsecamente alojadas na memória nacional graças à historiografia oitocentista e se repetiam na escrita da história do país mais especificamente na narrativa de um historiador que não se adequara ao pensamento comum de sua época importante ter havido vencedores ou vencidos mesmo que em seu texto se encontre trechos extensos onde se aponta a dissolução das sociedades nativas 306 Nos primeiros colonizadores do Brasil encontravamse as virtudes essenciais do pioneiro português tenacidade heróica solidariedade na compreensão nítida da existência nacional hábito de atividade disciplinada e com isso o sentimento de trazerem consigo uma pátria no intuito explícito de fazerem um novo país pelo desenvolvimento das tradições nacionais Como estímulo geral havia desejo de formar fortuna estável Pensemos agora que todo português de então era um patriota e que nascidos no influxo desse valor exaltados na idéia de pátria os daqui mostraram desde sempre que essa idéia de pátria Brasil era um motivo explícito sobre seus afetos Ibidem p 88 e 92 307 Sobre o estilo da escrita de Bomfim ver VENTURA Roberto SUSSEKIND Flora Op cit p 91 158 CAPÍTULO 5 A TENTATIVA DE SUPERAÇÃO DA HERANÇA PORTUGUESA Ao tempo em que Manoel Bomfim revelou as raízes nacionais fortalecendo os laços criados pela historiografia oitocentista o Brasil assistiu ao lançamento em São Paulo da Semana de Arte Moderna expressão maior do Movimento Modernista nacional Na esteira do lançamento de uma proposta de redimensionamento da arte e da literatura nacionais inseriase a necessidade de delineamento de um perfil para a nação capaz de lhe garantir uma identidade própria calcada no ideário de modernização e na unificação cultural e política Não era mais hora de se olhar para o passado tomandoo como um referencial para o presente bem ao contrário era o momento exato de se desvencilhar desse passado de forma a dar passos firmes na construção de um porvir calcado na constatação de ser um povo único especial independente de sua formação inicial e amadurecido o suficiente para se reconhecer como tal Para tanto era preciso marcar o próprio território e suas fronteiras definindo relações com os outros formando imagens dos amigos e inimigos rivais e aliados modelando as lembranças do passado bem como projetando sobre o futuro temores e esperanças Finalmente era necessário exprimir e impor certas crenças comuns a partir da constituição de modelos formadores da brasilidade pretendida308 308 Três vertentes modernistas marcarão a arquitetura do brasileiro e da brasilidade nos anos vinte A primeira vertente modernista Verdeamarela tinha como proposta o total abandono das influências portuguesas e européias devendo a cultura nacional buscar a alma brasileira no seu passado mitológico na vida autêntica das cidades do interior e do contato do homem com a natureza A segunda vertente Antropofágica propunha a apropriação das ideias europeias pelo canibalismo cultural transformando aquelas em ideias nacionais A terceira vertente buscava se incorporar à cultura mundial entendendo o Brasil como parte de um todo Necessário dizer que o Verdeamarelismo se sobressaiu às demais e que o otimis mo apregoado por seus integrantes tornouse nacionalismo exaltado ponto de partida do Integralismo movimento político de nacionalismo direitista que na década de trinta atingiu mais de um milhão de filiados Sobre o Movimento Modernista brasileiro ver ÁVILA Afonso O Modernismo São Paulo Perspectiva 1979 BRITO Mário da Silva História do modernismo brasileiro Antecedentes da Semana 159 Segunda maior cidade do país no início do século com crescimento vertiginoso graças à cafeicultura São Paulo ostentava uma burguesia familiarizada com a ambiência européia que detinha um projeto homogeneizador para uma nação heterogênea A república em seus primeiros anos como fruto dos interesses dessa elite cafeicultora tinha que gozar de representações que a mostrasse alinhada aos princípios da civilidade tão qual o fora a extinta monarquia e o Movimento Modernista serviu a este fim explorando uma prática política para além de um projeto estético Com esse fito o ideário da civilidade bem decantado pelos historiadores do IHGB findou por ser apropriado pelo projeto paulistano como específico de seu lugar e não disposto pelo Brasil em toda sua dimensão Por tal viés foram reduzidas a meros enfoques regionais outras visões sobre a formação do Brasil a identidade de seu povo e a diversidade de sua constituição São Paulo assumiuse como um modelo e tornouse conforme planejado a cabeça da nação apoiada na figuração do bandeirante como o pai da pátria o civilizador por excelência filho de um português específico banhado nas águas do Renascimento Debaixo de si o restante do país arcaico diferente inferior pronto a assumir uma nova identidade na qual se extirpava a tradição de se ter como uma continuação e até como uma invenção de Portugal posto ser esta uma das propostas dos modernistas da chamada primeira geração 19221930 o que interessaria doravante era a cultura nacional completamente desvinculada das raízes culturais portuguesas309 O brasileiro era único especial fruto de um ambiente específico No campo da história lócus especial de criação e reprodução identitária o nome de Paulo da Silva Prado310 se ergueu a partir da criação de Retrato do Brasil 1928 obra que se de Arte Moderna Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 CACCESE Neusa Pinsard Festa Contribuição para o estudo do modernismo São Paulo Instituto de estudos BrasileirosUSP 1971 TELES Gilberto Vanguarda européia e modernismo brasileiro apreciação e crítica Petrópolis Vozes 1972 MORAES Edmundo A brasilidade modernista Rio de Janeiro Graal 1978 309 Exemplo disso foi oferecido por Mário de Andrade em Macunaíma 1928 ao sintetizar o ambiente cultural brasileiro a partir de ingredientes de todas as regiões brasileiras sem desprezar o papel da nova e dinâmica metrópole que procurara retratar nos poemas de Paulicéia Desvairada 1921 Oswald de Andrade com a noção de que a cultura brasileira fora antropofágica desde a deglutição do Bispo Sardinha insistiu na importância da síntese Como a proposta modernista tomava como imprescindível o rompimento no plano da linguagem com a cultura convencional e acadêmica propundo também um corte implícito e radical com as raízes culturais portuguesas base da formação nacional 310 Paulo da Silva Prado nasceu em São Paulo em 1869 e faleceu no Rio de Janeiro em 1943 Filho do Conselheiro Antônio Prado diplomouse em 1889 pela Faculdade de Direito de São Paulo nunca exercendo 160 dispôs a constituir essa nova identidade brasileira num desdobramento de sua tese inicial ancorada na criação de uma identidade regional específica dos paulistas o bandeirante311 a profissão de advogado Ao preferir participar dos negócios da família nos quais se destacou por alçar o lugar de um dos maiores produtores e exportadores de café no Brasil cedo alçou importantes cargos públicos como representante da abastada burguesia paulista Sobrinho de Eduardo Prado 18601901 foi com este morar em Paris logo após encerrar sua formação superior passando a partilhar do ciclo intelectual no qual aquele estava inserido tornandose amigo de escritores como Eça de Queiroz Oliveira Martins Ramalho Ortigão e Blaise Cendrars entre outros Foi da sua experiência na Europa que Prado apurou seu olhar sobre a questão brasileira aproximandose também dos grandes nomes formadores do IHGB como Joaquim Nabuco Capistrano de Abreu Afonso Arinos de Melo Franco e da ABL como Olavo Bilac e Graça Aranha Seu retorno ao país resultou na inauguração de sua escrita sobre a colonização brasileira escrevendo As Confissões da Bahia 1922 Denunciações 1925 Paulística História de São Paulo 1925 Retrato do Brasil ensaios sobre a tristeza brasileira 1928 e Denunciações de Pernambuco 1929 cujas abordagens tinham a explícita admoestação do autor de tratarse de trabalhos de natureza historiográfica e não literários Também publicou editoriais artigos e resenhas em importantes periódicos e reeditou documentos inéditos sobre o período colonial incentivado pela grande amizade que nutria pelo historiador cearense Capistrano de Abreu cujo profundo conhecimento de fontes e referências permitiu a descoberta de importantes documentos a respeito da história do Brasil Apesar de esquecido como mecenas dos Modernistas foi Prado juntamente com sua esposa Marinette o grande idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922 movimento que reuniu as manifestações mais avançadas da época no campo da literatura das artes plásticas do teatro e da música financiando e promovendo vários artistas Participou da fundação e do controle de revistas modernistas dirigindo a Revista Nova da qual participaram entre outros escritores Mário de Andrade e Alcântara Machado Prefaciou a obra PauBrasil de Oswald de Andrade um dos mais ativos participantes daquele movimento com o qual rompeu amizade ante a crítica que fez aquele autor ao seu Retrato Paulo Prado tornouse um importante mediador entre diferentes universos Como promotor da Semana de Arte Moderna tornouse um elo fundamental entre os modernistas e um grupo de intelectuais que compuseram uma geração anterior a sua a de seu tio o jornalista e monarquista Eduardo Prado 18601901 podendo ser visto também como uma figuraponte entre o ensaísmo da década de 1920 e aquele que terá expressão maior em 1930 em obras como as de Sérgio Buarque de Holanda 1902 1987 Gilberto Freyre 19001987 e Caio Prado Júnior 19071990 o que tornou sua trajetória de vida marcada por uma relação paradoxal entre o tradicional e o moderno Posto ter desenvolvido atividades em ambos os campos colocouse entre duas gerações a de 1870 era novo demais para o Romantismo e a modernista era o mais velho de todos tornandose um personagem ideal para encarnar esse paradoxo No campo da História sua visão não fugia ao clássico enunciado o conhecimento do passado fornecia bases para se compreender o presente e se aventurar em previsões acerca do futuro Prado via a história como uma linha reta com direção e sentido onde as relações de causalidade permitiriam ao historiador projetar uma certa teleologia da história Em Uma carta de Anchieta 1926 publicada na revista Terra roxa e outras terras deixava clara a sua reflexão sobre o fardo da história Segundo Prado seria próprio de uma criança seria infantil ignorar o que se passou antes de nós É o desenvolvimento desse sentimento humano que se chama a paixão histórica Somente no culto dessa paixão poderseia compreender o momento vivido A crença numa filosofia da história e num sentido para a mesma se aproximava de um certo idealismo teórico característico da visão romântica presente em sua formação No entanto foi na reinvenção de um olhar culturalista sobre a história que Paulo Prado colocou se dentro do movimento modernista 311 O discurso da identidade paulista diferenciada do restante do país remonta ao século XVIII com as obras dos cronistas Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques desdobrandose em novas abordagens já a partir de 1870 com a redefinição dos termos da relação entre o nacional e o regional não somente no universo político como também no culturalidentitário chegando mesmo a dar suporte ao movimento separatista paulista de 1887 Oilveira Vianna foi um dos nomes mais representativos desse período Na década de vinte o discurso laudatório da paulistanidade foi absorvido pelos modernistas do porte de Menotti Del Picchia Plínio Salgado e Cassiano Ricardo assim como por historiadores como Alcântara Machado Alfredo Ellis 161 O reconhecimento do autor sobre a criação histórica de uma nova raça é reveladora do quanto sua obra buscava repostas para as questões de seu tempo posto que o debate sobre a interferência da raça na formação da identidade nacional ainda mostrava ser assunto candente naquele momento Em Prado a identidade brasileira foi inicialmente dual tipificada pelo bandeirante que se alastrou pelo território colonial e pelo brasileiro homem comum de pouca ou nenhuma qualidade O bandeirante de cariz aventureiro e libertário preservou suas qualidades enquanto isolado do restante da colônia graças à topografia paulista que dificultava o acesso de estranhos ao planalto Tão logo se aventurou a desbravar outros sítios decaiu tal qual Adão ao deixar o Paraíso misturandose ao tipo comum do Brasil312 um mestiço insignificante corroído de desejos e manipulado livremente por uma elite dissoluta sem responsabilidade social Embora gestado na esteira do Modernismo o Retrato do Brasil de Paulo Prado pareceu vir como contraponto às proposições do movimento ao construir um brasileiro a partir de suas Júnior e Afonso dScragnolle Taunay Prevalecia no discurso paulista a união do colonizador português homem exclusivo do primeiro século após o descobrimento banhado nas espumas do Renascimento com a índia americana apurada na reclusão característica da Serra do Mar o que findou por forjar uma raça superior capaz de dominar o Brasil e tornálo uma nação moderna Paulo Prado contribuiu fortemente para a construção do mito do bandeirante explorando tal discurso em sua obra Paulística de 1925 na qual o bandeirante se diferenciava dos demais tipos encontrados no Brasil pela sua ânsia de liberdade e de independência Ao mesmo tempo em que a construção da identidade regional paulista unia criava também uma aura de desprezo pelo restante do país acentuadamente mestiço filho de branco com negras e portanto inferior aos rijos paulistas Refletia também o federalismo brasileiro à americana que reforçava as lealdades provinciais em detrimento da lealdade nacional A fragmentação do país ocasionada pelo estabelecimento de uma república federativa só impulsionou a criação de identidades regionais e foi tão notório que chegouse a prever a fragmentação do país como conseqüência do modelo A respeito ver CARVALHO José Murilo de Cidadania no Brasil o longo caminho Rio de Janeiro Civilização brasileira 2006 FERRETTI Danilo J Zioni A Construção da paulistanidade Identidade historiografia e política em São Paulo 18561930 São Paulo EDUSP 2004 Mota Marly Silva da A nação faz cem anos A questão nacional no centenário da independência Rio de Janeiro Editora FGV CPDOC 1992 ABUD Kátia O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições a construção de um símbolo paulista o Bandeirante São Paulo EDUSP 1985 ADUCCI Cássia Chrispiniano A pátria paulista São Paulo Arquivo do Estado Imprensa Oficial 2000 ELLIS Jr Alfredo Raça de gigantes São Paulo Hélios 1926 312 A decadência bandeirante entretanto não foi completa Prado insistiu na regeneração do tipo como sendo a própria regeneração do lugar São Paulo uma vez que o bandeirante era o fundador do lugar e o desbravamento do sertão brasileiro pelos mesmos foi considerado como o fato que ocasionou sua decadência O retorno às raízes representou na obra de Prado o revigoramento local expresso na força empreendedora do povo paulista como extensão da força desbravadora do bandeirante A propósito ver Paulística São Paulo Companhia das letras 2004 162 qualidades negativas Todavia a pretensão de Prado era modernista em sua essência pois se voltava para o futuro do país ao enxergar em seu presente os entraves e dilemas que teimavam em não permitir sua modernização Fixandose na crítica às formas culturais que o Brasil herdara da experiência colonial além de uma reflexão sobre as possibilidades de superação dessa herança vista como um entrave à modernidade ao progresso moral e ao aperfeiçoamento político do país Prado se dispôs a inventariar os traços supostamente característicos da identidade nacional que repercutiam diretamente no descalabro que o autor enxergava no Brasil dos anos vinte Ao esculpir uma história psicológica313 do brasileiro a partir do estabelecimento e identificação dos aspectos mentais dos colonos portugueses seu texto mostrouse como um exercício de distanciamento do otimismo característico dos modernistas muito embora o autor fosse um dos seus mais atuantes representantes314 Ao construir um tipo nacional vergado pelos defeitos morais que o impedia de realizar as melhorias necessárias ao seu lugar de natureza marcadamente esplêndida Prado dava as costas ao ufanismo típico de uma das principais vertentes do movimento lançando mão da temática da herança social abordada por Bomfim embora sob outra perspectiva Em sua narrativa não eram os brasileiros ramos verdejantes de uma cepa vigorosa como dizia o médico sergipano mas um povo de cariz marcadamente negativo que precisava se olhar no espelho e enxergar suas próprias misérias de forma a enfrentálas e superandoas renovaria a si e à própria sociedade 313 O termo é de LEITE Dante Moreira Op cit p 262 314 A respeito ver Martins Wilson A literatura brasileira Vol IV O Modernismo 19161945 São Paullo Cultrix 1965 Se o retrato negativo de Prado permitiu aos seus críticos compreendêlo como um historiador preso na fronteira entre o moderno e o arcaico assim como referenciavam a distância etária existente entre aquele autor e os demais escritores modernista para acentuar certo distanciamento de Prado do Movimento Modernista apesar de ser o mesmo um dos principais financiadores do principal evento e de variadas obras Martins renegou tais perspectivas para reconhecer na obra de Prado as principais características do Modernismo nacional amplamente distanciado do Romantismo típico dos oitocentos pela própria coerência estrutural do seu livro no qual os aspectos históricos são plenamente articulados com os estéticos convergindo para um nacionalismo típico Contra todos os argumentos contrários a recepção de Blaise Cendrars a Retrato do Brasil e sua oferta de tradução para publicação do livro na Europa parecenos fazer cessar a dúvida sobre a inserção das propostas modernistas na obra de Paulo Prado Sobre o contato do modernista francês com Paulo Prado ver EULÁLIO Alexandre A aventura brasileira de Blaise Cendrars São Paulo EDUSPFAPESP 2001 163 Para a realização de uma empreitada conscientizadora Prado teve a preocupação de fugir do modelo de obra histórica peculiar à época em que vivia Como modernista o historiador desprezava o estilo intelectual sonhador e egocêntrico dos românticos marcado pela grandiloqüência e retórica pomposa que para ele nada mais eram que uma dose adicional na deformação da vida nacional a ocasionar um hiato entre a vida material e a vida intelectual e institucional Por conseguinte Retrato do Brasil ofereceuse em seu formato como obra literária de leitura agradável avessa às exigências de citações das fontes utilizadas apesar de largamente utilizadas em sua composição Fugiu assim dos rigores do academicismo no concernente à composição de seu texto embora tenha obedecido ao rigor metodológico dos seus mestres315 para se propor como uma história mais fácil de ser compreendia pela população em geral316 distanciada da erudição de Francisco Varnhagen e do tom inflamado de Manoel Bomfim O jogo de palavras do historiador revelou um excelente escritor capaz de conduzir seu leitor à profundidade de sua argumentação sem o cansar graças à narrativa bem elaborada inteligível com valores e expectativas bem definidas de modo a constituir a identidade pretendida No postscriptum Prado revelou ter pintado o retrato do Brasil como o teria feito um pintor impressionista ao diluir na composição histórica a cronologia e os fatos para que ali surgissem somente os aspectos as emoções a representação mental dos acontecimentos Sua finalidade última porém era a de produzir uma homogeneização da visão sobre o Brasil a ser divulgada de forma a servir para esclarecer a sociedade sobre seus riscos futuros o que denunciou uma postura um tanto iluminista do historiador que 315 Inegável que Prado em muito repetira na escrita do Retrato da prática de Capistrano de Abreu a quem devotava atenção especial e com quem muito aprendera sobre o fazer história A correspondência de Capistrano é reveladora do quantos os dois historiadores discutiam e planejavam as principais abordagens desse texto ficando a Abreu a incumbência da leitura e consequente crítica para o aprofundamento e melhoria do trabalho cujas fontes surgiram das indicações seguras de Abreu profundo conhecedor dos arquivos nacionais Eduardo Prado seu tio já falecido historiador vinculado ao IHGB também lhe serviu como exemplo 316 É importante relevar o fato que ao tempo de escrita e lançamento dos principais títulos de Prado 75 da população brasileira não eram alfabetizadas Em contrapartida o Brasil se destacava no período pelo expressivo aumento de publicação de jornais folhetins e revistas o que pode ter influenciado Paulo Prado a buscar facilitar a circulação de textos históricos à população dando um formato mais leve ao seu livro o que parece ter surtido efeito A notícia de que seu texto era manuseado por leitores nos bondes cariocas foi motivo de exultação do autor sendo relatada por René Thiollier em suas memórias sobre o Modernismo brasileiro A respeito ver THIOLLIER René de Castro A Semana de Arte Moderna depoimento inédito 1922 São Paulo Cupolo sd 164 também apresentava sugestões tais como uma revolução popular como solução para os problemas nacionais Com tal finalidade aquele historiador fez inegável uso político da história ao selecionar das múltiplas reminiscências do passado aquelas capazes de compor os tipos brasileiros no contexto da formação nacional Triste apático romântico individualista erótico bruto inescrupuloso amante da liberdade os brasileiros de Prado se originaram da memória de uma classe específica no contexto de manutenção de prestígio da mesma classe Seu desdobramento entretanto barateou a identidade nacional em favor da própria identidade na qual o historiador se reconhecia Seu esforço na recomposição das origens da nacionalidade por meio de uma viagem à colônia e à experiência dos primeiros séculos permitiu não apenas a composição de uma identidade para o Brasil Ao tempo em que a construía Prado findou por realizar também uma retórica do outro o português formador Em sua narrativa o outro não foi um só o outro foi dual duplo modificado pelo ambiente distorcido em seu caráter original pela ânsia por riquezas depauperado pelas paixões carnais e de livre findou dissolvido pelo desânimo tal como os nacionais 51 O português livre da Renascença Os tipos portugueses em Paulo Prado entretanto não são coexistentes Tal qual Manoel Bomfim Prado decompôs a mentalidade do homem português em dois momentos distintos superpostos em tempo e espaços Se em Bomfim o português experimentara uma sutil e gradativa mudança com o fim da União Ibérica e a ascensão da Dinastia dos Bragança e suas práticas reprováveis em Prado o português se assumiu como um tipo novo ao tempo do Renascimento317 quando segundo o autor descobriu a alegria de viver Assim sendo depreendese que Prado entendia o português anterior a esse período 317 Apesar de não esclarecer seu entendimento sobre este período o conceito de Renascença é sempre retomado no trabalho de Prado que dele se utilizou como forma de insuflar dinâmica a pessoas e lugares de modo a enriquecer sua descrição das formas de agir impregnadas de menoscabo pelo alheio conforme o conceito de um clássico da Renascença Baldassare Castiglione em sua obra Il Corteglione de 1528 O retrato de Prado sobre o português renascentista explorou bem essa peculiaridade ao revelálo como um homem sem maiores sentimentos pelo outro essencialmente individualista e disposto a realizar somente a própria vontade fazendo um paralelo entre esse e o homem renascentista marcado pela desenvoltura n o fazer numa superioridade sem esforço que Castiglione denomina de spezzatura para sintetizar o padrão da época Cf MISSIO Edmir 2008 O cortesão moral de Baldassare Castiglione e o ordinário de Eustache du Refuge Memorandum nº 14 p 2536 Abril2008 165 como diferente imerso nos dogmas das instituições feudais manietado em seu próprio lugar por profundas preocupações sobre a morte e o inferno o medo de Deus e do diabo Foi a alegria a qualidade de maior destaque manifestada no português do Renascimento facultada pela visão humanista da época afirmou o autor Em homem novo se transformou o português ao tempo em que passou de podridão pó e cinza a um grande milagre318 descobrindo a vida tomando o gosto pela aventura pelos prazeres corporais pelas viagens pelo desbravamento das coisas e dos lugares Já não havia espaço para o português ensimesmado amarrado aos dogmas do catolicismo arcaico amortecido pelo terror da cruz e pela promessa do paraíso Superando a Idade Média esse homem livre e consciente voltou ao paganismo e seu retorno ao ideal antigo alargou suas ambições de poderio de saber e de gozo Para chegar a esse ponto foi preciso alterar o sinal negativo319 que o cristianismo inscrevera diante do que exprimia fortaleza e audácia Já não era mais tempo de se resguardar era tempo de conhecer o mundo que se abria em leques ao português acenandolhe com ganhos e riquezas com os quais ainda não havia se permitido sonhar Era tempo de enfrentar a fraqueza a pobreza a doença abrindo as portas translúcidas da prisão ocidental de modo a substituir a obediência pela vontade individualista 320 Esse tempo de libertação gerou um português capaz de grandes conquistas Não à toa datam do período as mais belas expressões da arquitetura manuelina assim como uma plêiade de historiadores teólogos poetas e literatos com suas obras notáveis Mestre do empírico consciente de que a experiência seria a mãe de todas as coisas o português se fez navegador lançandose ao mar na ânsia de descobertas atraindo para si os avanços cruciais de mapeamento do mundo inaugurando a era dos descobrimentos e da expansão comercial aventurandose Foi na conquista e colonização do território americano que esse português renascentista assumiu em definitivo os traços de personalidade decisivos na construção do retrato que 318 O termo é de Hermes Trimegisto expresso na obra Corpo Hermeticum São Paulo Editora Hemus 2005 p 37 319 Prado utilizou a expressão de Nietsche de modo a enfatizar a transformação vital pela qual passou o português renascentista transformado de camelo em leão pela negação ao até então existente Cf Assim falou Zaratustra São Paulo Companhia das letras 2010 320 Nesse contexto Paulo Prado chamou a atenção para a formação da Companhia de Jesus que teve em suas bases o princípio da Obediência Foi contra a mesma segundo o autor que se revoltou o colono no Brasil o que explica o longo embate desse contra os jesuítas Esse ponto de vista de Paulo Prado é originário das leituras de Antero de Quental e de Oliveira Martins para quem a companhia de Jesus foi fator determinante para a decadência dos Ibéricos A propósito ver Retrato do Brasil p 149 166 Prado pretendeu do Brasil Era feliz era liberto era ousado movido pelas ambições de poder de saber e de desfrutar tal qual o fora no tempo das Cruzadas guardadas as devidas diferenças Longe da sociedade européia lastreada por normas de toda ordem o português pradiano alçou a condição de homem novo e livre pois que não mais teve amarras para satisfazer seus desejos Era preciso ser feliz ter gosto pelo que fazia amar a aventura para subsistir à mesma marcada pelo perigo do desconhecido num tempo em que ver se tornou tão importante quanto ouvir Para homens que vinham da Europa policiada o ardor dos temperamentos a amoralidade dos costumes a ausência do pudor civilizado e toda a tumescência voluptuosa da natureza virgem eram um convite à vida solta e infrene em que tudo era permitido 321 Assim o retrato do português construído por Prado tomou seu primeiro contorno esse tipo português livre e aventureiro fora criado nos limites europeus onde o pensamento humanista vingou ocasionando mudanças substanciais nas sociedades do continente Não obstante a liberdade e aventura iniciais só atingiram seu ápice distante dos limites dessas sociedades onde a norma era elemento impeditivo para que sua liberdade se externasse em plenitude Assim já é possível aduzir que o português pradiano mantido nos limites geográficos de Portugal e que mesmo gozando de todas as virtudes permitidas pelos pilares da Alta Renascença jamais atingiu a liberdade e a alegria daqueles que abandonaram a Península Ibérica para desfraldar o mundo Aos navegadores aos descobridores é que a liberdade se ofereceu com capacidade total de mudálos de renoválos de tirálos das peias de uma sociedade normatizada para lançálos num mundo natural sem fé sem lei para oferecerlhes paradoxalmente valores prezados por sua sociedade original ouro liberdade sexo A impulsão desse português renascentista mais que o desejo de conhecer o mundo de superar seus limites geográficos se configurou na escrita de Prado como o desejo de possuir o extraordinário o diferente o exótico Como o português já tinha acesso aos produtos orientais às sedas especiarias às jóias e pedrarias a América pouco lhe valeria num primeiro momento A Carta de Caminha não noticiara a descoberta de produtos comerciáveis o que de pronto lhes tirou o interesse Que lhes proporcionaria uma natureza edênica num tempo em que o amor à natureza era inexistente Tanto o era que a afirmação 321 Ibidem p 61 167 de Hernán Cortez Io no vine aqui para cultivar la tierra como um labriego sino para buscar oro322 tornouse a realidade dos conquistadores de Castela Em Prado foram os portugueses mais abastados que não mostraram interesse imediato pelo território americano que mais valorizavam as riquezas orientais dedicandose a esse mister Diante dos esplendores da conquista do Oriente na metrópole ninguém pensava na terra dos bugios papagaios saguis araras e pausdetinta Esse desinteresse não obstante abriu espaço para que logo nos primeiros anos após a chegada ao Brasil membros das camadas mais desfavorecidas da sociedade portuguesa se aventurassem na conquista da natureza americana sem nenhum suporte a não ser aquele que a própria terra oferecia Assim Prado demarcou a origem social dos primeiros colonizadores do Brasil os fortes troncos que chegaram à nova terra323 remontando à antiga discussão da historiografia nacional sobre o cariz dos mesmos324 Para abrir picadas na mata hostil que não permitia sequer a visão do céu para enfrentar o nativo e tentar livrarse de sua borduna e afiadas flechas aparentandose com o mesmo para descobrir na vegetação luxuriante o que alimentava e o que envenenava só a valentia e determinação dos degredados dos criminosos dos náufragos de másorte e de grumetes rebelado Eram esses os primeiros pais de uma nova raça envolvidos pelo individualismo infrene anárquicos pela volatização dos instintos sociais cada qual tendo no peito a mais formidável ambição que nenhuma lei e nenhum homem limitava entregues ao encanto da novidade e da surpresa primitivos individualistas ávidos de gozo e vida livre A extrema mocidade dessa gente325 traço característico da época foi associada pelo historiador como detalhe favorável às 322 Citado por MOLAS Ricardo Rodrigues Los sometidos de La conquista Argentina Bolivia Paraguay Buenos Ayres Centro editor de America Latina 1985 p 34 323 Observese que Prado utilizou em Retrato do Brasil p 194 da mesma representação de Manoel Bomfim em O Brasil Na América caracterização da formação brasileira publicado um ano antes 1927 324 É preciso destacar que essa representação dos primeiros europeus a colonizar o Brasil se distancia de uma representação mais forte associada à produção do IHGB na qual tratava os portugueses como agentes da civilização uma raça forte capaz de superar todas as adversidades dos momentos iniciais de vivência no novo território Apesar de negativar a origem brasileira forjada no encontro de índios e europeus entretanto as duas representações não se anulam A nosso ver tais representações se fortalecem mutuamente posto ser inegável a fortaleza física e psicológica dos portugueses condenados ou insatisfeitos com a vida na metrópole Tanto o é que as ditas representações foram reproduzidas sem contradição nos manuais escolares brasileiros durante várias décadas como nos mostra o trabalho de RIBEIRO Renilson Rosa Colônias de Identidades Dissertação de Mestrado em História Universidade Estadual de Campinas 2004 325 Sobre a questão Prado destacou alguns exemplos como o de Simão Luís que fugira de um navio com apenas dez anos de idade Afirma ter Cortez dezenove anos quando veio para a América Cieza de Leon apenas 13 Gonçalo de Sandoval 22 No Brasil Estácio de Sá tornouse governador com 17 anos In Retratos do Brasil p 32 168 inovações vitais que produziram um homem novo aberto a diferentes realidades Em grande parte porém Raros eram de origem superior e passado limpo na proporção de 1 para 10 De baxa manera y suerte de linajes obscuros e baxos informam os cronistas castelhanos326 Ao se referir aos primeiros anos do descobrimento período idílico Prado estipulou o primeiro século como aquele capaz ainda de produzir o português aventureiro indômito sôfrego por liberdade o português da Renascença sem peias nem traços de obediência à rigidez moral da Europa Eram os caraíbas aqueles bem recebidos pelos nativos a escória de Portugal transformada na primitiva aristocracia da terra ao se misturar com a indiada num caldeamento de raças livres que originou o bandeirante o mameluco327 Eram aventureiros mas tomaram a colônia como um paraíso terreal onde enriqueceriam distanciados da hierarquizada sociedade portuguesa Ao destacar a ambição como um dos motores desse homem renascentista Prado fez questão de destacar a nomenclatura utilizada pelos colonizadores dos primeiros tempos para demarcar o quanto a cobiça pelo ouro foi decisiva na expansão dos mesmos pelos territórios americanos Rio da Prata Rio do Ouro Castela do Ouro Costa Rica Porto Rico Ouro Preto Diamantina Minas Gerais 326 O retorno a essa temática pareceunos ser necessário na construção da identidade nacional pretendida por Prado sendo essa informação abundante nos documentos utilizados pelo autor e disposta em Retratos do Brasil à página 127 A união espúria do aventureiro principalmente português e francês com a índia do Brasil e com as negras também se refletiu numa perspectiva depreciativa da origem do povo brasileiro carecedora de um estudo mais detalhado 327 Prado informou a existência de três núcleos de povoamento e mestiçagem originados nesse período inicial chefiadas pelos portugueses Jerônimo de Albuquerque Diogo Álvares o donatário da Casa da Torre e João Ramalho A este último intitulou patriarca por excelência dos mamelucos paulistas embora Jerônimo de Albuquerque fosse o único com família e crônica conhecida Ibidem p 128 e seguintes Mesmo que Prado fizesse questão de criar uma identidade paulista a partir da representação da união do português dos primeiros tempos com a nativa cuja prole se tornou ancestral da aristocracia cafeicultora orgulhosamente autodenominada quatrocentona e a qual pertencia há que se destacar não ser o historiador descendente direto dos primeiros bandeirantes O fundador da família Prado no Brasil foi o português Antônio da Silva Prado que chegou ao Brasil na primeira década do século XVII Originário da cidade de Prado provinha de linhagem nobiliárquica e no Brasil casouse com uma senhora descendente direta dos bandeirantes Estabelecido Antônio Prado financiou várias expedições nos sertões de Goiás em 1730 em busca de ouro sendo agraciado com o título de Barão de Iguape o que projetou a sua família no campo político e social cuja fortuna e prestígio distenderamse durante o Período Imperial A data da chegada de Antônio Prado denuncia não ter sido o mesmo um homem com o cariz descrito por Prado como tipificador do português renascentista cujos valores foram fundamentais na criação da raça original dos paulistas Por outro lado Prado afastou da própria linhagem a desdita de descender da baixa estirpe da sociedade portuguesa ao destacar ser seu ancestral um nobre e não mais um aventureiro em busca de fácil enriquecimento 169 Ao constituir esse português aventureiro dado a ousadias que pareciam integrar o seu caráter como algo natural preexistente às conquistas ultramarinas Prado aliouse com Manoel Bomfim que fez uso da mesma descrição para representar o português infrene livre sem temor dos riscos das aventuras e descobertas que se tornaram comuns entre seu povo Não obstante o adjetivo aventureiro denotar certa negatividade o autor não o usou com esta intenção Prado enfatizou aspectos de bravura e determinação ao representar o português como tal mas um aventureiro ávido por ouro e que tinha um fito em suas ações que as justificariam o retorno ao país de origem em melhor situação financeira estabelecendose num lugar social de maior destaque Aventureiro porque ao lançarse no mar não conhecia a realidade que enfrentaria sendo o conhecimento do mundo além da Europa marcado por narrativas que mesclavam a realidade com a fantasia328 O desinteresse pela colônia enquanto lugar de vivência emergiu no texto de Prado ao estabelecer mais uma representação do português a do usufrutuário dilapidador desinteressado pela rica natureza encontrada como já o atestara Frei Vicente de Salvador em sua História do Brasil de 1600 Tal constatação parece ser contraditória se avaliarmos que o português especificamente conhecera no Brasil uma vida aprazível se comparada à que era reservada ao homem pobre do Velho Mundo e cujo detalhamento fora levantado por Alonso de Santa Cruz em 1527 ao descrever as ilhas do Brasil329 Sendo superior a condição de vida do colono em relação à sua existência em Portugal somente o espírito de aventura tão decantado por Prado justificaria a vontade perene de voltar ao Reino espírito esse enfatizado pelo caráter de desapego à terra pelos colonizadores portugueses 328 Claude Suto resgatou a realidade da terra para o homem europeu do século XVI e afirmou a crença na existência do equador dos trópicos de cinco zonas climáticas três continentes três mares doze ventos Falavase em hiperbóreos vivendo em trevas na Europa setentrional e em grandes ilhas cheias de mistério no Atlântico Sobre a África falavase do Magreb e do Egito e nele fundeavamse hipóteses sobre as nascentes do Nilo A Ásia grande pólo de fascínio encerrava o Paraíso terrestre vedado por altas montanhas por uma cortina de nuvens e por hordas de animais monstruosos Ao norte ficaria o país de Gog e Magog onde habitavam as tribos de Israel expulsas por Alexandre No centro estendiase o reino de Preste João descendente dos reis magos e inimigo ferrenho dos muçulmanos Ao sul ficava a Índia composta por ilhas transbordantes de pérolas madeiras preciosas especiarias e peças de seda além de homens e animais monstruosos e uma natureza exuberante O oceano Índico seria à época o horizonte mental corporificador do exótico para o Ocidente medieval Cf SUTO Claude Limage Du monde connu à La fin Du Moyen Age In ALLARD Guy Aspects de la marginalité au MoyenAge Citado por MELLO E SOUSA Laura de O diabo e a terra de Santa Cruz São Paulo Companhia das letras 1986 329 No Islário Geral de 1542 Santa Cruz descreveu a vivência do colono português no litoral da Capitania de São Vicente asseverando ali existir um povoado de dez ou doze casas uma feita de pedra com seus telhados e uma torre para a defesa contra os índios em tempos de necessidade Estão providos de coisas da terra de galinhas e de porcos da Espanha em muita abundância além de hortaliças variadas Tem estas duas ilhas um ilhéu entre ambas do que se servem para criar porcos Há grandes pescarias de bom pescado 170 interessados tão somente nas riquezas que podiam ser constituídas na colônia e na forma de como poderiam transportálas para o reino Em Prado esse modo de vida redimensionava o espírito aventureiramente alegre do português que tinha Portugal como porto de partida mas sabia que o mundo era seu lar Por tal viés dáse a reconhecer algumas continuidades entre a história produzida por Prado e a história íntima de Capistrano de Abreu que buscou revelar o Brasil pelo seu avesso investigando a vida dos sertões O português seria assim na construção pradiana o mesmo tipo transoceânico330 apontado por Abreu mas que deixou no Brasil a sua semente no contato com a nativa originando uma nova raça Um homem que não se pautava mais pelos valores do catolicismo que já não via o mundo pela dicotomia do pecado e graças a isso era livre para praticar o que o momento lhe oferecia dentro de uma lógica proporcionada pela ideologia renascentista Ao mesmo tempo algumas extrusões são reveladas no pensamento dos dois historiadores Um bom exemplo diz respeito ao total esquecimento de Prado à dicotomia aventada por Abreu ao representar o homem simples de Portugal que viera ao Brasil por sua própria vontade como diferente daquele que cumprira uma missão investido de poderes concedidos pela Coroa Em Prado este tipo não existiu o que denuncia o tratamento generalizante aplicado pelo autor em relação ao colonizador Por extensão Prado enfatizou o gosto pela aventura do português renascentista pelo desbravar pelas viagens temática não abordada por Abreu desdenhando do cariz próprio do burocrata enviado para assumir um posto na administração colonial transferido para o Brasil sob uma obrigação e não apenas por exclusiva vontade esses já estavam no território colonial mesmo que em número reduzido bem antes de Martim Afonso de 330 O transoceanismo é característico dos escritos de Capistrano de Abreu que cunhou a expressão para designar a base fluida e instável que dava sustentação ao projeto colonial onde o Estado Português não ia além das costas brasileiras Esta base se refletirá no modo de enxergar o território colonial também pelos seus agentes de colonização que consideravam a colônia como um degredo ou purgatório da qual pretendiam sair o mais breve possível preferencialmente enriquecidos A instabilidade da vida colonial resultante do transoceanismo foi informação resgatada por Capistrano de Abreu nas Informações e fragmentos históricos do Padre José de Anchieta 15841586 prefaciada por Abreu e também na História do Brasil de Frei Vicente inédita até 1886 quando publicada por Capistrano em fascículos do Diário Oficial A respeito dessas descobertas ver o trabalho de WALDMAN Thaís Chang Moderno Bandeirante Paulo Prado entre espaços e tradições Dissertação de mestrado em Antropologia Social Universidade de São Paulo 2009 O liame entre Prado e Abreu será uma constante nos escritos do primeiro posto ter aquele autor em Abreu uma referência de sólidos conhecimentos além de uma qualificada orientação Muitos dos pontos de vista de Capistrano podem ser encontrados nos escritos de Paulo Prado 171 Sousa e o estabelecimento das capitanias331 Mesmo ao se referir ao português do século XVII época em que o arcabouço institucional metropolitano já existia em plenitude no ambiente colonial Prado manteve a representação do aventureiro não obstante marcado por severos vícios como veremos mais adiante O cariz de aventura e de liberdade que deu face ao português pradiano ratificou outra peculiaridade do tipo mostrado como incapaz de se sedentarizar no ambiente colonial Sua liberdade pressupunha um direito quase natural de ir e vir quando tivesse vontade de afiliarse aos costumes nativos de despedir sua companheira ou desposar quantas quisesse de partir para os matos sem se importar com o que deixara para trás de ir e voltar de Portugal sem maiores apegos Prado pretendia com essa representação mostrar o quanto essa liberdade ficara marcada na descendência bandeirante apesar do historiador não fazer menção ao caráter desbravador do português dentro da colônia Em seu texto raros foram aqueles que procuraram desde o início o ermo de difícil acesso do território colonial fixandose no litoral o que denuncia seu desvio da perspectiva abrelina ao referenciar a interiorização da colônia por variados portugueses332 Ao aplicar um teor literário a um texto de história Prado desdenhou da datação como elemento primordial a um trabalho dessa natureza caindo num generalismo abusivo nas representações acerca do português Ao trazer a tese de Paulística para o bojo de Retrato do Brasil evidenciase a necessidade de uma datação mais precisa para que se identifique 331 A propósito ver AVELAR Hélio de Alcântara História administrativa e econômica do Brasil Rio de Janeiro FENAME 1976 332 Prado não fez menção do caráter desbravador do português apenas do bandeirante a quem considera seu descendente fruto de sua união carnal com a nativa Há que se destacar que aquelas tinham como prática o nomadismo além do conhecimento do território advindo da necessidade de se buscar nas tribos inimigas matéria para suas práticas antropofágicas que somados à necessidade portuguesa de buscar riquezas de descobrir veios auríferos e jazidas de pedras preciosas resultou num enlace interessante para os dois Sendo o bandeirante o herdeiro natural de tais características não poderia deixar de promover as mesmas práticas resultantes de uma herança social Ao mostrar o desbravamento como uma virtude apenas do bandeirante Prado subtraiu os devidos créditos ao português ao tempo que avolumou a importância do mestiço bandeirante na formação do território brasileiro concedendolhe um papel privilegiado mais interessante para a fixação da identidade regional pretendida pelos integrantes de sua classe social Em Paulística Prado descriminou as peculiaridades de cada raça para mostrar qual a participação das mesmas na formação da personalidade do bandeirante defendendo a superioridade da mestiçagem originada do encontro do nativo com o português Do índio vinhalhe o ardil o instinto a maleabilidade a coragem impassível a observação agudíssima apurando os sentidos Do branco a obstinação a inteligência a imaginação a cobiça o gosto pela aventura Corrigindo o velho fundo disciplinar e tradicional do europeu a fraternidade comunista do indígena seria a semente da independência esquiva que veio caracterizar o novo tipo étnico em formação E desenvolvendo nessa luta de cada instante contra a natureza foi aí que se revelou a verdadeira grandeza da bandeira paulista PRADO Paulo Paulística São Paulo Companhia das letras 2004 172 sobre qual português o autor se refere em determinados trechos de seu trabalho Ao utilizar as escarpas da Serra do Mar como elemento primordial e único a diferençar o alegre português renascentista do planalto paulista daquele que se dispôs a ficar no litoral Prado findou por lançar dúvidas sobre a acalentada identidade étnica original dos paulistas se considerarmos que a união com a índia fora prática comum do primeiro século em todo território colonial assim como por ele se alastrara o português renascentista na primeira centúria Por suposto o mameluco abrelino ou o bandeirante pradiano deveriam ter a mesma composição étnica Em defesa do retrato regional intentado o historiador insistiu na preservação da cultura originária da raça ali formada o que para ele não ocorrera no restante da colônia nas capitanias mais ao norte próximas do mar e em constante contacto com Portugal Naquelas o português do renascimento europeu cedo teve seu caráter modificado em decorrência de outro ambiente social além do contato freqüente com outros portugueses oriundos de um reino cada vez mais degenerado a produzir homens diferentes daqueles alegres aventureiros que chegaram ao Brasil apenas cem anos antes 52 A Metamorfose de livres a tristes Se o ouro fora a motivação primeira para que aquele português renovado no Quatrocento se lançasse ao mar em busca de aventuras e enriquecimento Prado investiu na tese de que o ouro também se alçou como um dos principais motivos para sua derrocada Foi com o fito de enriquecimento que os aventureiros partiram dos portos portugueses para explorar outros lugares O espírito da época inspirava as descobertas e os portugueses revestiramse desse espírito ao extremo posto terem se tornado exímios navegadores numa busca frenética pela descoberta do mundo Os mais abastados rumaram ao Oriente enquanto aos desfavorecidos restou a América nos seus primeiros tempos Fosse qual a direção ou a condição social libertaramse os descobridores dos freios e sanções de uma sociedade que amadurecia e que passava por severas transformações No Brasil habitado por gente de hábitos prosaicos o aventureiro português refinou suas primitivas pretensões e mesmo ao enfrentar uma natureza que escondia seus prováveis e preciosos encantos para além de serras rios e florestas não se desviou do motor de suas aventuras era necessário descobrir riquezas imperioso seria enriquecer 173 A busca pela riqueza foi mostrada por Prado como a desventura portuguesa no Brasil Se no primeiro momento o fito do enriquecimento foi o motor da aventura colonial do desbravamento dos mares da exploração das matas foi o encontro das profusas riquezas minerais ocultas no território brasileiro uma das ocorrências determinantes para que o português renascentista entrasse em acelerado processo de degradação realçando um cariz que lhe era natural o português era naturalmente um ser melancólico 333 e tal peculiaridade foi relatada desde os primeiros anos da colônia por Padre José de Anchieta 15341597 e por Frei Vicente de Salvador 15641635 A cobiça foi ponto de apoio a justificativa necessária para a superação dos desafios enfrentados pelos portugueses na faina cotidiana Foi a ambição a sede pelo ouro e pelo enriquecimento a cupidez um dos mais pujantes aspectos da mentalidade que impulsionou o português para as descobertas e para a conquista de novos lugares aos quais Prado buscou dar o máximo destaque Por toda a parte o aventureiro corria atrás da prata do ouro e das pedras preciosas que durante quase dois séculos não foram senão ilusões e desenganos Compensava a esterilidade do esforço a descida do indígena Entrelaçavamse e confundiamse assim as bandeiras de caça ao gentio e bandeiras de mineração Quando se dissipava a miragem da mina ficava como consolo o índio escravizado Obsessão formidável de uma época de uma raça e de um novo tipo convergindo numa idéia fixa avassaladora Ouro ouro ouro334 Não obstante o olhar pradiano lembremos que desde os anos iniciais da colonização com a divisão do solo em capitanias a cultura canavieira e a consequente produção açucareira assumiram importante papel no quadro de desdobramento da expansão colonial especificamente na orientação de uma política econômica de interesse metropolitano A 333 Segundo SCLIAR durante a Idade Média a melancolia fora pensada como um grave pecado a acédia A indiferença do homem em relação a Deus era tão grave quanto a cobiça ou luxúria sendo a tristeza crônica quando manifestada considerada coisa do demônio Com o enfraquecimento do papel da Igreja a acédia passou a ser considerada um caso a mais de melancolia A acédia prostrava o homem enquanto a melancolia permitia a produção intelectual e artística Para Scliar a melancolia retornou num contexto de ascensão do individualismo renascentista tipificado em Prado no colono português do primeiro século SCLIAR Moacyr Saturno nos trópicos a melancolia européia chega ao Brasil São Paulo Companhia das Letras 2003 A temática da tristeza como típica do colono português emergiu das pesquisas de Capistrano de Abreu ao editar alguns documentos sobre o período sendo os mais expressivos as Cartas informações e fragmentos históricos de autoria do Padre José de Anchieta Rio de Janeiro Civilização brasileira 1933 bem como na História do Brasil de Frei Vicente de Salvador São Paulo Companhia Editora Nacional 1978 334 Ibidem p56 e 61 174 descoberta das minas e a atividade mineradora datam do início do século XVIII enquanto a instalação dos primeiros engenhos de açúcar remonta ao século XVI 335 A produção da especiaria de alto valor no comércio europeu foi portanto uma das primeiras e a principal atividade econômica do português no Brasil até meados do século XVII quando os preços caíram vertiginosamente obrigando a coroa portuguesa a ressuscitar uma antiga obsessão a descoberta das minas e sua subseqüente exploração que se tornou nas palavras de Prado uma loucura coletiva336 Prado não fez menção à mentalidade portuguesa sobre as minas no Brasil desde os primeiros tempos da colônia apesar de Gândavo referenciar a convicção dos lusos sobre a certeza do ouro e a prata brotarem da terra nas regiões exótica de clima quente337 o que restou provado tratarse apenas de lenda Assim como a produção açucareira em seu fazer meticuloso demandava inauditos esforços do mesmo modo ocorrera com a exploração mineradora O trabalho antes de tudo era a exigência básica para a formação dessas riquezas na colônia que somente em raras ocasiões se apresentavam à superfície da terra na faisqueira da areia dos rios Mesmo para encontrála entretanto eram necessários meses de caminhada na mata formação de roças para a subsistência enfrentamento de terríveis animais pestes e inços próprios dos trópicos Não se pode dizer que a riqueza ansiada pelos portugueses foi auferida com a facilidade sonhada e o trabalho árduo foi o marco na exploração dessa riqueza O Brasil não era o Oriente onde o saque exigia no máximo a luta e o arrancar de ouro se dava diretamente das orelhas das mulheres como já referido por Oliveira Martins Nesse ambiente de trabalho árduo marcado pela 335 Foi precoce a vontade da Coroa portuguesa de introduzir a economia açucareira no Novo Mundo Em 1516 a Casa da Índia recebeu a incumbência de localizar artífice no fabrico e que quisesse tentar a sorte no Brasil Já em 1519 há notícias da existência de pequeno engenho assim como da entrada de açúcar brasileiro no porto de Antuérpia no ano seguinte sem maiores relevância econômicas Somente após a instalação das capitanias verificouse como prerrogativa a concessão de licenças para construção de engenhos e em 1534 foi noticiada a instalação do primeira unidade produtiva em Pernambuco Gândavo informara que em 1570 existiam sessenta engenhos com produção anual total de 2700 toneladas Dez anos mais tarde Fernão Cardim indicaria a existência de 115 unidades produtivas sendo 36 na Bahia 3 em Ilhéus 1 em Porto Seguro 66 em Pernambuco 6 no Espírito Santo e 3 no Rio de Janeiro Os dados podem ser conferidos em GÂNDAVO Pero de Magalhães de Tratado da província do Brasil Rio de Janeiro INL MEC 1965 e em CARDIM Fernão Tratado da terra e da gente do Brasil São Paulo CEN Brasília INL 1978 336 É certo terem sido os habitantes da capitania de São Vicente os encarregados de esquadrinhar os sertões do Brasil central em decorrência das condições geoclimáticas daquela parte da colônia adversas à economia açucareira e ao contato com o litoral razões para a manutenção de uma economia seminatural o que obrigava seus habitantes sem capitais para aquisição de escravos negros buscarem o aprisionamento dos nativos Por não participarem da principal economia de interesse da metrópole e por terem vasto conhecimento dos territórios interno da colônia receberam a incumbência dessa missão 337 Ibidem p 122 175 mentalidade de enriquecimento a todo custo em constante enfrentamento com a natureza desafiadora frutificaram os troncos robustos do português renascentista marcados pelo enfado como pressuposto de sua busca Em oposição do outro lado do Atlântico Portugal decaía em seu poderio a derrota na Ásia a morte de D Sebastião a união com a Espanha assim como o estabelecimento da Inquisição e seu crescente poder foram apontados na escrita de Prado como os fatores da dissolução do homem renascentista que vivia em Portugal e cada vez mais castrado dos ideais humanistas que o Quatrocento lhe proporcionara A nação portuguesa corrompida pelo luxo e pela desmoralização dos costumes perdia pouco a pouco a sua primitiva vitalidade Os governos despóticos e incapazes só conservavam a antiga energia para sustentar a Inquisição338 Para Prado tinha faltado a Portugal a verdadeira compreensão histórica e econômica de sua missão metropolitana A nação e o governo recebiam como uma esmola o ouro as pedras preciosas e os produtos comerciáveis das colônias vivendo sem trabalhar Acoimado pelo ambiente restou ao português comum ser inoculado pelo germe da decadência murchando em si escalavrandose na tristeza que acobertava as terras portuguesas transformandose pois no português da governança e da fradaria No ambiente colonial o mal tardou a chegar nomeadamente nos rincões mais remotos do litoral ausentes do contato constante com o ambiente metropolitano Por sua vez nas terras do açúcar bem antes das descobertas das minas o entrelaçamento com o português oriundo desse ambiente de ruínas corrompido pelo luxo e pela desmoralização dos costumes resultou na degradação dos colonos que se antes eram movidos pela ambição e pela aventura passaram a sêlo por uma cobiça irrefreável Cada vez mais exigia o colono de si na ânsia de enriquecer E nessa angústia o português dantes livre e alegre foi decaindo numa melancolia que nascia das estafantes atividades por ele empreendidas nas lembranças da terra e das pessoas que deixara para trás e assim seu olhar sobre o ambiente colonial foi sendo modificado pois que aquele de edênico tornouse satânico a expressar a inadequação do elemento humano ao cenário paradisíaco tropical339 338 Ibidem p 188 339 CARVALHO José Murilo de O motivo edênico no imaginário social brasileiro Revista Brasileira de Ciências Sociais São Paulo v 13 n 38 Out1998 p 1321 176 Antes disso todavia o mesmo espírito de aventura fizera com que o português se entregasse ao desejo imediato diante da nudez das nativas cujas qualidades estéticas foram objeto de inúmeras páginas escritas por cronistas e navegadores entre os quais Caminha em sua carta ao rei sobre a descoberta de novas terras Abaixo do Equador não existiam pecados e as mulheres pitorescas do Brasil firmaramse como excelente surpresas para os portugueses cuja lubricidade afluiu no contato com os nativos embora preexistisse na mentalidade quatrocentista marcada pelo desejo individual e pela vida livre Prado destacou o quanto o colono português se entregou à vida dissoluta ao fazer das índias as companheiras de lida na colônia formando famílias tendo filhos assumindo os costumes e o parentesco dos nativos Para aqueles não bastava uma ou duas assumindose como companheiro de três ou mais mulheres no mesmo ambiente ou em localidades diferentes como era comum entre os nativos os quais segundo Gabriel Soares de Sousa morriam esfalfados pelas sujidades que cometiam a cada hora340 Do texto de Prado sobrevém a certeza que muitas das práticas adotadas pelo colono português em seu contato com os nativos não se tratava apenas de uma adequação dos primeiros para com os segundos num exercício de adaptação aos costumes vigentes na nova terra como descritos por muitos dos cronistas coloniais341 Para Prado o português já era dissoluto desde sua origem onde o desregramento ocasionado pela mentalidade renascentista somarase à sua experiência diante dos diversos povos do mundo por onde transitou sem cuidados nem respeitos A luxúria que tipificou o português no entanto atingiu novos patamares quando a colônia já não se restringia a dois tipos étnicos O aprofundamento da exploração canavieira exigira braços fortes e a recusa e valente teimosia do índio sobreviera como impeditivo de seu uso como mãodeobra nos engenhos além de não proporcionar lucros diretos à metrópole Por outro lado a escravidão negra emergira como excelente razão econômica para seu estabelecimento oficial e a partir de 1570 os escravos da Guiné aportaram nas praias da colônia para trabalhar do eito dos engenhos numerosos nas regiões mais ricas do 340 SOUSA Gabriel soares de Tratado descritivo do Brasil 1587 341 A perspectiva de Prado por conseguinte trata o encontro entre portugueses e nativos americanos como pouco impactante para os primeiros sexualmente desregrados no ambiente de origem e em contato com tribos complacentes nesse mister Parecenos então que a narrativa pradiana trata de um encontro de mundos não muito diferentes ao destacar as práticas sexuais e sociais dos nativos como forma de esclarecer que a lubricidade portuguesa apenas se acentuou na América sendo anterior à chegada dos portugueses na mesma 177 espaço colonial342 que tiveram sua face modificada desde então Em nova cena a mulher negra em sua condição de submissa bem diferente da índia voluntariosa foi mais um passo na decadência portuguesa justificativa da luxúria infrene somada à ambição do enriquecimento a todo custo que marcou o processo colonial repleto de histórias escusas ocorridas nos quartos da casagrande na sordidez das senzalas no oculto dos canaviais343 Como prova de que a luxúria da qual falava provinha do ambiente metropolitano Prado insistiu em mostrála como uma peculiaridade não exclusiva do homem macho português Com tal finalidade seu texto inovou ainda mais ao resgatar de relatos de viajantes as astúcias na arte de sedução e do capricho na escolha de amantes utilizada pelas poucas mulheres européias na colônia capturando recônditos do mundo feminino português até então inexplorados pelos historiadores locais O relato de autoria desconhecida datado do início do século XVII e utilizado por Prado em seu Retrato não trata de mulheres pobres ou desvalidas sujeitas a prostituição como forma única de sobrevivência mas da vida íntima da boa sociedade da época344 e das práticas secretas das jovens damas portuguesas345 342 Necessário lembrar que a escravidão negra não dominou por completo o território colonial destacandose apenas nas regiões produtoras de açúcar cujos ganhos com a venda da especiaria permitia o financiamento de cativos africanos Nas regiões onde o clima ou o relevo não permitiram a exploração açucareira consideradas periferias da colônia como São Paulo Maranhão e Pará fizeram uso de formas incompletas de escravidão assim como formas servis de submissão do nativo e do homem pobre livre cujos usos atingiram o século XX 343 No texto de Paulo Prado a questão é tratada de forma elegante sem expressões chulas e com a objetividade necessária de forma a demonstrar a seriedade daquele autor para com o seu leitor e seu próprio trabalho A mesma postura pode ser observada quando da publicação da Primeira visitação do Santo Ofício a partes do Brasil Confissões da Bahia 15912 em consórcio com Capistrano de Abreu A correspondência dos dois autores revela como os mesmos consideravam melindroso o trato com a forma como seriam publicados os relatos sobre as heresias sexuais sujidades no dizer de Prado Na discussão entre os autores sobre a forma como tais passagens deveriam ser impressas foi Abreu taxativo ao concordar com o parceiro Você tem razão e não importa a pornografia a impressão deve ser feita Mesmo assim no prefácio do livro Abreu orientou o leitor sobre as páginas onde encontraria o assunto melindroso podendo assim evitálas A respeito ver RODRIGUES José Honório Correspondência de Capistrano de Abreu Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1977 3º volume O interesse pelos temas miúdos da história Prado os assumiu no contato com Capistrano de Abreu para quem o estudo completo e complexo do drama humano engloba duas histórias distintas porém complementares uma íntima e outra externa A história íntima com seus relatos sobre os costumes as moralidades e os vícios deveria mostrar como aos poucos foi se formando a população devassando o interior ligando entre si as diferentes partes do território fundando indústrias adquirindo hábitos unindose por fim à nação A respeito ver ABREU Capistrano Ensaios e estudos crítica e história Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1976 344 Ibidem p 3940 345 A primeira mulher branca de que se tem notícia no Brasil é a de João Gonçalves meirinho em São Vicente e de que fala uma petição datada de 1538 Segundo os termos desse documento o casal deveria ter chegado um ano antes em 1537 Tomé de Sousa em 1549 trouxe algumas mulheres casad as com 178 Outro exemplo do fato teriam sido as práticas cotidianas de Garcia DÁvila em sua Casa da Torre346 que nada mais era para o autor que um pequeno núcleo de devassidão indisciplina e viver desregrado desenvolvendo em plena anarquia moral e social os germes da desmoralização e depravação dos costumes trazidos da metrópole já decadente Ligada umbilicalmente ao organismo enfraquecido e doentio da metrópole a Casa da Torre assim como os núcleos costeiros da colônia não viviam vida própria na ótica de Prado A proximidade com a Europa o intercâmbio comercial a influência direta da administração central mil fatores étnicos e econômicos solidarizavam tais espaços com o ritmo vital do velho reino ora paupérrimo ora esbanjador de riquezas mas no caminho fatal para a decadência Sem ideais religiosos ou estéticos e sem nenhuma preocupação política intelectual ou artística que pudesse entorpecer sua busca constante de enriquecimento e seus excessos carnais Prado abordou tal contexto como o estopim para que o português perdesse de vez o espírito renascentista que o fizera livre Consumido pelo desejo envenenado pela concupiscência no contato constante com os do reino onde a ambição e luxúria assumiram patamares nunca dantes visto o colono português decaiu numa tristeza empregados que vinham temporariamente para a colônia Só mais tarde em 1551 diz Gabriel soares chegaram mulheres para casar com os moradores principais da terra Traziam como dotes ofícios da fazenda e justiça Na frota de BoisleConte em 1556 refere Jean de Lery que embarcaram cinco solteiras acompanhadas por uma governanta Foram as primeiras francesas que conheceram o Brasil casando com seus patrícios no Forte de Villegaignon 346 A Casa da Torre foi uma grande construção em formato de castelo medieval única existente em todo território brasileiro sede administrativa de uma série de datas auferidas pelo português Diogo Álvares e seus descendentes empenhado na interiorização do domínio português no território da colônia no Século XVI Caracterizouse como a sede do maior latifúndio do mundo dentro de uma área equivalente a 110 do território brasileiro equivalente às áreas de Portugal Espanha Holanda Itália e Suíça juntas Localizada na capitania da Bahia representou grande poder militar no combate aos franceses e holandeses que ali aportavam e integrava um conjunto residencialmilitar compreendido pelo próprio Castelo com sua Torre e seus anexos o Forte Garcia dÁvila o Porto do Açú da Torre e sua Ambiência formada pelas áreas adjacentes Também nomeada nos documentos da época como Castelo da Torre de Garcia dÁvila Castelo Garcia dÁvila Torre de Garcia dÁvila Solar da Torre ou Torre de Tatuapara a Casa da Torre representa o arcabouço da aristocracia colonial cuja família original tem na união de Diogo Álvares com Catarina Paraguaçu uma tupinambá batizada na França com o nome de Katherine du Brézil sua máxima representação Além de importantíssima no desbravamento do Brasil e na formação do território nacional a Casa da Torre foi pioneira na pecuária brasileira corroborou com a expulsão dos jesuítas do Brasil participou na corrida pelo El Dorado que culminou nas descobertas das minas em Minas Gerais e teve entre seus membros adeptos dos ideais libertários da Revolução Francesa De 1798 em diante esteve envolvido nas lutas pela Independência sendo muitos de seus membros agraciados com títulos de nobreza por Dom Pedro I e Dom Pedro II A respeito ver SEIXAS Wilson Pesquisas para a história do sertão da Paraíba In Revista do Instituto Histórico e geográfico paraibano Nº 21 João Pessoa Imprensa universitária da Paraíba 1979 p 64 e seguintes 179 paralisante deixando aos poucos de ser um aventureiro ousado cujas faces irradiavam a felicidade de ser solto no mundo de conhecer seus caminhos de ser um desbravador Aqueles pecados capitais refreados no medievo parecem ter sido acordados de um sono ordinário num despertar que os deixara fortalecidos A colônia então se antes fora um local aprazível transformouse no purgatório ou quiçá no próprio inferno lotado de homens decaídos cuja virtude da felicidade se esvaíra no eito dos canaviais na solidão da bateia no gozo rápido com negras e índias A melancolia a tristeza tornouse assim uma peculiaridade do cariz português na narrativa de Paulo Prado a demonstrar não ser o luso um tipo superior conforme descreveram alguns historiadores nacionais Preconizado no grosso da historiografia nacional de até então como aventureira gente com cariz povoador e com a notável capacidade de estabelecer contatos amigáveis com as populações nativas com as quais travava relação347 o português de Prado pareceu inverter esta tese ao salientar a saudade como atributo Sendo a saudade um sentimento do que se deixou para trás como poderia ser esse mesmo português um aventureiro destinado a fazer sua vida nos mais diferentes lugares do globo indiferente à sua terra e à sua gente Se o caráter do português exibia uma maleabilidade tal que o permitia se adaptar sem dificuldades mais que quaisquer outros povos aos diferentes lugares em que chegara como considerar que o mesmo nutria sentimentos adversos pela América portuguesa considerandoa como uma prisão Eram por conseguinte uma raça triste e sua tristeza tinha nascedouro em sua paixão pelo ouro assim como no abuso venéreo experimentado à exaustão principalmente no Brasil Também tornava entristecida a personalidade dos portugueses a melancolia e saudade da pátria que deixaram para trás e por considerarem a colônia um verdadeiro purgatório onde penavam em degredo No alémmar estava a terra portuguesa o lugar de origem a pátria mãe a referência identitária e no trânsito do maroceano emergiu a saudade portuguesa embasada na tristeza e na melancolia originárias dos sentimentos vazios proporcionados 347 Seu argumento permitiu que mais adiante o autor justificasse a escravidão negra como uma necessidade econômica do período salientando sempre o caráter harmonioso das relações entre portugueses e africanos observação utilizada anos mais tarde por Gilberto Freyre em seu Casa Grande Senzala de 1933 180 pela luxúria e pela cobiça e que o português legou ao seu descendente o brasileiro 348 que viveu triste numa terra radiosa permeada por vícios e pecados Conclusões da Parte II Foi Capistrano de Abreu quem comparou o brasileiro a um jaburu ave forte embora pouco capacitada à ação349 O jaburu carregava uma simbologia marcadamente negativa construída ao arrepio do espírito ufanista do início do século XX e embora pecasse pela generalidade expunha uma faceta da identidade nacional que ainda não se ousara construir Nessa identidade os portugueses estariam amalgamados de forma tal que quase não se podia extirpar sua presença tão profunda seria a mesma na formação nacional A colônia gerara um povo novo cujos genes carregavam grande teor dos chamados filhos de Portugal e o questionamento sobre o sentido de valor da antiga metrópole foi expresso na herança mental dos colonos Prado como discípulo de Abreu interessouse pelo tema utilizandoo na construção de uma identidadedenúncia que demonstrava o incômodo do historiador pelos rumos tomados pelo país o que findou por fazêlo enfrentar severas críticas350 Em seu tempo Retrato do Brasil foi uma obra inovadora e polêmica embora tenha inaugurado no panorama da historiografia brasileira uma era de grandes ensaios destacandose por construir uma psicologia da descoberta dominada por dois grandes impulsos A tristeza portuguesa e por extensão a tristeza brasileira não teriam consistido na tese central do pensamento daquele autor organizada a partir de peculiaridades de um dado momento 348 Segundo EULÁLIO CALIL Prado pediu a Blaise Cendrars em dezembro de 1926 uma busca bibliográfica sobre o tema que daria ensejo ao seu Retrato Cf EULÁLIO Alexandre CALIL Carlo Augusto Op cit p 27 349 Em trecho de carta de autoria de Abreu a João Lúcio de Azevedo aquele historiador descreveu o jaburu como de estatura avantajada pernas grossas asas fornidas mas que passava os dias com uma perna cruzada na outra triste triste daquela austera apagada e vil tristeza A carta pode ser lida na íntegra à p 175 e seguintes em RODRIGUES José Honório Org Correspondência de Capistrano de Abreu Vol 2 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1977 350 O volume intitulado O brasileiro não é triste assinado por Eduardo Frieiro em 1931 foi publicado como um contra discurso à proposta de Paulo Prado e só não teve um impacto esperado pelo fato de que na data de lançamento da obra as mudanças políticas operadas pela Revolução de Trinta permitiram uma rápida superação do debate estéril sobre a alegria e tristeza nacionais A respeito ver a observação de Brito Bro ca em Alegria versus tristeza Seção Vida literária A Gazeta recorte não datado pertencente ao arquivo do CEDAEIELUNICAMP 181 histórico sendo a tristeza o resultado da soma dessas ditas peculiaridades a definir um espírito coletivo nacional351 Ao utilizar o português como referencial na construção de uma identidade nacional Prado se diferenciou dos demais historiadores de sua época inaugurando o tratamento ambíguo na relação havida entre portugueses e brasileiros Necessário enfatizar que aquele autor ao falar do português referiuse ao reinol e não ao seu remanescente nascido no Novo Mundo e afiliado à coroa portuguesa por isso considerado português por tantos outros autores ou lusoamericano Seu ponto de vista não admitia o Brasil como uma extensão de Portugal mas como um novo lugar onde surgiram novas raças Digo novas posto o autor entender haver duas ambas lusoamericanas com seus tipos próprios o mulato e o mameluco A primeira formada pelo sangue do negro em contato com o do português decadente tornarase um problema angustioso no dizer do autor A segunda resultante do contato entre europeus e nativos em seu esplendor e fortaleza dominou os campos das Gerais e São Paulo fomentando assim a civilização do café tão bem representada na figura do próprio Paulo Prado Mesmo ao utilizar o pressuposto da herança social largamente difundido em seu tempo o historiador manteve um distanciamento entre portugueses e brasileiros fossem mulatos ou mamelucos de modo a destacar o retrato que queria construir No quadro impressionista pretendido por Prado o brasileiro estava em foco como a imagem principal da composição e não enlaçado com o português como caberia a personagens de uma mesma família irmanados por uma genealogia Um português seria como que uma sombra nessa composição capaz de ressaltar os traços da figura principal Era um outro mas um outro distante perdido nas brumas do tempo de onde já não poderia mais sair embora sua herança psicológica insistisse em ficar mantendose no caráter nacional quase como uma tragédia que precisava ter um fim o que vem demonstrar a diferença na perspectiva de Prado em relação a de Abreu Para um mal tão perverso Prado prescreveu um remédio perigoso a guerra ou a revolução o que nos revela que o próprio autor claudicara na indicação Sendo os grandes males 351 Para BERRIEL a tese da tristeza brasileira não teria sido a principal proposta de Prado ante a vacuidade do tema e da forma como foi tratado A mesma por si só não poderia sustentar um trabalho que veio a ter repercussão e se tornar referência para estudos que foram significativos para a compreensão da realidade brasileira Ver BERRIEL Carlos Eduardo Ornelas Tietê Tejo Sena A obra de Paulo Prado Campinas Papirus 2000 p 192 182 morais da sociedade brasileira produtos de uma mentalidade como exterminálos com tal dolorosa e incongruente solução A violência do remédio é sugestiva de um tempo de indecisão e pouco esclarecimento político um tempo em que se sonhava com o moderno sem que se soubesse bem como realizálo assim como revela um vago heroísmo do autor empenhado no redirecionamento da pátria tal qual o desejava as doutrinas fascistas que começavam a aparecer no Brasil A irmandade entre brasileiros e portugueses por conseguinte inexistiu na composição pradiana Na retórica daquele intelectual a presença portuguesa se caracterizou como passageira temporária fugaz e já se perdera Não havia mais necessidade de se apegar a ela de recompôla no presente como mecanismo de construção de identidade embora o próprio autor lançasse mão desse recurso na tentativa de dar contornos ao Brasil de impor à sua face um espelho onde pudesse mirarse e vendo os próprios defeitos quisesse deles se livrar mesmo que para tanto recorresse a remédios amargos Em Prado o elo aclamado pelos historiadores oitocentistas quebrarase O contexto da época já permitia esse distanciamento de Portugal então imerso nas brumas do Salazarismo distanciado dos tempos de heroísmo e conquistas de costas para a própria Europa da qual os modernistas diziam querer livrarse embora a admirassem profundamente Um século já havia transcorrido desde a realização da independência tempo suficiente para dissolver os laços urdidos nos tempos coloniais mesmo que a historiografia brasileira teimasse em mantêlos embora nos limites de sua historicidade Se em Abreu nos defrontamos com o fortalecimento desses laços expressos em representações impeditivas de dicotomia entre o português de Portugal e um português americano em Bomfim essa divisão é dada como imprescindível de forma a demonstrar as diferenças entre um e outro fazendo emergir dessas diferenças a consciência de uma identidade brasileira nascida desde os primeiros tempos da colônia Mesmo ao traçar uma intensa linha divisória entre os dois povos o sergipano Bomfim não se esquivou de visibilizar o cariz positivo da gente simples de Portugal empenhada no esforço colonizatório em oposição à elite portuguesa cujos esforços centraramse na exploração da colônia e na dilapidação das riquezas dali retiradas Desprezar o colono significaria desprezar a própria formação nacional amparada no pressuposto de uma herança social Valorizar o gênio popular português significaria também aquilatar a cepa portuguesa da qual se originaram os brasileiros 183 Embora Abreu tenha se tornado a referência primeira na historiografia do início do século XX suplantando a caudalosa história produzida por Varnhagen sua perspectiva sobre o outro é marcada pela ambiguidade e em determinados trechos de sua obra é quase impossível discernir sobre a distinção entre ser português ou ser brasileiro A composição do homem colonial em Abreu sofreu do mal da simbiose proporcionado pelos documentos utilizados pelo historiador que instituíam o Brasil como uma província portuguesa o que findou por se refletir em sua narrativa Em Bomfim não obstante toda a negatividade explorada em seu discurso sobre Portugal o liame também se dá ao nível da ambiguidade mesmo que aquele intelectual tenha insistido numa separação física dos organismos por ele utilizados como representações Vencido seu olhar sobre o Portugal parasitário o sergipano encontrou no português uma extensão do brasileiro e essa extensão atesta a favor da irmandade entre os dois povos em face de seu passado comum de seus traços culturais comuns Por sua vez em Prado não se percebe nem o caráter ambíguo da relação entre os dois povos menos ainda há um discurso que dê relevância à irmandade Para aquele intelectual o que restou dos portugueses foi a mentalidade apenas da qual faziase mais que urgente livrarse Abreu por sua vez mesmo alteado pelo olhar arguto de Varnhagen e favorecido pelos novos enquadramentos teóricos que em muito se refletiram em sua forma de fazer história não fugiu de muitas das representações constantes na HGB principalmente aquelas relativas aos portugueses Na ambiência republicana ao tempo da escrita de Capítulos de história colonial já não se fazia necessário o fascínio e admiração pelos portugueses que tanto marcou a obra de Varnhagen e dos quais bem que tentou se afastar embora sem o conseguir de todo No concernente a Portugal Capistrano de Abreu mesmo de forma distinta e sutil referendou os elogios de Varnhagen ratificando algumas das representações construídas na HGB e reproduzidas nos livros didáticos sobre a história nacional Considerando ser a produção histórica passível de fruição e consumo por seus prováveis leitores é neles que as representações ali existentes assumem uma importância vital refletindose no seu aproveitamento ou seu esquecimento É o caso do português abrelino que de tão mesclado com o seu descendente diluiuse numa história percebida como uma história incapaz de se tornar memória posto firmarse na história de homens comuns imersos na faina cotidiana de caráter taciturno retraído intolerante que se diferenciavam 184 entre si apenas pelo esforço autoral de citar nomes e feitos Apesar de entender os fins políticos da história e da necessidade de sua escrita na formação do espírito nacional Abreu não conseguiu configurar o surgimento de um sujeito político capaz de formar a nação que em sua narrativa só surgiu pelo ato político da independência Mesmo traçando distinção entre os tipos portugueses revelando uma heterogeneidade na mentalidade do português em relação à empresa colonial e ao seu próprio papel na sociedade da metrópole Abreu não conseguiu destrinçar o português do brasileiro Em seu discurso ora há uma junção ora há uma separação entre os mesmos o que desvenda a busca de caminhos para a construção de uma nova história do Brasil tão pretendida pelo autor mas que ele não conseguiu alcançar como modo de não destoar da história de seu próprio tempo e de seu lugar social Assim não se pode afirmar existir no discurso daquele historiador uma retórica bem definida de uma alteridade que permitisse a construção de uma identidade nacional onde o nós se defrontasse com o eles A nosso ver o tratamento ambíguo dado aos portugueses pelo autor resultou da própria ambiguidade do momento político vivenciado quando da escrita de um de seus textos assim como pelo próprio lugar social daquele historiador O fato de pertencer ao IHGB ambiente francamente marcado pela imponente presença do antigo imperador a admiração de Abreu pela personalidade de D Pedro II assim como seu apoio ao republicanismo evidenciara contradições e ambiguidades que bem se refletiram em sua obra nomeadamente no concernente ao português no contexto colonial Ao contrário de Abreu o português construído por Bomfim se destacou posto que mostrado como um sujeito interesseiro marcado por qualidades negativas e oriundo de uma sociedade doente Sem respeito pelos povos de terras distantes por onde andara o português bomfiniano teve seu caráter constituído pelo historiador no mesmo espaço temporal utilizado por Prado embora sob outra abordagem que o difundiu como um aventureiro explorador acoimado pela prática que findou por abatêlo transformandoo num parasita das riquezas alheias Embora tomado ao longo de sua obra como parte integrante na formação do nacional com ativa participação na constituição do povo brasileiro evidenciase em Bomfim a retórica da alteridade em relação aos portugueses pois a cepa mesmo sendo imprescindível para a existência dos ramos é tratada com o devido distanciamento inerente à questão 185 Em Bomfim a distância foi mitigada pelo liame de uma cultura comum pela junção da cepa com os ramos onde alguma seiva alimentaria as duas partes vivificandoas e realizandoas Em Prado essa distância foi propositadamente acentuada pelo caráter de herança que o autor imprimiu ao lugar do português na narrativa do nacional Desmistificando seu modernismo Prado fugiu do ufanismo do movimento para tentar se livrar do passado o que permitia ao autor falar do outro um outro que imprimiu sua mentalidade nessa brasilidade marcada por estupros roubo depredação da natureza maus tratos contra negros e índios e que se revelou na alteridade construída pelo autor paulista Sua obra pautada num discurso interessado em desvendar algumas cenas da vida brasileira assumiu papel de destaque na produção histórica nacional persistindo durante décadas nos estudos sobre a colonização Por conseguinte a representação do português ambicioso e lúbrico do Retrato serviu para fomentar estudos sobre a vida cotidiana na colônia em uma série de novas abordagens que modificaram em definitivo o fazer histórico no Brasil refletindose nos grandes ensaios que surgirão na década seguinte tais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda 186 PARTE III EM TEMPOS DE REENCONTRO O RESSURGIR DA IRMANDADE A transição da década de vinte para a seguinte se configurou no Brasil como um especial momento de sua história marcada pela erupção de críticas e oposições à sociedade oligárquica assim como aos rumos tomados pela república A historiografia daquele período marcada pela discussão da herança portuguesa teve como propositura demonstrar o quanto dessa herança sobrevivera no Brasil mesmo após sua independência e de como tal legado proporcionara respaldo às oligarquias nacionais dominadoras de amplos setores da sociedade Tal qual nos tempos de Felipe II o Brasil encontravase dividido em dois núcleos geográficos maiores o Nordeste agrário com toda sua carga colonialista e uma economia já sem expressão e o Sul agrárioexportador ancorado na cultura cafeeira e com crescente burguesia industrial a formar um complexo econômico decisivo para a economia do país Uma linha imaginária dividia a jovem nação em dois pólos nos quais se preservava a concentração de diferentes atividades econômicas além de uma estrutura regional de classes Tal realidade findou por solapar o precário equilíbrio existente no seio da própria classe dominante algumas privilegiadas pelas próprias divisões setoriais evidenciando oposições dessas áreas bem como internamente às mesmas As camadas medianas da população não tinham espaço no jogo de poder assim como o operariado realidade refletida nos diversos movimentos sociais que eclodiram no país desde os primeiros tempos da república A hegemonia política da elite agrária do sul porém sofreu severo golpe ao romperse dentro de si mesma permitindo novas alianças que culminaram numa revolução civilmilitar na tentativa de reordenação do sistema de 187 poder352 A Era Vargas teve início com o sucesso do movimento revolucionário que baniu a chamada Política dos Governadores353 encerrando a República Velha 18941930 expressão maior da sociedade oligárquica Doravante a Nova República ou Segunda República se renovaria no Estado Novo ditadura implantada por Getúlio Vargas sete anos após tomar posse como presidente do Brasil Bem antes disso porém o governo revolucionário definiu seu plano de ação de modo a realizar mudanças estruturais em áreas de seu interesse Era preciso provar naquele especial momento que o Brasil mudara e que os vícios e erros do passado haviam sido banidos da vida pública nacional Era o momento de se republicanizar a República dando início a uma revisão da vida nacional a reclamar por mudanças estruturais A conjuntura externa difícil marcada pela crise econômica de 1929 e descrédito da doutrina liberal manifestada pela ascensão do fascismo do comunismo e do culto ao Estado forte refletiu se no amadurecimento de uma ação governamental consistente em linha antiliberal o Varguismo determinado em seus fins de estabelecer outra ordem econômica e social no 352 A Revolução de Trinta foi considerada por Sodré como uma revolução burguesa ante a ascensão da burguesia industrial ao aparelho do Estado até então limitado aos setores agrarioexportadores hegemônicos desde o Império Essa tomada do poder resultou na implantação da indústria de base meio único para promover o encontro entre o arcaico setor da agro exportação e o setor moderno tão ansiado de um pólo urbanoindustrial criado Para Santa Rosa entretanto a Revolução não pode ser tomada somente como um momento de ascensão da burguesia em virtude da inegável penetração dos setores médios marginalizados no jogo político com a implantação de um regime de participação política que mesmo restrito mostravase purificado dos vícios tradicionais como a fraude eleitoral e a fragilidade do sistema judiciário Para Weffort por sua vez a revolução foi um marco que distinguiu a nova estrutura política da anterior ao não mais expressar a hierarquia social e econômica nem os interesses de uma fração de classe O chefe do executivo assim adquirira a função de árbitro fato que respaldou uma modernização conservadora resultante do conteúdo de classe tradicional e da modalidade autoritária de sua intervenção SODRÉ Nélson Weneck Formação histórica do Brasil São Paulo Brasiliense 1963 SANTA ROSA Virgínio O sentido do Tenentismo São Paulo AlfaÔmega 1975 FAUSTO Bóris A Revolução de Trinta História e historiografia São Paulo Brasiliense 1972 353 A Política dos Governadores se caracterizou como acordo formado desde os anos iniciais da república entre o governo federal e os líderes políticos regionais mais conhecidos como coronéis em alusão à patente da Guarda Nacional do Império Visava a eleição de maciças bancadas para as assembléias legislativas ao nível federal e estadual com o apoio irrestrito do governo federal de modo que nem este nem os governos estaduais enfrentassem qualquer tipo de oposição Esta política foi a progenitora da política do cafécom leite prática de um revezamento do poder nacional entre membros de dois partidos exclusivos de São Paulo mais poderoso economicamente principalmente devido à produção de café e Minas Gerais maior pólo eleitoral do país da época e produtor de leite e certamente moldou diversas práticas políticas no Brasil atual A Revolução de Trinta foi inicialmente articulada a partir da cisão entre paulistas e mineiros unindo se os últimos a outros nomes da política nacional especialmente dos estados do Rio Grande do Sul e da Paraíba para formar a Aliança Liberal na qual se uniram as mais díspares idéias que se materializaram em parte com a revolução 188 país há bem pouco comandado por coronéis Concomitantemente evidenciouse a distância entre a sociedade civil e o Estado entre o Brasil real e o Brasil legal entre a realidade brasileira e as idéias importadas graças ao intenso debate político doravante travado sedimentado na radicalização ideológica do período O Rio de Janeiro capital do país desde os tempos coloniais assumiuse desde o Reino Unido como o lócus de encontro da intelectualidade sediando jornais academias e institutos assim como as sedes dos primeiros cursos superiores implantados no país Mesmo oriundas das várias regiões do território era ali que se encontravam as cabeças pensantes da vida nacional seja no campo político seja no campo cultural Mesmo na década de trinta com a criação de uma universidade brasileira em São Paulo e a efervescência por ela provocada nos meios intelectuais a proximidade das duas cidades só referendou o sudeste brasileiro como espaço privilegiado de produção de circulação e de consumo da intelligentsia brasileira O Sudeste tornarase também o centro urbano e industrial do país seu centro de gravidade para onde convergiam todos os movimentos enquanto as demais regiões ao norte assumiramse como periferia nacional em sua posição geográfica política econômica e cultural no contexto do intenso redimensionamento ocasionado pelo governo pretensamente revolucionário em todos os seus desdobramentos Tal realidade acabou por gerar uma substancial modificação na mentalidade dos intelectuais brasileiros em relação ao futuro do Brasil ao seu progresso e à identidade nacional A transformação das estruturas sociais e a consequente emergência de novas classes também favoreceu uma nova percepção dessa problemática Era mais que necessário decifrar o enigma do Brasil e interferir na produção do seu futuro Dentre as reformas implantadas pelo governo de Vargas ao longo de seus quinze anos duas merecem aqui ter maior destaque por estarem diretamente vinculadas ao objeto do presente trabalho a reaproximação do Brasil a Portugal na tentativa de afirmação do país no cenário internacional e a reabertura consolidação e fundação de instituições de ensino superior com a respectiva implantação de cursos de filosofia e ciências sociais em São Paulo e no Rio de Janeiro como parte do esforço de fortalecimento nacional do novo governo 354 354 O estatuto colonial vetou a abertura de cursos superiores no Brasil que teve na Universidade de Coimbra a referência para a realização de estudos desse nível Somente com a chegada de D João VI foi autorizada a 189 A carência de personalidades nacionais capazes de exercer cargos de magistério superior tornou necessário o convite a nomes estrangeiros tornando indispensável a colaboração de uma nova missão cultural francesa355 Marcada por nomes que posteriormente desempenharam influência significativa no desenvolvimento da cultura e das ciências humanas na segunda metade do século XX os franceses que ali trabalharam em conjunto com alguns dos nomes dos integrantes do IHGB356 acentuaram o convívio dos autodidatas com pesquisadores e professores de formação universitária impondo nova dinâmica à vida acadêmica brasileira357 A influência da cultura humanística francesa em geral e da história da filosofia em particular foi muito visível nomeadamente sobre a terceira geração abertura de cursos superiores no Brasil sendo abertos os cursos de direito em Olinda e São Paulo Outro fator que contribuiu para o atraso na criação de cursos superiores no Brasil teve na influência positivista um forte empecilho ao serem consideradas instituições medievais e com ligações com a Igreja católica Dominante entre os republicanos essa influência resistiu bravamente à criação de universidades brasileiras criadas aos poucos como 27 escolas superiores entre 1891 e 1910 Após esse período surgiram os embriões das futuras universidades De existência fugaz surgiram a Universidade de Manaus em 1909 e extinta em 1920 a Universidade de São Paulo 19111917 e a universidade do Paraná 19121915 A campanha para reabertura e fundação de universidades no país nasceu no esteio do Movimento Modernista e em 1933 logo após a derrota da contrarrevolução constitucionalista um grupo de empresários se dispôs a alinharse com o governo abrindo a Escola Livre de Sociologia e Política ELSP com o objetivo de formar uma nova elite capaz de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições do governo e a melhoria do país Vargas bem soube utilizarse das pretensões paulistas ao incentivar o então interventor Armando de Sales Oliveira a implantar uma universidade a USP em 1934 que teve como fonte de inspiração o mundo acadêmico francês No ano seguinte a abertura da faculdade de filosofia na Universidade do Rio de Janeiro criada desde 1920 consolidou em definitivo a abertura de um novo momento para os estudos superiores do país A propósito ver CUNHA Luis Antonio A Universidade Temporã O Ensino Superior da Colônia à Era de Vargas Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 AZEVEDO Fernando de A Cultura Brasileira São Paulo Melhoramentos 1975 SOARES Maria S A Coord A Educação Superior no Brasil Brasília CAPES 2002 TEIXEIRA Anísio Ensino Superior no Brasil Análise e Interpretação de sua evolução até 1969 Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 1989 CARDOSO Irene A universidade da comunhão paulista São Paulo Cortez 1982 355 Dentre os nomes que vieram para o Brasil integrar o quadro de docentes das faculdades de filosofia ciências e letras recém fundadas destacamse o historiador Fernand Braudel o antropólogo Claude Lévi Strauss o economista François Perroux os sociólogos Roger Bastide e Georges Gurvitch Entre os filósofos cabe destacar Martial Gueroult um dos criadores do Método Estrutural de História da Filosofia Etienne Borne Gilles Gaston Granger Jean Maugüé Posteriormente chegaram como professores visitantes Michel Foucault e Claude Léfort que passaram alguns anos Gérard Lebrun e Michel Debrun permaneceram no Brasil por longo tempo 356 O IHGB perdeu em definitivo sua influência como espaço privilegiado do ensino e pesquisa em história que foi transferida para a universidade de forma quase absoluta A propósito ver MOTA Carlos Guilherme Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 357 Tal realidade permitiu a Michel Foucault afirmar ser o departamento de Filosofia da USP um departamento francês de Ultramar Cf ARANTES Eduardo Um departamento francês do Ultramar Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana uma experiência dos anos sessenta Rio de Janeiro Paz e Terra 1994 A respeito ver também MICELI Sérgio Org História da Ciência Social no Brasil São Paulo SumaréFAPESP 1995 Vol 2 PECÁUT Daniel Os Intelectuais e a Política no Brasil São Paulo Editora Ática 1980 190 de professores do departamento com profundos reflexos na produção historiográfica desde então que passou por intensas reformulações deixando aos poucos de ser campo exclusivo de médicos e bacharéis em direito para se firmar como produção profissional como veremos mais adiante Tal realidade entretanto não se presentificou nos autores e suas obras esmiuçadas mais adiante em face das especificidades de sua formação e de sua vivência como será demonstrado Não obstante é certo que a historiografia brasileira produzida depois desse período sofreu notável influência da presença francesa nas principais universidades brasileiras influência que posteriormente se alastrou para as demais regiões e espaços de produção da história nacional358 O crescente e profícuo contato com a intelligentsia francesa por sua vez fez afluir certo europeísmo que remontava ao Oitocento bem almejado por alguns setores das elites intelectuais brasileiras desde o início da república ensejando uma reaproximação na esfera da política externa e por conseguinte no âmbito cultural A aproximação com esses intelectuais europeus ocasionou notável desconforto entre os Modernistas apesar de alguns dos seus representantes terem tido ativa participação na formação desse quadro acadêmico Entretanto as dificuldades que grassavam o velho continente às vésperas de um novo conflito e imerso nos problemas ocasionados pela Grande depressão se elevavam como um impeditivo para um maior contato entre o Brasil e o Velho Mundo Se até aquela década o país continuava a ser um receptor de mão de obra européia fato que acentuava certa vinculação entre as duas partes após os anos trinta essa realidade foi obscurecida em parte pelos efeitos da crise econômica mundial em parte pela política nacionalista expressa na determinação antiimigratória do novo governo As restrições às atividades de estrangeiros no país inclusive de portugueses tinham como justificativa a defesa dos interesses nacionais face à elevada taxa de desemprego resultante da crise econômica e a possibilidade de ameaça à soberania nacional ocasionada pelo monitoramento político desses imigrantes sobretudo alemães e italianos por seus países de origem359 358 Sob a influência dos franceses a história se aproximou das ciências sociais objetivando analisar a realidade brasileira em seu aspecto econômico social e mental e não apenas político refletindo as complexas e significativas mudanças que ocorriam na sociedade em plena transição de uma economia agropecuária para o domínio do capitalismo industrial e a emersão dos seus peculiares sujeitos 359 GONÇALVES Willians da Silva O realismo da fraternidade As relações BrasilPortugal no governo Kubitschek Tese de doutorado em Sociologia Universidade de São Paulo 1994 191 Dar visibilidade ao Brasil no âmbito internacional integrava o projeto Varguista dentro da complexa realidade do momento O alinhamento a determinados países parecia ser indispensável para a consecução dos planos projetados dos quais o de maior destaque dizia respeito à obtenção dos capitais e tecnologias necessárias ao desenvolvimento do parque industrial almejado por Vargas A tentativa de abertura de mercados consumidores para as exportações brasileiras também foi determinante para redimensionar a política externa do período que de relativamente passiva adotou critérios para se inserir afirmativamente nos quadros da ordem mundial em construção A visibilidade externa pretendida também foi o esteio para a aproximação com Portugal cuja afinidade históricocultural serviria como uma propaganda positiva do país no exterior ou pelo menos no mundo lusófono Para tanto o governo suscitou expressivo número de eventos diplomáticos e civis entre os dois países durante os quinze anos seguintes360 que se alastraram pelos governos posteriores O aprofundamento dessa relação historicamente conturbada marcada por aproximações e distanciamentos não obstante serviu como mais um fator de reforço da nacionalidade brasileira e marcou a adoção de uma diplomacia cultural361 entre os dois países A afinidade étnica lusobrasileira e a semelhança da estrutura e natureza dos governos destes países permitiram que fossem revogadas as restrições para a entrada de portugueses no Brasil como expressão da préfalada afinidade Os argumentos utilizados para justificar a 360 Como exemplo do esforço de aproximação entre Portugal e Brasil no período abordado destacase a realização do I Congresso de Portugueses no Brasil em 1931 no qual foi criada a Federação de Associações Portuguesas Nesse mesmo ano em 30 de abril a Academia Brasileira de Letras e a de Ciências de Lisboa assinaram simultaneamente em Lisboa e no Rio de Janeiro um acordo ortográfico que pretendia manter a unidade e promover a expansão da língua portuguesa Também foi assinado em 1933 um tratado comercial não cumprido pelas duas partes devido a onda protecionista gerada pela crise econômica mundial Em 1938 foi enviada ao Brasil uma delegação portuguesa com a finalidade de estudar medidas que pudessem incrementar o intercâmbio comercial entre estes países e que resultou na assinatura em 1941 de um protocolo adicional ao tratado de 1933 apresentando resultados poucos significativos O acordo acadêmico de 1931 também não obteve o resultado esperado o que fez com que em 1943 fosse negociada a Convenção Ortográfica LusoBrasileira que tampouco conseguiu acabar com as divergências na aplicação dos sistemas ortográficos Mais uma nova tentativa foi feita em 1945 quando uma delegação brasileira foi enviada a Portugal para negociar uma nova convenção que expressasse o interesse dos dois países mas esta nem chegou a entrar em vigor Em 1941 foi assinado o Acordo Cultural LusoBrasileiro em 1946 depois de findo o Estado Novo foi assinado o Acordo Aéreo em 1948 o Acordo de Cooperação Intelectual e em 1953 o Tratado de Amizade e Consulta que também é resultado deste período de grande aproximação luso brasileira Sobre a questão ver CERVO Amado MAGALHÃES José Calvet de ALVES Dário Moreira de Castro org Depois das Caravelas As Relações entre Portugal e Brasil 1808 2000 Brasília Editora da UnB 2000 CORSI Francisco Luiz Estado Novo Política Externa e Projeto Nacional São Paulo UNESP FAPESP 2000 361 O termo é de autoria de LOBO Eulália Maria Lahmayer Portugueses en Brasil en el Siglo XX Madrid Mapfre 1994 192 medida destacavam a importância do elemento português na formação do povo brasileiro o sentido lusobrasileiro da formação histórica da nacionalidade o poder de adaptação do luso a identificação entre brasileiros e portugueses e sua contribuição civilizadora e cultural Em contrapartida tornouse inegável o dispêndio do governo português em se aproximar e tentar melhorar sua relação com o Brasil elo fundamental para que Portugal atingisse um lugar de maior destaque no cenário mundial ansiado por Salazar no contexto do Estado Novo O objetivo era abandonar o título de país periférico constituindose em Estado forte e estabilizado economicamente o que devido a sua incipiente industrialização só seria possível através da manutenção das colônias africanas ameaçada pela doutrina anticolonialista do pósguerra362 A aproximação com o Brasil como parte da política externa salazarista tinha como fito a defesa do império colonial português já que aquele país como excolônia portuguesa apareceria como prova concreta da eficiência lusitana em administrar seus territórios coloniais No sentido de dar maior visibilidade ao vínculo cultural entre os dois países foi lançada em Portugal a revista Atlântico363 com o principal objetivo de difusão recíproca da cultura nacional nas duas margens do oceano apoiada na busca de um passado em comum e da reafirmação de todos os elementos que compunham esse passado Em última análise porém as preocupações comerciais regiam os esforços dos respectivos governos o que pode ser demonstrado pelo rol dos muitos acordos na maioria das vezes ineficazes sobre o tema364 Portugal desejava abrir novos mercados com a finalidade de reduzir a 362 Cf FIGUEIREDO António de Portugal 50 anos de ditadura Rio de Janeiro Civilização brasileira 1976 p 87 363 Idealizada por Antônio Ferro diretor do Secretariado Nacional de Propaganda em Portugal e não pelo governo brasileiro a revista se propunha a divulgar os vínculos comuns entre Portugal e Brasil que partilhavam dos mesmos sentimentos e ideais criando a idéia de uma Civilização Atlântica apoiada na compreensão recíproca proporcionada pelo idioma comum A semelhança lingüística sempre foi defendida como fundamental fator no processo de aproximação lusobrasileiro cujo desejo há muito existia segundo José Osório de Oliveira em artigo de sua autoria intitulado Obreiros da aproximação Atlântico nº 2 1942 Por esse modo a revista se revestiu como o instrumento oficial que garantiria a eficácia e a continuidade dos numerosos esforços para efetivar tal aproximação 364 O comércio entre estes países já vinha apresentando acentuado declínio desde meados da década de 20 e esta situação piorou ainda mais depois de 1929 visto que o Estado brasileiro procurou realizar uma política de autossuficiência que dava ênfase ao desenvolvimento industrial e a uma agricultura que satisfizesse o mercado interno No seu tempo o governo de Vargas apresentou uma disposição diferente com relação a essa questão tanto que um acordo comercial foi assinado em 1933 com a finalidade de recuperar a queda dos índices comerciais das exportações brasileiras e portuguesas estabelecendo princípios da liberdade de 193 dependência do país à Inglaterra e o Brasil precisava manter o comércio exterior de forma que as exportações pudessem garantir certo nível de estabilidade interna Além disso um acordo comercial com Portugal era extremamente importante em face da impossibilidade de competitividade dos produtos brasileiros com aqueles produzidos em áreas coloniais A retórica da irmandade tomou nova forma nesse contexto conectada com as balizas políticas do momento A semelhança ideológica dos dois governos cada um com seu departamento de propaganda e ambos com a mesma nomenclatura após 1937 parece provar que tal aproximação não pode ser considerada unicamente como simples resultado da relação histórica a unir os países ou simples fruto da vontade dos setores da sociedade que desejavam estreitar as relações lusobrasileiras Foi somente com a intervenção e participação dos Estados brasileiro e português que importantes passos foram conquistados mesmo que em longo prazo no caminho de um entendimento recíproco A afetividade constituída nesse período findou por tornarse um laço permanente nas relações lusobrasileiras e um dos seus mais importantes efeitos foi dissuadir o viés político existente nas mesmas sobressaindose sempre o vínculo cultural Proferese que determinados períodos da História de um país são especialmente significativos não porque representam um rompimento radical com as estruturas sociais políticas ou econômicas anteriores mas porque neles os agentes históricos procuram dar novas dimensões e significados à realidade passada a fim de construírem no presente um mundo adequado a seus próprios projetos Tal fato pode ser percebido nos grandes ensaios sobre a formação da nacionalidade brasileira que nasceram nesse ínterim demonstrativos do quanto fora modificada a idéia de nação buscada desde a independência assim como o que se pensava do outro dos outros e no presente caso de Portugal e dos portugueses comércio e navegação de reciprocidade e no tratamento da nação mais favorecida Outros acordos que tinham como objetivo diminuir os obstáculos comerciais entre estes países foram assinados posteriormente mas nenhum deles até a década de 60 conseguiu ter grande êxito 194 CAPÍTULO 6 UMA NAÇÃO IMPREGNADA DE PORTUGAL A obra de Gilberto Freyre365 integrou o rol dos grandes ensaios interpretativos sobre a formação da sociedade brasileira que surgiram no país no contexto dos anos 30366 Seu textogerminal Casa grande Senzala367 é o expoente para revelar a compreensão que aquele autor arquitetou sobre o Brasil e consequentemente sobre Portugal nesse tempo de aproximações Com efeito o que se contêm em CGS é amplo e complexo painel pouco atento a cronologias e ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico da formação da sociedade patriarcal tendo na família a célula civilizadora reinante no Brasil por mais de três 365 Gilberto Freyre nasceu no Recife em 1900 residindo nos Estados Unidos e Europa de 1918 a 1924 tempo em que cursou a graduação e concluiu o mestrado com a tese intitulada Vida social no Brasil nos meados do século XIX Defendida perante a Universidade de Colúmbia em Nova York em 1919 e publicada pela primeira vez na Hispanic american historical review em 1922 sua investigação germinou a idéia aprofundada em Casa grande Senzala Promoveu em 1926 no Recife o 1º Congresso Brasileiro de Regionalismo quando lançou seu Manifesto Regionalista em contraponto ao Manifesto Modernista dos paulistas abrindo caminho para a literatura regionalista e a construção discursiva da região nordeste Realizou em meio a dificuldades financeiras as pesquisas que levariam à publicação de Casa Grande Senzala um desdobramento da investigação da tese de mestrado Vida social no Brasil nos meados do século XIX Iniciou em 1935 um curso de Sociologia na Faculdade de Direito do Recife mas nunca seguiu carreira acadêmica regular Foi eleito deputado federal pela UDN em 1946 mas também não permaneceu na atividade política Seu livro seminal se desdobrou numa trilogia imprescindível para o conhecimento da formação do Brasil seguindose de títulos como Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso Autor prolífico publicou dezenas de títulos reeditados variadas vezes e em vários idiomas o que dispensa a nosso ver de maiores apresentações No Brasil sempre foi visto com desconfianças por um grupo de intelectuais por suas posições políticas e suas escolhas o que resultou numa severa crítica à sua obra crítica que vem se desvanecendo desde os anos 80 após sua morte em 1987 Apesar de nunca ter se afirmado como sociólogo e menos ainda como historiador a trilogia freyreana é acatada como um trabalho de história cultural pelos historiadores nacionais 366 Produzidos por jovens autores que intentavam abordagens renovadoras de fenômenos históricos econômicos sociológicos educacionais étnicos destacamse por ostentarem o termo formação em seu título evidenciando a temática principal das mesmas Formação histórica do Brasil de Nélson Werneck Sodré Formação do Brasil contemporâneo de Caio Prado Júnior Os donos do poder formação do patronato nacional de Raimundo Faoro e até mesmo Casa Grande e Senzala Formação da família brasileira sob o regime patriarcal 367 Doravante ao nos referirmos a este livro trataremos apenas por CGS como já o fizemos em casos anteriores Justificamos nossa opção como estratégia para dar maior fluidez à escrita do presente texto Na leitura ora realizada utilizaremos também Sobrados Mocambos SM e Ordem Progresso OP 195 séculos acima de Igreja e do próprio Estado Mais que uma história íntima pretendida por seu autor CGS é uma análise da gênese da sociedade brasileira agrária em sua estrutura de produção escravocrata no modo de exploração do trabalho e híbrida em sua composição social Composta de cinco partes nas quais o autor analisou o papel desempenhado pelos nativos pelos negros e pelos portugueses na formação social e familiar brasileira o textochave de Gilberto Freyre buscou desvendar a cultura colonial cujo enraizamento se deu de formas distintas em todo território da chamada América portuguesa consideradas as especificidades regionais Seu autor nordestino de nascimento viveu os vestígios dessa cultura amalgamada na vida social de Pernambuco seu estado natal antiga capitania que se destacou como a maior produtora de açúcar da colônia com farto contingente de escravos cujas terras eram loteadas de engenhos e de famílias poderosas Seu lugar social o indicava como um representante da decadente aristocracia pernambucana célula máter da civilização construída pelos portugueses auxiliados por índios e negros o que se refletiu numa perspectiva de ser o nordeste açucareiro a matriz fundamental da sociedade brasileira368 uma expressão da autenticidade na formação nacional onde se formara uma democracia racial369 No contexto político e econômico daquele momento entretanto Freyre 368 OLIVEIRA discute a questão da baixa aceitabilidade da premissa do nordeste açucareiro como epicentro da formação da sociedade brasileira traçada na obra de Freyre A respeito ver OLIVEIRA Lúcia Lippi de Gilberto Freyre e a valorização da província Sociedade e Estado v 26 nº 1 JanAbr 2011 Sobre a questão Freyre esclareceu ter sido o Nordeste e mais especificamente em Pernambuco mais que a qualquer outra região do Brasil que teve início a civilização no Brasil Não foi em São Paulo Em São Paulo fundou se um engenho no Século XVI Enquanto se fundava esse engenho perto de Santos já existia uma constelação de engenhos e casas grandes em Pernambuco constituindo a verdadeira raiz do Brasil Esta é a tese de CasaGrande e Senzala pois a família e não o governo ou a igreja é que foi a raiz brasileira cuja força germinal você encontra aqui e não em outro lugar do Brasil Essa crítica é de gente do sul e você sabe como são exclusivistas Eles querem que tudo tenha começado por lá Veja bem Eu admiro o bandeirante mas ele foi um nômade de pouca fixação A fixação em algum ponto do Brasil vamos dizer vertical começou do Nordeste brasileiro Daí o símbolo casa grande e senzala ser muito importante pois foi uma fixação natural A casa grande era aceita não só como residência mas também como banco escola e uma série de funções Cf trecho de Gilberto Freyre um menino aos 83 anos Santista São Paulo v 1 n 2 nov 1983 p 1618 Entrevista disponível em httpwwwbvgffgforgbrportuguesvidaentrevistasmeninoaos83html acessada em 20102011 369 Sua postura deu margem à larga oposição com o sudeste industrial ganhando a antipatia e a crítica negativa especialmente por parte da chamada Escola Paulista de Sociologia na década de 50 liderada por Florestan Fernandes A EPS contou com nomes como Otávio Yanni Emília Viotti da Costa Fernando Henrique Cardoso e outros cujas perspectivas tinham por base os ideais marxistas característicos dos pesquisadores da USP e da influência européia que ali estava desde sua fundação Desse grupo emergiram 196 representava o arcaico Nordeste em oposição ao Sul transgressor do modelo colonial a esculpir a modernização nacional o que se refletiu facilmente na recepção de sua obra alguns anos depois Ao conceder o papel de matriz da cultura brasileira ao nordeste açucareiro Freyre fez emergir na historiografia nacional o importante papel do negro na formação daquela sociedade até então relegado a segundo plano em face do teor racialista que dominava a temática Ao fazêlo redimensionou em definitivo o papel dos envolvidos no cadinho de raças que se tornara o Brasil revalorizando cada participação nomeadamente em relação aos portugueses A estes dedicou importante espaço em sua pesquisa trazendo à luz variados matizes e tons na construção de um português diferente do que até então se conhecera a respeito Em Freyre os tipos portugueses deixaram de ser considerados pelo seu papel econômico ou por seu teor político sendo mostrados como relevantes agentes culturais na formação de um novo lugar A composição do português freyreano ao contrário dos demais autores aqui utilizados não se deu apenas no contexto colonial Mesmo que outros historiadores tenham se utilizado das origens do Estado português para compreender os aspectos psicológicos e culturais do português que chegou ao Brasil Freyre percorreu um caminho distinto e mais ousado Ao buscar nessas origens a constituição da cultura portuguesa em si Freyre identificou nos recônditos do Brasil a fixação dessa cultura transplantada em sua plenitude e ainda pujante em seus maiores aspectos em pleno século XX Sua investigação foi pautada pela larga variedade de fontes primárias sequer reconhecidas como tais pelos historiadores de discursos combatentes ao sistema capitalista e em prol da independência econômica do Brasil No tocante ao social as possibilidades do discurso foram em torno das contradições de classes e das injustiças sociais A postura de Freyre sobre as relações senhor portuguêsescravo negro defendendo uma democracia racial e a existência de relações amenas entre as duas partes suscitou severas críticas contra aquele autor considerado um conservador desprovido de senso social Não obstante outras críticas surgiram tendo um cunho mais pessoal contra o lugar social de Freyre e de forma disfarçada contra sua origem longe dos grandes centros do sudeste brasileiro Uma se destaca por sua virulência e ataque pessoal intitulada O espírito da aldeia Orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de Gilberto Freyre de autoria de Luís Antônio de Castro Santos Novos estudos CEBRAP n27 p 4566 Jul 1990 A resposta ao infeliz trabalho foi dada por FONSECA Edson Neri Gilberto Freyre a província e o Phdeísmo carioca Ciência e trópico v 20 nº 2 p309316 juldez 1992 Tantas críticas não escondem porém a boa recepção do trabalho de Freyre ainda nos anos 30 por nomes como os de Álvaro Lins Roberto Alvim Corrêia Otto Maria Carpeaux M Cavalcanti Proença Osmar Pimentel Eduardo Portella Gilberto de Metia Kujawski José Guilherme Merquior e Leo Gilson Ribeiro Fora do Brasil Freyre foi aclamado por críticos do porte de Lucien Febvre Fernand Braudel Roger Bastide André Rétif Jean Pouilion Roland Barthes Jean Duvignaud Frank Tannenbaum Asa Briggs Julián Martas e David MourãoFerreira e sua CGS publicada em vários países o que tornou um dos autores brasileiros mais lidos no exterior 197 então antecipandose no uso das mesmas às propostas dos Annales e aos métodos da história cultural ou da micro história370 Em Freyre encontrase o português no contexto de sua própria formação nacional assim como o português colonizador que para o autor aos poucos se tornou em lusobrasileiro Suas fontes falaram do português dos séculos XV e XVI e não do português moderno já manchado de podre segundo palavras do historiador Para ele somente o levantamento e análise do perfil daquele permitiria auferir uma idéia equilibrada e exata do colonizador do Brasil A lusitanidade em sua narrativa foi elemento essencial do Brasil em gestação que chegou ao século XX dela impregnado seja pela repetição seja pela adequação de miríades de detalhes utilizadas pelo historiador para construir o português Tais expressões da cultura portuguesa transplantadas para a colônia segundo aquele autor não se tornaram hegemônicas mesclandose com outras formando uma cultura nova exclusiva singular Apesar de publicado no contexto de um projeto dito revolucionário não é possível afirmar da existência de qualquer vínculo entre o trabalho seminal de Freyre com os interesses governamentais do período CGS é inegável desdobramento da tese de mestrado produzida por Freyre quando de sua experiência universitária nos Estados Unidos sendo sua perspectiva teóricometodológica proveniente do academicismo norteamericano arquitetadas a partir do pensamento de Franz Boas A entrada de diversos pensadores europeus nos quadros acadêmicos do Brasil nos anos trinta em pouco ou quase nada contribuiu na feitura da obra apesar de haver influenciado em muito sua crítica371 370 Freyre fez uso da história oral de testamentos inventários cartas livros de receita romances canções folclóricas relatos de viajantes e a iconografia do período Consoante Burke e Palhares Burke Freire se ressentia da relativa inexistência de diários e agendas pessoais como vestígios da vida colonial brasileira sugerindo que num país católico não foi o diário mas o confessionário que absorveu os segredos pessoais e de família In PALLARESBURKE Maria Lúcia BURKE Peter Repensando os trópicos um retrato intelectual de Gilberto Freyre São Paulo UNESP 2009 p 128 371 SILVA identificou algumas particularidades existentes no trabalho de Freyre que podem ser lidas na ótica de Michel Foucalt Não obstante fazse necessário destacar a datação da obra seminal de Freyre lançada vinte anos antes do lançamento do primeiro livro do filósofo e cuja obra Microfísica do poder de 1979 serviu de parâmetro para a comparação realizada por SILVA Fábio Lopes da Freyre Foucalt Casa grande Senzala como microfísica do poder Revista de história e estudos culturais v 3 nº 3 Jul Set 2006 entrada do filósofo francês no quadro de acadêmicos da USP que ocorreu apenas em 1975 198 61 Uma mentalidade plástica O perfil português traçado por Gilberto Freyre inicialmente teve como base o delineamento histórico da formação nacional de Portugal da qual o autor buscou dar maior visibilidade a alguns aspectos de forma a acentuar peculiaridades importantes para o desenvolvimento de sua tese372 Para Freyre a revelação do colonizador exigia o pleno conhecimento da formação portuguesa enquanto nação e do português dos séculos XVI e XVII como agente final desse empreendimento Só assim seria possível a plena acepção do homem que participara da formação brasileira nela imprimindo sua marca e esta remontava a um Portugal antigo e não ao Portugal moderno decaído do contexto das navegações dos empreendimentos das campanhas vitoriosas O homem oriundo desse Portugal moderno já estaria psicologicamente depauperado manchado de podre posto que resultante de uma sociedade plenamente falida envenenada pelas próprias estratégias de exploração desmedida de suas colônias asfixiada pela imobilidade que escolheu como destino373 Assim o português ao qual se referiu Freyre em sua obra primeira é o homem dos séculos XV e XVI aquele que se tornou o colonizador por excelência Compreendêlo significaria capacitarse à compreensão do Brasil extensão da população ibérica Esse tipo seicentista para nosso autor fora marcado pela ambiguidade sendo seu caráter de difícil definição em face de sua própria formação Sua postura como homem de um século de descobertas e alargamento do mundo não permitia que fosse tratado como um espírito simplório de hábitos toscos como atestado por Keyserling para quem o português seria um plebeu um home rude marcado por certa ingenuidade se comparado com o caráter imperialista374 de outros povos europeus Em Freyre o português no contexto de suas singularidades historicamente construídas nomeadamente em relação aos seus 372 Em sua narrativa percebese com clareza ter o autor feito uso de algumas representações entre os quais as de Keyserling e de Haldemann para elaborar uma contraargumentação convincente na construção de um perfil português KEYSERLING Conde Herman de Portugal Descobrimento nº 2 Lisboa 1931 HANDELMANN Hendrich História do Brasil São Paulo Melhoramentos 1978 373 A este português Freyre referenciou em Sobrados Mocambos decadência da sociedade patriarcal quando abordou a chegada da família real ao Brasil e o processo transformador originado pelo fato deslocando o eixo da sociedade colonial do rural para o urbano do aristocrata do engenho para o burguês da cidade 374 Em Freyre o termo referencia a tendência colonizadora dominadora imperativa de alguns países europeus tal qual Inglaterra e Espanha que não existiria nos portugueses em decorrência da maleabilidade de seu caráter que o tornava um conciliador por excelência sem arroubos autoritários 199 aspectos psíquicos não ofereceria possibilidades de comparações com outros povos tal quais ingleses e espanhóis já engolfados na sanha imperialista que dominou a Europa seicentista O autor em foco defendeu que a formação de Portugal não possibilitara que ali o sistema feudal se desenvolvesse em sua plenitude e como consequência não se consolidara em seu meio uma aristocracia nos moldes como adviera em outros lugares 375 A nobreza portuguesa seria formada em grande parte por eclesiásticos que dominaram grandes extensões de terra desde o fim das Cruzadas constituindose como cerne da estrutura social do país em formação Desse modo o sistema de senhores e vassalos fora em Portugal dominado por clérigos cujo poder se robusteceu pelo prestígio político e militar num primeiro momento aprofundandose numa ordem moral e jurídica lastreada pelo direito canônico que dominou aquela sociedade Em decorrência desse desenvolvimento especial Portugal foi mostrado por Freyre como uma sociedade caracterizada pela mobilidade social desde sua formação haja vista a aliança de casamentos entre a fraca nobreza civil mais interessada na própria sobrevivência que na manutenção da pureza do sangue A união de nobres com membros da classe média impregnada de sangue mouro e hebreu favoreceu a precoce ascendência das classes marítimas e comerciais na economia e na política portuguesa Em decorrência dessa mobilidade extremada não haveria em Portugal grandes distinções entre os patronímicos familiares que permitissem a identificação de classe pois o mais pobre lavrador poderia ostentar o mesmo nome de família do mais alto escalão social Para Freyre o português se aburguesara facilmente mas tal estado não o fizera um portador de um cariz burguês com todas as suas especificidades tal qual reconhecidas nos Oitocentos Para nosso autor tal aburguesamento se deu pela opção política dos reis em se libertar das pressões da aristocracia num quadro de divergência entre os interesses rurais e marítimos A inclinação pelos projetos da burguesia mercantil e pelos centros urbanos mais que pelas demandas rurais foi uma realidade que tornou Portugal uma nação mais 375 Para Freyre a Reconquista embora seguida de concessão de largos trechos de terra aos grandes guerreiros em sua maioria pertencente às ordens eclesiásticas não acentuou traços e característicos feudais e as terras concedidas sempre se encravavam com outras da coroa ou do rei cultivadas por foreiros ou rendeiros Nessa organização social figurava o solar a mansão senhorial avó da casa grande embora as terras ao seu redor não se destacassem como de grande propriedade embora subdivididas em pequenas parcelas Tal formação se distingue no contexto feudal da Europa medieval por somar os proveitos da pequena propriedade com as vantagens do latifúndio o que resultou num saudável economia nos primórdios da nação portuguesa In Casa Grande Senzala pag 2312 200 urbana que rural mais voltada para fora que para si mesma ainda numa época que o restante da Europa tinha sua vida centrada nos campos376 Por conseguinte não se poderia nunca encontrar nos lusos o mesmo cariz de ingleses e espanhóis cuja aristocracia feudal se assumira como imperialista no contexto colonizador tal qual pretendera o conde alemão O português era um semiburguês pela realidade dos casamentos exogâmicos que marcava sua sociedade assim como era um aristocrático no gosto pelo formalismo e pelas mesuras sociais Haveria assim na alma portuguesa uma distinção especial que o tornava um povo à parte da própria Europa dominadora era antes de tudo um contemporizador acostumado que fora ao longo dos séculos a bem conviver com povos os mais distintos possíveis fosse às beiradas de seu território ou em portos distantes O português navegador aprendera com a própria experiência que viveria bem se desenvolvesse a arte da transigência da moderação Sua experiência mundana configurou sua mentalidade como extremamente plástica amoldável às situações existenciais sem que sofresse maiores danos numa saudável expressão cosmopolita que o marcaria como povo devassador do mundo moderno exemplar de um ecletismo fisicopsíquico exclusivamente luso377 Como tal desenvolveu extraordinária força de diferenciação e autonomia diante dos demais povos do continente capacitandose à convivência e à confraternização com povos de origens diversas por ser despido de preconceitos e de ideais absolutos Tal cariz nos leva a perceber que o português freyreano ganhou o mesmo tônus do luso renascentista de Paulo Prado livre liberto de amarras desvinculado dos preconceitos europeus e das amarras do medievalismo aberto a dominar o mundo o que lhe rendeu fama de inepto e contraditoriamente sagaz 376 FREYRE se reporta à discussão em seu livro Interpretação do Brasil Rio de Janeiro José Olímpio 1957 à p 59 377 REIS admoesta que a visão positiva de Freyre a respeito da eclética mentalidade portuguesa que o capacitou como o mais habilidoso dos colonizadores europeus poderia ser tomada como essencialmente negativa sob uma abordagem econômica ou política capaz de justificar a falência dessa empresa em poucos séculos após sua origem Essa falência resultaria pois do caráter bambo flexível frouxo plástico fortemente sexuado imprevidente fatalista que permitiu ao português reunir em si muitos contrastes passando de um estado psicológico a outro rápida e subitamente Místicos políticos aventureiros atolados numa indolência pouco européia e bem oriental REIS José Carlos Op cit p 75 Cabe lembrar ser a análise freyreana centrada nos aspectos culturais da formação das sociedades portuguesa e brasileira resultando em perspectivas dissonantes de outros estudos de viés politicoeconômico Daí ser a plasticidade arguida por Freyre uma qualidade e não um defeito 201 A astúcia foi para Freyre uma arte e uma estratégia de sobrevivência do português desenvolvida no contato com outros povos Foi através da cordialidade e da simpatia que o português tornouse capaz de se projetar pela imaginação na posição de outro homem e de experimentar sentimentos e estado de espírito alheios378 Em razão dessa habilidade Freyre representou o português quinhentista como capacitado mais que qualquer outro povo europeu a desenvolver uma civilização moderna na América sem entrechoques nem conflitos profundos Sua experiência histórica com outros povos o moldara para tanto bem convivendo com mouros e judeus dos quais recepcionaram muitos dos costumes que no ambiente colonial foram tomados como tipicamente lusitanos379 Fazse interessante notar que esse caráter plástico destacado por Freyre como tipicamente português parece dissolver todas as diferenças culturais desses povos cujo contato se deu sem embates nem entrechoques salvo em alguns casos específicos Com tal escopo Freyre elencou uma série de peculiaridades da cultura moral e material portuguesa por ele entendidas como herdadas do contacto com o estrangeiro e que impondose em zonas onde a presença alienígena era mais freqüente findou por configurar distintos tipos portugueses Assim o português do norte o minhoto foi mostrado por Freyre como um português diferente com valores distintos dos habitantes do sul português Ali a presença moura deixou rastros na cultura local que se destacou pela higiene pessoal pelo asseio doméstico entre a miríade de detalhes que Freyre enumerou como exemplos dessa assimilação cultural Essa divisão também foi tratada pelo autor como existente na própria origem de Portugal e na formação étnica de seu povo o que nos leva a entender que em Freyre não há um português mas tipos vários apesar do autor não acentuar tais distinções como de maior relevância em sua construção 380 378 Cf FREYRE Gilberto O mundo que o português criou Rio de Janeiro José Olímpio 1940 379 Dos mouros Freyre destacou a azulejaria a arquitetura o gosto pelas comidas oleosas a prática de certo processos culinários a doçaria com ovos a higiene pessoal o asseio doméstico a facilidade do contato com mulher exótica a poligamia o sistema de ensino a família patriarcal entre tantos outros detalhes Dos romanos estipulou o paganismo típico do catolicismo português o pendor guerreiro os hábitos predatórios a latinização da fala a técnica imperial Dos judeus a prática mercantil a necessidade de entesouramento o desinteresse pelo trabalho braçal a preguiça o cunho escravocrata 380 Dentre os autores aqui analisados somente Capistrano de Abreu se assemelhou a Freyre nesse pormenor visto que o português abrelino apresentou certa dualidade desde sua origem em razão de sua propositura existencial aventureiros ou agentes da coroa Em relação à sua atuação na própria colônia Abreu mais uma vez os dividiu entre filhos do Reino ou naturais da terra Mesmo que os últimos revelem o português em relação à sua naturalização ou seu lugar de nascimento os primeiros levamnos a entender existir em Portugal notável distorção da própria mentalidade portuguesa uma mais liberta e desgarrada das vontades da 202 O comprovado contato do português com estrangeiros de toda ordem e a assimilação de traços dessas culturas serviu para que Freyre argumentasse contra a pretensa xenofobia que marcara os lusos na escrita de Handelmann381 utilizando aspectos do direito português que poderiam comprovar a liberalidade com que o luso recebera estrangeiros em seu país sem que o fato ocasionasse maiores desgastes no tecido social A esse corpo jurídico Freyre reputou com um dos mais liberais de toda a Europa por não sufocar nem abafar as minorias étnicas dentro do reino nem suas tradições e costumes e mais além concedendolhes o direito de se regerem por um corpo jurídico próprio O autor em sua convicção não fez referência aos embates e sangrentos conflitos ocasionados entre portugueses e essas etnias em momentos específicos da história de Portugal com o foco em confirmar suas hipóteses bem ao contrário se aprofundou em mostrar os intensos contactos com outros povos Para Freyre tais conflitos tiveram tônus religiosos e até mesmo políticos jamais étnicos desconfigurando desse modo a xenofobia portuguesa aventada pelo autor a quem Freyre se contrapôs Em Freyre encontramos um português marcado por certa ortodoxia católica que o fizera olhar o mundo a partir do prisma religioso homogeneizado em sua cultura desde a experiência nas Cruzadas Essa religiosidade extremada deu contornos para que sua aceitação do mundo e das pessoas passasse pelo crivo da fé ao que o autor chamou de profilaxia religiosa Para o português quinhentista não seria a cor da pele nem as diferenças culturais que o faria recusar maior contacto com indivíduos pois consoante o próprio Freyre a origem étnica desse português fora marcada por povos tão distintos entre si que era inegável sua mestiçagem um mestiço que gerava crianças louras e corde rosa como um Menino Jesus flamengo para tornaremse depois de grandes morenas e de cabelo escuro382 Esse dado para Freyre sinalizaria a inexistência de questões étnicas no contexto da sociedade portuguesa acostumada que fora com o convívio com estrangeiros coroa outras mais obediente mais submissa e mais interesseira o que vem clarear a questão da própria homogeneidade das ações políticas daquela população 381 O autor analisou como discriminatória e xenófoba a atuação portuguesa ao não aceitar colonos de ou tras partes da Europa na colônia americana baseado na experiência para com os mouros e judeus ainda na Península Ibérica HANDELMANN Hendrich Op cit p 81 A questão será discutida no decorrer deste texto ao se abordar a colonização portuguesa na América 382 Evidenciase na narrativa freyreana o imperativo de mostrar o português como um híbrido talvez no intuito de mais aproximálo de seus descendentes americanos Mesmo que a análise freyreana não tenha como pressuposto a discussão de raça é inegável seu sentido de valorização da mestiçagem como um adjetivo positivo aplicado à condição humana discurso que se contrapôs a certos grupos de intelectuais brasileiros que não tinham a mesma convicção Op cit p 203 203 e reconhecendose como resultado do encontro de povos Esse encontro por sua vez refletirase na religiosidade portuguesa cujo catolicismo fora marcado profundamente por outras crenças no qual o autor apontou inúmeros elementos comprovativos que tirariam desse catolicismo o teor ortodoxo do mesmo O que avultava em Portugal e na personalidade de seus habitantes segundo Freyre era certa mística católica que dava sentido ao mundo e a sua maneira de entendêlo justificando sua ação política Tal se comprovava na análise do entrechoque havido entre portugueses e mouros nas lutas da Reconquista mostrado em CGS como um embate de fé desvinculado de questões raciais e até mesmo como um embate político expressão da autonomia característica do português e da nascente idéia de nacionalismo Da mesma forma ocorrera em relação aos judeus que por muito tempo conviveram pacificamente no reino sem prejuízo de suas atividades até que demonstraram segundo o autor a falta de delicadeza de sentimentos em questões de dinheiro para com os cristãos Por tal viés os conflitos entre portugueses e judeus se transformavam em conflitos de cristãos contra hereges com visões diferenciadas acerca da usura do entesouramento bem praticado pelos judeus e denunciados como pecaminosos pelo clero em determinado momento da conjuntura nacional A questão em si trazida à baila por Freyre denotava a pureza de fé e não pureza de raça que impôs aos judeus portugueses serem conhecidos em Portugal e suas colônias como cristãos novos e não como judeus como o eram no resto do mundo desmemoriandolhes de sua própria condição religiosa mas não de sua condição social O xenofobismo português em Freyre não existiria ante a capacidade portuguesa de estar no mundo de nele se colocar sem freios nem peias salvo aquelas determinadas pela ortodoxia católica as quais inúmeras vezes esqueceu pela sua própria condição de povo cosmopolita que se amoldava às mais diferentes culturas sem imposições imperialistas e que findou por ser entendido como um povo plebeu cujos contactos com outras gentes eram feitos sem maiores formalidades nem separações Essa postura solta sem amarras nem vontades foi revelada pelo intelectual como bastante proveitosa para a cultura portuguesa corroborando o caráter cosmopolita e a maleabilidade psicológica como uma marca que não se podia desdenhar para a cabal compreensão do povo português 204 Tal maleabilidade por sua vez não foi representada por Freyre apenas como uma marca do contato do português com o estrangeiro mas das próprias condições sociais existentes naquela sociedade que findaram por impor certos costumes na população quase por força de lei Freyre atentou para a constante crise de gente enfrentada por Portugal que atingiu seu ápice quando da colonização agrária implantada no ambiente colonial Essa escassez populacional ocasionada pelas condições disgênicas pelas dificuldades do meio físico e pela instabilidade econômica demandava uma solução cabal sendo mostradas pelo autor como um fato que reverberou na mentalidade portuguesa em definitivo e que acresceu o valor dos lusos como agentes da colonização Como um povo numericamente ínfimo tornarase capaz de dominar tão grande espaço submetendo os naturais da terra e impondolhe uma presença ádvena para além de si próprio Para Freyre os lusos foram capazes de fundir os interesses de sua coroa com os da população adequando certos mecanismos sociais com esse fito É o caso do catolicismo português que abriu mãos da própria ortodoxia religiosa em prol de uniões que resultassem no crescimento da população portuguesa O consentimento eclesiástico do casamento secreto consumado com o coito posteriormente reconhecido pelas Ordenações Manuelina e Filipina denunciava o quanto os interesses pela procriação se tornaram questão de Estado abafando não só os preconceitos morais como os escrúpulos católicos o que deu substratos para que Freyre destacasse os aspectos fálicos do cristianismo português e de como a questão se refletiu na cultura portuguesa regida em todas suas esferas por uma simbologia francamente obscena Outro aspecto da obsessão que se tornou em Portugal o problema do amor físico surpreendese no fato de não haver talvez nenhum outro país onde a anedota fescenina ou obscena tenha maiores apreciadores Nem em nenhuma outra língua os palavrões ostentem tamanha opulência Os palavrões e os gestos O erotismo grosso plebeu domina em Portugal todas as classes considerandose efemeninado o homem que não faça uso dos gestos e dos palavrões obscenos383 Sobre a questão Freyre deu vazão à prática etnográfica para elencar os variados aspectos da cultura portuguesa que se transformaram desde então Para tanto destacou desde os rosários com símbolos fálicos vendidos às portas das igrejas portuguesas aos doces conventuais identificados por nomes afrodisíacos do culto aos santos com danças 383 Ibidem p 2501 205 orgiásticas à utilização das igrejas e conventos como recintos de acasalamento Para o autor esse rude naturalismo emergiu como um diferencial do português em contraste com os excessos de reticências característicos dos anglosaxões Não obstante Freyre considerou que esse aspecto renovador nascido no século XV não poderia ser tomado como dissolução moral da sociedade portuguesa Bem ao contrário essa obsessão pelo amor físico seria reveladora da capacidade de adaptação portuguesa a plasticidade que se destacava em sua personalidade e que ao invés de fazêlo sucumbir entre os seus abrialhe as portas do mundo para confraternizarse com outros povos para conhecer novas gentes e entrecruzar dandose permanência e visibilidade Essa plasticidade era de natureza tal que facilmente o plano original se realizou com a ampla formação de uma população mestiça dominada por laços de sangue e pelo poder político integrada ao ambiente colonial para o povoar defender e tornálo produtivo Embora seja persuasória em alguns trechos a narrativa freyreana é marcada por detalhes e sutilezas tais que exigem plena atenção do seu leitor Ao se dispor a analisar o português quinhentista Freyre sempre se voltou à formação da nação portuguesa como espaço de elucidação da mentalidade de seu povo representado a certa altura como uma população famélica extenuada pela alimentação pobre carente de recursos de toda ordem Em sua exposição sobre a alimentação portuguesa alertou seu leitor para que não se deixasse ludibriar pelas muitas crônicas de banquetes as tradições de comezainas as leis contra a gula384 capazes de convencer tratarse aquela população de uma horda de superalimentados385 Nesse contexto no qual mostrou a distinção da alimentação ordinária consumida no cotidiano popular daquela preparada nas cozinhas gigantes dos mosteiros e conventos ou para banquetes festivos Freyre desvendou um Portugal dividido em si não pela capacidade nutricional de estamentos diferentes em um mesmo território mas pelas ações de um Estado e de uma população em mutação ao afastarse da tradição agrária para 384 Ibidem p 236 385 O fato é que Freyre insistia em não identificar a mesma realidade no Nordeste brasileiro região agrária com a maior parte de sua população vinculada ao campo economicamente explorada pelos latifundiários e que beirava a má alimentação minorada pela oferta e variedade de frutos da terra e pela extensão dos canaviais cujas canas serviam para aplacar a fome A fartura expressa na cultura regional e bem típica das famílias aristocráticas que tinha piano de cauda e livros em casa Que recebia bem que apreciava a boa cozinhao doce fino o quitute delicado o bolo bem feito embora incomum para a classe trabalhadora era peculiar aos dias de festas como a de São João Natal ou os dias de eleição quando se abatiam animais e o cardápio era enriquecido em qualidade e quantidade Sobre a questão ver Freyre Gilberto Nordeste Rio de Janeiro Record 1986 206 ingressar na aventura ultramarina numa estratégia que para Freyre só ratificara a plena capacidade de adaptação que tipificava o português Na narrativa freyreana encontramos esse dois Portugais numa sanha íntima de crescimento favorecida pela própria mentalidade cosmopolita que o fizera desvendar o mundo No Portugal agrário Freyre desvendou um mundo baseado em fazendas verdejantes a produzir trigo e víveres que davam saúde econômica ao reino graças à ação criadora das grandes corporações religiosas que a tudo dominavam e que dava pão aos ingleses desde o reinado do senhor Dom Diniz até o do senhor D Fernando 386 A influência moura e a atuação eclesiástica foram decisivas na visão de Freyre para a pujante formação econômica de Portugal antes do século XV embora esterilizada pela inércia dos senhores de terras mais interessados na vida urbana Em contraponto o autor enfatizou o panorama nutricional português após a Era dos Descobrimentos387 a demonstrar que o descaso com a vida rural por parte de sua população foi o substrato necessário para alavancar a vida rural brasileira O paradoxo por ele levantado findou por revelar também a ação criadora e nada parasitária das corporações religiosas além da profunda influência dos conventos no progresso interno de Portugal influência que sob os ventos dos descobrimentos e da colonização perdeuse nos interiores dos engenhos e na paliçada das Missões 62 Casa grande à portuguesa A análise histórica realizada por Freyre justificou sua observação acerca da origem dos primeiros colonos gente famélica a fugir das amarras de um espaço assinalado pela severa fiscalização dos jesuítas e da Inquisição mas com notável disposição mental para enfrentar outras realidades amoldandose e se possível transformandoas À desídia de um Portugal cindido entre o agrarismo e o mercantilismo entre um Portugal semi feudal e um que se queria aburguesar restou à sua gente a busca de outras terras e de novas experiências uma 386 Ibidem p 233 387 Freyre se apropriou dos escritos de historiadores cronistas e viajantes para revelar o quadro alimentar típico de Portugal até o século XVIII Em seus escritos ele resgata dados sobre as refeições realizadas por Beckford em suas viagens por Portugal In BECKFORD William Excursion to the monasteries of Batalha and Alcobaça Londres Se 1835 As Cartas de Clenardo ao retratar da vida lusitana em seu tempo são reputadas por Freyre como fieis testemunhas da sociedade portuguesa Estrabão e suas informações sobre a deficiência alimentar da Península anterior à invasão romana também foi tomado de empréstimos da leitura de SAMPAIO Alberto Estudos históricos e econômicos Lisboa se 1924 207 extensão portuguesa onde em pouco tempo o tônus agrário estaria bem próximo da atividade comercial e os resquícios feudais não entrariam em choque com a flama burguesa A sanha aventureira do português freyreano destoou assim da de Paulo Prado que via o espírito livre como a marca renascentista da sociedade portuguesa Em Freyre foi a necessidade a pobreza e a fome que impulsionaram a adesão dos portugueses ao projeto colonial e não apenas certa liberdade de espírito fomentada pelos ares renascentistas que em bem pouco dominara as gentes dos campos portugueses Em sua narrativa sobre a formação social do Brasil antes mesmo de abordar como o solar português se tornara casagrande Freyre desvendou os primeiros anos após a chegada do luso e do seu contato com as gentes da terra Nesse contexto o autor deu rosto a esses primeiros indivíduos que lançaram com sua intrepidez os fundamentos de uma nova sociedade ante a possibilidade de uma vida livre no meio de muita mulher nua garanhões desbragados388 que agiam pelo gosto da aventura ou pela afoiteza da adolescência apresentando um português que optava pela liberdade colonial como nova forma de vida Sobre o contexto Freyre pouco referenciou a mudança de rota tomada por um Portugal que já não tinha os mercados da Ásia como fonte segura de enriquecimento fixando sua narrativa na transição operada nos limites de Portugal ao optar em deixar de ser agrícola para se tornar explorador em definitivo Tal opção por sua vez teria sido quase uma imposição dos reis portugueses profundamente influenciados pelos interesses dos judeus389 A abordagem dos primeiros tempos após o descobrimento e contacto de portugueses com os nativos tornouse tema recorrente na historiografia nacional em face da construção da própria brasilidade embora tenha se revelado sempre como danosa aos brios nacionais Os relatos sobre os primitivos colonos como parte da escória da sociedade portuguesa expulsos ou fugidos daspelas normas da civilização por não serem capazes de 388 Ibidem p 19 389 Por suas preposições em CGS a demonstrar terem sido os judeus os responsáveis pelo parasitismo na personalidade do português ensinandolhe certo horror ao trabalho manual a prática para viver de escravos incutindolhe a necessidade de abandono do cultivo da terra e o investimento em comércio e nas aventuras marítimas Freyre foi acusado de ser antissemita A respeito ver o texto de SOUZA Jessé A atualidade de Gilberto Freyre In KOSMINSKY Ethel Volfzon LÈPINE Claude PEIXOTO Fernanda Arêas Org Gilberto Freyre em quatro tempos São Paulo EDUSC 2003 BONDER Nilton SORJ Bernardo Judaísmo para o século XXI o rabino e o sociólogo Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 SOBREIRA Caesar Nordeste Semita ensaio sobre um certo Nordeste que em Gilberto Freire também é semita São Paulo Global 2010 SENNA Alecrides de Reflexões sobre antisemitismo O elemento português em CasaGrande e Senzala de Gilberto Freyre Mneme Revista De Humanidadesv 27 nº 11 Jan 2010 208 convivência sob padrões razoáveis de sociabilidade fizeram dos degredados quase uma vergonha nacional que a elite brasileira se esforçou para esconder desconstruir ou relativizar390 Freyre em sua abordagem inovou o entendimento acerca dos primeiros povoadores reconstruindo suas trajetórias pelo entendimento da dúbia sociedade portuguesa marcada pela ortodoxia católica em contradição com a prática auferida na experiência pelos diversos portos e cidades Em Freyre esse pária social não tinha os mesmos traços encontrados em Abreu ou em Prado não eram criminosos tarados estupradores apenas homens expatriados por irregularidades ou excessos por abraçar e beijar por usar de feitiçaria para querer bem ou mal por bestialidade molície alcovitice391 numa demonstração plena de que o degredado português antes de ser de má índole era uma vítima de uma sociedade repressora de moral estreita que confundia pecado com crime 392 Ao mesmo tempo em que essa sociedade reprimia a sensualidade incitavaa restando aos expatriados por crimes dessa natureza o ambiente colonial onde o pecado inexistia e onde a atividade genésica aproveitara aos interesses políticos e econômicos de Portugal no Brasil Apesar de mostrar os benefícios desse contato nos dois lados do Atlântico Freyre destacou que a recepção da aluvião de indivíduos foi rasa e de durabilidade efêmera não deixando rastros capazes de conferirlhe o título de sistema colonizador devendo os primeiros cinqüenta anos após a descoberta ser considerados como uma préhistória nacional393 O interesse do autor tinha como ponto de partida o ano de 1532 quando teve início a 390 Cf REIS José Carlos Op cit p 93 391 Ibidem p 21 392 Fazse interessante destacar o quanto a presunção de serem os primeiros pais da população brasileira representantes da escória portuguesa reverberou negativamente na identidade nacional durante muitos anos A coerência de Freyre ao apresentar esses portugueses como vítimas de seu próprio tempo coagidos pela moral dúbia que regia a sociedade portuguesa quinhentista renovou as representações feitas a propósito dos elementos iniciais dessa formação que por muito tempo foi tida como deformada e deformante Sobre a questão dos degredados como os primeiros povoadores ver ALCOFORADO Carlos Silva Nossos primeiros pais As representações dos degredados no livro didático Cuiabá Argonautas 1979 COSTA Emília Viotti da Os primeiros povoadores do Brasil Revista de História ano VII vol XIII julset 1956 Um estudo conciso sobre as principais linhas de banimento para o Brasil é o de PIERONI Geraldo Vadios e ciganos heréticos e bruxas Os degredados no Brasilcolônia Rio de Janeiro BertrandBrasil 2006 393 O termo é originário de Azevedo Amaral e utilizado por Freyre ao concordar com aquele autor quanto à superficialidade do povoamento perpetrado durante o período à revelia de qualquer supervisão política e sem cariz civilizador Se evidenciou por tal modo assim a natureza do pensamento freyreano bem adiante dos demais historiadores de até então preocupados com a discussão biológica da raça e dos reflexos ocasionados pelo intercruzamento de um povoador sem estirpe com as mulheres da terra A propósito ver AMARAL Azevedo Ensaios Brasileiros Rio de Janeiro se 1930 209 verdadeira formação social brasileira com o estabelecimento da família rural ou semirural por unidade quer através de gente casada vinda do reino quer das famílias constituídas pela união dos colonos com mulheres caboclas com moças órfãs ou sem esteio mandadas vir de Portugal pelos padres casamenteiros Se o português como indivíduo interessara a Freyre ao construir as criaturas da formação brasileira394 sua narrativa sobre esta formação teve como esteio a família Ao contrário de muitos intelectuais de sua época aquele autor deixou de enxergar o Brasil a partir de sua composição racial utilizando a família como a célula da formação social395 que teve na casa grande e no engenho o seu lugar constituindose como um modelo em todas as regiões onde foram implantados os grandes sistemas agrários de produção engenhos de açúcar plantações de café ou fazendas de criação No contexto colonial a família foi o esteio necessário para que o Brasil não se tornasse apenas uma terra de aventureiros firmandose como lugar de vivência como espaço formador de um núcleo onde o casal seus filhos e respectivos cônjuges acompanhados de sua prole junto com outros parentes agregados e escravos conviviam Em Freyre descobrese o português não mais como o aventureiro marítimo nem o plebeu agrário 396 pois sua narrativa erigiu o português como senhor de engenho patriarca agente de uma colonização particular e não estatal Perdida nos grotões coloniais essa família patriarcal foi além de um núcleo econômico um núcleo de poder posto seus membros se subordinarem ao patriarca assim como outros núcleos que atuavam em conjunto com o mesmo solidificandoo A grande propriedade na qual o engenho era o núcleo produtivo teria sido um mundo à parte uma célula que 394 O termo é de BASTOS Elide Rugai As criaturas de Prometeu Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira São Paulo Global 2006 395 Segundo FONSECA Freyre foi o primeiro intelectual brasileiro a deslocar o eixo da discussão do tema das raças para eleger a família como elemento primordial sobre a identidade nacional e sua formação FONSECA Ana Maria Medeiros da Da raça à nação um debate sobre a construção da nação Dissertação de mestrado em História UNICAMP 1992 p 56 Ao interpretar a formação nacional e não apenas sua composição Jean Pouillon defendeu o caráter histórico do trabalho de Freyre ao buscar metodologicamente pela estruturação de sua documentação a constituição de uma unidade social ainda não beneficiada de elaboração teórica Cf LEENHARDT Jacques A consagração na França de um pensamento heterodoxo In DIMAS Antônio Et alli Reinventar o Brasil Gilberto Freyre entre história e ficção Porto Alegre Editora da UFRGS 2006 396 SCOTT ao tratar das representações construídas durante o Estado Novo e mesmo após a Revolução dos Cravos assevera ser tripla a idéia de portucalidade capaz de construir e manter os vínculos com a terra natal o português camponês o português explorador e o português emigrante As duas primeiras bem detalhadas na obra de Freyre no entanto são dissolvidas por uma terceira identidade a do português construtor cujos esforços resultaram na criação de um novo lugar A respeito da identidade portuguesa ver SCOTT Ana Volpi Os portugueses São Paulo Contexto 2010 p 26 210 compunha o tecido colonial dentro de um espectro civilizador que se caracterizava por sua autonomia onde se produzia a valiosa especiaria que sustentava o comércio triangular e que ao mesmo tempo se autossustentava O engenho em si seria quase um pequeno pedaço de Portugal na América onde se manifestava a energia indígena ou negra na figura da mulher parideira cujo ventre era auxiliar direto da empreitada produtiva397 onde se fazia presente a força do braço escravos a arar os campos plantar e colher transportar e fazer girar a moenda a queimar a fornalha a mexer nos imensos tachos de melado fervente onde coexistia a obediência mesclada de mandonismo dos capitães de mato dos feitores dos moradores cuja presença se dissolvia na habilidade de dezenas de artífices Todos submetidos ao poder de um patriarca quase nos moldes de um senhor feudal cingido por vassalos criador e criatura daquele espaço onde sua vontade era lei e cujo modelo familiar embora não fosse único tornouse um padrão dominante398 destinado à manutenção da propriedade e dos seus interesses políticos Na solidão dos matos e diante do desafio do adestramento da terra inculta para recepção da monocultura açucareira Freyre mostrou um português a quem coube organizar um sistema capaz de proteger a si e aos seus de todas as dificuldades e perigos oferecidos pelo ambiente colonial Na organização desse sistema o português foi revelado como colonizador por excelência capaz de sobrepujar as adversidades para construir um lugar novo de onde tiraria o próprio sustento com poder quase absoluto em seus limites territoriais em decorrência da distância do Estado português e de muitas de suas instituições399 A esse homem Freyre revelou como um transformado que acostumado ao 397 Joaquim Nabuco já constatara ser a parte mais produtiva da propriedade escrava o ventre gerador O Abolicionismo Londres se 1883 p 189 398 Cronistas viajantes e agentes coloniais revelaram modelos alternativos de família no Brasil obscurecidos pela ênfase dada àquela forma de organização familiar A propósito ver ALMEIDA Maria Suely Kofes de Et alli Colcha de retalhos estudos sobre a família no Brasil São Paulo Brasiliense 1982 Para as autoras a família patriarcal colonial em muito se distanciou da família tradicional moderna típico produto do urbano e que tem na satisfação dos impulsos afetivos e sexuais sua principal finalidade Este modelo familiar entretanto consideradas suas especificidades já existia no ambiente colonial rural e urbano em face de sua diversidade socioeconômica 399 A afirmativa do autor parecenos contraditória posto que ao longo de seu texto o mesmo informar que muitas das instituições da metrópole fomentavam esse poder no âmbito local É o caso dos párocos que rezavam missa nas capelas dos engenhos em alguns casos preferindo ali habitar para ficar sob as benesses da casa O reconhecimento da autoridade patriarcal pelas demais autoridades coloniais é revelado pelo autor ao relatar que qualquer criminoso sendo conduzido pela justiça poderia pedir asilo ao senhor de engenho de forma verbal ou agarrandose ao mourão do engenho sendo sua súplica atendida nenhuma autoridade poderia se interpor à proteção dada Na analogia entre as casas de coito portuguesas e o engenho Freyre 211 saque e a mercancia estipulou soluções outras para exploração das novas terras 400 a oferecer condições bastante distintas das demais até então visitadas Previsão utilidade prudência e disciplina foram os adjetivos usados por aquele autor ao longo de CGS para valorizar o português na criação de seu espaço na colônia Seu castelo a casa grande ambiente de gênese da sociedade brasileira nada mais foi que uma criação portuguesa fomentada pela experiência lusa em diferentes lugares do mundo solidificada nos distintos detalhes de sua constituição e arvorada como um símbolo da presença portuguesa na América Construção tipicamente local arrematada por alguns detalhes pespegados de outros lugares a varanda o gineceu o pátio interno em pouco podia ser comparada ao solar português quinhentista 401 sendo o hibridismo dessa habitação elemento revelador do hibridismo do povo português em sua diversidade étnica em sua heterogeneidade cultural A analogia entre essas duas moradias e o levantamento de suas diferenças permite antever esse português colonizador como um tipo criador cujo caráter adaptável o levava a também amoldar seu mundo ali originando o necessário para seu conforto Ao analisar a originalidade existente no ambiente colonial como resultante da adaptabilidade portuguesa Freyre revelou uma casa grande marcada pelos grandes traços da sociedade portuguesa embora mesclada com variados aspectos Ali no edifício idealizado por portugueses construído por escravos e com arquitetura própria apesar de revelava a presença imponente das instituições portuguesas na colônia embora submissas ao mandonismo característico do patriarcalismo Submissas mas não ausentes 400 É Freyre quem diz ter tido o português colonizador arremedos de Taylorismo ao pensar na organização do trabalho do engenho valorizando o máximo de esforço útil e não simplesmente o máximo de rendimento 401 Segundo LEMOS a casa grande brasileira detinha inúmeros detalhes típicos das construções portuguesas manifestado na aparência em decorrência da utilização de técnicas materiais de construção e de certos estilos mas não poderiam ser comparadas às construções portuguesas nas quais a diversidade da paisagem impunha variada arquitetura vernácula nomeadamente em relação às habitações rurais A inexistência de latifúndios em Portugal também é fato determinante para traçar as devidas distinções pois se ali os minifúndios agrupavamse em volta de aldeias a casa grande foi marcada pelo distanciamento relevante em relação ao urbano e essa distância juntamente com a presença escrava foi decisiva na definição de um desenho que permitisse agrupar todas as necessidades de seus habitantes LEMOS Carlos História da casa brasileira São Paulo Contexto 1989 p 21 Leitura mais apurada sobre o tema outrossim revela a ampla utilização de mão de obra escrava no interior das casas grandes portuguesas como constatado por CUNHA e MONTEIRO ao investigarem os grande solares portugueses In CUNHA Mafalda Soares da MONTEIRO Nuno Gonçalo As grandes casas In MATTOSO José História da vida privada em Portugal A idade Moderna Lisboa Círculo de leitores 2011 p 202 Em variados aspectos é possível traçar uma analogia entre as casas portuguesas e as brasileiras que mais se aproximam que se afastam nomeadamente em relação à composição da família patriarcal que habitava ambas 212 marcada por certo estilo luso Freyre descortinou a vida íntima portuguesa nos trópicos desvendando práticas cotidianas costumes e hábitos que deram origem à cultura brasileira Dessa heterogeneidade resultou a mentalidade eclética portuguesa que se existira no reino na colônia atingira o vigor de sua expressão Ali o luso adaptouse às mais miseráveis condições para satisfazer suas vontades para realizar seus intentos sobrepujando antigos costumes de sua sociedade original com o fito de realização de um projeto Se não havia homens suficientes para trabalhar nas roças e plantações que se prendessem os nativos se os nativos fossem numericamente insuficientes ou de difícil trato que se trouxessem os africanos Da mesma forma se deu em relação à recriação de um núcleo familiar tão necessário para homens perdidos na solidão das matas se não havia católicas e brancas a índia serviria e na falta daquela a negra seria companheira Ali a família por ele constituída era um híbrido da família portuguesa402 que ele tivera no reino com as adaptações necessárias para que se enfrentasse a solidão e a necessidade de companhia de mão de obra de produção de riqueza de consecução e manutenção de poder403 Do ecletismo português rigorosamente defendido por Freyre alguns detalhes de seu texto destacam as contradições existentes no tipo por ele criado compreendido pelo autor como de definição complexa posto que marcada por ambigüidades Uma dessas imprecisões diz respeito à chamada mística religiosa herdada pelos lusos desde os Cruzados e que se tornou um lema na empresa colonizadora Para nosso autor o Brasil colonial foi preponderantemente um espaço de católicos e a fé instrumento sine qua non para a permanência nas novas terras Os embates étnicos que marcaram a formação do Estado português nunca tiveram lugar no tecido social da colônia preservado graças à uniformidade religiosa que permitira a presença de múltiplas nacionalidades mas não a diversidade de crenças404 Por esse modo as guerras coloniais nunca foram racializadas não ocorrendo entre o branco superior contra o índio inferior nem a coisificação do escravo se deu em 402 Freyre referenciou a existência de uma tipologia familiar no Portugal quinhentista que influenciou a formação patriarcal colonial descendente direta da família feudal e da família comunitária ali existente e cujos modelos referendaram a família rural na colônia Ver Casa Grande Senzala p 240 403 FREYRE Gilberto Sociologia introdução ao estudo dos seus princípios Rio de Janeiro José Olympio 1957 404 O autor utilizou a argumentação do critério de pureza de fé para anular a percepção de Handelmann sobre o caráter xenófobo português sobre o qual nos reportamos no subtítulo anterior 213 decorrência de sua pele mas de sua ausência de cristandade Por tal viés fortaleceuse a idéia de que a colonização mais que uma missão civilizatória era uma missão cristã e que os embates coloniais eram sempre de cristãos contra bugres contra ateus hereges e protestantes fundamentando a percepção do nexo político entre os diferentes grupos que formavam a colônia eliminando diferenças aplainando contradições fortalecendo o poder dos senhores de engenho e dandolhes consciência de espécie no dizer do historiador Na criação desse português profundamente religioso Freyre nos mostrou um cotidiano onde se deixava o descanso para cumprimento da obrigação de rezar Tão grande era a devoção portuguesa que se andava de rosário na mão bentos relicários patuás santos pendurados ao pescoço e todo material necessário às devoções de reza Dentro de casa rezavase em vigílias no quarto dos santos especialmente construído com essa finalidade A vida comum seria assim comandada pela ortodoxia católica abençoando os nascimentos e confortando nas mortes resguardando a moagem da cana de quaisquer perigos e protegendo a família de doenças ladrões assassinos e tempestades através de papéis grudados com orações nas janelas e nas portas Ao catolicismo português no entanto Freyre fez questão de mostrálo como diferente posto que profundamente marcado por múltiplas influências sofridas por aquela sociedade resultando em extraordinário lirismo que deu aos seus fieis profunda intimidade com seus santos e àqueles elementos tão humanos capazes de se presentificar nas mais comezinhas situações da vida prática Em sua narrativa inexistiram apóstatas divergentes da doutrina reacionários e adeptos de outras práticas religiosas O português católico era submisso e fiel aos dogmas religiosos na visão do mestre de Apipucos Ao tempo que mostrou o português como um católico convicto Freyre reforçou a profunda inimizade e contendas havidas entre os colonizadores e os padres da Companhia de Jesus que professavam a liberdade dos nativos e a necessidade de sua conversão Em sua narrativa as peças impedidas de serem apresadas resultavam em desastre para o processo colonial e de prejuízos para os colonos obrigados ao dispêndio na aquisição de africanos Com tal argumentação Freyre superpôs um português metódico identificado com o espírito mercantilista e produtivo do processo colonial interessado em ganhos na lucratividade de sua empresa mais que no ganho de almas que o autor tentou a todo custo definir Ao fazêlo destacava mesmo sem o perceber o dito aburguesamento que vislumbrara na formação da sociedade portuguesa mas que não enxergara nos 214 colonizadores em seu mister A repulsa desses ao interdito jesuítico de escravidão indígena porém não pode ser tomada como mera transgressão de preceitos religiosos porém como um mecanismo de realização da própria colônia em si A proximidade existente entre padres e senhores no contexto da sociedade patriarcal na qual os primeiros viveram sob a tutela física e moral dos segundos é reveladora desse quadro Para Freyre o catolicismo português não se expressou na colônia na forma de catedral e seu bispo nem como mosteiros ou abadias solitários mas na capela do engenho ligada visceralmente à casa grande o que fez da figura do padre mais um aliado e dependente do patriarca em muitos casos participante da procriação nas senzalas Em decorrência de tal proximidade natural tenha se tornado a difusão de um catolicismo se não herético menos ortodoxo de infração e não de interdito Um catolicismo de festa de guerra e de sexo distanciado de uma compreensão mais ética da religião com tudo o que isto implicava em termos da adoção de uma perspectiva mais sistemática neutra e impessoal da doutrina cristã A ligação de padres e nobres como senhores de terra no medievo português foi mostrada no texto de Freyre como modificada no ambiente colonial restando aos primeiros a tarefa de dar suporte ao poder dos segundos pela liturgia pelo catecismo pelas Ordenações e até pela difusão da língua portuguesa auxiliada pela geral de criação jesuítica Fortalecidos os patriarcas freyreanos se aristocratizaram de uma forma nunca dantes ocorrida em Portugal ao que Freyre diz ter sido um esforço coletivo de retificação da história portuguesa marcada por uma nobreza debilitada pelo poder clerical A aristocracia auferida pelo português no Brasil foi considerada por Freyre inicialmente ao destacar o papel de autarquia das casasgrandes que serviam ao mesmo tempo de fortaleza capela escola oficina santacasa harém convento de moças hospedaria e até de banco A multiplicidade de papeis do ambiente doméstico assim como o nexo das dependências da casa permitiriam para Freyre uma sociabilidade tão intensa quanto a vivenciada pela aristocracia européia e por conseguinte permitiria a aproximação de sociedade colonial da cultura medieval que o autor pressupunha como recriada na colônia Nesses domínios o patriarca era influente superposto em sua parentela superior na rígida estrutura social marcada por casamentos monogâmicos como forma de preservação de poder Tal quadro para Freyre era suficiente para provar a autonomia do patriarca em relação ao Estado português autonomia relativa por ser inegável a manutenção do poder 215 graças às horas e mercês concedidas pelo soberano português o que o tornava um vassalo405 Nesse enquadramento o português tornarase um aristocrata acostumado a ser servido com poder de vida e morte sobre seus filiados revestido de poder político e militar e de destaque social406 O engenho seria para Freyre um feudo407 consideradas suas singularidades onde a vassalagem européia fora redimensionada pelos mestiços que ali viviam à disposição do senhor para o que se fizesse necessário de quem recebiam pequenos pedaços de terra inculta para plantar roçados ou bezerros por cuidar do rebanho habituados não à rotação de terras mas à coivara à meação ou à terça Para Freyre o português implantara um sistema feudal no ambiente colonial mesmo sem têlo vivido na sua completude e com as singularidades permitidas pelas facetas do colonialismo Um feudo movido também por escravos negros bem diferentes dos feudos do centro europeu e do patrimonialismo português Um feudo lusobrasileiro que impediria quaisquer comparações com a 405 FERNANDES considerou que o colono de status senhorial não só era o vas salo e o representante da coroa na colônia era simultaneamente a base material visível e a mão armada invisível da existência do império colonial In FERNANDES Florestan Circuito fechado São Paulo HUCITEC 1977 114 Por sua vez Ricúpero ao estudar a formação da elite colonial destacou os pedidos da vassalagem americana ao rei de Portugal na demonstração dos serviços feitos à custa de sangue e fazenda In Formação da elite colonial Brasil 15301630 São Paulo Alameda 1979 O termo em itálico é do autor citado 406 ARAÚJO buscou fazer uma correlação entre a proposição aristocratizante dos senhores de engenho do Brasil colonial construídos por Freyre com o contraste entre uma cultura oficial baseada na seriedade na hierarquia e em aristocráticas separações e uma popular preocupada com a promoção da familiaridade da liberdade e do humor traçado por Mikhail Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento O Contexto de François Rabelais São PauloBrasília HucitecUnB 1987 Segundo aquele autor boa parte das características que Bakhtin imputou àquele universo popular e enfaticamente antiaristocrático poderia perfeitamente se encaixar nos aspectos da casa grande evidenciados por Freyre sobretudo em relação ao comportamento dos senhores da freyreana nobreza açucareira brasileira In ARAÚJO Ricardo Benzaquem de Guerra e paz CasaGrande Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 Rio de Janeiro Editora 34 1994 p 84 e seguintes 407 Apesar de Freyre não esclarecer seu entendimento acerca do Feudalismo usamos a acepção clássica para a leitura de seu texto definindoo consoante Marc Bloch A fragmentação da soberania entre uma multidão de pequenos príncipes ou até de senhores de aldeia In A sociedade feudal Lisboa Edições 70 sd p 71 216 experiência européia por ser única dentro de um espaço e tempo específico marcado pela singularidade do próprio tecido social da colônia408 No aprofundamento do processo colonizatório o historiador reconheceu as profundas modificações que se estabeleceram na mentalidade portuguesa tal qual o fizera já no início do século Manoel Bomfim e o próprio Paulo Prado Não apenas do português colonizador mas da própria sociedade portuguesa peninsular diretamente afetada pelas modificações extremas assumidas no concerto europeu quanto pelo distanciamento português do ambiente dos grandes Estados do Velho Mundo Mais uma vez a questão do parasitismo do caráter explorador da coroa portuguesa repassado aos seus súditos ressurgiu nessa análise sobre a história brasileira a denunciar a fixação de um mesmo tema no constructo nacional Foi a decadência portuguesa que para Freyre fez assomar certo espírito plebeu no português originando um tipo novo Mesmo tendo refutado a existência do espírito rude apontado por Keyserling no contexto inicial do processo colonizatório Freyre reconheceu no português moderno409 o característico do plebeísmo que contaminara Portugal 408 A tese de que relações feudais pautaram o modo de colonização do Brasil gerou profundas controvérsias entre historiadores economistas e sociólogos perdurando durante várias décadas após a assertiva freyreana embora seja possível identificar algumas premissas em Capistrano de Abreu Enquanto alguns autores perceberam e denunciaram essas relações como fundamento do sistema fundiário brasileiro que persistiu de certo modo até o século XX a exemplo de Nelson Werneck Sodré Alberto Passos Guimarães Jacob Gorender e Caio Prado Júnior outros negaram sua existência inclusive na caracterização das capitanias hereditárias tais como Roberto Simonsen Celso Furtado e Ciro Flamarion Cardoso Sobre o tema reputamos preciosa a análise de BANDEIRA Luís Alberto Moniz O Feudo a Casa da Torre de Garcia DÁvila Da conquista dos sertões à independência do Brasil São Paulo Civilização Brasileira 2007 409 Fazse interessante destacar que o autor em muitos trechos de seu texto deixou em aberto seu pensamento não definindo adequadamente certas questões fato que o levou ao decorrer de sua vida tentar solucionar certos excertos em outras obras e por via dos muitos prefácios escritos para CGS Em relação ao cariz rústico por ele indicado como constitutivo do português moderno notamos certo mecanicismo do autor ao referenciar aquele português sem especificar seu próprio tempo explorando uma realidade histórica sem beneficiála da necessária elaboração teórica Freyre foi claro ao dizer que o seu português era aquele dos séculos iniciais da colonização portanto os dos séculos XVI e XVII quando já se reconhece o advento da modernidade em Portugal segundo MONTEIRO Nuno Gonçalves História da vida privada em Portugal a Idade Moderna Introdução Lisboa Círculo de Leitores 2011 Contudo o que Freyre compreenderia por Moderno no contexto que buscava desvendar Guimarães ao estudar a questão da temporalidade na escrita de CGS esclarece a inexistência de um tempo retilíneo sucessivo na proposta daquele autor pautada num tempo tríbio existencial proustiano em seu esforço de resguardar a verdadeira qualidade do tempo passado Para a autora citada a obra freyreana liga o passado ao presente e destaca o futuro como um mundo de reconstituição e de restituição do passado de valorização e reconhecimento das raízes culturais do povo brasileiro Seu tempo não é tempo mensurável é vivido sentido pois o sentir é sua comunicação com o real Não é duração concreta e sim um tempo psicológico fruto de sua introspecção histórica sociológica e antropológica Assim tudo que o autor considera moderno é o seu próprio presente em contraponto ao 217 naufragado na prática da exploração colonial transmutado em espaço a alimentarse da fama adquirida nas conquistas do ultramar vivendo de um passado cujo esplendor era exagerado Para o autor enquanto Portugal fora eficiente no imperialismo colonizador o português não assumira tal cariz só o fazendo depois da decadência quando intentou se erguer como igual entre as grandes potências da Europa 410 Se antes era condescendente no contato com outros povos ao tempo em que se esforçava pela própria autonomia deixou de sêlo desde então ao se tornar dependente o que exara contradições profundas no cariz português criado por Freyre Mas o que seria esse traço plebeu que Freyre abordou como típico do português moderno mas que não foi aprofundado no texto de CGS Ao tema o autor se reportou como típico de uma sociedade que se aburguesou mas que não se tornou completamente burguesa posto ter estacionado na transição de uma sociedade não totalmente tradicional a uma sociedade não totalmente moderna Enquanto a Europa se industrializava Portugal insistia num mercantilismo que obrigava sua população a fixarse em grande parte na atividade agrária tanto na metrópole como na colônia Em decorrência do fato o povo português e a esse o autor especifica ser o peninsular tal qual seu descendente brasileiro fora marcado por uma rusticidade constitutiva expressa na recusa ao processo homogeneizador411 engendrado pelas transformações burguesas no continente Da mesma forma pode ser entendida na persistência de uma mentalidade anacrônica da manutenção da escravidão frente ao humanismo naturalista que avançou sobre a Europa antigo pois em seu pensamento não há uma subordinação aos preceitos de temporalidade escalavrados pelo pensamento eurocentrista GUIMARÃES Myrna Botelho de Barros Uma reflexão sobre o tempo em Casa Grande Senzala In QUINTAS Fátima A obra em tempos vários Recife Massagana 1999 p 57 Sendo o homem do passado o português das centúrias acima indicadas pensamos que ao se referir a um português moderno Freyre tenha se referido ao homem do século XVIII e seguintes que vivenciou as grandes transformações ocasionadas não mais por uma burguesia mercantil mas por uma burguesia industrial no bojo da sociedade européia 410 Sobre a temporalidade de tal fato não há menção na obra de Freyre embora entendamos tratarse do início do século XIX consoante as indicações de VILLON Victor O mundo português que Gilberto Freyre criou Rio de Janeiro Usina de livros 2010 p 61 411 Em aprofundamento de sua tese inicial Freyre deu como indicativos de rusticidade lusa alguns exemplos entre eles a opção pela falta de instrução adequada às novas formas de organização da sociedade compensada por uma natural sabedoria pela imaginação e pelo humor que não devem ser desdenhados nunca O apego à visão católica e conservadora face ao cosmopolitismo e o aburguesamento vivenciado a recriação da escravidão no bojo do desenvolvimento capitalista assim co mo a tendência para tratar escravos como agregados foram mostrados por Freyre como rizomas da rusticidade constitutiva do português que alcançarão seu auge na modernidade FREYRE Gilberto Interpretação do Brasil aspectos da formação social brasileira como amalgamento de raças e culturas Rio de Janeiro José Olímpio 1947 218 Para Freyre esse espírito rústico plebeu que marcou o português moderno não desqualificava o super português constituído em sua obra típico homem de meados do milênio plenamente adaptável mais capacitado que os demais europeus a consolidar uma civilização nos trópicos em face de sua própria constituição histórica Entretanto essa mesma constituição fez do português um semieuropeu com uma visão mais prática que teórica do mundo a valorizar mais a ação que a reflexão precarizando sua ligação com a civilização ocidental aproximandoo mais do Oriente por onde andou no passado 63 Na esquina do mundo um povo multifacetado A perspectiva de o ibérico ser diferente em relação aos demais povos europeus remonta ao final do século XIX e início do século seguinte como uma preocupação ressaltada por variados autores tanto ibéricos412 quanto latinoamericanos413 No Brasil Freyre retomou a discussão em modos de arrematar muitas de suas perspectivas apresentadas ao longo de sua obra A indefinição portuguesa em Freyre decorreu em primeira mão pela alargada mobilidade proporcionada por sua localização geográfica Situado no extremo sudoeste europeu e amplamente voltado para o Atlântico natural seria ter Portugal o cariz hibrido explorado por Freyre que o compreendeu quase como uma periferia da própria Europa tão distanciado o enxergou do padrão cultural modelado pelos países do centro do continente nomeadamente França Inglaterra e Alemanha Tal distanciamento entretanto não deve ser tomado como uma impossibilidade do próprio Portugal em se tornar tão europeu 412 Um exemplo pode ser indicado na obra de Ortega y Gasset quando o autor indicou ser o grande desafio espanhol reconhecerse como um país onde decorreu o encontro das culturas oriental e ocidental existindo na cultura ibérica uma especificidade que escapava à análise dos estudiosos em geral Para o filósofo espanhol uma vez aceita a diferença essencial entre a cultura germânica e a latina classificou se erroneamente a Espanha como informada pela última quando o que se presentificou naquele país fora a cultura mediterrânea capaz de explicar as semelhanças entre os povos do norte da África e os europeus do sul Por sua vez a cultura mediterrânea não se originou na cultura helênica mas na cretense onde desembocou a civilização oriental e se iniciou outra que não é a cultura grega e que em última análise distanciou o ibérico dos demais povos europeus Cf ORTEGA Y GASSET José Meditaciones del Quijote Madrid Alianza editorial 1987 413 Aos últimos a tese se deu como um desdobramento corporificando a percepção de ser a própria América Latina outra América respeitadas as características locais sempre ancoradas na transição EuropaAmérica e OcidenteOriente como é o caso dos trabalhos do argentino Domingos Sarmiento do uruguaio José Henrique Rodó do cubano Lezama Lima e dos brasileiros Mário de Andrade e Paulo Prado seguidos pelo próprio Freyre 219 quanto as demais nações do Velho Mundo414 tratouse pois de uma escolha frente às demais alternativas históricas que marcaram seu passado e como conseqüência de sua própria formação Mais interessado em outras paisagens e nas novidades que os outros lugares o propiciavam que pela própria Europa o português explorou ao máximo as condições de mobilidade que a geografia lhe permitiu bem como os acordos políticos Basta lembrar que ao tempo das grandes navegações o tratado de Tordesilhas concedera aos portugueses a possessão de todo o Atlântico assim como de boa parte das terras americanas fato que parece ter propiciado o país a voltarse mais para a ambiência atlântica que para o interior do chamado Velho Mundo415 Os resultados dessa tomada de rumos em contraponto á política continentalista do infante Pedro416 e de D Manuel I por sua vez parece terem se arraigado indelevelmente na mentalidade portuguesa resultando como fértil temática amplamente manifesta em sua cultura Em definitivo o mar entranhouse na alma portuguesa417 Na verdade o mar tornouse quase que uma representação do imperialismo português uma exigência para que o pequeno reino se tornasse cabeça da Europa durante determinado período Em Freyre tal condição tornouse um motivo de diferenciação do português em relação aos demais europeus Para aquele historiador o fato de Portugal estar numa esquina entre dois continentes foi mais que suficiente para dar a seu povo um cariz indefinido nem de europeu nem de africano mas de ambos numa singular expressão híbrida vaga e imprecisa A imprecisão portuguesa consistiria em Freyre na inexistência de traços puramente europeus nem tipicamente africanos naquele povo A ambiguidade da identidade portuguesa era caracterizada pela bicontinentalidade que sua condição geográfica 414 A respeito do lugar de Portugal no concerto das nações européias SILVA destaca o perfil percussor assumido por seu país desde os tempos iniciais de sua organização a fim de levar a efeito uma união efetiva dos países europeus por intermédio de um acordo pacífico e voluntário fato revelador de um Portugal plenamente inserido no contexto europeu e não voltado contra o mesmo In SILVA António Martins da Portugal e a Europa distanciamento e reencontro A idéia de Europa e a integração européia ecos reacções e posicionamentos 18302005 Viseu Palimage 2005 415 Sobre a facilidade de mobilidade auferida pelos portugueses Freyre utilizou como exemplo a prontidão dos indivíduos de valor tais como guerreiros administradores técnicos deslocados pela política colonial de Lisboa como peças de um jogo de gamão da Ásia para a América e daí para a África conforme as conveniências de momento ou de religião In Casa Grande Senzala p 83 416 Cf SANTOS João Marinho dos Estudos sobre os descobrimentos e a expansão portuguesa Coimbra FLUC sd p 20 417 SILVA Antônio Martins da Op Cit p 15 220 permitira tornando um português quase um povo de transição disposto numa zona de passagem que o impossibilitara de um cariz típico de uma identidade homogênea Enrijecido pelas condições vibráteis entre os povos dos dois continentes pelos constantes estados bélicos o português freyreano era bicontinental manipulado pela indecisão que o definiu como um povo multifacetado no qual era possível se enxergar resquícios de diversos povos que aportaram na Península Ibérica ou que foram visitados pelos próprios portugueses em suas aventuras marítimas Sua extensa mobilidade definiu seu caráter marcado em primeiro plano por um não ser expressivo do amálgama cultural peculiar da própria formação de Portugal Não havia homogeneidade no povo português nem nos caracteres biológicos e menos ainda em sua constituição espiritual418 bem ao contrário Era marcado por um caráter resultante do amálgama de sua própria formação social e que findou por determinála como uma concentração de elementos opostos antagônicos mesmo que surpreendentemente equilibrados Gente mais flutuante que a portuguesa dificilmente se imagina o bambo equilíbrio de antagonismos refletese em tudo que é seu dando lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade às vezes perturbada por dolorosas hesitações e ao caráter uma especial riqueza de aptidões ainda que não raro incoerentes e difíceis de conciliarem para a expressão útil ou para a iniciativa prática419 Assim o português reuniria em si contrastes vários que ao mesmo tempo em que o aproximaria dos povos europeus o distanciava graças à imprecisão e ambiguidade concentrada não apenas nos seus caracteres biológicos sobretudo em sua própria constituição espiritual Nele se enxergava a Ásia e a influência moura as práticas judaicas o espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia do conquistador bem como um inglês sem as linhas duras do puritanismo graças à extensa mobilidade que o fizera deslocarse do seu próprio território e daquele um espaço de deslocamento de outros povos As aptidões daí resultantes entretanto foram tomadas pelo autor como tão flexíveis e fugidias que quase impossibilitavam o português às ações práticas afirmação que se contradiz com outros trechos da mesma obra nos quais Freyre reconhecia o português como o europeu mais capacitado a vencer nos trópicos graças à sua capacidade de adaptação ao seu caráter mimético de quem se tornara capaz de vencer os grandes desafios do mundo 418 O termo é de Freyre e pode ser encontrado à página 197 de CGS 419 Ibidem p 6 221 Tal caráter por sua vez foi destacado como decorrente desse nãolugar português Tendo sido a mobilidade resultante de um pressuposto geográfico o mesmo não se pode dizer da capacidade de aclimatibilidade da virtude mimética alcançada pelo Português em seus contatos com outros povos para Freyre o grande diferencial dos lusos em relação aos demais povos europeus e a que mais os afasta do Velho Mundo O contato com outros povos não se deu apenas em sua forma mais superficial ou mais despótica ou imperial como o fizeram ingleses e espanhóis Àqueles valendose da superioridade bélica e da incapacidade de se relacionar com o outro diferente impuseramse à força estabelecendo sociedades onde o colonizador não confraternizava com o colonizado Ao português diferentemente coube desenvolver a capacidade de se aclimatar com esses povos conhecerlhe os costumes escolher o que lhe parecia mais prático enfim engendrar em sua própria cultura a alheia quase como uma escolha nunca como uma imposição A imprecisão de sua natureza bicontinental desse modo irmanavase com certa heterogeneidade na composição dos mais destacados princípios formadores da alma portuguesa princípios capazes de fazer que nela se destacassem a qualidade da contemporização da negociação pautada na relativização dos ideais na flexibilidade dos preconceitos Enfim uma expressão da contínua deseuropeização portuguesa em sua essência Utilizandose das considerações de inúmeros autores sobre a grande influência moura e judaica na sociedade e cultura portuguesas Freyre se dispôs a estabelecer mesmo a quantificar até que ponto os portugueses tinham sido influenciados pelos demais europeus ou por outros povos posto enxergasse na sociedade portuguesa uma formação social católica mesclada pelo misticismo e com grandes doses de cultura judaica e maometana o que o intrigava Tais elementos o autor afirmava terem sido introduzidos livremente na colônia fato que denunciava o quanto tais práticas estavam naturalizadas na sociedade portuguesa seiscentista Sobre a maior das influências Freyre destacou a dos semitas na formação do povo português seguida de perto pelos costumes mouros determinantes para que o português tomasse uma nova configuração mental e também biológica Freyre indicou ter sido a prática da escravidão o uso da mão de obra de terceiros na feitura das tarefas de uma sociedade inclinada para outras atividades como a maior expressão do contato desses povos Fora a prática da escravidão secularmente comum entre os semitas e sendo aqueles numerosos na Península Ibérica não foi necessário grande esforço para que 222 esta se tornasse comum mesmo que enojasse os mais puristas 420 Mas a escravidão que Freyre perscrutou foi a escravidão negra integralizada em toda sua cruel face na América portuguesa Mesmo sem negar ter sido o português um escravocrata terrível o autor destacou outra faceta desse português como aquele que soube adaptar tal exploração dandolhe um sentido mais suave doméstico onde o escravo estava mais próximo de seu dono tal qual a escravidão apreendida na cultura moura Sabemos que os portugueses apesar de intensamente cristãos mais do isso até campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã imitaram os árabes os mouros os maometanos em certas técnicas e em certos costumes assimilando deles inúmeros valores culturais A concepção maometana da escravidão como sistema doméstico ligado à organização da família inclusive às atividades domésticas sem ser decisivamente dominada por um propósito econômicoindustrial foi um dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à colonização predominantemente mas não exclusivamente cristã do Brasil421 De forma mais profunda chegou mesmo ao recôndito dos lares e aos hábitos dos portugueses de forma a dar maior ênfase às qualidades judaicas e mouras introjectadas na cultura portuguesa e que muito a diferenciava de outros povos europeus Ao destacar o gosto pelo asseio pela limpeza pela claridade pela água Freyre traçou uma divisão peculiar no interior de Portugal identificando as regiões onde a presença moura ou judaica mais se fez presente nos costumes e hábitos populares Contraditoriamente ao representar o português como passível de confraternizarse com outros povos não teve a mesma preocupação generalizando suas observações como se a população portuguesa fosse uniformemente igual Foi a partir da percepção da existência de expressivos costumes mouros e judaicos na população brasileira mais especificamente na nordestina422 existentes desde a 420 O autor esclarece o papel dos judeus no interior da sociedade portuguesa e de sua influência nos métodos escravocratas adotados mais tarde pelos portugueses Os judeus desde o começo do período visigótico souberam imporse entre os povos peninsulares como negociantes de escravos e credores de dinheiro De modo que para o pendor português de viver de escravos parece ter concorrido o sefardim Inimigo do trabalho manual o judeu desde tempos remotos inclinouse à escravidão Diz Chamberlain que Isaías insinua a idéia de que os estrangeiros deveriam ser os lavradores e os vinhateiros dos hebreus E o certo é que na Península muitos dos judeus mais longínquos de que se tem notícia foram donos de escravos cristãos e possuíram concubinas cristãs Ibidem p 228 421 Idem Novo mundo nos trópicos São Paulo NacionalEDUSP 1969 p 83 422 A propósito ver SOBREIRA César Op cit p 134 223 colonização além da coleta de dados em variadas obras que aquele autor traçou a mais forte e resistente representação acerca de Portugal e de seu povo distanciandoo ainda mais do modelo do Velho Mundo centro da cultura ocidental e da civilidade 423 Ao aprofundar seu argumento o autor justificou suas alegações com base em dados da grande ascensão intelectual dos judeus dentro da sociedade portuguesa Para além da habilidade daquele povo nos assuntos financeiros base da expansão do imperialismo luso foram as tradições sefardínicas de intelectualismo que influenciaram em grande medida os portugueses Desde 1589 segundo o autor a Mesa de Consciência e Ordem já identificara estarem os cristãos novos a fazer monopólio dos ofícios de médico rivais poderosos dos padres perante as famílias e os reis e boticário além do de bacharel o que fez Coimbra ser tomada como um covil de heréticos424 face ao grande número de judeus como alunos e professores da universidade Para Freyre a presença preponderante de judeus na sociedade portuguesa e a realização plena da cultura hebraica em Portugal findaram por estabelecer como comuns algumas práticas contrárias à mentalidade européia como a da escravidão e o ambiente doméstico português foi inundado por africanos antes mesmo que fossem levados à colônia americana sob a alegação de inexistência de mãodeobra Da prática escravocrata de origem judaica Freyre produziu um sentido considerando ter a mesma apenas realçado algo bem peculiar do português comum a índole oposta ao 423 O gosto pelas comidas oleosas e pela doçaria a aprendizagem a partir de canções da tabuada ou da cartilha o ideal da beleza feminina ligado ao excesso adiposo os banhos de gamela o gosto da água corrente nos jardins o uso da mantiha pelas mulheres dando às modas femininas um ar mais oriental que europeu a preferência mais pelos tapetes e esteiras que pelo sofá ou estofados onde se sentavam de pernas cruzadas à mourisca os pezinhos tapados pela saia pois seria grande vergonha deixar alguém ver os pés a azulejaria a telha mourisca a janela quadriculada a gelosia o abalcoado e as paredes grossas Todos esses foram costumes trazidos pelos colonizador inclusive uma indefinida doçura no tratamento com escravos docilidade esta desconhecida pelos historiadores ante os variados relatos de abusos e a existência de vários instrumentos de castigo e tortura de uso comum nos engenhos Antagonicamente o autor assevera que o horror à água o desleixo pela higiene do corpo e do vestuário permaneceram entre os portugueses de forma mais intensa nas zonas menos beneficiadas pela influência moura A divisão do país em norte e sul sendo o último o reduto de influência mourisca surpreende pelos exemplos de higiene da casa Para Freyre a casa portuguesa seira suja feia e emporcalhada no norte e no centro e o minhoto mais europeu mais louro e mais cristão o mais desasseado a denunciar flagrante desleixo pelo asseioIbidem p 222 424 Freyre utilizou a expressão de AZEVEDO João Lúcio de História dos cristãos novos portugueses Lisboa se 1922 224 trabalho425 Para Freyre a indolência seria marca do caráter português que a escravidão apenas ratificara O autor não esclareceu se a reconquista da península e a subseqüente escravidão moura ensejaram tal estado de espírito apesar de ter destacado que bem antes de aprender a prática escravagista com os africanos o português bem soubera submeter os mouros na Península passando a viver da exploração do trabalho daqueles Por outro lado insistiu em demonstrar a percepção lusa em relação ao trabalho físico coisa de negro assim como o novo sentido dado ao verbo trabalhar tomado livremente como mourejar a demonstrar o quanto a prática fora alojada na cultura portuguesa desdobrandose numa aversão pelo trabalho que transformara o português num povo indolente A aclimatibilidade portuguesa em relação a práticas de outros povos foi revelada por Freyre como mais um atributo do crescente distanciamento luso da própria Europa O Velho Mundo apresentava uma história de trabalho de esforço físico e mental valorizado não pelas instituições feudais de servidão e vassalismo mas pelo esforço burguês de crescimento financeiro de industrialismo enobrecedor de ascensão social propiciada pela capacidade de trabalhar capacidade esta decantada como uma ética por Weber426 passível de diferenciar populações inteiras pela sua capacidade de impulsionar ou não a economia ocidental moderna O português aburguesado em suas primeiras experiências mercantis não aprofundara tal cariz posto ter enfrentado um dos grandes enclaves de sua história ao ter que optar entre o mercantilismo e o imperialismo colonizador quando fundou a maior civilização moderna dos trópicos Esse aburguesamento tão referenciado por Freyre encontrou seu termo quando da descoberta de uma rearistocratização confirmada pela sua capacidade de exploração da mãodeobra escrava que findou por fazêlo se aclimatar a um novo modelo de vida modelo este emergido na contramão das férteis transformações ocorridas no seio social do Velho Mundo Como um indolente o português foi tratado por Freyre como o avesso do europeu a percorrer um caminho à parte das grandes nações do continente o que lhe deu uma identidade distinta daqueles Todavia ao constituir esse português pouco afeito ao trabalho mergulhado na languidez e morosidade reproduzidas na colônia Freyre evidenciou a própria historicidade da formação de Portugal resultante não de fatos como a 425 A percepção de uma suposta indolência portuguesa é colhida por GF nas cartas de Clenardo traduzidas pelo Cardeal Gonçalves Cerejeira e publicadas no livro O Humanismo em Portugal citado pelo autor mas sem referências In Casa Grande Senzala p 238 426 WEBER Max A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Martin Claret 2001 225 Revolução Gloriosa ou a Renascença Italiana mas da cultura de povos distantes aos quais se aclimatara sem prejuízo algum Essa capacidade de adaptação bem própria do português Freyreano todavia tomou novos contornos ante o aprofundamento das relações dos lusos com os demais povos Mais que se adaptar aos mesmos o luso foi mais adiante fundindose miscigenandose atingindo o ápice do contato que lhe foi proporcionado pela geografia e sua própria constituição psíquica capaz de se achegar a outros povos posto que tal capacidade não se originasse da realidade de suas fronteiras continentais mas decorresse dela A aclimatibilidade portuguesa não seria pois uma conseqüência da localização mas uma estratégia diante da mobilidade propiciada pela localização a capacidade de convivência pacífica e integrada com povos distintos decorreu para Freyre de um componente distinto bem peculiar ao português e inexistente em outros povos europeus quase tão móveis quanto aqueles embora incapacitados a um contato mais próximo A miscigenação por sua vez resultou desse componente ao alargar a mescla cultural da aclimatibilidade em mescla biológica Desse modo o português teria perdido o cariz de branco puro desde que confraternizara com romanos fenícios árabes franceses e judeus diferenciandose dos demais europeus ao se tornar um híbrido resultado de um amálgama iniciado antes do seu desembarque no continente americano 427 Esse intercruzamento teria resultado numa nação onde as propriedades singulares de cada um desses povos não se dissolveram possibilitando o surgimento de um tipo com perfil próprio que sintetizasse as diversas características de sua composição Bem ao contrário o mestiço português freyreano assim como o próprio tecido social português se assemelhavam a alguém que guardou a indelével lembrança das diferenças presentes em sua composição 428 O português tal qual sua própria sociedade exibiria notáveis antagonismos que dado ao seu equilíbrio não se desfariam não se homogeneizavam de forma a se reunir numa entidade separada original e indivisível 427 Neste sentido Freyre ofereceu uma impressionante descrição dos movimentos dos mais diversos povos que desde a préhistória até a ocupação moura converteram a Península Ibérica e em especial a sua face lusitana em um local de intensos encontros contatos nem sempre pacíficos mas ainda assim capazes de produzir mútuas e duradouras influências In Casa Grande Senzala p 21620 e 22330 428 ARAÚJO argumentou que o hibridismo que Freyre enxergou na sociedade colonial não era a conversão do azul com amarelo transformado em verde Tal mistura naquele autor não facultaria a perda das cores originais mantendose as mesmas ARAÚJO Ricardo Benzaquen de Op cit p 74 226 Embora Freyre em muitas passagens de seu texto houvesse proclamado as expressivas peculiaridades étnicas mouras e judaicas da sociedade portuguesa ele defendia o hibridismo como sua principal marca Seria assim a sociedade portuguesa híbrida sincrética polifônica Indefinida entre Europa e a África Nem intransigentemente de uma nem de outra mas das duas A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual à alimentação à religião o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura o ar da África um ar quente oleoso amolecendo nas instituições e formas de cultura as durezas germânicas corrompendo a rigidez doutrinária da Igreja medieval tirando os ossos ao cristianismo ao feudalismo à arquitetura gótica à disciplina canônica ao direito visigótico ao latim ao próprio caráter do povo429 Tais características por sua vez não importariam em qualquer diminuição ou perda para Portugal Muito pelo contrário seria exatamente por essa índole flexível e até vulcânica inteiramente despida de compromissos com a coerência e a rigidez que o nosso autor localizou a maior virtude do português o sucesso do empreendimento colonial marcado por uma expressiva mobilidade aclimatibilidade e miscibilidade de sua exígua população e incipientes recursos materiais Deslocandose com rapidez deitandose com qualquer raça e aceitando todas as situações e todos os climas o português realizou a proeza de não só se multiplicar e assegurar a sua presença nas mais longínquas regiões do planeta mas também a de fazêlo através de um tipo singular de colonização baseada em um íntimo contato com as terras e os povos por ele conquistados distinguindose em especial da colonização européia e angloamericana dos trópicos A mobilidade a miscibilidade e a aclimatabilidade como multifacetas do povo português refluiu na idéia da plasticidade portuguesa categoria central de construção de um português e sobre a qual já nos referimos em títulos anteriores A plasticidade seria então uma ampliação e uma concretização da experiência étnica e cultural de Portugal tônica do português freyreano apresentado ao Brasil uma extensão de Portugal imerso em sua cultura herdeiro de sua formação Na defesa dos valores dali decorrentes clamava Freyre 429 Ibidem p 23 227 CAPÍTULO 7 O PASSADO COMO OBSTÁCULO AO FUTURO Enquanto a intelectualidade brasileira ainda se encantava com as descobertas proporcionadas pela Casa Grande Senzala freyreana outro título era lançado na esteira de obras que se dispunham a analisar a formação daquela sociedade Raízes do Brasil Seu autor Sérgio Buarque de Hollanda430 paulista de nascimento vivenciara a Revolução de Trinta acontecimento que desencadeou uma complexa trama de tradição e modernização tornada em substancial apelo sobre a vida pública brasileira e por extensão na 430 Natural da cidade de São Paulo onde nasceu em 1902 ali vivendo até 1921 transferindose para o Rio de Janeiro com o fim de cursar a faculdade de direito Como acadêmico Holanda ingressou na carreira jornalística assim como na crítica literária exercida em jornais e revistas como principal atividade até os últimos anos da década Nesse ínterim participou do Movimento Modernista participando da revista Klaxon e fundando em 1924 a revista Estética na qual trabalhou até 1929 quando partiu para a Alemanha onde permaneceu por um ano O período naquele país como correspondente dos Diários Associados inseriu Holanda nas tendências dominantes da intelectualidade europeia do momento tendo o Historicismo conquistado seu modo de ver e entender o mundo o que findou por se refletir na composição de sua obra inaugural publicada em 1936 Raízes do Brasil Com a mesma ingressou no quadro de docentes da Universidade do Distrito Federal onde permaneceu por três anos até sua extinção nos quadros do Estado Novo Nesse período teve contatos próximos com os grandes nomes da cultura francesa tornando se assistente do francoargelino Henri Hauser 18661946 em História econômica e de Henry Trouchon em literatura comparada experiência que o iniciou nas técnicas sistemáticas da pesquisa histórica utilizadas na produção de Monções publicado em 1945 No ano seguinte após a extinção do Estado Novo Varguista Hollanda retornou a São Paulo para assumir a direção do Museu Paulista cargo abandonado em 1956 quando ingressou na Universidade de São Paulo como regente da cadeira de História da Civilização Brasileira onde se efetivou como catedrático com a tese Visão do Paraíso os motivos edênicos do descobrimento e a colonização do Brasil publicada em 1959 Antes porém publicou Caminhos e fronteiras no qual historiou a lenta ocupação territorial promovida pelos bandeirantes Sérgio Buarque de Holanda foi professor da USP até 1969 quando pediu aposentadoria em face ao clima de tensão proporcionado pela instalação do AI5 instrumentado pela ditadura militar Desde então sua produção ocorreu desvinculada de instituições levando a cabo a direção da coleção História Geral da Civilização brasileira iniciada na USP desde 1960 da qual redigiu vários capítulos e um volume completo Do Império à república publicado em 1972 Engajado politicamente durante toda a vida ajudou a fundar junto com outros nomes o Partido dos Trabalhadores em 1979 Foi casado com Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda com quem teve sete filhos tendo falecido em 1982 228 historiografia a partir de então produzida Ao contrário de Freyre que olhava o passado que aos poucos se desfazia tal qual o esfarelar das casas grandes e das famílias patriarcais Holanda espreitava o presente vivido impactado pela ocorrência de uma revolução no âmbito nacional seguida de outra de cunho regional431 e tentava imaginar o futuro que aguardava o país Foi o caráter da Revolução além de todos os acontecimentos políticos dela decorrentes que aproximaram Sérgio Buarque de Holanda da perspectiva de que no Brasil nunca houvera uma revolução social pois todas as revoluções foram políticas e voltadas para remodelar os interesses das elites432 Para ele todas as medidas políticas sociais e econômicas do governo varguista eram inerentemente conservadoras e portanto pertencentes a um quadro social que remontava à sociedade colonial Para a subversão de tal estado Holanda apregoava a necessidade de se revelar o passado do país para combater o autoritarismo do seu tempo ou desvendar nesse presente as permanências e as sobrevivências arcaicas do passado com o fito de superálas para que a almejada modernização nacional viesse a se concretizar433 Observese que o autor já não buscava mais o espírito nacional em sua formação como o tentara Capistrano de Abreu Era do próprio espírito nacional que ele buscava revelar os grandes males que atrelavam o país ao passado impedindo sua progressão suas melhorias e cuja extirpação daria sentido à realização revolucionária 431 A chamada Revolução Constitucionalista Revolução de 32 ou Guerra Paulista ocorreu em São Paulo de 9 de julho a outubro de 1932 objetivando derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e promulgar uma constituição nova para o país A face oculta do movimento armado por sua vez expressava o revanchismo dos paulistas contra o novo poder instituído em 30 que extinguiu a autonomia gozada pelos estados desde 1891 submetendo São Paulo ao governo federal O movimento também expressava o inconformismo dos paulistas pela ação revolucionária de 30 que impediu a posse do candidato vencedor das eleições à presidência da república Júlio Prestes indicado pelo estado e por ter derrubado do poder o então presidente Washington Luís também paulista Sérgio Buarque de Holanda apoiou integralmente este movimento mesmo residindo no Rio de Janeiro à época de sua ocorrência Sobre o evento de farta bibliografia sugerimos a leitura de BORGES Vavy Pacheco Getúlio Vargas e a Oligarquia Paulista História de uma Esperança e Muitos Desenganos São Paulo Brasiliense 1979 e da mesma autora Os sentidos do Tenentismo memória história e historiografia São Paulo Brasiliense 1992 432 A propósito da postura autoral ver COSTA Marcos Antonio Silva Biografia histórica a trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre os anos de 1930 e 1980 Tese de doutorado em História Universidade estadual Paulista 2007 433 Holanda parafraseando Goethe defendia a validade do conhecimento do passado como forma única de libertação do próprio passado Para ele a missão do historiador consistia em procurar afugentar do presente os demônios da história Quer isso dizer em outras palavras que a lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que corre In HOLANDA Sérgio Buarque de Visão do Paraíso Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil São Paulo Companhia das letras 2010 p 181 229 Para o autor a verdadeira revolução se operaria com uma passagem definitiva da vida rural brasileira para a vida urbana e pela superação das raízes ibéricas impregnadas no recôndito da nação sob as formas do ruralismo do personalismo das relações de favor do patriarcalismo e da democracia improvisada onde o interesse privado prevalecia sempre sobre o público O Brasil necessitava para Holanda não apenas de uma revolução política mas de uma revolução social434 ou seja uma revolução que desencadeasse um processo de passagem de uma formação social a outra superando a formação originada na colônia e que se perpetuara sob novas roupagens Para ele a revolução política seria apenas um episódio da transformação institucional das relações de poder o que vem demonstrar o sentido da História para aquele autor O estudo do passado longe de ser operação saudosista ou modo de verificar ou legitimar as estruturas vigentes poderia ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais que contariam com a ajuda do povo e não o confinaria a mera massa de manobra Com tal finalidade Holanda se empenhou em apresentar em Raízes as permanências e sobrevivências do passado colonial brasileiro como um entrave a ser superado um estorvo para o tempo presente que deveria ser outro e não mais aquele tão bem apresentado por Freyre em sua Casa Grande Senzala As vívidas reminiscências acalentadas pelo historiador pernambucano deveriam ser banidas da vida nacional fosse válida a busca pelo progresso alardeado como um dos fins da revolução e arduamente defendido por alguns intelectuais435 nomeadamente os do sudeste agrário exportador Em Raízes do Brasil o historiador paulista buscou analisar o sentido do Brasil mediante um estudo do processo histórico de nossa formação mas não um processo marcado por uma sequência de eventos Tal como Capistrano de Abreu Holanda preferiu abordar 434 SINGER definiu a revolução social apontada por Holanda como um evento com dinâmica própria produzida por amplas mudanças históricas na infraestrutura econômica e outras tantas na superestrutura ideológica e institucional Para aquele autor a noção de revolução política ofuscou a de revolução social por causa da tese até então pouco predominante nos meios de esquerda que a condição necessária e suficiente para a conquista do socialismo seria a conquista do poder estatal Continua sendo verdadeiro que o socialismo pressupõe a transferência do controle efetivo dos meios de produção dos capitalistas aos trabalhadores Mas esta transferência requer muito mais do que um ato jurídicopolítico de transferência de posse Ela requer antes de tudo que os trabalhadores estejam desejosos de assumir coletivamente tal controle In SINGER Paul Uma Utopia Militante repensando o socialismo Petrópolis Vozes 1998 p 93 A assunção de tal controle requeria em Holanda o amplo conhecimento de todos os aspectos da sociedade e com esse fim ele procurou denunciar o quanto ainda havia na sociedade brasileira dos mecanismos coloniais 435 A exemplo do pensamento de Alberto Torres Oliveira Viana Azevedo Amaral e Plínio Salgado 230 formas de vida social de instituições e de mentalidades do passado introjectadas na identidade nacional em vias de ser superada Desse modo o autor buscou reconstituir uma identidade nacional tradicional arcaica aferrada a padrões exógenos que não lhe conferiam singularidade com a intenção que a mesma pudesse ser sobrepujada pela sociedade em seu devir em seu processo de construção Os padrões exógenos referenciados por Holanda destacaram o papel de Portugal e dos portugueses como autores dos pilares da formação nacional marcada por incompatibilidades entre o modelo de milenar tradição implantado e o extenso território e sua gente cujas condições no mais das vezes foram adversas e contrárias à violenta imposição do modelo adotado Ao fim restara ao Brasil uma formação resultante da soma de múltiplos e distintos elementos da qual tomou relevo um padrão o luso a despeito das diferenças Para o autor nem o contato e a mistura com raças indígenas ou adventícias fizeram um povo novo mas uma gente e uma sociedade que transbordava lusitanidade mais parecidas com os avós do alémmar436 como às vezes intentariam não sêlo Residiria a contradição da sociedade brasileira na permanência dessas raízes ibéricas e da própria estrutura do mundo colonial que somadas ao processo desencadeado pelo incentivo à industrialização e conseqüente modernização do país originadas pelo processo revolucionário revelava a incongruência da formação brasileira Não obstante o confronto dessas forças que se opunham veementemente até chegarem à exaustão cederia lugar a formas e forças novas capazes de transformar os homens e a sociedade Ao historiador desencantado com os rumos tomados pelo Brasil437 coube denunciar a persistência dessas raízes de uma modernização conservadora calcada num passado com a intenção de que se encontrassem mecanismos de neutralização dessa tradição ibérica para ele um entrave responsável pelo atraso Na mostra dessa tradição Holanda construiu um Portugal cujos traços principais tentaremos apresentar a seguir 436 O termo é de HOLANDA Sérgio Buarque de Raízes do Brasil Rio de Janeiro José Olímpio 1988 à p 73 437 Sob forte influência de Max Weber e do complexo das variantes interpretativas implícitas na obra daquele pensador é expressivo o envolvimento de Holanda com o grande teórico da racionalização da modernização da burocratização e da administração racionallegal Para Dihel a vinculação ao pensamento weberiano denunciou o desencantamento do mundo por parte do historiador brasileiro em relação à realidade enfrentada por seu próprio país A respeito ver DIEHL Astor Antônio Op cit p 200 231 71 Um Portugal pouco europeu Chama atenção o fato de Holanda mesmo se colocando numa posição diferente da de Freyre em relação ao papel das raízes portuguesas no Brasil ter retomado o tema abordado pelo mestre de Apipucos em sua CGS embora por outro viés sem o saudosismo nem a alegria freyreana mas a expressar certa inquietação diante da persistência de tais rizomas Em primeira mão Holanda se destinou a desconstruir uma das maiores referências de Portugal para o Brasil a de porta de entrada ao mundo europeu tão acalentado em sua aura civilizatória pelos historiadores oitocentistas A apresentação de um Portugal fronteiriço com uma cultura marcada pela transitoriedade onde o europeísmo seria mantido apenas como patrimônio necessário foi tratado por Holanda como um exercício de contrastes do qual sobressairiam algumas peculiaridades ibéricas bem presentes no Brasil vintista Em Holanda ser português significava pertencer a um territórioponte a Península Ibérica no limiar entre dois mundos a própria Europa e demais continentes A Península não seria único exemplo dessa comunicação também exercitada pela Rússia e países balcânicos e até mesmo pela Inglaterra o que evidenciava que a diferenciação dos ibéricos em relação à Europa não era única Desse modo a Europa foi mostrada como um continente geograficamente centralizado com vários pontos de contacto com outras partes do globo condição validada mais pelo seu papel histórico que pela cartografia O Velho mundo exibiria também seu próprio centro pautado pelo avanço econômico em relação às demais regiões periferias do continente que construía a modernidade Ao propugnar o distanciamento de Portugal em relação à Europa Holanda não tomou como referencial apenas a sua localização geográfica ou o contato com outros povos como o fizera Freyre O diferencial abordado por Holanda circunscreveuse à específica formação histórica dos próprios ibéricos designadamente dos portugueses Enquanto as regiões centrais da Europa se organizavam no contexto de seu próprio território os povos da Península ainda lutavam contra invasores convivendo durante alguns séculos com uma cultura totalmente ádvena No caso específico de Portugal tal diferença fora ampliada por só ter conseguido se organizar em torno de uma monarquia apenas no século XIII o que impusera aos lusos um desenvolvimento quase à margem das congêneres europeias Ao tempo que aquelas nações já superavam os entraves feudais com sua rígida hierarquia 232 Portugal tentava se adaptar a um modelo utilizandose de ajustamentos que findaram por se revelar mais como diferenciais que como análogos Como resultante desse descompasso histórico de Portugal em relação às nações da Europa central sua sociedade assumiu na visão de Holanda uma estrutura marcada por notável frouxidão expressa em ampla mobilidade desde a Revolução de Avis A crescente união de membros da nobreza com a crescente burguesia mercantil portuguesa resultou numa sociedade que mais valorizava o prestígio pessoal que os nomes de família pouco apreciando as influências e os privilégios hereditários zelosamente resguardados nas demais nações europeias O individualismo originário da nobreza feudal como ética de fidalgos não se restringiu à nobreza lusitana alastrandose pelas demais classes fazendo dos lusos um povo de mentalidade diferente da dos demais europeus438 Graças a tal particularidade a burguesia mercantil portuguesa não necessitou adotar um novo modo de ser e viver para marcar seu predomínio bastando à mesma associarse às antigas classes dirigentes e assimilar seus princípios guiandose mais pela tradição que pela razão predominante nos membros da mesma classe nos demais países do Velho Mundo Desse entrelaçamento de classes dessa união de interesses avultou a cultura da personalidade que definiu na sociedade portuguesa uma ética da autonomia que expressava a valorização da autossuficiência do alvedrio do homem em relação aos demais Cada homem seria assim filho de si mesmo sem necessidade dos seus semelhantes contando somente com suas virtudes e seu próprio esforço Ao tempo em que mais se valorizava a capacidade pessoal de conquista que os privilégios hereditários inegavelmente o português tendia a desenvolver uma mentalidade ousada moderna e diferenciada de uma Europa marcada pelo sangue azul por antever a irracionalidade desse sistema e a injustiça social dali resultante Bem notável ainda é aduzir que a própria nobreza portuguesa que deveria defender esses privilégios subverteu a regra com fito em outros interesses fazendo de Portugal um lugar especial e diferenciado do tecido social europeu 438 Michel de Foucault esclareceu que durante o medievo a individualidade se vinculava à posição social do indivíduo e tinha como pressuposto a liberdade Desse modo o rei era considerado como indivíduo por excelência o que já não ocorria com o servo que por não ser dono de si mesmo não figurava como indivíduo In Vigiar e Punir o nascimento das prisões Petrópolis Vozes 1987 Portugal por sua vez alheio à severa hierarquia do sistema feudal teve uma nobreza que não se enquistou e sua acessibilidade favoreceu uma fidalguia em todos os níveis diferenciandoo dos demais países do continente 233 Dessa mentalidade valorativa do mérito e da responsabilidade individuais nasceu o português de Holanda que contraditoriamente não foi capaz de desenvolver o espírito de organização espontânea tornandose inepto para a vida social para a associação entre os homens A solidariedade como laço de união entre os interesses compatíveis não existiria entre os portugueses para os quais a associação derivaria apenas dos vínculos sentimentais a unir círculos limitados e particularistas tal qual a família patriarcal explorada por Freyre ou associações beneficentes comuns na metrópole e na colônia Deste modo o personalismo português tornouse fruto de uma sociedade que compreendia a diferenciação entre os homens entendendoos como desiguais frente a uma Europa moderna que crescentemente valorizava a igualdade como um pressuposto da individualidade439 Da incapacidade dos lusos para a organização espontânea para a racionalização da vida social a exigir a gestação de formas livremente pactuadas emergiu na sociedade portuguesa construída por Holanda evidente inclinação à anarquia e à desordem Para o historiador na terra em que todos eram barões não era possível acordo coletivo durável a não ser por uma força exterior responsável e temida 440 Teria que haver um elemento que favorecesse a criação e manutenção artificial de organização política fator de estabilidade e de equilíbrio de um povo eminentemente personalista e por isso incapaz de diferenciar as ditaduras e a anarquia posto serem ambas típicas de seu caráter Um governo seria a necessidade básica do português de Holanda incapaz de gerenciar a própria vida social em decorrência da própria mentalidade O individualismo português formara assim uma gente incapaz de se aglutinar só o fazendo em casos extremos regidos pelos sentimentos e por certa proximidade É desse contexto outra peculiaridade portuguesa resgatada por Holanda a extraordinária disposição para o mandonismo441 nascida do predomínio individualista da autarquia do indivíduo da exaltação extremada da própria personalidade que atingiu seu ápice na 439 Cf DUMONT Louis O individualismo uma perspectiva antropológica da sociedade moderna Rio de Janeiro Rocco 1993 p 316 440 Ibidem p 4 441 O termo foi usado por Sérgio Buarque de Holanda reproduzindo um conceito que já se estabelecia nas ciências sociais brasileiras e que já se fizera conhecer na literatura nacional Característico do coronelismo o mandonismo referese à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder bem presentes no Brasil e representadas pelo patriarcalismo O mandonismo não é um sistema é uma característica da política tradicional e existe no Brasil desde o início da colonização segundo CARVALHO José Murilo de Mandonismo Coronelismo Clientelismo Uma Discussão Conceitual Dados vol 40 nº 2 1997 234 implantação do sistema escravocrata Na colônia o trato com o escravo expôs a capacidade de mando do português assim como com o indígena tornandoo em terrível senhor442 embora Holanda tenha vinculado esse cariz como um paradoxo da capacidade lusa em obedecer Mais que o próprio mando a virtude maior do português seria a obediência a capacidade de se submeter à disciplina imposta a submissão total cega irrestrita distinta da lealdade originária dos princípios medievais O que se destacava na obediência que caracterizou o português de Holanda seria o interesse pessoal sendo este o único princípio político verdadeiramente forte entre os mesmos A capacidade de obedecer em Holanda foi trazida à baila quase como uma arte desenvolvida pelos portugueses uma virtude maior que ancorava aquela sociedade e que fora levada aos seus limites pelos jesuítas Ao mesmo tempo em que o português se valorizava em sua própria autonomia em que se fazia senhor de si não lhe onerava o mando havendo em si uma extremada capacidade de submissão submissão ao outro ou à própria realidade submissão não à linhagem mas ao mérito pessoal Todavia o que dera origem à mentalidade portuguesa que ao tempo em que libertava aprisionava condicionando os lusos à submissão de uma liderança ou à anarquia pura e simples A respeito Holanda constituiu os antecedentes dessa aptidão composta na junção dos campos políticos e teológicos Para ele a doutrina agostiniana teve papel decisivo para que o português assim se tornasse ao se alhear da organização de um mundo afastado de Deus no qual o princípio ordenador da hierarquia e das relações de poder estava distante do modelo da cidade proclamada por Santo Agostinho Na construção agostiniana do mundo ibérico o português era movido por uma fé no sobrenatural que o distanciava da organização do mundo terrestre 443 Contrariamente ao que se passava no resto da Europa o individualismo português jamais foi significativamente submetido à idéia de organização hierárquica dos homens em termos sociais e políticos O indivíduo em si contaria apenas com seu próprio esforço e com suas 442 Mais que Holanda foi Freyre em sua CGS quem esmiuçou a capacidade de mando do português expressa em variados exemplos da disciplina imposta pelos patriarcas que se revelava na execução de castigos atrozes para os que ousavam dela se afastar mulheres emparedadas vivas crianças estouradas no calor das fornalhas escravos mutilados filhos assassinados por ordem do pai 443 A mesma perspectiva foi desenvolvida por Holanda em Visões do paraíso os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil São Paulo Companhia das letras 2010 Naquele texto o autor explorou a mentalidade dos portugueses a respeito do Novo Mundo salientando o quanto os teólogos medievais foram responsáveis pelos mitos e lendas que ancoraram suas ações no descobrimen to e povoamento do Brasil 235 virtudes fazendose diferente e em decorrência merecedor de prestígio e valorização444 Por esse modo na retórica de Holanda seria natural entre os lusos a insensibilidade à organização social bem como a invencível repulsa à moral fundada no culto ao trabalho conforme abaixo assinalado É compreensível que jamais se tenha naturalizado entre a gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente e até mais nobilitante a um bom português do que a luta insana pelo pão de cada dia O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor exclusiva de qualquer esforço de qualquer preocupação E assim enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual as nações ibéricas colocamse ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica O que entre eles predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é em si menos valiosa que a contemplação e o amor445 Ao considerar as virtudes proclamadas pelos portugueses a inteireza o ser a gravidade o termo honrado o proceder sisudo no dizer de Francisco Rodrigues Lobo446 Holanda deu uma interpretação à mentalidade portuguesa como essencialmente inativa que em nada favorecia ao país prejudicado em seu desenvolvimento pela apatia de sua população sempre indisposta a modificar o que já existisse e o que estava determinado A indolência lusa seria a antítese da ética protestante e a nãovalorização do trabalho tomava foros de defesa da dignidade humana aviltada e depreciada pela mecânica sobre as coisas Desse modo Holanda construiu um português distinto dos demais europeus posto que indolente hostil ao trabalho braçal e aferrado à exploração de mouros e negros Contudo fosse a preguiça e o próprio catolicismo uma das marcas desenvolvidas pelo português e destacada no texto de Holanda como mais um diferencial dos lusos em relação aos povos europeus como justificar a disposição do português para a aventura do além mar para a descoberta de novos mundos já que os grandes caminhos e descobertas resultaram da ação direta dos mesmos e não do trabalho escravo 444 Para Leenhardt os portugueses da obra de Sérgio Buarque de Holanda seriam os herdeiros dignos da doutrina estóica de Sêneca Cf LEENHARDT Jacques Frente ao presente do passado In PESAVENTO Sandra Jatahy Org Um historiador sem fronteiras O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda Belo Horizonte Editora da UFMG 2005 p 85 445 Ibidem p 10 446 LOBO Francisco Rodrigues Corte na aldeia Lisboa se 1945 p 136 236 Mesmo sem responder a essa indagação Holanda aventou uma ética própria do português navegador uma ética que surgiu na época das chamadas grandes navegações e que se fez presente no empreendimento colonial americano Essa ética foi tomada por Holanda como um instrumento capaz de ordenar o conhecimento dos homens e entender os seus conjuntos sociais Ao tempo em que o português se submetia às atitudes mentais herdadas de Santo Agostinho vivenciava uma época que predispunha os grandes gestos astúcias e façanhas fermento natural para o surgimento de um sem número de aventuras bem recepcionadas pelos lusos Nesse contexto desenvolveuse o que Holanda chamou de ética da aventura em oposição à ética do trabalho vivida pelos povos europeus protestantes Com tal finalidade aquele autor construiu tipos sociopsicológicos o aventureiro e o trabalhador como instrumentos metodológicos capazes de evidenciar a importância da dimensão psicológica nas ações sociais447 Para ele as sociedades se constituíam de atores capazes de construir riquezas e as usurpar graças à astúcia e à violência assim como por outros que por segurança privilegiavam os investimentos confiáveis invariavelmente despojados pelos primeiros Esses primeiros seriam em Holanda os indolentes portugueses aventureiros afeitos às novas sensações e ao reconhecimento público Propositalmente cegos quanto às fronteiras os limites impostos em oposição aos que enxergavam primeiro as dificuldades a vencer animados pelo desejo de segurança o português da obra de Holanda queria o mundo sem penhorar esforços em seu domínio O que o português vinha buscar era sem dúvida a riqueza mas riqueza que custa ousadia não riqueza que custa trabalho 448 A esse português aventureiro e personalista Holanda configurou com atributos tais como audácia imprevisão irresponsabilidade e instabilidade cunhados no esteio de uma concepção espacial do mundo em oposição à concepção temporal vigente entre os povos trabalhadores Estes por sua vez se destacariam por valorizar a paz a estabilidade a segurança o empenho desinteressado típicos segundo Holanda do mundo sociopolítico do norte da Europa 447 Evidente que os tipos construídos por Holanda foram inspirados pela obra de Max Weber embora o autor os articuasse aos modelos de Vilfredo Pareto o Rentista e o Especulador utilizados para explicar a distribuição da riqueza e sua concentração Na verdade esse uso sistemático de oposições polares tornouse evidente na obra de Holanda Trabalho e aventura o semeador e o ladrilhador Caminhos e fronteiras assim como na de Freyre não apenas como uma idealização weberiana mas como uma necessidade de colocar em ação um campo de tensão tal qual a própria realidade que ambos vivenciavam dividida entre a tradição e a modernidade 448 Ibidem p 18 237 Entretanto o cariz imposto por Holanda aos portugueses é perpassado por sutilezas tais que ocultam mesmo mostrando o papel decisivo dos lusos nas transformações mundiais ocorridas com a expansão ultramarina Na articulação do tipo aventureiro o autor construiu um português plenamente apto a viver sua temporalidade repleta de movimentos decisivos para que se tomasse a dianteira do mundo lançandose na aventura das grandes navegações Ao mesmo tempo se mostrava portador de mais aptidões para tal empreendimento que os tipos trabalhadores naturais da Europa arquitetada por aquele autor e caracterizados positivamente em Raízes O trabalho de explorar as ilhas do Atlântico e os territórios americanos não foi evidentemente tarefa capaz de ser desempenhada com sucesso pelos demais europeus tamanha era sua disposição para o trabalho mas um trabalho de outra natureza planejado meticuloso que não exigia coragem nem audácia talentos que sobejavam no aventureiro português É inegável que a ousadia que Holanda afirma ser peculiar ao português também era uma forma de trabalho considerada a diversidade de papeis existentes no contexto das grandes navegações e no processo colonial O português seria ousado por fazer o que os demais temiam ou evitavam traçando estratégias definindo novas rotas articulando ações arrojadas Ser ousado não implicava em ser preguiçoso embora o autor tenha destacado que a própria sociedade portuguesa em suas leis derrogava a nobreza se vinculada aos chamados ofícios mecânicos Mesmo que a fidalguia como trato social perpassasse todos os estratos haviam discriminações consagradas pelos costumes em relação aos ofícios de mais baixa reputação social o que tornava o trabalho na sua expressão física braçal uma ocupação de desvalidos no seio da sociedade portuguesa Se a alguns pensar o empreendimento dispensava o esforço físico traçando estratégias definindo rotas articulando ações para a grande maioria dos envolvidos o que restava era a labuta fosse no convés das embarcações no cais dos portos nas oficinas ou nas lavouras É preciso destacar que o trabalho como significado de execução de uma obra é próprio do final do século XV449 o que colide com a percepção do autor sobre a existência de uma 449 Segundo Le Goff a palavra trabalho não existia antes do século XI assim como a palavra trabalhador veio a surgir apenas no final do século XVII com o estabelecimento do CapitalismoPor sua vez Hobsbawn esclarece que já nesse período o trabalhador era considerado socialmente inferior um ser ignóbil cuja ocupação tão necessária era desdenhada pelas classes superiores evidenciando a desvalorização social do próprio trabalhador A propósito ver LE GOFF Jacques Para um novo conceito de Idade Média Tempo trabalho e cultura no ocidente Lisboa Editorial Estampa 1979 Ver também HOBSBAWN Eric Os trabalhadores estudo sobre a história do proletariado Rio de Janeiro Paz e Terra 1981 238 suposta ética contra as atividades laborais ditas físicas na sociedade portuguesa desde sua fundação O desprezo pelas atividades braçais aventado pela nobiliarquia do medievo a nosso ver confrontase com o personalismo português no qual um homem se tornava notório pelo próprio esforço Desde que esse não lhe causasse calos nas mãos estaria apto ao recebimento das mercês régias demonstrativo que a tão falada permeabilidade social abordada por Holanda tinha também seus entraves e que a ascensão era vetada para os mais humildes Evidente que o português como homem de aventuras foi utilizado por variados autores na escrita da histórica colonial a exemplo de Varnhagen Abreu Prado e mesmo de Gilberto Freyre ficando restrito ao tempo inicial da colonização O aprofundamento da exploração do território pela coroa portuguesa parece ser um tempo em que os autores já divisavam que os homens que se dispunham a viver na colônia já não tomavam a tarefa como uma aventura mas como uma missão Holanda por sua vez quebrou este paradigma e como exceção construiu um português naturalmente aventureiro para o qual o trabalho comum era elemento social que desvalorizava o indivíduo ao qual recusavam e sequer compreendiam O personalismo que gestou esse tipo valorizador de aventuras por oportuno foi válido nos séculos iniciais da colonização sendo superado pelo próprio movimento do mundo moderno onde o trabalho se tornou elemento substancial no sistema econômico que se impôs do outro lado dos Pirineus e que se alastrou pelo continente atingindo territórios longínquos tal qual o da colônia A ética da aventura ali foi mostrada por Holanda como necessária num primeiro momento para o sucesso da empresa de modo que ficou cristalizada na mentalidade dos seus habitantes numa realidade temerária da qual o Brasil do século XX deveria se desembaraçar sob pena de nunca atingir suas metas de modernização e de progresso A análise de Holanda sobre o não pertencimento do português ao contexto europeu vinculouse em seu texto à separação da Península Ibérica do restante do continente para além de sua histórica constituição pela linha imaginária dos Pirineus O Velho Mundo na retórica de Holanda foi representado pelos países do norte expressão de um europeísmo que inexistia para os ibéricos Enquanto aqueles se caracterizavam por uma significativa 239 homogeneidade cultural os ibéricos se diferenciariam entre si apesar da proximidade geográfica e da formação histórica assemelhada como veremos mais adiante Mas de qual Europa Holanda falava ao retirar de seu meio os ibéricos e mais especificamente os portugueses Na tentativa de desvendar a questão anterior lembremos que essa divisão assumiu expressiva relevância quando da apresentação dos tipos aventureiro e trabalhador localizandose estes no norte europeu e aqueles na Península Ibérica fronteira com o ultramar A despeito da cartografia do norte europeu nos séculos XVI e XVII observamos que Holanda fez poucas referências à França e à Inglaterra principais representantes europeus no colonialismo imposto à América além dos portugueses e espanhóis Entretanto ao se referir aos europeus do norte o autor indicou indubitavelmente os holandeses como os representantes daquela Europa povoada por tipos trabalhadores em oposição aos tipos aventureiros por ele reconhecidos no aquém dos Pirineus450 A França que deveria referenciar o europeísmo aduzido por Holanda parecenos não se adequar perfeitamente aos predicados próprios do tipo trabalhador construído por Holanda posto que antes mesmo que os portugueses explorassem as regiões litorâneas do Brasil os franceses conduziam uma política de entrepostos nas costas brasileira em contato constante com os nativos O estabelecimento de excelentes relações com os naturais induziu os franceses a invadir a região da Baía de Guanabara ali estabelecendo um povoamento que durou mais de uma década e cuja experiência resultou no relato de Jean de Léry451 Outra experiência francesa no Brasil embora de menor duração e intermitente com a primeira foi a da França equinocial que fundou a cidade de São Luís no Maranhão meionorte da colônia A presença francesa na colônia revelou o quão pouco poderia se identificar do tipo trabalhador construído por Holanda naquele povo que cedo se acostumou a ser acolhido nas malocas nativas aceitando as esposas oferecidas pelos anfitriões e adequandose sem 450 A respeito Holanda reporta que O insucesso da experiência holandesa no Brasil é em verdade mais uma justificativa para a opinião hoje corrente entre alguns antropologistas de que os europeus do norte são incompatíveis com as regiões tropicais No índice de assuntos organizado ao final do texto de Raízes do Brasil encontramos apenas uma referência aos europeus do norte que alude especificamente aos holandeses A problemática da colonização dos Países Baixos na região Nordeste do Brasil findou por se tornar relevante no trabalho de Holanda que a utilizou para traçar uma analogia entre ibéricos e europeus Ibdem p 34 e 149 451 LÉRY Jean Viagem à terra do Brasil Belo Horizonte Itatiaia 2007 240 pejo à vida natural dos indígenas452 Tal quais os portugueses os franceses que contrabandeavam livremente paubrasil no litoral encerraram as trocas voluntárias passando a exigir o domínio da terra e do trabalho nativo realizando a profecia tupinambá que antecipava o desejo dos franceses de fixaremse na terra para desrespeitar os costumes nativos e escravizálos da mesma forma que os lusitanos453 Em suas práticas não se vislumbrava a busca de estabilidade a segurança o empenho sem perspectiva de proveito imediato peculiares da ética do trabalhador do norte europeu de Holanda Por outro lado no contato dos franceses e a subseqüente tentativa de colonização no Brasil podem se identificar variadas ações recheadas da audácia e irresponsabilidade típicas do aventureiro ibérico Em relação à Inglaterra o próprio Holanda reconheceu tratarse de um povo aventureiro e pouco laborioso assemelhandose aos portugueses em suas práticas colonizatórias e principalmente escravagistas A correlação entre portugueses e ingleses realizada pelo autor é reveladora as similitudes entre os dois povos pouco industriosos com tendência à indolência e à prodigalidade atributos também reconhecidos pelo autor inglês William Inge cujas idéias foram apropriadas por Holanda para justificar a própria visão454 É preciso destacar que Holanda referiuse não ao inglês que viveu o surto industrial evento que para ele criou uma idéia equivocada em relação ao povo da Inglaterra mas ao inglês anterior à era vitoriana que denominou como típico nãoindustrioso sem senso de economia tal quais seus vizinhos continentais mais próximos Inge por sua vez referirase ao homem do século XIX imerso no que chamou de ociosidade impudica mas que foi considerado por Holanda como um tipo que já ultrapassara os vícios do passado o que revela evidente descompasso entre o contexto tratado pelo historiador inglês em relação à abordagem de Holanda que lançou mão de certas adequações a fim de justificar as suas proposições 452 Cf MARCHANT Alexandre Do escambo à escravidão As relações econômicas de europeus e índios na colonização do Brasil 15001580 São Paulo Companhia editora nacional 1980 p 281 453 A propósito ver DAHER Andrea O Brasil Francês as singularidades da França Equinocial 1612 1615 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007 454 Sobre a questão o autor inglês fez a seguinte observação A indolência é vício que partilhamos com os naturais das terras quentes mas não com qualquer outro povo do Norte da Europa In INGE William Ralph Inglaterra Londres se 1933 p 160 O autor não viu o mesmo atributo nos franceses praticantes da frugalidade parcimoniosa nem nos alemães aos quais julgou portadores de uma diligência infatigável 241 Em nosso entendimento a tipologia criada por Holanda escondeu alguns problemas de cunho histórico Ao intentar distinguir os lusos dos demais europeus a partir de um cariz aventureiro visibilizado ao limite durante o empenho colonial assim como o perfil trabalhador dos países ao norte designadamente dos povos dos Países Baixos Holanda não observou que a política de exploração levada a efeito pelos portugueses se reproduzia nas demais colônias francesas inglesas e flamengas455 sem grandes diferenças Em meados do século XVI os entrepostos eram realidade tanto nas costas africanas quanto na América de norte a sul configurandose como um desdobramento da expansão europeia na tentativa de superação da crise do fim da Idade Média e da questão inerente à formação dos Estados nacionais456 A presença indiscriminada das nações europeias nos movimentos de expansão e as práticas daí decorrentes a nosso ver não encontram semelhança na chamada ética do trabalho construída por Holanda Bem ao contrário detêm todos os pormenores com os quais nosso autor consagrou aos ibéricos determinandoos como um povo de aventuras A peculiaridade da política de expansão europeia nos seiscentos nos leva a entender trataremse todos de aventureiros movidos mais por uma concepção espacial do mundo do que com sua própria temporalidade Não seriam assim o Renascimento o humanismo a busca da segurança ou a consolidação da paz os motores do alargamento do espaço europeu mas a ânsia de ultrapassar fronteiras a partir de modus operandi equivalentes Somente no século XIX consolidado o industrialismo e profundamente modificada a situação sociopolítica e econômica do continente a mentalidade colonialista europeia sofreu algumas modificações Foi o caso da França que mesmo realizando uma política violenta em suas colônias como imperativo da própria prosperidade e da defesa e 455 O termo de uso comum na historiografia brasileira referencia os naturais das Províncias Unidas ou holandeses sendo resgatado dos documentos portugueses relativos ao Brasil nos séculos XVI e XVII conforme esclarecimento de Melo que indica seu largo emprego no ambiente colonial Os flamengos mesmo sem envolvimento nas atividades de exploração de novas terras se estabeleceram em entrepostos no Brasil São Tomé e Príncipe Angola Índia Portuguesa Sri Lanka Formosa Japão e Indonésia entregando sua administração a companhias especializadas restando ao Estado holandês apenas a responsabilidade nominal da empreitada In MELO José Antônio Gonsalves de Tempo dos flamengos Influência da ocupação holandesa na vida e cultura do Norte do Brasil Recife Secretaria de educação e cultura 1978 p 34 456 Cf VAN DULMEN Richard Los inícios de La Europa Moderna 15601648 México Siglo vintiuno editores 1984 p 746 Ver também RIBEIRO Darcy As Américas e a civilização Petrópolis Vozes 1979 p 62 242 preservação de sua ordem social457 assumiu um forte papel ideológico em nome dos ideais da revolução de 1789 por efeito da libertação das nações da América Latina e perante uma Inglaterra que não capitulou de seu papel militar comercial e industrial tal qual Portugal A participação dos lusos na recolonização da África no século XIX a nosso ver mais os aproximou da mentalidade colonial europeia e dos interesses comuns das potências do Velho Mundo Na ocasião a ética da aventura parece ter se fundido com a do trabalho embora em Holanda a primeira tenha se mantido cristalizada no Brasil 72 Semeadores dos verdes campos da América Vencido o contraponto entre portugueses e europeus Holanda se dedicou a analisar a singularidade de Portugal conquanto Estado colonizador A unidade proporcionada pela historicidade da Península perante o restante da Europa tratada pelo autor nos termos iniciais de sua obra pareceu perder dinâmica quando defrontada com o ambiente colonial Em tal contexto Holanda buscou dar sentido às peculiaridades portuguesas indicadas ao longo de seu texto mostrando como as mesmas se revelaram na prática da colonização de enorme espaço ocupado por populações nativas Como o português afeito à aventura incapaz de gerenciar a própria vida social e avesso ao trabalho obteve sucesso no empreendimento colonial Haveria diferenças entre os ibéricos considerados pouco europeus A partir dessas questões o historiador passou a burilar o português por ele construído no sentido de mais compreendêlo e assim julgar o que restou de sua herança a um Brasil aferrado àquela mentalidade apesar de decorrido mais de um século de separação Em novo cenário o português teve que se adaptar a demonstrar sua profunda capacidade de enfrentamento da realidade o que revela o quanto Holanda se debruçou no trabalho de Freyre compartilhando muitas de suas proposições A maleabilidade portuguesa tornouse assim no texto de Holanda uma qualidade imprescindível para que o mesmo assumisse 457 À época Ernest Renan defendia a idéia de que Uma nação que não coloniza está irremediavelmente condenada ao socialismo ou à guerra do rico contra o pobre A conquista de um país de raça in ferior por parte de uma raça superior que se estabelece nele para governálo nada tem de estranho A Inglaterra pratica este tipo de colonização na Índia com grande proveito para a mesma para a humanidade em geral e para a própria Índia Do mesmo modo como devem ser criticadas as conquistas entre raças iguais a regeneração das raças inferiores ou abastardadas por parte das raças superiores se situa pelo contrário dentro da ordem providencial da humanidade Regere império populos eis nossa vocação Cf ARON Raymond Dimensões da consciência histórica São Paulo Editora da UNESP 1994 p 45 243 em definitivo o desafio da conquista das terras americanas destinandose a colonizálas Observese que aquele autor mesmo tratando da mentalidade portuguesa não se reportou a temores impossibilidades adversidades da época do descobrimento situações certamente existentes e enfrentadas pelos que se destinavam a integrar a aventura Em seus escritos a colônia surgiu como uma miragem um fato novo a ser recepcionado pela população prontamente disposta a vencer o desafio sem maiores preocupações com o porvir por ser de sua natureza a experiência arriscada e a imprevidência em sua realização O português de Holanda parecia não ter consciência dos riscos da aventura pois toda sua vida seria dedicada às mesmas sem apegos à família a amores à própria terra onde nascera Seria assim um homem sem vínculos mostrado como avesso ao meio social embora contraditoriamente nele integrado num coletivo de vontades de aventurarse pelo mundo de descobrilo para dele se apossar Num ambiente totalmente novo a exibir diferente realidade o aventureiro se fez outro submetendose à sedentária vida rural rechaçada em Portugal posto que o cais e as embarcações ofertassem melhores condições que a lide campestre para seu instinto aventureiro embora o ambiente colonial revelasse um cenário oposto aos seus propósitos existenciais Vitimado pelo caráter inativo nascido da mentalidade que tomava o trabalho físico como desonra o português de Holanda desejava a riqueza do Novo Mundo como um fruto maduro a pender de galhos firmes em árvore de fácil colheita contudo não era esse o caso A riqueza que buscava ali se escondia em florestas inacessíveis e adentrar nas mesmas significava suor e desgaste físico termos fora do padrão português Sob essa configuração como esse português venceu a ética da aventura para realizar a colônia Para aquele historiador a imprevidência fora a marca dos lusos no empreendimento colonial Chancelado por este modo de ser lançavase ao que julgava dever ser feito sem preocuparse com os meios e por isso mesmo exibia franco caráter plástico adaptando às mais distintas situações por não se preocupar em prevêlas Assim a aventura seria a própria realização do caráter português e sua plasticidade não decorreria de um condicionante geográfico mas da própria formação histórica que sedimentara uma mentalidade na qual aquela na acepção do que está por vir458 definira as feições do elemento português 458 O historiador fez questão de alertar para a expressão na primeira edição de Raízes do Brasil dandolhe o sentido do porvir do possível de acontecer o que a nosso ver retirou do termo certo ranço pejorativo Com 244 Aí se destacam as diferentes visões de Freyre e Holanda pois se para o primeiro o português exibiu uma plasticidade social e cosmopolitismo únicos mostrandose perfeitamente capaz de conviver e coabitar com outras raças graças à formação social de Portugal integrandose plenamente em outra cultura sem prejuízo da própria vemos que Holanda não comungou da mesma idéia Convicto do espírito aventureiro do lusitano Holanda encontrou nele a justificativa para a adaptabilidade portuguesa às condições mais ásperas ou resistentes embora a partir da recriação dos lugares de sua procedência459 A versatilidade portuguesa só encontrava esteio ante a recriação de seu próprio lugar na construção de outro Portugal de uma nova Lusitânia Não obstante esta recriação não pode ser tomada ao pé da letra em decorrência do caráter plástico do português Tratavase mais de adaptações nas quais os lusos somavam elementos de sua cultura com o que preexistia no lugar verdadeiros monumentos da cultura lusitana impregnados indelevelmente da vida material de uma América dita portuguesa Ao recriar a própria cultura na colônia o português Holandino não perdeu seu cariz aventureiro bem ao contrário mostrouse aberto ao futuro disposto a enfrentálo fosse como fosse Não teria sido pois um mero adepto da aventura amante da precariedade e afeito a expedientes mas um homem sem preocupações com o agora cujo nível de adaptabilidade decorreria pois de seu senso de futuro o que o tornaria desapegado do próprio presente Na colônia competiulhe fazer uso de tais atributos mentais frente a realidade ali encontrada encarada como a renovação da própria aventura outros níveis aos quais necessitava revelar sem maiores imposições Desse modo a recriação de Portugal não prescindia da imposição do mesmo padrão mas de uma adaptação entre o pré existente e o encontrado num jogo de combinações despido de regras a expressar a maleabilidade lusa Esta para Holanda seria uma fraqueza que os fizera fortes Da ausência de planejamento do colonizador da negação coletiva à organização política nasceu um empreendimento realizado ao sabor das conveniências onde não houvera interesse pelo fazer mas pelo resultado dada sua incompreensão em relação à própria ética tal sentido o português de Holanda mais que um especulador de novas experiências foi também um dinamizador cujo empenho resultou em vetustas mudanças e progresso social do mundo moderno 459 Com essa abordagem Holanda se distanciou da perspectiva de Gilberto Freyre não reconhecendo o caráter cosmopolita do português Lembremos que em Freyre a plasticidade dos lusos originavase em seu contato com diversos outros povos dentro e fora de seu território o que se refletia na franca recepção dos mesmos a outras terras e outras culturas Holanda por sua vez considera a mesma plasticidade a partir da não imposição da própria cultura embora permeada pela adaptação e pela interpenetração de elementos de uma com outra 245 do trabalho Para aquele intelectual o português não planejou em todas as minudências a implantação dos vastos campos coloniais onde a cana seria transformada em açúcar sendo eles apenas a multiplicação do modelo já existente na Madeira que por sua vez fora tomado da bacia do Mediterrâneo Em decorrência não existiram maiores preocupações com a adaptabilidade da cultura canavieira ao solo nem com as condições a longo prazo do mesmo danificado em sua fertilidade pela baixa qualidade técnica da exploração pela ausência de investimentos e pela ganância dos exploradores Seu primado marcado pela desorganização também foi solitário desgarrado do grupo antipolítico e antimoderno Ao nomeálo como um semeador o historiador patenteou um português que se adaptou ao máximo às oportunidades dadas pela natureza encontrada na colônia por ser capaz de renunciar às normas imperativas e absolutas cedendo sempre quando a oportunidade lhe fora conveniente a assim agir Jogara a semente da qual cuidaria a chuva e sol tão somente e seus frutos seriam colhidos460 Se para fazêlo tivesse que desmatar destocar adubar e lavrar o solo jamais teria lançado a semente pois o empenho físico contrariava sua índole 460 A análise das metáforas existentes na obra de Holanda especialmente do português como um semeador revelam ser aquela figura originária da obra de Padre Antônio Vieira da qual teria sido apropriada por Holanda de modo a compor seu tipo português A metáfora da semeadura também pode ser encontrada na chamada certidão de nascimento do Brasil a famosa carta de Pero Vaz de Caminha na qual o escritor se referia à semente como a ação salvacionista e civilizatória que deveria ser empreendida pela coroa portuguesa a favor dos nativos americanos Não obstante alguns autores identificam tal metáfora como originária da obra de Paulo Prado onde o português semeador teria forte conotação lúbrica A semente lançada seria ali desvinculada de teor agrário para se assumir como um gene de procriação de geração de uma nova população Em Gilberto Freyre também é possível encontrar o português representado como um reprodutor a sedimentar as relações entre a casa grande e a senzala a partir de sua semente originando uma população mestiça e valorosamente original A respeito ver DE DECCA Edgar Salvadori Deciframe ou te devoro As metáforas em Raízes do Brasil Rio de Janeiro Editora da UERJ 2008 Ver também CAMPOS Haroldo O Barroco e a identidade cultural brasileira Vieira Venera Vênus In JUNQUEIRA FILHO Luís Carlos Uchoa Org Perturbador mundo novo São Paulo Escuta 1994 e FINAZZIAGRÓ Ettore A trama e o texto história com figuras In PESAVENTO Sandra Jatahy Um historiador nas fronteiras O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda Belo Horizonte Editora da UFMG 2005 A nosso ver a figura do semeador não tem o teor genésico que alguns autores quiseram imprimir lhe posto não haver maiores preocupações por parte de Holanda com a questão do cruzamento racial ou de quaisquer outras abordagens sobre a formação da população no contexto relacional em Raízes do Brasil O que o autor intentou mostrar foi a formação de todo o universo histórico do homem brasileiro do qual o mesmo fez parte e do qual resultou universo este de criação única e exclusiva dos portugueses sem coadjuvantes de outras raças como os existentes em Prado e em Freyre A semente como instrumento formador o português seria a origem da árvore e os rizomas a cultura portuguesa em todas as suas facetas sua base a demonstrar desde o título da obra que Holanda buscava evidenciar o quanto de Portugal estava incrustado no Brasil formando suas raízes título da obra A metáfora também faz alusão à origem agrária do Brasil tendo sido utilizada também por Manoel Bomfim 246 Assim teria sido o empreendimento colonial português na escrita de Holanda marcado por pequenos e individuais esforços sem vontade para devassar o sertão pois no litoral já se tirava riquezas de um mundo francamente rural isolado onde o que valia era o esforço subjetivo que resultava em prestígio pessoal Com tal fim investiuse na abertura dos campos na semeadura em larga escala das mudas de cana posteriormente transformadas em mercadoria preciosa pelas mãos nodosas e pelas costas retalhadas de escravos Suas cidades meras extensões da vida rural não foram erguidas em oposição à natureza Bem ao contrário a topografia urbana em nada ou pouco alterara o que ali préexistira e suas ruas toscas e sinuosas exibiam uma adaptação à composição original da paisagem Para Holanda tais cidades não foram produzidas mentalmente parecendo brotar do panorama ao qual se enlaçaram numa expressão do desleixo própria da mentalidade lusa desapegada das necessidades do presente cariz que o autor se empenhou em demonstrar Para o colonizador as cidades seriam apenas centros de administração da própria coroa pois o coletivo representado pelo urbano contrariava sua mentalidade avessa à coletividade à vida social Seu mundo era o latifúndio espaço onde se constituía a solidariedade os laços comunais onde o Estado não existia e a família tomava foros de unidade básica da administração política A cidade seria um instrumento de dominação que poderia desequilibrar o caráter autárquico dos domínios rurais onde sobejavam os valores aristocráticos onde o personalismo vicejava em plenitude A repulsa ao trabalho ação mesquinha e estúpida para o aventureiro fez dos portugueses adeptos da preação indígena e do mercadejar de africanos sobre os quais a disposição de mando assomou ao extremo tornandoos terríveis senhores maus patrões que muito cobravam e pouco sabiam fazer Ali a ética da aventura parece ter se tornado também uma ética do trabalho embora um trabalho realizado de forma distinta pois não se poderia negar a qualidade da tarefa realizada pelos portugueses em suas experiências além das próprias fronteiras Na conjugação dos valores que os distinguiram dos europeus e mais especificamente dos povos dos países baixos fracassados nos trópicos o português foi mostrado em sucesso graças àqueles predicados Em seu gosto pela aventura na aversão à vida social o português semeador construiu um novo lugar adaptandose sem imposições reformando sem muito alterar transformando sem transmutar Teria sido isso possível 247 A construção levada a efeito por Holanda parece negacear todas as oposições gestadas pela ação colonizadora Ele não referenciou o impacto causado sobre as populações nativas com a chegada sempre crescente de grande número de pessoas e a plasticidade portuguesa esmerada em sua retórica tratou de omitir os conflitos oriundos de tal presença A prática de preação a destruição de pequenas roças os descimentos as expulsões os estupros a tomada de terras inexistiram em sua narrativa fazendo crer ter sido a colonização portuguesa despida de maiores problemas que não aqueles relacionados ao português em si e para si na realização de mais uma aventura mesclandose com outros povos com uma naturalidade desabusada Holanda também passou ao largo ao construir seu português na América da questão negra e dos dissabores da escravidão É certo que seu intento não seria investigar a formação da sociedade brasileira em si mas de uma sociedade específica uma sociedade onde o principal e único ator teria sido o português de forma a revelar o quanto do mesmo restara Ao tempo em que negaceou a participação dos demais povos envolvidos nessa formação social diluindo suas práticas como se fossem unas Holanda ampliou seu foco de imagem relegando temas mais próximos para fixar com nitidez outros alheios à realidade investigada Na América ibérica dividida entre portugueses e espanhóis o historiador paulista foi definir a singularidade portuguesa criando um povo de cariz único distinto de todos os demais e homogêneo em si mesmo O semeador português já não tinha as mesmas qualidades que o espanhol de quem se distinguiu por incontáveis razões Destacado como emérito construtor de núcleos de povoamento estáveis e bem ordenados o espanhol assegurou seu domínio pela força ao contrário do português plástico que mais se adaptou que se impôs O estabelecimento dos domínios lusos predominantemente rurais foi marca diferencial entre portugueses e espanhóis nos escritos de Holanda Enquanto os primeiros se dedicaram convenientemente à exploração agrária os segundos expressaram uma fúria centralizadora461 uma vontade de mandar maior que a dos portugueses Para o autor em seu cariz aventureiro os lusos teriam sempre os olhos voltados para o futuro daí sua irreprimível vontade de sempre partir Mesmo aqueles estabelecidos em latifúndios e com vasta prole voltavamse sempre para o mar revelando o caráter transoceânico já mostrado por Abreu e reproduzido parcialmente por Holanda 461 O termo é de autoria de Holanda constando à página 52 de Raízes do Brasil 248 Aos ladrilhadores espanhóis competia ficar traçando cidades regulares com o mesmo esquadro que desenhavam seu futuro na nova terra e cujo traçado era um acinte à própria natureza Foram aventureiros na Península mas na América assumiramse como administradores a reprimir qualquer ato de vontade além da própria sem comedimento e prudência Enquanto o português recriava a Nova Lusitânia lançando mão de adaptações sem trabalho sem planejamento sem método o espanhol assegurava seu predomínio a partir do pleno domínio dos eventos da modificação da ordem natural da imposição da razão pura e impessoal No plano dos sentidos por outro lado Holanda apresentou o calculista espanhol extasiado com as descobertas da nova terra cuja descrição foi imersa num tom de maravilhas e mistérios A criação de mitos oriunda do medievo encontrou guarida na imaginação dos castelhanos e a cartografia fantástica promovida por seus navegadores recriou o paraíso terreal marcado por vegetação luxuriante primavera constante rouxinóis cantantes e gente simples e inocente O deslumbramento sem medida dos espanhóis apareceu em contraste com a noção mais nítida das limitações terrestres e humanas própria dos lusos consoante o historiador A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantástica do Renascimento achase realmente em nítida desproporção com a multíplice atividade de seus navegadores Sensíveis muito embora às louçanias e gentilezas do mundo remoto que a eles se vai desvendando pode dizerse no entanto que ao menos no caso do Brasil escassamente contribuíram para a formação dos chamados mitos da conquista A atmosfera mágica de que se envolvem para o europeu desde o começo as novas terras descobertas parece assim rarefazerse à medida que penetramos a América lusitana462 Nesses termos surgiu nos escritos de Holanda um português comedido e prudente que realizara navegação de cabotagem nas costas da África e que evitara adentrarse nos sertões americanos preferindolhe o litoral mais real e imediato Sua indiferença ao exotismo das novas terras pautavase no pragmatismo que o tornava demasiado realista e por isso mesmo pouco audacioso se comparado aos vizinhos que exacerbavam na fantasia As diferenças que separaram os ibéricos visibilizadas quando de sua presença na América foram justificadas alusivamente por Holanda ao apontar alguns meandros do 462 HOLANDA Sérgio Buarque de Visão do paraíso os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil São Paulo Companhia das letras 2010 p 43 249 desenvolvimento daquelas sociedades bem como no desdobramento alcançado durante a colonização Os portugueses ao atingirem uma unificação política concreta e precoce conseguiram certa unidade étnica463 o que findou por se refletir em relativo afrouxamento das tensões internas daquela sociedade Tal detalhe para Holanda explicaria o natural descaso para com a realidade não a sujeitando a leis rígidas aceitandoa sem grandes embates por já se sentirem senhores da própria história domesticada aplainada na qual as tradições seriam mais relevantes que a imaginação Diferentemente a unidade espanhola foi tardia e difícil não tendo se completado à época da colonização e enfrentando mesmo em nossos dias sérias ameaças de desintegração o que teria exigido uma administração centralizadora disposta a tudo controlar A realidade da multiplicidade de identidades existentes na Espanha foi recepcionada por Holanda como um motivo para a própria fragmentação da América hispânica ao contrário da América portuguesa que se manteve intacta graças à identidade monolítica dos lusos Para Sérgio Buarque de Holanda enquanto os portugueses experimentaram os trópicos e todas as suas naturais diferenças tendo que se adaptar aos mesmos os espanhóis vivenciaram uma realidade geográfica distinta de maiores altitudes e clima ameno o que lhes permitiu a reprodução da própria Espanha Em cidades ladrilhadas erguidas como cenários de um Estado regulador disposto a controlar não apenas as onças de prata extraídas das minas bem como as sociedades nativas mais bem estruturadas e desenvolvidas que as encontradas pelos portugueses os espanhóis implantaram seu catolicismo inquisitorial e intolerante realizado com toda sua severidade de modo a evitar misturas étnicas e culturais tal qual se dera abertamente no Brasil português464 O historiador paulista apesar de se esforçar em demonstrar as diferenças havidas ente os ibéricos em si pontuandoas na intenção de ressaltar as diferenças internas da própria América dita latina em decorrência de suas distintas colonizações entretanto não se deixou fisgar pelo passado Efetivamente para ele o passado ficara para trás e seu interesse 463 Alguns anos mais tarde em estudo sobre as fronteiras étnicas existentes na sociedade portuguesa Sérgio Buarque de Holanda reconheceria na formação daquela sociedade o cruzamento das culturas muçulmana hebraica africana e ibérica nulificando a afirmação anterior sobre a pretensa unidade étnica que diferenciava portugueses e espanhóis In HOLANDA Sérgio Buarque de Elementos formadores da sociedade portuguesa à época dos descobrimentos Dissertação de mestrado Escola Livre de Sociologia e Política São Paulo 1958 464 Sobre a questão ver o trabalho de FEITLER Bruno Dos usos políticos do Santo Ofício no Atlântico O Período Filipino In Mello e Souza Laura de FURTADO Júnia Ferreira BICALHO Maria Fernanda Orgs O governo dos povos São Paulo Alameda 2009 250 evidenciava uma preocupação com o futuro da nação imersa em nuvens sombrias que antecediam o Estado Novo e que o historiador já se preparava para enfrentar Os portugueses em Holanda nada mais foram que povos formadores raízes enterradas na terra talvez dispersas em galhos ambos a desempenhar um papel fulcral no robustecimento da planta Ele não os enalteceu tecendo odes de admiração como o fizeram outros historiadores tampouco fez pouco caso de sua atuação como agentes decisivos na formação nacional Para Holanda o que o interessava eram os frutos Conclusão da Parte III Necessário destacar que os olhares distanciados desses dois intelectuais contemporâneos se refletiram na produção historiográfica brasileira consecutânea abrindo uma esteira de disputas ideológicas entre as duas partes do país iniciada com a crise da oligarquia brasileira e a transferência do poder do Nordeste agropecuário para o Sudeste urbano Gilberto Freyre como integrante dessa oligarquia decadente enxergou o progresso e a industrialização do Brasil com desconfiança e em sua obra fez um grande elogio ao passado defendendo uma retomada daqueles valores que estavam sendo superados pelo aprofundamento do processo de urbanização e industrialização nacional Freyre conclamava pela sobrevivência dessa cultura tão arraigada em seu Nordeste berço mãe da experiência lusa em oposição aos modernistas paulistas Seu Manifesto Regionalista465 exprimiu um grito pela manutenção de um passado congelado nas paredes derruídas das velhas casas patriarcais abandonadas pelas famílias cada vez mais segmentadas para viverem nos sobrados urbanos crescentemente influenciados pela cultura inglesa que se espraiava pelo Recife 466 465 Tratase de texto escrito em 1926 a propósito da realização do Congresso Regionalista embora só publicado em 1952 Nele Freyre fala à consciência da geração de uma mocidade atônita diante do holocausto de sangue da cultura colonial e da necessidade de lutar contra o furor neófilo e as idéias de progresso que cegavam a geração mais velha A análise desse texto foi realizada por DIMAS Antônio Manifesto guloso Introdução ao Manifesto regionalista Recife Massangana 1996 Ver também TELES G M Vanguarda europeia e modernismo brasileiro apresentação e crítica dos principais movimentos vanguardistas Petrópolis Vozes 1977 466 A propósito ver do autor Sobrados Mocambos Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano Rio de Janeiro José Olympio 1977 e Ingleses no Brasil aspectos da influência britânica sobre a vida a paisagem e a cultura do Brasil Rio de Janeiro José Olympio 1977 Apesar de Freyre asseverar sua anglofilia defendia a todo custo a cultura lusobrasileira A respeito ver PALLARESBRUKE Maria Lúcia Garcia Gilberto Freyre um vitoriano dos trópicos São Paulo UNESP 2005 Sobre a presença inglesa no Nordeste ver MELLO José Antonio Gonçalves de Ingleses em 251 Por sua vez Sérgio Buarque de Holanda buscava uma ruptura com o passado pois projetava no futuro o progresso a mudança o avanço da sociedade avanço este em plena prática nas terras paulistas financiado não apenas pelos capitais provenientes dos lucros com as exportações do café mas também subsidiado pelo governo de Getúlio Vargas contra o qual se opunha Com uma diferença apenas de três anos entre as publicações o texto de Holanda repercutiu as teses esposadas por Freyre embora sob um outro enfoque Não obstante vale salientar ter o texto de Holanda sofrido constantes modificações nas variadas edições conforme já alertara Pesavento ao analisar as reconfigurações efetivadas pelo autor no corpo de sua obra467 o que pode ser apontado como um impeditivo para que se reconheça o pensamento original do autor em todas as suas nuances Freyre por sua vez acrescentou ao texto original variados prefácios como se tentasse a cada edição clarificar seu pensamento ou responder à crítica crescente após os anos 40 período em que o pensamento marxista inundou o Brasil A despeito de aqueles dois intelectuais pensarem o Brasil por distintos enfoques e mesmo estando em díspares lugares sociais em ambos reverberou o reconhecimento a Portugal como elemento diferenciado e superior da identidade brasileira Por outro lado as considerações tecidas por ambos os autores mesmo comuns à primeira vista detêm algumas especificidades a ser esclarecidas É o caso daqueles autores considerarem Portugal como um país à parte do contexto europeu A construção de Holanda tomou como base uma divisão IbériaEuropa na qual o Portugal ibérico não seria nunca um Portugal europeu ligado ao Velho Mundo apenas pela sua localização geográfica e mesmo assim seccionado pela divisão promovida pelos Pirineus Em sua formação histórica o português e por extensão os espanhóis em muito se distanciavam dos europeus centrais erguendose como um povo distinto marcado por especificidades que lhe davam um caráter próprio único Freyre por sua vez viu em Portugal resquícios culturais dos dois continentes e até mesmo de três franqueados pelo Pernambuco história do cemitério britânico do Recife e da participação de ingleses e outros estrangeiros na vida e na cultura de Pernambuco no período de 1813 a 1909 Recife Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano 1972 467 PESAVENTO Sandra Jatahy Cartografias do tempo palimpsestos na escrita da história In Um historiador nas fronteiras O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda Belo Horizonte Editora da UFMG 2005 p 51 252 contato proporcionado pela própria geografia Se no autor paulista a geografia separava Portugal do Velho Mundo fechandoo em si mesmo no pernambucano era a localização geográfica que lhe franqueava o mundo enriquecendo sua cultura o que permite vislumbrar as mudanças de percepção da intelectualidade brasileira a respeito da própria Europa como centro do mundo ocidental A perspectiva dos dois historiadores é deveras interessante por revelar o total afastamento da cultura histórica dos anos trinta das antigas pretensões do IHGB que apresentava Portugal como um elo a unir o Brasil ao Velho Mundo A negação desse papel a Portugal descaracterizado como simbólico representante europeu poderia ter sido tomada como minoração dos lusos no concerto geral das nações do Velho Mundo paradigma do modelo civilizacional acalentado pelas elites nacionais Aos novos tempos tal modelo já não apresentava melhores serventias ao Brasil fato repercutido na produção historiográfica de então que ao contrário da produzida no Oitocento procurava encontrar uma identidade para uma nação já existente enquanto os ihagagebeanos queriam definir o projeto da nação por eles pretendida Na produção dessa identidade nacional os dois historiadores enxergaram reconheceram e assumiram a presença portuguesa como o lastro necessário à formação da sociedade brasileira nela estando amalgamada até o século XX Para Freyre três raças formaram o Brasil e seu estudosíntese explorou as particularidades e contribuições de portugueses negros e índios não obstante o autor reconhecer o papel prevalecente dos portugueses sedimentado em todos os recantos do engenho assim como na rotina da família patriarcal peçachave na composição civilizacional Sua tese corajosa rompeu com o estigma da mestiçagem nacional valorizandoa ao tempo em que transformou a experiência portuguesa em grande êxito Ao reivindicar para a sociedade colonial nordestina e escravocrata o papel de matriz fundamental da cultura brasileira Freyre teve que transformar a escravidão em fenômeno doméstico e cultural minimizando seu cariz e consequente impacto Com isso maximizou o papel dos portugueses na formação do Brasil ocasionando questões transversais tais como a pretensa harmonia social a acobertar o racismo a ausência de conflitos e de desigualdades sociais Por outro lado seu discurso referendou o Nordeste decadente tanto econômica quanto politicamente como espaço autêntico da formação nacional o que veio a acentuar as diferenças regionais já existentes face ao Sudeste urbano e capitalista 253 Holanda por sua vez fixou o português conquanto principal senão único lastro da sociedade brasileira pouco referenciando os demais povos como se os mesmos em nada tivessem contribuído na composição da identidade nacional Tal perspectiva acentuou novas questões no concernente à dita identidade ao se considerar que tal ausência tenha sido usada pelo autor como de somenos na formação nacional468 A despeito de o intelectual paulista ter reconhecido a manutenção do cariz português transplantado para a vida nacional argumentando pela necessidade de extirpação do mesmo ele não o considerou como preponderantemente negativo como defendem alguns autores Holanda na verdade propunha uma renovação da mentalidade brasileira como um impulso necessário para se assumir como específico para crescer como independente para traçar seu próprio destino livrandose de um passado que parecia durar para sempre Para ele seriam os brasileiros uma metamorfose do português desterrados em sua própria terra a demonstrar que Holanda compreendia a colônia como uma extensão de Portugal O que havia de estranho nessa composição era a constelação de valores de referências culturais oriundas de um meio diferente de um processo histórico distinto e que precisava ser sobrepujada A imbricação de figuras desse modo enfatiza a retórica de Holanda como marcada por certa ambiguidade pelo reconhecimento do outro quase como uma extensão do próprio eu e expressando uma dificuldade de vêlo como diferente É certo que a fluidez e a indefinição em termos políticos e históricos da diferença entre a antiga metrópole e o Brasil remontavam ao século passado no contexto da produção dos discursos de legitimação da nação emancipada revelandose no discurso histórico de Holanda Não obstante no momento em que aquele autor reconhecera ser a carga cultural portuguesa uma criação ádvena ele assumiu o discurso da irmandade ao formatar um cenário de criação do Brasil pelos portugueses Em Freyre tal irmandade é tão íntima a ponto de se reconhecer o português como uma extensão do Brasil Sua retórica não é propriamente de alteridade pois ele fala de um outro mas de um outro que estava plenamente introjetado no tecido social brasileiro que 468 Holanda viu a mestiçagem como influência formadora embora não fosse capaz de alterar o traço luso essencial Antes porém exacerbaria os defeitos e diminuiria as virtudes acentuando o afetivo o irracional o passional ao tempo que estagnando ou mesmo atrofiando as qualidades ordenadoras disciplinizado ras racionalizadoras peculiaridades que o autor considerava como imprescindíveis a uma população em vias de se organizar politicamente Ibdem p 31 254 não havia como vêlo em suas diferenças Em Freyre o português não era um povo que ficara no passado do Brasil personagem fugidio de sua história Bem ao contrário ele estava presente em todas as casas nas pessoas na linguagem nos costumes nos ditos e não ditos de um Brasil vintista há mais de um século afastado politicamente de Portugal embora continuasse entrelaçado em sua alma As perspectivas de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda evidenciam até que ponto os discursos sobre a identidade nacional no Brasil tiveram inevitavelmente uma dimensão política e regional A questão do papel atribuído nesses discursos aos portugueses tem muito menos relação com os eventuais traumas provocados pela independência ou com pretensas implicações póscoloniais do que com o lento e mormente conflituoso processo de estruturação da sociedade brasileira 255 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES A Retórica da alteridade realizada pelos historiadores abordados neste trabalho cada um ao seu modo é reveladora do quanto a presença portuguesa no Brasil se tornou alvo de diferentes discursos no cerne da produção histórica nacional Se em alguns momentos tais formações discursivas demonstram certa similitude em outros foram perpassadas por relativo distanciamento ou acentuadas diferenças revelando o quanto o pensamento de um só tempo bem pode ser diacrônico contraditório original O levantamento dos escritos dos historiadores aqui elencados tem uma expansão temporal que conta um século de produção historiográfica no Brasil segmentada em quatro principais formações discursivas469 das quais as três primeiras podem ser identificadas na produção desses autores Esses ofereceram à sua geração e à própria nação como expressão da experiência social brasileira distintos discursos sobre o país e sua formação acentuando ou não a presença portuguesa como elemento prezado e indispensável nesta arquitetura Tal fração discursiva objeto de nossa investigação se destaca em sua manifesta flutuação referendada mais pelas questões nacionais do que pelo movimento de aproximação ou 469 Consoante os estudos sobre a produção historiográfica nacional especificamente sobre os estudos que tiveram o Brasil como objeto a mesma se organiza a partir de quatro formações discursivas sejam O discurso das descobertas no qual o Brasil foi produzido como o Outro da Europa de Portugal da civilização O discurso fundador onde o Brasil passou a ser produzido como nação a escrever sobre si a construir sua identidade nacional seja em sua versão romântica ou em versão positivista e naturalista O discurso nacionalpopular onde se repôs a questão da nação e sua identidade em conexão com a questão da produção de um povo civilizado cidadão e dotado de uma cultura moderna e racionalizada seja em sua versão fascista liberal ou marxista e por fim o discurso da desconstrução onde a historiografia se preocupou e se preocupa com a desconstrução dos mitos e marcos que fundaram uma identidade para o país e criaram uma dada imagem de seu passado 256 distanciamento entre os dois países Nos tempos propostos como marcos metodológicos do presente trabalho podese observar a flutuação desses discursos Nos primeiros tempos nos quais se formou a própria historiografia nacional aos quais denominamos de construção da nação nos deparamos com retóricas baseadas na fraternidade sem a qual parecia não ser possível a construção da própria história do período A história da pátria nasceu assim vinculada indelevelmente a Portugal sem impasses nem conflitos a expressar a própria genealogia da nação Nesta o Brasil é dito como dádiva da Europa do Portugal famoso dos séculos XVI e XVII O descobrimento português representou pois a inauguração de nossa história o pano de boca para as cenas que doravante vieram a existir já que não se concebia uma história nacional anterior à presença européia em terras da América As grandes navegações e a chamada história universal como história específica de algumas nações do continente europeu tornaram se quase a expressão genuína de uma préhistória brasileira na qual as comunidades nativas descritas em suas singularidades assumiram um papel francamente nulo no sentido que se queria dar à nação A identidade nacional construída nesse contexto se constituiu quase que exclusivamente pela inserção no mundo ocidental e cristão no qual o Brasil seria uma extensão do Velho Mundo um outro da própria Europa Mas não um outro marcado pelas diferenças bem ao contrário Um outro que reproduzia em si todas as virtudes que integralizava o modelo social e administrativo vigente nas sociedades europeias já que o cariz mais destacado da Europa o influxo civilizatório representava nessa historiografia o aporte mais valorativo de um Brasil que se criava como autônomo porém em consonância com seu modelo primeiro de civilidade Portugal Destarte Portugal emergiu nessa narrativa como o receptáculo da civilização berço dos grandes herois homens audazes que dominaram o pavor dos mares e que subjugaram a precariedade técnica de uma época para com o ardil e a valentia que lhes eram característicos desvendar ao mundo novos espaços neles recriando a própria Europa Católicos audazes que exterminaram a barbárie dos campos americanos e implantaram o temor a Deus e a submissão à santa igreja transformando hereges e infiéis em afáveis súditos de uma monarquia formada por espíritos ilustres homens de caráter que amavam o Brasil 257 A retórica bem lapidada de tal período que salientava ao extremo a irmandade como um laço a unir Portugal e Brasil indefinidamente enredados pelo seu passado comum teve como expoente a tese central de Francisco Adolpho de Varnhagen apoiada na proposta de Carl Friedrich Philipp Von Martius Gestada no período monárquico além de financiada pelo próprio imperador natural que a cultura historiográfica do período expressasse um vínculo com Portugal e os portugueses considerandose os laços parentais existentes entre as casas de Bragança nos dois lados do Atlântico O discurso vanhageniano foi inegavelmente o discurso inaugural de uma identidade nacional dentro de um paradigma romântico embora mesclado por muitas das proposituras existentes na chamada historiografia lusobrasileira produzida pelos cronistas coloniais e que antecedeu a independência nacional A história escrita sob tal enfoque para atingir os fins a que se propunha escamoteou o crescente desacerto entre brasileiros e portugueses cujo alargado espaço político ocupado pelos últimos no império brasileiro ensejava uma negativa apreciação dos mesmos e por extensão um desejo de mudança do quadro que deveria ser ampliado pela ascensão de certos setores da sociedade em plena mutação Mesmo que essa fosse a voz das ruas ou de apenas uma fração da elite política nacional a mesma não encontrava respaldo no poderoso IHGB voz ecoante de uma trono que tentava a todo custo perpetuar os laços entre Portugal e Brasil e que constituía o lugar social do chamado pai da história do Brasil Seu discurso oficial monocórdio erudito ao extremo dirigido à elite intelectual de sua época e consequentemente consumido por um público restrito teve que se deparar com o som mais poderoso que provinha dos republicanos ferrenhos adversários do sistema monárquico que lhe respaldava Em certo sentido a república foi o ápice da independência posto representar o decisivo corte com o passado colonial distendido no trono bragantino Aos novos tempos aqui chamados de mudança sobrevieram discursos históricos rigorosamente elaborados com a finalidade última de mostrar que o passado passara ficara perdido na história e que de pouco valeria Dentre os historiadores que perfizeram nossa investigação impossível não dar o devido destaque a José Capistrano de Abreu tanto pela inovação encetada na forma de pensar o fazer historiográfico bem como no seu esforço em redimensionar a própria abordagem da história brasileira Autêntico representante de um período ambíguo na história política 258 nacional a produção do historiador cearense foi marcada pelo paradoxo de ser gestada do espaço oficial da extinta monarquia o IHGB ao tempo em que tentava a todo custo se desvencilhar das proposituras oficiais Nesse sentido seu esforço foi exitoso apenas em parte haja vista ser comum em sua retórica a reprodução de muitas das proposituras constantes na obra de Varnhagen A farta documentação utilizada por Abreu assim como as injunções sociais de seu tempo foram determinantes para que o mesmo reproduzisse muitas das proposituras constantes na HGB de Varnhagen Omitir a presença negra na história social do país ou se referir pejorativamente aos nativos é dado inegável em sua narrativa que resultou numa maior ênfase ao luso como agente criativo da nação O reconhecimento do mameluco como tipo especificamente brasileiro resultante do contato do luso com as nativas americanas deu ao seu discurso a inovadora abordagem de um Brasil que se fez principalmente com os portugueses mas não apenas por eles A criação do conceito do transoceanismo foi um marco para dividir até onde o português fora responsável pela nova nacionalidade e até onde ele se recusara a sêlo Nem por isso a narrativa de Abreu deixou de fixar o português como homem forte destemido oriundo de uma sociedade que o lapidara para o enfrentamento da dor e de todas as provações que o ser humano fosse capaz de enfrentar Embrenhado nos matos preando índios criando vilas e contribuindo para o crescimento de uma população nova se erigiu um tipo português pioneiro na retórica abrelina em contraponto ao português administrador em missão oficial e sem maiores vínculos com o Brasil O outro seria esse executivo mero transeunte das sendas do oceano representante do Estado O português criador corajoso desbravador criatura viva nas páginas dos livros de história escolar desde meados do oitocento fora acalentado por Abreu como uma extensão de Portugal no Brasil embora vinculado indefinidamente ao último por fertilizar seus campos e erigir suas cidades frutificandose numa população numerosa e nela se dissolvendo Em Abreu evidenciase a ambiguidade bem própria da relação entre as duas nações pois mesmo reconhecendo um tipo português específico como o outro estranho ao lugar não lhe nega o caráter de elemento formador do nacional posto que metamorfoseado no brasileiro que o autor reconhece existir desde os primeiros anos da colônia Contudo nos tempos de mudança outras visões também estiveram presentes na cena historiográfica nacional marcada pelo nacionalismo e pelo sentimento patriótico fermentados nas disputas pretéritas entre republicanos e monarquistas Os tempos eram 259 outros mesmo que tenha havido um dia uma cepa ou de que a herança recebida fosse demasiada perniciosa para ser mantida Na retórica em muitas vezes tóxica de Manoel Bomfim e de Paulo Prado evidenciouse que a alteridade do período não poderia ser perpassada pela noção da irmandade Baseada numa ótica marcadamente negativa insuflada pelo caráter ambíguo da mentalidade dos republicanos em relação ao passado os citados historiadores revelaram suas preocupações com as singularidades nacionais decisivas para o futuro Conquanto ao nível diplomático as trocas tenham sido abundantes no período abordado a despeito do corte de relações havido em 1894 evidenciouse que as preocupações contidas em suas problemáticas eram bem mais profundas no tocante ao verdadeiro papel de Portugal na composição da pretendida identidade nacional O regicídio que ensejou a república portuguesa acarretando um alinhamento político entre os dois países parece não ter ocasionado maiores intervenções nas elucubrações desses historiadores a respeito do passado nacional Por sua vez o evidente recrudescimento do antilusitanismo mais como expressão popular que ao nível diplomático ou comercial entre os dois países se refletiu na cultura historiográfica daquele momento Maior prova disso foi a ruptura total daqueles historiadores com a propositura original do IHGB alavancada na monografia sugestiva de Von Martius que propugnava a presença portuguesa como o principal motor no construto da nacionalidade Republicano convicto embora desiludido Manoel Bomfim alteouse como uma voz contrária ao eterno liame historiográfico com Portugal Como um provável consumidor da teoria marxista nos albores do século XX aquele historiador não temeu em assumir em primeira mão o discurso da exploração colonial apontando Portugal e a empresa colonizadora como responsáveis por grande parte dos males que afetavam o país Com base em metáforas biologizantes Bomfim execrou o Estado português e seus mandatários trazendo ao conhecimento do brasileiro algumas locuções depreciativas existentes no trabalho do historiador português Oliveira Martins como meio de validar os próprios argumentos Em compensação foi o historiador brasileiro que muito se empenhou na compreensão da sociedade portuguesa por nela enxergar a ambiência própria que poderia auxiliálo na compreensão de um povo que quisesse ou não continuava incrustado na realidade brasileira O tempo de sua produção foi efetivamente um tempo de rupturas no 260 qual o Brasil tentara a todo custo se perceber como nação autônoma desembaraçada da forte herança portuguesa dos tempos monárquicos Por sua vez em Paulo Prado nos deparamos com uma articulação do próprio futuro da nação O passado só seria válido como um momento formativo da herança social que deveria ser sobrepujada a todo custo sob pena de não se constituir uma identidade autônoma tomando a forma de uma comunidade imaginada que com o fito de alcançar novos patamares necessitava ser redimensionada em sua formação Por tal viés as mentalidades como atitude mental coletiva foram objeto dos estudos daquele historiador ao utilizar a história nacional como artefato denunciador daquilo que julgava ser uma herança social explicitamente portuguesa Em Prado encontramos marcante e negativo discurso sobre o tipo português cuja utensilagem mental fora entendida pelo autor como profundamente entranhada na mentalidade brasileira num processo de transferência mecanicista que negava ao brasileiro o lugar de sujeito da própria história Aquele intelectual não se preocupou com o Estado luso como o gestor de um processo de formação do nacional ancorandose firmemente na composição psicológica do português para apontar onde tal composição se alocara nos brasileiros dandolhes uma face negativa desprezível que necessitava ser extirpada brutalmente Tal operação não obstante consistia em primeira mão no reconhecimento de certa herança social como estratégia para em seguida banila como uma maldição impeditiva do avanço nacional O afastamento definitivo de Portugal e da herança portuguesa a ruptura com esse passado é que daria sentido à melhoria ansiada a um Brasil aperfeiçoado liberto em definitivo não só dos grilhões coloniais mas de toda uma mentalidade embolorada que só nos lançava no abismo incapacitante da preguiça da luxúria e da cobiça Por meio dessa retórica Paulo Prado cristalizou em sua obra um português obtuso medíocre atrasado como forma de justificar o próprio atraso dos nacionais cem anos após a emancipação política de Portugal O modernismo como movimento de vanguarda financiado e defendido pelo historiador em seu viés nacionalista deu lastro a sua retórica Mesmo que a Europa representasse o supro sumo da modernidade para Prado ápice da modernidade que ele desejava que se realizasse em seu próprio país certamente que o mesmo não enxergava Portugal como parte desse cadinho do Velho Mundo o que denuncia o surgimento de uma nova 261 compreensão a respeito de Portugal pelos intelectuais brasileiros e que terá desdobramentos em outros estudos tais como o de Freyre e de Buarque de Hollanda Nos Tempos de reencontro percebemos que o verdadeiro enlace não foi apenas do Brasil para com Portugal mas para consigo próprio As lutas políticas intestinas aliadas à conjuntura mundial se uniram como forças inexoráveis para que o Brasil olhasse o próprio passado e enfrentasseo sem medos buscando formas de encaminhamento sobre os problemas sociais decorrentes desse processo histórico nem que fosse pelo silenciamento e pela exclusão A historiografia produzida nesses tempos bem que tentou se livrar da idéia de um passado único e homogêneo dando vez mesmo que de forma pontual aos diferentes setores sociais e étnicos embora os seus efeitos tenham passado ao largo de suas propostas A produção de Gilberto Freyre é representativa do deslocamento do eixo na cultura historiográfica brasileira ao abandonar o ponto de intersecção entre o Brasil e seu passado Gestada em outro ambiente os EUA sob amparo de teóricos distintos daqueles até então utilizados pelos intelectuais nacionais a retórica freyreana se dedicou à reconstrução de facetas de um português que ainda não fora impresso nos livros de história gente inovadora sem preconceitos nem heroísmos solta no mundo graças aos traços de sua própria natureza embora tangida pela ocasião Enfim um tipo único e por isso mesmo superior Destoando do discurso das décadas anteriores Freyre aprofundou observações sobre a formação da mentalidade nacional considerandoa plural posto que articulada num panorama de diversidade cultural que a diferenciava de qualquer outra experiência Ao assumir sem receios nem vergonhas a diversidade étnica nacional Freyre transformou a participação lusa considerandoa tão responsável pela sociedade brasileira quanto a de negros e índios envolvidos em sua formação Para o mestre de Apipucos a herança social brasileira provinha da tríade étnica envolvida em sua composição e não apenas de um dos seus elementos como fizeram Bomfim e Prado Assim o historiador desmontava em parte o teor de responsabilidade que aqueles historiadores dedicavam a Portugal como construtor de um Brasil que teimava em não deslanchar A especificidade de um Brasil criado entre os canaviais num mundo rural diverso de tudo que até então existia fez emergir em sua narrativa ricos detalhes da cultura portuguesa que o historiador identificara como reproduzidos no cotidiano nacional assim como dos demais povos nele envolvidos 262 Em contrapartida Sérgio Buarque de Holanda produziu um Brasil e consequentemente um português distante do terreiro da casa grande Seu palco era a Serra do Mar e seu português aquele que ali se isolou pronto para produzir riquezas ou ao menos novas formas de sobrevivência Homem impoluto oriundo de um Portugal em seu esplendor imperialista originou no território dentro de um tempo específico uma raça de fortes Por outro lado na construção de um tipo específico Holanda enfatizou a consequente decadência portuguesa retomando a questão de herança social para promover uma história regional com fins evidentemente políticos Sua obra revelou tempos distintos de um Portugal até então mostrado como imutável maciço em seu poder e em sua expansão sem rupturas nem graves crises Ao revelar um português especial ilibado ensejou também sua antítese representado num outro sujeito moralmente decrépito aliciado pelas próprias necessidades para explorar o território americano mesmo que em outro tempo e em novos espaços Conquanto fossem inegáveis os fins da retórica de Holanda não se pode desdenhar a convergência do pensamento do autor para um ponto fixo a preponderância dos lusos na formação do Brasil a despeito de todos os demais elementos que deram seu contributo à mesma Dessa forma a tríade traçada por Martius em meados do século XIX provava sua validade ante o impulso de modernidade que assomava o Brasil e o papel do português como elemento decisivo na arquitetura nacional atingia seu auge na cultura historiográfica nacional mais uma vez na retórica holandina quem ponderou ser o brasileiro um neo português Nesses três momentos aqui chamados de tempos a nosso ver a produção de discursos sobre Portugal e os portugueses configurouse como uma estratégia de constituição da identidade nacional Neles falouse do outro para falar de si numa evidente recombinação de elementos de discursos anteriores em função das novas problemáticas germinadas em cada contexto o que vem revelar o viés político e ideológico tão próprio da cultura histórica Foram as preocupações políticas de cada um dos autores aqui analisados que fomentaram sua retórica sendo o fim último dos mesmos a criação de uma identidade nacional capaz de convencer o público que consumiria seus textos A esse foram ofertadas versões que ao mesmo tempo em que erigiam modelos desconstruíam outros cristalizavam memórias e 263 lançavam nomes e fatos ao esquecimento consoante os interesses de cada autor na tentativa de estabelecimento de uma comunidade imaginada e por eles desejada Se hodiernamente necessitamos de outros operadores conceituais para compreender nosso presente e a definição de nossa identidade ocorre a partir de referências específicas flexíveis e provisórias470 para os historiadores dos três períodos fora imprescindível a definição da própria identidade o que os remeteu à busca da essência nacional no mais das vezes entendida pelos mesmos como oculta nas profundezas de nossa mentalidade Tudo com o fito de compreender o passado para transformar o presente e por conseguinte liberarse de um fardo romper com as pesadas tradições que emperravam o progresso e entrar no compasso da História Republicados pelas gerações seguintes amplamente elogiados e difundidos até o final dos anos setenta471 tais autores e suas leituras históricas do passado formaram inúmeras gerações moldando a chamada consciência nacional Tornaramse pois uma das principais referências acerca da identidade nacional lentes através das quais os brasileiros passaram a se olhar e a reconhecer sua própria imagem assim como a imagem dos portugueses e por conseguinte de Portugal472 Erigidos como cânones da cultura brasileira aqueles autores foram definidos como matrizes do pensamento social brasileiro graças ao regime discursivo de verdade que produziram e reforçaram falando do lugar privilegiado da ciência ou do que se pensava dela mantendose inquestionáveis por várias décadas como verdades Verdades que omitiram serem apenas discursos retóricas a falar de si e do outro construções que expressaram também uma prática e não apenas um dizer 470 Cf NORA Pierre Entre memória e história a problemática dos lugares Projeto História nº 10 p 0728 Dez1993 471 Salvo os casos específicos de Manoel Bomfim e Gilberto Freyre desprezados pelos acadêmicos brasileiros até bem recentemente 472 Sobre a estratégia de construção da história nacional em detrimento da própria História Silva pondera ser a mesma para além da narrativa autoral uma tarefa de gerações de tal forma que ao passar o tempo à força da constante repetição desde as primeiras letras até os bancos da universidade com graus variados de acuidade e sofisticação forjamse determinados estereótipos determinados temas que passam a ter um peso suficientemente marcante para dar consistência a um corpo que há pouco não existia Aos poucos passa se de hipóteses de suposições a afirmações e a construção de uma história geral passa por um somatório dessas histórias nacionais In SILVA Rogério Forastieri da Colônia e Nativismo A História como biografia da nação p 1314 264 Os rumos tomados pela historiografia produzida nos últimos anos apontam para a gradativa desconstrução daqueles mitos e marcos que fundaram uma identidade para o país e criaram uma dada imagem de seu passado A retórica que tem emergido nos novos tempos em relação a Portugal continua a ser marcada pelo binômio de uma irmandade ambígua trôpega quase impossível de se realizar em face da própria dinâmica mundial cuja organização insiste em desconhecer as ligações coloniais e todos os liames dali oriundos Caminhamos para as comemorações dos duzentos anos de nossa independência uma independência que hoje assume no imaginário nacional mais uma face econômica do passado recente no qual estivemos atrelados ao FMI que essencialmente política Embora prescinda de um estudo rigoroso admitimos não ser difícil perceber que a população brasileira em si já não detém a consciência de que já fomos colônia e que o território brasileiro em grande parte é resultado das ações do Estado português assim como falamos uma língua comum e que muitos dos nossos costumes são resultado desse contacto Não obstante não se pode negar que a presença portuguesa ainda ocupa lugar de destaque no seio da sociedade brasileira em parte cristalizada graças às décadas de reprodução discursiva de modelos que se tornaram estereótipos do dono da padaria do boteco ou do armazém Estereótipos firmados pelo discurso historiográfico e estresidos pela literatura pelo cinema e por outros meios disseminadores de determinados retratos facilmente fixados pela população em geral A identidade nacional continua a ser construída mas podemos afirmar que o contraponto dessa construção não mais tem Portugal como referente Outros povos que tem se relacionado com os brasileiros e cuja presença tem afetado sobremaneira a face da nação tem tomado o espaço anteriormente exclusivo de Portugal Portanto hoje a identidade nacional pode ser tomada como mais diáfana diluída diante de outros referentes Já não nos vemos mais como descendentes de portugueses apenas mas também de italianos alemães japoneses libaneses russos espanhois entre tantos outros Abrangentes movimentos sociais clamam pelo reconhecimento da cultura afrobrasileira e boa parte da sociedade antes constrangida pela branquidade sugerida como perfeição já se orgulha da própria negritude do passado escravocrata das raízes africanas Guaranikaiowás é título unificado em nomes de milhares de brasileiros pelas redes sociais a reclamar a difusa herança indígena e a defesa de tradições e de terras dos povos nativos 265 A narrativa da trajetória do Brasil de sua formação colonial de sua criação enquanto nação explorada sob diferentes abordagens pelos historiadores relacionados em nossa investigação revelase a nós como frutos exclusivos de seu tempo Era necessário construir o outro definilo mostrálo ora como igual ora como diferente tudo com o fito de que nos tornássemos o que somos para que tal discursividade nos desse visibilidade nos materializasse enquanto povo uno liberto autônomo Contudo não podemos afirmar que a produção desses historiadores por mais que ancorada em documentos tenha exarado uma verdade absoluta sobre Portugal e os portugueses Nenhum texto lembrou Chartier473 é capaz de manter uma relação transparente com a realidade que apreende As dobraduras que envolvem a confecção do mesmo os interesses de cada autor e os fins políticos inerentes à produção historiadora podem ser tomados como eixos capazes de dar rumos variados ao que se pretende historiar Por fim como narrativa é preciso destacar que um texto só encontra sua completude quando posto diante do leitor É este sujeito que o torna significativo e que pelo seu ato revela as mais diversas possibilidades interpretativas dessa produção reconfigurandoa Nesta relação dinâmica novos sentidos podem ser descortinados sentidos que escapam à vontade autoral daquele que o produziu Tal vontade não pode ser invocada como o lugar de produção da verdade do texto mas como lugar de partida para um debate e de fato a produção de um novo texto474 o que faz do leitor um novo autor Assim sendo ousamos afirmar que mesmo estando os discursos dos historiadores contemplados na presente investigação encerrados num contexto histórico não devemos esquecer serem os mesmos criações de um dado tempo narrativa passível de interpretação refletidas por historiadores que olharam com olhos do seu presente um Portugal que talvez nem mais existisse Ou que talvez nunca tenha sido como foi constituído no contexto de uma retórica 473 CHARTIER Roger A História Cultural entre práticas e representações Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1990 p 52 474 GUIMARÃES Manoel Luís Salgado Introdução Anais do Museu Paulista São Paulo v15 n2 p 125 148 juldez 2007 266 EVIDÊNCIAS pela ordem no corpo do texto 267 Karl Friedrich Philipp Von MARTIUS Como se deve escrever a história do Brasil In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Livro de fontes da historiografia brasileira Rio de Janeiro EdUERJ 2010 Originalmente publicado na RIHGB t VII 1845 pp 381403 SPIX Johann Baptist Von Viagem pelo Brasil 18171820 Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Edusp 1981 268 Francisco Adolpho VARNAHGEN Carta acerca da reimpressão do Diário de Pero Lopes Revista do IHGB Tomo 24 1861 p 0308 Correspondência ativa de Francisco Adolfo de Varnhagen coligida e anotada por Clado 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Ciência e trópico v II nº 2 p 213226 JulDez 1983 NEVES Luiz Felipe Baêta O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios colonialismo e repressão cultural Rio de Janeiro Forenseuniversitária 1978 PAIVA José Gilberto Freyre Intérprete do Brasil Porto Alegre Santander Cultural 2008 PASCAL Maria aparecida Macedo Portugueses em São Paulo A face feminina da imigração São Paulo Expressão arte editora 2005 PESAVENTO Sandra Jataly Exposições Universais espetáculo da modernidade do século XIX São Paulo HUCITEC 1997 PIVA Luiz Guilherme Ladrilhadores e semeadores a modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Viana Sérgio Buarque de Holanda Azevedo Amaral e Nestor Duarte 19201940 São Paulo Editora 34 2000 RAMINELLI Ronaldo Imagens da colonização A representação do índio de Caminha a Vieira Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 RAMOS Fábio Pestana No tempo das especiarias o império da pimenta e do açúcar São Paulo Contexto 2004 RANGER Terence HOBSBAWM Eric A invenção das tradições 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Texto de pré-visualização
Faculdade de Letras RETÓRICA DA ALTERIDADE PORTUGAL E PORTUGUESES NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Ficha Técnica Tipo de trabalho Tese de Doutoramento Título RETÓRICA DA ALTERIDADE PORTUGAL E PORTUGUESES NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Autor Luíra Freire Monteiro Orientador Doutor António Martins da Silva Júri Presidente Doutor João Maria Bernardo Ascenso André Vogais 1 Doutor a Maria Fernanda Fernandes Rollo 2 Doutor Carlos Eduardo Pacheco Amaral 3 Doutora Maria Manuela Bastos Tavares Ribeiro 4 Doutor António Martins da Silva 5 Doutor Antônio Paulo Cabral de A Avelãs Nunes Identificação do Curso 3º Ciclo em História Área científica História Especialidade Identidades práticas e representações no mundo contemporâneo Data da defesa 24042013 Classificação Aprovada com distinção e louvor por unanimidade além de indicada para publicação RESUMO A presente investigação tem como principal objetivo evidenciar o discurso dos historiadores brasileiros a respeito de Portugal e dos portugueses no contexto da formação da sociedade brasileira quando a presença portuguesa na América deu ensejo à constituição de variadas representações A retórica da alteridade que buscamos identificar tomou como lastro as formas de identidade que os historiadores estabeleceram para o Brasil fazendo de Portugal e seu povo importante ponto de inflexão nessa construção As noções de Irmandade e Ambiguidade serviram como baliza para analisar as narrativas históricas em suas diversas perspectivas circunscritas à primeira centúria após a Independência o que nos permitiu analisar os modos com que aqueles historiadores referenciavam os portugueses no tempo real daqueles existentes no tempo histórico cristalizados nas fontes por eles utilizadas No sentido de dar inteligibilidade aos diversos contextos aqui abordados no qual estavam inseridos os historiadores elegidos optamos por estruturar o presente texto em três distintos tempos determinantes para compreensão das mudanças efetivadas na sociedade brasileira em sua formação Palavraschave Historiografia brasileira Portugueses Identidade Alteridade ABSTRACT This research has as main objective to highlight the speech of Brazilian historians about Portugal and the Portuguese in the context of the formation of Brazilian society when the Portuguese presence in America gave rise to the formation of various representations The rhetoric of alterity that we seek to identify took as ballast the identity forms that historians settled for Brazil making of Portugal and its people an important point of inflection in this construction The notions of brotherhood and ambiguity served as goal to analyze the historical narratives in their diverse perspectives circumscribed to the first century after independence which allowed us to analyze the modes with which those historians referred the Portuguese in real time of those existing in historical time crystallized in the sources they used In order to give intelligibility to diverse contexts discussed here in which selected historians were inserted we chose to structure the present text in three distinct times crucial for understanding the changes that take effect in Brazilian society in its formation Keywords Brazilian Historiography Portuguese Identity Alterity RÉSUMÉ Cette recherche a lobjectif principal de mettre en évidence le discours des historiens brésiliens à propôs du Portugal et des portugais dans le cadre de la formation de la société brésilienne lorsque la présence portugaise à lAmérique a donné lieu à la contitution de plusieurs représentations La rhétorique de laltérité quon cherche à identifier a pris comme base les formes didentité que les historiens ont établies pour Le Brasil em faisant du Portugal et de son peuple um point important dinflection dans cette construction Les notions de fraternité et dambiguïté ont été utilisées comme limite pour analyser les narrations historiques dans leurs points de vue divers et circonscrits au premier siècle après lindépendance ce qui nous a permis de décomposer les modes avec lesquels les historiens ont référé les portugais en temps réel de ceux existent dans le temps historiques et cristallisés par lês sources quils ont utilisé Pour donner de lintelligibilité aux différents contextes ici traités dans lequel lês historiens choisis étaient inseres on a decide de structurer ce texte em trois différents moments déterminants pour la comprehension dês chancgements réalisés à la société brésilienne dans as conformation Mots clés Historiographie brésilienne Portugais Identité Altérité Ao meu pai Lucas Hygino Monteiro Que há muito sonhara com Coimbra E à minha mãe Iraci Que nem sabia onde era Mas que tinha um sorriso lindo In memorian AGRADECIMENTOS Considero a gratidão um dos sentimentos mais perfeitos valorizador da vida humana proporcionando alegria ao coração de quem a nutre Como essa alegria permeia minha existência avolumada depois de assentar o ponto final de um texto que foi construído passo a passo ao longo dos últimos quatro anos não poderia deixar escapar este momento para dizer da gratidão que sinto pelas pessoas que de variadas formas me auxiliaram nessa construção Façoo também pela necessidade de firmar nomes que se fizeram pródigos na amizade na dedicação no amor e na capacidade de suportar os dias cinzentos que existiram quando da feitura desta tese À Lucira em primeira mão quero agradecer a ousadia da mudança da loucura de permitir um intervalo à vida construída até então para arquitetála em novos patamares Obrigada Lulu pelo apoio emocional e financeiro pela descoberta comum das ruas coimbrãs e de tantas outras de variadas cidades do Velho Mundo nas quais andamos para ampliar a experiência Obrigada por compartilhar a saudade junto com a meia de leite da confeitaria Vênus os doces da Briosa o vinho da Taberninha que nos tiraram da linha e findaram por nos obrigar a novas andanças Ao Flávio que manteve o brilho do chão branco e o verde do jardim os livros limpos os cães alimentados a integridade do lar a relação saudável Agradeço pelo zelo pelo compartilhamento da solidão nos dois lados do Atlântico pelo cuidado com Lucas num segundo tempo pela lágrima da despedida e pela alegria do regresso Pelas conversas sobre a tese pela indicação de livros pelo compartilhamento de um tempo angustiante para os dois mas que se tornou marco em nossas vidas com direito àquele café no fim da tarde território de uma rotina que poucos sabem como perfeita saiba de meu coração devedor Ao meu filho lindo Lukete cuja ausência me roubou o sono e que em pleno aflorar adolescente pediume seu mundo de volta A ti querido meu obrigada por ter aprendido a viver com migalhas de mãe nesses quatro anos sem nunca deixar de me amar e de orar por mim Ao amigo Carlos Alberto receptivo desde antes de nos conhecermos pessoalmente que tanto me ensinou a viver em Portugal alertandome para a compreensão de seu povo com o olhar de quem vinha de outras terras Com a propriedade dos bons observadores e a sagacidade mansa dos sábios Agradeço também a Margarida Adônis que me ensinou da arquitetura das belas casas de Coimbra do percurso da cidade e dos nomes das ruas das melhores cantinas da universidade e dos pratos ali servidos bem como das sutis nuanças da vida portuguesa Uma portuguesa tão brasileira que nem mesmo ela sabe A ti amiga fica minha gratidão pois o carinho é mais precioso que a palavra burilada Ao Ângelo Reisinho Lebre que mesmo sem o notar proporcionou o insight que resultou na definição da temática desta tese Aos professores do doutoramento que me ensinaram cada um à sua maneira novas abordagens históricas outros modos de ver e decifrar o mundo Um agradecimento especial ao meu orientador Doutor Antônio Martins da Silva mais que professor mais que orientador um mestre que me guiou pelas sendas tortuosas da pesquisa com mansidão e segurança sem imposições pessoais Mesmo à distância deu me a liberdade necessária para que me posicionasse como historiadora no construto do texto apontando caminhos decifrando enigmas clarificando o obscuro e aplainando suas dubiedades como só um grande mestre sabe fazer Os méritos porventura existentes neste texto devemse unicamente à sua capacidade As falhas são minhas assumidamente como aprendiz que sou Obrigadíssima meu Orientador Um agradecimento especial ao Anderson Barbosa criador da ilustração da capa e ao Douglas Costa um anjo barroco mineiro que conheci em Coimbra e que se tornou para mim uma ponte entre o Brasil e Portugal além de um amigo a quem devo enormes e repetidos favores Aos bons portugueses receptivos e amáveis que de alguma forma me ajudaram durante minha estadia em Coimbra sem o olhar desconfiado que dirigem normalmente às brasileiras Especialmente a dona Maria de Fátima Paiva cuja casa é pura expressão do encontro de Portugal África e Brasil tal qual a extensão de sua recepetividade para comigo e os meus Dentro da Faculdade de Letras um agradecimento especial à Senhora Liz Dália antiga secretária do Instituto de História Econômica e Social à Senhora Aída Gouveia e à Doutora Manuela Saraiva da Secretaria de Pósgraduação pela constante disponibilidade em resolver meus pleitos Ao Deus que me sustenta todos os dias e que me proporciona a alegria de estar aqui Pequena lista de poucas abreviações IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro HGB História Geral do Brasil CGS Casa grande e Senzala SM Sobrados e Mocambos SUMÁRIO Introdução 01 Parte I A Irmandade como retórica em tempos de construção da nação 15 Capítulo 1 Um projeto para a história da nação emancipada 24 11 Reconhecendose no outro e o outro é Portugal 36 Capítulo 2 A nação como continuação da colônia 44 21 Os herois do Brasil 50 22 O caráter civilizatório da colonização portuguesa 60 23 A admirável monarquia Bragantina 72 Conclusão da Parte I 86 Parte II Tempos de mudanças tempos de alteração da retórica 90 Capítulo 3 Em busca de um sentimento nacional 100 31 Impiedosos fazedores de novos caminhos 106 Capítulo 4 A exploração colonial como perspectiva 119 41 De vanguarda a parasitas 122 42 O caráter predatório e dissoluto dos Bragança 135 43 A cepa e seus viçosos ramos 148 Capítulo 5 A tentativa de superação da herança portuguesa 158 51 O português livre da Renascença 164 52 A metamorfose de livres a tristes 172 Conclusão da Parte II 180 Parte III Em tempos de reencontro o ressurgir da irmandade 186 Capítulo 6 Uma nação impregnada de Portugal 194 61 Uma mentalidade plástica 198 62 Casa grande à portuguesa 206 63 Na esquina do mundo um povo multifacetado 218 Capítulo 7 O passado como obstáculo ao futuro 227 71 Um Portugal pouco europeu 231 72 Semeadores dos verdes campos da América 242 Conclusão da Parte III 250 Considerações finais 255 Evidências 266 Bibliografia utilizada 274 Bibliografia consultada 299 1 INTRODUÇÃO É inegável o quanto a presença portuguesa ainda ocupa lugar no seio da sociedade brasileira onde parece ter se cristalizado no dono da padaria do boteco ou do armazém reinvenções de João Romão personagem de Aluísio de Azevedo em O Cortiço1 Em opaca alusão aos métodos do Império Português no processo colonial o romance clássico do autor brasileiro findou por se tornar uma das primeiras construções discursivas de Portugal de largo alcance personificado na figura do taberneiro luso expressando também o desconforto que existia em relação aos portugueses no Brasil pós independência depois de séculos de submissão colonial Bem antes porém em pleno século XVII os poemas de Gregório de Matos 2 o Boca do Inferno já expressavam certo desprezo e despeito contra os reinóis enraizados no comércio e nos cargos administrativos da então colônia tomados como elementos de uma elite crescentemente representada como usufrutuária e exploradora A rivalidade entre portugueses e brasileiros para além da vida social foi sobejamente retratada na literatura dos dois países quase como uma vingança a expressar um rancor construído nas engrenagens coloniais e alastrado quando do estabelecimento da Corte na América época em que vicejaram os chistes e as paródias Fortalecida desde então nas repartições do governo na Marinha onde ocupava mais de um terço dos cargos e até nas ocupações mais modestas a presença portuguesa tornouse se não um incômodo quase um 1 No romance realista do século XIX o português Romão foi descrito como um homem ríspido de tamancos a gritar com seus caixeiros por trás de um balcão descortinando também a realidade da sociedade brasileira naquele momento A despeito da existência de outros personagens oriundos de Portugal como o pacífico cavouqueiro Jerônimo e Miranda comerciante enriquecido no comércio atacadista e feito barão da coroa João Romão teve preponderância no romance pela sordidez de seu personagem ávido por enriquecer Dono do cortiço mourejava incessantemente mas não tinha pudores em mentir nem roubar para angariar lucros 2 A cada canto um grande conselheiroQue nos quer governar cabana e vinhaNão sabem governar sua cozinhaE podem governar o mundo inteiro Em Soneto bem conhecido Obras de Gregório de Matos Rio de Janeiro Oficina Industrial Graphica 1930 2 acinte à identidade nacional que aos poucos tomava formas 3 Nesse contexto as construções discursivas avolumaramse como expressão de um antilusitanismo que marcou o tempo político do império brasileiro mas que deitou raízes naquela sociedade durante alguns décadas após a instauração da república Como fator político o antilusitanismo perdeu forças a partir dos anos trinta com a aceleração do desenvolvimento capitalista e a crescente aproximação diplomática entre os dois países A mudança de foco sobre as questões nacionais favoreceram o estabelecimento de outros bodes expiatórios4 desvanecendo aos poucos a negativa separação entre Portugal e Brasil ao tempo em que novos discursos ensejavam outros olhares sobre Portugal sem a marca amarga da espoliação e humilhação próprias dos processos colonizatórios Mais recentemente as produções da televisão e do cinema brasileiro oportunamente lançaram mão da representação de personagens portugueses correntes na história brasileira de forma a acentuar a aura de reencontro entre os dois países Séries como O quinto dos Infernos5 A Muralha6 e filmes como Carlota Joaquina7 Desmundo8 entre outros mais antigos fecundaram mais uma vez o olhar do brasileiro sobre Portugal e os portugueses A despeito dessa reaproximação e das diferenças e semelhanças que a mesma acentuou os estudos sobre a construção da identidade nacional9 asseveram que no período colonial 3 Sobre o surgimento desenvolvimento e aniquilamento do sentimento antilusitano ver SOUSA Ricardo Luíz de O antilusitanismo e a afirmação de nacionalidade Politéia História e sociedade Vol 5 nº 1 p 133151 2005 4 O termo é de ROWLAND Robert Manuéis e Joaquins A cultura brasileira e os portugueses Etnográfica Vol V nº 1 p 157172 2001 5 Minissérie escrita por Carlos Lombardi Margareth Boury e Tiago Santiago e dirigida por Wolf Maia e Alexandre Avancini apresentada pela primeira vez em 2002 6 Baseada no romance de Dinah Silveira de Queiróz direção de Denise Saraceni Luis Henrique Rios e Carlos Araújo Sua estréia no Brasil data de 2000 7 Direção de Carla Camurati de 1995 8 Direção de Alain Fresnot de 2002 9 Entre esses citamos ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 1985 RIBEIRO Darci O povo brasileiro formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das letras 1995 SODRÉ Nélson A ideologia do colonialismo Rio de Janeiro MECISEB 1961 REIS José Carlos As identidades do Brasil Rio de Janeiro FGV 2003 ORLANDI Eni Puccinelli Discurso fundador a formação do país e a construção da identidade nacional Campinas Pontes 2003 MELLO E SOUZA Laura de Os desclassificados do ouro Rio de Janeiro Graal 1982 da mesma autora O sol e a sombra Política e administração na América portuguesa do século XVIII São Paulo Companhia das 3 inexistiu no Brasil a noção de brasilidade da forma como a entendemos atualmente Independente do local de nascimento fosse da colônia fosse oriundo da metrópole não existiam exotismos no projeto colonial sendo todos considerados portugueses súditos do rei a ele devendo obediência A nação portuguesa10 adentrara pelos campos da América neles se robustecendo não deixando espaço para identidades alternativas que levassem à desintegração do projeto colonial Se ao longo dos tempos outras identidades foram sendo criadas paulistas pernambucanos baianos lusoamericanos tratavamse mais de identidades locais ou regionais mas que não se desvinculavam de um reconhecimento maior onde Portugal era o reino a cabeça o berço 11 O grito do Ipiranga desvaneceu em definitivo esse convencimento lançando a nova nação em busca de sua própria face e com ela a constatação da face do outro no caso Portugal mais especificamente de brasileiros diante de portugueses Não obstante mesmo separados os laços não se quebraram no todo Até meados do Século XX era comum entre os brasileiros mais idosos ao se referir a Portugal trocar o substantivo pelo carinhoso ou debochado título de meu avozinho assim como em algumas regiões era acentuado o brocardo de que todo brasileiro um dia foi português12 letras 2006 MELLO Evaldo Cabral de Rubro veio o imaginário da restauração pernambucana Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 MOTTA Carlos Guilherme 1822 Dimensões São Paulo Perspectiva 1972 do mesmo autor Viagem incompleta a experiência brasileira São Paulo SENAC 1999 PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses americanos brasileiros identidades políticas na crise do Antigo Regime luso americano Almanack brasiliense nº 3 p 6981 2006 JANCSON István Na Bahia contra o Império São Paulo Hucitec Salvador EdUFBA 1976 PRADO Júnior Caio Ideias gerais sobre a revolução no Brasil Formação do Brasil contemporâneo São Paulo Brasiliense 1999 STUMPF Roberta Filhos da Minas Americanos e Portugueses identidades coletivas na Capitania das Minas Gerais 17631792 Dissertação de mestrado em História Universidade de São Paulo 2001 10 Para a discussão do conceito de nação e nacionalismo ver HOBSBAWN Eric Nações e nacionalismos desde 1780 Programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 especialmente o capítulo A nação como novidade da revolução ao liberalismo 11 A propósito ver CARVALHO José Murilo A construção da ordem Rio de Janeiro Campus 1980 MOTTA Carlos Guilherme Viagem Incompleta A experiência brasileira São Paulo SENAC 1999 especialmente os capítulos Peças de um mosaico e Ideias de Brasil formação e problemas LIMA Oliveira Formação histórica da nacionalidade brasileira Rio de Janeiro Leitura 1944 PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses americanos brasileiros identidades políticas na crise do Antigo Regime luso americano Almanack brasiliense nº 3 p 6981 2006 BARMAN Roderick J Brazil the forging of a nation 17981852 Stanford Stanford University Press 1988 MOTTA Carlos Guilherme 1822 Dimensões São Paulo Perspectiva 1972 especialmente o capítulo Brasileiros nas Cortes Constituintes de 18211822 e A interiorização da metrópole 18081805 SOUZA Iara Pátria coroada o Brasil como corpo político autônomo São PauloUNESP 1999 12 NASSER David Portugal meu avozinho Rio de Janeiro O Cruzeiro 1965 p 29 4 Essa relação tão delicada no dizer de OLIVEIRA13 tem enfrentado desníveis no decorrer dos séculos e consoante a conjuntura pode ser de aproximação ou de distanciamento A experiência portuguesa no Brasil por sua vez apresentou duas fases distintas que marcaram as delicadas relações entre esses povos Uma diz respeito à colonização nas terras do Novo Mundo criando uma colônia que se tornou independente no século XIX Outra fase tomou forma quando da vinda de imigrantes portugueses para a antiga colônia no contexto do movimento emigratório que atingiu a Europa nos finais do século XIX e início do XX Na primeira fase não se fala de emigração posto serem as terras coloniais extensão das terras portuguesas de um império colonial que se apresentava como um trunfo de ouros14 no contexto político e econômico da época Os portugueses partiram como se nunca tivessem saído de casa segundo Eduardo Lourenço15 e foram descritos como senhores da terra capazes de castigar mutilar e matar todos os demais povos submetidos ao seu mando Por conseguinte o português continuou a ser português na América mera expansão da Lusitânia As marcas dos três séculos da colonização portuguesa não passaram incólumes e até nossos dias persistem como ponto de inflexão importantíssimo na emergência da identidade brasileira Fomos portugueses um dia mas nos tornamos brasileiros Como filhos ou irmãos não se pode negar tal parentesco Apesar das relações conturbadas dos dois lados do Atlântico dos chistes e das paródias nunca foi fácil ser português no Brasil nem brasileiro em Portugal O contato entre o colonizador e o colonizado engendrou uma nova cultura que desfeitos os laços políticos fala de variadas formas de um povo que de longe nos é tão parecido Da colônia nasceram as memórias que gestaram a história contemporânea do Brasil uma história que fala do outro de um outro que se lançou no mundo desconhecido num mar de monstros de medos indecifráveis que ousou construir novas formas de viajar e de viver e que sujeitou povos distintos de si adaptandose a eles Esse outro foi quem idealizou um lugar transformandoo à custa de sangue suor e lágrimas de dor e de saudade não só 13 OLIVEIRA Lúcia Lippi Nós e eles Relações culturais entre brasileiros e imigrantes Rio de Janeiro Editora FGV 2006 p 117 14 É de autoria de Gilberto Freyre essa alusão Vide Casa Grande e Senzala pag 198 15 LOURENÇO Eduardo A nau de Ícaro São Paulo Cia das letras 2001 p50 5 suas mas de outros povos por ele dominados Foi quem traçou um modelo quem fez um cadinho quem transformou a terra bruta em solo fértil numa dinâmica entre mundos expressa na dificuldade em distinguir a identidade coletiva naquele espaço onde a distinção em ser português e ser brasiliano ou mazombo encontrase envolta numa discussão profunda sobre identidades16 Dos séculos em que atuou como agente ativo da colonizaçãorestaram memórias de uma experiência que deu certo e que de variadas formas se transformaram em história A segunda fase dessa experiência bem diferente é representativa de um Portugal empobrecido politicamente inexpressivo no contexto europeu cujos nacionais buscaram novas terras para sobreviver à pobreza e ao desamparo de seus líderes Era preciso documentos para entrar em terras dantes de Portugal Já não eram mais senhores antes disso eram pobres e estrangeiros buscando sustento numa terra que já havia sido sua submetidos ao destino de viver fora de sua pátria obrigados a desenvolver estratégias e astúcias na arte da sobrevivência Essa outra fase da experiência exprimiu a recriação da própria identidade portuguesa no além mar como uma das muitas estratégias dos migrantes portugueses Das vivências conjuntas com os compatriotas dos espaços diferenciados de sociabilidade das práticas de migração e das escolhas e formas de trabalhar além de certas características de personalidade que vão além da temática deste trabalho restaram memórias evidências que o tempo desmanchou em quase lendas apesar de mais próximas e mais vivas que as do tempo da colônia De ambas as fases cristalizaramse discursos retratos falados sobre Portugal e de sua população entre os brasileiros que muitas vezes mesclaram ambas as experiências mesmo que essas tivessem distintas temporalidades Retratos que mesmo passados séculos chegaram aos nossos dias representadas a partir de um importante veículo de recriação do passado o discurso histórico apoio fundamental do processo de construção do imaginário nacional17 16 As variadas perspectivas dessa discussão são abordadas por JANCSÓN István PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identi dade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme Viagem incompleta A experiência brasileira Formação Histórias São Paulo SENAC 1999 Ver também PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses americanos brasileiros identidades políticas na crise do Antigo Regime luso americano Almanack brasiliense nº 3 p 6981 2006 17 GODOY João Miguel Teixeira de Formas e problemas na historiografia brasileira Revista de História da UNISINOS v 13 nº 1 p 6677 JanAbr de 2009 6 Sendo a historiografia brasileira um dos principais veículos que possibilitaram a disseminação de muitos desses discursos representações simbólicas do país e de seus habitantes que se transmutaram parcialmente para as terras da América não há porque não desvendála como importante fonte de investigação posto ser a mesma por si só uma representação do passado18 e um lugar de memória social19 memória que ganhou sentido no trabalho de reflexão da escrita realizada pelo historiador a partir de demandas pessoais sociais e políticas de seu presente A historiografia aqui referida expressa uma teia discursiva que envolve na atualidade parte do conhecimento brasileiro sobre Portugal criando mitos e imagens a respeito mesmo que convergentes e divergentes distintos e paradoxais entre si A não uniformização dessa produção já revela de per si a sua própria historicidade e sua renovação não exclui o presente nem o lugar social de seus muitos autores Diante da construção discursiva que caracteriza a historiografia brasileira voltada aos estudos da formação dessa sociedade levantamos alguns problemas que nortearam nossa investigação Como o historiador brasileiro construiu Portugal e os portugueses dentro da dimensão temporal Como ele os entendeu Quais as ressignificações que os historiadores deram às representações já existentes Como foi representado o povo português que participou da formação brasileira como sujeitos de nossa história as nuances e entendimentos de sua formação seu papel no contexto brasileiro suas estratégias de sobrevivência e astúcias seus interesses sociabilidades seu imaginário e as problemáticas existentes na formação de um novo espaço no contexto do mundo moderno com suas permanências e rupturas Eis os problemas lançados para esta investigação O cerne de nossa proposta como se pode vislumbrar diz respeito à construção de um Portugal e dos portugueses pelos historiadores brasileiros Não se trata do português e do Portugal reais verdadeiros perdido nas brumas do tempo e cujo legado restou apenas em vestígios objetificados pela pesquisa histórica em sua ânsia de reconstrução de regeneração de um passado que se esconde que não se deixa ver em todas as dimensões do real que oferece apenas a verossimilhança de si porque inventado a partir de presente do historiador e de seus embates 18 MALERBA Jurandir A história escrita teoria e história da historiografia São Paulo Contexto 2006 19 NORA Pierre Entre memória e história a problemática dos lugares Projeto História nº 10 p 0728 1993 7 São os livros de história do Brasil mas não apenas que carregam ao longo dos anos e dos séculos os discursos que os historiadores fizeram daquele país e de seu povo Na práxis de construção da própria história construiuse também a história do outro cristalizandose interfaces que dialogam entre si sejam portuguesa holandesa francesa africana ou indígena e que justificam a brasilidade e sua alteridade de forma positiva ou negativa dependendo do contexto Assim partimos do princípio de que a historiografia enquanto prática de construção identitária constrói também outras identidades além da pretendida e em seu metier mesmo que de modo incidental articula a retórica do outro o nãoser o avesso do ser São esses discursos que buscamos na prática da história do Brasil A construção da historiografia brasileira é preciso destacar não se deu de forma uniforme bem ao contrário Padecendo de toda sorte de imposições pela antiga metrópole de imbricação de vivências entre brasileiros e portugueses de turbulência de pensamentos contraditórios de ideologias díspares de distintos interesses e até da ambigüidade de se ter como brasiliano no espaço colonial expressa uma multiplicidade de discursos reveladores na busca de uma identidade Por historiografia brasileira é mister esclarecer que consideramos o conceito em sua polissemia e no contexto desta investigação nos termos firmados por Carbonell20 a história do discurso um discurso escrito e que se afirma verdadeiro que os homens têm sustentado sobre seu passado aberto à análise e recomposição de sua constituição 21 Os documentos históricos firmados quando da escrita do passado sujeitos à análise da narrativa e dos seus enfoques das interpretações e das visões de mundo do uso das evidências de métodos para sua composição assumem o cariz do que aqui se nomeia como historiografia Por sua vez os autores desses documentos são aqui tratados como historiadores consoante o entendimento de Falcon22 e Koselleck23 ao estabelecer que o que dá forma a tal 20 CARBONELL CharlesOlivier Historiografia Lisboa Teorema 1992 p 6 21 Cf GODOY João Miguel Teixeira de Formas e problemas da historiografia brasileira Revista de História da UNISINOS v13 nº 1 p 6677 JanAbr 2009 22 FALCON Francisco J C A identidade do historiador Estudos Históricos n 17 p 730 1996 23 KOSELLECK Reinhardt historiaHistoria Madrid Editorial Trotta 2004 e Id Los estratos del tiempo estúdios sobre la historia Barcelona Ediciones Paidós 2001 Os estudos de história conceitual desenvolvidos por Koselleck apontam as longas e importantes modificações no que hoje conhecemos como História Como um singular plural ou coletivo a História segundo Koselleck passa a designar a partir do século XVIII em seu sentido moderno numa só palavra os fatos o relato destes e o conhecimento científico 8 identidade é a autoconsciência de ter produzido ou tentado produzir um texto de História bem como aquele que é reconhecido por têlo produzido Tais ressalvas são imprescindíveis para que se entenda o que pode e o que não pode ser considerado um trabalho de historiografia no Brasil24 visto que os espaços acadêmicos para cursos de História naquele país surgiram somente com a fundação das Faculdades de Filosofia Ciências e Letras de São Paulo em 1934 e do Rio de Janeiro em 1935 Foram estes espaços que formaram as primeiras turmas de historiadores no país cuja produção de profissionais veio à tona dez anos depois de maneira tímida o que demonstra que durante muitos anos a história do Brasil foi escrita pelos eruditos homens que se dedicaram a escrever a história da nação Francisco Iglesias25 apontou que no Brasil oitocentista o ofício do historiador foi executado por uma categoria mais abrangente de intelectuais a dos homens de letras Não sendo profissionais da História diplomatas professores médicos advogados párocos militares comerciantes dedicavamse a esse campo do conhecimento de forma sistemática e apaixonada acumulando um saber cuja principal fonte de legitimidade era o trabalho de pesquisa documental o trabalho de consultar reunir criticar e copiar documentos manuscritos A história escrita nesse contexto onde não havia historiadores de ofício mas De tal consideração surgem duas perspectivas uma com o foco no sujeito e outra no texto A primeira parte da premissa da existência de certo tipo de profissional especializado praticante de um ofício intelectual que consiste em saber produzir um tipo específico de conhecimento no caso conhecimento histórico que se materializará em um texto reconhecido como de História pelos demais praticantes do ofício Na segunda perspectiva há a questão de existir ou não características capazes de conferir o caráter de História a um determinado texto sendo irrelevante o fato de que quem o produziu ser considerado ou não um historiador As contestações sobre o período da assunção deste sentido moderno da História apresentado por Koselleck são feitas por YILMAZ L Como a História deveria ser escrita ou deve mesmo ser escrita Ágora v 11 nº 1 p 2129 2005 24 Mesmo que existam inúmeras obras sobre o Brasil produzidos ao longo de seu processo colonizador é ponto pacífico não se tratar de obras de caráter historiográfico posto não atenderem aos requisitos mínimos para merecer esta catalogação ficando as mesmas no campo da literatura ou de aporte documental A respeito ver RODRIGUES José Honório Teoria da história do Brasil São Paulo Progresso Editorial 1949 SODRÉ Nelson Werneck O que se deve ler para conhecer o Brasil Rio de Janeiro CBPE 1945 GUIMARÃES Manoel Salgado Nação e Civilização nos trópicos Estudos históricos nº 1 1988 ARRUDA José Jobson e TENGARRINHA José Manuel Historiografia lusobrasileira contemporânea Bauru EDUSC 1999 IGLESIAS Francisco Historiadores do Brasil Belo Horizonte EUFMGIPEA 2000 KANTOR Íris Esquecidos e Renascidos historiografia acadêmica lusoamericana São Paulo HUCITEC Salvador Centro de Estudos Baianos 2004 entre outros Por outro lado mesmo que se considerem alguns trabalhos como historiográficos pende sobre os mesmos o cariz de não se enquadrarem como uma historiografia tipicamente brasileira 25 IGLÉSIAS Francisco José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira Estudos Históricos nº 1 p 5578 1988 9 eruditos está visceralmente ligada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro encontrandose naquela instituição os parâmetros para sua realização como será exposto mais adiante Os intelectuais que produziram estudos tidos como históricos no período anterior às Faculdades de História conviveram segundo Iglesias26 com duas situações uma de crise profunda no campo do poder cuja marca era a incerteza política e a outra era o processo de aprimoramento dos trabalhos históricos através das relações com outros campos do saber surgindo daí uma tensão entre o historiador e o político Somente com o surgimento dos citados cursos de História na década de 1930 e com a formação dos mesmos ao longo dos anos seguintes e a produção que daí adveio é que o trabalho do historiador deixou de ser amador para se tornar um ofício Em razão disto utilizamos indistintamente os termos intelectuais homens de letras e historiadores para aqueles que se dedicaram aos estudos históricos tornandose autores reconhecidos pelos seus pares ou assim o sendo posteriormente Do mesmo modo consideramos como historiográficos os trabalhos por eles produzidos desde que expressem uma crítica do processo histórico tornandoo inteligível dados imprescindíveis a um trabalho dessa natureza As obras escolhidas fazem parte do chamado cânone da historiografia brasileira e nelas Portugal foi tratado não como temática principal bem ao contrário a discussão do Brasil se expõe em perspectiva Nem por isso essa discussão obscureceu Portugal como sujeito da história brasileira pois é na relação entre Brasil e Portugal e no entendimento do primeiro que se representou o segundo São esses discursos que nos dispomos a investigar posto que nomeadas vezes passem despercebidos nas discussões sobre o próprio Brasil fixando se de forma explícita ou insidiosa na memória dos leitores dessa historiografia A seleção das obras utilizadas como fontes para a investigação recaiu na produção de autores de nacionalidade brasileira e cujos textos temas e campos de trabalho vinculamse à história do Brasil Tal escolha por evidente exclui os chamados cronistas coloniais bem como os brasilianistas27 cujos trabalhos a nosso ver não expressariam as formações 26 Ibidem p 61 27 Entendese por brasilianistas os autores estrangeiros especialmente estadunidenses e franceses que se dedicaram a analisar a realidade histórica do Brasil favorecendo seu crescimento e robustecimento Alguns autores compreendem tratarse de um movimento iniciado desde a terceira década do século XX com a 10 discursivas que tentamos desvendar como principal objetivo desta investigação seja a criação de uma identidade para o Brasil onde se faz necessário a construção de um discurso que fala do outro representandoo Esta seleção pode ser tomada como artificial e discutível apesar de tratarse de trabalhos de valor reconhecido e incontestado É artificial no sentido de que elimina muitas outras obras e autores que poderiam bem representar os chamados períodos históricos aqui trabalhados Entretanto é consabido que toda e qualquer seleção e periodização é contestável por se tratar de uma entre tantas outras estratégias de abordagem e de atribuições de sentido Tal limitação por sua vez é intrínseca à reflexão teórico metodológica que cerca o presente trabalho Não foi nossa intenção dado o tempo que tivemos para realizar a investigação proposta além das limitações formais impostas pelas normas da academia abordar toda a obra dos autores escolhidos nem nos prendemos às possíveis mudanças de pensamento que porventura existisse em cada um deles salvo em casos que tais mudanças foram expressivas e estiveram diretamente vinculadas ao objeto do presente trabalho A escolha de determinadas obras teve como critério serem as mesmas quase uma síntese de pensamento de seu autor no quadro de um tempo determinado Nosso esforço é o de compreender dialogar e mediar o diálogo sempre apoiados na sensibilidade da origem social da formação intelectual enfim do lugar social e da data dos historiadores aqui contemplados cujo trabalho possibilita a compreensão das representações discursivas que buscamos sobre Portugal e seu povo e que foram reelaboradas ressignificadas conforme o contexto de sua produção Nosso intuito é alcançar uma compreensão mais ampla dessas representações sucessivas mas não maciça entrada de profissionais franceses nas recém criadas universidades brasileiras Na maioria das vezes porém os autores dedicados à questão entendem ter sido o Brasilianismo um movimento fomentado a partir da Revolução Cubana e encabeçado por historiadores norte americanos devidamente financiados e interessados na realidade específica do Brasil Por terem acesso ilimitado aos arquivos nacionais vetados para os pesquisadores brasileiros foram tomados como agentes da Agência de Inteligência americana no contexto das ditaduras militares sofrendo rejeição por parte dos intelectuais nacionais A respeito ver PONTES Heloisa Brasil com z Estudos Históricos v 3 nº 5 p 5572 1990 SEBE José Carlos Introdução ao nacionalismo acadêmico os Brasilianistas São Paulo Brasiliense 1984 BEIGUELMAN Paula Cultura acadêmica nacional e Brasilianismo In BOSI Alfredo Org Cultura brasileira temas e situações São Paulo Ática 1987 11 suprimidas que são expressas na chamada historiografia brasileira no contexto social de sua produção Tomamos as obras que nos serviram de fonte ao longo da investigação como textos produtores de sentidos forjados construídos elaborados por historiadores que se ocuparam em discutir analisar e até descrever Portugal e os portugueses tornandose assim meios de constituição de sentidos Partimos deste princípio para buscar na historiografia não apenas os fatos escondidos por trás da ideologia ou da imaginação frutos dos lugares sociais dos variados autores cuja escrita foi aqui utilizada como fonte bem como a continuidade entre esta imaginação e a produção de sentidos no contato entre estes escritores e um mundo tangível que apesar de efetivamente observado não é um dado neutro a ser simplesmente apreendido pelo historiador A escolha de obras que vieram a ser pertinentes para o objetivo central da investigação teve como fio condutor as formas de identidades representadas pelos intelectuais por meio de suas narrativas em diversas perspectivas orientadoras sobre o passado O recorte cronológico da produção de tais obras por sua vez fixa desde a segunda metade do século XIX com o elogio da colonização portuguesa no dizer de Reis28 até a década de trinta do século XX cuja produção marca mesmo que de forma ambígua a identidade portuguesa no Brasil As noções da Irmandade e Ambigüidade existentes mesmo que de forma distintas na historiografia trabalhada são tomadas aqui como fio condutor no levantamento da retórica a ser desvendada Pela primeira entendese a crença de que Brasil e Portugal são pátrias irmãs com culturas que ao longo de sua história se fundem numa só cultura brasileira O termo lusobrasileiro é indicativo dessa noção reunindo sob tal denominação as duas nações criando uma categoria liminar A Ambigüidade cuja raiz se encontra na historicidade da colonização é pouco refletida na produção historiográfica ao se referir aos portugueses observase uma indefinição quanto a real nacionalidade de quem se falava posto serem os lusitanos considerados culturalmente muito próximos dos brasileiros quase não se podendo tratálos como 28 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora da FGV 2003 p 23 12 estrangeiros exóticos ou até mesmo imigrantes29 A questão do surgimento do sentimento nativista ou da idéia de nação no contexto da colônia poderia dirimir a dificuldade de muitos autores em ver os portugueses como diferentes dos brasileiros assumindo uma retórica do outro30 Não obstante na maioria dos casos a noção de irmandade é perpassada pela de ambiguidade em face da artificialidade da construção oitocentista de tal distinção que findou por se refletir na historiografia das décadas seguintes nomeadamente aquela que reflete os primórdios do fluxo imigratório português para o Brasil31 Tendo como base essas construções metodológicas tomamos a historiografia como a expressão de uma teia discursiva que envolve parte do conhecimento brasileiro sobre Portugal Essa teia constitui as chamadas evidências32 desta investigação e a partir da mesma verificase a criação de um discurso que se reflete tanto na identidade brasileira quanto no construto identitário do próprio português visto que segundo CILLIA as identidades nacionais e sociais são produzidas reproduzidas transformadas e destruídas pela linguagem e outros sistemas semióticos33 Para melhor exposição do tema esta dissertação encontrase estruturada em três partes sendo a primeira voltada exclusivamente à elucidação da formação da narrativa histórica no Brasil como estratégia de consolidação da nação e da tentativa de criação de uma identidade nacional após a emancipação política A este período denominamos Tempo de Construção no qual a história da nação começa a ser criada e redefinida alijada da produção portuguesa Destacamos nesse contexto a criação do Instituto Histórico e 29 Sobre a questão há que ter em conta as circunstâncias que favoreceram que a fronteira entre os dois grupos fosse fluida e mal definida determinada mais por circunstâncias específicas e conjunturais do que por quaisquer critérios gerais ou objetivos Ao nível da produção dos discursos de legitimação do processo de construção da nova nação se expressa a mesma dificuldade de definição em termos políticos e históricos da diferença entre a antiga metrópole e o novo estado imperial ou onde se deveria situar a ruptura e quais as continuidades a serem valorizadas Qual o papel a atribuir a Portugal aos portugueses e à casa de Bragança na construção de uma cultura e de uma identidade nacionais Tratase de um problema de fundo que foi obtendo respostas diferentes e contraditórias ao longo do século XIX e durante a primeira metade do século XX 30 GOMES Artur Nunes Sob o signo da ambigüidade configurações identitárias no espaço português do Rio de Janeiro Dissertação de mestrado em Antropologia UNICAMP 1998 p 70 31 OLIVEIRA Lúcia Lippi de Nós e eles Relações culturais entre brasileiros e imigrantes Rio de Janeiro FGV 2006 A autora chama atenção para o crescente desinteresse acadêmico sobre a experiência portuguesa no Brasil após a Independência Tal temática apresenta escasso número de investigações se comparadas com as pesquisas sobre outros grupos nacionais que imigraram para o Brasil na mesma época 32 Cf HARTOG François As evidências da história O que os historiadores veem Belo Horizonte Autêntica 2011 33 CILLIA Rudolf REISIGL Martin WODAK Ruth A construção discursiva das identidades nacionais São Paulo Contexto 2003 13 Geográfico do Brasil IHGB como agente dessa construção posto que sua produção tornouse o parâmetro para reprodução durante boa parte do século XX da historiografia produzida regionalmente no Brasil Para tanto destacamos a obra de Von Martius e Francisco Adolpho Varnhagen como exemplar para a proposta daquele crucial momento histórico Conquanto Von Martius não tenha escrito um trabalho de história apenas uma proposta de como deveria se pautar a historiografia doravante produzida utilizamos seu texto como demonstrativo da identidade pretendida pelo IHGB e pelo próprio trono doravante Por sua vez entendemos que a retórica da brasilidade foi desenvolvida nos escritos de Varnhagen mesmo que enlaçada com a exmetrópole portuguesa A segunda parte tem como pretensão demonstrar como a República após sua instauração provocou uma substancial mudança nas propostas monárquicas do Instituto e de como a retórica oitocentista foi modificada mesmo dentro da mesma instituição São tempos de mudanças tanto no contexto sociopolítico brasileiro quanto nos modos daqueles que escreviam sua história perceberem o país e suas relações com o outro Para tanto buscamos desvendar as obras de Capistrano de Abreu para entender como e por que se modificou a narrativa historiográfica em relação a Portugal e seus nacionais na compreensão do Brasil no contexto do IHGB No mesmo contexto republicano e numa nova arena de produção de um discurso histórico de caráter mais independente e sem vínculos institucionais buscouse revelar as extrusões existentes na historiografia brasileira em relação às interpretações anteriores A verificação de tentativas de superação dos liames com Portugal bem arquitetados na historiografia oitocentista e que perderam espaço para modelos de história onde o próprio Brasil era posto em dúvida nos levaram a buscar nas obras de Manoel Bomfim e Paulo Prado o desvio até então não encontrado a antítese que ainda não se ousara fazer Nas suas obras ácidas e sagazes onde o Portugal romantizado foi morto e outras construções discursivas assumiram seu lugar buscamos desvendar a retórica do outro Novos olhares e narrativas inovadoras sobrevieram àqueles autores a entrada em cena dos enfoques de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda é demonstrativa de que o Brasil mudara muito nos cem anos após sua emancipação política assim como o próprio mundo mudara A terceira parte de nossa dissertação ocupase desse novo tempo que chamamos de Tempos de reencontro período no qual ocorreu a plena recomposição das relações entre os dois países a demonstrar um Brasil que ainda buscava se descobrir ao mesmo tempo 14 em que tentava se desvencilhar da onipotente presença portuguesa restos coloniais arraigados no fazer de uma sociedade em busca da própria face Para adentrar de vez no território da investigação propriamente dita fazse necessário dizer que nosso propósito quando nos referimos a Portugal no título deste trabalho nunca foi de limitar nossa pesquisa aos feitos do Estado Português e de seus mandatários A Historiografia brasileira não trata apenas disso e resumir o olhar de tantos autores a uma história exclusivamente política seria enfadonho O português é aqui uma extensão de Portugal e seus atos suas maneiras suas astúcias cristalizadas na produção que nos serviu de fonte só enriquecem o mosaico desenhado pelos brasileiros ao longo das décadas sobre Portugal Afinal são os portugueses os agentes de sua própria pátria que neles se personifica Vejamos sua presença na historiografia do e sobre o Brasil 15 PARTE I A IRMANDADE COMO RETÓRICA EM TEMPOS DE CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO Há corrente convicção entre os historiadores brasileiros que a história produzida nos primeiros séculos depois do aporte português no Brasil não pode ser reconhecida em primeira mão como sendo brasileira apesar de arquitetada no ambiente colonial por homens que viveram e participaram da construção da colônia 34 Sendo a conquista de parte das terras americanas e sua posterior colonização um feito português cumpriu aos mandatários daquele império a tarefa do registro assim como da própria administração do vasto território Frei Vicente de Salvador Jean de Léry Brandão Antonil são nomes entre tantos outros que gravaram os primórdios da história brasileira testemunhas vivas do tempo narrado Cartas diários de viagens memórias crônicas relatos documentos administrativos instruções entre tantas outras perfazem as fontes originais que expressam a presença portuguesa nas terras do Novo Mundo registros sobre a terra nova que passava a integrar o notável império ultramarino português De conteúdo variado assim como suas formas esses documentos que definem o surgimento de um novo espaço no cenário mundial apregoam também a percepção de seus autores acerca do lugar as ordens desejos determinações e conselhos que marcaram indelevelmente a chamada América Portuguesa Ao construírem uma extensão do seu reino original nos liames do chamado pacto colonial os portugueses também construíram a 34 A propósito da questão ver ARRUDA José Jobson TENGARRINHA José Manuel Historiografia lusobrasileira contemporânea Bauru EDUSC 1999 DIHEL Astor Antônio A cultura historiográfica brasileira dos IHGB aos anos trinta Passo Fundo EDUPF 1998 RODRIGUES José Honório Teoria da história do Brasil São Paulo Companhia editora nacional 1978 Do mesmo autor História da história do Brasil Historiografia colonial São Paulo Companhia editora nacional 1979 e História e historiadores do Brasil São Paulo Fulgor 1963 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 2003 IGLESIAS Francisco Historiadores do Brasil Belo Horizonte EDUFMG Nova Fronteira 2000 MACHADO Ironita Cultura historiográfica e identidade Passo Fundo EDUPF 2001 entre outros 16 própria imagem como administradores feitores capatazes proprietários e também como marinheiros náufragos degredados aventureiros entre tantas outras representações que foram sendo gravadas no tempo pelos documentos redigidos ao longo do mesmo De indistinto modo o fizeram outros autores nascidos na colônia cujos nomes guardam lugares nas narrativas desse período Sendo a nova terra de nomenclatura variada35 uma extensão do reino português sua história seria também a história de Portugal a qual integrava ou deveria integrar tal qual a história das demais colônias portuguesas e dos territórios onde Portugal marcou presença É pois na imbricação das histórias desses dois lugares que nasceu o caráter ambíguo da historiografia colonial escrita por portugueses nascidos em Portugal ou na América e que também se reconheciam como mineiros pernambucanos baianos e tantas outras naturalidades oriundas das capitanias pátrias em miniaturas no contexto colonial36 Foi da necessidade de registrar a história do império que se fundou a Academia Real de História Portuguesa em 1720 reproduzindose em Lisboa o consórcio de homens cultos surgido quando do Renascimento por toda Europa37 Em seu auxílio foi determinado que uma instituição da mesma natureza fosse organizada no Brasil38 no sentido de dar 35 Ilha de Vera Cruz Terra de Santa Cruz 1500 Terra Nova e Terra dos Papagaios 1501 Terra de Santa Cruz do Brasil América Terra do Brasil 1507 são nomes comumente usados nos documentos de distintas épocas que demonstram a versatilidade dos usos na nomeação da nova extensão do império português na América A riqueza de denominações denuncia a dificuldade de nomeação das terras portuguesas na América e até o presente ainda se discute o significado de Brasil e até mesmo de sua forma escrita A respeito ver CARVALHO José Murilo de O Brasil e seus nomes Revista de História da Biblioteca Nacional Ano 2 nº 23Agosto 2007 36 A diferença entre nação país e pátria conceitos lautamente encontrados nos documentos que remontam à colonização do Brasil e utilizados no presente texto ancorase nos estudos de JANCSÓN István e PIMENTA João Paulo Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTTA Carlos Guilherme Viagem incompleta a experiência brasileira Formação Histórias São Paulo SENAC 1999 37 CAJUEIRO Renato Luís Bacellar Letrados DEl Rey os conselhos de história e o poder real em Portugal na primeira metade do século XVIII Dissertação de mestrado em História Universidade Federal Fluminense 2007 38 No Brasil a história oficial foi escrita entre os séculos XVI e XIX pelos chamados cronistas ultramarinos instituídos oficialmente após a Restauração Portuguesa em 1640 Repetia se pois uma prática de escrita institucionalizada já em uso pela Espanha desde os princípios da colonização de suas possessões n a América Foi Felipe II quem oficializou o cargo de cronistamor das Índias de Castela dandolhe a missão de corrigir ordenar e custodiar todas as descrições geográficas do Novo Mundo além de escrever uma história geral do lugar A respeito ver RODRIGUEZ Maria Tereza Nava Reformismo ilustrado y americanismo La Real Academia de La Historia 17351792 Tese de doutorado em História Universidade Complutense de Madri 1988 p 199 José Veríssimo Serrão sobre o assunto sugere que muitas vezes esse título foi meramente honorífico assinalando que a fundação da Academia Real demarcou o período de declínio dos 17 assistência na empreitada à congênere metropolitana dandose início assim a uma história lusobrasileira Acintosamente nomeada como Academia Brasílica dos Esquecidos39 a primeira instituição40 formada para a escrita da história do Brasil ficou marcada pelo hibridismo e ambigüidade da condição dos letrados americanos considerados inferiores aos seus pares do reino aos quais competia usar ou não os escritos dos acadêmicos da colônia O desejo de incorporação ao orbe literário metropolitano dos eruditos americanos que integravam a instituição e negados desde a formação da academia no reino reverteuse em indisfarçada mágoa quase a exigir um olhar mais acurado do rei aos esforços empreendidos pelos seus súditos na tarefa colonial41 Os Esquecidos cujo estabelecimento foi festejado nos círculos acadêmicos da Europa cedo deixaram de existir sendo substituídos por uma nova academia de nome também jocoso Os Renascidos o que revela o caráter satírico de seus integrantes e da instituição Outros estabelecimentos da mesma natureza existiram na colônia 42 e nos seus quadros figurava muitos dos nomes que compuseram a primeira em sua maioria também ligada aos grêmios literários portugueses e a outras academias da península o que vem provar mais uma vez a existência de uma teia de relações intrapessoais que unia acadêmicos americanos e reinóis num projeto que propiciava o estreitamento dos vínculos entre a colônia e a metrópole mas que também permitia aos primeiros uma percepção privilegiada croniciados muito embora oficialmente os cargos tenham sido preservados até o século XIX SERRÃO José Veríssimo A historiografia portuguesa Lisboa Verbo 1973 v 3 p 57 39 A Academia Brasílica dos Esquecidos foi fundada em 1724 por ordem do capitãogeral Vasco Fernandes César de Meneses governador da Bahia a qual competiu a coleta de informações e dados pertinentes a serem enviados à metrópole a fim de serem anexados à Monumental História de Portugal que se encontrava em redação pela Academia Real A propósito ver KANTOR Íris Esquecidos e Renascidos historiografia acadêmica lusoamericana 17241759 São Paulo Hucitec 2004 p 203 PEDROSA Fábio Mendonça Op cit p 26 40 Apesar dos Esquecidos serem apresentados sempre como o primeiro movimento academicista da colônia não se pode negar a existência de pequenos núcleos acadêmicos antes dessa data uma vez que os mesmos são referidos pelos próprios Esquecidos A respeito ver CASTELO José Aderaldo O movimento academicista no Brasil 16411808 São Paulo Conselho Estadual de Cultura vol I tomo I 1969 p 85 41 Segundo Holanda da insatisfação dos intelectuais coloniais que se julgaram esquecidos quando da convocação para composição do quadro da Academia Real Portuguesa originouse a denominação da academia brasílica expressando a jocosidade bem própria dos ilustrados Cf HOLANDA Sérgio Buarque de Capítulos de literatura colonial São Paulo Brasiliense 1991 42 Outras instituições foram organizadas no mesmo período na América Portuguesa entre elas citamos as de de maior destaque como a Academia dos Felizes 1736 a Militar 1740 e a dos Seletos 1752 En quanto as duas últimas sediaramse na cidade do Rio de Janeiro a Academia dos Felizes localizouse na cidade de Salvador primeira capital da colônia 18 da territorialidade colonial e das condições de efetivação da soberania portuguesa nesse espaço Coagidos pelas exigências da academia metropolitana aos estudos e escrita das academias coloniais restou um papel secundário posto devesse ser a história brasílica parte integrante da história de Portugal43 Oficializada a produção dos letrados coloniais deveria voltarse para as necessidades metropolitanas distanciandose da crônica da vida social Negouse à posteridade pois com essa prática o registro escrito da realidade colonial dos embates e queixumes dos colonos que também se consideravam esquecidos pelos governantes portugueses44 Por conseguinte o teor dos escritos dos letrados que compunham essas academias ficava assim indelevelmente comprometido pela parcialidade e pelos interesses que perpassavam sua escrita no jogo político que pontuava a relação metrópole e colônia 45 As dissertações 43 É PEDROSA quem esclarece sobre a necessidade de uma escrita das possessões americanas com o propósito de coligir informações sobre a Nova Lusitânia devendo esse material ser enviado para a Corte a fim de ser anexado à monumental História de Portugal que estaria sendo redigida pela Academia Real de História Portuguesa As dificuldades de redação da história brasílica eram imensas principalmente no tocante às colônias Para solucionar este problema o governo metropolitano correspondia com o vicerei do Brasil Vasco César de Meneses D João V ordenou que o vicerei do Brasil fizesse coligir as informações precisas para a composição da História Portuguesa encargo da Academia Real na parte relativa ao Brasil PEDROSA Fábio Mendonça Op cit p 24 44 Essa insatisfação pode ser constatada pelo grande número de rebeliões coloniais e aqui citamos as mais expressivas Revolta da Cachaça 16601661 Conjuração do Nosso Pai 1666 Revolta de Beckman 1684 Guerra dos Emboabas 17081709 Revolta do Sal 1710 Guerra dos Mascates 17101711 Motins do Maneta 1711 e Revolta de Felipe dos Santos 1720 sendo as citadas consideradas como movimentos nativistas de caráter bem específico e localizado Os movimentos que exigiam emancipação política tornaramse realidade com a Conjuração Mineira 1789 Conjuração Carioca 1794 Conjuração Baiana 1798 Conspiração dos Suassunas 1801 e Revolução Pernambucana 1817 Sobre as guerras indígenas que grassaram o período destacamos a Confederação dos Tamoios 15551567 Guerra dos Aimorés 15551673 Guerra dos Potiguares 15861599 Levante dos Tupinambás 16171621 Confederação dos Cariris 16861692 Revolta de Mandu Ladino 17121719 Guerra dos Manaus 1723 1728 Resistência Guaicuru 17251744 Guerrilha dos Muras todo o século XVIII e Guerra Guaranítica 17531756 Estudos recentes apontam que esses conflitos não deram origem a qualquer sentimento nacional ou à percepção de antagonismos extremos que opusesse portugueses e brasileiros enquanto tais apesar de alguns autores procurarem atribuílos a um sentimento nacionalista Talvez por isso mesmo não tenham alçado um lugar de destaque a ponto de serem registrados nas crônicas do período A respeito ver JANCSÓ István e João Paulo G PIMENTA 2000 Peças de um Mosaico ou Apontamento para o Estudo da Emergência da Identidade Nacional Brasileira MOTA Carlos Guilherme org Op cit p 170 45 Nos estatutos da Academia brasileira encontravamse claramente determinados como objetivos da mesma a escrita da história brasílica e a realização de certames literários prática corrente nas academias européias Não obstante pesquisas mais específicas sobre o tema evidenciaram na atuação da instituição o ideário encomiástico e as práticas laudatórias como estratégia de valorização dos seus membros da conservação do prestígio simbólico perante a corte portuguesa além do aprofundamento dos laços com a elite local Exéquias 19 ali chanceladas tinham como foco os feitos militares eclesiásticos e políticos centrandose principalmente na história natural46 de forma a construir uma narrativa de pleno interesse da Coroa tais fatos demonstram que a sociabilidade intelectual da colônia estava mais interessada na visibilidade que a atividade promoveria perante a corte lisboeta que na prática da escrita da história como um registro do real possível47 No horizonte dos acadêmicos brasílicos a expectativa de retribuição da mercê régia era um elemento de mobilização importante de tal maneira que a escrita da história podia ser transformada em moeda de barganha no jogo político entre os colonos e os poderes centrais como nos mostra Kantor Descrever as ações relevantes ser nominalmente incluído como bom servidor da Coroa numa relação histórica ou numa gazeta impressa representava uma estratégia para obter a remuneração dos serviços prestados ao rei48 Demonstrado o teor da história escrita durante a colônia evidenciase o caráter da classe que a produzia bem como a composição desses lugares de produção histórica e o lugar social dos seus membros Os acadêmicos coloniais não eram e nem poderiam ser súditos comuns sem nenhuma visibilidade social Eram na totalidade membros da chamada elite públicas e homenagens aos nobres que visitavam a colônia eram rigorosamente cumpridas pelos acadêmicos de então a demonstrar que o encômio e a bajulação tinham também uma função de reforço do corpo político do Estado 46 O padrão formal da narrativa histórica na colônia caracterizouse por uma imbricação entre o empenho erudito e a especulação teológicopolítica da própria história ao combinar diferentes modalidades de narração e técnicas de exposição de dados As reconstituições de episódios estudos genealógicos hagiografias exéquias panegíricos poesias corografias catálogos mapas de rendimentos excertos de legislação e até tratados internacionais compuseram a produção desses lugares constituindose como um gênero ligado à arte da memória ou assumindo o caráter de documentação informativa ou comprobatória que integravam memoriais administrativos necessários à obtenção das remunerações de serviços prestados à Coroa As especificidades da história que se deveria ali produzir tinham representantes responsáveis pelos estudos e pela coleta de dados ficando a cargo de Inácio Barbosa Machado a escrita da história militar ao padre Gonçalo Soares Franca a história eclesiástica o ouvidorgeral do cível Luís Siqueira da Gama assumia a história política assim como o desembargadorchanceler Caetano de Brito e Figueiredo a história natural De todas inegavelmente foi a última que apresentou a maior produção Conforme PEDROSA Fábio Mendonça Op cit p 22 47 Como matriz fundadora da historiografia brasileira é certo que as práticas e procedimentos das academias portuguesas foram reproduzidos pelos homens de letras da então colônia Explica se então por esse viés a ausência de narrativas sobre os entrechoques entre a sociedade colonial e a coroa portuguesa posto que a maioria das dissertações produzidas nesses espaços voltavase para a história natural revelando a cultura letrada brasílica e os diversos níveis de sociabilidade intelectual no Brasil setecentista 48 KANTOR Iris Op cit p 98 20 colonial49 indiferentes ao movimento da sociedade com os olhos voltados tão somente para o reino e para seus interesses de classe o que os impedia de nutrir sentimentos localistas como aconteceu nas academias provinciais da França 50 Sendo a educação formal apanágio de poucos elemento de valorização no espaço colonial constituiuse naturalmente como elemento de reprodução da ordem social e de ostentação51 em meio a uma população marcadamente inculta graças à proibição régia da existência de impressos52 e da circulação dos mesmos além dos limites da metrópole53 Daí reputarse como inviável que homens que não pertencessem a essa elite tivessem acesso à educação formal de modo a poder integrar um espaço de letrados como as ditas academias Impõese neste momento importante esclarecimento de forma a situar a natureza da história produzida nesses lugares de saber e que deriva de uma questão identitária pois sendo a colônia uma extensão de Portugal condição plenamente reafirmada nos escritos 49 Cf PEDROSA Fábio Mendonça Sol Oriens in Occidus Contribuições para o estudo da Academia Brasílica dos Esquecidos Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro UERJ 2001 p 158 Em seu texto o autor esclarece a composição daquele espaço de saber que contava entre os seus 155 membros precipuamente eclesiásticos senhores de engenho proprietários de fazendas de gado e magistrados públicos Do total de membros somente 36 representariam o núcleo efetivo dos acadêmicos restando aos demais a participação esporádicas nas sessões cabendo apenas a quatro deles a tarefa de escrever dissertações históricas Também apresenta estimativas interessantes sobre o dito quadro ao enumerar que dos trinta e seis participantes efetivos 23 eram naturais do Brasil e destes 20 eram baianos sendo os demais naturais de Portugal Somente 9 dos 36 membros tinham cursado a Universidade de Coimbra tendo os demais recebido educação primária nos colégios jesuítas Nesse universo 16 acadêmicos eram eclesiásticos 7 seculares e 9 regulares em sua maioria jesuítas A maioria de brasileiros não frequentara a Universidade 50 ROCHE Daniel Op cit p 188 Roche demonstra que as academias das províncias francesas apesar da manutenção de relações estreitas com as academias parisienses participaram ativamente do jogo político entre as periferias e o centro político chegando mesmo a nutrir a formação de um sentimento localista em oposição a Paris Majoritariamente compostas por magistrados e burgueses as academias provinciais promoveram ideais de progresso do espírito humano e uma visão cívicopedagógica da História 51 Cf VILLALTA Luiz Carlos O que se fala e o que se lê língua instrução e literatura In MELO E SOUSA Laura org NOVAIS Fernando Op cit p 339 52 SOUTHEY Robert Op cit p 48 FONSECA Thaís Nívia de Lima Letras ofícios e bons costumes civilidade ordem e sociabilidades na América portuguesa Belo Horizonte autêntica 2009 p 127 53 Não obstante as idéias eram divulgadas a partir de três suportes os livros estrangeiros geralmente escritos em outra língua as cópias manuscritas e a linguagem oral Era prática comum dos letrados se reunirem para leitura coletiva assim como era usual o empréstimo de livros de interesse comum de uso interditado Além dos livros a circulação de cartas e pasquins revelava a expressão artística e as redes de sociabilidade destacandose entre as mesmas a prática de versejar como importante suporte literário do território colonial JANCSÓN István A sedução da liberdade cotidiano e contestação política no final do século XVIII In MELLO E SOUSA Laura de Op cit p 399 21 históricos e seus habitantes súditos diretos da monarquia que ali reinava54 não há que se falar em uma história brasileira mas uma história lusobrasileira na qual o Brasil era confirmado como um apêndice português e sua história uma parte da história de Portugal A singularidade da sociedade colonial não poderia assim ser pensada em oposição ao Velho Mundo55 e a história apenas reforçava o pacto político forjado no âmbito do sistema colonial56 Tais características se refletiram em sua recepção como ambígua pouco representativa e portanto pouco brasileira A constatação do cariz daqueles discursos fez com que mesma sofressem certa repulsa pelos intelectuais do pósindependência que consideraramna como obras de estrangeiros cheias de falsidades a respeito do povo e do Brasil57 Evidentemente a história feita em tais condições não poderia ser recepcionada como uma história marcadamente nacional que expressasse as diferenças entre a Metrópole e a colônia Inexistia nessa história produzida durante o período colonial o reconhecimento 54 PIMENTA defende a tese de que durante os três primeiros séculos a identidade política dos colonos era construída a partir do substrato comum de serem súditos de um mesmo rei formando assim indistintamente a grande nação portuguesa fossem nascidos em Portugal ou na colônia Mesmo que se chamassem pernambucanos baianos ou paulistas eram todos portugueses submetidos a um só governo e jurisdição Somente em meados dos setecentos com a complexificação do sistema colonial e a agudização das diferenciações metrópolecolônia a identidade lusa começa a sofrer progressivo desgaste integrandose à questão a idéia de América para alem de uma referência geográfica geral mas também como espaço de identificação e de atuação política ocasionado pelas rupturas de pacto colonial no continente como foi o caso da luta nas treze colônias britânicas 1776 e na colônia francesa de SaintDomingues 1791 Tais datas segundo o autor citado são fundamentais na modificação da identidade coletiva colonial politizando a passandose doravante a ser lusoamericana Diferente portanto dos chamados reinóis essa nova identidade ganhará ares definitivos quando da instalação da corte no Rio de Janeiro com a intensificação das discussões políticas que se tornarão mais abrangentes vindo a se refletir na re fundação de uma percepção de si Português da América nas duas primeiras décadas do século XIX passou a ser uma distinção especial na medida que identificava um súdito em um espaço de atuação política que se tornara segundo os objetivos da corte o espaço central dos destinos da monarquia Para o autor a historiografia brasileira tem atuação marcada pelo anacronismo ao fazer uso de termos como brasileiros e nacionais mesmo tratando de contextos em que os mesmo inexistiam A propósito ver PIMENTA João Paulo Garrido Portugueses Americanos Brasileiros Identidades políticas na crise do Antigoregime Lusoamericano Almanack Brasiliense nº 3 Maio2006 pp 6981 55 Segundo ODÁLIA No caso brasileiro havia entre seus intelectuais o acalento do sonho de que a então colônia poderia ser um dia a cabeça do Império de que fazia parte Por isso ela fora pensada como o natural prolongamento da Monarquia e do Império portugueses numa relação de igualdade e nunca de sujeição Esse sonho ganhou dimensões especiais após 1808 mas se desfez no dia seguinte ao da independência In ODÁLIA Nilo As formas do mesmo ensaio sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Viana São Paulo UNESP 1977 56 NOVAIS Fernando Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial 17771808 São Paulo HUCITEC 1979 57 MATOS Raimundo José da Cunha Dissertação acerca do sistema de escrever a História Antiga e Moderna do Império do Brasil Revista do IHGB Rio de Janeiro nº 26 p 121143 1863 22 de Portugal como um outro distinto do Brasil objeto desta investigação A produção histórica desse período não revelava um Portugal diferente do Brasil naturalizando o entrelaçamento manso e pacífico entre colônia e metrópole ao tempo em que ocultava outros processos sociais o que vem a darlhe um cariz de parcialidade a embotar qualquer percepção de Portugal como corpo político distinto sem a alteridade necessária à presente investigação Demarcase pois o não uso desses escritos na presente investigação O aprofundamento das relações metrópolecolônia bem como a conjuntura política reinol refletiuse na produção desses lugares de saber que decaiu com a vinda da corte portuguesa para o Brasil e mais tarde com a equiparação da colônia à vicereino fatos que mudaram completamente o contexto político colonial A abertura de seus portos às chamadas nações amigas parece ter desfeito as contradições e ambigüidades do sistema extinto em 1816 com a elevação do Brasil a Reino Unido A pretensa inferioridade foi diluída diante da constante presença de estrangeiros em suas ruas assim como a entrada de produtos industrializados o que permitia que se ratificasse a impressão de que o Brasil era uma extensão da Europa58 ao qual se pensava pertencer A busca por parâmetros da civilidade do Velho Mundo fundamentou uma imprescindível ligação com a Europa no sentido de nela se fazer incluso O estabelecimento de instituições centralizadoras que transformassem a colônia na sede provisória da monarquia portuguesa principalmente os de caráter cultural como a Imprensa Régia a Biblioteca o Real Horto e o Museu Real somados à vinda da Missão Francesa59 caracterizouse como o primeiro passo para que o Brasil se assumisse como centro produtor e reprodutor de sua cultura e sua memória 58 Cf ALENCASTRO Luís Felipe de Vida privada e ordem privada no Império In ALENCASTRO Luís Felipe de Org NOVAIS Fernado Dir História da vida Privada no Brasil A corte e a modernidade nacional São Paulo Cia das Letras 1989 p 89 59 Enquanto no plano econômico a Inglaterra representava o principal interlocutor para a nova sede do império português no plano das idéias a França asseguraria os modelos com os quais se buscava pensar e viabilizar um modelo de organização nacional para o Brasil A despeito da invasão napoleônica a Portugal passos significativos neste sentido foram dados por D João VI ao chamar à nova sede do império português a Missão Francesa oito anos após a chegada e instalação da Corte no Rio de Janeiro Se o ideário político revolucionário francês era recusado pelos futuros construtores do Estadonação a França era contudo percebida em sua função civilizatória para o Brasil função esta restrita eminentemente ao plano da cultura Estar afinado com os princípios da civilização àquela altura do século XIX significava estar de alguma forma em sintonia com as regras da cultura francesa instância legitimadora por excelência de um projeto civilizador E portanto com a vinda da Missão Francesa ao Brasil e os desdobramentos daí decorrentes que um significativo passo é dado no sentido de transformar a França em modelo de civilização para as elites 23 A instituição de Reino Unido parece ter sido determinante para a efetivação da Independência brasileira tornada realidade diante das exigências do Vintismo Uma vez independente revelouse no país o vazio ideológico em que se desenvolvera o processo de emancipação fazendose necessário preencher esse espaço por meio de uma ação deliberada e racional orientada no sentido de construir o que não havia para além de um arcabouço jurídicoadministrativo60 No plano políticoideológico as delimitações de um trajeto que fizesse da colônia uma nação e da massa herdada da colônia em povo era a exigência do momento A sobrevivência do país independente se confundia pois com a capacidade política de suas classes dirigentes realizarem com sucesso a missão política fundamental do século XIX estruturar e tornar efetivo um projeto de Nação Guardadas as especificidades do momento o certo é que o imperador Pedro I apoiou a fundação de novas instituições de saber bem como a formação de uma elite intelectual autônoma capaz de escrever a história da nova nação estabelecendose por tal via a garantia de uma identidade própria Não obstante seu apoio não se concretizou imediatamente e somente alguns anos após sua abdicação do trono do Brasil e mesmo após sua morte foram lançados os fundamentos de uma instituição que teria como missão a realização desse projeto construir a nação brasileiras forjadoras do futuro Estado nacional A propósito ver GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da História Acervo v 4 nº 1 p 135143 1989 60 Os mecanismos jurídicos já garantiam meios de se fazer criar uma identidade coletiva distinta da identidade étnica regional ou mesmo territorial consoante o Decreto de 14 de Janeiro de 1823 definindo se a partir de então o que seria um cidadão no Estado recém nascido os direitos civis e participação política no mesmo A respeito ver RIBEIRO Gladys Sabina O Tratado de 1825 e a construção de uma determinada identidade nacional os seqüestros de bens e a Comissão mista BrasilPortugal In CARVALHO José Murilo de Nação e cidadania no Império Novos Horizontes Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007 CERVO Amado MAGALHÃES José Calvet Depois das caravelas as relações entre Portugal e Brasil 18082000 Brasília Editora da UnB 2000 ANDRADE Carolina Naciff de O Tratado de paz e amizade como fonte de direito a Comissão Mista BrasilPortugal os direitos das gentes e as relações internacionais na época da Independência Monografia de conclusão da graduação em História da Universidade Federal Fluminense 2002 24 CAPÍTULO 1 UM PROJETO DE HISTÓRIA PARA A NAÇÃO EMANCIPADA A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro61 em 1838 respondeu à lógica do contexto da emancipação política do país norteandose pela tarefa primeira de criar uma história para a nação Assim como na Europa dos oitocentos a história deveria ter um papel importante e até mesmo fundamental a desempenhar na elaboração de uma narrativa nacional que permitisse a construção ou rearranjo de determinadas peculiaridades da nova nação a fim de darlhe a visibilidade necessária Forjado para realizar a monumental tarefa de compilar metodizar e guardar fatos e nomes no sentido de compor uma história nacional almejavase nesse arranjo a recriação de um passado singular a partir da ordenação dos fatos e da solidificação dos mitos de fundação O IHGB vinha para satisfazer assim os critérios de uma vertente historiográfica eminentemente brasileira formada não apenas por brasilienses62 mas também por 61 Doravante ao nos referimos à instituição trataremos sempre pela sigla IHGB pela qual é usualmente tratada 62 O termo é da época e foi usado pela primeira vez por Hipólito da Costa ao lançar o Correio Brasiliense em 1822 no sentido de diferenciar os filhos dos portugueses nascidos no Brasil dos próprios portugueses moradores do país Buscavase assim a demarcação de uma identidade coletiva onde os brasilienses eram entendidos como os naturais e brasileiros quem negociava ou se estabelecera no Brasil Foi José da Silva Lisboa no mesmo ano que definiu o brasileiro como o natural do Brasil considerandoos como animais que ainda não atingiram sua plenitude assim referindose aos indígenas Somente no período pósindependência o termo foi introduzido na linguagem do poder por Carneiro de Campos Ao declarar que o adjetivo brasileiro doravante não significaria apenas o lugar de nascimento mas também de uma qualidade na esfera política o deputado deu um novo significado enquadrandoo como designativo dos partidários de um projeto político constitucional para o Brasil encabeçado por Pedro I independente do seu lugar de nascimento Somente quando foi definida a idéia de nação da qual se encarregou a primeira geração do IHGB o termo brasileiro tornouse um substantivo pátrio A propósito ver VAINFAS Ronaldo Dicionário do Brasil imperial 18221889 Rio de Janeiro Objetiva 2002 MACHADO Humberto Fernandes NEVES Lúcia Maria Bastos Pereira das O império do Brasil Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 25 portugueses que assumiriam a nova nacionalidade cujo papel consistia em explicar a questão nacional superando a narrativa das academias coloniais Aos intelectuais que tomariam assento nesse lugar de saber cumpria atender a essa necessidade básica da nova nação em vias de consolidação Impulsionados pela urgência e pela consciência da tarefa que tinham a realizar esses historiadores deveriam se tornar os forjadores da pretendida nacionalidade Careceriam pois desvendar a formação do Brasil construindo sua história divulgandoa e solidificandoa nas gerações futuras63 Sendo Portugal a primeira referência daqueles intelectuais com a Europa esta não se limitava à antiga metrópole alastrandose mesmo para outros países No plano econômico o principal interlocutor do Brasil era a Inglaterra que ali impusera sua presença desde a abertura dos portos no plano cultural o modelo provinha da França tida como instância legitimadora de um projeto de civilidade almejado naquele momento histórico 64 O contrário podese dizer do ideário politicorrevolucionário daquele país plenamente recusado pelos então construtores da nação brasileira A vinculação à Europa mesmo que fosse ponto pacífico ao novo projeto de nação em alguns aspectos parece não ter ultrapassado o nível da retórica não se adequando às muitas inovações culturais do Velho Mundo Um exemplo disso foi a manutenção no neófito IHGB das mesmas regras para inserção de membros das academias setecentistas A tradição historiográfica iluminista se fez presente também na concepção de história professada pelo instituto o que pode ser facilmente identificado no tratamento linear dado ao desenvolvimento da história e à sua instrumentalização como mestra da vida contida 63 A instituição principal instituto científico do Brasil no século XIX foi inspirada na cultura iluminista francesa em especial no Institut Historique de Paris Os objetivos estabelecidos por seus membros na escrita da história nacional orbitaram ao redor da idéia do esclarecimento das elites as quais em seguida se encarregariam de esclarecer o restante da sociedade Isto é a preocupação com a sistematização de uma história do Brasil se viabilizou durante a consolidação do Estado Nacional brasileiro dentro do qual a civilização do Brasil se daria do topo da pirâmide social para a sua base Assim a nação brasileira deveria surgir como o desdobramento de uma civilização branca e européia nos trópicos A respeito ver NAXARA Márcia Regina Capelari Pensando Origens para o Brasil no Século XIX História e Literatura In História Questões Debates Curitiba n 32 p 4764 2000 p 50 DIEHL Astor Antônio Op cit p 27 64 Um contato de natureza cultural com a França não era na verdade novo se pensarmos que já quando da vinda da família real para o Brasil em 1808 passos significativos neste sentido foram dados por D João VI ao receber na nova sede do império português a Missão Francesa oito anos após a chegada e instalação da Corte no Rio de Janeiro A língua francesa como forma de expressão culta de uma elite intelectualizada ficava patente na publicação de artigos e comentários naquele idioma pela revista Minerva brasiliense Estar afinado com os princípios da civilização àquela altura do século XIX significava estar de alguma forma em sintonia com as regras da cultura francesa A propósito ver GUIMARÃES Manuel Luís Salgado Op cit p 140 26 em seu brasão A tradição particular do iluminismo português se tornou marca na geração fundadora daquele espaço65 onde as práticas eruditas de investigação já existentes desde fins do Século XVII foram gradualmente incorporadas marcando o início da autonomização disciplinar e da profissionalização do ofício do historiador no Brasil mesmo que a história como disciplina autônoma e independente ainda não estivesse institucionalizada66 Por conseguinte os membros daquele espaço não eram nem poderiam ser historiadores de ofício com formação específica para os estudos históricos eram diletantes determinados numa missão de construir um passado para o país Apesar de escolhidos por critérios sociais não se pode negar as disposições intelectuais dos mesmos que diante da tarefa assumida passaram a referir a si e aos demais autores de trabalhos históricos como historiadores historiógrafos e cronistas67 definição dada precipuamente pela instituição a qual eram ligados lugar que institucionalizava suas falas autorizandoas 65 A discussão em torno do Iluminismo e de seus reflexos em Portugal é tema polêmico entre os historiadores O ambiente intelectual luso em virtude de ter articulado as idéias modernas com a tradição católica é comumente identificado nas historiografias brasileira e portuguesa como um caso a parte quase um contraponto à Modernidade européia Alegase ter sido o Iluminismo em Portugal pautado pela articulação entre as idéias modernas e a tradição católica o que findou por se refletir em seu cariz eclético O emprego desse termo como elemento definidor da prática iluminista portuguesa está presente em obras de filosofia e história produzidas no século XX como as dos historiadores portugueses José Sebastião da Silva Dias José Esteves Pereira e António Braz Teixeira Não obstante apesar de contraditório é inelutável o fato de o Iluminismo português ter obtido relevante recepção por parte dos membros do IHGB instituição mantida pelo Estado monárquico brasileiro que tinha no Catolicismo sua religião oficial A respeito da discussão sugerimos a leitura de CARVALHO Flávio Rey de Revisitando o Iluminismo contribuições para o estudo do caso português Revista Tempo de Conquista nº 5 2009 Do mesmo autor Um Iluminismo português A reforma da Universidade de Coimbra 1772 São Paulo Annablume 2008 MACEDO Jorge Borges de Estrangeirados um conceito a rever Bracara Augusta Revista cultural de regionalismo e história da Câmara Municipal de Braga nº 28 p 184187 1974 SÉRGIO António Breve interpretação da história de Portugal Lisboa Livraria Sá da Costa 1998 GUIMARÃES Manuel Luís Salgado Nação e civilização nos trópicos Estudos Históricos nº 1 1988 p 527 HAZARD Paul O pensamento europeu no século XVIII Lisboa Editorial Presença 1989 66 A respeito bem observou GUMARÃES nos moldes seguintes Quando se pensa em campos disciplinares no Brasil no século XIX é muito difícil pensálos a partir de uma lógica e de um sistema de fronteiras hoje plenamente constituído e plenamente assentado Certamente isso não era assim no século XIX e esses homens de letras transitavam em termos de suas discussões pelos campos mais variados como a etnologia a etnografia a história e a lingüística Uma gama muito variada de questões ocupou aqueles que além de tudo tiveram como tarefa pensar a Nação de forma mais geral sobretudo pensála de um ponto de vista de uma história nacional GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Uma história da história nacional textos de fundação In LIMA Ivana Stolze CARMO Laura do Org História social da língua nacional Rio de Janeiro Edições Casa de Rui Barbosa 2008 p 397 67 A diferença entre eles era estabelecida conforme o posicionamento do escritor diante do que fora relatado e a extensão do conteúdo abordado A diferença entre o historiador e o historiógrafo não é explicitada nos 27 Em meio ao processo de consolidação do Estado Nacional assinalado por disputas regionais coube ao IHGB o dever de sistematização de uma história tida como oficial congregando entre seus membros a elite intelectual brasileira bem como a elite política e econômica da época O recrutamento de membros a partir de determinantes mais sociais que intelectuais é explicado em primeira mão por ter na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional68 seu idealizador fato que se revelou no quadro institucional bem marcado por uma teia de relações pessoais Por conseguinte o espaço do IHGB sobressaiu se também como uma extensão do círculo ilustrado imperial elencandose entre seus membros vogais do Supremo Tribunal procuradores desembargadores e chefes da Secretaria dos Negócios do Império69 documentos institucionais do IHGB conforme faz mostra o trabalho de HRUBY abaixo referenciado No entanto os dicionários no século XIX faziam a distinção entre estes dois literatos Historiador e historiógrafo escreviam histórias mas de diferente modo e por diversas circunstâncias Historiógrafo era um literato pensionado do Estado ou de um príncipe para escrever a sua história e correspondia quase sempre ao que se chamava cronista O historiador por sua vez era um literato que compunha uma história sem ser pensionado e quase sempre não contemporânea cabendolhe generalizar os motivos as ligações com outros fatos e as conseqüências apresentando obras estruturais dentro de um conjunto organizado O historiógrafo por sua vez constituíase num simples analista que referia acontecimentos reunia materiais ao passo que o historiador escolhiaos colocavaos em ordem examinava os fatos julgava os homens e as coisas devendo ser menos adulador e mais imparcial que o historiógrafo Já nos dicionários no início do século XX o termo historiador passa a englobar estas duas acepções Por sua vez os escritos dos cronistas sempre foram tomados como um gênero menor sem pretensão de obra acabada limitada a uma missão a um episódio posto serem trabalhos conjecturais baseados em presunções evidências incompletas pressentimentos ou suposições Esta convicção sobre os cronistas se estabeleceu a partir dos escritos coloniais chegando mesmo aos nossos dias A propósito da discussão ver HRUBY Hugo Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra A história do Brasil no IHGB 18891912 Dissertação de mestrado em História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2007 Sobre o conceito ver SILVA A de M Dicionário da língua portuguesa Lisboa A José da Rocha 1858 v 2 p 144 FARIA E de Novo Dicionário da língua portuguesa para uso dos portugueses e brasileiros Lisboa Tipografia Lisboense de José Carlos DAguiar Vianna 1850 v 3 p 678679 Que escreve história ou escreve sobre a vida da humanidade O que conta ou narra um acontecimento um fato ou sucesso Historiógrafo escritor de história Cronista cronógrafo o que é encarregado oficialmente pelo Estado ou por um príncipe de escrever a história de uma época VALENTE A L dos S Dir Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa Lisboa Tipografia da Parceria Antonio Maria Pereira 1911 v 1 p 901 Aquele que escreve sobre história o que escreve história narrador Historiógrafo aquele que escreve a história de uma época cronista historiador MORENO A Dicionário complementar da língua portuguesa ortoépico ortográfico e etimológico com um glossário de arcaísmos Porto Educação Nacional 1936 68 A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi fundada em 1817 por D João VI com o objetivo de promover o desenvolvimento da agricultura lavoura e pecuária do Reino Unido Só dez anos depois ocorrida a independência do Brasil é que a SAIN veio a funcionar fazendo parte de um conjunto de medidas que visavam entre outros objetivos a centralização do Estado Sobre o termo indústria aplicado à nomenclatura da instituição devese destacar que o mesmo não tinha a mesma conotação no século XIX referindose a empreendimento de natureza econômica fosse em qualquer de suas áreas 69 Já observara SCHWARCZ que fazia parte dessa lista do instituto nada menos que dez conselheiros do Estado seis desses sendo senadores Portanto aí estava reunida a nata da política imperial boa parte dela 28 Esse conjunto de membros bem se assemelhou a uma sociedade de corte dada a sua composição que reproduzia a organização das extintas academias setecentistas fosse como membro efetivo ou sócio honorário Tal caráter foi acentuado pelo patrocínio pessoal assumido pelo próprio imperador do Brasil D Pedro II70 cujas oblações incrementavam o orçamento da instituição formado em mais de 75 de dotações estatais para além da primeira O estrato social da mais alta elite letrada do qual os membros do IHGB faziam parte importou e adaptou doutrinas científicas para a interpretação da realidade brasileira como o Iluminismo o Positivismo e o Evolucionismo71 que serviram para criar uma história legitimadora de posições políticas dos altos grupos sociais e do próprio Estado 72 O marco da produção a ser realizada doravante teria como pauta a aproximação do Brasil com a Europa embora um pouco distanciado de Portugal Esse projeto elaborado pelas elites coloniais que chegavam ao Império mantendose no poder73 exigia um simbolismo a ser construído de modo a sedimentar a arquitetura da nação e demandava a edificação de uma identidade própria autônoma capaz de se fazer reconhecer pelas demais nações 74 A função pragmática dessa produção centrada na simplificação dogmática e teleológica e num esquema de fatos e imagens da nacionalidade representava o substrato do projeto de construção da história do Brasil Deveria pois ser registro de uma memória que ensejaria uma epopéia nacional a partir de fatos grandiosos bem como a própria fisionomia nacional a paisagem do Brasil ancorada em sua memória físicogeográfica Dessa forma tanto a epopéia quanto a paisagem brasileira deveriam ser além de preservadas continuamente acionadas por um sentimento que deveria ser enfatizado doravante o nascida em Portugal e fiel defensora da Casa de Bragança SCHWARCZ Lílian Moritz O espetáculo das raças cientistas instituições e a questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 2000 p 46 70 Ao fazer uma análise da hierarquia interna existente no IHGB SCHWARCZ observou algumas divisões curiosas em relação aos seus sócios que se diferenciavam em Efetivos Correspondentes Honorários e Beneméritos Enquanto a posição de presidente honorário era cativa do imperador a de presidente era exclusiva de políticos renomados Já aos sócios que adentravam por méritos acadêmicos eram reservadas majoritariamente as funções de secretários eou oradores In SCHWARCZ Lílian Moritz Op cit p 163 71 Cf DIEHL Astor Antônio Op cit p 30 72 SAES Décio A formação do Estado burguês no Brasil 18881891 Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 73 RICÚPERO Rodrigo A formação da elite colonial 15301630 São Paulo Alameda 2009 74 Os mecanismos jurídicos já garantiam meios de se fazer criar uma identidade coletiva distinta da identidade étnica regional ou mesmo territorial consoante o Decreto de 14 de Janeiro de 1823 definindo se a partir de então o que seria um cidadão no Estado recém nascido os direitos civis e participação política no mesmo A respeito ver RIBEIRO Gladys Sabina O Tratado de 1825 e a construção de uam determinada identidade nacional os seqüestros de bens e a Comissão mista BrasilPortugal In CARVALHO José Murilo de Op cit p 356 CERVO Amado MAGALHÃES José Calvet Op cit p 124 ANDRADE Carolina Naciff de Op cit p 68 29 patriotismo concebido não mais como referência de uma determinada região como se dera nos tempos coloniais mas relacionado com o território brasileiro e seu passado comum que lhe deu forma75 Esse passado colonial por sua vez não deveria ser apagado nem visto de maneira crítica Bem ao contrário deveria ser visto como um caminho para o estabelecimento do projeto monárquico e sua história deveria ser como um desenvolvimento contínuo desde o descobrimento até aquela data Escrever história de desordens entre portugueses e brasileiros em especial a da Independência significaria abrir espaço para polêmicas conflitos de interpretações e disputas tudo aquilo que questionava o funcionamento do próprio sistema político e intelectual e que não interessava à nova nação pela ótica de seus dirigentes Mas como se faria essa construção considerandose as tensões e embates havidos no processo de emancipação política e as próprias dificuldades enfrentadas ao longo dos anos subseqüentes ao fato76 O que interessava às elites locais marcadas por séculos de 75 Ver ROUANET Maria Helena Eternamente em Berço Esplêndido São Paulo Siciliano 1991 GUIMARÃES Manoel Salgado Livro de fontes da historiografia brasileira Rio de Janeiro FAPERJEdUERJ 2010 76 A presença portuguesa no Brasil apresentou uma dualidade característica após a Independência Em grande número os portugueses se dividiram em dois grupos que acatavam ou não a emancipação política Não obstante essa divisão a Assembléia Constituinte de 1823 concedeulhes privilégios jurídicos e políticos não sendo considerados estrangeiros desde que concordassem com a Independência e não se envolvessem em lutas contra a efetivação da mesma Todavia esse tratamento privilegiado não necessariamente se refletiu no tratamento que os imigrantes receberam do povo pois a marca da lusofobia e o antilusitanismo que eclodiram naquele momento histórico foram visibilizadas na ocorrência de episódios violentos alicerçados na visão do português como representante da dominação colonial que continuava sua prática espoliativa a partir do abuso dos preços da cobrança de aluguéis a preços exorbitantes de vender seus produtos a preço acima do valor de mercado sempre suspeitos de práticas comerciais menos honestas A lusofobia no Brasil era um reflexo dessa suposta exploração econômica que os imigrantes portugueses exerciam sobre os brasileiros para muitos dos quais era inaceitável que os antigos colonizadores do Brasil continuassem a dominar diversos setores da economia nacional A lusofobia era fomentada também em grande parte pela posição de destaque que os lusitanos continuaram a ocupar no Brasil mesmo após a independência Os portugueses concentravamse nas cidades e grandes centros urbanos ao contrário de outros imigrantes que tendiam a ficar no campo Muitos portugueses eram proprietários de imóveis e pensões e dominavam o comércio varejista no Brasil Em consequência tinham contato direto com o público e eram vistos com desconfiança pela população A propósito ver RIBEIRO Gladys Sabina Mata galegos os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha São Paulo Brasiliense 1990 Da mesma autora ver Os rolos do tempo O antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro 18891930 Niteroi UFF 1987 e A liberdade em construção identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado Rio de Janeiro RelumeDumará 2002 FAUSTO Bóris Trabalho urbano e conflito social Rio de Janeiro DIFEL 1977 Ver também SALES Iraci Galvão Trabalho progresso e sociedade civilizada São Paulo HUCITEC 1986 ALENCASTRO Luis Felipe de Proletaires et esclaves immigrés portuguais et captifs 30 patrimonialismo e pautadas num sistema econômico escravocrata alavancado por uma monarquia a se destacar em seu caráter de elemento exótico no quadro político do Novo Mundo Como permitir a manutenção das instituições anteriores à independência sem ocasionar traumas e fraturas no corpo social Como mostrarse separado de Portugal se este representava a primeira referência com a civilizada Europa Em 14 de novembro de 1840 foi proposto um concurso acadêmico por Januário da Cunha Barboza secretário perpétuo da instituição Seu objetivo era escolher um plano para escrever a história do Brasil A existência de tal concurso é demonstrativa de quanto os membros do Instituto se encontravam angustiados diante da imensa tarefa a realizar77 Fazer do Brasil uma nação munidos da pretensão de atingir um modelo idealizado de civilização europeia estava longe de ser simples pois o país reunia uma série de condições problemáticas passado colonial recente instituições públicas escassas e em muitos casos inexistentes populações marginalizadas marcadas pela passividade e totalmente avessas à prática da cidadania78 O sentido do concurso era o de definir um caminho um roteiro que permitisse a superação de tais obstáculos que contemplasse as diversas ambições por trás da escrita da história e também satisfizesse a ambição científica latente nos quadros do IHGB de realizar tal construção 11 Reconhecendose no outro e o outro é Portugal Foi a proposta formulada pelo naturalista alemão Karl Philipp Von Martius em 1845 que permitiu o deslindamento da questão O ensaio intitulado Como se deve escrever a história do Brasil79 deflagrou as linhas mestras do projeto capaz de garantir uma identidade ao Brasil dandolhe o contorno da civilização pretendida Estabelecia também as bases do que deveria ser uma história científica da nação brasileira e as proposituras necessárias à africanins a Rio de Janeiro 18501872 Cahiers du CRIAR nº 4 Publications de lUniversité de Rouen 1984 77 Odália obtempera ter sido um grande problema a transformação da ex colônia em nação visto que só a mágica seria capaz de converter uma colônia marcada por séculos de rapinagem e escravidão numa nação independente e soberana de um dia para outro Necessário seria uma grande estratégia capaz de consolidar essa possibilidade na mentalidade da população e esta estratégia fecundou nas idéias de Von Martius Cf ODÁLIA Nilo Introdução Varnhagen São Paulo Ática 1979 p 16 78 WELLING Arno Estado história e memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova fronteira 1988 p 88 79 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Como se deve escrever a história do Brasil In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Livro de fontes da historiografia brasileira Rio de Janeiro EdUERJ 2010 Originalmente publicado na RIHGB t VII 1845 pp 381403 31 confecção de um discurso histórico ideal àquele momento De tais propostas tornouse possível identificar uma história dita nacional mesmo que traçada por um estrangeiro depreendendose na mesma a forma e o lugar estabelecidos para o português enquanto sujeito dessa narrativa Mesmo sendo bávaro Martius estava longe de ser um desconhecido dos homens de letras do Brasil posto que já houvesse visitado o país em missão científica Também publicara uma obra intitulada Viagem pelo Brasil em parceria com Johann Baptist Von Spix80 Apesar da formação e do interesse pelas ciências da natureza Martius era herdeiro da tradição iluminista e sócio correspondente do IHGB desde sua fundação o que chancelou a excelente receptividade que obteve seu trabalho no certame 81 Sua percepção do que as elites que fizeram a Independência queriam para o Brasil foi decisiva para a construção de sua proposta exitosa Mas o queriam essas elites para o Brasil Diante da resposta de difícil esclarecimento dúvida esta já revelada no próprio concurso do IHGB cujos integrantes mostravam dificuldade na definição de uma proposta identitária cumpria fazer uma nova questão O que não queriam essas elites para o Brasil Em que se expressava a vontade das elites brancas em relação ao pretendido projeto de criação de uma identidade nacional Guimarães assevera que as elites nacionais desprezavam o índio o negro o protestantismo o republicanismo e por extensão os seus próprios vizinhos da América Latina82 Tais identificações não sendo aceitas pelas elites nacionais não poderiam fazer parte do projeto 80 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von SPIX Johann Baptist Von Viagem pelo Brasil 18171820 Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Edusp 1981 Mesmo se tratando da apresentação dos resultados colhidos numa expedição de botânica e zoologia o texto dos dois autores revela um apreço pela totalidade da sociedade colonial brasileira e se destaca pelos estudos etnográficos de sua população Nele já é possível encontrar alguns argumentos que serão utilizados na monografia vencedora do concurso do IHGB como a presença indígena na colônia seus hábitos e a certeza dos autores da inferioridade dos mesmos aos quais consideraram uma civilização decaída Destacam também o modo de vida dos colonos seu cotidiano e estratégias de sobrevivência dados importantes para Martius que os sugere como preciosos como objeto de investigação do historiador oitocentista 81 Apenas dois trabalhos foram apresentados neste concurso Além de Martius concorreu Henrique Júlio de Wallenstein cônsul geral da Rússia no Rio de Janeiro cujo trabalho propunha o estudo da História do Brasil por décadas nos moldes do romano Tito Lívio ou do cronista português João de Barros e privilegiava a história política A história civil eclesiástica e literatura deveriam constar como observação no fim de cada capítulo Sua biografia foi publicada pelo IHGB após seu suicídio em 1843 Ver Revista do IHGB nº 21 abril de 1844 82 GUIMARÃES Manoel Luís Salgado Nação e civilização nos trópicos O IHGB e o projeto de uma história nacional Estudos históricos v 1 nº 1 p 527 1988 32 de nação que se queria para o Brasil Contudo como fugir da dura realidade nacional marcada pela imagem de grande laboratório racial criada a partir dos relatos de viajantes e naturalistas83 que encontravam guarida e larga difusão entre os intelectuais brasileiros e que viam nesse amálgama um impeditivo para o futuro pretendido 84 A proposta de Martius parece ter sido moldada para solucionar a questão apesar de não se adequar plenamente com o pensamento das elites brasileiras As primeiras linhas de seu 83 Tais relatos que muitas vezes ao diminuírem os homens realizavam movimento contrário quando o objeto observado era o meio a natureza exótica bela poderosa hiperbolizada em contraste com a pequenez do elemento humano selvagem desinteligente inferior NAXARA Márcia Regina Capelari Cientificismo e Sensibilidade Romântica em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX Brasília Ed UnB 2004 84 À visão dos viajantes que teceram suas considerações sobre o Brasil uniramse as variadas teorias de época tais como ideais positivistas o biologismo de Darwin o evolucionismo de Spencer o determinismo de Taine os estudos sobre o meio e o clima de T Buckle e a criminologia de Lombroso para citar algu mas Esse ideário foi incorporado na obra de intelectuais como Silvio Romero Euclides da Cunha e Nina Rodrigues entre outros onde o Brasil aparecia condicionado pelo seu passado colonial como um amálgama de raças não havendo ali portanto uma raça pura Com base em premissas deterministas eou evolucionistas muitos consideraram que a miscigenação dera origem a um povo composto por subraças fraco doente vadio marcado pela degeneração e por isso incapaz de obter algum êxito em constituir uma nação Guiados por uma suposta emergência do progresso e atribuindo o atraso do país a sua composição racial alguns entenderam serem urgentes posicionamentos e providências para que o mal que vinha sobretudo da raça negra e das más influências da escravidão não proliferasse desviando o Brasil do caminho sem voltas do progresso A respeito ver CUNHA Euclides Os Sertões São Paulo Cultrix 1973 Primeira edição de 1902 ROMERO Sílvio O Evolucionismo e o Positivismo no Brasil Rio de Janeiro Livraria Clássica de Álvares Companhia 1895 Do mesmo autor O Brasil social Rio de Janeiro Typographia Jornal do Commercio 1907 e Provocações e debates Rio de Janeiro Imprensa moderna 1910 NINA RODRIGUES Raimundo Os mestiços brasileiros Rio de Janeiro se 1889 Do mesmo autor O animismo fetichista dos negros baianos Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1935 As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil Bahia Progresso 1957 Primeira edição de 1894 e Os africanos no Brazil São Paulo Nacional 1988 Primeira edição datada de 1933 Sobre a discussão da recepção e difusão das teorias eugenistas no Brasil ver também SKIDMORE Thomas E Preto no branco raça e nacionalidade no pensamento brasileiro Rio de Janeiro Paz e Terra 1976 ODÁLIA Nilo O ideal de branqueamento da raça na historiografia brasileira Contexto v 03 nº 7 p 127136 1977 VENTURA Roberto Estilo tropical história cultural e polêmicas literárias no Brasil 18701914 São Paulo Companhia das Letras 1991 AZEVEDO Célia Maria Marinho de Onda negra medo branco o negro no imaginário das elites século XIX Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 SCHWARCZ Lilia Moritz O espetáculo das raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 2000 CÂNDIDO Antonio Introdução ao método crítico em Silvio Romero São Paulo USP 1988 CORRÊA Mariza As ilusões da liberdade A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil Bragança Paulista EDUSF 1998 NAXARA Márcia Regina Capelari Cientificismo e Sensibilidade Romântica em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX Brasília Ed UnB 2004 NAXARA Márcia Regina Capelari A construção da identidade um momento privilegiado Revista Brasileira de História v11 nº 2324p 181190 set91ago 92 RAGO Luzia Margareth Do cabaré ao lar a utopia da cidade disciplinar Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 REIS José Carlos As Identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro FGV 2001 SOUZA Neusa Santos Tornarse negro as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social Rio de Janeiro Graal 1983 33 trabalho já esclareciam a tônica de seu argumento centrado no cariz distintivo da população brasileira e no reconhecimento de três diferentes etnias formadoras da sua composição social a branca os portugueses a vermelha os indígenas e a negra os africanos Seu ensaio se ocupou em esclarecer o lugar social de cada uma dessas etnias destacando em primeira mão os ameríndios a chamada raça cor de cobre85 Para tanto traçou em detalhes o que seria válido investigar naquele grupo étnico e que poderia explicar a formação da nação discurso bem acalentado no âmbito da literatura romântica indigenista tão em voga naquele momento86 Aos negros também dedicou um lugar na sociedade brasileira embora se verifique não ter havido esmero da parte autoral em oferecer uma perspectiva detalhada sobre a participação desses na composição da história nacional87 Por último referenciou a raça branca representada pelo português no contexto da formação brasileira Foi o imperativo civilizacional que fez com que aquele autor destacasse Portugal no concerto dos elementos formadores do Brasil Em Martius o português surgiria como o poderoso e essencial motor da obra colonial no Brasil posto ter sido ele quem deu as 85 A ideologia romântica em voga na Europa ensinou a Martius que somente o que era nativo poderia ser entendido como nacional Desse modo os elementos verdadeiramente nativos do Novo Mundo seriam os povos indígenas que lá se encontravam antes da chegada dos colonizadores portugueses Por esse ponto de vista não havia dúvida de que o índio representava a essência da nacionalidade O encontro das três raças proporcionara um povo também renovado mas essencialmente nativo e nesse ponto consistiria a expressão da nacionalidade que a elite tanto buscava apesar de não se reconhecer em dois dos seus elementos formadores o índio e o negro 86 A literatura indigenista nasceu no bojo do manifesto romântico brasileiro encabeçado por Gonçalves Magalhães e Araújo Porto Alegre através da revista Nitheroy em 1836 Os românticos brasileiros inspirados pela definição de bom selvagem de Jean Jacques Rousseau projetaram no índio o espírito do homem livre e incorruptível criando uma imagem literária totalmente idealizada bem diferente da realidade dos próprios indígenas A primeira geração desse movimento foi representada pelo poeta Gonçalves Dias 18231864 fortemente influenciado pelas obras de Almeida Garret e Alexandre Herculano Na prosa o romantismo foi representado em primeira mão pela obra de José de Alencar 18291877 Iracema 1865 e Ubirajara 1874 Cf CÂNDIDO Antônio Formação da literatura brasileira Belo Horizonte Itatiaia 1981 87 Quando trata da raça preta ou etiópica Martius findou por se preocupar mais com o discurso em torno do tráfico do que propriamente discutir a raça como faz com as outras duas Para ele a introdução dos escravos negros no Brasil fez com que o país tivesse um desenvolvimento bem diferenciado dos seus vizinhos continentais não se envolveu entretanto na questão deixando aos historiadores a obrigação da descoberta sobre as virtudes e desgraças desse fato para a formação nacional Em relação ao índio cujo trato era extremamente positivo na literatura da época romantizada e nativista Martius se refere da mesma forma demonstrando acreditar terem os mesmos um passado glorioso com a existência de uma grande e desconhecida civilização também nas terras brasileiras para além das três bem conhecidas Astecas Incas e Maias A circunstância porém de não se terem achado ainda semelhantes construções no Brasil às outras da América certamente não bastam para duvidar que também neste país reinava em tempos muito remotos uma civilização superior In MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Idem p64 34 condições e garantias morais e físicas para um reino independente que foi se formando caudalosamente88 ao longo de três séculos Nesta linha de raciocínio o autor enfatizou as peculiaridades da colonização instaurada pelos descobridores do Brasil sublinhando a mentalidade portuguesa da época distinta do restante da Europa no concernente às causas da imigração Não devemos julgar a emigração desses colonos portugueses para o Brasil como ela se operava no século XVI e que lançou os primeiros fundamentos do atual império segundo os princípios que entre nós regulam as empresas de colonização Hoje em dia as colonizações são com poucas exceções empresas de particulares e nascem quase exclusivamente da necessidade de trocar uma posição pobre e apertada por outra mais livre e agradável Estas emigrações quase só têm lugar nas classes dos agricultores e artistas e quase nunca nas dos nobres e abastados Mas assim não aconteceu nos primeiros tempos da colonização no Brasil Elas eram então uma continuação dessas empresas afoitas e grandiosas dirigidas para a Índia e executadas ao mesmo tempo por príncipes nobres e povo dessas empresas que tornaram a nação portuguesa tão famosa como rica Também não nasceu esse desejo de emigrar de crises religiosas como por exemplo aconteceu na Inglaterra ele era antes uma conseqüência das grandes descobertas e empresas comerciais dos portugueses sobre a costa ocidental da África do Cabo Moçambique e Índia As mesmas razões gerais e poderosas que imprimiram a uma das nações mais pequenas da Europa um movimento tão poderoso que a impeliram para uma atividade que fez época na história universal induziramna igualmente à emigração para o Brasil89 Martius tencionava esclarecer que a descoberta e colonização do Brasil não se deveram a um fato isolado dos portugueses uma surpresa um acontecimento sem idealização bem ao contrário tanto a descoberta quanto a colonização tinham nas façanhas marítimas comerciais e guerreiras lusas sua justificativa O cariz português que ensejou o Brasil também teria bem antes grande influência sobre a política e o comércio da Europa mudando sua face e alterando sua história É nesse contexto de mudanças do Velho Mundo que os portugueses revelaram o Brasil cuja história para Martius estava indelevelmente articulada com a história daquele continente onde se destacavam como eméritos 88 É interessante destacar que Martius representou Portugal repetidas vezes em seu texto como um rio caudaloso que inundaria com suas águas todas as paisagens ao seu redor submergindoas e dominandoas 89 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Op Cit p 73 35 descobridores e navegadores Eram os portugueses um povo do qual os brasileiros deveriam se orgulhar de ter como pais fundadores tamanha sua capacidade e audácia na descoberta e na formação de novos lugares O português era por seus méritos um europeu excepcional assim como o eram os ingleses com sua capacidade inovadora e os franceses com seu ideário liberal mesmo que em temporalidades distintas Apesar de diferenciar positivamente o povo português no contexto europeu Martius revelou de modo incidental o Velho Mundo como espaço homogêneo sem diferenças internas e sem hierarquias sociais Em nenhum momento aquele autor identificou os portugueses como ibéricos revelando uma diferença bem em voga no contexto norte americano90 Ele os trouxe ao seu texto como legítimos representantes da superior civilização europeia herdeira dos gregos e romanos oriundos de uma raça pura e em decorrência os mais capacitados a formar uma nova nação independente e capaz como o Brasil assim poderia vir a ser Disso necessariamente se segue o português que como descobridor conquistador e senhor poderosamente influiu naquele desenvolvimento o português que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que o português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor91 Essa ligação esse vínculo entre o Brasil e a Europa foi estimulado por Martius em sua monografia entendendoo como de suma importância para a configuração identitária da nova nação Visava por conseguinte a manutenção das instituições anteriores à independência anseio maior da elite local posto estar consolidada como tal a partir de tais instituições O temor das arruaças e levantes que marcaram o chamado Primeiro Reinado nomeadamente de brasileiros contra os portugueses numericamente superiores no governo e cargos públicos e que findaram por provocar a abdicação de Pedro I estavam impressas 90 Alguns anos após a independência americana ocorrida em 1774 a entrada de cidadãos europeus nos Estados Unidos da América passava pelo crivo das diferenças internas dentro da própria Europa A sigla WASP é bem representativa do imigrante que se queria para os nascentes EUA brancos anglosaxões e protestantes A condição de católico ensejou inúmeros dissídios internos nos EUA envolvendo diretamente os irlandeses que apesar de considerados saxões não eram protestantes Alguns marcos geográficos do próprio continente definidores de certas identidades como alpinos ibéricos balcânicos entre tantos outros são demonstrativos das diferenças internas que sempre marcaram a história européia e que foi vislumbrada por muitos intelectuais de fora do continente como uma heterogeneidade excludente Um bom exemplo é o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil onde o autor destaca as diferenças de Portugal em relação à Europa assunto abordado na terceira parte do presente trabalho 91 Ibdem p 64 36 na memória dessa elite Desejavase pois um ambiente nacional de paz e conciliação entre os diversos estratos sociais e este não poderia ser atingido se mais uma vez fossem demarcadas diferenças entre portugueses e brasileiros entre as muitas existentes evitando se traumas e fraturas no corpo social em parte apaziguado desde a subida ao trono do imperador D Pedro II em 194092 Também não se conjecturava dar maior visibilidade às massas de despossuídos que integravam a população brasileira marcada pelas cores e pelos levantes violentos ocorridos nos últimos anos Por conseguinte a proposta de Martius buscava enfatizar a necessidade de se firmar na historiografia a ser escrita o branco português como ator principal da formação nacional Para tanto admoestava sobre a necessidade dos historiadores estudarem pormenorizadamente e de forma comparativa a história do comércio entre a Índia e as Américas assim como o comércio do paubrasil dos metais e pedras preciosas e por fim das plantas tropicais úteis e conhecidas na Europa no sentido de formalizar em definitivo o vínculo entre Portugal e Brasil açodado num amálgama cultural revelador A independência cortara os laços políticos com Portugal mas não conseguiria jamais desfazer a presença dos portugueses num Brasil que buscava suas próprias formas que tencionava construirse e que só o conseguiria se desse o maior destaque possível à presença portuguesa na América uma América diferente por ser uma América monárquica ordeira e civilizada bem distinta das demais repúblicas latinas juncadas de caudilhos e mandatários e cravadas pelas dissidências A porta de entrada para o Brasil na Europa encontravase em Portugal metrópole que se destinou à aventura de tornar o território americano numa extensão de si legandolhe não só a língua mas os costumes as práticas e todo um modelo de sociedade que se ancorava numa mentalidade única para seu tempo e que por isso teve seus empreendimentos reiterados pelos demais estados do Velho Mundo Na mentalidade portuguesa poderseia identificar as causas de algumas particularidades do sistema colonial pois o português que 92 O interregno de nove anos que marcou a abdicação de Pedro I e a coroação de Pedro II originou o Período Regencial cuja história se destaca pelos várias rebeliões ocorridas em todos os níveis sociais e nas distintas regiões na jovem nação Entre as maiores citamos Balaiada 18381841 Cabanagem 18321840 Sabinada 183371838 e Farroupilha 18351845 Dentre estas contamse três revoltas de escravos a Revolta das Carrancas 1833 em Minas a Revolta dos Malês 1835 Salvador e a Revolta de Manuel Congo 1838 no Rio de Janeiro O cariz comum de todos os movimentos citados era a insatisfação com o poder central do Rio de Janeiro as dificuldades econômicas o aumento dos impostos e a nomeação de governadores sem respaldo local 37 no princípio do século XVI emigrava para o Brasil levava consigo aquela direção de espírito e coração que tanto caracterizou aqueles tempos93 O trono brasileiro também era alvo de tais considerações posto que descendente da família real portuguesa deveria ser assim mantido expressando a união entre esses dois mundos que se antes caminharam unidos não se encontravam totalmente desentrelaçados Aliás o trono brasileiro mostrava se como excelente representação desse entrelaçamento a ser mantido posto ser ocupado por um imperador brasileiro filho e netos de portugueses ostentando os nomes das principais casas reais européias Para o historiador que se aventurasse a desbravar a história da nação Martius propôs a obrigação de desvendar como a poesia a retórica e todas as demais ciências de Portugal faziam dele um lugar especial no concerto das nações européias posto serem por ele profundamente influenciadas No desdobramento desse conhecimento deverseia identificar e apontar a mesma influência portuguesa na vida científica moral e social do Brasil94 Portugal deveria ser o ponto de partida para todos os estudos que se pretendiam empreender doravante no Brasil no sentido de criar uma identidade para a nova nação Esta identidade não poderia prescindir do vínculo com a Europa e este poderia ser vitalizado pela investigação das ciências e artes da legislação portuguesa e de todos os recônditos coloniais que guardassem os reflexos da vida européia Ao historiador competiria sobretudo transportarnos à casa do colono e cidadão brasileiro ele deve mostrarnos como se vivia nos diversos séculos tanto nas cidades como nos estabelecimentos rurais como se formavam as relações do cidadão para com seus vizinhos seus criados e escravos e finalmente com os fregueses nas transações comerciais Ele deve juntarnos o estado da igreja a escola levarnos para o campo às fazendas roças plantações e engenhos Aqui deve apresentar quais os meios segundo que sistema com que conhecimentos manejavam a economia rústica lavoura e comércio colonial Não é destituído de interesse saberse como e aonde se introduziram pelos colonos pouco a pouco árvores e plantas européias como pouco a pouco se desenvolveu o sistema presente qual a parte que em todos estes movimentos tiveram a construção naval a 93 Ibidem p 75 94 Ibidem p 78 38 navegação e o conhecimento dos mares principalmente daqueles que foram sulcados pelos portugueses95 No trecho citado podemos identificar várias possibilidades de estudo sobre o agente colonizador português no Brasil colonial No campo e na cidade no litoral e no interior Martius procurou enfatizar a necessidade de se destacar múltiplas facetas do português no sentido de acentuar o vínculo do Brasil com a Europa e consequentemente seu cariz civilizador A pátriamãe antes considerada a própria nação deveria ser exaustivamente investigada de modo que todas as características da sociedade portuguesa pudessem ser vistas sentidas tocadas e reproduzidas no Brasil sedimentandose assim a cultura portuguesa na América que deveria continuar a ser portuguesa católica e monárquica Na descrição dos homens europeus que aportaram no Brasil Martius encontrou elementos emblemáticos para construir as características da colonização portuguesa e da formação da sociedade brasileira O seu português era valente audacioso combatente e por isso mesmo deveria ser sempre mostrado de forma favorável positiva e representado a partir de quatro tipos ideais o descobridor os navegadores o religioso os jesuítas o conquistador os bandeirantes e o senhor os senhores de engenho amplamente reproduzidos na historiografia local nas décadas seguintes Indígenas e negros seriam coadjuvantes no processo capitaneado pelos portugueses No reconhecimento inicial dessa formação habilmente comparada à inglesa na qual os povos célticos dinamarqueses romanos anglosaxões e normandos participaram é que Martius mostrou destreza ao justificar como providente essa predestinação que originou uma nação nova e maravilhosamente organizada96 Trazia à baila assim uma original visão sobre a nação em formação desconstruindo o discurso da inferioridade nacional alicerçado na mácula da mestiçagem para erigir valores que se pautariam nessa mesma mestiçagem que ao invés de danosa teria permitido a própria edificação da nação Não obstante a mestiçagem não deveria ser vista de forma tão negativa para o futuro nacional posto ter a mesma uma validade determinada quando as características físicas das raças inferiores seriam erradicadas97 definindose o futuro da nação pela ligação aos valores 95 Ibidem p 99 96 Ibidem p 65 97 Essa hipótese já havia sido aventada por Robert Southey em sua História do Brasil Op cit p 184 Outros autores alguns anos depois também lançaram mão dessa hipótese para lastrear seus argumentos em relação à mestiçagem originária do processo colonizatório Sílvio Romero foi um dos maiores exemplos 39 portugueses sólidos significantes posto que provenientes de uma sociedade organizada e superior98 O sangue Português em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças Índia e Etiópica Em a classe baixa tem lugar esta mescla e como em todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores e por meio delas se vivificam e se fortalecem assim se prepara atualmente na última classe da população brasileira essa mescla de raças que daí a séculos influirá poderosamente sobre as classes elevadas e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o Império do Brasil é chamado99 Evidenciase no texto do citado autor o paradoxo relativo à sua visão do valor positivo da composição racial brasileira em primeira mão ele louvara a mestiçagem e em seguida reconheceua como um problema na constituição da nova nação sinalizando para um futuro no qual esse obstáculo seria removido 100 Dessa forma Martius alcançou as pretensões da elite nacional ao resolver dois problemas com apenas um golpe através da lógica assimilacionista onde o inferior deveria se adaptar às condições impostas pelo superior tornandose igual a ele Assim desapareciam negros índios e mestiços que tanto incomodavam essa elite a ela se adaptando e subsumindo Apesar do teor preconceituoso e hierarquizante que perpassaram suas proposições nesse sentido há que se louvar o esforço daquele intelectual no desenvolvimento de um modelo original para a sociedade brasileira e não a mera implantação de um modelo alienígena e inadequado Seu texto além de tentar orientar a feitura de uma narrativa nacional ofereceu uma explicação e uma solução para uma situação inquietante às pretensões da elite 98 A respeito ver ODÁLIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Viana São Paulo UNESP 1997 p 39 99 Ibdem p 68 100 O modelo apresentado por Martius efetivamente reconheceu a diferença existente na sociedade brasileira para depois anulála A diferença precisava ser eventualmente invalidada para que o brasileiro pudesse pensarse como moderno ocidental europeu dentro de parâmetros considerados civilizados Ao mesmo tempo em que se queria outro o Brasil aspirava à condição de ser esse mesmo outro E esse outro era o português ao qual Martius descrevia como um sangue poderoso capaz de diluir as demais marcas étnicas que escureciam a grande raça brasileira mas que em breve graças aos mesmos seria finalmente branqueada tornandose igual do mesmo tom que seus descobridores brancos Em nenhum momento Martius questionou sobre a natureza dessa mestiçagem as formas e o meio na qual a mesma veio a ocorrer no território colonial Para o bávaro a mestiçagem era um fim em si mesmo que num futuro próximo seria eliminada por completo Aos vencidos só restaria segundo sua proposta a participação passiva no projeto da nova nação e apenas na medida em que fossem absorvidos ou integrados racial e culturalmente pelos valores brancos única fonte de legitimação posto que deles decorresse os valores básicos da nova nacionalidade valores esses defendidos e produzidos pelas elites brancas locais pelo Estado brasileiro e pela Coroa 40 nacional Ao seu modo Martius forneceu aos brasileiros uma nova forma de ver o Brasil e de se ver no Brasil Forneceu também de modo sutil sua apreensão do outro fosse esse o branco português o negro ou o índio Observase também no ensaio analisado a perspectiva de mostrar a superioridade de um sangue o europeu português branco caucasiano perante os demais grupos inferiorizados que serviram apenas como anteparo no constructo de um povo europeu ao qual deveria o Brasil unirse se quisesse ingressar no rol das nações ditas civilizadas Justificava aquele autor para tanto a influência decisiva do sangue da raça branca ou caucasiana no desenvolvimento da futura nação101 sobrepondose às raças etiópicas e indígenas na formação da obra colonial instaurada nos trópicos Ao abordar a presença portuguesa no Novo Mundo como elemento essencial foise construindo uma identidade nacional não apenas para o próprio Brasil mas também para Portugal sempre mostrado como uma civilização e uma raça superior capacitada a dominar o amplo território americano do qual se apossou e cuja herança deveria ser aclamada e resguardada pelo povo brasileiro Essa herança deveria ser tomada como parte fundamental na construção da identidade nacional e sua memória deveria ser sempre objeto de afirmação e de aclamação nacional Para Martius quem se encarregasse de escrever a História do Brasil jamais deveria perder de vista os elementos que concorriam para o desenvolvimento do homem102 o que vem demonstrar o quanto estava aquele autor preocupado sobretudo com as especificidades da formação histórica base da identidade nacional 101 É oportuno relevar que o autor mesmo considerando a superioridade da raça branca não fez referência aos demais povos europeus que participaram dessa mesma composição social nos distintos momentos históricos Franceses e holandeses num primeiro momento depois seguidos por italianos alemães espanhóis e suíços entre outros assim como japoneses e outros povos orientais tiveram inegável influência na formação social do Brasil nomeadamente em regiões e situações específicas Entretanto sua presença foi formalmente ignorada no ensaio de Martius A respeito da presença de outros grupos europeus no ambiente brasileiro ver SEYFERT Giralda Nacionalismo e identidade étnica Florianópolis FCC 1982 ALENCASTRO Luís Felipe RENAUX Maria Luiza Caras e modos de migrantes e imigrantes In ALENCASTRO Luís Felipe org NOVAIS Fernando Dir História da vida privada no Brasil Império a corte e a modernidade nacional São Paulo Cia das letras 1997 FREYRE Gilberto Ingleses no Brasil Rio de Janeiro 1977 LEVY Stella O papel da migração internacional na evolução da sociedade brasileira Revista de saúde pública v 1 nº 9 1974 WERNECK Luís Peixoto de Lacerda Ideias sobre colonização Rio de Janeiro se 1855 ROCHE Jean A colonização alemã e o Rio Grande do Sul Porto Alegre Globo 1969 OLIVEIRA Lúcia Lippi Nós e eles Relações culturais entre brasileiros e imigrantes Rio de Janeiro Editora da FGV 2006 entre tantos outros 102 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Op Cit p 389411 41 Do encontro da mescla das relações mútuas e mudanças dessas três raças formouse a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular103 A particularidade da história do Brasil entretanto passava pela delimitação de diferenças entre ser brasileiro e ser estrangeiro entre ser uma sociedade com uma formação peculiar que revelasse a singularidade nacional e que se diferenciava de todas as outras cujos elementos originais estavam contidos agora num novo lugar Um problema se alçava como se pensar singular sem perder as próprias raízes Como pensar em diferenciarse do português colocálo como um outro sem desviarse de um projeto de modernidade que nascera na Europa projeto este acalentado pelas elites brasileiras Sendo a história uma espécie de espelho onde os homens de determinada comunidade se reconhecem vislumbrando os traços comuns mesmo em diferentes grupos internos fazia se necessária a construção de uma história capaz de fazer os grupos nacionais reconhecer se num passado comum Para tanto Martius determinou o predomínio do branco europeu ou seja do português na história do Brasil Essa referência se fazia tão necessária quanto poderosa para o projeto de criação da história nacional posto que a herança portuguesa fosse o importante vínculo que ligaria o país ao continente europeu local por excelência da civilização e parâmetro que o Brasil pretendia atingir na arquitetura da nação afastandose de uma identidade latino americana O Brasil não poderia abrir mão dessa ancestralidade pois era justamente ela que garantia o seu pedigrée e logo a possibilidade de inserção no mundo civilizado das Luzes do progresso As proposições de Martius sobre a colonização portuguesa em acordo ou desacordo constituíram um referencial privilegiado na construção das narrativas sobre a história da nação brasileira Um referencial não por ser o único mas por apresentar de forma organizada e sistematizada uma série de prescrições para a escrita da memória nacional principalmente em relação ao passado colonial104 Seu referencial ao ser reproduzido pela historiografia nacional foi consumido também por um público mais amplo os estudantes de todo o país105 consumidores de manuais didáticos que reproduziam a historiografia 103 Ibidem p 401 104 Para uma análise da produção historiográfica destes autores pensando a construção de uma identidade para o passado colonial brasileiro conferir REIS José Carlos Op cit 105 O projeto de construção da nação também se alicerçou no Arquivo público do Império além do IHGB e no Colégio Pedro II todos criados na Regência de Pedro Araújo Lima Às três instituições competia respectivamente a manutenção da memória nacional a escrita da história e sua divulgação e consumo O 42 produzida no IHGB consolidando as idéias ali contidas nas várias gerações influenciadas pelas representações traçadas em seu projeto original O papel do português como agente do processo civilizatório formou a matriz do pensamento oitocentista brasileiro fabricando identidades estanques fechadas e padronizadas como se pode observar na historiografia praticada no período e que adentrou o século XX a despeito das diversas mudanças que ocorreram na sociedade brasileira A proposta de Martius também enfatizou uma concepção de identidade reforçada dentro de uma racionalidade de coesão valores de fidelidade lealdade e devoção à nação e à Monarquia bragantina A questão da identidade era sobretudo politizada e sua propositura de escrita da história era nitidamente engajada politicamente 106 As ideias de integração e quadro de membros desses espaços era frequentemente comum o que impedia disparidades nas finalidades de cada um deles permitindose assim que muitos dos historiadores do IHGB atuassem também como professores do Colégio Pedro II ou tivessem cargos no Arquivo público A divulgação da historiografia do IHGB será amplamente consumida pelos alunos do Colégio Pedro II instituição educacional de maior destaque do país à época que visava a formação de quadros políticos e intelectuais para os postos da alta administração principalmente pública e cujos alunos pertenciam em maioria à elite política e econômica do país Seu programa de ensino era referência para as demais instituições de ensino brasileiras sendo reproduzido por todo território para reconhecimento formal do Ministério de Educação Os professores possuíam um status acadêmico equiparado aos catedráticos do ensino superior muitas vezes sendo eles mesmos os integrantes das cátedras nos dois níveis de ensino tendo como atribuição docente a escrita de compêndios usados pelos alunos além da elaboração dos programas de ensino participando das principais decisões políticas e pedagógicas do colégio Desse modo a reprodução da história chancelada pelo IHGB se dava de modo corrente sem maiores oposições sendo consumida por várias gerações sem contestações ou ressalvas a partir da produção didática do próprio colégio Não à toa aquela instituição de ensino médio era considerada a menina dos olhos do Imperador contando com o apoio direto de seu patrono que fazia questão de inspecionar as instalações físicas e os dormitórios em suas visitas freqüentes ao local acompanhar os exames dos alunos os processos de seleção de seus profissionais a produção intelectual de seus professores e exalunos mantendo inclusive um de seus netos como aluno regularmente matriculado quando a regra era educar os descendentes da família imperial na Europa Sobre a instituição ver o trabalho de ANDRADE Vera Lúcia Cabana de Queiroz Colégio Pedro II um lugar de memória Tese de doutorado em História social Universidade Federal do Rio de Janeiro 1999 CALDAS Karina Ribeiro Nação memória e história a formação da tradição nos manuais escolares Dissertação de Mestrado em História Universidade Federal de Goiás 2005 106 CÉSAR afirma que Martius propôs uma história calculada mensurada bem refletida para combater os oponentes do regime Essa história militante seria o ponto máximo a que a história pragmática poderia chegar segundo aquele autor In CÉSAR Temístocles Américo Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XI um ensaio da história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p 206 REIS por sua vez pondera que de acordo com Martius um enfoque deveria ser esperado da produção do historiador ser patriótico despertando o amor pelo Brasil Na defesa de um país unido deveria também ser monárquico e cristão lutando contra a desconfiança entre as províncias contra a fragmentação do território e a agitação republicana Era dessa história que o Brasil recémindependente e suas elites precisavam para levar adiante a nova nação Uma história que realizasse um elogio ao Brasil aos seus heróis portugueses do passado distante mas também do presente que expressasse uma incondicional confiança em seus descendentes Uma história que não falasse 43 de pedagogia nacional através da história são extremamente fortes nos trechos finais do texto de Martius uma integração e um fim político que seriam perseguidos com verdadeira obsessão pelos historiadores do período de acordo com os ensinamentos de Martius Nunca esqueça pois o historiador do Brasil que para prestar um verdadeiro serviço à sua pátria deverá escrever como autor Monárquico constitucional como unitário no mais puro sentido da palavra107 Com o marco fundador de Martius estava dado o passo inicial para a constituição através da historiografia de uma imagem do Brasil de uma representação do passado de uma narrativa nacional que conferisse sentido ao todo heterogêneo da nascente nação Ao que Martius chamou de sugestões explicitadas em sua monografia tornouse um modelo a ser adotado pelos historiadores do IHGB oitocentista instituindose pois o que chamamos de retórica da alteridade Seu trabalho conseguira responder as inquietações dos membros daquele conclave diante da tarefa inovadora e provocativa que tinha nos meados do século desenvolver uma arquitetura nacional que mitigasse todos os problemas existentes na passagem da condição de colônia para o jaez de nação Não à toa o IHGB alçou à qualidade de instituição oficial da escrita da história do Brasil vindo representar um tempo específico da produção histórica brasileira durante o período imperial O projeto para a execução dessa narrativa já estava posto e legitimado pela chancela institucional do IHGB estando aberta a estrada para a invenção da nação Missão esta que caberia a Francisco Adolfo Varnhagen desempenhar em função da negativa de Martius que considerou a empreitada além das suas forças e disposição recusando em suas palavras à glória de empresa tão árdua108 de tensões de separações de conflitos exclusões contradições pois uma história assim levaria o Brasil à fragmentação abortandose um Brasil que lutava para se constituir em uma poderosa nação In REIS José Carlos Op cit p 28 107 MARTIUS Karl Friedrich Philipp Von Op Cit p 409 108 Ibdem p 415 44 CAPÍTULO 2 A NAÇÃO COMO CONTINUAÇÃO DA COLÔNIA A marca elitista exarada pela produção historiográfica do IHGB veio à tona num dos trabalhos de maior relevância daquela instituição A História Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal109 de Francisco Adolfo Varnhagen110 foi a melhor expressão da produção daquele espaço de saber para seguirmos as colocações de Michel de Certeau cujas delimitações desempenharam um papel decisivo na construção de uma certa historiografia e das visões e interpretações que ela propôs na discussão da questão nacional e de suas ligações com o outro Varnhagen nasceu no Brasil em 1816 filho de pai alemão e mãe portuguesa Por obrigações profissionais de seu pai mudouse para Portugal aos sete anos de idade onde iniciou seus estudos no Colégio Militar da Luz Frequentou a Academia da Marinha e integrou o 2º Batalhão da Artilharia lutando ao lado de D Pedro pela disputa do trono após a morte de D João VI Cursou o Colégio dos Nobres e a Academia de Fortificações recebendo diploma de engenheiro permanecendo na carreira das armas No interregno de suas atribuições dedicouse à pesquisa histórica escrevendo Reflexões críticas sobre o escrito do Século XVI impresso com o título de Notícia do Brasil obra de proficiência para ingresso à Academia Real de Lisboa Aos 24 anos licenciouse da vida militar em Portugal mudandose para o Rio de Janeiro onde pleiteou a nacionalidade brasileira garantida pelo Decreto imperial de 24 de setembro de 1844 Não se tratava de um homem 109 Para maior fluidez do texto doravante trataremos esta obra apenas como HGB 110 Pelos muitos serviços prestados ao trono de Pedro II recebeu em 1871 o título de Barão de Porto Seguro sendo elevado a Visconde com as honras do mesmo titulo três anos mais tarde Sua produção bibliográfica é abundante com dezenas de títulos em parte publicados via IHGB De sua lavra é também a História das lutas contra os holandeses no Brasil e História da Independência do Brasil marcos nos estudos historiográficos do século XIX 45 de dotes financeiros cargos políticos ou títulos nobiliárquicos Seu ingresso no IHGB foi facilitado pela indicação de Antônio Meneses Vasconcelos de Drummond ministro plenipotenciário do Império em Lisboa que apontou a idoneidade intelectual de Varnhagem como capacidade que o habilitava a integrar aquele espaço Premiado pela Academia Real de Lisboa em 1839 impossibilitou os membros do IHGB de ignorar sua presença sendo assim convidado para assumir a secretaria cargo reservado àqueles que adentravam o instituto por méritos acadêmicos Considerado como pai da história do Brasil Varnhagen fez da HGB sua obra maior lançada em 1854 Seu texto constituiuse a partir de investigação em farta documentação referente ao Brasil evidenciando o conhecimento do autor sobre os arquivos europeus aprofundados nas muitas visitas que realizou quando do exercício da atividade diplomática A coletânea nasceu da necessidade de se ter uma história verdadeiramente nacional em inegável confronto com a tida estrangeira História do Brasil de Robert Southey sendo seus enredos temáticos enunciados no próprio título verdadeiro monumento à civilização lusa111 A História Geral do Brasil de Varnhagen foi considerada por muitos estudiosos112 como uma história da administração portuguesa na América ou mesmo um capítulo da história de Portugal Num período em que a maioria dos autores não conseguia ultrapassar os limites da crônica sua HGB tornouse uma contribuição rara que contrastava com a historiografia nacional de até então marcada por trabalhos de pouco fôlego e acentuadamente regionais Sua argumentação histórica apesar das muitas críticas tornouse quase um modelo para seus contemporâneos sendo seu discurso reiterado em inúmeras outras obras de diversos historiadores até metade do século XX Como já afirmado anteriormente o paradoxo dominante nesse período colocava Portugal de um lado como um inimigo que escravizara o Brasil durante séculos escorchandoo sob o peso de impostos tomandolhe as riquezas tratando seus naturais como súditos de 111 O título integral da obra máxima de Varnhagen é História Geral do Brasil do seu descobrimento colonização legislação desenvolvimento e da declaração da independência e do império escrita em presença de muitos documentos inéditos recolhidos nos arquivos do Brasil de Portugal da Espanha e da Holanda 112 Como exemplo citamos João Capistrano de Abreu Sobre o Visconde de Porto Seguro In Ensaios e Estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Sociedade Capistrano de Abreu 1931 pp 193217 José Honório Rodrigues compartilhou a percepção de Abreu em Teoria da História do Brasil São Paulo Companhia editora nacional 1978 p 151 46 segunda classe impondolhe o ônus da escravidão e da miscigenação negra Os portugueses por sua vez também herdavam parte dessa culpabilidade sendo acusados de agentes indiretos dessa exploração por cobrarem alugueis extorsivos juros alucinantes roubarem 113 nos pesos e medidas das vendas freges e botequins enfim responsabilizados pela carestia de preços enfrentada pelas camadas populares Essa mácula impregnou o imaginário nacional configurando a lusofobia disseminada pela sociedade brasileira no pósindependência ao tomar dimensões nunca dantes imaginadas Na antítese Portugal era também o representante da Europa da modernidade da razão da civilização e do cristianismo e os portugueses que viviam no Brasil eram tidos também como organizadores sociais agentes valorizados e exaltados do mundo do trabalho portal de acesso ao progresso e civilização Essa atormentada relação com Portugal tornouse um permanente ponto de tensão para a historiografia dos oitocentos fazendo com que a antiga metrópole sempre fosse uma questão limítrofe na narrativa nacional o que exigia demasiados apuros na escrita da história114 não obstante a proposta decisiva de Von Martius para resolução da questão Coube a Varnhagen a desconstrução do imbróglio e a partir de seu lugar social firmou a identidade nacional longe da dualidade extremada que marcara as relações BrasilPortugal ainda abaladas pela chamada Causa Brasil115 Aquele autor conseguiu impor pela sua 113 Os conflitos ocorridos no início do século XX entre brasileiros e portugueses culpabilizados pelas crises econômicas decorrentes da má gestão econômica republicana são prova do alargamento da lusofobia que ultrapassou os tempos monárquicos Os termos utilizados em itálico são originários do texto de RIBEIRO Gladys Sabina Mata galegos os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha São Paulo Brasiliense 1990 114 A respeito ver KHALED JR Salah Hassan A construção da narrativa nacional brasileira A escrita da nação em Barbosa Martius e Varnhagen Dissertação de mestrado em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2007 p 107 115 A Causa Brasil se originou no contexto da regência do príncipe D Pedro iniciada após a partida de D João VI pra Portugal em 24 de abril de 1821 Com os cofres públicos desfalcados de numerário conduzido a Lisboa quando da partida do rei e com a cessação de receitas previstas a regência teve um início difícil obrigando D Pedro à dependência do Congresso de Lisboa do qual tanto desconfiava A dinâmica política no Brasil implantada quando da Regeneração vintista portuguesa e caracterizada pela existência das cortes deliberativas pelo soberano constitucional pela própria regência e pelos governos autônomos das províncias favoreceu a adesão plena ao governo lisboeta e a nãosubordinação política e econômica à regência do Rio de Janeiro pelas Juntas governativas das províncias do norte especificamente do Pará Piauí Maranhão e Bahia Quanto às províncias do sul embora prestassem lealdade ao príncipe regente se recusavam a apoiálo financeiramente tolhendo em definitivo as finanças em seu mandato O decreto que referendou a existência das Juntas Governativas nas províncias vista pelos brasileiros como o início de um inovador governo constitucionalista revelador de que a população do Brasil apoiava a Revolução do Porto subordinandoas 47 escrita a real necessidade do Brasil independente não se esquecer dos laços com Portugal não assentando seu destino sobre uma ruptura cultural com a antiga metrópole A ruptura já realizada quando da emancipação deveria estabelecerse substancialmente no plano político116 mantendose a identidade portuguesa como parte da identidade nacional que deveria defender os valores lusos já calcados nas terras americanas há tantos séculos e já bem conformados no seio dessa elite brasileira que bem reconhecia nos lusos seus antepassados diretamente ao governo de Lisboa e a exigência da volta incontinenti do príncipe a Portugal além da decisão de transferir para Lisboa o Desembargo do Paço a Mesa de Consciência e Ordens o conselho da Fazenda a Junta do Comércio e a Casa de Suplicação alem da adoção de um governador de armas em cada província e a destituição dos filhos do Brasil de todos os cargos públicos repercutiu como um risco iminente da ruína do Império Brasílico que perderia todas as conquistas auferidas desde a chegada da real família podendo mesmo cindirse em dois Sob esta ameaça d Pedro conquistou o apoio de grande parte da elite nacional que a partir de um documento contendo mais de oito mil assinaturas exigiu que o mesmo não respeitasse a determinação das Cortes gerais originando o Dia do Fico Nesse contexto a Causa Brasil se configurou como uma campanha pela integridade do Reino do Brasil mesmo que separado do Reino de Portugal diante da nomeada intransigência das cortes Liderada pelo advogado Hipólito José da Costa a partir do Correio Braziliense primeiro periódico redigido por um brasileiro a Causa Brasil buscava unir as províncias dissidentes em torno de um projeto único calcado na emancipação política do Brasil buscando forjar um distanciamento da Nação portuguesa aniquilandose sua imagem e impondo um modelo de cidadania brasileira fidelidade ao Príncipe a à monarquia representativa Para tanto vários documentos foram escritos dois dos mais importantes da lavra de José Bonifácio constituindo juízo de valor sobre o ser português e sobre o ser brasileiro Começavase assim a tecer uma identidade do brasileiro contra o português considerado desde já o outro Embora partilhasse das idéias de um império luso brasileiro organizado sob instituições liberais e dotando com os mesmo direitos as duas partes integrantes Hipólito se rendeu à convicção que somente a emancipação salvaria a antiga colônia da fragmentação territorial e política cogitada quando do episódio de ordem de prisão dos deputados brasileiros quando de sua apresentação às Cortes e após a recepção das determinações acima citadas A Causa Brasil para além do desejo de constitucionalismo alentado por parte dos brasileiros findou por tornar em ação separatista convergindo para o exacerbamento do um sentimento antilusitano por muitos anos presente no Brasil Sobre o tema sugerimos a leitura de MACHADO Humberto Fernandes NEVES Lúcia Maria Bastos Pereira das O império do Brasil Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 RIBEIRO Gladys Sabina A liberdade em construção Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume Dumará 2002 CARVALHO José Murilo A construção da ordem a elite política imperial Rio de Janeiro Campus 1980 CARVALHO Manuel Emílio Gomes de Os deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa Brasília Senado FederalUNB 1979 OLIVEIRA LIMA Manuel de O Movimento político da Independência 18211822 Belo Horizonte Itatiaia 1989 MONTEIRO Tobias História do Império a elaboração da Independência Brasília INL 1972 NEVES Guilherme Pereira das Del Imperio luso brasileño al Imperio del Brasil 17891822 In AMINO Antonio Dir De los imperios a las Naciones Iberoamerica Zaragoza Ibercaja 1994 116 Essa perspectiva de Varnhagen parece se espelhar na postura de Pedro I que empregava o termo Independência no sentido exclusivo de autonomia política sem rompimento formal com Portugal mesmo quando declarava inimigas todas as tropas enviadas ao Brasil pelas Cortes sem o seu consentimento MACHADO Humberto Fernandes NEVES Lúcia Maria Bastos Pereira das O império do Brasil Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 197 48 O esforço de Varnhagen de construir uma narrativa que não alastrasse o fosso separador de Brasil e Portugal pode ser constatado em carta de sua autoria dirigida ao imperador Dom Pedro lI em cujo texto justificou sua escolha dos fundamentos definidores da identidade nacional brasileira enquanto herança da colonização européia Sendo esses fundamentos os marcos constitutivos de sua obra fez questão de destacar que buscou sua inspiração numa inovadora perspectiva de nacionalidade de forma a não acirrar o apelo antilusitano bem presente no Brasil naquele momento histórico a demonstrar não ter sido contaminado pela mágoa que marcara as últimas décadas Buscava pois Inspirações de patriotismo sem ser no ódio a portugueses ou à estrangeira Europa que nos beneficia com ilustração tratei de pôr um dique a tanta declamação e servilismo à democracia e procurei ir disciplinando produtivamente certas idéias soltas de nacionalidade117 Num processo muito próprio ao caso brasileiro a construção da idéia de Nação feita por Varnhagen não se assentou numa oposição à antiga metrópole portuguesa muito ao contrário A nova Nação brasileira se reconhecia enquanto continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa Estado Nação e Coroa foram mostradas em seu trabalho enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica relativa ao problema nacional sendo a formação da identidade brasileira umbilicalmente ligada à nacionalidade portuguesa base de sua narrativa No exercício de arquitetar uma identidade para o Brasil aquele autor optou por definir também o outro em relação a esse Brasil e esse outro não seria Portugal como veremos mais adiante Caracterizou pois a Portugal como parte coesa de um projeto que não se encerrou quando da Independência bem ao contrário o Brasil foi transformado em Nação por estratégia do Estado monárquico português que se enraizara na América pela manutenção de sua dinastia Sua História geral do Brasil portanto não foi uma história de rupturas políticas de contendas e desentendimentos mas como uma história de permanências de perenidades sendo o papel de Portugal determinante para seu desenrolar 117 GUIMARÃES Manoel Luís Nação e civilização nos trópicos o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional Estudos Históricos op cit p 06 49 Ao autor não interessava detratar Portugal terra na qual por tanto tempo vivera e bem conhecia e onde nascera sua mãe O entendimento de Varnhagen era de que a manutenção dos laços entre a antiga metrópole e sua excolônia seria essencial para a demarcação de uma identidade brasileira que deveria ser criada na construção da nação Daí não haver interesse em se desvincular do projeto elitista de fazer crer a existência de laços entre os dois lados do Atlântico unindoos o que evidencia que Varnhagen soube bem dar prosseguimento à proposta de Martius A certeza de serem agentes civilizatórios evidenciada na escrita de Varnhagen no tocante aos portugueses corrobora essa junção de seu trabalho com a proposição de Martius A história do Brasil não deveria ser construída sem essa imbricação e sua história deveria ser parte da história da própria Europa assim como a história da Europa deveria conter também uma história do Brasil pois fora o sucesso da empreitada dos povos europeus os portugueses especificamente que fizera do Brasil um lugar melhor retirandoo de um estado selvagem e depreciado para mostrálo ao mundo em todo seu esplendor administrado por uma monarquia e organizado como os mais modernos Estados do Velho Mundo Achegado ao seio da mãe Europa berço da cultura ocidental relicário da civilização branca e católica assim era o Brasil de Varnhagen para quem se tencionasse distanciarse desse modelo triste seria seu destino açodado pela leniência dos africanos que enegrecia sua população e pela obtusidade dos indígenas incapazes de construir uma sociedade mais ampla e com densa organização posto que imersos em práticas bárbaras 118 Só a ligação 118 O cuidado adotado por Varnhagen nesse contexto estava diretamente relacionado com a prática adotado por muitos brasileiros no pósindependência de alterarem seus nomes de batismos por apelidos que os diferenciassem dos portugueses já considerados outro povo Os nomes preferidos faziam menção à ancestralidade indígena cuja literatura romântica bem resgatara ou a contextos políticos ou naturais Bons exemplos dessa prática são os do Visconde de Jequitinhonha Francisco Gomes Beltrão e do jornalista Francisco José Corte Real que escolheram passar a ser chamados de respectivamente Francisco Gomes Brandão Montezuma posteriormente Francisco Gê Acaiaba de Montezuma e Francisco José CorteNacional e em seguida CorteImperial Outros exemplos remetem à família Galvão que trocou seu nome para Carapeba ao pernambucano José Maria Migueis que tornouse José Maria Migueis Bemtevi e ao padre Pedro Antônio de Sousa que passou a assinarse como Pedro Antônio Cabrabode Joaquim José da Silva transformouse em Joaquim José da Silva Jacaré e Bernardo Luís Ferreira Portugal ao retornar da prisão depois do envolvimento na Revolução de 1817 passou a assinarse simplesmente Bernardo Luís FerreiraTais mudanças levaram O Espreitador Constitucional favorável à causa portuguesa a afirmar que Portugal jamais pensara que seus netos abandonariam os nomes e sobrenomes dos antepassados para adotar orgulhosos os de Caramurus Tupinambás Congo Angola ou Assuá entre tantos outros O próprio regente 50 aos portugueses poderia dar o necessário teor da superioridade européia ao trono reinante cuja origem estava assentada do outro lado do oceano Elogiar os colonizadores do passado significava legitimar as elites do seu presente Relatar os feitos da era dos descobrimentos portugueses era uma forma de celebrar a figura do monarca D Pedro II Dignificar a civilização portuguesa representandoa de forma positiva significava construir uma identidade para o Brasil assim como destacar qualidades da bravura portuguesa permitia a construção de heróis necessários à consciência cívica Vejamos como ele desenvolveu seus argumentos em torno de três contextos o caráter heróico do colonizador a capacidade criativa da monarquia bragantina e o gênio civilizador contido no esforço português ao tomar posse das terras americanas 21 Os herois do Brasil A idéia de que a missão da história era preservar a memória das vidas e feitos dos grandes homens do passado esteve presente de forma marcante no pensamento dos historiadores da estirpe de Varnhagen dentro do IHGB119 A produção das biografias dos varões ilustres por letras armas e virtudes fazia parte do programa histórico do grêmio e era objeto de dedicação dos seus artífices nas páginas da Revista bem como nos livros e memórias ali produzidos O visconde de Porto Seguro não fugiu a esta regra e sua Historia geral do Brasil foi deliberadamente povoada de passagens ou momentos biográficos procurando futuro imperador D Pedro I adotou o nome do último imperador asteca Guatimozin para filiar se à Maçonaria Os estudos de SEYFERT sobre esse fenômeno social brasileiro comprovam ter sido o mesmo parte de uma estratégia deslusitanizante nascida no contexto do pós independência mesmo que tenham predominado os nomes tradicionais da onomástica portuguesa nos nascidos durante o Primeiro Reinado ou em data anterior SEYFERT Giralda Op cit p 96 119 Segundo Maria da Glória de Oliveira a constituição de um panteão nacional seria uma preocupação recorrente dos letrados em torno do IHGB produzindo biografias memórias necrológios e notas biográficas nas páginas da sua Revista entre outros impressos A necessidade de arrancar do esquecimento os nomes ilustres afinavase com o ambicioso empenho da agremiação em coligir documentos para a elaboração da história nacional tendo em vista as demandas políticas peculiares à consolidação do Estado monárquico no Segundo Reinado In OLIVEIRA Maria da Glória Escrever vidas narrar a história A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista Tese de doutorado em História Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2009 p 10 51 fixar os nomes daqueles que deveriam ser lembrados pelos seus feitos 120 Na celebração dos feitos destes herois estaria o mito fundador do Brasil O processo de formação da nação brasileira para Varnhagen era resultado da ação de indivíduos que se destacaram por seus atos de coragem e bravura tornandose heróis da nação recém fundada No sentido de cristalizar essa percepção aquele autor lançou mão do recurso sensibilizante da criação de heróis como estratégia para sedimentar a unidade territorial e a irmandade da neófita nação121 Na obra de Varnhagen os atores e a dinâmica social convergiram para o ponto teleológico da formação da sociedade brasileira entendida sobretudo mas não exclusivamente como a constituição da base territorial e da etnia Para ele o processo de colonização entre os séculos XVI e XIX foi a implementação de uma política desejada planejada e executada pelo Estado português forjando as ações sociais Pouco ou nada existiria de socialmente espontâneo devendo os comportamentos se coadunar aos objetivos e expectativas do Estado português para serem positivamente avaliados Tal como Martius Varnhagen também desdobrava o papel desempenhado por Portugal como idealizador das façanhas marítimas capaz de definir estratégias e astúcias para vencer as dificuldades do empreendimento sendo o acaso ou a sorte elementos existentes mas pouco decisivos para o destino da pátria portuguesa que levara civilidade e cultura para as inóspitas terras americanas Nesse sentido as páginas da HGB expressam a arquitetura de um panteão de heróis que representariam o Estado português no seu fazer civilizador homens em sua totalidade que ao longo dos mais de três séculos de presença da Coroa portuguesa na colônia constituíram as bases necessárias para a fundação do Império do Brasil no século XIX Em larga medida em sua obra principal verificase a tentativa de construção de um conjunto 120 Para um estudo sobre o papel das biografias nos escritos de Varnhagen conferir SANTOS Evandro dos Templos da pesquisa templos da escrita A biografia em Francisco Adolfo de Varnhagen Dissertação de mestrado em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2009 121 Segundo Laura Nogueira Oliveira embora a Historia geral do Brazil não se limitasse a uma galeria de homens ilustres seria apropriado afirmar que Varnhagen pretendeu construir um panteão nacional Afinal as ações vitoriosas aquelas que a seu ver haviam levado à edificação do Estado nacional brasileiro foram realizadas por homens que se constituíam esses sim na exemplaridade a ser imitada no presente OLIVEIRA Laura Nogueira A palavra empenhada recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen Tese de doutorado em Letras Universidade Federal de Minas Gerais 2007 p 219 52 composto majoritariamente por brancos portugueses ou descendentes a parte integrante desse processo de definição da nação os detentores da história 122 Para atingir seus fins Varnhagen procurou destacar personagens e fatos marcantes na história do Brasil colonial em sua narrativa de uma forma tal que permitisse fixar a mesma na memória nacional Para tanto utilizou episódios dentre estes alguns emblemáticos para se compreender as representações por ele produzidas sobre os colonizadores a saber a expedição de Martin Afonso de Souza e a administração do primeiro governador geral do Brasil Tomé de Souza os primeiros nomes de seu panteão A história de seus feitos seria uma forma de perpetuar os nomes daqueles que seriam os primeiros construtores do Brasil Herois de origem branca e européia ou seja portuguesa a quem Varnhagen proporia a elevação de monumentos em sua memória Celebrálos seria uma estratégia discursiva para se cultuar valores e sentimentos do seu tempo a unidade territorial a centralização do poder a defesa contra os inimigos internos e externos e o elogio da herança portuguesa Em sua narrativa Varnhagen buscou descrever em minúcias os feitos de Martin Afonso123 para construílo como o primeiro herói da nação dando destaque a sua capacidade empreendedora no início do processo de colonização do Brasil Para nosso autor colonizar 122 Cf ODÁLIA Nilo Op cit p 12 Embora Varnhagen consagrasse sua obra nas palavras de José Honório Rodrigues à memória dos produtos dos grandes homens de pensamento não se pode esquecer que ele não fez uma mera escolha com base em suas opções ideológicas filosóficas e científicas A respeito ver RODRIGUES José Honório Rodrigues História da história do Brasil vol II tomo I São Paulo Companhia Editora Nacional 1988 p 17 Sobre a mesma questão embora com novo enfoque para Arno Wehling o historiador sorocabano não compusera apenas uma história dos grandes homens A sua narrativa da saga dos heróis teria sido caldeada com outras personagens ou seja as entidades coletivas tais como os agentes mesológicos as etnias e sua miscigenação as instituições sociais e políticas os grandes personagens e o próprio reino português Vide WEHLING Arno Op cit p 158 Em nosso entendimento porém o Visconde de Porto Seguro não se preocupou em construir uma galeria de brasileiros menos ainda em constituir os elementos fundamentais da dinâmica social na colônia Sua narrativa explicita a presença portuguesa como onipresente num universo em que todos os demais elementos seriam coadjuvantes da mesma na construção de um tecido social cuja arquitetura seria totalmente uma obra lusa mesmo que lamentavelmente marcada por cores distintas 123 A descrição da viagem de Martim Afonso ao Brasil apontada como o primeiro movimento de caráter colonizador realizado por Portugal tomaria duas longas e minuciosas seções da sua Historia geral do Brazil Para a sua elaboração fez uso do Diário de Pero Lopes de Souza documento descoberto por Varnhagen em suas peregrinações pelos arquivos europeus O Diário de Pero Lopes de Sousa foi publicado com as anotações de Varnhagen em Lisboa em 1839 e reimpresso no Rio de Janeiro pelas páginas da Revista do IHGB em 1861 Conferir Carta do Sr F A de Varnhagen á redação acerca da reimpressão do Diário de Pero Lopes que lhe servirá de prólogo Revista da IHGB Tomo 24 p 0308 1861 53 significava civilizar e nesse empreendimento inexistiria uma relação de superioridade por parte da metrópole em relação à submissa colônia bem ao contrário a colônia só podia ser entendida como uma extensão de Portugal dele herdando todas as excelentes características que ensejaram homens valorosos e cujos feitos heróicos deveriam ser salmodiados na memória da pátria Assim a colônia seria a mesma coisa que o reino não havendo diferenças dissensões rupturas entre uma e outro nos quatro séculos de colonização que pudessem lastrear um separatismo que se verificava após a emancipação política Tal postura de Varnhagen encontra justificativa se considerarmos suas atividades como diplomata brasileiro em Portugal e cujo exercício ele fazia questão de dar continuidade na construção de uma história livre de extrusões pacífica pela própria natureza ao defender as boas relações entre as duas nações Martin Afonso de Souza seria a personificação do português na narrativa de Varnhagen um homem de prodígio e de valor A sua presença nas terras brasílicas significaria a instauração do poder e da ordem e de suas ações daria a colônia os primeiros passos Se Gama para Varnhagen era o navegador Cabral o descobridor Martin Afonso seria o colonizador por excelência Ele traduzia os elementos necessários para a implantação do Estado português na colônia uma vez que tinha a missão de organizála e administrála no contexto de uma ordem metropolitana Na narrativa de Varnhagen identificamse três preocupações básicas para a consolidação do domínio português no Brasil primeiro a questão do estabelecimento da ordem e da disciplina segundo a delimitação dos limites da colônia terceiro a posse da terra bem como sua distribuição em forma de sesmarias O êxito da obra a ser realizada pelo colonizador dependeria do cumprimento destes pontos habilmente cumpridos pelo mandatário do império português e graças à sua perícia o Brasil existia Além de um agente de governo Martin Afonso também teria sido um modelo de civilizador e em decorrência de seus feitos um heroi nacional Ele era o fundador da primeira vila sinônimo de povoamento ordem e civilidade Na fundação de São Vicente e outras vilas estaria a origem européia da província de São Paulo o lugar de nascimento daquele historiador Era este o ethos a ser valorizado e celebrado como motor da formação da nacionalidade brasileira na retórica de Varnhagen Do êxito do esforço afonsino tronou 54 se possível a implantação das capitanias hereditárias124 sendo por tal feito eleito como um dos ilustres varões da história do Brasil pelo visconde de Porto Seguro Na descrição da sua conduta Varnhagen procurou destacar os adjetivos necessários àqueles que deveriam governar a nação de seu tempo amoldando a sociedade para um tipo específico por ele idealizado para levar adiante os destinos do país Em todas as fases da imposição dos valores europeus e brancos vemos surgir a marca de heróis que resumiam em si as qualidades esperadas do cidadão e da Nação Outro herói estimado na Historia geral do Brasil o primeiro governador geral Tomé de Souza congregaria no pensamento de Varnhagen a importante característica para a legitimação da presença e da herança portuguesa na América a centralização do poder responsável pela regeneração do Brasil Diante de uma colônia viciosa pela promiscuidade dos índios com os colonos e fragmentada pelo fracasso ou mau governo das capitanias hereditárias Varnhagen apontou a existência de uma liderança como uma forma de moralização e unificação do povo125 A descentralização promovida pelas capitanias hereditárias e a proliferação de cristãos gentilisados além da presença de expedições invasoras francesas seriam corrigidas com a formação do primeiro Governo Geral de Tomé de Souza na ótica de Varnhagen para quem a formação do Governo Geral significaria o estabelecimento da ordem e do poder centralizador na colônia elementos necessários para o seu desenvolvimento moral e econômico O visconde de Porto Seguro encontraria em Tomé de Souza o símbolo para traduzir esta página da história do Brasil e assim representar os portugueses que construíram uma civilização em solo americano Tomé de Souza mostrado na HGB como nobre exemplar do sangue português seria mais um ilustre varão a ser celebrado por Varnhagen que assim o descreveu filho natural 124 Em relação à divisão do Brasil em capitanias hereditárias Varnhagen teceria severas críticas por ser uma ameaça à unidade e ordem da colônia havendo pois a necessidade da constituição de um governo centralizador e forte Cf História geral do Brasil seções XI e XII p 347 125 Não se pode perder de vista que para o historiador monárquico era vital trazer do passado exemplos de centralização de poder e preservação da unidade territorial temas importantes se considerados o panorama político vivido pelo autor no chamado Período Regencial e primeiras décadas do Segundo Reinado A questão é esmiuçada por MATTOS Ilmar Rohloff de O Tempo Saquarema a formação do Estado imperial São Paulo Hucitec 2004 55 duma das primeiras casas do reino distinto por seus grandes dotes governativos e pelo valor e prudência que provara em muitas ocasiões difíceis na África e na Ásia 126 Trazer para a sua narrativa os feitos do primeiro governador geral de certa maneira era forma de mostrar que o reinado de D Pedro II justificavase num passado que prezava pela construção da unidade e estabelecimento de um governo central que sufocasse qualquer proposta de fragmentação ou desmoralização É interessante perceber como Varnhagen mostravase fascinado por figuras do Estado que congregavam características fortes como pulso firme rigor sobriedade e comando Tomé de Souza o fascinava justamente por ter estes atributos o que pode ser verificado na leitura de seu texto recheado de expressões louvativas à capacidade administrativa e ao espírito intrépido daquele colonizador127 Mem de Sá seria outra personagem a ser cultuada como modelo de governo por Varnhagen aproximando muitas das suas ações ao legado de Tomé de Souza uma vez que também seria um regenerador do Brasil na luta contra franceses e indígenas Tal qual Martin Afonso e Tomé de Souza Men de Sá fora eleito como um dos construtores do Brasil tendo sua imagem erguida no panteão daqueles que no período colonial contribuíram de maneira operosa na constituição da futura nação Nas páginas da sua Historia ao contrário dos indígenas e africanos que tinham lugares prédeterminados nas seções abundavam biografias de proeminentes portugueses ou descendentes entremeandose no relato dos eventos a demonstrar que estes eram os legítimos sujeitos da história em sua maioria homens de Estado governadores militares religiosos senhores entre outros128 126 Ibidem seção XIII p 393 127 Ao longo das seções XV e XVI Varnhagen esmerouse em detalhar cada medida tomada por Tomé de Souza mostrando o sistema de terror que impôs sobre os índios o uso dos serviços dos jesuítas na conversão desses e moralização dos costumes dos colonos a constituição de um aparato administrativo e de proteção do território e das fronteiras e a instituição da ordem127 Para ele Tomé de Souza havia cumprido a sua missão o Brasil estava constituído a autoridade e a lei haviam feito sentir suas fôrças beneficas e a moral publica ganhára muito Ibidem p 216 128 Em relação à supremacia do masculino na formação da identidade nacional percebida na história narrada por Varnhagen assim como nos demais historiadores aqui elencados salvo poucas exceções Paul Gilroy teceu as seguintes afirmações A integridade da nação se torna a integridade da sua masculinidade De fato ela só pode ser uma nação se a versão correta da hierarquia de gênero tiver sido estabelecida e reproduzida GILROY Paul Entre campos nações culturas e o fascínio da raça São Paulo Anablume 2007 p 156 56 Ao destacar a história desses herois o visconde de Porto Seguro deixava evidente que a obra nacional era fruto do motor civilizacional da matriz portuguesa A história do Brasil era o resultado da ação de homens brancos cristãos e defensores do Estado monárquico como forma legítima de governo Foi construída assim pela pena de Varnhagen a mais bem documentada representação do português enquanto agente e administrador de uma nova civilização na América e cujos nomes de destaque estavam inscritos em definitivo num panteão de heróis que originaram a nacionalidade brasileira Foram esses herois na perspectiva histórica de Varnhagen que concentraram em suas mãos os rumos da história contando inúmeras vezes com a intervenção da Providência divina posto serem predestinados a desvendar e colonizar digase civilizar o mundo desconhecido Assim a mística que cercava o descobrimento do Brasil em sua narrativa ganhava coesão configurandose como uma prova de que os portugueses eram o povo escolhido a trazer a luz da civilização e da fé cristã para as terras e gentes dos trópicos129 Nas dificuldades da descoberta da conquista e da colonização emergiram todos os heróis apresentados em seu panteão e que passaram desde então ao plano de reconhecimento da população brasileira indo do administrador comum à figura do monarca e seus descendentes Nesse sentido Varnhagen definiu a história como uma mestra por fornecer exemplos de vidas a serem imitadas pelos homens do seu tempo Seus heróis tinham que ser tomados como modelos ao derrotar aqueles que puseram em risco a possibilidade da nação se instituir como uma unidade apresentando as forças viris necessárias à construção e manutenção da nacionalidade Era de tipos como aqueles que o Brasil emancipado politicamente necessitava denotando que o laço fraterno com Portugal ainda continuava a existir mesmo sob nova perspectiva Esse laço pode ser bem observado na construção dos tipos que tiveram destaque no panteão constituído pelo autor onde há uma clara distinção e até mesmo antagonismo entre as personalidades apresentadas como modelares os portugueses e seus seguidores e todos os demais que não se enquadravam naquele modelo De um lado ele mostrou 129 Tal abordagem é reveladora de que aquele intelectual aceitava de bom grado as proposições do Padre Antônio Vieira a respeito do Quinto Império e da própria predestinação do povo português cujo ethos clamava por ter ciência desse papel 57 homens130 brancos cristãos estadistas e lusófonos de outro os elementos indígenas africanos estrangeiros e nãolusófonos enfim os outros rotulados por marcas negativas reveladoras da real intenção do autor em elevar o elemento português como um modelo a ser apreciado e reconhecido os seus feitos heróicos Assim aquele autor engendrava em seu texto sua estratégia de detratação de qualquer elemento que não se enquadrasse no modelo colonizador luso de forma a valorizar ao máximo possível o elemento luso como o colonizador por excelência de um Brasil que atingira sua maioridade e que doravante caminhava com autonomia A leitura da narrativa daquele autor é reveladora da medida utilizada pelo mesmo em relação aos personagens da história nacional a partir do posicionamento que cada um assumia em relação à colonização portuguesa no Brasil Aos favoráveis que trabalharam no empreendimento colonial Varnhagen mostravaos como elementos exemplares personalidades marcadas por um cariz positivo construindo a partir de seus exemplos os heróis da história nacional Em relação aos que não se enquadravam nesse modelo os outros tomavaos por vencidos que caso não fossem destruídos tanto no passado quanto no presente condenariam a nação a permanecer na selvageria a cair sob o domínio de estrangeiros ou a sofrer o esfacelamento de seu território pelas mãos dos revoltosos regionais Inobstante sendo sujeitos virtuosos ou não todos habitaram o universo da sua obra131 no sentido de reforçar as representações positivas que ele construía ao longo da narrativa em 130 Evidente ter Varnhagen construído sua narrativa histórica numa perspectiva masculina As mulheres foram personagens ausentes ou secundários na narrativa da Historia geral do Brasil No caso das índias apareciam como meras figuras de atração para os colonizadores pelas suas belezas e dotes corporais Atendiam apenas ao principio da reprodução quando não eram associadas à luxúria e traição As portuguesas por sua vez ocupavam uma posição de inferioridade ou de coadjuvância nos feitos de seus companheiros filhos e netos os grandes homens Para uma crítica do discurso essencialmente masculino e misógino na historiografia brasileira conferir RAGO Margareth Sexualidade e identidade na historiografia brasileira Revista Aulas Dossiê Identidades Nacionais v 1 nº 02 p 136 OutNov 2006 131 Indígenas negros e estrangeiros anotados pelo visconde de Porto Seguro como detentores de atributos negativos apresentavam esse julgamento porque eram contrários ao mundo civilizado branco cristão católico e europeu Eles seriam uma ameaça à viabilidade da colonização processo necessário para a emergência da nação independente Anunciálos na sua narrativa era uma forma de ressaltar a grandiosidade dos desafios enfrentados pelos colonizadores vitoriosos Esse outro perigoso a ser vencido foi amplamente mencionado por Varnhagen sendo recorrente sua acusação dos malefícios provocados por indígenas ferozes invasores estrangeiros e o problemático tráfico negreiro No caso do governo de Men de Sá o historiador sorocabano destacou que foi um dos que a historia deve considerar como dos mais profícuos para o Brazil o 58 relação ao português Observese que não interessava se o outro era também europeu e portanto civilizado seu tratamento negativo foi dirigido também aos invasores franceses e holandeses quando de suas incursões ao território brasileiro Se avessos ao processo civilizatório português Varnhagen não titubeava em apontar o extermínio como solução auferindo que a civilização almejada para o Brasil era a portuguesa e nenhuma outra Mesmo que o decantado Velho Mundo fosse considerado o lócus da civilização por excelência fazse interessante destacar que na narrativa varnhageniana o laço que se deveria impor era com Portugal não importando o restante da Europa A civilização almejada portanto seria a portuguesa e nenhuma outra Todavia cumprenos questionar a pretensão daquele autor ao desdenhar do modelo civilizatório das demais nações européias a exemplo da França e dos Países Baixos mostrando o modelo português como um exemplo único a ser seguido pela neófita nação Não nos esqueçamos que Varnhagen era um súdito fiel de uma monarquia a bragantina que dominava tanto o Brasil quanto Portugal há vários séculos e que na construção de sua narrativa deveria ter seus feitos destacados garantindolhe o lugar na história e a manutenção do trono Para tanto não haveria na história francesa em primeira mão exemplos a serem seguidos pelos brasileiros cuja sociedade deveria ser perpassada pela ordem pela aceitação das leis do país e pelas determinações do trono Os revolucionários franceses não inspiravam Varnhagen e em decorrência das lutas sociais empreendidas naquela nação defeituosamente republicana ele não a mostrava como modelo da civilidade pretendida para o Brasil Este modelo era único e bem conhecido era o modelo português o que deveria ser seguido a fim de se garantir o poder reinante monárquico e a ordem nacional Apesar do excepcional destaque dado aos portugueses como construtores da nação verificase que Varnhagen não se eximiu de qualificar também alguns portugueses como sem virtudes dandolhes a pecha de traidores e corruptores dos hábitos e costumes dos primeiros colonizadores ao se adequarem ao cotidiano dos indígenas Todavia como já qual se pode dizer ter sido elle alvo principalmente das invasões francezas assim das dos Indios Ibdem p 267 A preocupação com os outros internos indígenas e externos negros e estrangeiros pode ser facilmente identificada na produção dos membros do IHGB publicada na Revista em pleno século XIX e mesmo nos anos iniciais do século XX a demonstrar o quanto a diversidade étnica brasileira foi pouco recepcionada por seus historiadores como um elemento da especificidade do país 59 afirmamos anteriormente sua estratégia em ressaltar a existência de comportamentos desviantes visava tão somente destacar com maior coerência a nobreza de caráter dos demais que não se dobraram aos costumes da terra e que mantinham a disciplina necessária à realização de um processo civilizacional Estes primeiros colonos meio afeitos já aos hábitos dos Bárbaros enlaçados com suas famílias e sem prestigio algum perante eles foram a pior praga que podia cair sobre a recente colônia A mesma facilidade de trato que por intermédio desses cristãos gentilizados tinham os novos colonos para se derramarem pela terra não só os pervertia como os expunha a serem inocentemente sacrificados às mãos dos gentios quando se arredavam um pouco mais A par destes males resultava outro maior A colônia se dissolvia os acostumados a obedecer perdiam o hábito da disciplina e o chefe começava a não ter força para fazerse temer e respeitar132 Fazse interessante destacar que na HGB verificase uma construção de personagens marcadas sempre por aspectos negativos para expressar bem a dualidade com que o autor construiu sua narrativa Em relação a esses Varnhagen não os tratou como de somenos bem ao contrário Seu discurso alardeou a existência das derrotas e destruições justificadas como resultantes do distanciamento do projeto português fosse por vontade própria fosse por decorrência de um estado anterior à própria colonização Dentre esses personagens destacamos sua visão extremamente negativa sobre os indígenas133 e rivais da colonização portuguesa assim como os invasores holandeses e franceses revoltosos regionalistas e de forma mais sutil os republicanos das Américas Para Varnhagen esses sempre 132 Ibdem Secção XIII p 216 133 Para homens como Martin Afonso os índios seriam um dos grandes empecilhos ao processo de ocupação e domínio do Brasil Reforçando sua imagem negativa dos indígenas e confrontando os adeptos do indianismo romântico do IHGB Varnhagen mostrou ao longo da descrição dos êxitos e fracassos das capitanias e o quanto a sua selvageria e violência teria ceifado vidas e obstruído o projeto colonial português133 Em suma para o visconde de Porto Seguro o protagonismo de personagens como Martin Afonso estava no fato de carregarem no sangue europeu o desejo de ordem uma das bases fundantes do Estado Para ele inexistia uma civilização anterior aos portugueses mesmo que existissem grupos humanos com uma organização específica antes dos mesmos Na ótica de nosso autor civilização era aquela existente na Europa especialmente em Portugal a quem cumpria o dever de transformar esses grupos amoldandoos a um modelo ordeiro onde predominava a fé a lei e o rei Assim já se observa que Varnhagen procurou interpretar o mundo à sua própria maneira tergiversando em alguns pontos do modelo de história desejado pelo IHGB e que tinha na proposta de Martius o seu modelo escolhido 60 terminariam vencidos pelas mãos dos homens virtuosos que não é demais reafirmar eram sempre brancos colonizadores ou lusófilos134 À exceção no panteão erguido por Varnhagen vamos encontrar dois nomes especiais o de Henrique Dias e o de Felipe Camarão cujas memórias ficaram para a posteridade como os grandes heróis da Batalha dos Guararapes guerra final contra os holandeses que permitiu a retomada de parte do Brasil ao um Portugal restaurado Henrique Dias era um negro e seu companheiro Felipe Camarão indígena Juntos com André Vidal de Negreiros branco os três perfizeram o heroísmo que Varnhagen quis mostrar ao Brasil heroísmo que dispensou as diferenças étnicas e se uniu em defesa de um projeto superior o domínio português na América Na união das três etnias tal qual recomendado por Martius em prol de tal ideação mais uma vez nosso autor celebrou a dominação portuguesa desta feita consentida e acastelada pela população nativa e pelos escravos que também viam no português o senhor das terras americanas Nesta perspectiva a história do Brasil escrita por Varnhagen seria a confluência de biografias de varões ilustres que em diferentes momentos lutaram em nome de um Estado forte e centralizado capaz de forjar uma nação soberana a partir de um processo civilizatório Da mesma forma no entrelaçamento destas biografias individuais emergiria a grande biografia da nação aquela que encontrava suas raízes no solo português Sua narrativa da criação do Brasil pelos portugueses a partir da construção de heróis tornouse posteriormente largamente reproduzida nos manuais didáticos que ostentaram as imagens desses heróis de forma a que seus semblantes fossem gravados pela população nacional que freqüentava a escola transcendendo seus rostos à própria menção de seus nomes Definiase assim uma identidade nacional almejada e minuciosamente planejada 22 O caráter civilizatório da colonização portuguesa Para além da sutil construção de heróis Varnhagen inseriu em seu projeto toda uma engenharia que lastreou o Estado Português como uma entidade civilizatória expressão utilizada de forma copiosa em sua narrativa135 Buscava pois justificar a presença 134 OLIVEIRA Laura Nogueira Op cit p 89 135 A rigor o conceito de civilização referese a uma grande variedade de fatos resultando na dificuldade de precisão do termo O ancestral da palavra civilisation é o conceito de civilité cujo desenvolvimento expressa 61 portuguesa na América assim como a consecução do empreendimento colonial em todos seus desdobramentos Suas escolhas historiográficas revelam o quanto o visconde de Porto Seguro ratificou o projeto historiográfico de Von Martius ao tributar aos colonizadores erigidos em sua narrativa como heróis a imagem de motor da civilização nos trópicos Os portugueses imersos na epopéia de conquista e defesa de parte do território americano para o estabelecimento do poder real e da fundação de uma nova civilização tinham como objetivo a transformação do comportamento dos distintos povos ali ajuntados africanos e nativos bárbaros carecedores de ascender a uma condição superior de civilidade 136 É sob essa ótica que as ditas ações civilizatórias encetadas pelo Estado português apareceram com destaque na obra de Varnhagen O estado de civilização na retórica daquele autor mantinha uma luta contínua contra o estado de barbárie que espreitava o homem e o assaltaria e dominaria tão logo ficasse desamparado dos controles criados pelo homem mas que pairavam sobre ele na figura onipotente do Estado Para nosso autor a condição humana tinha cariz precário sendo incapaz de se sustentar sem que existisse ao seu lado na qualidade de suportes indispensáveis a comunidade a sociedade e a Nação Mas foi ao Estado enquanto expressão primeira da uma antítese fundamental da autoimagem do Ocidente a qual opõe o cristianismo romanolatino da Idade Média de um lado ao paganismo e à heresia incluindo o cristianismo orientalgrego A sociedade do Ocidente empenhouse nas guerras de colonização e de expansão primeiramente em nome da cruz e depois pela civilização Desse modo o termo civilização conservou sempre um resquício da missão em que a cristandade latina e o cavaleiroeuropeu superior poderiam e deveriam forçar a alteridade à ação transformadora do comportamento humano civilizandoo O termo portanto constitui expressão e símbolo de uma formação social peculiar forjada na Europa a sociedade de corte e remete a uma identidade que no decorrer da constituição dos Estados nacionais associou o conceito de cultura à civilização pois a cultura ocidental seria resultado da civilização Ao ser incorporado no dicionário no Século XVIII o termo ganhou o sentido moderno de resultado de um processo de aperfeiçoamento da humanidade isto é o processo de civilização se traduz como o caminhar do progresso em direção à modernização tecnológica e à sofisticação dos hábitos humanos cujo parâmetro seria a Europa ocidental Essa idéia foi exportada da Europa para o mundo como sendo um processo coletivo ininterrupto com o qual a humanidade estaria comprometida desde suas origens e o ritmo de sua variação dependeria somente das diferentes épocas e lugares e é sob tal perspectiva que Varnhagen o insere em sua obra STAROBINSKI Jean As máscaras da civilização São Paulo Companhia das Letras 2001p 1320 136 De acordo com Elias o conceito de civilização expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo pois o termo condensa tudo em que a sociedade ocidental se julga superior a sociedades antigas ou a sociedades contemporâneas normalmente entendidas como atrasadas Assim o conceito descreve como a sociedade ocidental representa o que lhe é especial e distintivo das demais e o que lhe orgulha o nível de sua tecnologia seus hábitos o nível de desenvolvimento de sua cultura científica entre tanto outros A respeito ver ELIAS Norbert A sociedade de corte investigação sobre a sociologia da realeza e a aristocracia de corte Rio de Janeiro Jorge Zahar Editores 2001 p 40 A mesma questão é abordada em STAROBINSKI Jean Op cit p 1320 62 Nação que se delegou o poder de zelar para que tais condições surgissem de forma racional e deliberada O homem abandonado a si mesmo retroagiria quando desamparado pela ordem e pela lei que nasceriam do Estado na ótica varnhageniana Dessa visão de mundo nasceu a idéia de Brasil constante em sua HGB na qual o Estado Português teve papel de destaque posto atribuir ao mesmo a existência do povo e da nação brasileira Todo o seu raciocínio histórico foi desenvolvido em virtude do princípio básico de que o Estado é o gerador de nações e povos e que toda atividade humana que pudesse pôr em risco essa função devia ser combatida como um atentado aos legítimos interesses da Nação137 Fixouse no Brasil desde então a noção de que o Estado chegara antes como uma entidade superior dando ensejo posteriormente à nação Em decorrência de suas escolhas sedimento da tese constante na HGB observase que Varnhagen data o início da história do Brasil a partir apenas da chegada de Pedro Álvares Cabral e sua tripulação à nova terra em 1500 antes disso nada era interessante a ponto de integrar sua narrativa sobre a formação do Brasil Com base nessa premissa aquele historiador engenheiro militar formado pela Escola de Cadetes de Portugal foi taxativo ao reconhecer ser dos portugueses a propriedade do lugar o Brasil pertencia a Portugal seu descobridor e a mais ninguém fossem os nativos que o habitavam desde tempos imemoriais ou os espanhóis franceses e holandeses que adentravam seu litoral Lastreava se assim a representação do português como senhor do Novo Mundo com o fito de ali implantar uma civilização Nascia também a chamada América Portuguesa tão cara à versão varnhageniana posto só compreender o Brasil como extensão de Portugal país este surgido no orbe entre as nações civilizadas regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos e que dentro de algumas gerações se havia de organizar uma nação mais rica e considerável do que a mãepátria138 Esse argumento foi repetido ao longo de sua narrativa num esforço notável de bem fixar um atributo dos portugueses no Novo Mundo agentes da civilização onde o português descobridor embasava a construção de uma identidade de Portugal pátriamãe mostrada na HGB como um imenso rio tal qual Martius referenciava que congregaria as 137 A respeito ver ODÁLIA Nilo Op cit p 41 138 Ibidem secção XVIII p 294 63 contribuições dos pequenos afluentes de outros povos para a formação da identidade nacional brasileira Todavia diante do esforço do autor em apresentar Portugal como um Estado civilizador indaguemos em que consistia a civilização tão exaltada a ser engendrada nas terras descobertas e apossadas Em que versava o processo civilizatório português tão alardeado em sua História Geral Como esse processo expressara resultados Em busca de sentidos para sua argumentação Varnhagen fez uso de dois elementos marcantes no empreendimento colonial a religião e a guerra mostrandoos sempre como estratégias utilizadas pelos portugueses para realização de seu projeto civilizador A religião para ele deu o contributo necessário como instrumento civilizador sendo um anteparo uma sólida barreira que tinha por fim impedir o colono de perder sua condição humana passando a chafurdar na barbárie estado de degradação a ser evitado a todo preço Exemplos desses desregramentos eram abundantes na colônia e nosso autor lançou mão dos mesmos para demonstrar o esforço de padres e missionários a fim de evitar a fuga do cristão para as amarras da barbárie que assolava as terras americanas antes da chegada benfazeja dos civilizadores em muitos casos não obtendo resultado favorável ao seu esforço Vendose em pequeno número e bem desamparados os cristãos em cada uma das capitanias começaram por afazerse a muitos usos dos bárbaros nos objetos domésticos e nas primeiras necessidades Destes adotaram o uso do tabaco de fumo e com tanto amor que se tornou geral e passou à Europa e já no século seguinte constituíam um dos ramos da indústria e produção do Brasil Quis a igreja oporse ao uso declarandoo rito gentílico e prelado houve que chegou a proibilo com pena de excomunhão dando alguma vez como penitência aos que fumavam trazerem na igreja os pytimbaos ou grandes charutos ao pescoço mas foi tudo debalde139 Varnhagen mesmo esforçandose para patentear o português como elemento civilizado contraditoriamente mostrou sua gradual aproximação com os costumes bárbaros de negros e índios ao fazerem uso de certos produtos comuns na colônia Na ocasião ele clamou também contra o contato íntimo entre homens brancos e mulheres de cor ato incompreensível em sua concepção de mundo Buscava porém justificar esses atos como 139 Ibidem secção XXIII p 212 64 oriundos de um ambiente de penúria e desamparo tamanha eram as dificuldades enfrentadas pelos primeiros colonos A religião em seu cariz regenerador teria um papel importante para adequar tais comportamentos sendo a mesma utilizada e mostrada por aquele autor como o instrumento do estado para que seus agentes diante da espinhosa missão não perdessem o original feitio Em sua concepção providencialista e metafórica da história a presença de Deus e de Sua Sabedoria se efetivavam sob a forma de uma ação fornecedora de benesses e graças aos portugueses dignos filhos do divino e pais da nação A religião enquanto instrumento civilizatório também foi mostrado pelo historiador como instrumento educativo em sua mais difícil missão que era o resgate dos bárbaros de sua natureza degradante Varnhagen destacou no trabalho realizado pelos jesuítas a educação elemento profundamente entranhado à religião a qual juntamente com a lei e a autoridade compôs a tríplice base para a efetivação do processo civilizatório da colônia pelos portugueses Em sua narrativa a religião tiraria as gentes da miséria moral e espiritual nas quais estavam inseridas A expiação desses povos foi rigorosamente datada pelo autor e se iniciara com o descobrimento e a colonização pela Europa cristã ou especificamente católica Da mesma forma como a providência abençoava os portugueses lançava sua fúria contra os bárbaros e seus costumes que deviam submeterse ao poder real de Portugal e seu projeto civilizatório sob pena da danação eterna Observemos que Varnhagen lançou mão do recurso sensibilizante de mostrar aos católicos do império um Portugal guiado pelo divino a desempenhar um papel predeterminado no âmbito sobrenatural com o fito de fazer expiar dos seus pecados e crueldades a escória nativa bárbara avessa às normas da cristandade Sua leitura tendeu a remeter o leitor a trechos da história bíblica em que a posse da terra e a consequente expulsão dos filisteus eram promessas divinas que se cumpriram quando os portugueses chegaram ao Brasil subjugando os bárbaros que ali habitavam de forma espúria pois não eram seus donos Outros trechos com o mesmo teor são encontrados ao longo de sua narrativa asseverando que Com a chegada do Cristianismo do rei da lei e da razão da paz da cultura da civilização com a chegada dos europeus a este território o Brasil surgiu e integrouse no seio da Providência140 140 Ibidem secção XXXI p 337 65 Era entendimento de Varnhagen que o Brasil se realizara no seu destino manifesto somente quando da chegada dos portugueses competindo aos mesmos inserilo no rol das nações civilizadas ao implantar na sociedade ali criada as regras da cristandade expressas nos deveres apregoados pela fé católica Assim nosso autor fazia uma conexão entre os tempos coloniais e o seu próprio tempo tempos imperiais no qual à Igreja e ao seu clero fora reservado um lugar social cercado de especialidades graças à manutenção da instituição do Padroado141 Contudo por mais comprometido que estivesse com o catolicismo como instrumento de civilização associado nessa tarefa com o Estado o historiador mostrouse um crítico implacável toda vez que a Igreja ou seus representantes agiram a seu ver contra a presença do Estado Quer estivesse analisando Portugal do século XV ou em datas anteriores quer se detivesse em análises sobre o Brasil colonial ou independente o critério maior para a avaliação da atividade da Igreja pautouse sempre nas relações de subordinação da mesma aos interesses do Estado português Quer falasse da Inquisição quer analisasse a atuação dos jesuítas no Brasil toda vez que a intervenção da Igreja pudesse de leve ferir ou sensibilizar a ação do Estado monárquico português pondo em perigo sua unidade eou seu poder Varnhagen não titubeava assumindo vigorosamente a defesa do último142 141 Pertinente destacar que o Padroado como parte da política regalista portuguesa teve continuidade no Brasil emancipado por via da Constituição de 1824 que estabeleceu em seu artigo 5º a religião católica como religião do império permitindo excepcionalmente a liberdade de culto desde que sem símbolos exteriores A ingerência da coroa nos assuntos religiosos no entanto somada a outros fatores como o contingente de escravos a presença cada vez maior de imigrantes protestantes e a grande extensão territorial se revelaram como danosos para o processo de cristianização do Brasil que se oficialmente era católico em sua realidade se movia às margens das práticas e dogmas da Igreja revelando a precariedade com que foi conduzida a cristianização no território no período colonial Apesar da ambigüidade exarada da relação população e clero é inegável a integração de atos religiosos com o cotidiano nacional onde os grandes momentos da existência eram vividos no ambiente do templo católico A proximidade da família imperial mais especificamente da princesa Isabel e seus filhos e a Igreja no entanto é reveladora da preocupação de Varnhagen em dar ênfase a alguns aspectos nomeadamente ligados à sacralidade Sobre o tema ver HAUCK J F História da igreja no Brasil Segunda época A igreja no Brasil no século XIX Petrópolis Vozes 1992 142 Mesmo que em seu texto haja elogios à atuação dos jesuítas no que tange à sua contribuição ao soerguimento moral da colônia Varnhagen não se esquivou de tecer severa crítica a sua atuação quanto aos indígenas fonte de grandes males que punham em perigo a estabilidade do governo e da própria colônia e que motivou a expulsão dos membros da companhia de Jesus Para Varnhagen Os jesuítas pregavam mais com a palavra do que com o exemplo pois que não começaram por libertar os que lhes davam obediência Não temos nenhuma sorte de prevenções contra os ilustrados filhos de Santo Inácio que tão assinalados serviços prestaram à instrução pública e ao cristianismo mas quando os documentos acusam deles algumas irregularidades não trataremos de as contar com artificiosos disfarces que antes pareceriam adulação 66 No esforço civilizatório português onde a religião não obteve resultados e em casos mais específicos como as invasões estrangeiras a guerra foi relatada sempre como um pressuposto do empreendimento Para aquele historiador a construção colonial foi efetivada no combate na guerra na disputa da terra contra os invasores de forma a que Portugal pudesse se impor como seu dono onde deveria implantar uma nova civilização A guerra seria assim o instrumento de imposição de um modelo desejado pelos civilizadores Esse modelo era colocado em primeira mão pela educação religiosa onde a fé a lei e o rei eram postos como princípios orientadores da sociedade que se formava Submeterse a tais princípios significava adequarse ao modelo civilizatório que se queria para o lugar e ao qual teriam que se submeter e adaptar todos os demais povos Do contrário a nãorecepção desses princípios deveria ser entendida como uma oposição a ser severamente combatida pelo Estado português por meio de seu instrumental bélico Tratavase de um novo contexto de aplicação da chamada guerra justa travada contra bárbaros e pagãos desde o período da Reconquista e sobre a qual o autor não fez maiores menções143 Em diferentes pontos de sua narrativa Varnhagen acentuou a atuação bélica portuguesa144 de forma a que seu leitor entendesse que no contexto narrado não bastava a determinação injusta Ibdem secção XXIV p 393 Por esse viés é possível compreender porque não há um único padre ou missionário em seu panteão de heróis Nem Anchieta cujo trabalho nas missões permitiu a melhoria das comunicações entre colonizadores e indígenas graças à formulação de uma gramática foi merecedor de um papel de destaque em decorrência do rompimento de relações entre a coroa portuguesa e os jesuítas em 1759 Seu nome é citado junto com o do padre Manoel da Nóbrega como os dois jesuítas a quem o Brasil devia os maiores serviços embora o autor reconhecesse como demorado o recurso da catequese Ibdem secção XIV p 201 143 Varnhagen faz ligeira intervenção crítica sobre o tema aproveitando para destacar para além da política dos jesuítas a piedade dos reis como causa para que os índios fossem chamados à civilização Aproveita o contexto para lançar chispas contra as pregações de Frei Bartolomeu de Las Casas a quem nomeou de pseudofilantrópico e negreiro com pretensões de transportar à América toda a Etiópia Ibidem secção XIV p 220 e secção XLIII p128 e seguintes 144 No Livro I Varnahagen relata a guerra comandada por Martin Afonso de Sousa contra a invasão dos franceses no Maranhão mais adiante justifica a penosa guerra contra os índios na conquista do território da Paraíba Essas guerras perpassam toda sua narrativa pois existiram em diversos pontos do território colonial A Batalha dos Guararapes em que descreve a invasão holandesa até sua expulsão é narrada no Livro II a partir da p 187 tendo continuidade no Livro III tamanha a minúcia do autor Nesse livro Varnhagen reporta se à Revolta do Maneta e a Revolta dos Mascates e dos meios utilizados para findar o levante À guerra dos Emboabas não deu grande destaque mas Varnhagen mostrou toda sua fúria lusitana ao narrar em clima de júbilo a destruição do quilombo de Palmares pelos bandeirantes paulistas A Revolução Pernambucana de 1817 é abordada no Livro V de uma forma que sua narrativa justifica porque o historiador foi declarado pelos seus pares como um defensor da causa dos Bragança e não da Causa do Brasil 67 inexorável da providência mas que a posse da terra consubstanciava e representava o resultado da ação do homem conquistador em sua superioridade civilizatória perante os demais Eram nessas guerras contra índios negros rebelados quilombolas calvinistas franceses e mercadores dos Países Baixos que Portugal espelhava sua ascensão sobre os demais povos e especialmente àqueles reunidos na ambiência colonial num contexto no qual índios e negros não tinham importância nem destaque Mesmo sem o desejar as idéias contidas na HGB findaram por lançar seu autor num certo impasse que na realidade da nação que buscava se constituir aflorara como um problema central para essa mesma constituição a questão racial Lembremonos que ao tempo da escrita da História geral do Brasil a escravidão ainda era uma forte realidade a ser observada nos espaços rural e urbano assim como a questão indígena elevada a um patamar especial pelo romantismo A existência dessa hierarquia entre distintos povos permitia que se falasse em projeto civilizatório como sinônimo de projeto colonizatório embora resultasse como um impeditivo para os fins que se buscava seja a construção de uma identidade nacional unificada e centralizada em torno de uma autoridadepoder existente desde os primeiros anos da colônia Por conseguinte Varnhagen se defrontou com alguns problemas fundamentais que findaram por se constituir como eixos de sua narrativa Como representar o português como o grande rio civilizacional no contexto de raças para estabelecer uma identidade comum Como resolver a questão da existência de raças perante a supremacia portuguesa Como instituir essa união numa narrativa recheada de representações negativas contras as ditas raças145 145 Para aquele autor os indígenas com seus modos bárbaros de vida terseiam perpetuados no solo brasileiro se a providência divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo e a civilização trazidos pelas caravelas portuguesas viessem por termo a tão triste e depravado estado Ao longo da Historia geral do Brasil os indígenas seriam apontados como entraves à colonização atacando e destruindo povoações Eles seriam responsáveis pelo pânico e desordem da sociedade que se instaurava em terras tropicais mostrando se inconstantes e portanto não confiáveis como aliados no processo de colonização do Brasil Eram sempre anotados ao longo de sua narrativa como um dos grandes obstáculos na superação dos limites do litoral rumo ao interior Neste sentido ele elogiava e saudava os feitos dos bandeirantes paulistas no seu aprisionamento e uso como mãodeobra As bandeiras em última análise seriam a civilização dessas gentes perdidas nas brenhas destas terras Em síntese o visconde de Porto Seguro definia as gentes que viviam no Brasil como desgraçadas que em vez de habitarem tão bello solo apenas o possuíam em quanto não se exterminavam umas ás outras em guerras que eram miseraveis a pôder de ferozes HGBsecção IV p88 Em relação aos negros pouco se ocupou nosso autor dos mesmos Para o visconde de Porto Seguro os traficantes negreiros fizeram uma má ação ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de 68 No processo de permanente escrita invenção e embates de narrativas 146 de sua História Geral do Brasil nosso autor definiu os rumos por onde resolveria as questões anteriormente expostas A escolha do que deveria ser a nova Nação acabou por parecer como a natural decorrência de uma situação histórica em que a oposição entre culturas e civilizações diferentes impôs um vencedor a cultura e a civilização dos brancos que trazia em seu arsenal de armas não só as de natureza guerreira como também outras mais efetivas e sofisticadas vistas como os atributos de uma civilização superior Assim nosso autor referenciava sua apropriação do discurso raciológico tão em voga no século XIX discurso este bem absorvido pelos intelectuais brasileiros da época e que se encontrava explícito nas orientações de Von Martius para a operação historiográfica dos membros do IHGB147 A Europa mais especificamente Portugal com tudo o que significava em termos de cultura e civilização deveria ser o modelo ao qual se apegaria a nova Nação onde as diferenças raciais não eram tidas como elementos dissonantes e excludentes Bem ao contrário era o processo civilizatório que unificava tais diferenças pois Se da união nasce a força da desunião somente fraqueza resulta e o maior ascendente que em todos os países tem tido a civilização sobre a negrarias Ao abordar o concurso dos negros para a obra colonial e nacional Varnhagen se limitou a registrar que a oferenda do povo africano seria os pés e braços para o trabalho na colônia repetindo a máxima conhecida do missionário jesuíta André João Antonil Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente In ANTONIL André João Cultura e opulência do Brasil Belo Horizonte Itatiaia São Paulo EDUSP 1982 p 89 146 Varnhagen tinha consciência disso mesmo sabendo da força da sua obra e não poucas vezes refez os caminhos da escrita e reescrita da sua História geral do Brasil bem como na produção de outros escritos como a Historia das lutas com os hollandezes no Brazil desde 1624 a 1654 e a Historia da Independencia do Brasil até ao reconhecimento pela antiga metrópole comprehendendo separadamente a dos sucessos occorridos em algumas províncias até essa data 147 A respeito bem nos ensinara Odália que foi sobre a estrutura racial que dissimulava uma realidade de estrutura de classes que convergiram todos os esforços de interpretação da história de parte significativa dos intelectuais brasileiros do século XIX e das primeiras décadas do século XX demonstrando de maneira eloqüente que em primeiro lugar uma opção de sociedade já havia sido feita tendo como paradigma a sociedade européia e em segundo que essa opção era também uma forma de integração a essa sociedade integração que demandava uma metamorfose dos elementos espúrios da estrutura racial índios e negros pelo remédio da fusão ou miscigenação racial Contudo se num primeiro momento a pura e simples fusão racial parecia conduzir pacificamente à opção feita num segundo a rejeição sofrida por essa solução tranqüila pela comunidade científica européia à qual repugnava o hibridismo racial do homem brasileiro obrigava a uma reavaliação do nosso passado colonial de maneira que se amoldasse às condições impostas pela opção feita Assim se a opção por um modelo europeu de sociedade parecia ser apenas conseqüência natural de nossa experiência histórica os obstáculos teóricos que surgiram da comunidade científica européia deveriam ser analisados ratificados e principalmente retificados em razão daquela mesma experiência Cf ODÁLIA Nilo Op cit p 19 69 barbárie vem de que esta composta de elementos dissolventes não se une ao passo que a nação civilizada que com ela se põe em contacto tem nas suas mesmas leis os laços de união148 A partir de tal consideração na escritura da sua Historia geral do Brasil que Varnhagen elegeu como um dos principais mitos fundadores da nacionalidade brasileira a união de raças149 díspares entre si mas comuns em finalidades seja o estabelecimento de uma nacionalidade que se reconheceria com uma herança única a portuguesa A tríade brancosnegrosíndios proposta por Martius encontrou final guarida na obra varnhageniana para quem esta união era resultante da vitória da ordem e da civilização brancas numa América marcada pela mestiçagem Eis o segundo aporte para respaldar sua tese sobre o projeto civilizatório português a atividade bélica na qual se uniram os diferentes elementos étnicos para defender o projeto português constituir uma nova sociedade e formar um povo Realizavase finalmente no texto do historiador do IHGB o ideal civilizatório tão arduamente defendido Com esse fito Varnhagen fez da Batalha dos Guararapes o lócus de congregação das distintas etnias o lugar onde a civilização se faria vitoriosa ao soterrar as diferenças para se forjar identidade e lealdade em torno de um projeto comum o projeto colonial português Outros heróis surgiram em sua narrativa e que representariam essa união só possível no contexto do ideal civilizador Vidal de Negreiros Felipe Camarão e Henrique Dias eram os guerrilheiros ideais para o sucesso da empreitada militar contra o inimigo bem como os varões ilustres que formariam a nação brasileira Estes eram os eleitos de Varnhagen para servirem a sua causa a invenção de um mito fundacional para o Brasil Ao menos era a verdade que ele desejava acreditar ou fazer crível 148 Ibidem secção XLVII p307 149Varnhagen foi o primeiro ideólogo a formular concretamente a teoria do branqueamento da população brasileira Dessa união de raças nosso autor construiu a identidade comum do Brasil bem representada no mestiço mas que ao cabo de algumas gerações se tornaria novamente na essência do europeu vencedor Purificado depois de passar pelas agruras da miscigenação seriam eliminadas as excrescências desse cruzamento espúrio e retificados os erros históricos dentro de uma nova realidade histórica Ao novo homem branco assim nascido competia tomar consciência de seu ser ao conhecer de que etnias surgiu como o seu caráter foi forjado no combate na conquista e reconquista da terra no desbravamento dos sertões e florestas O ideal do branqueamento da raça é a culminação de um processo de fazer do Brasil uma sociedade branca e européia ideal permanente que aqui se revela sob a forma de um confronto de civilização e que vai se matizando diferentemente com o decorrer de nossa história 70 A unidade etnicorracial vislumbrada no episódio da invasão holandesa ajudaria no processo de consolidação da unidade territorial tão necessário no momento da escrita da HGB Esta preocupação de Varnhagen ficou evidente nas passagens em que estas personagens figuravam sendo sempre destacados pela associação à causa da civilização bravura e disciplina e capacidade de seguir a liderança Além disso tinham importância pela forma como comandavam seus homens na condição de militares e também de pedagogos pois suas tropas eram formadas por suas gentes E ao liderálos no campo de batalha também ensinavam qual era o caminho da civilização cujas regras se amparavam em grande parte nas normas da cristandade católica Estes homens eram exaltados por Varnhagen150 porque lutaram com bravura como coadjuvantes ao lado dos colonos portugueses contra o inimigo estrangeiro e a favor do projeto de Portugal 150 Em sua narrativa de variadas passagens percebese que naquele acontecimento histórico a guerra de expulsão dos holandeses no qual se congregaram três distintos grupos étnicos ao elemento português foi dado um lugar especial e mais elevado como grande autor da nação sendo os demais meros coadjuv antes Sendo negro Henrique Dias e índio Felipe Camarão Varnhagen faz questão de demonstrar certa inferioridade bélica desses comandantes ao destacar que A gente que desembarcara com Henrique Dias havia sido encontrada à borda de um mato pelo capitão das guardas de Nassau Carlos de Toulon que com setecentos homens fora buscála e lhe fizera um grande número de prisioneiros ficando no campo oitenta e sete mortos e constando que havia sido ferido o próprio Henrique Dias Do Camarão sabemos que se achava às margens do Uma com os seus guerreiros quando ao aproximarse o coronel Koin com mil soldados se retirou mui a tempo pelos matos evitando combate Ibdem secção XXXI p 312 Em relação ao negro Henrique Dias Varnhagen não apresentou tantos dados biográficos mas seguiu a mesma linha de raciocínio procurando mostrar seus valores como soldado e fiel seguidor dos ideais coloniais Mesmo ao elogiálo o historiador sorocabano não deixou de registrar as marcas herdadas da sua condição racial que por vezes se manifestavam no guerreiro Henrique Dias era bravo fogoso e ás vezes desabrido e mais valente para obrar que apto para conceber Naturalmente loquaz desconhecia o valor do segredo e discrição nas empresas mas era dotado de coração benévolo e uma alma benfazeja Ibdem p 16 Na descrição do índio Camarão ficou bem perceptível a sua visão do que significava esta adesão à cultura européia como uma saída para a condição de barbárie D Antonio Filippe Camarão traduzindose este apelido do de Poty que levava como selvagem e que significa o mesmo unido á causa da civilização desde o estabelecimento da capitania do Ceará não cessara jamais de prestar serviços importantes já contra os franceses na costa do norte já contra os holandeses na Bahia e em Pernambuco já contra os próprios selvagens Ao vêlo no fim da vida tão bom cristão e tão diferente do que fora e do que haviam sido no mato os seus pais não ha que argumentar entre os homens com superioridade de gerações sim deve abismarnos a magia da educação que ministrada embora à força opera tais transformações que de um bárbaro prejudicial á sociedade se pode conseguir um cidadão útil a si e à pátria O ilustre comendador Camarão era mui bem inclinado comedido e cortês e no falar mui grave e formal e consta que não só lia e escrevia bem como que não era estranho ao latim Era um tipo do soldado modesto que combate pela pátria na ideia de não ter feito mais do o seu dever Ibdem p19 Ao longo da narrativa chefes militares como André Vidal de Negreiros ganhariam em quantidade de páginas e de elogios maior destaque Vidal de Negreiros na sua leitura era homem tão superior que necessitaria um Plutarcho para aprecialo A sua biografia era também muito mais profícua em dados e fatos Filho de portugueses branco nascido no Brasil Varnhagen abre nota de rodapé com os elogios constantes na obra de Barleus sobre a atuação de Vidal de Negreiros no 71 Sendo as nações constituídas como narrativas como afirmou Said151 é corrente que estas congreguem nas suas tramas a dimensão mítica procurando fabricar um começo sublime Esta concepção de história articulada com as tradições inventadas e seu mito fundador permitiu a Varnhagen interpretar o Brasil como um só corpo territorial étnico e político e que suas instituições marcadamente plurais encontrassem uma unidade quase natural quando pensadas à luz do passado colonial Nessa dimensão mítica aquele historiador inventou um começo sublime onde as diferenças deixaram de existir para ensejar um povo que deveria tomar consciência de que os seus diferentes sujeitos raciais formavam uma suposta unidade e essa unidade expressava a realização final do projeto civilizatório português Com tais argumentos Varnhagen compôs o mito fundador do Brasil152 de um Brasil português e não de um Brasil brasileiro A proclamada união das três raças em sua ótica celebrava a dominação portuguesa com o consentimento e a colaboração da população nativa sendo essa dominação superior a todas as demais posto que derrotara índios negros franceses e holandeses A superioridade proposta na narrativa de Varnhagen baseavase na predominância de valores que fizeram do português o vencedor dentro de um processo histórico idealizado no qual estava o homem branco conquistador e católico e a barbárie indígena e negra A idealização do vencedor foi feita pela contínua referência à civilização superior que impôs seus padrões incluindose aí os traços característicos de seu portador o homem branco ele mesmo produto de condições históricas e de concepções idealizadoras de seu ser e de sua atuação na história A mistura ali não era a possibilidade da existência da diversidade era a adesão ou rendição ao projeto colonial europeu branco cristão católico masculino Significava enfim a conflito Vidalius homo audax callidus e prout animum intendisset pravus aut industrius in Parahyba terris populationibus incendisque grassatus maximus damnis afflixerat Lusitanorum molas agrosque cannis passim sachareis consito Ibdem secção XXXI 14 e seguintes 151 SAID Edward Wadie Cultura e imperialismo São Paulo Companhia das Letras 2005 p 13 152 A associação desta imagem do panteão das três raças como marco fundador da idéia do Brasil como paraíso racial como se percebe por exemplo na produção didática brasileira repete a lógica da necessidade de sempre se buscar uma origem primeira uma mitologia e uma tradição no passado como forma de legitimação A propósito dessa criação ver RIBEIRO Renilson Rosa Colônias de Identidades Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil Dissertação de mestrado em História Cultural Universidade Estadual de Campinas 2004 72 aceitação da legitimidade da força e autoridade do povo conquistador ao qual ele se esforçava para representar a partir de variados adjetivos e fatos Essa pureza arquitetada na História Geral do Brasil concretizaria na verdade o viés principal de sua obra mostrar o Brasil como uma continuidade de Portugal nação cuja superioridade racial bélica cultural já fora bem provada nas guerras de conquista de dominação e de civilização do território denominado não como América portuguesa mas como Brasil desde seus primórdios Neste sentido podese constatar que a narrativa da história do Brasil nos moldes projetados por Varnhagen não foi somente a história de uma conquista mas foi também prioritariamente a constatação discursiva da dita superioridade de uma cultura de uma civilização de um modo de vida e de um pensamento sobre outras formas rotuladas de primitivas que acabam por ser interpretadas como um estado de barbárie No exercício de mostrar o Brasil como fruto dessa superioridade insistiu aquele autor em ser o estado imperial comandado por D Pedro II o sucessor de Portugal na América e que somente a colonização lusitana poderia ter garantido a unidade nacional o que bastava à historiografia imperial para desqualificar as outras experiências coloniais Mostrava assim sua fidelidade ao imperador e aos seus antecessores diretamente envolvidos na grande obra de civilização do Brasil 23 A admirável monarquia Bragantina A leitura da HGB parece desnudar de forma insistente a fartura de herois criados por Varnhagen com o fito de solidificar a proposta mestra de sua obra seja a união de Brasil e Portugal Seus heróis no entanto não se limitaram aos súditos portugueses empenhados na tarefa colonizadora sobre os quais nos reportamos no item recém concluído Acima e para além daqueles existiriam heróis maiores capazes de vislumbrar o futuro e de traçar estratégias para realizar planos que dignificassem o Brasil permitindo a sua existência enquanto nação que agora buscava se reconhecer como una imbatível autônoma Para esse fim Varnhagen se esforçou em convencer a partir de seu texto que a essência que o Brasil buscava naquele momento estava em seu passado mítico desde a sua origem primeira unificado contínuo e eterno153 Para tanto deverseia compreender que os 153 Cf HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Rio de Janeiro DPA 2001 p 53 73 tempos coloniais foram tempos do nascimento da nação nos quais o Brasil fora gestado em sua essência pela vontade e poder dos reis operosos da dinastia bragantina cujo herdeiro assumira o trono brasileiro Tais tempos foram mostrados por Varnhagen como um período de labor de realizações de sonhos e determinações de uma monarquia empenhada no sucesso da empreitada colonial A existência da nação datava de 1500 com o descobrimento do Brasil pelos portugueses período que atingira seu ápice em 1808 ano da vinda da família real para o Brasil para ele data a ser celebrada com júbilos posto que destacasse o Brasil entre as demais nações do continente conferindolhe um caráter semelhante a de outras nações européias Completavase ali a obra colonial assim como se iniciava a transformação do Brasil em corpo político autônomo 154 sob o legado de uma paternidade portuguesa e bragantina de todas as formas possíveis elogiada por nosso autor para quem A madureza da independência procederia da carta régia sobre a abertura dos portos e por conseguinte ao mês de janeiro de 1808 com mais glória para o Brasil que destarte remontou a sua emancipação colonial em época anterior a de todas as repúblicas continentais hispano americanas155 Para Varnhagem foi a vontade do então príncipe regente D João VI ao instalar sua corte no Brasil que permitiu o amadurecimento da nação tornandoa independente com a abertura dos portos e a elevação em 1816 a Reino Unido Sob seu reinado o Brasil perdera o estatuto de colônia equiparandose ao próprio reino abandonado pelo então príncipe regente por vontade própria mesmo que num momento de perigo para vir reinar no Brasil Essa emancipação fora feita sem lutas nem discórdias de forma pacífica a demonstrar que as esporádicas sublevações de colonos não tinham sentido diante da magnanimidade de D João VI 154 Segundo François Hartog para os historiadores franceses do século XIX à semelhança de Varnhagen no Brasil a nação é ao mesmo tempo uma evidência uma arma política um esquema cognitivo e um programa histórico Ao longo de todo o século os historiadores tentaram entender este momento fundador e portanto inscrevêlo e darlhe sentido no longo percurso da história In HARTOG François O século XIX e a história o caso Fustel de Coulanges Rio de Janeiro Editora da UFRJ 2003 p 24 155VARNHAGEN Francisco Adolfo de História da Independência do Brasil São Paulo Melhoramentos 1922 p 241 74 O período joanino no Brasil foi construído de forma especialmente favorável no texto de Varnhagen que elogiou à exaustão a atuação de D João VI criador e ordenador das condições para o estabelecimento do Brasil como corpo político autônomo Foi o seu governo que oxigenou as acanhadas relações sociais até então existentes no Brasil que melhorou as cidades insalubres que estimulou a cultura que rechaçou as insatisfações que uniu e transformou habilitando a antiga colônia à condição de autônoma Para o visconde de Porto Seguro em razão de sua administração o avô paterno de D Pedro II era se não o primeiro imperador ao menos o verdadeiro fundador do império do Brasil por ter lançado os alicerces da obra em que seu filho e neto iriam depois reinar A pretensão de construir o Império do Brasil era documentada por Varnhagen com o manifesto de guerra feito à França por D João em 1º de maio de 1808 Nessa declaração teria o regente afirmado que no Brasil iria criar um novo império citação bem destacada pelo historiador paulista como prova de seu argumento Destarte Varnhagen construiu em sua narrativa um ambiente propício à definição do heroísmo que pretendia solidificar na figura de D João VI Instalado no Brasil com sua corte reinando dos dois lados do Atlântico D João foi mostrado trazendo para a mesma como face opositora ao estado de emancipação do Brasil as exigências dos revolucionários do Porto que ao contrário dos desejos do rei desejavam submeter o Brasil ao antigo estado de colônia humilhando espoliando destruindo a nação criada por D João VI com sua presença e seus atos inovadores As cortes de Lisboa na sua sanha liberal foram mostradas na HGB como o elemento responsável pela retirada de D João VI e de sua família assim como pela dissolução do Reino Unido efetivando uma nunca pretendida separação entre Brasil e Portugal Estava já lançado o pomo da discórdia mas como se as cortes não quisessem que de forma alguma se questionasse a todo o tempo a procedência dele não parou nas suas providências de opressão Para si haviam sido liberais haviam abolido a inquisição proclamado a imprensa livre a negação do veto e dos privilégios eclesiásticos e seculares e eis que começam sem esperar ao menos a reunião dos deputados do Brasil a legislar contra este estado isto quando a província e corte do Rio de Janeiro sofria dolorosamente pela falta de subsídios e falência do banco e quando o príncipe regente escrevia do Rio a seu augusto pai lastimando sua situação e falta de meios para acudir às 75 despesas da sua corte sem outras mais rendas que as da província e pedindolhe inclusivamente que não comprometesse a dignidade de seu filho que também era a sua156 Com este enredo Varnhagen mostrou uma parcela da sociedade portuguesa os revolucionários e membros das Cortes como uma gente que se levantava audaciosamente contra seu rei e seus propósitos coagindoo a e atormentandoo com o fito de submetêlo as suas vontades para assim ganhar vantagens Ele não se aprofundou em buscar as razões pelas quais D João VI se submetera àquelas pretensões ao deixar o Brasil submisso à vontade das cortes eximindose de toda e qualquer responsabilidade visto que El rei amava muito o Brasil e viase nele bastante querido157 Ao mesmo tempo em que Varnhagen criou a figura de um monarca determinado amado pelo povo do Brasil profundo conhecedor da arte da política e estrategista por excelência preocupado com as coisas do Brasil nosso historiador criou mesmo a contragosto o povo português como contrário aos desejos de seu rei As lutas liberais na narrativa de Varnhagem foram do interesse apenas dos portugueses voltadas apenas para as suas benesses e não para o rei para seus herdeiros para a dinastia de Bragança e muito menos para o Brasil Mesmo sem querer destoando do seu enredo primeiro em mostrar sempre o Brasil como uma extensão de Portugal Varnhagen arquitetou os portugueses vintistas como uma gente que não amava o Brasil para além dos seus interesses pecuniários Quem amava o Brasil era a dinastia admirada pelo historiador cujas pretensões sempre foram de soerguimento de transformação de melhorias para com aquela parte da América Em sua narrativa com o fito de mostrar o quanto os Bragança amavam o Brasil preocupandose com o seu futuro caberia a D Pedro príncipe herdeiro concretizar a missão iniciada pelo pai monarca que levaria seu projeto de criação de um império adiante dandolhe ordens e instruções de como proceder A partir do regresso da família real e das pressões das Cortes D Pedro seria o protagonista do processo de independência soerguendose contra as mesmas Foi desse modo aclamado como homem íntegro e corajoso pelo historiador príncipe altivo capaz de realizar o destino do Brasil ao evitar seu regresso à condição de colônia Diante das ameaças das Cortes os levantes nas diferentes 156 Ibidem p 399 157 Ibidem p 417 76 partes do Reino e os confrontos entre brasileiros e realistas o D Pedro descrito por Varnhagen se sobressairia como liderança e única via de se preservar a integridade do Brasil evitando o caos vivenciado pelas excolônias espanholas tomadas pela onda republicana que se fragmentaram em suas lutas pela independência 158 A opção por ficar no Brasil era tida como a mais acertada para o bem da futura nação uma vez que para o historiador monarquista significava a manutenção da casa reinante da ordem e da unidade Não faltaram Portugueses que vissem nesta resolução do príncipe desobediência deslealdade e até traição entretanto é certo que ele não fez mais que seguir os impulsos da prudência e a recomendação de seu próprio pai antes de partir para a Europa A agitação no Brasil não podia ser maior Abandonar nesta conjuntura aos furores das tempestades políticas a terra que o hospedara e a seu pai no momento do perigo deixar entregue aos horrores da anarquia a pátria dos seus filhos a joia mais preciosa da coroa que por direito de sucessão lhe devia um dia caber fora mais que deslealdade a seu pai fora ingratidão ao país acolhedor fora um crime ante a humanidade O príncipe seguiu o partido que devia seguir mas esta generosa resolução era já um primeiro ato de rebeldia aos decretos das cortes tudo o mais que se segue foi consequência lógica dele Toda a filosofia se abisma e cala onde há fatos tão contraditórios como sobrenaturais e o historiador confuso ao buscar a explicação das causas e dos efeitos se prosternam ante a sábia Providencia que nos havia destinado o príncipe D Pedro para personificar no ato da separação a integridade do Brasil159 Observese que para Varnhagen a Providência teve ação em relação à decisão principesca de ficar no Brasil rebelandose contra as ordens das cortes e decidindose ao enfrentamento de modo a manter a integridade do Brasil A independência assim não seria apenas um fato político originado por interesses contraditórios mas uma ação divina que destinara a D Pedro a honra de ser o primeiro imperador do Brasil O sobrenatural se 158 Para Martha Victor Vieira a unidade da nação foi propiciada não pelo papel desempenhado por D Pedro Foi a política das Cortes que facultou a união das províncias a favor da emancipação que se irmanaram em torno de um projeto que dispersava as diferenças entre aqueles territórios permitindo uma aproximação que nunca existira durante a colônia Em Varnhagen essa aliança das províncias a união do Brasil num só Estado congregando de norte a sul províncias tão distantes entre si foi beneficiada pela oposição às atitudes das Cortes pelo príncipe e não como um ato político da coletividade Cf VIEIRA Martha Victor Varnhagen um intelectual monarquista Revista Intellectus v 2 nº 5 p 112 2006 p 7 159 Ibidem p 427 77 tornou sujeito ativo na narrativa de Varnhagen no seu esforço de construir a figura de um herói nacional que pôs em risco a própria vida em defesa da terra que o acolheu legado de seu pai e herança de seus filhos Toda a vontade do príncipe resultou também de um poder maior que findou por sacralizálo como o principal agente da emancipação brasileira iniciada por seu pai A trama em torno das ações e reações do príncipe regente no processo de independência do Brasil foi posta em primeiro plano na narrativa de Varnhagen embora ele não se furtasse a apresentar diversos sujeitos envolvidos no episódio A consolidação da emancipação foi narrada enfim como fruto dos eventos políticos coordenados por D Pedro mesmo que apoiado pelas autoridades do Estado O Brasil de Varnhagen bem como o novo Império nos trópicos teria sido obra das mãos do D Pedro I o grande herói do ato político juntamente com seu pai os grandes personagens tradicionalmente presentes nas páginas dos manuais escolares e memorizados há tempos pelas crianças e jovens nas aulas de História160 Se o período colonial fora fértil na produção de heróis a narrativa da emancipação política só comportava os nomes de D João VI e D Pedro I cuja biografia se confundiria com a própria história da fundação do Império do Brasil nas páginas da primeira edição da História geral do Brazil e posteriormente da História da Independência do Brasil Para o visconde de Porto Seguro o Sete de Setembro foi a recoroação de um projeto de longa data remontando os feitos da dinastia dos Bragança protetora do Brasil A independência proclamada por D Pedro era em sua narrativa o único caminho para o Brasil Observese o quanto aquele historiador mascarava a realidade da própria nação ao estipular a inexistência da ruptura entre a realidade da colônia e o novo império formado na pósemancipação161 Para aquele homem de letras D Pedro proclamara a emancipação 160 Para uma reflexão sobre o papel dos heróis nacionais no ensino da História como parte do projeto de fabricação da identidade nacional brasileira conferir MICELI Paulo Celso O mito do herói nacional São Paulo Contexto 1994 e FONSECA Thais Nivia de Lima História e Ensino de História Belo Horizonte Autêntica 2003 161 Segundo Wilma Peres Costa é relevante observar que a continuidade enfatizada por Varnhagen decorreu de uma postura política e não do reconhecimento de algo realmente existente pois ele próprio reconhecia que na época da Independência a unidade não existia Bahia e Pernambuco algum tempo marchavam sobre si e o Maranhão e o Pará obedeciam a Portugal e a própria província de Minas chegou a estar por meses emancipada Cf COSTA Wilma Peres A Independência na historiografia brasileira In 78 em resposta aos apelos paternos por ser um bom filho que em tudo adulava o pai obedecendo fielmente aos seus ditames Era mostrado assim como portador de um caráter brilhante que lhe concedia coragem e disposição para defender o Brasil o que vem a demonstrar o quanto era importante para Varnhagen a defesa de D Pedro I 162 Se não era possível a manutenção do Reino Unido que fosse preservada a emancipação do Brasil completo em sua autonomia e preservado em sua integridade 163 Esta data de celebração não significava para aquele historiador a ruptura com Portugal pois ali se mantinha como rei D João VI Significava portanto a manutenção de um estado já deliberado em 1808 que os dois monarcas não deixaram soçobrar mantendo um projeto há muito acalentado segundo as palavras de Varnahgen O Brasil conta ainda hoje e contará eternamente o dia 7 de setembro como o primeiro do ano no calendário das festividades nacionais E com fundamento Nesse dia nasceu a nação renascendo são e salvo o reino que emancipara El rei D João VI o principado que criara D João IV o estado que fundara D João III Tambem por todas estas razões devera Portugal festejar este dia pois de certo que sem a resolução tomada em 7 de setembro de 1822 não poderá regozijarse de ver hoje tão próspero e alimentando em grande parte o seu comércio e marinha mercante este seu filho descansando à sombra do solo bragantino e seguro esperamos em Deus de correr a sorte de outros que não foram tão afortunados O Brasil não deveu a D Pedro a sua emancipação que essa consumada estava desde 1808 e era impossível retroceder até em vista do tratado celebrado em 1810 com Inglaterra deveulhe porém a sua integridade e deveulhe a sua integridade e deveulhe a monarquia que foi símbolo de JANCSÓ István Org Independência história e historiografia São Paulo HUCITECFAPESP 2005 p 345378 162 A preocupação em fazer justiça à memória de D Pedro I era apresentada pelo próprio Varnhagen nas suas cartas ao Imperador D Pedro II Era necessário começar por não me constituir adulador para melhor encaminhar commigo o leitor a crer o que logo depois digo em tópicos mais melindrosos e essenciais à heroicidade Como chronista poderei ser mais adulador ou panegyrista como historiador produziria effeitos negativos Creio que faço justiça ao Sr D Pedro 1º Cf Carta ao imperador D Pedro II 14 de julho de 1857 In LESSA Clado Ribeiro de Correspondência ativa de Francisco Adolfo de Varnhagen Rio de Janeiro Instituto Nacional do LivroMinistério da Educação e Cultura 1961 p 247 163 A preservação da integridade de um Brasil uno ou melhor que se desejava uno na história do Visconde de Porto Seguro é mostrada como uma realidade desde os tempos coloniais A narrativa da luta pela defesa da unidade territorial e política remontava aos tempos coloniais em episódios como a fundação do governo geral de Tomé de Souza as guerras contra os holandeses a criação do principado e a vinda da família real Assim Varnhagen buscava homogeneizar as diferenças gritantes existentes na sociedade colonial tudo no sentido de conferir sentido aos seus argumentos 79 ordem no interior e de confiança no exterior e por fim veio até deverlhe a dinastia pela sua abdicação feito muito a tempo para a poder salvar164 Na sua HGB o Brasil era um legado transferido entre dinastias e 1822 significava apenas uma mudança de um tempo em que se encaminhava junto com Portugal para um tempo em que se estava pronto para construir seu próprio futuro 165 D Pedro I havia preservado a integridade da nação que seus antepassados originaram e cabia ao seu filho D Pedro II consolidar o Império mantendo a ordem a unidade e o progresso Com o primeiro imperador a independência e o império ficam proclamados assim como a D Pedro II legítimo herdeiro do legado do pai e avô consagrado na existência dos chamados símbolos da pátria Em nome deste novo fato a independência o passado deveria ser reorganizado e interpretado não mais como parte do Império português mas do nascimento político do Brasil Assim pelo ideal centralizador do qual Varnhagen era portavoz e artífice da história os Bragança inauguraram dois importantes momentos na América a emancipação sem lutas nem dissídios e a instalação de uma monarquia no continente fazendo do Brasil um reino antes mesmo que as demais colônias ali existentes pudessem exigir sua autonomia166 Sua estratégia em mostrar que o Brasil se tornara corpo político autônomo desde 1808 com a abertura dos portos e a instalação da corte é reveladora da sutil intenção em colocar o país na dianteira das demais nações latinoamericanas posto que emancipada bem antes que as demais Ao mesmo tempo escamoteava a criação das repúblicas latinas tirando lhes visibilidade diante da implantação de um império monárquico no continente Na medida em que traçava a diferença entre o Brasil uma monarquia e os demais países do continente todos republicanos Varnhagem definia quem era o outro a partir do critério 164 Ibidem p 438439 165 ARAÚJO Valdei Lopes de A experiência do tempo conceitos e narrativas na formação nacional brasileira 18131845 São Paulo HUCITEC 2008 p 20 166No contexto somente os EUA já haviam se tornado independentes desde 1776 Em relação a chamada América Latina as lutas pela emancipação tiveram início desde 1809 no Equador em Venezuela 1810 Colômbia 1810 e México 1810 adentrando os anos seguintes com as declarações da Argentina 1815 Paraguai 1811 e Chile 1818 em 1821 com a emancipação do Peru República Dominicana Guatemala e Panamá em 1825 da Bolívia e em 1828 do Uruguai Os demais países que se formaram depois dessa época tal como seus predecessores optaram pelo sistema republicano em franca diferenciação com o Brasil um império nos trópicos 80 político das diferenças quanto às formas de organização do Estado pois em sua leitura de mundo os grandes inimigos externos do Brasil eram as repúblicas latinoamericanas Os vizinhos latinos ao corporificar a forma republicana de governo se tornavam o outro que não se deveria ser a barbárie que se deveria rechaçar do destino brasileiro e contra a qual se lutava Portugal nunca seria o outro bem ao contrário era a formação a continuidade o exemplo Do mesmo modo ao salientar 1808 como o ano da emancipação política aquele autor evitava respaldar outros nomes envolvidos no processo como os irmãos Andrada principalmente José Bonifácio de Andrade e Silva 17631838 constituído como o Patriarca da Independência167 no imaginário republicano alguns anos depois Para o visconde de Porto Seguro o enredo histórico para a compreensão da criação da nação exigia que a mesma fosse obra da realeza lusitana e nunca resultante de uma luta enfurecida de civis com finalidades distintas dos dois lados do Atlântico que apartara o Brasil de Portugal O estabelecimento de uma monarquia constitucional nos trópicos governada por um herdeiro natural da casa dos Bragança confirmava o discurso da continuidade da emergência do Brasil como um legado da Coroa portuguesa de um processo iniciado desde o reinado de D João IV e que durou até o de D João VI e concretizado pelo regente filho D Pedro o primeiro imperador do Brasil168 Esta monarquia seria a responsável de 167 Varnhagen seria o representante de uma rede historiográfica antipatriarca apresentando José Bonifácio com ambigüidade e reservas A sua dessacralização era uma tarefa não apenas política e ideológica mas também uma questão de família uma vez que José Bonifácio havia ofendido o pai de Varnhagen na época da fundição de Ipanema em Sorocaba Não seria por mero acaso que a Historia geral do Brazil teria uma seção inteira dedicada à reabilitação da memória do tenentecoronel Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen 17831842 seu pai enquanto o patriarca era lembrado em uma nota quase no fim do tomo II O pai e o patriarca são personagens em tramas urdidas pela pena de Varnhagen Nos dois casos estão expressos os limites da imparcialidade de um historiador questão segundo Hannah Arendt decisiva no século XIX para toda historiografia que procurava se afastar da poesia e da lenda e que no entanto era difícil de reconhecer A respeito ver CEZAR Temístocles Américo Em nome do pai mas não do patriarca ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen História vol 24 n 2 p 207215 2005 168 Segundo Michel Foucault este tipo de narrativa histórica serviria para fortalecer o poder do soberano Ela seria uma espécie de ritual do poder mostra que o que os soberanos e os reis fazem jamais é vão jamais inútil ou pequeno jamais abaixo da dignidade da narrativa Tudo quanto eles fazem pode e merece ser dito e é preciso guardar perpetuamente sua lembrança o que significa que do menor feito e gesto de um rei se pode e se deve fazer uma ação brilhante e uma façanha e ao mesmo tempo inscrevese cada uma de suas decisões como uma espécie de lei para seus súditos e de obrigação para seus sucessores Michel Foucault Em defesa da sociedade Curso no Collège de France 19751976 São Paulo Martins fontes 2000 p 77 78 81 acordo com a interpretação de Varnhagen pelo estabelecimento de uma sociedade pela promoção do progresso a manutenção da ordem a preservação da unidade territorial e a defesa do projeto civilizacional europeu Era a essa monarquia que o Brasil deveria agradecer sua existência no rol das nações civilizadas do mundo posto que pela determinação e coragem de seus membros saíra do abismo da barbárie para o panteão da modernidade sendo forjada para ser grande Por outro lado aquele historiador também pensava Portugal com cuidados entendendoo como um estado mui pequeno para deixar de ser influído na Europa pelas potências maiores169 A ligação com o Brasil soava diante dessa consideração como proveitosa para as duas partes posto ser a possessão ultramarina um lugar especial para o destino português cujo comércio e a navegação foram mantidos por longos séculos graças à inovadora produção da colônia americana Todavia a ligação BrasilPortugal que mais interessava àquele intelectual tinha esteio no parentesco real da dinastia Bragança a quem Varnhagen devotava profunda admiração 170 sendo sua HGB uma expressão inconteste desse sentimento Não obstante ao narrar o governo de D João VI Varnhagen não se eximiu de algumas críticas não de críticas ao rei mas aos seus assessores171 numa tênue tentativa de mostrar imparcialidade Se houve desventuras em seu governo estas se deveram aos fracos dotes dos assessores do rei nunca ao próprio descrito sempre como o Enéias do nosso império numa alusão ao herói troiano Para Varnhagen D João teria sido o principal protagonista das tramas da independência do Brasil o verdadeiro pai da nação brasileira ao libertála de um Portugal que queria submeter seu rei humilhando sua monarquia D João VI era 169 Ibidem secção LIV pag 231 170 Lembremonos ser o Brasil ao tempo da escrita da HGB comandado por um Bragança D Pedro II e o trono português estar ocupado por D Pedro V 18531861 filho de D Maria II primogênita de Pedro I e brasileira de nascimento Havendo lançado o primeiro volume da História Geral do Brasil em 1854 e o segundo em 1857 evidenciase que sua escrita tenha sido influenciada pela lamentável e trágica morte da soberana portuguesa ocorrida em 1853 num dia aziago para os Bragança 15 de novembro A ligação entre os irmãos é afirmada na correspondência imperial que registra a comoção causada pelo luto nos irmãos residentes no Brasil 171 A grande crítica de Varnhagen é dedicada ao ministro dos negócios D Fernando José de Portugal 1752 1817 o marquês de Aguiar por ter cometido erros inadmissíveis para a sua função especialmente tendo conhecida experiência administrativa como governador da Bahia e vicerei do Rio de Janeiro Infelizmente porem o marquês de Aguiar aliás prudente íntegro e sensato com todos os seus anos de mando no Brasil desconhecia o país em geral era pouco instruído e sobretudo nada tinha de grande pensador original para ser o estadista da fundação do novo império Minguado de faculdades criadoras para sacar da própria mente e da meditação fecunda as providências que as necessidades do país fossem ditando o marquês de Aguiar parece ter começado por consultar o almanaque de Lisboa e à vista dele terse proposto a satisfazer a grande comissão que o príncipe lhe delegara Ibidem p 316 82 visibilizado pelo discurso moralista do visconde de Porto Seguro como bom filho pai e rei por conta do seu fervor religioso Era apresentado como perfeito modelo de um soberano amante do povo D João era naturalmente bom religioso e justo A história de Portugal lhe chama por Antomasia o Clemente e o carinho e delicadeza com que se ocupou da augusta mae enferma e o não querer cingirse a coroa real pelo fácil meio de uma abdicação que podia insinuar nos evidencia como foi bom filho Sua devoção e ânimo religioso eram tão reconhecidos que não faltou quem chegasse a caluniálo de supersticioso De seu espírito de justiça e retidão temos exemplos patentes no modo como recompensou tantos dos seus bons servidores e nós pessoalmente recolhemos outros dos papeis originais de muitos expedientes de negócios desse tempo no Brasil que vimos e em cujas margens encontramos de sua própria letra notas suficientes para comprovar que o príncipe tinha no coração gravado sentimento de que a verdadeira missão dos reis e observar a lei e administrar justiça à grei172 Ao construir o perfil de D João VI Varnhagen procurou por intermédio de um discurso francamente conservador estabelecer um modelo de governo superior que era também português assim como fazer sua própria interpretação sobre o processo de emancipação O excelente governo de D João VI não estava apenas no seu perfil de homem bom mas na sua capacidade de manter a unidade entre as partes constituintes do Brasil e de estabelecer a ordem sufocando as insurreições locais Para o visconde de Porto Seguro a prova da habilidade de governar com a ordem e o progresso de D João VI foi a sua atuação no combate à Revolução Pernambucana de 1817 marcada pela extremada violência empregada por determinação real contra os revoltosos assunto sobre o qual tergiversou A forma como o historiador abordou a questão é denunciadora de sua parcialidade ao construir uma história de herois portugueses de reis magnânimos de governos de paternais doçuras embora incapaz de lançar olhos para as necessidades e súplicas do povo brasileiro No seu tribunal da história o rei foi ascendido à condição de herói no panteão nacional por evitar a fragmentação da futura nação enfrentando a insurreição Os revoltosos por sua vez contaminados por posições ultraliberais ideais enciclopedistas e boataria sobre os 172 Ibidem secção LII p 156 83 supostos excessos praticados no Rio de Janeiro seriam no mesmo tribunal varnhageniano condenados sem piedade por atentarem contra a honra do rei Em defesa deste destacou o ato de perdão de D João VI contra aqueles a quem chamava de pérfidos os corifeus da revolução173 que receberam a régia clemência advertindo serem os reis a imagem do Deus de misericórdia O modo como Varnhagen se impunha como julgador de uma questão característico da cultura historiográfica de sua época ajudou a conferir legitimidade à sua narrativa pautada em veredictos condenatórios aos que atentassem contra os interesses da pátria tão amada pela benquista monarquia portuguesa Ao sensato leitor brasileiro que tenha refletido no estado próspero do Brasil que se colige de quanto fica referido nas precedentes secções deixamos que sinta e decida em consciência se lhe parece que haveria motivos para que em alguma extensão maior do Brasil se intentasse uma revolução contra o benéfico Sr D João e contra a integridade do seu predileto reino de novo criado então verdadeiramente centro e cabeça de um grande império maior que os dois romanos que estendia seu poder na atual Oceania às ilhas de Solor e Timor na Ásia aos estados de India portuguesa e à feitoria de Macau em África aos terrenos de Moçambique de dependências ao reino de Angola e às ilhas de S Thomé e de Cabo Verde e na Europa ao reino de Portugal com ilhas adjacentes de Madeira e Açores se é que estas e sobre tudo aquela se devem considerar como da Europa174 O destino do Brasil como nação segundo Varnhagen não estava em datas como 1817 e muito menos 1789 tempos de revoltas e insurreições Em nome do discurso da centralização política e da unidade territorial do Império base de sua narrativa Varnhagen desvalorizou fatos históricos ao tempo que celebrou e deu destaque a outros eventos e personagens Assim procedeu em relação à Revolução Pernambucana de 1817 bem como a Conjuração Mineira de 1789 configuradas como verdadeiras tragédias para a sociedade brasileira pelo historiador monarquista pois significavam a emergência de uma república dentro do íntegro império lusobrasileiro Como toda ameaça republicana que pairava no ar no passado e no presente ela era objeto do ataque voraz de sua pena nas páginas da 173 Ibidem secção LII p 177 174 Ibidem secção LIV p 231 84 Historia geral do Brasil e de outros escritos celebrando a retomada pelas tropas da ordem real e os julgamentos dos revoltosos tudo pela manutenção de uma nação que se queria conforme sua narrativa una e em favor da qual advertia e aconselhava Um detalhe porém se faz notar em sua interpretação sobre a formação do Brasil como corpo político autônomo Ao enfatizar as continuidades entre a colônia e a nação aquele historiador soterrou pelo discurso unificador e hegemônico as diferentes identidades que tinham se forjado na colônia Sendo a força coesiva do conjunto lusoamericano indiscutivelmente a Metrópole e o continente do Brasil representasse para os colonos pouco mais que uma abstração para a Metrópole o Brasil era algo muito concreto a unidade cujo manejo impunha esta percepção Destarte a apreensão de conjunto das partes a que genericamente se chamou de Brasil estava apenas no interior da burocracia estatal portuguesa175 Para Varnhagen no entanto o Brasil era português e queria continuar a sêlo rejeitando e se antepondo ao seu lado brasileiro Queria mesmo emancipado ser outro Portugal potência mundial grande nação imperial continuidade do grande projeto português A idéia de povo brasileiro de homem brasileiro tão necessária naquele momento crucial da formação nacional inexistiu de forma expressa no texto de Varnhagen mas podese aduzir que o autor o percebia como igual àquele existente no período colonial que tinha em Portugal sua pátria mãe visto que para aquele historiador a nação mesmo colocadas as diferenças nada mais era que uma continuidade da colônia Indispensável dizer que na arquitetura histórica efetivada por Varnhagen a homogeneidade identitária era elemento imprescindível para dar sentido a uma monarquia vista por muitos como mais portuguesa que brasileira e mais voltada para os interesses de Portugal que do próprio Brasil Essa bifurcação não servia para os fins daquele historiador para quem a idéia de totalidade de homogeneidade e de unidade era imprescindível para 175 Aqui retomamos os estudos de István Jancsó e João Paulo Garrido Pimenta que afirmam da inexistência de uma identidade marcadamente brasileira nos anos finais do século XVIII e início do XIX e nenhuma identidade política coletiva ultrapassava o regional O que havia eram identidades variadas que apresentavam três diferenças básicas a regional a americana e a portuguesa JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo Garrido Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme Org Op cit p 140 85 cobrir como se fosse o manto real o mosaico de identidades que existia no Brasil recém independente e que necessitava ser aplainado em defesa dos ideais monárquicos Para aquele autor a identidade brasileira seria uma criação portuguesa assim como o Brasil também o era e não deveria haver dissensões internas nem externas A monarquia por sua vez consagrada na figura de D João VI e especialmente D Pedro I seria o amálgama da identidade nacional criada em sua narrativa A exaltação ao imperador do Brasil também serviria para fazer lembrar o seu descendente D Pedro II a demonstrar que aquele historiador não fugia aos compromissos do IHGB com o seu mecenas176 agregandose mais uma vez aos propósitos designados por Martius Para o autor o poder esteve sempre com D Pedro I pois havia nascido para cumprir o destino de herói nacional A regência pelas lentes varnhageniana teria sido a preparação final para que o príncipe Pedro de Alcântara brasileiro de nascimento e herdeiro imemorial do nobre sangue português assumisse a liderança do Estado imperial brasileiro Ao transcrever a carta enviada por D Pedro I ao seu filho Varnhagen a transformou em uma espécie de testamento que delegava o futuro de um Império cuja história ainda estaria viva e latente esperando ser escrita Meu querido filho e meu Imperador muito lhe agradeço a carta que me escreveu eu mal a pude ler porque as lágrimas eram tantas que me impediam o ver agora que me acho apesar de tudo um pouco mais descansado faço esta para lhe agradecer a sua e para certificarlhe que em quanto vida tiver as saudades jamais se extinguirão em meu dilacerado coração Deixar filhos pátria e amigos não pode haver maior sacrifício mas levar honra illibada não pode haver maior glória Lembrese sempre de seu pai ame a sua e minha pátria siga os conselhos que lhe derem aqueles que cuidarem na sua educação e conte que o mundo o ha de admirar e que eu me dei de encher de ufania por ter um filho digno da pátria Eu me retiro para a Europa assim é necessário para que o Brasil sossegue o que Deus permita e possa para o futuro chegar àquele grau de prosperidade de que é capaz Adeus meu amado filho 176 A propósito ver GUIMARÃES Lucia Maria Paschoal Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 18381889 Revista do IHGB v 156 nº 388 p 459613 JulSet 1995 86 receba a benção de seu pai que se retira saudoso e sem mais esperanças de o ver D Pedro de Alcântara Bordo da Nau Warpite 12 de abril de 1831177 Para Varnhagen este fora o momento ideal para mostrar D Pedro I como o herói comum de Brasil e Portugal posto ter renunciado a herança paterna o trono do Brasil como forma de defendêlo das mãos dos revolucionários portugueses178 Do mesmo modo sacrificara em defesa de Portugal sua saúde e vida ao partir para defender os interesses da filha que enfrentava imensas dificuldades para assumir o trono 179 Em relação ao infante D Pedro II nosso autor insistiu em mostrálo como herdeiro do Império sendo esta a sua missão legitimada não apenas pela trajetória da dinastia bem como pela própria história daquele presente a do Segundo Reinado que deveria ser documentada organizada e escrita pelo historiador sorocabano Conclusão da Parte I A História geral do Brasil seria assim a epopéia que interpretou e legitimou o Império para o próprio Império ou seja para os diferentes sujeitos que constituíam esta comunidade imaginada Criavase de tal modo uma robusta identidade nacional atrelada a Portugal e recepcionada pelas gerações seguintes como a mais coerente história do país até então escrita por um brasileiro Varnhagen pela sua HGB foi considerado o pai da história do Brasil destacandose como o mais prolífico historiador brasileiro do Oitocento A produção histórica de sua lavra não foi superada por nenhum outro numa época que a história feita por brasileiros se limitava em grande parte à crônica Ao coligir documentação inédita e desentranhar fatos desconhecidos aquele historiador inaugurou a história nacional como bem observou o jornalista e historiador Maximiano Lopes Machado 18211895 177 Francisco Adolfo de Varnhagen Historia geral do Brasil op cit 1857 p 443 178 A respeito dessa questão sugerimos o trabalho de BITTENCOURT Vera Lúcia Nagib Da alteza Real ao Imperador O Governo do Príncipe D Pedro de abril de 1821 a outubro de 1822 Tese de doutorado em História Social Universidade de São Paulo 2006 p 145 e seguintes 179 A luta pela sucessão do trono português após a morte de D João VI não é obviamente abordada por Varnhagen Não obstante em sua História da Independência do Brasil ao narrar as negociações de reconhecimento de Portugal sobre a emancipação aquele historiador impõe ao leitor a percepção de D Miguel como um herói ao defender pelas armas a dissolução das cortes e restabelecer o poder absoluto de D João VI Posteriormente com o fito de mais exaltar a figura do bom e venerado rei D Miguel é mostrado como um fantoche político manipulado pela mãe e por um bando de conspiradores A respeito ver VARNHAGEN Francisco Adolfo Op cit p 239 e seguintes 87 Ficamos estacionários à espera que mandassem da Corte uma história completa do Brasil e a história geral foi a de Varnhagen na qual declina para os historiadores parciais o exame dos fatos relativos a cada uma das partes do todo180 Varnhagen se superou ao instituir um discurso fundador para o país numa época em que o mesmo era mais que necessário Não obstante os elogios feitos ao seu trabalho inaugural por nomes como Ferdinand Denis e Von Martius seu lançamento no Brasil suscitou protestos de alguns membros adeptos do indigenismo romântico em voga no IHGB insatisfeitos com a abordagem de seu autor em relação aos nativos Em contrapartida D Pedro concedeulhe o título de Visconde de Porto Seguro numa alusão ao lugar original onde aportaram os navegadores portugueses Apesar da crítica avassaladora ao seu trabalho Varnhagen tornouse um expressivo nome na historiografia por ele inaugurada e que findou por coroar o IHGB como o lócus por excelência da produção da história nacional nas últimas décadas do século XIX À produção daquele momento FIGUEIRA denominou de historiografia burguesa181 cuja circulação e consumo foram restritos a uns poucos que se interessavam pelo tema e com cabedal suficiente para aquisição das obras geralmente editadas e publicadas na Europa em tiragens curtas porém com formato extenso Quando a pedagogia da disciplina de História adotou os primeiros livros didáticos coube à produção do IHGB imprimir suas idéias e intenções no espaço educacional brasileiro 182 O ensino de História que se fazia pela memorização de datas e vultos nacionais sobretudo nas séries iniciais fez a história se tornar o meio mais importante de forjar a memória coletiva convertendoa em História nacional183 A proposta do IHGB se consolidou nesse momento quando a construção da identidade nacional em todos os seus desdobramentos saiu do espaço erudito para tomar os bancos escolares ali influenciando toda uma geração Assim a HGB deixou de ser uma leitura de ilustrados para ser reproduzida nos manuais durante muitas décadas notadamente pelos membros dos institutos históricos existentes 180 MACHADO Maximiano Lopes História da província da Paraíba Parahyba se 1912 p III 181 FIGUEIRA Pedro de Alcântara Ensaios de História Campo Grande EDUFMS 1997 182 A respeito ver KUHLMANN JR Moysés Raízes da historiografia educacional brasileira 18811922 Cadernos de Pesquisa vol 106 p 159171 Mar 1999 183 Cf TOLEDO Maria Aparecida Leopoldino Tursi A história ensinada sob o império da memória questões de História da disciplina História v 23 n 12 2004 88 em diversas localidades do país e que integravam a docência nas escolas e colégios brasileiros A constituição do saber histórico disciplina estratégica para o estabelecimento do substrato de formação e transmissão da idéia de nação em seu caráter pedagógico cooperou no sentido de criar uma cultura histórica cujo tom de interpretação do mundo esteve de acordo com os pontos de vista dessa elite Desse modo a arquitetura historiográfica existente na HGB foi facilmente assimilada pelos estudantes brasileiros de uma época em todas as suas dimensões A perspectiva de Portugal como pátriamãe dos portugueses como agentes civilizatórios da dinastia dos Bragança como benfeitores do Brasil findou por tornarse a cabal demonstração da irmandade que nos unia a Portugal sendo assimilada sem críticas nem discussões em seu tempo tornandose uma verdade inconteste repassada por gerações184 Gravada em primeira mão nos livros escolares do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro a história de Varnhagen serviu como um espelho para refletir as imagens existentes na HGB por todo o país Se o IHGB representou o lugar específico da produção histórica brasileira durante o período imperial não se pode dizer o mesmo daquela instituição depois que a força avassaladora do republicanismo adentrou o Brasil às portas do século XX A expulsão de Dom Pedro II causou um impacto profundo entre seus membros mesmo que entre eles já houvessem simpatizantes do novo sistema não apenas pelo simbolismo de sua proteção mas também pelo corte abrupto da subvenção do imperador tornada inexistente na república Por quarenta e um anos reinou o IHGB como espaço de produção da história oficial brasileira Só a instauração do regime republicano mudou esse estado de coisas Considerado um ninho de sebastianistas o IHGB sofreu sutil repúdio por parte dos jacobinos brasileiros o que obrigou à instituição buscar uma imagem de neutralidade entre sua produção e a vida política brasileira nos primeiros anos da república conforme observado por HRUBY185 Nesse novo contexto político outros historiadores reescreveram 184 As principais teses da História Geral do Brasil de Varnhagen vigoraram pelo século XX e podem ser identificadas sem maiores elucubrações no Livro para o Exame de Admissão ao Curso Ginasial publicado pelos governos militares na década de 60 em pleno século XX 185 HRUBY Hugo Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra A história do Brasil no IHGB 18891912 Dissertação de mestrado em História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2007 Segundo o autor essa neutralidade mesmo perseguida a todo custo foi posta à prova quando da morte do imperador em 1892 quando a república já era uma realidade A cadeira que o mesmo ocupara quando ainda freqüentava as sessões do instituto sempre fora mantida vazia Após sua morte foi 89 a história do Brasil absorvendo a discussão de nação e dandolhe novos significados A retórica foi renovada em conseqüência das novas idéias e das novas propostas de construção de outras identidades para o país coberta com um véu negro e um retrato a óleo do seu presidente de honra tomou lugar de destaque naquele espaço Mesmo quando da aproximação entre os republicanos e iagagebeanos em 1894 franqueada pela visita oficial de Prudente de Morais presidente recém empossado à sessão de aniversário do instituto mantevese o lugar de honra de D Pedro II As relações do IHGB e o governo ampliaramse desde então O fim da Revolução Federalista foi marcado pelas cordiais e respeitosas felicitações ao presidente pela pacificação no sul do país Da mesma forma ocorreu quando do reatamento das relações Brasil com Portugal em 1894 e de outros acontecimentos nacionais de forma a fixar o lugar do Instituto junto ao governo republicano 90 PARTE II TEMPOS DE MUDANÇA TEMPO DE ALTERAÇÃO DA RETÓRICA Os anos de transição do século XIX para o XX se configuraram como um momento privilegiado na constituição da história brasileira Entendido como um aglutinador de uma série de episódios relevantes que ocasionaram alterações estruturais no país e que se destacaram pela extinção da escravidão pela expulsão da família imperial e pela implantação da República o momento se distendeu aos trinta primeiros anos do novo século quando se verificaram os efeitos sociais das ocorrências do século anterior O Tenentismo o Movimento operário a fundação do Partido Comunista o Movimento Modernista foram desdobramentos do passado recente num momento ao qual chamamos tempo de mudanças mudanças que alteraram a fisionomia da nação que em pouco faria seu primeiro centenário186 Os efeitos de tantos acontecimentos se materializaram na perspectiva dos pensadores brasileiros e em sua produção187 também afetada pelos acontecimentos mundiais como a eclosão da I Guerra e a Revolução Socialista Em sua historicidade tal produção teve como destaque a tendência eminentemente crítica aliada à disposição em esquadrinhar a cultura 186 As exigências acadêmicas para a feitura desse texto não nos permitem um aprofundamento do contexto histórico que pode ser referendado facilmente em trabalhos específicos sobre o Brasil Não obstante sempre que necessário tentaremos esclarecer a circunstância no qual se verificaram tais mudanças de forma a permitir ao leitor a compreensão do momento histórico que nos serve de contexto 187 Grande parte dos literatos que lançaram obras nesse período era integrante da cognominada Geração de 1870 e seus trabalhos confluíam para temas conteúdos e possibilidades da nação da democracia das formas de trabalho e das instituições políticas no contexto da crise social e política dos anos 70 Repetiam pois o mesmo movimento português amparandose na maioria das vezes nas teorias de Oliveira Martins Eça de Queiroz e Teófilo Braga e das conferências do Cassino Lisbonense das experiências históricas da Comuna de Paris da república espanhola da crise do capitalismo do debate entre socialistas e anarquistas No Brasil este grupo liderado por nomes como os de o Machado de Assis André Rebouças Rio Branco Rui Barbosa Joaquim Nabuco Tobias Barreto Castro Alves e Sílvio Romero tinha como fito único a decifração do enigma nacional A propósito ver Cândido Antônio Formação da Literatura brasileira momentos decisivos Belo Horizonte Editora Itatiaia 1981 ALONSO Ângela Idéias em movimento a geração 1870 na crise do BrasilImpério São Paulo Paz e Terra 2002 91 nacional e darlhe orientação diversa daquela que fora comum nos tempos imperiais pois os tempos eram novos o que exigia a renovação do pensamento nacional A decifração do chamado enigma brasileiro marcou o pensamento da época assim como a ascensão de novos atores na cena mundial o que permitiu o afloramento de novas perspectivas para se ver e se pensar o Brasil que se estruturava em busca de uma nova identidade A identidade criada para o Brasil no contexto do IHGB oitocentista mostrava ter encontrado eco na memória nacional na transição dos séculos Apesar de perder aos poucos seu lugar de destaque como espaço de produção de saber188 a avaliação positiva do passado colonial e imperial assim como a crença na excelência das tradições herdadas dos colonizadores portugueses e da ação da igreja católica construída naquele âmbito ainda marcava densamente o pensamento historiográfico no início do século XX Para os defensores do modelo de brasilidade atrelado a Portugal defendido por Martius e Varnhagen a nacionalidade deveria simbolizar a defesa e a valorização do singular O novo modelo que se expandia como ideal no contexto americano era observado com desconfiança e desconforto por uma elite que secularmente miravase pelo espelho europeu e que olhava de esguelha para o estabelecimento dos EUA como um padrão para o continente A sociedade americana em ascensão fruto da colonização inglesa e do protestantismo189 não poderia ser tomada como um paradigma para o Brasil devendo prevalecer a herança secular portuguesa e católica estabelecida desde os tempos coloniais mesmo que as principais influências já houvessem se desvirtuado com o fim do sistema monárquico brasileiro Imprescindível afirmar ser esta a expectativa dos admiradores da monarquia numa forçosa tentativa de adaptação aos novos tempos 188 O pontual declínio do IHGB como instituição oficial de constituição da história nacional é ponto de intersecção da época Com a implantação da república o IHGB desdobrouse em dezenas de institutos locais inaugurados em diversos estados da federação com o fito de estudar a história desses lugares Em seu lugar firmouse a Academia Brasileira de Letras fundada em 1897 como um espaço político mais favorável aos eruditos no contexto republicano 189 A obra de Eduardo Prado A ilusão Americana é representativa dessa vertente Nela o autor negava as virtudes atribuídas ao republicanismo norteamericano tecendo uma sofisticada defesa da monarquia nacional e da necessidade de o Brasil manterse independente perante as demais nações A respeito ver PRADO Eduardo A ilusão Americana Brasília Senado Federal Conselho Editorial 2003 p 87 e seguintes Originalmente o livro foi lançado em 1893 Sua antítese tem na obra de Raul Pompeia a principal representação ao congregar e consagrar os argumentos a favor do nacionalismo republicano em sua luta marcado pelo forte sentimento antilusitano 92 Em contrapartida levantavase em coro o discurso impetuoso dos republicanos a exigir um corte abrupto com Portugal cujos laços corporificados no combatido governo de D Pedro II pareciam não ter sido extintos pela expulsão dos Bragança A presença lusa na vida socioeconômica do país no início do século XX deveria ser energicamente extirpada num esforço coletivo para quebrar as correntes que uniam ainda Brasil e Portugal para tanto incentivavamse movimentos sociais muitas vezes violentos contra os portugueses forçados a assumir a nacionalidade brasileira sob o risco de serem expulsos do país190 Para os republicanos a Europa representava um padrão falido um passado que deveria ser esquecido mormente haver um modelo a ser absorvido pela nação independente que abominava o sistema monárquico a América e a modernidade A nacionalidade seria assim para aqueles o resultado da luta contra o passado da construção de uma nova sociedade organizada politicamente pelos nacionais e na qual as classes empresariais brasileiras que apoiaram o movimento teriam destaque As esperanças no futuro por sua vez ensejavam uma terceira versão dessa recriação identitária ao tomar como base não mais a ligação à Velha Europa ou à Nova América O ufanismo das condições naturais da terra191 somado aos valores das três raças justificava tais expectativas que encontraram solo fértil na cultura local O que se deveria valorizar no novo século não eram o passado nem suas construções o que valeria a partir do novo momento era a valorização do nacional do brasileiro em sua essência de uma diversidade 190 A presença portuguesa no Brasil no início do século foi motivo de acirrados conflitos em todas as esferas sociais Vistos com desconfiança os portugueses se tornaram o cerne de algumas situações de conflito estudadas por RIBEIRO Gladys Sabina em Mata galego Os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha São Paulo Brasiliense 1989 Coleção Tudo é História Da mesma autora é válido ler A liberdade em construção identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado Rio de Janeiro RelumeDumaráFAPERJ 2001 191 Afonso Celso foi o mais poderoso representante dessa corrente com sua obra Por que me ufano do meu país disponível em wwwebooksbrasilorg Nessa o autor admoesta à p 53 Não deveis prezar a vossa terra só porque é vossa terra o que aliás bastaria Sobejam motivos para que tenhais também orgulho da vossa nacionalidade A natureza não constitui o seu exclusivo e principal título de vanglória Ousa afirmar muita gente que ser brasileiro importa condição de inferioridade ignorância ou má fé Ser brasileiro significa distinção e vantagem Assistevos o direito de proclamar cheios de desvanecimento a vossa origem sem receio de confrontar o Brasil com os primeiros países do mundo Vários existem mais prósperos mais poderosos mais brilhantes que o nosso Nenhum mais digno mais rico de fundadas promessas mais invejável Nesse mesmo texto o autor dedica um capítulo inteiro aos portugueses tecendo considerações elogiosas ao papel dos portugueses na formação nacional assim como no panorama cultural mundial o que vem provar que o antilusitanismo da época não fora tomado como referencial no pensamento daquele autor Defender o Brasil não significava mesmo em ambiente republicano execrar Portugal como queriam alguns 93 expressa não apenas na constituição de seu povo mas igualmente na própria natureza tão apreciada em sua singularidade pelos outros fossem europeus ou americanos Apesar do esforço de valorização do nacional desapegado de qualquer modelo externo parte da intelectualidade local paradoxalmente se mostrava extremamente pessimista com o destino do país imbuída nos princípios evolucionistas assentados sobre a desigualdade da raça e a realidade da miscigenação que para esses teria comprometido severamente os chamados alicerces da nação Esse enigmático panorama perpassava o pensamento nacional que buscava compreender o futuro do país com base nesses dados Em meio à defesa de modelos para o Brasil e de criações identitárias os publicistas do regime se esforçavam para escamotear as conturbações políticas econômicas e sociais dos primeiros anos da República pela crença de que a ordem e o progresso lema estampado na flâmula nacional reinariam doravante e transformariam o país192 A eclosão da primeira guerra mundial193 validou os argumentos defendidos pelos próprios republicanos de que a Europa era um território decadente em contraponto com a América os EUA modelo de civilização e do futuro que se impunha A decantada decadência europeia atrelada a um modelo de governo o sistema monárquico não deveria interessar à nova identidade desejada devendose sobrepujar o modelo oitocentista construído no âmbito do IHGB para com o passado histórico português Se a Europa era o atraso não havia 192 O movimento republicano brasileiro foi fortemente influenciado pelo Positivismo posto que aquele defendesse a exaltação das ciências e valorizasse o capitalismo industrial como mecanismos que proporcionariam o progresso da humanidade Por tal via os militares brasileiros que implantaram na marra o republicanismo tomaram como prioritária a industrialização do país e com tal fito fizeram uma reforma econômica nas primeiras semanas do governo A Política do Encilhamento como foi denominada a estratégia econômica buscava incentivar o crescimento econômico nacional por meio do crescimento industrial Para isso foi permitida a emissão de uma grande quantidade de papel moeda visando garantir o crédito na implantação de novas indústrias e o pagamento de salários dos novos empregos entre outros desafios o que resultou num transitório momento de euforia ante a abertura de um grande número de empresas e da agitação crescente na Bolsa de Valores do rio de Janeiro O momento foi desfeito peloo crescimento brutal dos preços e surgimento de uma crise econômica sem precedentes Sem grandes preocupações com as necessárias mudanças na situação social e econômica do país como um todo os republicanos no poder mostraramse indispostos a romper com as estruturas exploradoras que sacrificavam a população brasileira ficando a riqueza nacional concentrada em poucas mãos enquanto predominava o sistema monocultor voltado à satisfação do mercado externo 193 Inegável porém que o Brasil muito lucrou com o conflito entre as nações européias A exportação da borracha teve aumento expressivo assim como a de muitos produtos agrícolas como café cacau e açúcar Frente à impossibilidade de importações de produtos europeus dezenas de cafeicultores brasileiros capitalizados pelo aumento das exportações reinvestiram seus créditos na abertura de novas indústrias o que favoreceu a industrialização brasileira tão sonhada pelos republicanos 94 justificativa em se fomentar esse passado tal era a realidade a ser considerada na produção historiográfica do período Mas como pensar um Brasil desvinculado de Portugal se grande parte da intelectualidade local tinha uma mentalidade marcadamente européia assim como a elite brasileira se via como tal O Brasil balizado pelo atraso econômico pelo clima e pela mestiçagem passou a ser denunciado por alguns homens de letras194 que clamavam reformas para a sociedade que ainda não conhecera nem a ordem nem o progresso em seu esteio modernizante palavra tão em voga naquele contexto A desorganização do Estado a falta de patriotismo as inúmeras doenças o arraigado analfabetismo a mestiçagem e a indiferença das elites foram mostrados por distintos grupos como problemas que requeriam soluções imediatas para que o Brasil pudesse se modernizar O quadro de crises daquele momento histórico somado aos diversos movimentos simbólicos195 que eclodiram no período denunciavam o clima de efervescência social e de crise que atingiria seu ápice com a Revolução de Trinta196 A modernidade como parte do programa republicano tornouse anseio da época assumindo contornos próprios num país gestado fora do tempo e do espaço no qual o moderno se afirmara como tal Se para alguns o modelo de modernidade estava representado pela dinâmica América a pujança do Velho Mundo ainda parecia como extremamente sedutora para a elite nacional cuja intensa ligação com a Europa fazia com que se verificasse cruamente o atraso cultural brasileiro e todas as diferenças existentes entre os dois mundos Se o almejo do momento era a modernidade essas diferenças deveriam ser combatidas e ultrapassadas 194 Alberto torres Olavo Bilac e Monteiro Lobato são os nomes mais representativos do período e que logo após a eclosão da primeira guerra se esforçaram para diagnosticar os problemas locais A propósito ver PÉCAUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil Entre o povo e a nação São Paulo Ática 1989 195 A Semana de Arte Moderna de 1922 desencadeou a revolução estética a renovação da organização operária se delineou com a fundação do Partido Comunista Brasileiro a criação do Centro Dom Vital de orientação católica prenunciou a renovação espiritual No campo político a revolta do Forte de Copacabana em sua primeira etapa consagrou o panorama de crise e de mudança no Brasil dos anos vinte A respeito ver TRINDADE Hélgio Integralismo São Paulo DIFEL 1974 196 A chamada Revolução de Trinta será tratada na terceira parte desta dissertação 95 Com esse fito criouse um audacioso projeto de cunho político embora atrelado a um projeto cultural a riqueza produzida pela civilização do café resultou na formação de um mecenato constituído por latifundiários empresários banqueiros funcionários públicos de alto escalão e políticos com o fito de adquirir obras e produzir artistas no sentido de incrementar a cultura nacional197 No contexto de comemoração dos cem anos da independência aflorou o chamado Movimento Modernista para combater o romantismo e o passado por ele construído198 bem como toda e qualquer expressão que não se adequasse a uma almejada estética da vida moderna urbana e industrial e que tinha em São Paulo seu exemplar máximo Simbolicamente 1922 foi o ponto de partida para a prevalência do tema nacional no qual o ideário de modernização de unificação cultural e política do país se impôs repassando se ao Estado a incumbência de realização O projeto político paulista apoiado nesse discurso nacionalista criou corpo nesse momento impondose graças à força da economia cafeeira reduzindo outras visões sobre a formação do Brasil a identidade de seu povo a diversidade de sua constituição a meros enfoques regionais sem cariz generalizante São Paulo assumiuse como um modelo e tornouse conforme planejado a cabeça da nação apoiada na figuração do bandeirante como o pai da pátria199 Debaixo de si o restante do 197 O florescimento das artes em São Paulo dos anos vinte entretanto não estava aberto a todos os artistas ou era patrocinado por todos os aristocratas Na verdade o grupo de aristocratas que se divertia com o mecenato e o grupo de artistas que se beneficiava com esse mecenato eram muito reduzidos Somente uma elite ilustrada e artistas ou intelectuais bem relacionados é que participavam deste movimento renovador O que se assiste de fato é uma reinvenção modernista que buscou suprir as necessidades de uma aristocracia ávida da novidade européia 198 Segundo Lúcia Oliveira o Modernismo não combatia apenas o romantismo por considerálo sentimental préracional e prémoderno Arvoravase também contra o Realismo demasiado preso ao cientificismo e ao pessimismo que considerava as raças e o clima nacionais como caracteres negativos da mesma forma se opunha ao Parnasianimo demasiado preso a rígidos cânones que impediam a criatividade própria da Modernidade In OLIVEIRA Lúcia Lippi A década de vinte e as origens do Brasil moderno São Paulo UNESPFAPESP 1997 199 Prevalecia no discurso paulista a união do colonizador português homem exclusivo do primeiro século após o descobrimento com a índia americana apurada na reclusão característica da Serra do Mar o que findou por forjar uma raça superior capaz de dominar o Brasil e tornálo uma nação moderna Ao mesmo tempo em que o discurso modernista unia criava também uma aura de desprezo pelo restante do país acentuadamente mestiço filho de branco com negras e portanto inferior aos rijos paulistas A respeito ver Mota Marly Silva da A nação faz cem anos A questão nacional no centenário da independência Rio de Janeiro Editora FGVCPDOC 1992 96 país arcaico diferente inferior pronto a assumir uma nova identidade na qual se extirpava a tradição de se ter como uma continuação de Portugal200 A questão da identidade nacional foi pautada numa concepção evolucionista da história tendo o progresso como idéia central e a possibilidade de realização do país visto como atrasado em relação a um mundo civilizado201 Para tanto tomouse como chave para compreensão da diferenciação entre os povos binômios como progressoatraso civilizaçãobarbárie e povoelite dando ensejo a uma crise de identidade onde os discursos do século passado passaram por severas modificações Tal crise se evidenciou também no entrechoque entre o velho e o novo entre as necessidades oriundas dos movimentos sociais e as determinações do sistema acirrando o descontentamento da população para com as oligarquias dominantes Não à toa a sociedade brasileira no início do século XX foi marcada por inúmeros confrontos que deram a tônica do que deveria mudar na república que parecia ter mais semelhanças que diferenças com o Império A ausência da participação democrática dos cidadãos na condução dos negócios públicos a precária condição de vida e de trabalho dos operários em meio à incipiente 200 Três vertentes modernistas marcarão essa arquitetura do brasileiro e da brasilidade nos anos vinte A primeira vertente modernista Verdeamarela tinha como proposta o total abandono das influências portuguesas e européias devendo a cultura nacional se voltar aos mitos fundadores buscandose a alma brasileira no seu passado mitológico na vida autêntica das cidades do interior e do contato do homem com a natureza A segunda vertente Antropofágica propunha a apropriação das ideias europeias pelo canibalismo cultural transformando aquelas em ideias nacionais A terceira vertente buscava se incorporar à cultura mundial entendendo o Brasil como parte de um todo Sobre o Movimento Modernista brasileiro ver ÁVILA Afonso O Modernismo São Paulo Perspectiva 1979 BRITO Mário da Silva História do modernismo brasileiro Antecedentes da Semana de Arte Moderna Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 CACCESE Neusa Festa Contribuição para o estudo do modernismo São Paulo Instituto de estudos BrasileirosUSP 1971 TELES Gilberto Vanguarda européia e modernismo brasileiro apreciação e crítica dos principais movimentos vanguardistas Petrópolis Vozes 1977 MORAES Edmundo A brasilidade modernista Rio de Janeiro Graal 1978 201 Jacques Le Goff analisou as concepções de progresso na história mostrando que a idéia explícita de progresso desenvolveuse entre o nascimento da imprensa no século XV e a Revolução Francesa estando vinculada ao desenvolvimento da ciência e da técnica Salientou pois que o grande século do progresso foi o XIX encontrando sua expressão mais acabada na filosofia de Augusto Comte a demonstrar que a filosofia do progresso não estava inevitavelmente ligada ao espírito democrático Aquele historiador ainda assinalou que na segunda metade do século a ideologia do progresso deu novos passos adiante com as teorias cientificistas e filosóficas de Darwin e Spencer marcando o entrelaçamento da idéia do progresso com o ideário de uma necessidade benfazeja Por tal modo difundiuse a ideologia do progresso originária de uma Europa a do século XIX que confundia a sua civilização com a civilização ênfase no original LE GOFF Jacques História e memória Campinas Editora da UNICAMP 2003 p 235 e seguintes 97 industrialização a adesão as idéias socialistas e anarquistas o domínio dos coronéis nos campos o messianismo e o cangaço faziam crer na extrema necessidade de mudança das instituições brasileiras A Guerra do Contestado 191216 as revoltas da Vacina 1904 e da Chibata 1910 a Greve Geral Operária 1917 a Revolta do Forte 1922 a Revolta de 1924 e a Coluna Prestes ambas lideradas pelos chamados Tenentes além da contestação cultural do Movimento Modernista 1922 são reveladores de que a nação ainda não se encontrara em pleno século XX Essa insatisfação expressa nos movimentos sociais se alastrou também para o campo literário que sofreu uma renovação de seus temas A preocupação com a realidade nacional ocupou não apenas as obras de ficção mas também os ensaios artigos e comentários dos eruditos onde se fixava a crítica às instituições tidas como elementos de cristalização e acomodação de uma estrutura de poder que resultava na cegueira às reivindicações das vastas camadas da população brasileira Foram os aspectos mais tristes e pobres do país que representaram a realidade nacional nesse início de século O sertão o interior os subúrbios e a natureza que já apareciam romanceados passaram a ser retratados como modelos de atraso e seus personagens se distanciaram da estética anterior Se o sertanejo no século findo fora considerado um forte naquele momento deixava de ser ordeiro e servil assim como o caipira deixava de ser saudável e trabalhador e o suburbano de ser alegre e expansivo já alertara NAXARA202 As representações do brasileiro para com as massas de despossuídos do país foram as mais negativas possíveis a denunciar a insatisfação dos intelectuais diante de um Brasil que adentrara ao século XX entorpecido com seu passado desnorteado diante do destino de ordem e progresso alardeado pelos republicanos e que parecia não querer se realizar jamais No campo da História as mudanças ocorreram mesmo que de forma lenta e sutil em face da manutenção do enfoque racialista na produção historiográfica do período Apesar de frutos desse tempo de mudanças de um ambiente efervescente tanto no sentido político quanto no campo da cultura poucos foram os trabalhos de historiadores que incorporaram de pronto as variadas teorias nacionalistas da época Até os anos trinta a cultura historiográfica brasileira pouco destoou daquela produzidas no século anterior guardando as mesmas limitações e em muitos casos sequer tomando conhecimento do progresso das 202 NAXARA Márcia Regina Capelari Estrangeiro em sua própria terra representações do brasileiro 18701920 São Paulo Annablume 1998 98 ciências sociais naquele período A grande distinção que o historiador brasileiro teve naquele conturbado momento foi seu afastamento do oficialismo 203 marca visceral da produção oitocentista e que resultou em novas formas de se enxergar o país e escrever sua história de uma forma mais autônoma caso de Capistrano de Abreu204 que demonstrou uma incipiente preocupação com as experiências de habitantes do Brasil dando ao povo a atuação de sujeito da história mesmo que de forma tímida 205 Além de Abreu outros nomes se destacaram como uma ruptura às teorias da época quebrando o paradigma vigente e construindo um discurso não apenas sobre o Brasil mas sobre o outro o elemento colonizador caso de Paulo Prado e Manoel Bonfim Homens de letras nascidos nos Oitocentos mas que diante dos novos rumos políticos e sociais tomados pelo Brasil nas últimas décadas lançaram suas obras modificaram a retórica da alteridade de até então onde o europeu fora representado sob as mais positivas formas sendo ponto pacífico o elogio ao colonizador 203 Segundo SEVCENKO a nova ordem instaurada após a consolidação do regime republicano brasileiro na qual os governadores passaram a ter um lugar de prestígio antes ocupado pelos intelectuais ocasionou o afastamento dos últimos desiludidos com o regime ante o grande número de conflitos populares severamente coibidos pelo governo A expressão histórica de Euclides da Cunha Esta não é a república dos meus sonhos revela o sentimento dos que lutaram pela dissolução da monarquia mas que em poucos anos perderam as ilusões ante os rumos tomados pelo novo regime SEVCENKO Nicolai Literatura como missão tensões sociais e criação cultural na Primeira República São Paulo Companhia das letras 2003 204 Este foi o caso de José Capistrano Honório de Abreu que procurou trilhar novos caminhos na lide historiográfica e sobre os quais trataremos nas próximas páginas Sobre aquele historiador DIHEL faz questão de destacar a obra de Capistrano de Abreu como uma exceção por buscar estar em sintonia com o desenvolvimento do pensamento historiográfico estrangeiro nomeadamente o alemão e francês Cf DIHEL Astor Antônio Op cit p 57 205 É imprescindível dizer que mesmo havendo uma maior ênfase na atuação popular na construção da nação e portanto na de sua história ainda vigorava a idéia de que existiam fatores maiores e anteriores ao indivíduo cuja vontade nada ou muito pouco podia fazer O povo em sua diversidade não apenas racial mas também psicológica e cultural era visto como ativo na ocupação do território mas era também frequentemente considerado passivo na produção de uma verdadeira independência na implementação do progresso ou de um verdadeiro conhecimento sobre si mesmo Mister lembrar que a busca de peculiaridades essenciais de uma população justificavase no início do século XX pela crença na existência de um caráter nacional expresso através da cultura e regido pelos fatores psicológicos e raciais Esta perspectiva favorecia interpretações norteadas por pressuposto essenciais e ahistóricos que justificavam a naturalização dos fenômenos sociais Sobre a problemática ver LEITE Dante Moreira O caráter nacional brasileiro História de uma ideologia São Paulo Ática 1976 e GONÇALVES Marco Antônio e MAGGIE Yvonne Pessoas fora do lugar a produção da diferença no Brasil In BOAS Gláucia Villas GONÇALVES Marco Antônio Org O Brasil na virada do século o debate dos cientistas sociais Rio de Janeiro Relume Dumará 1995 99 No concernente ao nosso objeto de estudo esse desvio das interpretações anteriores configurado na escrita de Bomfim e de Prado se constitui como novas e necessárias perspectivas frutos de um momento privilegiado para as diversas tentativas de compreensão da cultura e da história brasileiras elevando para um centro nodal a questão da identidade nacional Em meio ao turbilhão de mudanças e de inovadoras perspectivas sobrepunhase a presença de Portugal como elemento balizador da discussão nacional No mesmo período não se pode negar as dificuldades na relação entre os dois países cujas relações diplomáticas foram abruptamente cortadas Vejamos as perspectivas sobre a antiga metrópole que emergiram nesse tempo de transição 100 CAPÍTULO 3 EM BUSCA DE UM SENTIMENTO NACIONAL O historiador que marcou com seu trabalho a cultura historiográfica brasileira nos primeiros anos do século XX foi José Capistrano de Abreu206 membro ao IHGB desde 1887 Autodidata empenhado no estudo de geografia psicologia sociologia antropologia e história Abreu apesar de ratificar o perfil do homem de letras do Oitocento se destacou por pensar uma produção historiográfica distinta daquele realizada até então As várias áreas do conhecimento pelas quais se interessou muito influenciaram sua produção historiográfica fornecendolhe um caráter interdisciplinar da mesma forma que a leitura de inúmeros teóricos permitiulhe a vinculação ao historicismo como paradigma de estudos207 À guisa de apresentação fazemos questão de destacar esse historiador como o diferencial a exceção à regra dominante do período aqui tratado como um tempo de mudanças Mudanças políticas e sociais que como já frisamos anteriormente não se refletiram de imediato na produção historiográfica no mesmo período mas que podem ser observadas em produções lançadas nos anos posteriores208 206 Oriundo do Ceará extremo Nordeste Capistrano de Abreu apesar de haver estudado na Faculdade de Direito de Recife não teve nessa profissão o seu maior interesse sendo reprovado nos primeiros anos do curso Segundo Iglesias Capistrano pode ser visto como um precursor da historiografia do cotidiano modismo atual já por ele visto no que tem de significativo IGLESIAS Francisco Historiadores do Brasil Belo Horizonte EDUEMGNova fronteira 2000 p 117 Rodrigues classificavao como o primeiro historiador moderno e progressista do BrasilRODRIGUES José Honório Op cit p 411 207 A leitura atenta da correspondência de Capistrano de Abreu permite encontrar as referências daquele autor com muitos pensadores tais como Taine Buckle Comte Spencer Sombart Ratzel e Ranke a demonstrar o quanto interessava àquele historiador as correntes do pensamento europeu no campo das ciências sociais 208 Ao estudar as implicações do movimento modernista na ampliação da cultura histórica brasileira DIHEL elencou alguns autores que incorporaram elementos do modernismo em seus textos Apesar de Capistrano de Abreu ter tido íntima vinculação com os membros do mencionado movimento não se percebe traços mais fortes da retórica nacionalista em suas obras O mesmo não se pode dizer dos escritos de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda reconhecidos por Dihel como autores fundamentais de um modernismo maturado Considerando ainda que as idéias marxistas foram um dos motores do movimento operário e consequentemente do movimento modernista o autor reputa como tal as obras de Caio Prado Jr e Nelson Verneck Sodré In DIHEL Astor Antônio Op cit p175 e seguintes 101 A vinculação de Abreu a algumas proposições filosóficas da época refletiuse em seu trabalho evidenciando sua preocupação pelo documento pela busca da autenticidade pela verdade das fontes pelo esforço de análise objetiva Ao romper com o característico das crônicas descritivas e das abordagens políticas da história sem a menção preponderante aos grandes nomes e datas importantes tão comuns no meio e no seu tempo Abreu abriu um novo caminho para uma nova história colonial ao eleger novas abordagens novos objetos outras perspectivas historiográficas que lhe deram o destaque merecido A obra de Capistrano de Abreu ao contrário da de Varnhagen não foi prolífica publicando alguns poucos trabalhos específicos de história sendo os mais destacados O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI 1883 Capítulos de História Colonial 1907 e Caminhos antigos e povoamento do Brasil publicado em 1930 três anos após sua morte209 Não obstante Abreu tornouse o historiador por excelência do início do século e seus escritos serviram como referencial para muitos dos autores que lhe sucederam tamanha sua inovação e a perspicácia de suas observações Num tempo de mudanças profundas no panorama nacional buscava sobretudo entender a formação da nacionalidade brasileira em todas suas singularidades e para isso se tornou um leitor atento da HGB de Varnhagen lançada em primeira mão no ano de seu nascimento 1853 De reconhecimento comum o trabalho de Varnhagen lançara as bases de uma formação da nação no campo da história porto seguro para consagrar sua visão de mundo Apesar de celebrar o louvável trabalho livromonumento de uma época Abreu não se eximiu de constatar da necessidade de ir além completálo preencher as lacunas documentais e temáticas presentes naquela obra tarefa que se tornaria verdadeira obsessão210 Sua intenção era superar o que chamara de quadros de ferro traçados por 209 Capítulos de História Colonial é considerada a obra mais importante daquele historiador que para além da composição de obras históricas a importância do trabalho está vinculada à recuperação e edição de valiosos textos do período colonial tais como a História do Brasil de Frei Vicente de Salvador Cultura e opulência do Brasil de André João Antonil e Diálogos das grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão Dessas duas últimas obras coubelhe a identificação da autoria De espírito ousado parecenos que o esforço metódico de produção de um texto eralhe cansativo em demasia posto considerarse sempre sujo e aliviado ao concluir um trabalho 210 Apesar de elogiar o esforço de Varnhagen Capistrano de Abreu denunciou as falhas da HGB na qual o autor foi capaz de como um antiquário estabelecer e datar documentos como um trabalhador possante explorador infatigável que muitas vezes surgia exausto e ensaguentado trazendo nas mãos pérolas e corais In Necrológio Apesar do esforço Capistrano queixavase da incapacidade de Varnhagen de dar aos fatos uma explicação convincente sem traçar um enredo histórico que permitisse averiguar até onde um fato era o desenrolar do outro passando assim do papel de crítico de documentos para a de narrador No mesmo 102 Varnhagen na HGB e que foram reproduzidos largamente nos manuais escolares de história pátria como o de Joaquim Manuel de Macedo211 Com esse fito tornouse um dos anotadores da 3ª edição da Historia geral do Brasil ao lado de Rodolfo Garcia tarefa que lhe proporcionou subsídios para a realização de uma reescrita da história que seria concebida pela diferença em relação à HGB Aquela para Abreu seria um texto hermético demasiado longo de leitura exaustiva incapaz de conquistar leitores distantes Necrológio Capistrano de Abreu não temeu em afirmar que Varnhagen não fora além de escavar documentos demonstrarlhes a autenticidade solver enigmas desvendar mistérios nada deixar de fazer a seus sucessores no terreno dos fatos Compreender porém tais fatos em suas origens em sua ligação com outros fatos mais amplos e radicais de que dimanaram generalizar as ações e formularlhes teorias representálos como consequência de duas ou três leis basilares não conseguiu nem conseguiloá ABREU José Capistrano de Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos 1ª série Rio de Janeiro Civilização brasileira 1976 p 202 Em outros momentos pareceu desconfiar da autenticidade dos documentos apresentados por Varnhagen Ainda não pude verificar onde ele colheu os esclarecimentos a respeito do assalto inglês na Bahia Não figuram na primeira edição Provavelmente encontrou os documentos em Simancas onde deveriam estar se não os tirou porque ho je cheguei à desoladora convicção de que nosso ilustre historiador roubava papeis Carta ao Barão do Rio Branco 3031887 In RODRIGUES José Honório org Correspondência de Capistrano de Abreu vol 1 Rio de Janeiro Civilização brasileira 1977 p 117 211 O manual de história pátria de Joaquim Manoel de Macedo é representativo da produção didática de membros do IHGB o que vem provar a preocupação daquele espaço de saber não apenas com a produção da história mas também com sua legitimação a partir da feitura de manuais Tal discussão fora iniciada desde 1840 por Justiniano José da Rocha professor de História Pátria no Colégio Pedro II e membro do IHGB Ao reconhecer que existiam poucos compêndios disponíveis sobre o assunto instou ao Instituto nomear uma comissão especial a fim de organizar um compêndio de História do Brasil o que não foi de pronto ocorrido ante a obstrução de Januário Da Cunha Barbosa que indicava como o mais representativo o compêndio do sócio Pedro de Alcântara Bellegarde Somente com o pedido formal do diretor do Conselho de Instrução Pública Eusébio de Queirós em 1860 o IHGB se dispôs a renovar a produção de compêndios indicando Joaquim Manoel de Macedo para o empreendimento Aquele autor além de primeiro secretário do IHGB era também professor do Colégio Pedro II e durante algumas décadas seu manual intitulado Lições de História do Brasil foi o mais utilizado nos colégios brasileiros pois seu trabalho congregava Didática Currículo e Saberes escolares cerne do ato de professorar Macedo era médico de formação ligado à família imperial da qual se tornou preceptor e professor dos filhos da princesa Isabel Seu romance A Moreninha é considerado a obra inaugural do romance brasileiro que lhe deu fama e fortuna para além de tantos outros trabalhos de cunho literário que marcaram sua carreira A partir da década de 60 muitos dos membros do IHGB que já eram professores tornaramse também autores didáticos chamados para engrossar um filão novo do mercado mas que se anunciava absolutamente promissor o mercado editorial A transposição didática dos saberes produzidos e armazenados pelo Instituto também se constituía em uma fonte a mais de rendimentos para muitos além de uma maneira de divulgar para um público mais amplo o conhecimento sistematizado pela agremiação A respeito ver MACEDO Joaquim M Lições de História do Brasil Rio de Janeiro Typografia Imparcial 1861 Para aprofundamento do tema sugerimos a leitura de HILSDORF Maria Lúcia WARDE Míriam CARVALHO Marta de Apontamentos sobre a História da escola e do sistema escolar no Brasil In GARCÉS OLZ SAUTER GO org Gênesis y desarrollo de los sistemas educativos Iberoamericanos siglo XIX Tombo I Universidad de Antioquia Espanha Cooperativa Editorial Magistério 2004 p127202 Com especialidade MARIOTTO HAIDAR Maria de Lourdes O ensino secundário no império brasileiro São Paulo GrijalboEDUSP 1972 103 da chamada elite intelectual e que por isso mesmo exigia que fosse refeita como forma de aproximar o povo de sua história A reescrita da história nacional deveria ocorrer a grandes traços e largas malhas afastandose em definitivo da tradição não muito antiga de narrativa do passado nacional na qual a cronologia dos acontecimentos era mais importante que a atuação humana O fio condutor dessa reescrita deveria levar à compreensão da formação da nacionalidade do nascimento coletivo de um sentimento nacional capaz de unificar a diversidade dos grupos humanos que originaram o povo brasileiro Abreu tencionava mostrar pois como os grupos étnicos se uniram para além da língua comum da religião e da antipatia ao reino passando a pensar num Brasil emancipado unificado que se via como povo como comunidade A justificativa para tal empreendimento se dava pela compreensão da impossibilidade de Varnhagen ter construído uma identidade nacional verdadeira visto que ao tempo da escrita da HGB poucos anos após a emancipação política o espírito nacional não se constituíra de todo estando ainda em formação 212 No especial tempo de mudanças que vivia era natural que aquele historiador se inquietasse com o passado agora posto à prova em todos os seus matizes Abreu compreendia a instauração da república como o elemento unificador da nação e nesse sistema governativo apesar dos variados problemas que irrompiam desde sua instauração já se fazia possível vislumbrar um rascunho do que poderia vir a ser a mesma213 A captação desse espírito só seria possível com a consolidação da própria nação experiência que ocorreria por uma tomada de consciência do que seria a nação em si e de como a mesma se formara ao longo dos séculos Ao mesmo tempo tal consciência é que permitiria aquela consolidação dando ensejo à solidez da idéia de nação que para Capistrano de Abreu teria na escrita de sua história a condição de possibilidade para se 212 Para tanto fazse necessário lembrar que a escravidão só fora abolida em 1888 o que indicava forte impeditivo para que grande parte dos trabalhadores nacionais tivesse consciência de uma suposta e inexistente cidadania em meados do século XIX Demais grupos formadores da nacionalidade mesmo livres não eram agentes políticos da nação emancipada o que descaracterizava a unidade inicial da colônia vigorosamente defendida nas muitas páginas da HGB 213 Só após a instauração do sistema governativo republicano é que todos os brasileiros maiores de 18 anos e que fossem alfabetizados passaram a ter acesso ao direito de eleger seus representantes Antes disso o voto era restrito a cidadãos que provavam ter certo nível de renda exigência que afastava a grande maioria da população do exercício de cidadania definidor do espírito de nação NICOLAU Jairo História do voto no Brasil Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002 104 aperfeiçoasse o processo formativo214 Esta tarefa deveria ser cumprida com a maior brevidade pois aquele autor vislumbrava no contexto dos primeiros anos da república considerável fragilidade dessa consciência nacional além de significativo risco de dissolução da proclamada unidade nacional diante das mudanças provocadas pela instauração de um novo sistema de governo Originouse dessa urgência sua proposta de uma história escrita sem se deter nos grandes eventos sem citar os grandes nomes ou os pormenores dos acontecimentos dos últimos tempos sem minúcias nem detenção nos detalhes que ainda não estavam amadurecidos o suficiente para ser compreendidos em sua historicidade O desvendamento da trajetória que levou à formação da nação e a lenta gênese de um sentimento nacional se configuraram como pontos de inflexão de seu trabalho nomeado pelo autor como história íntima da nação Nesta a noção de territorialidade teve lugar de destaque posto seu autor haver deslocado o eixo geográfico da experiência colonial do litoral para o interior Saiu assim do espaço dos engenhos e da produção açucareira alma da colônia para o interior do território colonial no espaço chamado sertão215 a fim de compreender os desdobramentos mais profundos da formação nacional revelando uma intimidade ainda desconhecida Para tanto aprofundou os estudos geográficos que em sua obra se fundiram como parte integrante da historicidade nacional a demonstrar como as relações do homem com a natureza foram fundamentais para a ligação das diversas partes do território colonial através de escusos caminhos e trilhas A história íntima interna de Capistrano de Abreu seria assim quase complementar à chamada história externa litorânea de Varnhagen216 214 Vêse pelo exemplo acima que Capistrano de Abreu já definira desde o final do século XIX uma finalidade para a história que divergia da visão do próprio IHGB cujo brasão apresentavaa como mestra da vida Abreu já antevia os fins políticos da própria história e do papel do historiador 215 Em 1902 foi lançado Os Sertões de Euclides da Cunha que retratava a epopéia da vida sertaneja em sua luta diária contra a paisagem e a incompreensão das elites governamentais O substrato dessa obra amparase na ocorrência da Guerra de Canudos 18961897 onde um pequeno povoado no interior da Bahia Arraial de Bom Jesus ou Belo Monte se constituiu às margens da presença do Estado desde o século anterior Assumiu sua liderança Antônio Conselheiro na república recém instaurada o que acentuou seu crescimento chamando a atenção das autoridades locais determinadas a extinguir o grupo sob a alegação de se tratar de um conluio de monarquista As colocações de Euclides da Cunha sobre o Brasil do final de século são reveladoras de sua visão sobre a existência de dois Brasis um do litoral e outro do interior que se diferenciavam pelos fatores da raça do meio ambiente e do momento histórico refletindo o determinismo de Taine que também influenciou o trabalho de Capistrano de Abreu 216 Para Capistrano de Abreu a História de Varnhagen era litorânea porque era portuguesa A história da intimidade da formação nacional não poderia ter o mesmo cenário pois se iniciara em épocas diversas assim como em diversos lugares permitindo a abertura de veredas que uniam silenciosamente os distintos pontos 105 Não obstante Abreu tentou se afastar de um modelo de abordagem histórica que construía a história do Brasil a partir do descobrimento num desdobramento da colônia em império tipificado na História Geral do Brasil de Varnhagen Para ele o Brasil tinha uma história que antecedia à presença portuguesa ajuizando os nativos como integrantes de uma sociedade que se transmutou com a chegada de brancos e negros o que possibilitou a datação histórica a partir dessa chegada O chamamento dos demais grupamentos étnicos como sujeitos da história de formação do Brasil para além da presença portuguesa foi mais um destaque em sua análise ao considerar que as distinções culturais de índios e negros quase se dissolveram no cadinho da formação nacional A narrativa estabelecida a partir de temáticas217 e não mais como uma evolução de fatos encadeados em si solidificou o cariz inovador ao seu trabalho diferenciado pela análise do modo de vida dos homens comuns das suas estruturas de pensamento das suas questões cotidianas Capistrano de Abreu se esmerou no desvendamento de como havia se dado o povoamento do interior as formas de ocupação do território os desequilíbrios e contrastes da sociedade colonial a diversidade territorial a fragmentação e as incomunicabilidades Marcou assim um novo modo de se escrever a história brasileira 218 além de trazer à tona grande parte da história do Brasil do século XVII219 da qual pouco ou nada se sabia e em decorrência tornouse um membro de destaque no IHGB ao qual frequentava precariamente além de ser considerado um precursor da moderna historiografia do país num alargamento territorial que se formara a partir de uma corrente interior mais volumosa e mais fértil que o tênue fio litorâneo A propósito ver o capítulo IX de Capítulos de história colonial 217 Os Capítulos de história colonial foram organizadoa a partir dos seguintes temas Antecedentes indígenas Fatores exóticos Os descobridores Primeiros conflitos Capitanias hereditárias Capitanias da coroa Franceses e espanhóis Guerras flamengas Os sertões Formação dos limites e Três séculos depois Por sua vez Caminhos antigos e povoamento do Brasil tem a seguinte compleição Sólis e primeiras explorações Os Guaianases de Piratininga Atribulações de um donatário Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil Os primeiros descobridores de Minas Documentos históricos Esquema das bandeiras A bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira Sobre uma história do Ceará Tricentenário do Ceará Fragmento de um prólogo Vale lembrar ser este último livro uma compilação de escritos esparsos organizado postumamente 218 Para Daniel Mesquita o tratamento dado à história no início do século XX por Capistrano de Abreu teve grande influência nas obras futuras de Paulo Prado Sérgio Buarque de Holanda e até mesmo de Gilberto Freyre A respeito ver MESQUITA Daniel Os descobrimentos de Capistrano Rio de Janeiro ApicuriEdPUC 2010 219 Capítulos de história colonial obra principal retrata o processo colonial encerrandose ao fim do século XVII O século seguinte representava para Capistrano de Abreu o momento de possibilidades de inserção do Brasil conquanto nação emancipada no concerto das nações civilizadas o que lhe parecia campo pouco seguro para o trabalho do historiador Suas preocupações nesse sentido não obstante podem ser acompanhadas em sua correspondência organizada por José Honório RODRIGUES 106 Apesar de desejar ser o diferencial em relação ao trabalho de Varnhagen Capistrano de Abreu nele se amparou para repensar a história nacional ao considerar o empenho daquele historiador na descoberta e detalhamento dos documentos referentes ao Brasil220 Elogiava a profundidade da pesquisa documental encetada pelo Visconde de Porto Seguro e de seu profundo conhecimento dos diversos arquivos europeus tão freqüentados por Varnhagen e nos quais nunca fora Usava pois do artifício de Bernardo de Chartres 221 ao se apropriar dos escritos de Varnhagen para deles recuperar a face da história a partir de novas ferramentas teóricas 31 Impiedosos fazedores de novos caminhos Abreu tentou em todos os sentidos resgatar no ambiente colonial um sujeito histórico que pudesse se diferenciar do colonizador português na tentativa de se desprender da criação varnhageniana Sua geração ao contrário da de Varnhagen vivera o questionamento e dissolução de um modelo social tipicamente luso tendo se defrontado com problemáticas relativas à construção da nação e da identidade nacional Esse tempo de transição abriu espaço para o questionamento da relação de continuidade histórica entre Portugal e Brasil o chamado lusoamericanismo bem como o questionamento do sentido do valor em relação à antiga metrópole Concomitante à crise do Império aflorou a reavaliação do papel de Portugal em relação ao Brasil e se este seria um desdobramento da antiga metrópole premissa do IHGB ou uma nação que se constituíra de forma particular e autônoma Questionavase pois se a continuidade caso existisse não seria justamente a raiz dos problemas sociais e políticos ou de outro modo se a herança portuguesa não seria a causa dos males da sociedade brasileira222 Neste contexto de reavaliações e questionamentos nasceu a obra de Abreu 220 ABREU José Capistrano de Sobre o Visconde de Porto Seguro Op Cit p 133 221 Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes Assimvemos melhor e mais longe que eles não porque nossa vista seja mais apurada ou nossa estatura mais alta mas porque eles no elevam até o nível de toda sua gigantesca altura observara Chartres cujas palavras foram resgatadas por LE GOFF em Os intelectuais na Idade Média São Paulo Brasiliense 1993 p 25 No artigo Sobre o Visconde de Porto Seguro Ensaios e estudos 1ª série Rio de Janeiro Civilização brasileira 1975 pag 25 e seguintes Capistrano fez alusão a uma reescrita da história a partir dos erros e acertos de Varnhagen 222 Exemplo dessa reavaliação é a grande popularidade entre os intelectuais do período no Brasil da obra O Brasil e as colônias portuguesas 1880 de Oliveira Martins que observara que a colonização do Brasil acontecera em meio à decadência da metrópole Para aquele autor as incursões de Portugal na África e no Brasil descritas como uma triangulação ao tempo que formavam um sistema de exploração colonial bem 107 voltada a perscrutar a formação da identidade brasileira no ambiente da colônia Para tanto escolheu refazer o cenário histórico afastandose dos engenhos litorâneos e da grande empresa portuguesa nos quais era predominante a presença estatal para voltarse ao avesso da história do lugar chamado Brasil Em Abreu o sujeito colonial se diferenciou daqueles encontrados em Varnhagen A partir do conceito de transoceanismo aquele autor estabeleceu a sutil diferença entre o português que ia à colônia com o fito de enriquecer ou realizar um mandato daquele que ia para se estabelecer ali se fixando indefinidamente buscando novas terras nos interiores formando famílias trasladando os parentes do reino para a lida colonial Com tal fito passou a estudar as famílias portuguesas que inauguraram os povoamentos abriram caminhos definiram fronteiras guerrearam entre si pela posse da terra dandolhe rostos e nomes e evidenciando um português diferente que não teve o transoceanismo como perspectiva de vida posto deixasse para trás Portugal e desenvolvesse relações afetivas com o espaço colonial elegendoo como o ambiente onde faria sua vida onde habitaria doravante Desconstruíase por tal viés um tipo mítico o português navegador cujas águas salgadas dos mares pareciam compor o próprio sangue tão perene era seu destino e vontade de lançarse ao mundo desvendandoo para se apoderar de tudo que oferecia de diferente e precioso Em contrapartida revelavase um português retraído taciturno dedicado à terra e à família compenetrado em ganhar a vida com o esforço diário Diferente este português trazido à história por Abreu desbravara os sertões fazendo daquele espaço o seu lugar de domínio como homem comum sem vantagens nem benesses um típico sujeito do ambiente colonial exterior ao contexto da empresa portuguesa embora a favorecesse de uma maneira especial à parte com seu empenho de explorar as novas terras e povoálas Em Abreu as figuras dos degredados dos náufragos e dos desertores de Portugal foram referendadas como os primeiros habitantes portugueses nas terras da América tendo como expoente Diogo Álvares Correia mais conhecido por Caramuru223 Para aquele historiador sucedido por redundar em colonização embora malogrado por estar na raiz do declínio do Império português 223 O náufrago português nascido em Viana do Castelo em 1475 foi acolhido pelos tupinambás após presenciar o massacre dos companheiros de viagem ao chegar em terra firme Reza a lenda que seu livramento se deu em decorrência de ter sido achado semimorto sobre as pedras da praia ou por ter feito uso 108 tratavase de homens cuja opção em viver na nova terra não derivara da própria vontade mas de alguma punição caso dos degredados ou de algum infortúnio caso dos náufragos e dos desertores224 Aos dois primeiros entendemos tratarse do tipo transoceânico cujos pés fixaramse na nova terra embora seus pensamentos e desejos voltassemse constantemente para Portugal Aos últimos que fugiam das amarras da sociedade portuguesa e que por vontade embrenhavamse nas matas americanas furando lábios e orelhas e rendendose aos rituais dos nativos parece ser parte do que Abreu tomou como a energia geradora da nação brasileira Homens fortes intemeratos resolutos esses portugueses foram considerados por Abreu como os verdadeiros construtores da colônia os domadores da natureza dos trópicos os civilizadores de negros e nativos os engenheiro de uma nova raça moldada pelas condições ambientais de cinco regiões geográficas diferentes ligadas entre si graças a abertura de caminhos e implantações de povoados Viver na colônia foi uma resolução de vida de caráter peremptório e não uma missão determinada pelo empreendimento colonial de durabilidade efêmera Assim tornaramse senhores descobridores colonizadores empenhados na feitura de caminhos que internalizassem a colônia para que tomassem posse de sesmarias que a povoassem por dentro unindo as diferentes partes do território que aos poucos se definiu em sua imensidão de uma arma de fogo atingindo um pássaro que estava nas proximidades o que causou temor e respeito por parte dos nativos que assistiram ao fato Sua permanência com os nativos brasileiros tornouo profundo conhecedor dos costumes indígenas o que contribuiu para tornála importante mediador no contato inicial entre nativos com os jesuítas eou agentes da coroa portuguesa para quem prestou alguns serviços dela recebendo posse de terras e honrarias Sua história foi noticiada pelo jesuíta Simão de Vasconcelos em 1680 tendo nela se inspirado Frei José de Santa Rita Durão que escreveu o poema Caramuru em 1781 224 Em decorrência dessa análise contida na obra de Capistrano de Abreu foi reproduzida ao longo dos anos na historiografia brasileira a representação negativa de que os elementos formadores da nova sociedade provinham da escória da sociedade portuguesa sem que se observasse o contexto no qual se encontraria a explicação da transformação de um homem comum num facínora da distinção entre crime e pecado da aplicabilidade das penas civis e religiosas enfim da própria historicidade da metrópole nos séculos da colonização Essa proposição a nosso ver só permitiu o aprofundamento da lusofobia ao reproduzir um perfil abjeto que remontava aos séculos de colonização em relação aos migrantes portugueses do início do século XX considerados como elementos indesejáveis em seu país de origem e que levavam consigo um histórico pouco exemplar que causava repúdio e que se refletia em última análise em relações marcadas pela animosidade e desrespeito entre brasileiros e portugueses Em oposição a esta versão da história destacamos o trabalho de Afonso Celso citado anteriormente que procurou desconstruir a negatividade de ter sido grande parte da primitiva população colonial formada por degredados portugueses 109 Indiferente se os sujeitos que brotaram da documentação analisada eram portugueses de nascimento ou seus descendentes Abreu construiu os portugueses que fizeram o Brasil por dentro fomentando sua alma ensejando uma brasilidade que só se revelou séculos depois Com índias negras ou portuguesas esses homens foram esculpidos como os patriarcas da nação aqueles que fizeram vicejar uma nova população nos trópicos destinada ao trabalho de amansar a terra e de fazêla dar frutos Com esse viés Abreu fez uma espécie de corte entre os tipos portugueses que participaram da empresa colonial225 De um lado ele colocou o homem comum o colono aventureiro com disposição para viver na nova terra nela criando raízes de outro ele dispôs o colonizador o português que por determinação real foi escolhido para desempenhar alguma missão com o fito de realizar algum aspecto na empresa colonial A respeito desses agentes Abreu os revelou como homens audazes contratados pelos poderes públicos para pacificar certas regiões em que os naturais apresentassem mais rija resistência podendo cativar legalmente a indiada autorizados a distribuir hábitos e patentes aos companheiros mais esforçados226 Em partes de sua obra não é difícil identificar a atuação desses agentes cuja presença e ação demarcaram importantes momentos na formação da sociedade brasileira gravados no montante da documentação utilizada pelo historiador na escrita de sua história e da qual não pode fugir Em sua história os grandes nomes portugueses adquiriram nova dimensão dandose visibilidade a personalidade e ações ainda pouco abordadas pelos historiadores nacionais a começar por D Henrique heroi da Reconquista e de D João II sábio e previdente até Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral Sobre o último o liame mais forte a unir Portugal e Brasil patenteouse na escrita abrelina as minúcias da expedição que culminou com o descobrimento e a chegada de seus membros na nova terra a ponto de destacar a doação por parte do rei de um barrete bento 225 Esse corte é explícito em sua obra pois se nos Capítulos da história colonial Abreu referenciou os atos das grandes navegações e descobertas portuguesas citando atos de reis e de seus mandatários nos Caminhos Antigos e povoamento do Brasil ele se voltou a investigar o homem comum e sua trajetória na experiência colonial 226 ABREU José Capistrano de Caminhos antigos e povoamento do Brasil p44 110 enviado pelo papa em prol do sucesso da empreitada Todavia a história escrita por Abreu não pode ser considerada a história dos grandes homens como o foi a de Varnhagen caracterizandose como um desvio das pretensões do autor da HGB Mostra disso são as marcantes representações que ele fez de Portugal na transição das idades Média e Moderna como estratégia para tentar explicar alguns aspectos percebidos na formação da sociedade brasileira O Portugal revelado na narrativa abrelina era um espaço de contradições flagrantes tomado pelo poder do catolicismo a dominar todos os recônditos da vida social embora inexistente na intimidade dos lares Para Abreu o português seicentista era pouco devoto e conquanto tivesse sua vida marcada por atos da liturgia católica transitava numa sociedade marcada pela violência onde a rudeza e a agressividade imperavam imprimindo nas pessoas o mesmo cariz Em Abreu o Portugal seiscentista era um império onde As cominações penais não conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligiase a morte pelo fogo e o confisco de todos os bens Com a rudeza de costumes que assinala aqueles tempos a segurança da própria pessoa família e haveres dependia em grande parte da força e energia individual daí freqüentes homizios agressões feridas e mortes que habituavam à contemplação da violência e da dor infligida ou recebida O espetáculo de penar não repugnava porque ninguém tinha em muita conta o padecimento físico Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caráter perverso não tinham nesses tempos semelhante significação O mal que elas causavam não se reputava demasia todos estavam sujeitos a padecêlo Mas se a dor física ou moral alcançava molificar a rijeza da índole inacostumada à paciência e a reflexão ou se a paixão a inflamava então o sentimento irrompia em clamores prantos e contorsões semelhando os meneios da demência furiosa227 Dessa sociedade que banalizava a violência e o sofrimento físico onde a dor era um demarcativo das relações sociais Abreu ensejou adentrar na compreensão da personalidade do português que colonizou o Brasil O homem oriundo desse meio não poderia ser afável sendo a bestialidade e a intolerância a marca dos portugueses que povoaram os seus escritos recheados de vivências que retratavam a aspereza da vida colonial repetição da 227 Ibidem p 48 111 vida na metrópole228 A experiência do sertão nada teve de romântica em Abreu bem ao contrário os tempos coloniais foram a reprodução da sociedade portuguesa acentuada em razão das dificuldades do novo lugar O português ali contido foi pois compreendido em razão de seu tempo e seu ambiente no compósito de sua historicidade sendo mostrado por Abreu como um fragueiro abstêmio de imaginação ardente propenso ao misticismo caráter independente não constrangido pela disciplina ou contrafeito pela convenção o seu falar era livre não conhecia rebuços nem eufemismos de linguagem A têmpera era rija o coração duro À dureza da têmpera correspondia extensamente um aspecto agreste a força muscular era tida em grande apreço Cercear com um revés de montante uma perna de boi por meia coxa ou deceparlhe quase todo o pescoço eram feitos dignos de recordação histórica229 Essa dureza de caráter e bravura indômita se refletiria para Abreu como uma justificativa para certos atos perpetrados pelos colonizadores à maneira do tratamento empregado ao lidar com os povos indígenas africanos e estrangeiros invasores sem piedade na aplicação de castigos nem meneios em relação à sua sobrevivência As punições empregadas no ambiente colonial contra as gentes submissas eram tidas como verdadeiros atos de sadismo pelos contemporâneos daquele historiador diante das narrativas de atrocidades230 resgatadas nos documentos de época A respeito Abreu fez relembrar da pertinente historicidade dos homens e da sociedade investigada na qual o espetáculo de penar não 228 Com essa finalidade Abreu fez questão de destacar excertos dos escritos de Domingos de Loreto Couto na descrição do português primitivo No nosso reino de Portugal entre Celorico e Trancoso habitavam povos tão brutos e silvestres como animais indômitos tão rudes que uma família não entendia a língua da outra com menos de duas léguas de distância Nem nos deve admirar a barbaridade destes povos os indígenas quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descentes a tanta brutalidade que matavam e comiam aos que dos povos vizinhos se apanhavam ou em guerras ou em ciladas Couto Domingos de Loreto Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco Anais da Biblioteca Nacional V 24 1902 p 45 citado à p 187 e seguintes de Capítulos de História Colonial 229 ABREU José Capistrano de Capítulos de história colonial São Paulo Publifolha 2000 p 467 230 Há muitas passagens na narrativa de Capítulos de História Colonial sobre a violência empregada pelos portugueses sobre as demais gentes A entrega de prisioneiros franceses a uma tribo de antropófagos para que fossem por eles devorados as estratégias de aproximação com os indígenas com o fito de escravizálos a descrição das chamadas práticas medievais empregadas por um certo Francisco Caldeira de Castelo Branco na Capitania do Pará contra os nativos da região a execução à espada e punhal de crianças e mulheres indígenas devastados pela fome a emasculação praticada contra os índios entre tantos outros foram fatos utilizados por Abreu para dar visibilidade aos ares bestiais que demarcaram os tempos coloniais 112 repugnava porque ninguém tinha em conta o padecimento físico 231 fato que se refletira no cotidiano colonial por ser este uma extensão da sociedade portuguesa No contexto daquela sociedade por sua vez o mesmo colono de aspecto severo disposto a entregar franceses para os antropófagos mutilar índios e a castigar negros nas terras da América lusa foi mostrado como uma grande massa da nação sem direitos pessoais um Terceiro Estado sem visibilidade numa sociedade marcada por uma hierarquia nitidamente transportada para o Brasil232 Numa e noutra o povo era elemento de somenos mas era seu labor que dera forma ao Brasil e que era mostrado como componente decisivo para se abranger o contexto histórico da colônia Era a história desse povo em sua luta pela conquista territorial e sua consolidação que permitiria a construção da identidade brasileira nos republicanos tempos em que as populações simples tomavam foros de sujeitos políticos Esses fortes e cruéis homens mais endurecidos na severidade da empreitada foram mostrados pelo historiador cearense não apenas como artífices de atos de heroísmo mas na faina diária da vida na colônia sendo executados ou executando os nativos mentindo ou usando de artifícios para auferir lucros angustiados pelas dívidas enfrentando a criminalidade corrente e a pirataria vitimados pelos ódios e paixões doentes de fome comendo terra e ratos para sobreviver rodeados pelos rios encachoeirados e pelas serras ínvias Assumiram assim na escrita de Abreu a inegável condição de pais da nação posto que mostrados como indivíduos que edificaram sua vida e por conseguinte construíram um novo lugar que ao longo dos séculos se transformou na nação brasileira O povo 231 Observese que à época da escrita de seus Capítulos as mentalidades sequer eram cogitadas como campo de investigação da história embora o historiador cearense já tomasse tal abordagem como possível no desvendamento de uma problematização capaz de revelar um tempo que se queria conhecer Ao longo de seus textos emergiram diversas abordagens que alguns anos depois seriam apontadas como características de uma história dita das mentalidades 232 Ao empenharse no estudo das formas de distribuição de terras principalmente em relação às capitanias hereditárias e da hierarquia existente na sociedade colonial Abreu entendeu que a organização feudal que ocorrera na história portuguesa na média idade fora reproduzida no Brasil por ordem de D João III desde 1534 Todavia é inegável que aquele historiador tentava mostrar a América Portuguesa como uma recriação da Europa com sua organização e valores já que tinha na propriedade da terra a base de sua sociedade Ao fazêlo ele não questionou as especificidades do Medievo português nem as características próprias do feudalismo luso Tencionava apenas dar continuidade a uma visão bem própria do IHGB que defendia o nexo com a Europa e seus valores como forma de visibilizar o construto civilizatório nacional Por outro lado abriu caminho para uma tese preciosa abraçada pelos historiadores marxistas brasileiros a partir da década de 40 tais como Caio Prado Jr Alberto Passos Guimarães e Nélson Werneck Sodré 113 brasileiro seria assim uma invenção do povo português dele se originando num amálgama inovador até desabrochar como tal após a independência Ao mostrar a sociedade portuguesa como um império de costumes rudes Abreu teceu cuidadosamente uma trama capaz de justificar alguns aspectos da vida colonial dos quais muito se falava o extermínio indígena por exemplo mas que até então não haviam sido analisados sob um enfoque que permitisse trazer à tona o processo histórico que lhes originara Na perspectiva daquele autor o conhecimento da vida social portuguesa permitiria a ampliação do conhecimento sobre o Brasil em sua formação proporcionada graças ao caráter dos homens oriundos de uma sociedade eminentemente superior e portanto civilizadora Esta superioridade foi carreada também de um pressuposto étnico no qual a raça branca representada no Brasil pelo português superpunhase às demais A despeito de muitos estudiosos afirmarem não haver em Abreu uma discussão de raça são diversas as passagens na sua narrativa que demonstram seu ponto de vista a respeito O autor não discutiu nem problematizou a questão racial apenas se apropriou do tema e o conduziu consoante sua perspectiva pessoal fixando na historiografia uma retórica que lhe parecia tão natural quanto aos seus contemporâneos233 233 Aos índios ele chamou de selvagens sanguinários rancorosos e antropófagos material mais próprio para a escravatura do que para a conversão Cf Capítulos da história colonial p 55 Fez questão de descrever a violência indígena contra os colonos chegando aos pormenores de chacinas e barbáries de forma a bem fixar a solidez de suas afirmativas Em algumas passagens de seus textos Abreu sequer considerou os indígenas como humanos referindose aos mesmos como de natureza distinta daqueles O bruto com seu instinto rasga horizontes sem vacilar o homem porém que de uma vez penetrou na caatinga e lhe falhou a memória na escolha de uma vereda é uma vítima que só um milagre o salvará Cf Caminhos antigos e povoamentos do Brasil p 51 Sobre o extermínio dos indígenas Abreu se mostrou indiferente e até cruel ao se reportar ao domínio pleno dos portugueses sobre os nativos numa única frase Só no século seguinte se remediou o mal Idem p78 Sua narrativa sobre as índias é escancaradamente pejorativa mostrandoas como mulheres interesseiras que lubricamente procuravam os portugueses para deles engravidar posto considerálos de qualidade genética superior aos de sua própria etnia Abreu sequer cogitou se os indígenas seriam capazes de elucubrar mentalmente a idéia de superioridade racial mas se esmerou em conduzir seu leitor à plena aceitação da afirmativa Com esse fito descreveu as nativas como interesseiras nos bens dos ricos marinheiros aos quais se ofereciam sexualmente com a intenção de receber benefícios Sobre os negros bem menos presentes na narrativa daquele autor ainda encontramos excertos capazes de demonstrar seu ponto de vista imbuído na certeza da superioridade racial dos brancos Tal afirmação pode ser patenteada quando Abreu tratou do contato entre portugueses e franceses nas terras coloniais reconhecendo nesses últimos uma maior capacidade de relacionamento com os indígenas se comparados aos portugueses Estes de espírito mais aberto trato mais agradável inteligência mais ágil gênio mais alegre não viciados pelo contato diuturno com raças inferiores aprenderam a língua acataram alguns até adotaram os 114 Assim a perspectiva de recriação da civilização pelos colonos portugueses marca exponencial do trabalho de Varnhagen também foi abordada por Abreu embora ressignificada Se em Varnhagen a construção de uma civilização nos trópicos teve um caráter heróico a partir de grandes nomes em Abreu a tarefa foi patenteada graças à têmpera rija do português comum que oriundo de uma sociedade de sólidos costumes debelara todas as demais Por conseguinte negros e índios foram expostos como inferiores diante desse português aos quais tiveram que se submeter numa relação de dominaçãosubmissão inexplicável pela inferioridade numérica dos ditos dominadores Em Abreu essa relação teve como substrato não a força física nem a superioridade das armas mas uma força moral234 cunhada numa sociedade severa despida de compaixões cuja população desenvolvera atributos que possibilitaram o domínio de povos e da própria natureza em favor de suas necessidades e desejos A superioridade portuguesa foi acentuada na narrativa de Abreu ao demonstrar o pleno convencimento desse atributo pelos estratos mais humildes da população colonial negros índios mulatos e mamelucos O reconhecimento dessa superioridade pela população da colônia foi exposta pelo autor ao narrar a invasão holandesa contra a qual todos lutaram juntos pela liberdade divina proporcionada apenas pelos verdadeiros donos da terra235 costumes captaram a simpatia dos indígenas isto é dos produtores e pouco a pouco foram preponderando Idem p 29 Por raças inferiores podemse depreender os índios mais ainda os negros cujo contato com os portugueses fora anterior à colonização estabelecendose desde as primeiras navegações nas costas da África O destaque é de nossa lavra 234 De acordo com Patrícia Chagas na história das chamadas relações raciais têm ocorrido a clara divisão dos atributos do corpo como sendo mais fortes nos negros e os atributos da mente como características quase que exclusivas dos brancos Para aquela autora a hierarquia capitalista impôs a compreensão de que os atributos físicos representavam características negativas pois o corpo era inferior à mente e subordinado a ela CHAGAS Patrícia de Santana Pinho Em busca da Mama África Identidade africana cultura negra e política branca na Bahia Tese de Doutorado em Ciências Sociais UNICAMP 2001 p 86 Nesta perspectiva tornase plausível porque para Abreu negros e índios portadores de atributos físicos foram submetidos pelos portugueses brancos de origem européia portadores de atributos mentais Pelo mesmo enfoque atribuiuse à astúcia e à inteligência um lugar geográfico a Europa e uma identidade racial branca O fato é que ao padronizar a partir de caracteres somáticos os grupos humanos existentes no Brasil tendo os portugueses europeus e brancos como padrão de humanidade e civilização superior Abreu determinou os lugares sociais e políticos que cada um desses grupos deveria assumir na sociedade contemporânea 235 Os termos são da lavra do próprio Abreu em Capítulos da história colonial p 1234 e são reveladores do entendimento do autor sobre a preponderância dos portugueses no contexto da sociedade colonial 115 A festejada liberdade então deveria ser entendida como um benefício concedido pela metrópole a um espaço que não se considerava diferente mas como uma expansão do reino português cuja conquista e colonização o fez senhor e possuidor de um pedaço da América denominado Brasil Defender a colônia dos invasores holandeses e franceses assumia o significado de defender Portugal de aceitar sua dominação manifesta no chamado Pacto Colonial de se submeter sem queixas à crescente espoliação de reconhecê lo como dominador Por outro lado defender Portugal e sua propriedade poderia significar sentirse súdito partícipe do reino distante e poderoso que se destacara pela ousadia das navegações pela descoberta de novas terras pela força de submeter diferentes raças e culturas na formação de um novo espaço Defender Portugal significaria acima de tudo sentirse português ou dele dependente mesmo sendo mazombo mulato curiboca negro ou índio Nesse enlace de diferentes etnias unidas pelo ideal de manutenção da colônia Abreu construiu um entendimento sobre a inexistência de qualquer outra identidade além da portuguesa no seio da colônia Para ele a identidade do colono não era diferente da do reinol a despeito das múltiplas formas de tratamento entre a população resgatadas em sua pesquisa documental Em Abreu o ser português era uma certeza inelutável de todos os habitantes da colônia mesmo que este fosse chamado de brasileiro Todavia o sentirse português foi mostrado pelo historiador como perpassado pela inferioridade em relação aos reinóis beneficiários diretos de dádivas da coroa e por isso sujeitos diretos das antigas sátiras236 A menor qualidade do português da América frente aos chamados filhos de Portugal aflorou no aprofundamento da condição colonial e no amadurecimento político da crescente população autóctone para quem Os triunfos colhidos em guerra contra os estrangeiros as proezas dos bandeirantes dentro e fora do país a abundância de gado animando a imensidade dos sertões as copiosas somas remetidas para o governo da metrópole as numerosas fortunas o acréscimo da população influíram 236 Basta lembrarmos as sátiras de Gregório de Matos o Boca do Inferno em relação ao português que se mudava para a colônia em resposta a outras tantas que existiam no reino Vem degredado por crimes ou fugido do pai ou por não ter o que comer salta no cais descalço despido roto trazendo por cabedal único piolhos e assobios curte vida de misérias amiúda roubos ajunta dinheiro casa rico e ocupa os cargos da república MATOS Gregório Crônicas do viver baiano setecentista O Burgo In SPINA Segismundo A Poesia de Gregório de Matos São Paulo EDUSP 1995 116 consideravelmente sobre a psicologia dos colonos Os descobertos auríferos vieram completar a obra Não queriam não podiam mais se reputar inferiores aos nascidos no alémmar os humildes e envergonhados mazombos do começo do século XVII Por seus serviços por suas riquezas pelas magnificências da terra natal contavamse entre os maiores beneméritos da coroa portuguesa237 No trecho citado já se faz reconhecer que as diferenças existiam mesmo que o historiador não tenha demonstrado intento de se aprofundar na temática sob pena de desvirtuar seu pensamento Havia de forma indubitável certa hierarquia entre reinois e colonos o que pode ser percebido nos documentos da época Como exemplo citamos uma correspondência dos vereadores da Câmara de Vila Rica solicitando ao trono que os filhos de Portugal tivessem preferência sobre os naturais da terra no acesso aos cargos Considerandose os principais artífices das riquezas da terra verdadeiros dilatadores do império os autores do documento traçaram a distinção entre colonizadores os reinois e colonos os que nasceram na América portuguesa num indicativo de que tais diferenças foram construídas dentro da própria colônia de forma a beneficiar uma elite em formação Por outro lado a leitura dos autos da devassa da Inconfidência Mineira desvenda uma parte das identidades coletivas do século XVII na colônia Há naquele documento 74 ocorrências para a palavra América que em pouco menos da metade dos casos designa o todo da América Portuguesa referindose em muitos momentos unicamente à capitania das Minas Os chamados filhos das minas referenciavam os nascidos na localidade ou filhos da América Três identidades distintas foram utilizadas no citado documento a saber a mineira como expressão do específico regional a americana numa expressão de alteridade com os metropolitanos os europeus e por último a portuguesa Em decorrência Abreu também fez uso ao longo de seus textos de vários designativos para demonstrar a existência de variadas identidades dentro da colônia embora não as tenha utilizado para problematizar uma postura política de enfrentamento com a metrópole Para Abreu o que havia era a vontade dos colonos em obterem da Coroa o mesmo tratamento dispensado aos reinóis que se diferenciar dos mesmos o que ratifica a percepção de que a identidade portuguesa pelos colonos era muito forte mesmo decorrido 237 Ibidem p 173 117 mais de um século desde o início do processo colonial Buscavase pois uma equivalência e não um distanciamento que denunciasse uma vontade de construir outra identidade que não a portuguesa num espaço onde parecia inexistir qualquer sentimento de oposição à metrópole pelos colonos nem qualquer ideário de formação de uma nova nação liberta das exigências metropolitanas238 Fosse qual fosse o designativo dos habitantes das distintas regiões da extensa colônia este não podia ser compreendido como uma identidade oposta à portuguesa Em Abreu o Brasil só se tornou brasileiro após a Independência quando o espírito da nação aflorou consolidandose com a própria nação Só então o colono aos poucos perdeu sua identidade original a portuguesa assumindo outra a brasileira Para aquele historiador tal qual Varnhagen a nação foi feita a partir de um ato político e não como resultante da montagem de uma comunidade modernamente inventada que se concretizou mediante símbolos práticas comportamentos e valores firmemente ancorados na vida social239 Embora Abreu não tenha reproduzido a história heroica do Oitocento sua escrita naturalizou representações compostas na historiografia do IHGB do século passado fazendoo sem críticas nem discussões e permitindo mesmo sem o notar sua reprodução A conotação depositada por aquele historiador aos portugueses merece destaque posto a história por ele escrita nascesse de um tempo onde eram rotos os laços entre Brasil e Portugal Os primeiros anos do século tempo em que lançou seus Capítulos fora um tempo de plena perseguição política e acentuado desprezo aos portugueses residentes no país Envolvidos nas lides do movimento operário os lusos eram considerados quando trabalhadores 238 Rodrigues considera que Abreu já vislumbrara o gene da independência nos conflitos entre colonos e reinóis acirrados por uma pretensa superioridade dos últimos mas não se interessara por alguns movimentos que ocorreram nos três primeiros séculos de colonização tal qual a chamada Conjuração Mineira Para Abreu aquele movimento não se configurou como um fato histórico sendo apenas um pensamento sem ação que não caberia numa obra que não se voltava para a história das ideias Outras ações revoltosas também foram descartadas de sua narrativa por serem concebidas como movimentos que visavam apenas modificações em alguns aspectos do chamado Pacto Colonial mas sem objetivar uma separação política RODRIGUES José Honório Op cit p 178 239 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 p19 118 usurpadores de empregos quando empreendedores exploradores dos brasileiros visto que exerciam controle sobre grande parte do comércio e das casas de aluguel240 O anterior e breve rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal em 1894 seguido pela indigesta Lei da grande naturalização e a sutil tentativa de travamento dos capitais escoados pelas remessas dos imigrantes portugueses são denunciadores do sentimento antilusitano que dominara o país logo após a proclamação da república alastrandose pelos anos seguintes em sessões populares de espancamento perseguições e agravos gratuitos Em meio aos turbulentos confrontos entre portugueses e brasileiros Abreu parece não ter sido abalado em seus propósitos de analisar objetivamente a realidade investigada tomando como base a informação colhida nas fontes utilizadas o que vem a demonstrar sua independência em relação aos poderes constituídos Sendo o discurso histórico de Abreu arquitetado a partir de qualidades positivas do povo português mesmo quando a monarquia não mais existia restanos destacar as razões daquele historiador em manter uma abordagem bem definida pelos historiadores oitocentistas mas que já não encontrava razões de ser no novo milênio Mesmo que a estrutura narrativa de seus trabalhos não comungasse com o estilo do século passado o lugar concedido por aquele historiador aos portugueses no seio da nação brasileira foi determinante para que se ratificassem os próprios brasileiros como descendentes de uma população forte capaz de construir seu próprio destino como os portugueses tão bem o souberam fazer Abreu buscava assim reproduzir um modelo já esposado por Martius e deliberadamente amoldado por Varnhagen fazendoo também à sua maneira Mesmo na República ele não construiu representações negativas do povo português de forma a não se afastar das orientações do seu lugar social o do historiador do IHGB Sua história é uma história de lutas e de vitórias vitórias de um lusoamericanismo diáfano do qual resultou a grande nação brasileira herdeira direta da grande nação portuguesa pátriamãe Uniase assim a história do Brasil com uma história universal nela dissolvendose 240 Cf CARVALHO José Murilo de Os bestializados O Rio de Janeiro e a república que não foi São Paulo Companhia das letras 1999 p43 119 CAPÍTULO 4 A EXPLORAÇÃO COLONIAL COMO PERSPECTIVA Ao tempo em que Abreu reforçava os laços que uniam Brasil e Portugal Manoel Bomfim241 se lançou no cenário nacional com uma obra sobre as razões do atraso que dominava as nações latinoamericanas entre elas o Brasil Médico por formação aquele 241 Manoel Bomfim intelectual sergipano nasceu em 08 de agosto de 1868 na cidade de Aracaju numa família de proprietários de engenhos Aos dezessete anos mudouse para a Bahia onde iniciou o curso de medicina mas o concluiu no Rio de Janeiro em 30 de julho de 1890 onde apresentou a tese Das Nefrites Em 1891 foi nomeado médico da Secretaria de Polícia tornandose um ano mais tarde tenentecirurgião da Brigada Policial Casouse com Natividade Aurora de Oliveira e se mudou para Mococa no interior do Estado de São Paulo com o objetivo de clinicar Teve dois filhos Aníbal e Maria sendo que esta veio a falecer com um ano e dez meses Desiludiuse com a medicina no ano de 1894 justamente por não ter conseguido salvar a filha Depois de abandonar a medicina regressou ao Rio de Janeiro e passou a se dedicar aos estudos sociais e a educação A princípio escreveu artigos para jornais ministrou aulas particulares ensinou português ciências e história natural e revisou provas tipográficas Em maio de 1896 Manoel Bomfim foi convidado pelo então prefeito da cidade do Rio de Janeiro Francisco Furquim Werneck de Almeida para ocupar o cargo de subdiretor do Pedagogium cargo que assumiu em 25 de junho daquele ano Criado em 16 de agosto de 1890 pelo governo provisório através do decreto No 677 o Pedagogium tinha a função de coordenar e controlar as atividades pedagógicas do país e de ser um centro impulsionador e estimulador de reformas e melhorias para o ensino público em contraponto à situação sofrível da realidade escolar brasileira Pouco tempo depois em março de 1897 Bomfim tornouse o Diretor Geral da instituição Escreveu livros de medicina livros didáticos para o primeiro e segundo graus e trabalhos de história onde pretendia compreender as causas dos males que assolavam o Brasil e a América Latina As suas obras históricas foram A América Latina Males de Origem 1905 O Brasil na América 1929 O Brasil na História 1930 e O Brasil Nação 1931 Também legou à cultura brasileira uma importante e ampla obra intelectual Além dos livros já citados escreveu ainda Cultura e educação do povo brasileiro 1931 O fato psíquico 1904 Noções de Psicologia 1916 Pensar e dizer estudos do símbolo e do pensamento 1923 e Métodos do teste com aplicações à linguagem do ensino primário 1928 Bomfim também teve relevante atuação na imprensa brasileira Foi redator e secretário de A República e da Revista Pedagogium diretor da Revista Pedagógica Educação e Ensino e um dos fundadores da revista quinzenal Universal Redigiu a revista Leitura para Todos e escreveu artigos para os jornais O Correio do Povo O Comércio Ilustração Brasileira O País Notícia e Tribuna Devido a sua vasta experiência pedagógica produziu diversos livros didáticos destinados ao curso primário e ao ensino médio Entre eles podemos citar Compêndio de Zoologia geral 1902 Lições e leituras para o primeiro ano 1922 Lições e leituras livro do mestre 1922 e Crianças e homens 1922 Com Olavo Bilac escreveu três obras didáticas que tiveram forte influência da formação inicial de gerações e gerações de brasileiros Livro de composição para o curso complementar das escolas primárias 1899 Livro de leitura para o curso complementar das escolas primárias 1901 e Através do Brasil livro de leitura para o curso médio 1910 Bomfim faleceu em 1932 aos 64 anos no Rio de Janeiro 120 intelectual interessouse em investigar a história brasileira e da América Latina após estudar na França onde se defrontou com a visão dos europeus sobre os latinoamericanos aos quais se atribuía inaptidão para o progressocivilização em decorrência de uma pretensa inferioridade racial característica de povos ditos mestiços Em face de tal destino anunciado pelas elites letradas européias e da submissão passiva da intelligentsia latinoamericana que passou a elaborar soluções locais para suas complexas realidades em matéria racial242 Bomfim assumiu o papel de denunciador dessa visão negativa da Europa sobre a América Seu trabalho inicial América latina males de origem configurouse como um libelo contra a ignorância interesseira243 das condições e da história social e política no passado e no então presente da América Latina criação europeia Bomfim esposou no início do século XX uma tese que se opunha à perspectiva da historiografia do IHGB na qual a união do Brasil com Portugal nos ligaria à civilização ocidental fazendonos possuidores das mesmas características das nações européias ou ao menos tendo alguma semelhança com as mesmas Se para o IHGB o colonizador era um agente civilizacional que trouxera para a colônia americana todo um aparato que dera à mesma o cariz de civilidade almejada para Bomfim não se encontrava no Brasil do início da centúria nenhuma das peculiaridades que tipificassem a ambicionada civilização pois dela só possuíase os encargos inexistindo qualquer um dos benefícios inerentes à condição de nação civilizada244 As benesses da civilização inexistiam no Brasil assim como nos demais países colonizados pelos ibéricos no continente cuja situação socioeconômica se assemelhava ao Brasil num contexto há muito definido como América Latina Ao fugir do padrão estabelecido pelo Instituto Bomfim sugeriu uma nova consciência nacional ao defender a necessidade do país se voltar para as nações vizinhas Esse olhar sobre o outro mais próximo deveria servir como um espelho que permitisse ao próprio 242 A propósito ver SANTOS Ricardo Ventura MAIO Marcos Chor Qual retrato do Brasil Raça biologia identidades e política na era da genômica Mana vol10 nº 1 p 1835 Abril de 2004 243 O termo é utilizado pelo autor em América Latina males de origem Rio de Janeiro Topbooks 2005 à pag 44 244 A respeito o autor esclarece da total inexistência na América Latina dos pressupostos de uma sociedade dita civilizada Nem paz nem ordem nem garantias políticas nem justiça nem ciência nem conforto nem higiene nem cultura nem instrução nem gozos estéticos nem riqueza nem trabalho organizado nem hábito de trabalho livre muitas vezes nem mesmo oportunidade de trabalhar nem atividade social nem instituições de verdadeira solidariedade e cooperação nem ideais nem glórias nem beleza Ibidem p 134 121 Brasil compreenderse não mais como uma extensão da Europa mas como uma criação defeituosa dela posto que marcado em sua formação por um cruento processo de exploração econômica que dilapidara grande parte de suas riquezas naturais e cuja população resultara desse processo Ressaltese que aquele autor reconhecia as diferenças existentes na formação da sociedade brasileira frente às nações vizinhas o que impedia que as mesmas fossem tomadas como um todo homogêneo O que unia essas nações além de sua localização espacial era a exploração colonial e os resultados que esta deixara no continente o subdesenvolvimento Em decorrência dessa percepção rechaçava o uso do termo latinoamericano como uma expressão identitária compreendendoo como parte de um discurso geoideológico articulado pelos franceses desde o período napoleônico no sentido de estender sua dominação ao chamado Novo Mundo245 O lusoamericanismo seria também uma identidade equivocada defendida por historiadores que transitavam num contexto híbrido onde a monarquia dominava com sua aura portuguesa abrasileirada ou brasileira com um caráter português de olhos fitos na Europa Para Bomfim não haveria uma identidade comum entre os povos da América posto a mesma ter sido destroçada pela sanha furiosa do colonizador cujas marcas se perpetuaram no panorama dessas nações atrasadas apesar de estabelecidas em terras férteis e pujantes O subdesenvolvimento por conseguinte não tinha como causa a mestiçagem das populações americanas como o queriam os franceses e demais pensadores europeus Em Bomfim o infortúnio dessa América dita latina tinha como raiz a colonização e os povos que a impuseram Por tal viés Manoel Bomfim não pretendia construir Portugal com as mesmas características dos historiadores do seu tempo pois sua compreensão a respeito do Brasil era diferente posto que o próprio país adentrasse há pouco num contexto diverso A monarquia não mais existia e os ares da república a qual Bomfim tanto admirava pareciam querer expurgar da memória nacional a imagem do português enquanto agente de um projeto civilizador Foram as condições sociais e os anseios daquele momento histórico que permitiram que se efetuasse uma mudança na construção dessa memória posto ser esta 245 BOMFIM Manoel O Brasil na América O Brasil na América caracterização da formação brasileira Rio de Janeiro Topbooks 1997 122 um espaço de lutas e de disputas do qual o próprio historiador fez parte 246 A transmissão dessa memória por sua vez esteve ligada à busca estratégica da identidade de uma sociedade em plena mutação247 Na investigação das condições sociais e políticas do caráter e das tradições dos ibéricos se estabeleceu a obra de Bomfim a denunciar uma América e um Brasil que parecia não se ver a divagar no desejo de ser propiciado por décadas de exploração mascarada em processo civilizatório Ao fazêlo buscou reconstruir a história da expansão ultramarina dos ibéricos alicerçada na ambição desmedida que findou por lançálos na decadência inevitável A visão de Bomfim sobre a Europa e a própria América foi determinante na modificação do olhar dos historiadores brasileiros sobre o outro num tempo em que o próprio Brasil se transformava 41 De vanguarda a parasitas O desvendamento da história da nação portuguesa marcou grande parte do primeiro trabalho de Bomfim cujo texto revelou uma nação mergulhada num profundo atraso cultural e econômico se comparado aos países vizinhos em pleno século XIX Tal panorama contrastava com seu passado glorioso repleto de feitos únicos no concerto geral das nações que a colocou na vanguarda do progresso Em Bomfim o original povo português foi vigoroso altivo e brilhante posto que capaz de reconhecerse como tal mesmo sob o domínio estrangeiro sobrepujandoo e constituindo se numa nacionalidade perfeita para sua época assumindo também em poucos séculos um incontrastável poder em terra e absoluto nos mares Ao tempo de sua expansão graças à alentada capacidade de sua população Portugal ofuscou a história dos demais povos europeus sendo mostrado pelo historiador sergipano como um império dos mais possantes e fecundos coautor da Era dos Descobrimentos num desdobramento de ações que culminou com a conquista e colonização do vasto território americano denominado Brasil Entretanto neste inegável passado glorioso de Portugal vislumbravase uma série de erros e abusos por parte de seus governantes e de suas elites que findaram por lançar o país num inexorável destino tornandose incapaz do autossustento já no setecento A expropriação 246 HALBWACHS Maurice A Memória Coletiva São Paulo Vértice 1990 p 53 247 MASTROGREGORI Massimo Historiografia e tradição das lembranças In MALERBA Jurandir org A história escrita teoria e história da historiografia São Paulo Contexto 2006 p 70 123 das riquezas alheias foi o mecanismo encontrado para suprir as veleidades construídas ao longo dos séculos numa nação que se formou guerreira mas que adentrou no terreno fácil das aventuras e da depredação de tantos territórios acostumandose à prática parasitária que findou por minar sua energia criadora Na narrativa bomfiniana enquanto a América se desvencilhava do colonialismo sufocante de suas metrópoles européias 248 Portugal plasmavase em profunda inatividade social contaminado por uma intensa fraqueza alardeadora de sua incapacidade em manterse soberana e livre diante de outros povos A análise arguta daquele historiador tomou como referência a formação do estado português cujos desdobramentos históricos compuseram seu caráter final de uma forma tão profunda a ponto de ser transmitida às elites coloniais boa parte de suas distorções A personalidade social portuguesa seria pois resultante do entrelaçamento cultural possibilitado pela presença de romanos seguidos de visigodos alanos e suevos No entanto a presença árabe na Península foi determinante para a deformação do caráter português com suas práticas inescrupulosas calcadas num belicismo desenfreado e numa extorsão sem medidas Civilização expansiva e guerreira na construção bomfiniana os árabes impuseram ao coração português seu gosto em acumular o melhor das riquezas fruto das rapinas e dos saques sobre os vencidos Ao longo de séculos de contato a prática mercantil e a tributação de territórios foram métodos apreendidos pelos governantes portugueses249 vindo a tornarse a principal fonte de riqueza de príncipes e fidalgos pelos séculos seguintes à conquista da Ibéria realizada a partir das mesmas práticas do invasor Se a rapina para Bomfim fora apreendida pelos ibéricos no contato com os árabes da 248 Observese que Bomfim analisou a independência colonial como um processo de formação de nações carreado pela vontade soberana de suas populações e não como atos políticos dos governos metropolitanos como o fizeram Varnahgen e Capistrano de Abreu sob a égide do IHGB Para ele as independências das nações americanas foram produtos da luta social contra a exploração de suas metrópoles após séculos de exploração e genocídio A emancipação somente se concretizou quando as ditas metrópoles já haviam mergulhado na decadência absoluta 249 A respeito da recepção dos métodos dos muçulmanos pelos governantes portugueses Bomfim buscou mostrar o quanto a prática do saque se tornara comum entre os governantes portugueses Para o hisotriador tratouse de um dos processos de fazer receita o processo geral e Afonso Henriques inventou um seu novo genere pugnandi assaltar furtivamente os castelos árabes quasi per latrocinium No rol dos crimes da fidalguia daqueles tempos figura invariavelmente a pilhagem o roubo Quando faltam castelos sarracen os saqueiamse uns aos outros coisa que o estado de guerras sucessivas entre as próprias nações cristãs permite e favorece A guerra é um sistema de rapinas e a rapina para eles os reis portugueses se tornou uma ocupação normal Ibidem p 878 124 península o furto de idéias e de conhecimentos também foi acrescentado ao cariz português Esse furto é expressivo na decisão portuguesa de partir para o Oriente para África e a própria Índia territórios bem conhecidos pelos chamados sarracenos que abriram o mundo ao português desvendandolhes os segredos desses lugares O conhecimento obtido nesse contato foi para Bomfim decisivo na realização da chamada expansão ultramarina e que assim mostrada tirou o brilho da empreitada portuguesa por não ter nenhum ineditismo Se na Ibéria o português já demonstrava ter aprendido as práticas mouras tomandoas como se suas fossem lançado ao mundo o português tornouse um navegador por excelência e sua arte trazia em si a conquista a guerra o saque como parte da estratégia de expansão de Portugal Não obstante em Bomfim os avanços da técnica naval e dos instrumentos de navegação desenvolvido em Sagres só valeriam de respaldo à certeza da vasta e freqüente apropriação do conhecimento das idéias e dos projetos dos povos árabe presentes na Península De parágrafo em parágrafo Bomfim construiu um português despido de brios dedicado a satisfazer seus próprios desejos Se até então o modelo de historiografia vigente no Brasil representava o luso como homem heróico de honra distinção e coragem a partir de Bomfim tal imagem começou a ser desfeita Para dar suporte à sua tese faziase necessário provar que o português se igualava a um ladrão cruel um salteador que atravessara os mares para se impor contra os povos americanos apropriandose de suas riquezas e destruindo sua cultura assim como já o fizera em outros lugares do mundo aos quais chegara por ter aprendido a dominar os oceanos e mares A presença portuguesa em variados lugares se fez marcar pelos atos de covardia e ferocidade e no Brasil mais especificamente a conquista territorial se fizera pela violência e agressão contra os povos nativos e até contra a própria natureza do lugar dizimada para ceder espaço a uma agricultura perversa Estranho à terra o cultivo estabelecido pelos portugueses a empobrecia enquanto os lucros dali auferidos permitiam o levantamento de palácios suntuosos de catedrais forradas do ouro na longínqua metrópole ouro extirpado à força das minas e aluviões pelas mãos nodosas de homens mortos de fome e sedentos de justiça social A violência que marcou o processo colonizatório episódio bem explorado no texto de Bomfim lastreou sua consideração a respeito da total ausência de civilidade dos 125 portugueses comparandoos aos mesmos selvagens por eles chacinados na América Nem civilizado tampouco civilizador o português tinha como seu real intento apenas a ambição posto que houvesse se acostumado com a perspectiva de tomada de riquezas e tesouros deixada pelos árabes e pelas Cruzadas Só essa ambição justificava que os povos ibéricos tivessem se lançado ao mar tomando por simulacro da empresa colonial uma religião cujas práticas destruíam culturas e escravizavam povos Na historicização das aventuras portuguesas pelos mais variados lugares onde estiveram é que Bomfim corporificou o argumento inicial de degeneração da nação portuguesa que aos poucos se transformou num parasita sobrevivendo apenas das riquezas produzidas longe de seu território Para aquele historiador o português não tinha temores nem rédeas e só a lei da natureza o dominava O contato com povos díspares parecia ter aleijado seu caráter e o cariz altivo modificouse em pura prepotência o domínio dos mares tirara dele o respeito ao outro a quem sempre via como um ser inferior e pronto a ser dominado a ser posto ao seu serviço à sua disposição A riqueza das terras alheias deveria ser sua se necessário pela força à espada ou punhal Para que perder tempo em desatarraxar os brincos das mulheres quando era tão simples cortarlhe as orelhas Para que regularizar tributos monopolizar comércio coisas para o porvir quando se podia arrasar a cidade e levar todo o ouro de uma vez para bordo Tais indagações foram repetidas por Bomfim ao narrar o contexto das grandes navegações portuguesas em clara alusão à obra de Oliveira Martins250 Todavia como já afirmado anteriormente a pretensão de Manoel Bomfim era explicar os males que assolavam no início do século XX a América Latina males que para ele se originaram no sistema colonial Se no primeiro momento Bomfim reconheceu a grandiosidade de Portugal enquanto império colonial ele também não escondeu a decadência desse império e procurou explicar as causas que a originaram O conhecimento das causas da decadência do império português deveria servir para que se reconhecesse por analogia os diversos problemas do Brasil e da América Latina e que haveria solução para eles desde que se assinalassem os mesmos e houvesse uma ação para combatêlos Com esse fito Bomfim inovava na forma de escrever história apontando problemas e desenvolvendo soluções praticando assim uma história combatente no dizer 250 Ibidem p 267 126 de LeGoff251 Afastado propositadamente do alvitre historiográfico do IHGB aquele intelectual se esmerou em apontar a decadência portuguesa iniciada ao mesmo tempo em que se firmava a colonização brasileira de forma a destruir deliberadamente as representações existentes até então na produção intelectual nacional no concernente a Portugal Não havia na retórica bomfiniana os herois nem os agentes civilizadores que povoaram a história dos tempos coloniais na retórica dos historiadores do IHGB Havia contudo ambição desenfreada e total despudor pela vida humana proporcionados por um povo que em seu próprio território permitira que fossem eliminadas sistematicamente todas as aspirações de liberdade ao erguer um sistema de escravidão espiritual do porte da Inquisição Ao passo que os demais povos europeus252 completavam a sua evolução e se estabeleciam definitivamente aplicando as descobertas da ciência às reais necessidades da vida criando a indústria moderna normatizando o trabalho fundando a riqueza estável pela produção inteligente completando seu desenvolvimento econômico os portugueses foram mostrados por aquele autor como totalmente distanciados desse concurso de progresso Enquanto os ânimos fortalecidos pela ciência iam lutando e se libertando para atingir o estado de emancipação de espírito dos fins do século XIX em diversos países europeus os portugueses tornavamse na ótica bomfiniana alquebrados e corroídos tanto econômica quanto politicamente perdidos na sua ânsia de apropriação da riqueza alheia sem maiores preocupações com os avanços da ciência e da técnica A modernidade parece não ter encontrado espaço nas sociedades ibéricas segundo Bomfim e o desapego ao progresso científico e artístico foi apontado como predominante para a degradação dos Estados da península A Ilustração portuguesa para aquele historiador foi o marco inicial de sua deterioração aferrada tão somente às letras e ao bacharelismo a olhar com desdém os albores do cientificismo que inundava o Velho Mundo como se a ele pudesse ter livre acesso apenas a partir das riquezas auferidas de suas colônias Bomfim destacava não ser possível encontrar um único representante português ou espanhol entre os homens que fundaram a cultura moderna e dominaram a natureza ou naqueles que refizeram a filosofia racionalista que iluminou as gentes na conquista da justiça e da liberdade 251 Le Goff Jacques Combates pela história Lisboa Editorial Presença 1989 252 Entendase que a respeito desses povos o autor referenciava diretamente os franceses e ingleses cuja organização social sempre foi tomada como paradigma da modernidade pelos intelectuais brasileiros 127 Esse desencontro de mundos tão próximos esse caminhar eqüidistante das nações europeias subsidiou a argumentação de Bomfim ao destacar o quanto Portugal se aprofundara num processo degenerativo sem voltas se comparado ao robustecimento das demais nações do Velho Mundo Ao tempo que aquelas pouco ou nada eram no panorama mundial Portugal surgira coberto de glórias de fronte alteada pelos sucessos de suas descobertas e pela plenitude de seus domínios mundo afora Enquanto a Europa engatinhava para a modernidade Portugal já exibira uma organização social e política que servira de modelo Mas sua altivez se perdera ao só enxergar a pimenta e o açúcar como os luminares de seu presente e os albores de seu futuro Os lucros oriundos de suas experiências ultramarinas injetaram em seus governantes a loucura da ostentação majestática e fradesca que resultou numa nação de estufa253 ainda no século XVII arrastada por seus governantes a uma vida pedinte e miserável Em decorrência tornouse cem anos depois num país desolado e despovoado aferrado às suas colônias para sobreviver Parasiticamente254 Ao fazer uso da metáfora de parasitismo para esclarecer a relação de exploração e domínio da metrópole sobre a colônia causadora de assimetrias e desequilíbrios como a hipertrofia do Estado e a distância social e política entre o povo e a elite evidenciouse no texto de Bomfim a articulação entre a vida prática e a ciência Tal dinâmica refletiu a coerência entre os interesses cotidianos do historiador e as perspectivas de orientação e formas de representação do passado usadas por ele na composição do conhecimento histórico científico Sendo Bomfim médico por formação entendemos como natural seu interesse pelas representações biológicas das quais era um conhecedor largamente usadas e difundidas em seu tempo como evidente recurso homológico de análise social O uso de tal homologia em sua argumentação repetiu a prática de seu tempo ao fazer a conexão entre dado organismo biológico e o organismo social português considerando a justaposição entre um e outro255 Seu biologismo não era infundado visto que foi 253 O termo é do autor e pode ser encontrado em América Latina males de origem à p117 254 O recurso à metáfora organicista tem relação com autores como SaintSimon Comte Spencer e Durkheim além de Charles Darwin Haeckel Ribot e Tarde de quem tomou as noções de evolução hereditariedade instinto adaptação e imitação A respeito das metáforas utilizadas pelo medido sergipano ver UEMORI Celso Noboru Dominação e consentimento na obra A América Latina Males de origem de Manoel Bomfim História em Revista v 14 p 81100 Dez2008 255 Apesar de usar de tal analogia Bonfim rejeitava a aplicação à sociedade de conceitos biológicos e de categorias darwinistas como a luta pela existência e a lei de sobrevivência dos mais aptos pois entendia que o elogio da livre concorrência pelos evolucionistas quanto à afirmação das diferenças inatas entre as etnias 128 ressignificado como método de interpretação da vida social sem no entanto constituir uma identidade entre um e outro Para aquele autor Portugal adentrou na prática parasitária no momento em que se lançou ao mar em busca de um novo caminho onde pudesse ter acesso aos cobiçados produtos do Oriente que lhe valeram grandes lucros e pujante enriquecimento A esta fase Bomfim denominou de parasitismo heróico visto que o organismo social ainda não se sedentarizara destacandose como vanguarda entre os países vizinhos a darlhe exemplos de competência e destinação para liderança continental Era livre aquele Portugal que se lançara em busca de novidades e riquezas que modificaram a face da Europa alterando suas estruturas e ao mesmo tempo mantendo as de sua sociedade Era livre porque era uno indiviso e sua prática só o engrandecia posto que repetisse os feitos da antiguidade clássica ao apropriarse de riquezas alheias exibindoas e repartindoas com quem pudesse pagar Era livre aquele Portugal pois era independente de riquezas e lugares específicos tudo o que existia estava à sua disposição pois o Mundo era seu Seu heroísmo consistia no devassamento do desconhecido no desvendamento dos segredos de sítios exóticos no domínio de outras culturas na submissão de tantos povos às suas vontades Só aos livres esse heroísmo era permitido Tal liberdade contudo foi desfeita com a execução do empreendimento colonial obra que exigiu um agigantamento grotesco da nação que se tornava metrópole e que para tanto dividia seu próprio corpo como forma de dominar em absoluto o que até então só o fizera de forma relativa No caráter paralisante do chamado exclusivo metropolitano Bomfim ancorou sua metáfora biológica dandolhe novos significados a demonstrar a degeneração do organismo sociopolítico português aos poucos deformado pela prática exploratória que levou a efeito sobre a colônia americana parasitandoa As práticas e estratégias da metrópole sobre a colônia se assemelhavam para ele às ventosas do parasita a sugar tudo de onde fosse possível vislumbrar o enriquecimento estariam em flagrante contradição com as idéias do evolucionista Sobre a temática afirmara que Darwin nunca pretendeu que a lei de seleção natural se aplicava à espécie humana como o dizem os teoristas do egoísmo e da rapinagem In América Latina males de origem p 288 Segundo aquele autor a ideologia liberal e o método evolucionista se fundariam na transposição indevida para o campo social do conceito darwinista de luta entre as espécies o que levava à apologia da livre concorrência entre indivíduos Ao contrário do que diziam os evolucionistas a luta pela sobrevivência seria substituída na sociedade pelo concurso e solidariedade entre os homens e só poderia ser empregada em termos sociais em sentido figurado devido às relações de dependência e cooperação 129 posto que assim o fazia Portugal há séculos acostumado que fora à aventura e ao saque Àquele autor não importaram os desafios da empreitada os medos as mortes as doenças e todas as dificuldades superadas pelos colonizadores posto que bem decantadas por outros historiadores portugueses e brasileiros Sua tese foi às entranhas do processo colonizatório na tentativa de desmascarar o que até então não havia sido mostrado aquilo que não havia sido historicizado e compreendido em seu âmago Seu discurso se configurou como profunda crítica ao discurso ideológico de sua época erguendose solitário como um contradiscurso disposto a fazer aflorar as incongruências da produção intelectual daquele momento Tomada como a principal categoria de análise o parasitismo permitiu que Bomfim pensasse a sociedade colonial como uma estrutura na qual os indivíduos e grupos tinham funções mas não vontades pessoais Havia uma racionalidade subjacente moldando as vontades o desejo único de se apossar da riqueza produzida como objetivo único em todas as classes e grupos O parasitismo era o sujeito que controlava como uma força exterior mas nunca transcendental que determinava e submetia a vida e o comportamento de todos nos dois lados do Atlântico de forma a garantir o funcionamento e a conservação da máquina de produzir e extorquir riqueza Em Bomfim o vocábulo que definia as feições do empreendimento colonial que demonstrava seu espírito que se adequava às práticas do exclusivo metropolitano era Exploração Uma exploração típica dos parasitas em relação às suas presas numa prática desdobrada em variados matizes e iniciada na colônia americana com a chamada preação indígena originada no contato com as práticas tribais do continente negro A análise do processo colonial realizada por aquele intelectual abandonou a discussão de civilização tão acalentada pelos historiadores do IHGB para adentrar no terreno da exploração do homem pelo homem introduzindo o enredo da teoria marxista ainda pouco recepcionada pelo pensamento social brasileiro no início do século A perspectiva marxista se revela na narrativa bomfiniana no embate entre parasitas e parasitados de explorados e exploradores numa alusão direta à luta de classes decantada no Manifesto Comunista Contudo aquele autor não se limitou a isso Em nosso entendimento a principal preocupação de Bomfim consistia em desmistificar tanto ideológica quanto cientificamente o pessimismo das teorias raciais justificadoras dos problemas existentes nas excolônias ibéricas Ao usar a homologia do parasita o autor não abandonou o enredo 130 marxista que continuou inserido de forma difusa em seu texto mas o fez indo além ao mostrar o parasitado como um organismo maior superior rico e capaz de sustentar o parasita o Brasil e a própria América seriam detentores de tais adjetivos Da mesma forma sua linguagem construiu os Estados metropolitanos como parasitas inferiores minúsculos fracos num certo sentido e acima de tudo dependentes Abertamente ele foi apologético do Brasil e para sêlo construiu uma imagem profundamente negativa de Portugal num tempo em que a lusofobia já dominava a população nacional considerada portadora de um caráter inferior do qual resultavam os muitos problemas nacionais Para Bomfim a verdadeira origem dos profundos males do continente tinha no colonialismo suas raízes históricas combinada com a dominação interna imposta pelas elites dirigentes Entretanto foi a ampliação da prática parasitária que ocasionara a degradação de Portugal que sedentário e alijado do processo produtivo europeu em escala crescente e cada vez mais dependente da exploração do trabalho em suas colônias decaiu em sua própria força Uma força que nada mais era que o disfarce de sua incapacidade de lutar contra a natureza de não ter necessidade de apurar os seus processos nem de por em contribuição a inteligência por não ter aprendido a tirar da natureza sua subsistência e sim do trabalho de outro grupo Entranhada no âmago do tecido social português essa prática se alastrou a todos os âmbitos da sociedade portuguesa inaugurada por sua monarquia sobre os súditos que se destinaram a dar sentido à colônia com seu trabalho explorandoos a partir da cobrança de tributos dízimos e monopólios num desdobramento incomum e avassalador O Estado português assim tornarase um parasita da colônia americana fato repetido pela Igreja que cedo se transformara em parasita direta da colônia e do Estado português Com a nobreza sucedia a mesma coisa ao parasitar o trabalho escravo nas colônias ou parasitando o próprio Estado por meio de sinecuras e pensões Quanto ao português comum empenhado na faina colonial esse também fez uso dessa prática ao submeter pela força o indígena obrigandoo a trabalhar e posteriormente quando o genocídio e a belicosidade dos sobreviventes impediram a continuidade dessa exploração ao lançarem mão do trabalho do africano reificado no eito Em tal contexto Bomfim definiu os principais traços do português colonizador ascendente direto da elite brasileira que herdara seu nome e por conseguinte sua tradição O autor o descreveu como um homem que sonhava com 131 O lucro imediato O colono encontrou na escravidão o processo sonhado algumas centenas de escravos e um chicote para cada turma eis tudo que era preciso Ele não tinha que apurar a inteligência nem desenvolver atividade Se os lucros não lhe pareciam bastantes era só aumentar o número de escravos Já ignorante já retrógrado por educação como ele iria pensar em modificar os processos de produção aperfeiçoar instrumentos de trabalho dar tratos aos talentos para achar lavouras mais remuneradas quando tinha um meio seguro infalível e simples crescer o número de escravos Tiravase ao escravo quatorze dezesseis horas de trabalho por dia mas esse trabalho se fazia segundo processo tão grosseiros e primitivos que não produzia o que se poderia produzir em três ou quatro horas de trabalho inteligente Que importava isso ao colono Ele via as coisas em grosso O provérbio português Antes pilado a pilão que comprado a tostão era sua divisa O essencial era que a receita viesse exonerada de qualquer despesa Àquelas inteligências sumárias este fato se afigurava como garantia absoluta do bom negócio tudo é lucro Ideal256 Embora o autor tenha demonstrado um colono empenhado na faina colonial interessado nos ganhos produtivos fez questão de enfatizar o cariz sádico dos mesmos denunciando o trato brutal do chicote e o exagero no uso da força física e da tortura sobre a massa escrava Essa prática atroz oriunda dos métodos de uma sociedade marcada pelo descaso com a dor e o sofrimento humano já abordados por Capistrano de Abreu foi diagnosticada por Bomfim como parte do processo parasitário ao se apossar do organismo para dele retirar vantagens Para tal fim não se fazia necessário procedimentos mais refinados que o emprego do pau do pano e do pão Da mesma forma também realçou um português desinteressado dos avanços de seu próprio tempo que inaugurou a escravidão na América quando a Europa se livrava dos estatutos da servidão por antever no assalariamento maiores vantagens A narrativa bomfiniana impôs a compreensão de que tais vantagens não eram significativas para o português imerso numa cultura que centrava o lucro embora distanciado de maiores investimentos Ao tempo em que o capitalismo deu seus primeiros passos como sistema econômico e que a denominada acumulação primitiva alçara a condição de estágio preparatório para a revolução industrial os portugueses optaram pela escravidão dandolhe um novo significado Mesmo que aquela prática proporcionasse grandes lucros Bomfim não a entendeu como uma nova forma de acumulação apenas a analisando sob o viés da 256 Ibidem p 1467 132 dominação e exploração que marcava a atividade parasitária posto que os lucros do período nunca fossem revertidos em prol de outros empreendimentos senão a compra e venda da massa humana transportada nos tumbeiros para mourejar nos canaviais e nas minas A fixação na prática de auferir vantagens sem maiores investimentos foi justificativa para que aquele autor aprofundasse sua apreciação negativa sobre os lusos Para Bomfim fora a própria cultura parasitária arraigada em Portugal que aleijara seu povo empobrecendo seu pensamento castrando sua habilidade criativa anulando sua capacidade de reinventarse sem tencionar ajustarse aos avanços científicos de seu próprio tempo Em decorrência tornarase ignorante alienado incapacitado diante das exigências de um mundo em plena mutação ofuscado pelo brilho do ouro e dos diamantes e embriagado pelo cheiro doce das caixas de açúcar A retórica bomfiniana que mostrava um português ignorante marcado pelo atraso e pela inexistência de instrução formal fazia eco ao discurso antilusitano que destacava o analfabetismo e as dificuldades com as contas enfrentadas pelos caixeiros lusos e cujas falhas resultavam na multiplicação de anedotas e chistes impiedosos pela população em geral contra aqueles imigrantes A ressignificação dessa visão preconceituosa pelo autor por sua vez é demonstrativa do quanto o sergipano foi influenciado pelas práticas de seu tempo no ambiente do Rio de Janeiro principal reduto dos portugueses numa América que outrora lhes pertencera A colônia na visão de Bomfim nada mais fora que um rico organismo infectado por um parasita que lhe minara as forças deixandolhe com deformidades que careciam de cuidados sob pena de transformaremse em aleijões permanentes A metrópole por sua vez fora um dia uma nação briosa formada por um povo valoroso que fora conduzido por seus governantes a uma prática parasitária inicialmente perpassada por ações heróicas que em parte lhe dignificavam Não obstante o aprofundamento dessa prática dera uma nova feição ao antigo Portugal heróico que ao investir na empresa colonial caíra no sedentarismo doentio que findou por transformálo num Estado decadente improdutivo a sustentarse da exploração da mão de obra fosse aquela acorrentada nos tumbeiros ou pela prática da tributação Segundo o autor o parasitismo impunha três efeitos malévolos o enfraquecimento do parasitado com a exploração de uma classe sobre as demais ocasionando gritante desigualdade as violências exercida sobre ele obrigandoo à continuidade de serviços para 133 os parasitas seja no âmbito individual seja no âmbito nacional e a adaptação do parasitado às condições de vida que lhe eram impostas suplantada numa certa paralisia social Tais efeitos ocorriam em todas as facetas da vida coletiva e podiam ser notados em várias dimensões da sociedade brasileira Mas como Bomfim explicou o parasitismo português em relação à sua colônia americana Como ele esclareceu a prática espoliativa do Estado Português em relação ao Brasil O autor foi claro ao demonstrar que no plano econômico e administrativo o Estado em Portugal no concernente à sua colônia americana faltava muito para que se reconhecesse como Estado moderno garantidor protetor órgão da nação seu defensor e representante Os serviços públicos eram nulos e da máquina administrativa constava tão somente o fisco seguido pelas tropas e pelos justiceiros do rei Com tal análise Bomfim seccionava o Brasil colonial do Portugal metropolitano mostrandoos como diferentes desunidos pela própria condição de espoliação perpetrada pelo segundo contra o primeiro Não havia portuguêsbrasileiros ou lusoamericanos no contexto colonial como fomentado amplamente na historiografia oitocentista Havia tão somente parasitas e parasitados exploradores e explorados organismos distintos embora um contivesse o outro para sua própria desgraça Tal destino podia ser analisado no plano social brasileiro onde o parasitismo português atuou de forma profunda nomeadamente na vida intelectual e moral daquela nação De livre e indivisa sua população se tornou heterogênea instável fragmentada quase uma sociedade de castas Seus traços se replicaram por conseguinte na sociedade parasitada ao que Bomfim denominou de hereditariedade social seja a herança do caráter da metrópole de suas leis suas instituições seus traços psicossociais daí decorrendo os grandes problemas existentes no Brasil do início do século Tais problemas não poderiam ser encarados como fruto de uma sociedade marcada pela mestiçagem bem ao contrário não fora a questão racial que definira o caráter nacional mas as imposições e transposições originárias de uma metrópole defeituosa Essa herança social findou expressa no conservantismo próprio das sociedades latino americanas impondolhe uma paralisia impeditiva de mudanças e que se tornou mais problemática por ser próprias das classes dirigentes clamava Bomfim Tais classes em decorrência se opunham a qualquer inovação ou mudança e o pensamento político nacional consistiu sempre em encontrar estratégias para impossibilitar quaisquer tentativas 134 de reforma De acordo com o autor das qualidades transmitidas pelos portugueses aos brasileiros a mais sensível e interessante também a mais funesta foi o conservantismo não se podia dizer obstinado por ser em grande parte inconsciente mas que se poderia chamar propriamente um conservantismo essencial mais afetivo que intelectual 257 Tal conservantismo seria o elo a unir Brasil e Portugal mesmo depois da separação e que lastreava um ponto comum na identidade das duas nações Esse conservantismo do qual falou Bomfim refletiuse na educação bacharelesca tão estimada pelas classes dirigentes nacionais fato que as levou a interpretar os problemas estruturais sem buscar entender as condições históricas nas quais encontravamse também inseridas258 Vêse assim que Bomfim era uma excelente observador da realidade nacional contestando o pensamento hegemônico brasileiro e latinoamericano como um todo por entender sua formação elitista seu nascedouro de aleijão cujos desdobramentos findariam por impedir o desenvolvimento do continente de forma que o mesmo nunca alçasse os ares de civilização que ainda não tinha mas que era ansiada a todo custo 42 O caráter predatório e dissoluto dos Bragança A crítica às elites dirigentes do Brasil marcou grande parte dos escritos históricos de Bomfim que problematizara sobre o tema com o fito de investigar a origem da mesma forjada desde a colônia e que se tornou governante do Brasil após sua independência259 257 De acordo com Antônio Cândido o conservantismo foi uma das ideias fundamentais de Manoel Bomfim talvez a que seja politicamente mais importante do seu livro e sem dúvida uma das mais fecundas e esclarecedoras para analisar a sociedade brasileira tradicional assim como as suas sobrevivências até nossos dias Cf CÂNDIDO Antônio Radicalismos Estudos avançados Vol 4 nº 8 1990 p 13 258 Segundo BARONI o sistema educacional brasileiro foi seriamente afetado pelo bacharelismo português e por decorrência sempre valorizou a instrução erudita desvalorizando os saberes do povo Para o autor tal disparidade findou por colocar o indivíduo ao nível da produção intelectual de sua época mas não permitiu que desenvolvesse o espírito de observação tão necessário para refletir sobre as especificidades de seu meio Cf BARONI Márcio Henrique de Morais Entre o continente e a nação São Paulo Annablume 2004 p 76 259 Rodrigo Ricúpero se voltou também a entender a formação da elite colonial esclarecendo nuanças sequer aventadas no trabalho de Bomfim sobre a dita formação O autor deu ênfase às estratégias da coroa portuguesa para manter na colônia a sua face visível materializada em seus vassalos residentes que em troca de benefícios no jogo patrimonialista de honras e mercês levaram a cabo a empreitada colonial Fora m esses residentes o germe da chamada elite colonial ancorada na tríade terratrabalhopoder que por si só já os transformava em agentes de dominação portuguesa restando aos mais humildes interessados em viver na colônia se engajarem como soldados em uma campanha qualquer para poder ali chegar A análise daquele autor desmistifica a corrente de pensadores brasileiros que ajuizava os súditos portugueses que fizeram a colonização do Brasil como apenas infames e degredados de forma a reafirmar a inferioridade moral da 135 Para tanto indagou Donde veio o que valem os que conduzem esta pátria 260 Seu interesse pelo tema brotou da decepção pessoal para com os rumos tomados pelo país em plena consolidação da República Nascido nos tempos da monarquia Bomfim aderiu à propaganda republicana ainda bem jovem e sempre defendeu aquele sistema de governo Não obstante ao testemunhar no panorama político republicano as mesmas desídias existentes no sistema anterior desencantouse ante aquilo que chamou de degradação dos costumes Seu texto evidenciou um desabafo e uma contestação à política nacional e seus desdobramentos pois se anteriormente o historiador antevira um futuro condigno para o Brasil desde que o país se esforçasse para superar os vícios contraídos desde os tempos coloniais naquele momento revelava um desencanto com a direção que o Brasil tomara afirmando da impossibilidade de divisão dos destinos nos planos da normalidade261 população nacional Por outro lado mostra que desde os primórdios da colonização já havia notável diferença no trato da Coroa Portuguesa em relação aos seus súditos havendo aqueles privilegiados assim como outros totalmente desassistidos RICÚPERO Rodrigo Op cit p 99100 Sobre o mesmo tema Luís Filipe Alencastro elencou dois tipos coloniais distintos o homem ultramarino e o homem colonial de forma a diferenciar os vassalos reais que participaram do processo colonial Enquanto o primeiro atuava pelo Império para aproveitar as recompensas na metrópole o segundo circulava por várias regiões mas apostava sua promoção social e econômica em uma determinada região do Império No conjunto da sociedade Alencastro esclareceu ser necessário incluir várias categorias de vassalos com pretensões bem mais limitadas que os primeiros e dispostas a atuar em áreas restritas com visto nas mercês concedidas pela Coroa O autor é taxativo ao afirmar que eram essas mercês fossem materiais ou simbólicas sumamente importantes na transferência de valores estamentais da metrópole para a colônia onde se fazia mais que necessário recriar as hierarquias sociais vigentes em Portugal com a promoção de setores da baixa nobreza ou mesmo plebeus que passaram a formar o topo da sociedade colonial embasados nas honrarias e propriedades conferidas pela Coroa garantindose assim o substrato econômico para que essa elite em formação pudesse desempenhar as tarefas que lhe cabiam na empresa vinculados à administração direta e indireta de partes do Brasil Para Alencastro porém os homens ultramarinos pouco se interessavam pelas mercês posto já serem nobres e só buscavam principalmente benefícios materiais no Reino para lá voltando ou dirigindose para outras áreas do Império tão logo concluíam suas tarefas na colônia Ao contrário o homem colonial via nas mercês mais importantes terras e cargos administrativos e hábitos da Ordem de Cristo e os foros de cavaleiro os elementos necessários para a montagem de seu patrimônio representativo dos grupos que formariam a leite colonial no Brasil In ALENCASTRO Luís Felipe O trato dos viventes formação do Brasil no atlântico Sul séculos XVIXVII São Paulo Companhia das letras 2000 p 103 260 Bomfim Manoel O Brasil Nação Rio de Janeiro Record 1988 p 40 261 Em fins dos anos vinte tempo da escrita de seu trabalho só publicado em 1931 o país era dominado por oligarquias regionais coronéis que determinavam as leis e a justiça em sua própria região que nomeavam os juízes e que diziam quem deveriam ser os párocos nas localidades por eles dominadas As eleições eram fraudadas o eleitor sofria coação para votar em candidato determinado pelos líderes políticos das regiões as verbas federais eram direcionadas para os interesses desses mandatários cuja hegemonia somente foi quebrada com a chamada Revolução de Trinta Sobre a vida política nacional do período Bomfim assim referenciou sua percepção Assisti se bem que obscuro e humilde a todas as lutas transes e contendas da implantação do regime republicano para ver ao cabo de um decênio largaremse os homens à ceva bruta 136 O rumo incerto no qual enveredara o Brasil resultava para Bomfim das escolhas e da postura de sua elite política organizada para dessangrar o país voltada apenas aos interesses próprios e com o fito único de auferir vantagens para si e os seus O parasitismo assim voltava à tona como meio de análise daquele historiador desta feita sobre parte da população brasileira herdeira direta do sangue e das qualificações que tipificavam a corte portuguesa portadora dos mesmos vícios ostentados pela elite nacional e reconhecida por Bomfim como a expressão máxima do parasitismo português Foi no sentido de denunciar a corrupção dessa elite que Bomfim elaborou uma tessitura entre seus integrantes e os Bragança a quarta dinastia dos reis portugueses A vontade dos governantes nascidos naquela casa imperou no Brasil desde 1640 quando ascenderam ao trono português perdurando até 1889 com a expulsão dos seus representantes e a extinção do sistema monárquico no Brasil Para Bomfim tal interregno representou um tempo de submissão no qual a torrente das práticas exploratórias bragantinas invadiu o Brasil nele se fixando de forma traiçoeira capaz de se reproduzir e se fazer identificar como natural do lugar262 O produto dessa reprodução naturalmente poderia ser identificado com facilidade na elite que dominava o panorama nacional que fossada foi a lameira onde desapareceu o pouco de brio dos dirigentes E tanto que consagrada indiscutivelmente a República nos últimos vinte anos vimola definida na inteira degradação dos costumes políticos Já nem importam os nomes que eles não modificariam esse parecer Contudo ensinaram muito esses vintes últimos anos tudo que se poderia aprender de um mundo totalmente podre Aprendi então como os nossos dirigentes são incapazes de compreender e realizar a democracia como temem a liberdade que nunca conheceram aprendi como se mostra a degradação de uma classe por definição do escol como se organiza o Estado para a exclusiva injustiça até a torpeza e o roubo como é preciso não ser honesto nem sincero nem apto Vi como evolui a corrupção como se consagra a infâmia e a ignorância como é livre o poder para atentar contra as mais humanas das tradições brasileiras a da bondade e da compaixão E assim se fez o esquema das qualidades precisas a um político para ser estadista na República Brasileira Ibidem p212 A visão do autor teve amparo em sua larga experiência e proximidade com os próceres do poder em face de seu próprio lugar social Oriundo de família rica do Nordeste do país o médico Bomfim falava de um lugar privilegiado embora contraditoriamente contra os de sua própria classe 262 Observese que aquele autor enfatizou o poderio dos Bragança no Brasil e sua provável infecção pela citada dinastia apenas nos dois primeiros séculos da colonização Para ele esse foi o espaço de tempo suficiente para que se germinasse a idéia de pátria na colônia posto que nos setecentos multip licaramse os movimentos e levantes contra a metrópole fruto da consciência plena de que o Brasil não era uma extensão de Portugal mas um celeiro de onde os lusos tiravam seu sustento sem pedir nem pagar Assim ele deu visibilidade à sua idéia de que a América Portuguesa era apenas uma criação dos historiadores que deturparam as tradições ao falsearam a história trazendo para o Século XIX apenas o sentimento de nação brasileira quando este já existia desde os setecentos Sendo Bomfim um republicano de primeira ordem explicase por este viés seu esforço de fazer valer a inexistência ou a pequena existência de uma América Portuguesa ressaltando a experiência de um Brasil uma comunidade imaginada em si e para si com todas as implicações que a nacionalidade pressupõe Buscava assim retirar da memória nacional uma 137 Para Bomfim o mal não advinha de um sistema político exclusivo posto defender repetidas vezes que Portugal tivera na dinastia de Avis uma liderança segura capaz de ter lançado com destaque aquela nação no contexto europeu mesmo que moldados na guerra e na violência O mesmo não podia dizer dos Bragança263 os grandes responsáveis pela dissolução de um Portugal que de heróico perdeuse num vazio sem volta por ser liderado por uma estirpe marcada pela ganância e pelo enriquecimento sem critério tornandose apenas um Estado parasitário independente da genialidade de seu povo e de sua formação Assim sua oposição não se dava contra o sistema monárquico exclusivamente mas especialmente contra os próprios Bragança cujo último remanescente governara o país durante a juventude do historiador quando aquele integrava as hostes dos que viam a república como o remédio necessário para sanar os males da sociedade brasileira oitocentista A questão em pauta não estava atrelada apenas a um sistema político mas às idiossincrasias de uma linhagem marcada fortemente por tantos defeitos de caráter que os legara sem maiores dificuldades aos seus descendentes políticos mesmo que nascidos em outro contexto De antemão já se depreende que aquele autor tornara a fazer uso do conceito de herança social para desenvolver seus argumentos sobre os graves defeitos por ele apontados nas classes dirigentes nacionais Seu ponto de vista sobre esse espólio foi mostrado de forma indubitável no excerto seguinte Sobre a energia renascente de germes vivazes a deprimente influência de uma direção que foi desde logo contaminação estiolamento corrupção irresistivelmente operante diabolicamente perversa porque veio de cima Recebendo em fatalidade de herança o que de útil pudesse haver na alma portuguesa o Brasil teve que herdar a tradição e as normas dos dirigentes dali a sorte de uma nação feita com a direção dos mesquinhos governantes teve de ser o fermentar de misérias em que se resume nossa vida nacional Não houve colônia que tanto sofresse das condições de governo em que se achava ao tornarse soberana e livre Depois de ter sido durante quase dois séculos carne viva para a varejeira simbologia monarquista intrinsecamente ligada à história colonial pautada pelo engrandecimento e valoração dos monarcas portugueses como esteio de sagração nacional 263 Observese que Manoel Bomfim destacou a prática exploratória dos Bragança como um legado mental maldito repassado à elite brasileira marcadamente gananciosa e despida de preocupações para com o destino coletivo Não obstante o autor reconhecia notável distinção entre os Avis e os próprios Bragança desconsiderando a existência da linhagem de sangue entre as duas dinastias que juntamente com a Afonsina originaramse da casa ducal de Borgonha Ao distanciar as práticas de governança dos Avis da dos Bragança Bomfim resvalou no próprio argumento de transmissão de mentalidade por ele utilizado à farta contra a extinta casa imperial brasileira e a elite nacional uma vez que considerava os Avis uma liderança segura virtude inexistente nos descentes brigantinos 138 lusitana o Brasil acabou incluindo em sua vida o próprio Estado que de lá emigrara na plenitude da ignomínia bragantina264 A degradação do organismo social brasileiro assim teria ocorrido em razão do caráter de sua formação histórica que lhe imprimiu o caráter de celeiro português de onde tudo se tirava e nada era reposto A prática dos dirigentes portugueses por sua vez não cessou quando extinto o pacto colonial assumindo outras dimensões quando da mudança da corte o que ocasionou extorsões de outra natureza num círculo vicioso pelo qual os governantes portugueses nunca perderam seus benefícios o que não se pode afirmar em relação ao próprio Portugal Tal afirmação a nosso ver marca o aprofundamento da tese inicial de Bomfim ao adentrar na exploração bragantina quando radicada em terras da excolônia O Brasil assim como toda América Latina parasitado pela metrópole que o colonizara infelizmente findara por reproduzir um outro parasita sua própria elite mesmo que livre do primeiro Se em América Latina Bomfim se prendera à formação da sociedade brasileira aleijada pelo abuso constante do processo colonial num segundo momento o historiador se voltou a mostrar que os abusos continuaram a ocorrer a exploração e os malfeitos não cessaram haja vista a continuidade do mesmo caráter dos dirigentes portugueses nos governantes brasileiros O parasita não seria mais as gentes de Portugal mas seus reis e mandatários representados pelos fugidos de 1808 que aqui se acoitaram265 e que antes mesmo de habitarem as terras brasileiras originaram a elite local imersa nos mesmo vícios que os aprofundou pelo contato direto com a corte brigantina na capital do recém vicerreino Para aquele historiador faziase necessária a reavaliação da história do país nomeadamente a partir de sua independência cujo processo havia sido falseado tanto no plano político quanto nos escritos históricos E foi no intuito de denunciar tais falsificações266 que Bomfim se debruçou a reconstituir a formação nacional a partir de uma tônica na qual os Bragança eram elementoschave na compreensão das desordens 264 Ibidem p 41 265 Ibidem p 140 266 Sobre as considerações do autor sobre a falsificação da história brasileira por seus historiadores sugerimos ver O Brasil na História deturpação das tradições degradação política Rio de Janeiro Francisco Alves 1930 Segundo Rebeca Gontijo a reinterpretação da história brasileira sofreu significativa demanda no início do século XX momento em que Bomfim se dispôs a fazer uma reflexão sobre a história e a historiografia nacional mesmo que seu projeto não fosse metodologicamente guiado ou que o mesmo propusesse uma teoria da história GONTIJO Rebeca Manoel Bomfim e a escrita da história do Brasil Recife Massangana 2010 139 características da sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX Observese que mesmo voltado à reinterpretação do nacional Manoel Bomfim não conseguia desvincular sua análise da história de Portugal nem se afastar da influência portuguesa como uma dominante na formação da sociedade brasileira Assim ao se referir à presença de D João VI no Brasil com sua corte Bomfim não interpretou aquele momento pela tradição oitocentista que o considerava especial ímpar na formação da nacionalidade Para o historiador O que se passou com o Brasil com D João VI se medrou foi abafando mentindo infectando oprimindo dissolvendo as boas energias sociais desfigurando as formas naturais e salutares da nação deixando sobre elas as suas estratificações de misérias estratificações que nos cobrem até hoje Quem negará que os governos passam sobre o nosso Brasil no mesmo cortejo de mentiras abjurações extorsões e despotismo em que viviam os torpes dirigentes das épocas de D João V e D Maria267 A revisão de Bomfim à historiografia tradicional pode ser verificada em sua crítica aos governantes portugueses e àqueles que administraram a colônia a partir das ordens desses governantes Essa ótica pode ser tomada como inovadora pois mesmo mantenedora de uma proposta historiográfica na qual os destinos do Brasil estavam sempre atrelados ao passado colonial e a Portugal emergiu como uma ressignificação do papel da monarquia lusitana no contexto colonial fugindo do estereótipo consagrado pelo IHGB Assim Bomfim usou de uma releitura da história da colônia para revelar dirigentes impiedosos distanciados dos anseios populares cujos governos se pautaram mais pelo excessivo rigor na tributação e na aplicação de penas que no cuidado e na defesa dos interesses da população colonial Por tal viés Bomfim denunciou também que as mesmas práticas se reproduziam com natural facilidade no contexto republicano cujos dirigentes se destacaram pelas mesmas mentiras e despotismo dos tempos coloniais Embora desiludido com os rumos tomados pela política nacional Bomfim demonstrou que a doutrinação republicana ainda encontrava ecos em seus ouvidos posto tomar como o grande exemplo dos males da nação D Pedro I herdeiro do trono brasileiro 268 Em 267 Ibidem p 46 268 Necessário destacar que a proclamação da república no Brasil se pautou na implantação de um imaginário denso voltado à legitimação do regime e que tinha por propósito atingir a população sob a forma de 140 subcapítulo intitulado O Bragança ao Natural Bomfim realçou sua tese contra o artífice da farsa da Independência de conveniência tramada entre pai e filho com o intuito de enganar os constitucionalistas portugueses O Brasil feito soberano nas grosseiras tramóias do filho de D João VI teve de consumir o primeiro decênio de sua vida autônoma em debater se no atoleiro a que o atiraram a título de libertálo E é por isso que se rebuscamos os como e os porquês da nação brasileira devemos insistir ainda nos processos e atos do príncipe embusteiro a quem nos entregamos seguindolhes os efeitos até que em 1831 cai pela gangrena o que já era esfacelo Esses longos nove anos patenteiam a miséria política do Brasil inoculado de bragantismo Se não fora a dolorosa depressão resultado da peçonha que nos embebia senhora dos seus sentidos a Nação desde logo o teria eliminado porque o filho de Carlota Joaquina não tinha nem a coragem nem o talento necessário para o inteiro efeito da maquinação que urdira Houvesse nele qualquer valor de estadista teria construído um Estado forte e eficaz pois que se fez chefe de um povo na crise da juventude e da liberdade Em vez disso Pedro I foi um tampo sobre o Brasil que se erguia Foi apenas um Bragança Faltavalhe tudo que distinguisse o estadista heróico do simples aventureiro velhaco269 O discurso antilusitano de Bomfim imputado então à dinastia bragantina parecenos eivado de um antagonismo só justificado pelo republicanismo do autor tamanho o ódio destilado em suas palavras contra D Pedro I cuja memória firmada até final do século símbolos alegorias rituais e mitos complementares à própria ideologia do sistema Entre a variada simbologia utilizada pelos republicanos não se pode deixar de destacar a criação de um novo panteão de heróis bastante diferenciado daquele criado pelos historiadores do IHGB portugueses em sua maioria No seu bojo oportunamente vigorava a figura do antiheroi e este não poderia ser outro senão D Pedro I cuja biografia foi aos poucos desconstruída pela propaganda republicana elaborada no bojo do próprio Império mesmo diante da severa restrição legal desde o chamado Primeiro Reinado 18221831 Naquele período existia proibição imperial de se promoverem ataques à figura do imperador e promover as idéias republicanas o que forçava os jornais ao uso de artifícios para publicizar atos e posturas de D Pedro I que repercutiam de forma extremamente negativa em sua imagem e que findaram por ser diretamente associadas ao mesmo de forma definitiva e absorvidas plenamente pela historiografia do regime A respeito ver NEVES Lúcia Maria Bastos MOREL Marco e FERREIRA Tânia Maria História e Imprensa Representações culturais e práticas de poder Rio de Janeiro DPA 2006 LESSA Mônica Leite FONSECA Silvia Carla Pereira de Brito Entre a Monarquia e a República Imprensa pensamento político e historiografia 18221889 Rio de Janeiro EdUERJ 2008 FONSECA Silvia Carla Pereira de Brito A idéia de República no Império do Brasil Rio de Janeiro e Pernambuco 18241834 Tese de doutorado em História Universidade Federal do rio de Janeiro 2004 CARVALHO José Murilo de A Formação das almas O Imaginário da República no Brasil São Paulo Companhia das letras 1990 ALVES Caleb Faria Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano Bauru EDUSC 2003 269 Ibidem p 48 141 XIX era do príncipe que livrara o Brasil dos grilhões portugueses E foi contra essa memória historicamente construída que Bomfim se voltou ao considerar como um engodo a declaração de independência nacional promovido entre D João VI e Pedro I num acinte aos diversos movimentos emancipatórios ocorridos desde o setecento e liderados por brasileiros270 Tais movimentos foram violentamente combatidos resultando em enforcamentos degredo e prisão dos seus líderes A farsa da independência bragantina para Bomfim era um desrespeito aos brios nacionais construída com o intuito de fraudar os dois lados do Atlântico pois o que existia na intenção de Pedro I era tão somente desunir para unir mais adiante mantendo o poder dos Bragança a todo custo em ambos os territórios numa estratégia familiar demonstrativa dos interesses privados de seus membros em detrimento dos interesses das duas nações As variadas questões que marcaram o Primeiro Reinado foram usadas por Bomfim para justificar a inexperiência política do então imperador assim como seu caráter violento pouco conciliador marcado por uma alma tingida no absolutismo de um governante ausente das grandes questões sociais com ações claramente demarcadas pelo interesse pessoal Uma das mais vívidas questões sobre a estratégia exploradora dos Bragança quando da feitura da Independência foi o pagamento de vultosa indenização paga a Portugal que forçou o Brasil a se endividar junto à Inglaterra fornecedora do empréstimo de dois milhões de libras esterlinas A sangria econômica ocasionada por tal endividamento teve severas repercussões na vida nacional já abalada pelo levantamento total das reservas monetárias quando do retorno de D João VI a Portugal em abril de 1821 A negociação bragantina de reconhecimento da independência pelos demais países europeus também foi 270 É preciso recordar que o republicanismo havia sido a principal corrente ideológica entre os revoltosos de Minas Gerais em 178889 dos alfaiates baianos em 1789 e em 181719 em Pernambuco assim como durante toda a década de 1820 O problema é que em se tratando de Brasil todos esses movimentos republicanos foram ou ao menos poderiam ser interpretados como revoltas regionais contra a autoridade centralizada e uma ameaça à integridade territorial da América Portuguesa O sistema de monarquia centralizada estabelecera uma forte presença institucional desde 1808 e esse fator foi determinante no sucesso da manutenção do império que desbravou com ferocidade qualquer intenção nesse sentido Conforme MAXWELL esses movimentos foram encarados pela elite local como ameaças à ordem social sofrendo contestação por parte da mesma que se uniu fortemente em defesa do trono nomeadamente os proprietários de terra para quem o republicanismo sempre fora associado a uma liberdade que talvez chegasse à igualdade o que causaria sérios problemas numa sociedade hierarquizada em termos sociais e raciais Cf MAXWEEL Keneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da Independência In MOTA Carlos Gulherme Op cit p 177 e seguintes 142 abordada por Bomfim como exemplar da incapacidade política do então imperador que não hesitava em favorecer os interesses externos em desfavor do Brasil por ter profunda convicção ser este o seu destino o de provedor de toda Europa Os grandes enclaves financeiros de seu reinado foram mostrados como a prova viva de sua incompetência política aliado ao desejo vivaz do sangue bragantino em explorar Foram muitos os argumentos de Bomfim que solidificaram sua análise sobre a estratégia política dos Bragança para dominar Portugal e Brasil concomitantemente mesmo quando a conjuntura política se erguia como um impeditivo Nesses percebese o esforço do autor em lapidar adjetivos a respeito do imperador de forma a demolir o mito fundador da nacionalidade brasileira271 Na construção de Bomfim D Pedro I o pretenso articulador de nossa independência não passava de um oportunista e interesseiro que planejara minuciosamente a forma de ser rei tanto do Brasil quanto de Portugal pois só agia para os seus exclusivos interesses com alma de puro português para quem a união continuava a ser um desejo vivaz Bomfim não esclareceu o que seria a alma do puro português nem o portuguesismo a que se referiu em algumas citações denotando controvérsias em seu pensamento que buscou a todo custo separar os defeitos da monarquia lusitana do caráter do povo português e sobre o qual já aprofundara em seu trabalho anterior É provável que essa alma fosse uma referência à tradição absolutista que dominou o cariz da monarquia bragantina tradição 271 Dentre as múltiplas citações encontradas nas obras daquele autor denegrindo a imagem de Pedro I destacamos duas por considerálas bem representativas do estilo do historiador e que podem ser encontradas em seu livro O Brasil nação às páginas 57 e 98 Uma das taras de Pedro I como no antepassado Afonso VI era a vulgaridade e a grosseria suja das gentes de sua privança Chulamente preguiçoso dando em portuguesismo o que lhe faltava de verdadeiro talento o embusteiro constitucionalista de 1821 uma vez entronizado foi o tipo acabado do Bragança pérfido absorvente cruel inexorável tirano Mas faltoulhe coragem para dar à tirania caráter franco relativamente leal Sua referência aqui ao portuguesismo como um adjetivo oposto a certas habilidades inexistentes em Pedro I revelase como um termo pejorativo dentre os muitos utilizados pelo autor ao referirse ao imperador o que dá a seu texto um caráter lusófobo por tratarse de um termo que exara o cariz do povo português Outro exemplo bem reproduzido por Bomfim sobre o imperador caracterizao como Curto de inteligência falho de sentimento Pedro I não compreendeu a extensão dos feitos ligados ao ato que lhe fora ditado por José Bonifácio e julgou poder voltar atrás do gesto do Ipiranga Uma vez aclamado e coroado considerandose definitivamente empossado no domínio do Brasil tratou de voltar com ele ao seio de seu Portugal para a reconstituição do sonhado Império lusobrasileiro 143 esta herdada por Pedro I e bem cultivada por sua mãe D Carlota Joaquina que provinha de família de absolutistas em Espanha272 Considerandoo como portador de sangue de déspota Bomfim atribuiu a dissolução da assembléia constituinte brasileira em 1823 por Pedro I como resultante de seu perfil Amparado na absoluta divergência entre os interesses brasileiros que inspiravam a feitura da primeira Carta Magna do recém independente país e os interesses bragantinos na pessoa do então imperador só restara ao mesmo desfazer os reais interesses do Brasil em favor dos interesses próprios Seu ato materializado na criação de um Poder Moderador uma excrescência juridicopolítica que mobilizou os debates públicos por todo o século XIX no Brasil273 concedeulhe uma atribuição maior que os três poderes que marcavam as democracias Desde a outorga da Constituição de 1824 o quarto poder foi considerado como maléfica invenção chave mestra da opressão da nação brasileira o garrote mais forte da liberdade dos povos pelo liberal Frei Caneca cujo pensamento era divulgado nos jornais de seu tempo O cariz absolutista do poder moderador entretanto foi amplamente divulgado pela obra de Zacarias Vasconcelos publicada apenas em 1860 274 É provável que a opinião de 272 A marca absolutista de Pedro I foi atrelada pelo historiador a inúmeros atos imperiais tais como dissolução da assembléia constituinte implantação do Poder Moderador a violência extremada exercida contra os revolucionários da Confederação do Equador a declaração de guerra à Província cisplatina o assassinato de líderes oposicionistas entre tantos outros Sobre o absolutismo nos Bragança ver AZEVEDO Francisca L Nogueira de Carlota Joaquina na Corte do Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Ver também PEDREIRA Jorge COSTA Fernando D João VI um príncipe entre dois continentes São Paulo Companhia das letras 2008 273 O modo pelo qual a historiografia sobre o período caracterizou o poder moderador alicerçouse em grande parte em argumentos de natureza jurídica e política construídos durante o acirrado debate sobre o tema que teve lugar no período o que contribuiu para consolidar uma memória sobre o Estado monárquico que em parte se fundamenta em premissas segundo as quais a interpretação e a prática do quarto poder não teriam se alterado ao longo do período imperial constituindose como o leme conforme expressão de Raymundo Faoro que dirigiu a unificação territorial o Estado centralizado e a alternância dos partidos Sobre o tema consultar entre outros OLIVEIRA Cecilia Helena de Salles A Astúcia Liberal relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro 18201824 São PauloBragança Paulista ÍconeUFS 1999 LUSTOSA Izabel Insultos impressos A guerra dos jornalistas na Independência São Paulo Companhia das Letras 2000 NEVES Lucia B P das Corcundas constitucionais e pésdechumbo A cultura política da Independência 1820 1822 Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003 MOREL Marco BARROS Mariana Monteiro de Palavra imagem e poder O surgimento da imprensa no Brasil do século XIX Rio de Janeiro DPA 2003 VAINFAS Ronaldo Dir Dicionário do Brasil Imperial Rio de Janeiro Objetiva 2002 FAORO Raimundo Os donos do poder formação do patronato político brasileiro Rio de Janeiro Globo 1984 274 VASCONCELOS Zacarias de Góes e Da natureza e limites do Poder Moderador Rio de Janeiro Typographia Universal de Laemmert 1862 144 Bomfim a respeito de Pedro I tenha nascido dessas fontes marcadamente vinculadas ao Partido Liberal do Império e que também ensejaram o movimento republicano Foi nas contradições e dilemas dos atos do imperador que Bomfim buscou respaldo no sentido de demarcar negativamente sua personalidade de forma a enfatizar o cariz predatório e dissoluto dos Bragança a reminiscência portuguesa que restou no domínio da pátria Insistentemente o autor afirmou das intenções dos Bragança em relação à realização da Independência acordo firmado entre pai e filho que daria lucros às duas partes O fingimento também é uma característica acentuada por Bomfim em relação a D Pedro I que sendo um déspota no Brasil mostravase como liberal em Portugal considerandose um sucessor necessário de D João VI Os embates entre Miguelistas e Pedristas foram para Bomfim apenas uma guerra de interesses da própria família marcada pelo personalismo e sem maiores preocupações para com os destinos de Portugal Ostentava desamor a Portugal desamor que ia até o vitupério e timbrava em afirmar que dali nada queria 275 quanto aos do Brasil Somente quando o trono do Brasil estava assegurado à descendência pedrista é que o imperador renunciou visando dominar o trono português naquele momento nas mãos do próprio irmão Em O Brasil Nação Bomfim trouxe à baila o relacionamento de portugueses e brasileiros no período pósindependência mesmo que limitado ao mundo político A volta da corte portuguesa à Europa não foi impeditivo para que muitos lusos preferissem ficar no Brasil participando diretamente das ações políticas da época 276 e formando um loquaz 275 Ibidem p 94 276 Um dos melhores exemplos do europeu que preferiu ficar é o de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos arquivista real que chegou ao Brasil em 1811 Foi responsável pelos Manuscritos da Coroa coleção de 6000 códices por ele organizada e catalogada Das 186 cartas redigidas à família em Portugal Marrocos enseja seu desprezo pelo Brasil A gente é indigníssima soberba vaidosa libertina os animais são feios venenosos eu não gosto de prenderme a esta terra que julgo para mim de degredo Estou tão escandalizado com este país que dele nada quero e quando daqui eu sair não me esquecerei de limpar as botas na beira do cais para não levar o mínimo vestígio desta terra Quando se trata das más qualidades do Brasil é para mim matéria vasta de ódio e zanga e julgo que até dormindo praguejo contra ele Três anos depois sua opinião é diferente posto as melhorias auferidas em seu nível de vida e o consequente crescimento do patrimônio pessoal Vivo em paz e abundância e com aquelas comodidades de que tanto precisava com uma boa casa bem arranjada de tudo com escravos e outras conveniências A aversão a este país é um grande erro de que há muito tempo me considero despido corrigese referindose à boa situação com que Deus me favoreceu Em 1817 Marrocos foi nomeado Secretário de Estado dos Negócios do Reino por Thomaz Antônio Villa Nova Portugal principal ministro e conselheiro de D João VI e em 1821 foi promovido a encarregado da direção e arranjamento das reais bibliotecas do Rio e de Salvador com ordenado anual de 500000 reis onde permaneceu mesmo depois da volta da corte Após a Independência Marrocos tornouse um alto funcionário do império e em 1824 desligouse das bibliotecas 145 contingente de portugueses em sua maioria vinculado ao trono Depois da efetivação da Independência esse contingente passou a ser visto com maus olhos pelos patriotas posto seguirem com forte ingerência no poder ao aglutinaremse em torno do Partido Português Para Bomfim a cáfila dos que ficaram era o que tinha de pior no Brasil pois não expressava amor à nação e só tinha olhos para seus interesses pessoais tal como o próprio Pedro de Alcântara Utilizando trechos da obra de Armitage Manoel Bomfim esqueceu momentaneamente do heroísmo português vigorosamente decantado em O Brasil na América ao qual nos reportaremos no próximo tópico para denunciar a ação desse poderoso grupo radicado em várias províncias principalmente no Rio de Janeiro Salvador Recife e Belém que havia contemplado com desgosto a convocação da Assembléia e aplaudiu sua dissolução Juntamente com a elite brasileira esses portugueses foram mostrados em Bomfim como um escol desinteressado das questões nacionais e voltados apenas aos próprios interesses tal qual Pedro I Consoante Bomfim Pedro I era um covarde pois fingia que amava o Brasil mas era português seu coração277 Tanto o era que toda diplomacia do país estava nas mãos de portugueses Estes por mais liberais que se mostrassem em sua terra no Brasil eram profundamente corcundas pois as eminências dos poderes públicos durante o reinado de Pedro I eram com raras exceções restos da Disforme anacrônica e imprestável mobília dos palácios de D João VI os carcomidos cangaços do antigo velho cruel e ridículo absolutismo português278 Observese que a essa altura nosso autor não mais diferenciou o servidor português dos próprios monarcas visibilizando a todos principalmente a chamada elite nacional imersa nos mesmos hábitos difundidos pelo Bragança com a mesma negatividade que deu ênfase em seu trabalho inaugural para assumir o cargo de oficial maior da Secretaria de Estado dos Negócios do Império onde se manteve até sua morte Seu nome conta como um dos autores do texto da primeira constituição brasileira Cf GOMES Laurentino 1808 São Paulo Planeta do Brasil 2007 Ver também SCUHLTZ Kirsten Versalhes tropical Rio de Janeiro Civilização brasileira 2008 O exemplo de Marrocos não é único Centenas de portugueses aqui ficaram por imposição do ofício como é o caso do batalhão da Brigada Real da Marinha que teve que permanecer no Rio de Janeiro onde ficara parte da real família Outro grupo ficou por interesses próprios como é o caso de Marrocos considerando o patrimônio pessoal amealhado com o passar dos anos em grande parte oriundo das mercês reais e que não poderia ser trasladado para Portugal 277 Ibidem p103 278 Ibidem p105 146 Sobre a vasa de 15000 despejados das naus fujonas de 1808 qualquer estatura de homem devia aparecer mas foram os parasitas imundos que ganharam a partida Como legítima vermina proliferaram tanto que se voltaram 4000 em torno do lorpa asqueroso e mau não chegou a haver diferença de nível do Estado que aqui se implantara e o Brasil ficou pertencendo e por longos anos pertencerá a esse brasileiros de D João VI em quem a nacionalidade é iludida mascarada traída deturpada para a miséria do que tem sido sempre a política brasileira Aqui estabelecido o Estado Português veio a degradarnos completamente com todas as características da sua política Até as nossas tradições se perverteram pois que tivemos mascarando a essência do Brasil os brasileiros de D João VI a serviço do lusitanismo renitente Sobre a nação ingênua e confiante eles se estenderam numa crista infectante vivaz o bragantismo e nunca mais nos foi possível descascar dessa miséria279 A história na urdidura de Bomfim adquiriu contornos duros tamanha a sisudez de seu pensamento e a dureza de sua linguagem e sua análise sobre o Brasil esbarrou numa perspectiva de culpabilidade constante que anularam outras suas perspectivas de observar a sociedade brasileira como um espaço dinâmico capaz de se reinventar Ao mesmo tempo em que aquele historiador vislumbrou a formação de uma nação já em pleno século XVII onde o sentimento nacional já se evidenciava em movimentos sociais que clamavam por liberdade onde o historiador já identificara um povo bem definido com consciência de si concomitantemente ele anulou essa mesma nação ao transferir para os Bragança e a elite nacional todos os encargos pelos problemas brasileiros de pleno século XX Sua narrativa não nos permite vislumbrar os antagonismos e as contradições de classe que deveriam existir num espaço onde uma elite dominava consoante sua vontade e suas necessidades totalmente desconectadas do restante da sociedade Apesar de viver em um tempo de notáveis levantes populares já referidos anteriormente Bomfim parece ter se esquecido dos mesmos para mostrar uma nação homogênea inerte e incapaz de se libertar dos próprios males adquiridos ou criados Em sua retórica a dinâmica natural da sociedade brasileira altiva em seus primeiros tempos pareceu ter medrado diante da presença portuguesa vivaz dinâmica sempre capaz de reinventarse É possível que tal certeza o tenha levado a indicar uma proposta de educação conscientizadora como remédio necessário à mitigação do problema Em sua premissa o 279 Ibidem p 230 147 povo necessitava ser capaz de criticar sua própria sociedade através de mecanismos apropriados que o tornasse capaz de transformála livrandose da pesada herança social que deformara seus governantes e a si próprio lançado na ignorância e no desinteresse pelos rumos da nação Para tanto esse povo deveria consumir uma historiografia não falseada pelos poderosos recheada de inverdades de mitos falsos Daí a necessidade de reescrita da história nacional extirpando da mesma as deturpações que viabilizavam a história universal em favor apenas das nações européias Ao historiador competia alijarse do pensamento aculturado de modo a construir uma história que permitisse ao brasileiro se reconhecer como sujeito central de sua própria história mesmo que a contrapelo Num desdobramento da mesma solução Bomfim enxergara também a revolução socialista como única saída para um país degradado por sua elite política distanciada da alma da nação a demonstrar que as utopias revolucionárias ou calcadas numa educação popular libertadora280 já encontravam eco no Brasil antes mesmo de serem recepcionadas no restante do continente fato que distinguiu Bomfim como adepto de uma utopia à frente de seu tempo e lugar 43 A cepa e seus viçosos ramos A leitura de variadas biografias sobre Manoel Bomfim atesta ter sido sua vida pacata e ordeira sem sobressaltos tais salvo algumas perdas familiares que o diferenciasse de outros homens de sua época e justificassem profundas modificações em suas visões de mundo281 Apesar da aparente tranqüilidade de sua vida observase em seus diversos 280 A proposta da educação conscientizadora foi expressa em seu livro O Brasil na América publicado em 1926 antecipandose no tempo e espaço em que os programas educativos eram tomados como uma solução precisa contra os graves problemas sociais que grassavam não apenas o Brasil bem como toda América Latina Entendendose a liberdade como superação da alienação e que a transformação do mundo pressupunha a efetivação dessa liberdade muitos teóricos latinoamericanos apregoaram como solução a chamada Filosofia da Libertação cujas primeiras manifestações foram identificadas nos movimentos operários do Brasil Argentina e México no final dos anos 60 conforme observação de DUSSEL Enrique América latina dependência y liberación Antologia de ensayos antropológicos y teológicos desde La preposición de um pensar latinoamericano Buenos Ayres Fernando Garcia 1973 Sob a mesma perspectiva a proposta revolucionária de Bomfim foi exposta em O Brasil nação livro de 1931 281 A respeito ver AGUIAR Ronaldo Conde O rebelde esquecido tempo vida e obra de Manoel Bomfim Rio de Janeiro Topbooks 2000 Nesta obra o autor faz questão de destacar a personalidade calma de Manoel Bomfim dado a poucos arroubos apesar da linguagem apaixonada e até agressiva que marca sua narrativa e que tipificava um estilo de sua época Outros autores ratificam a mesma perspectiva sobre aquele historiador tais como ALVES FILHO Aluísio Manoel Bomfim combate ao racismo educação popular e democracia racial São Paulo Expressão popular 2008 GONTIJO Rebecca Manoel Bomfim e a escrita 148 trabalhos modificação de seus pontos de vista de suas opiniões não obstante o autor enfatizar a inexistência de mudanças de sentimentos ou novidades de pensamento Certas contradições encontradas na argumentação de sua obra são de difícil explicação tamanha a disparidade entre as mesmas nomeadamente quando fez referência a Portugal que é o que nos interessa de pronto282 Em relação às construções de Portugal e dos portugueses Bomfim demonstrou no decorrer de suas obras históricas contradições e ambigüidades difíceis de entender mesmo reconhecendo evidentes mudanças de enfoque que vão do socioeconômico para o cultural e que podem ter ocasionado alterações em seus pontos de vista 283 Lowy buscou justificar essas guinadas de pensamento ao denominálas como flutuações de natureza temporária284 admitindo tal qual Mannheim285 a relação entre a categoria dos intelectuais e as classes relação esta que cedo ou tarde sobreviria em sua obra Seriam então meras flutuações temporárias as ambiguidades existentes nos textos de Bomfim oriundo de uma família de latifundiários Seria a trajetória de Bomfim a exemplificação do intelectual oriundo da classe dominante que temporariamente escapou do círculo de interesse de sua classe e passou a defender os oprimidos para mais tarde retornar à sua origem da história Recife Massangana 2010 Essa faceta do sergipano se torna explícita no episódio em que se tornou alvo do escarnecimento do critico literário mais temido de seu tempo o advogado Sílvio Romero que lançou 25 artigos nos jornais cariocas desdenhando da argumentação de Bomfim em seu livro América Latina males de origem além de um volume com o mesmo título e sua antítese Convidado pelo editores para rebater as idéias de seu crítico Bomfim se reservou o direito de silenciar no debate evitando a contra argumentação Para alguns esse silenciamento foi uma das causas além de seu inovador ponto de vista sobre o tema na contracorrente do pensamento hegemônico de então de seu ostracismo no campo intelectual alguns anos depois do lançamento do seu primeiro livro tornandose um autor quase desconhecido já em meados do século XX 282 É no seu segundo livro de história O Brasil na América caracterização da formação brasileira escrito em 1925 mas só publicado quatro anos depois que a lusofobia com que o mesmo se fez reconhecer no início do século sofreu modificações pujantes que marcaram a idéia daquele autor na obra citada 283 Existem casos de intelectuais que mudaram radicalmente de opinião ao passarem por momentos revolucionários Um dos grandes exemplos dessa ocorrência diz respeito às mudanças havidas nas obras de Guizot e Carlyle posteriormente à Revolução de 1848 explicada por Lukács O primeiro mesmo tendo reconhecido a função da luta de classes na história depois da revolução esmerouse em apontar o equívoco da mesma e em defender os interesses da monarquia Por sua vez Carlyle deixou de ser um vigoroso crítico das mazelas produzidas pelo capitalismo para se tornar depois da dita revolução um apologista do sistema Em outros termos esses ideólogos abandonaram a análise em bases materiais científicas passando a defender a idéia do compromisso entre a ordem burguesa e os restos feudais 284 LOWY Michel As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchaussen São Paulo Busca Vida 1991 285 MANNHEIM KARL Ideologia e utopia Rio de Janeiro Zahar 1972 149 A nosso ver essa perspectiva não coaduna com a trajetória do combatido autor se consideramos o contexto no qual estava inserido seja a exacerbação do pensamento nacionalista no Brasil na década de 20 O Movimento Modernista influenciado profundamente pelo nacionalismo parece ter conquistado Bomfim daí advindo sua perspectiva de fomento à consciência e à coesão nacionais à extinção da dualidade PortugalBrasil tão fremente em sua obra primeira e o redirecionamento de suas últimas críticas à monarquia lusitana por esta não ser representativa desse Brasil que ele tanto defendera Vinte e dois anos após ter escrito América Latina males de origem no qual denunciou as mazelas provocadas pela colonização empreendida por portugueses e espanhois Bomfim retomou o tema da herança social como elemento formador do caráter nacional Em O Brasil na América lançado em 1929 aquele historiador se esforçou para definir o perfil do povo brasileiro a partir daquilo que denominou de cepa portuguesa numa extraordinária guinada em direção a uma abordagem da nacionalidade dentro do cânone consagrado pelo Romantismo radicalmente contestado em sua obra anterior A questão dos laços com Portugal mais uma vez voltava à sua obra No cenário intelectual brasileiro do período continuava presente a preocupação com a identificação de um caráter nacional como forma de definição de uma identidade ainda em construção Em fins dos anos vinte o debate ainda era válido oscilando entre as teorias de degenerescência racial ocasionada pelo cruzamento com raças ditas inferiores e as teorias que previam uma regeneração embranquecedora dos povos mestiços num panorama de hierarquia entre as raças Dentre os extremos a noção de um caráter nacional que permitiria definir e distinguir os traços de personalidade coletiva de um povo juntamente com a noção de hereditariedade social serviu como anteparo das proposições daquele intelectual286 em sua luta para reverter o termo das equações hegemônicas sobre o tema Para ele um povo não era inferior por natureza mas historicamente inferiorizado a partir de teorias e proposituras filosóficas que nada tinham de científicas O uso do 286 De uma forma geral a degeneração serviu de matriz comum a diferentes visões sociais entre 1880 e 1930 quando seu suporte científico entrou em declínio A propósito ver SUSSEKIND Flora VENTURA Roberto Op cit p 17 LEITE Dante Op cit p 251 150 instrumental histórico para alertar sobre tal engodo foi fundamental para traçar a diferença entre Manoel Bomfim e grande parte dos intelectuais seus contemporâneos287 Todavia como poderia o historiador Bomfim aduzir uma identidade positiva para o brasileiro considerandose a validade de sua premissa de hereditariedade social se tratara o povo português como um parasita historicamente contumaz na prática do saque e da rapina em sua obra inaugural Com tal perspectiva como poderia clamar pelo valor da mestiçagem tão combatida pelas teorias racialistas se a herança portuguesa era inegável elemento de formação da nacionalidade brasileira Essa aparente encruzilhada parece ter permitido um desdobramento da visão de Bomfim refletindose na nova abordagem que aquele historiador fez acerca do povo português e que se caracterizou como a grande guinada de sua obra Oportunamente o desdobramento de novas situações no contexto republicano ocorrido nos trinta primeiros anos do século XX exigiu que novas proposituras fossem desenvolvidas no sentido de firmar o lugar do Brasil no contexto regional Ao tempo da escrita de outro texto iniciado pouco depois das comemorações dos cem anos de independência nacional a palavra de ordem era conhecer desvendar investigar e mapear o Brasil e a sua realidade bem como traçar simultaneamente os contornos da identidade nacional conforme observara MOTTA288 A necessidade de um despertar para a importância de colocar no papel a avaliação correta do passado a interpretação segura do então presente e as sugestões valiosas para o futuro da nação era ponto pacífico para balizar a produção intelectual do período A adesão ao Romantismo e a busca pela identidade nacional demarcavam as exigências intelectuais da época o que tornava a discussão da formação da nação uma temática extremamente relevante mesmo para Bomfim historiador completamente disperso no que concerne a um lugar institucional que legitimasse seu discurso Seu posicionamento mesmo evidenciando 287 Foi por privilegiar as tensões no processo histórico de produção de diferenças entre colonizado e colonizador em suas análises que Bomfim pôde questionar as teorias de Gustave Le Bon 18411931 Louis Agassiz 18071873 e Joseph Arthur de Gobineau 18161882 entre outros e criticar duramente intérpretes da América Latina como José Ingenieros 18771925 Carlos Octavio Bunge 18751919 e Lucas Ayarragaray 18611944 defensores do determinismo racial e da inferioridade do negro e do índio 288 MOTA Marly Silva da Op cit p 29 151 uma necessidade comum daquele momento histórico289 foi construído de forma autônoma sem o devido resguardo institucional que funcionasse como anteparo a suas colocações ou como um estimulador de temáticas Com esse fito foi escrito O Brasil na América cujos primeiros capítulos descerraram a formação histórica brasileira a partir de seu principal veio os portugueses cujo cariz marcou as novas perspectivas bomfinianas para fundear a construção de uma identidade nacional Dessa feita o parasitismo como categoria analítica foi abandonado em prol do desvendamento das qualidades essenciais do português que o fizeram se destacar no cenário mundial Tal caracterização tinha como escopo segundo o próprio autor verificar até que ponto se refletiu nas nossas qualidades e no nosso proceder 290 Intentava dessa forma dar relevância ao papel do Brasil em meio às demais nações da América Latina marcada pelo caudilhismo e pelos arroubos revolucionários que a transformavam num continente em eterna luta fratricida cuja origem era apontada como decorrente da mestiçagem característica desses povos Foi clamando por um Portugal Heróico que Bomfim abriu o primeiro capítulo de O Brasil na América deixando estupefato o leitor que consumiu América Latina ante a revolução operada na forma daquele autor compreender e retratar o português Na formação daquela nacionalidade Bomfim redescobriu um povo excepcionalmente vigoroso e disciplinado capaz de grandes feitos de caráter nobre marcado pelas ações heroicas Para tanto bastou desenterrar os celtiberos do Estrabão ou relembrar os façanhudos lusitanos com o respectivo Viriato291 para descobrir a dianteira assumida por povos díspares quando da conquista de um território e a célere convicção de uma identidade comum os brasileiros tinham muito dos portugueses Para Bomfim o povo português tinha gênio político unificado no desejo de ser materialmente grande pela riqueza um povo com virtudes e vontade para transformar esse desejo em necessidade de dominar o mar como realização de seu destino Pelo seu valor primeiro merecia fortuna e glória bem acima do que lhe era concedido por pertencer a 289 Atentese também na mesma década ocorreram episódios considerados paradigmáticos na história do país consagrados como marcos fundadores de um novo Brasil tais como a fundação do Partido Comunista a Semana de Arte Moderna e a primeira manifestação do Movimento Tenentista 290 Ibidem p 67 291 Ibidem p 40 152 uma pátria distinta indestrutível e inconfundível no conjunto da Ibéria292 Assim esse povo moldado não mais no saque e na rapina mas na resoluta disciplina de ser grandioso de alma marcada pelo vigor e pela determinação foi trazido ao contexto de sua obra como a cepa formadora da nacionalidade brasileira cuja especificidade a fez ser destaque no contexto americano já não mais como um parasita a sugar o sangue brasileiro a apropriar se das riquezas encontradas nessa parte da América que lhes encheriam as burras e permitiria a dissolução final mas como uma gente decidida a encontrar seu próprio lugar num mundo cada vez maior alargado em grande parte pela ousadia lusa Ao aprofundarse no tema Bomfim traçou um exercício de correlação entre portugueses e espanhóis como modo de diferençar o Brasil de seus vizinhos latinoamericanos Em seu texto o espanhol293 foi mostrado como bem diferente do português ficando com o segundo a figuração de senhor de uma personalidade benemerente capaz de se adaptar a diferentes culturas melhor talhado pelas vicissitudes aperfeiçoado pela disciplina profundo nas decisões tenaz nas realizações294 Se assim o fora o português dos tempos do descobrimento assim deveria ser o brasileiro uma criação tipicamente portuguesa acreditava Bomfim ao estreitar laços de um parentesco até então marcado por contradições e ambiguidades Sob tal enfoque não há como negar a aproximação do autor declaradamente republicano mesmo que desencantado dos historiadores monarquistas Para aqueles que criaram a idéia de uma nação unitária e indivisa obra realizada pelo governo imperial295 o Brasil em muito se diferençava dos demais países da América Latina Fazendo a distinção entre duas Américas a lusobrasileira e a hispanoamericana salientaram características das nações de colonização espanhola associandoas ao caudilhismo ao militarismo a instabilidade 292 Ibidem p 19 293 Sobre o espanhol Bomfim se refere como um povo de caráter duro ousado apreciador de espetáculos sanguinolentos rude e arrogante inclinado para atos violentos capazes de justificar a natureza bélica das nações vizinhas da América Latina Ibidem p 77 294 Ibidem p 76 295 Um dos discursos mais fortes do período é o de Oliveira Lima em O Movimento político da Independência 18211822 Belo Horizonte Itatiaia 1989 Sobre a criação da diferença entre o Brasil e o restante da América Latina ver também MALATIAN Tereza Oliveira Lima e a construção da nacionalidade Bauru EDUSC 2001 GRACINDO Eliane IOKOI M Gricoli Org América Latina Contemporânea desafios e perspectivas Rio de Janeiro Expressão cultural 1996 Col América Raízes e Trajetórias OLIVEIRA Lúcia Lippi A questão nacional na Primeira República São Paulo Brasiliense 1990 TORRES João Camilo de Oliveira Intérpretes da realidade brasileira introdução à história das idéias políticas no Brasil Rio de Janeiro José Olímpio Editoras 1969 153 política e às guerras civis A nação brasileira em contraponto se distinguia pela idéia de unidade e estabilidade política no discurso intelectual graças ao feitio da ocupação e colonização portuguesa e sobretudo pela presença imponente da monarquia lusitana nos trópicos antes e depois da independência De tal modo enfatizouse a noção de comunidade indivisa forjada pelos portugueses em oposição à de comunidade fragmentadas das possessões espanholas que o discurso nacionalista findou por opor a suposta paz e estabilidade política da monarquia brasileira ao caos e à anarquia das demais repúblicas do continente perspectiva que foi repetida por Bomfim mesmo que o Brasil já houvesse ultrapassado seus tempos monárquicos e experimentasse o sistema republicano Sua alusão a muitas das características enaltecidas pelos historiadores oitocentistas teve como foco a definição de um lugar de destaque a ser assumido pelo Brasil no grande teatro da América como já mencionado anteriormente Para tanto sua anterior preocupação com o desvendamento do colonialismo como expressão do imperialismo europeu parece ter sido superada por esta nova perspectiva Para tanto faziase mais que necessária a contextualização histórica da nação bem nascida criação de uma poderosa cepa cujos ramos desdobraramse num novo povo o brasileiro296 O patriotismo a consciência da nacionalidade a história de lutas e de heroísmo de genialidade de celtiberos e lusitanos coroada na articulação do primeiro Estado moderno da Europa e refletida no ordinário do português deveriam servir como prova cabal de que as mesmas existiam no povo brasileiro herança lusa aos seus descendentes americanos Em suas considerações ao se reportar a capacidade indômita do português ele buscou obstinadamente mostrála no caráter do brasileiro As virtudes germes na história de Portugal e que fizeram daquele recanto uma pátria distinta indestrutível e inconfundível no conjunto da Ibéria atual essas virtudes nós as encontramos como forças essenciais no 296 A perspectiva assumida por Bomfim em relação ao caráter nacional português por sua vez refletido de pronto no povo brasileiro permitiu àquele historiador enveredar por uma nova seara ao argumentar sobre a formação de um novo povo na América O passar dos séculos na visão bomfiniana e as especificidades da vida na América aperfeiçoaram o cariz português que amalgamado com o caráter dos nativos originou um novo povo Para tanto aquele autor lançou mão de mais uma homologia biológica ao comparar os portugueses da Ibéria a uma cepa específica cujos ramos transplantados para o Brasil originaram uma nova árvore Esta árvore inegavelmente tinha os mesmos elementos da cepa original embora mesclada com novos elementos de outra cepa a cepa americana nativa Deste modo o discurso daquele autor concebeu a nação como um organismo homogêneo consagrado na fusão de nativos com lusos resultante no povo brasileiro único indiviso original estando ausentes de seu meio os antagonismos e as contradições de classe 154 germinar desse Brasil delas se fazem as qualidades que nos distinguem entre outras nações americanas297 Ao enaltecer aspectos positivos no cariz português Bomfim praticou um exercício de identidade às avessas fazendo com que o brasileiro se reconhecesse no português num espelhamento tal qual referido por Hartog298 Tal reconhecimento se deu ao nível de uma irmandade que deveria ser mantida de modo que todo o processo histórico de formação nacional não fosse sopesado apenas pela via do binômio colonizadorcolonizado Se a empresa colonial havia tido vultosos lucros com a exploração do Brasil não se poderia desdenhar do contributo dos próprios portugueses para o engrandecimento da nação construída também com o sangue e o suor luso assim como dos demais povos formadores aos quais também deu o devido destaque Com esse intuito Bomfim fez da nação um sujeito entendendoa como uma força modeladora de consciências uma estrutura uma entidade supramaterial cuja construção exigia o esquecimento do seu próprio passado tal como ensinara Ernest Renan299 Sua intenção pareceu ser a de apagar da memória histórica brasileira os antagonismos as contradições a violência do processo colonial para consolidar a vontade de ser uma nação unificando vontades consciências e ações em torno de um objetivo comum Em decorrência seu proceder se assemelhou aos dos historiadores de viés nacionalista assumidamente iagagebeanos para os quais a nação deixou de ser objeto para ser parâmetro300 elaborando assim o que foi denominado de biografia da nação301 uma entidade abstrata e idêntica a si mesma que exigia por si só os acontecimentos os temas e 297 Ibidem p 102 298 HARTOG François O Espelho de Heródoto Belo Horizonte Editora da UFMGAutêntica 1999 p 141 299 Para Renan a narrativa sobre nação exige o esquecimento posto ser aquela comum entre as pessoas que vivem no mesmo território sendo esse comum uma produção artificial na maioria das vezes gestada pela violência Dessa forma a nação nada mais era que uma produção humana histórica fazendose necessário esquecer tudo que lembrasse sua gestação nesse tempo histórico definido Exemplificava pois o caso da França cuja construção implicou na união de dois territórios distintos a França do Norte e a França de Midi à custa do extermínio e do terror durante quase um século Cf RENAN Ernest O que é uma nação Rio de Janeiro Brasiliense 1987 300 A expressão foi cunhada por Homi Bhabha ao se referir à narrativa de Ernest Renan e pode ser encontrada na obra O local da cultura Belo Horizonte Editora da UFMG 1998 301 O termo é de autoria de SILVA Rogério Forastière da Colônia e Nativismo A história como biografia da nação São Paulo HUCITEC 1997 155 os sujeitos históricos que deveriam ser esquecidos ou poderiam permanecer para sempre na narrativa nacional302 O discurso de Bomfim num primeiro momento parece ter sido movido por uma força centrífuga posto dispersar os atores históricos da América Latina colocandoos em campos distintos consoante o cariz do colonizador brasileiros eram diferentes dos demais latinos haja vista que Portugal em muito se distinguia dos vizinhos espanhóis tal reconhecimento não estabelecia qualquer noção de superioridade entre os envolvidos protestava o autor Por outro lado ao tempo que tentava constituir o caráter da nação a partir da noção de hereditariedade social aquele historiador considerava a necessidade de aplainamento das vontades das consciências das ações com esse fito dando relevância a um movimento centrípeto de unificação das muitas diferenças geográficas econômicas raciais encontradas no Brasil O conceito de nação em Bomfim é expressão do ideário nacionalista brasileiro fixado no historicismo romântico no qual a nacionalidade se fundava no espírito ou caráter peculiar de um povo herança da raça língua história que por sua vez compunham os fundamentos de uma comunidade A naturalização das nações entendidas como destino político inerente aos homens303 inscreviase na esfera da montagem de uma comunidade construída historicamente e em função da qual daria forma objetivo e direção à vida de seus habitantes O universo simbólico serviria como guia das ações humanas uma vez que atenderia à necessidade de legitimação inerente ao arcabouço institucional quando este não pudesse mais ser mantido pela memória do indivíduo Daí a necessidade de construção de 302 Bomfim efetivamente faz essa seleção na narrativa da nação o que pode ser claramente percebido quando de sua abordagem sobre a participação dos africanos na formação nacional e a ausência dos conflitos entre escravos e colonizadores e a omissão ao Quilombo de Palmares em O Brasil na América Ao comentar como os negros foram inseridos na obra de Bomfim Celso Uemori advertiu para o fato de que Manoel Bomfim efetivamente afirmara que a influência dos negros foi menor se comparada à dos índios Cf UOEMORI Celso Nobrou Explorando em campo minado a sinuosa trajetóri a intelectual de Manoel Bomfim em busca da identidade nacional Tese de Doutoramento em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2006 Tal afirmação teve a nosso ver o objetivo de enfatizar que o povo brasileiro resultara da mistura preponderante entre europeus e índios e apagar seu antagonismo a exploração de classes e a violência Ao suprimir o negro de seu esquema teórico no limite ele estava negando a concepção de luta de classes pois desaparecia de sua narrativa a vítima das vítimas a máquina de trabalho quem produzia a riqueza e de quem se extorquia excedente Em outras palavras com a supressão dos negros tornou se possível afirmar a origem cabocla do brasileiro e a reiteração da idéia de que no Brasil a escravidão foi branda Se em alguns textos Bomfim esboçou a existência de reação entre colonos e colonizadores nesse ponto de sua trajetória ele fez questão de arquitetar um subterfúgio de modo a fugir da proposição 303 Cf HOBSBAWN Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 p 28 156 um universo nacional capaz de organizar o espaço público num processo de constituição de identidade implicando tanto a acentuação dos traços de semelhança e homogeneidade como a diferenciação em relação ao outro Foi sobre essa identidade que Manoel Bomfim se reportou em seu Brasil na América partindo da configuração do outro para se reconhecer como tal Ao tempo em que reconheceu no português um dos gênios formadores da nacionalidade brasileira afastouo de pronto desta mesma nacionalidade tornandoo um estrangeiro um estranho Portugal teria sido o fator dominante o determinante na formação do Brasil mas tais outros valores humanos foram inclusos na sociedade brasileira que ela se tornou completamente diversa Dessa forma Bomfim contraditoriamente praticou o que Hartog304 mais uma vez denominou de identidade relacional Frente ao eu ou ao nós do pertencimento ao Brasil ele colocou o estrangeirismo do outro o português que mesmo sendo considerado uma cepa elemento primordial na constituição de um novo lugar não poderia ser considerado jamais como um brasileiro Ao separar portugueses de brasileiros em sua narrativa do período colonial Bomfim facilitou a identificação dos primeiros em sua retórica não deixando dúvida a quem se referia pois a ambigüidade de ser português na colônia inexistiu em sua narrativa diferenciandoa essencialmente das abordagens de Varnhagen e Abreu Há uma linha divisória entre portugueses e brasileiros nos escritos daquele historiador que designa por reinóis os portugueses de origem Seus filhos e descendentes nascidos no Brasil sob o jugo colonial não eram portugueses mas brasileiros Em sua análise a colônia não era uma extensão de Portugal mas um novo lugar formado por uma gente disposta a desgarrarse de vez de Portugal pátria de origem que nunca fora recriada em terras americanas Assim não haveria uma América portuguesa fracionada dividida com colonos de olhos fitos para o alémmar mas um Brasil criado desde os momentos iniciais do descobrimento onde se ajuntavam as gentes mais díspares para arquitetar a nação a partir das condições de vida que ali encontrou305 Em decorrência de tal perspectiva o enredo civilizatório 304 HARTOG François Ibidem p 34 305 A justaposição de contrários traçada por ele ressaltou a fusão de tradições lusa e indígena o que gerou uma síntese a cultura brasileira entendida por Bomfim não como puramente lusa nem tão somente indígena mas original em sua formação Forjada para além do confronto de civilizações da imposição cultural e da aculturação havia um amálgama de culturas onde predominaram as trocas os compartilhamentos num esforço onde se denota que o autor tudo fez para suprimir as asperezas e conflitos a ponto de afirmar não ser 157 vigorosamente defendido pelos ihagagebeanos inexistira em Bomfim que vira o Brasil como uma civilização específica e não como uma cópia malfeita da Europa A idéia de Brasil enquanto lugar peculiar já existira no intuito daqueles que atravessavam o oceano para ali se estabelecer já defendera aquele historiador306 contrariando o discurso vigente até então de que o Brasil teria sido uma extensão de Portugal A mencionada separação entre brasileiros e portugueses e a aversão ao termo lusobrasileiro em Bomfim foi tomada por muitos como prova de seu sentimento lusófobo o que expressa um equívoco evidente Não se observa nos demais historiadores brasileiros a linguagem apaixonada de Bomfim ao se referir ao povo português linguagem esta que ensejou muitas das críticas feitas ao seu trabalho e que no entanto foi expressão de seu tempo307 Observese que a rudeza do processo colonial findara há menos de um século mas as representações discursivas do português como um povo determinado estavam intrinsecamente alojadas na memória nacional graças à historiografia oitocentista e se repetiam na escrita da história do país mais especificamente na narrativa de um historiador que não se adequara ao pensamento comum de sua época importante ter havido vencedores ou vencidos mesmo que em seu texto se encontre trechos extensos onde se aponta a dissolução das sociedades nativas 306 Nos primeiros colonizadores do Brasil encontravamse as virtudes essenciais do pioneiro português tenacidade heróica solidariedade na compreensão nítida da existência nacional hábito de atividade disciplinada e com isso o sentimento de trazerem consigo uma pátria no intuito explícito de fazerem um novo país pelo desenvolvimento das tradições nacionais Como estímulo geral havia desejo de formar fortuna estável Pensemos agora que todo português de então era um patriota e que nascidos no influxo desse valor exaltados na idéia de pátria os daqui mostraram desde sempre que essa idéia de pátria Brasil era um motivo explícito sobre seus afetos Ibidem p 88 e 92 307 Sobre o estilo da escrita de Bomfim ver VENTURA Roberto SUSSEKIND Flora Op cit p 91 158 CAPÍTULO 5 A TENTATIVA DE SUPERAÇÃO DA HERANÇA PORTUGUESA Ao tempo em que Manoel Bomfim revelou as raízes nacionais fortalecendo os laços criados pela historiografia oitocentista o Brasil assistiu ao lançamento em São Paulo da Semana de Arte Moderna expressão maior do Movimento Modernista nacional Na esteira do lançamento de uma proposta de redimensionamento da arte e da literatura nacionais inseriase a necessidade de delineamento de um perfil para a nação capaz de lhe garantir uma identidade própria calcada no ideário de modernização e na unificação cultural e política Não era mais hora de se olhar para o passado tomandoo como um referencial para o presente bem ao contrário era o momento exato de se desvencilhar desse passado de forma a dar passos firmes na construção de um porvir calcado na constatação de ser um povo único especial independente de sua formação inicial e amadurecido o suficiente para se reconhecer como tal Para tanto era preciso marcar o próprio território e suas fronteiras definindo relações com os outros formando imagens dos amigos e inimigos rivais e aliados modelando as lembranças do passado bem como projetando sobre o futuro temores e esperanças Finalmente era necessário exprimir e impor certas crenças comuns a partir da constituição de modelos formadores da brasilidade pretendida308 308 Três vertentes modernistas marcarão a arquitetura do brasileiro e da brasilidade nos anos vinte A primeira vertente modernista Verdeamarela tinha como proposta o total abandono das influências portuguesas e européias devendo a cultura nacional buscar a alma brasileira no seu passado mitológico na vida autêntica das cidades do interior e do contato do homem com a natureza A segunda vertente Antropofágica propunha a apropriação das ideias europeias pelo canibalismo cultural transformando aquelas em ideias nacionais A terceira vertente buscava se incorporar à cultura mundial entendendo o Brasil como parte de um todo Necessário dizer que o Verdeamarelismo se sobressaiu às demais e que o otimis mo apregoado por seus integrantes tornouse nacionalismo exaltado ponto de partida do Integralismo movimento político de nacionalismo direitista que na década de trinta atingiu mais de um milhão de filiados Sobre o Movimento Modernista brasileiro ver ÁVILA Afonso O Modernismo São Paulo Perspectiva 1979 BRITO Mário da Silva História do modernismo brasileiro Antecedentes da Semana 159 Segunda maior cidade do país no início do século com crescimento vertiginoso graças à cafeicultura São Paulo ostentava uma burguesia familiarizada com a ambiência européia que detinha um projeto homogeneizador para uma nação heterogênea A república em seus primeiros anos como fruto dos interesses dessa elite cafeicultora tinha que gozar de representações que a mostrasse alinhada aos princípios da civilidade tão qual o fora a extinta monarquia e o Movimento Modernista serviu a este fim explorando uma prática política para além de um projeto estético Com esse fito o ideário da civilidade bem decantado pelos historiadores do IHGB findou por ser apropriado pelo projeto paulistano como específico de seu lugar e não disposto pelo Brasil em toda sua dimensão Por tal viés foram reduzidas a meros enfoques regionais outras visões sobre a formação do Brasil a identidade de seu povo e a diversidade de sua constituição São Paulo assumiuse como um modelo e tornouse conforme planejado a cabeça da nação apoiada na figuração do bandeirante como o pai da pátria o civilizador por excelência filho de um português específico banhado nas águas do Renascimento Debaixo de si o restante do país arcaico diferente inferior pronto a assumir uma nova identidade na qual se extirpava a tradição de se ter como uma continuação e até como uma invenção de Portugal posto ser esta uma das propostas dos modernistas da chamada primeira geração 19221930 o que interessaria doravante era a cultura nacional completamente desvinculada das raízes culturais portuguesas309 O brasileiro era único especial fruto de um ambiente específico No campo da história lócus especial de criação e reprodução identitária o nome de Paulo da Silva Prado310 se ergueu a partir da criação de Retrato do Brasil 1928 obra que se de Arte Moderna Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 CACCESE Neusa Pinsard Festa Contribuição para o estudo do modernismo São Paulo Instituto de estudos BrasileirosUSP 1971 TELES Gilberto Vanguarda européia e modernismo brasileiro apreciação e crítica Petrópolis Vozes 1972 MORAES Edmundo A brasilidade modernista Rio de Janeiro Graal 1978 309 Exemplo disso foi oferecido por Mário de Andrade em Macunaíma 1928 ao sintetizar o ambiente cultural brasileiro a partir de ingredientes de todas as regiões brasileiras sem desprezar o papel da nova e dinâmica metrópole que procurara retratar nos poemas de Paulicéia Desvairada 1921 Oswald de Andrade com a noção de que a cultura brasileira fora antropofágica desde a deglutição do Bispo Sardinha insistiu na importância da síntese Como a proposta modernista tomava como imprescindível o rompimento no plano da linguagem com a cultura convencional e acadêmica propundo também um corte implícito e radical com as raízes culturais portuguesas base da formação nacional 310 Paulo da Silva Prado nasceu em São Paulo em 1869 e faleceu no Rio de Janeiro em 1943 Filho do Conselheiro Antônio Prado diplomouse em 1889 pela Faculdade de Direito de São Paulo nunca exercendo 160 dispôs a constituir essa nova identidade brasileira num desdobramento de sua tese inicial ancorada na criação de uma identidade regional específica dos paulistas o bandeirante311 a profissão de advogado Ao preferir participar dos negócios da família nos quais se destacou por alçar o lugar de um dos maiores produtores e exportadores de café no Brasil cedo alçou importantes cargos públicos como representante da abastada burguesia paulista Sobrinho de Eduardo Prado 18601901 foi com este morar em Paris logo após encerrar sua formação superior passando a partilhar do ciclo intelectual no qual aquele estava inserido tornandose amigo de escritores como Eça de Queiroz Oliveira Martins Ramalho Ortigão e Blaise Cendrars entre outros Foi da sua experiência na Europa que Prado apurou seu olhar sobre a questão brasileira aproximandose também dos grandes nomes formadores do IHGB como Joaquim Nabuco Capistrano de Abreu Afonso Arinos de Melo Franco e da ABL como Olavo Bilac e Graça Aranha Seu retorno ao país resultou na inauguração de sua escrita sobre a colonização brasileira escrevendo As Confissões da Bahia 1922 Denunciações 1925 Paulística História de São Paulo 1925 Retrato do Brasil ensaios sobre a tristeza brasileira 1928 e Denunciações de Pernambuco 1929 cujas abordagens tinham a explícita admoestação do autor de tratarse de trabalhos de natureza historiográfica e não literários Também publicou editoriais artigos e resenhas em importantes periódicos e reeditou documentos inéditos sobre o período colonial incentivado pela grande amizade que nutria pelo historiador cearense Capistrano de Abreu cujo profundo conhecimento de fontes e referências permitiu a descoberta de importantes documentos a respeito da história do Brasil Apesar de esquecido como mecenas dos Modernistas foi Prado juntamente com sua esposa Marinette o grande idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922 movimento que reuniu as manifestações mais avançadas da época no campo da literatura das artes plásticas do teatro e da música financiando e promovendo vários artistas Participou da fundação e do controle de revistas modernistas dirigindo a Revista Nova da qual participaram entre outros escritores Mário de Andrade e Alcântara Machado Prefaciou a obra PauBrasil de Oswald de Andrade um dos mais ativos participantes daquele movimento com o qual rompeu amizade ante a crítica que fez aquele autor ao seu Retrato Paulo Prado tornouse um importante mediador entre diferentes universos Como promotor da Semana de Arte Moderna tornouse um elo fundamental entre os modernistas e um grupo de intelectuais que compuseram uma geração anterior a sua a de seu tio o jornalista e monarquista Eduardo Prado 18601901 podendo ser visto também como uma figuraponte entre o ensaísmo da década de 1920 e aquele que terá expressão maior em 1930 em obras como as de Sérgio Buarque de Holanda 1902 1987 Gilberto Freyre 19001987 e Caio Prado Júnior 19071990 o que tornou sua trajetória de vida marcada por uma relação paradoxal entre o tradicional e o moderno Posto ter desenvolvido atividades em ambos os campos colocouse entre duas gerações a de 1870 era novo demais para o Romantismo e a modernista era o mais velho de todos tornandose um personagem ideal para encarnar esse paradoxo No campo da História sua visão não fugia ao clássico enunciado o conhecimento do passado fornecia bases para se compreender o presente e se aventurar em previsões acerca do futuro Prado via a história como uma linha reta com direção e sentido onde as relações de causalidade permitiriam ao historiador projetar uma certa teleologia da história Em Uma carta de Anchieta 1926 publicada na revista Terra roxa e outras terras deixava clara a sua reflexão sobre o fardo da história Segundo Prado seria próprio de uma criança seria infantil ignorar o que se passou antes de nós É o desenvolvimento desse sentimento humano que se chama a paixão histórica Somente no culto dessa paixão poderseia compreender o momento vivido A crença numa filosofia da história e num sentido para a mesma se aproximava de um certo idealismo teórico característico da visão romântica presente em sua formação No entanto foi na reinvenção de um olhar culturalista sobre a história que Paulo Prado colocou se dentro do movimento modernista 311 O discurso da identidade paulista diferenciada do restante do país remonta ao século XVIII com as obras dos cronistas Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques desdobrandose em novas abordagens já a partir de 1870 com a redefinição dos termos da relação entre o nacional e o regional não somente no universo político como também no culturalidentitário chegando mesmo a dar suporte ao movimento separatista paulista de 1887 Oilveira Vianna foi um dos nomes mais representativos desse período Na década de vinte o discurso laudatório da paulistanidade foi absorvido pelos modernistas do porte de Menotti Del Picchia Plínio Salgado e Cassiano Ricardo assim como por historiadores como Alcântara Machado Alfredo Ellis 161 O reconhecimento do autor sobre a criação histórica de uma nova raça é reveladora do quanto sua obra buscava repostas para as questões de seu tempo posto que o debate sobre a interferência da raça na formação da identidade nacional ainda mostrava ser assunto candente naquele momento Em Prado a identidade brasileira foi inicialmente dual tipificada pelo bandeirante que se alastrou pelo território colonial e pelo brasileiro homem comum de pouca ou nenhuma qualidade O bandeirante de cariz aventureiro e libertário preservou suas qualidades enquanto isolado do restante da colônia graças à topografia paulista que dificultava o acesso de estranhos ao planalto Tão logo se aventurou a desbravar outros sítios decaiu tal qual Adão ao deixar o Paraíso misturandose ao tipo comum do Brasil312 um mestiço insignificante corroído de desejos e manipulado livremente por uma elite dissoluta sem responsabilidade social Embora gestado na esteira do Modernismo o Retrato do Brasil de Paulo Prado pareceu vir como contraponto às proposições do movimento ao construir um brasileiro a partir de suas Júnior e Afonso dScragnolle Taunay Prevalecia no discurso paulista a união do colonizador português homem exclusivo do primeiro século após o descobrimento banhado nas espumas do Renascimento com a índia americana apurada na reclusão característica da Serra do Mar o que findou por forjar uma raça superior capaz de dominar o Brasil e tornálo uma nação moderna Paulo Prado contribuiu fortemente para a construção do mito do bandeirante explorando tal discurso em sua obra Paulística de 1925 na qual o bandeirante se diferenciava dos demais tipos encontrados no Brasil pela sua ânsia de liberdade e de independência Ao mesmo tempo em que a construção da identidade regional paulista unia criava também uma aura de desprezo pelo restante do país acentuadamente mestiço filho de branco com negras e portanto inferior aos rijos paulistas Refletia também o federalismo brasileiro à americana que reforçava as lealdades provinciais em detrimento da lealdade nacional A fragmentação do país ocasionada pelo estabelecimento de uma república federativa só impulsionou a criação de identidades regionais e foi tão notório que chegouse a prever a fragmentação do país como conseqüência do modelo A respeito ver CARVALHO José Murilo de Cidadania no Brasil o longo caminho Rio de Janeiro Civilização brasileira 2006 FERRETTI Danilo J Zioni A Construção da paulistanidade Identidade historiografia e política em São Paulo 18561930 São Paulo EDUSP 2004 Mota Marly Silva da A nação faz cem anos A questão nacional no centenário da independência Rio de Janeiro Editora FGV CPDOC 1992 ABUD Kátia O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições a construção de um símbolo paulista o Bandeirante São Paulo EDUSP 1985 ADUCCI Cássia Chrispiniano A pátria paulista São Paulo Arquivo do Estado Imprensa Oficial 2000 ELLIS Jr Alfredo Raça de gigantes São Paulo Hélios 1926 312 A decadência bandeirante entretanto não foi completa Prado insistiu na regeneração do tipo como sendo a própria regeneração do lugar São Paulo uma vez que o bandeirante era o fundador do lugar e o desbravamento do sertão brasileiro pelos mesmos foi considerado como o fato que ocasionou sua decadência O retorno às raízes representou na obra de Prado o revigoramento local expresso na força empreendedora do povo paulista como extensão da força desbravadora do bandeirante A propósito ver Paulística São Paulo Companhia das letras 2004 162 qualidades negativas Todavia a pretensão de Prado era modernista em sua essência pois se voltava para o futuro do país ao enxergar em seu presente os entraves e dilemas que teimavam em não permitir sua modernização Fixandose na crítica às formas culturais que o Brasil herdara da experiência colonial além de uma reflexão sobre as possibilidades de superação dessa herança vista como um entrave à modernidade ao progresso moral e ao aperfeiçoamento político do país Prado se dispôs a inventariar os traços supostamente característicos da identidade nacional que repercutiam diretamente no descalabro que o autor enxergava no Brasil dos anos vinte Ao esculpir uma história psicológica313 do brasileiro a partir do estabelecimento e identificação dos aspectos mentais dos colonos portugueses seu texto mostrouse como um exercício de distanciamento do otimismo característico dos modernistas muito embora o autor fosse um dos seus mais atuantes representantes314 Ao construir um tipo nacional vergado pelos defeitos morais que o impedia de realizar as melhorias necessárias ao seu lugar de natureza marcadamente esplêndida Prado dava as costas ao ufanismo típico de uma das principais vertentes do movimento lançando mão da temática da herança social abordada por Bomfim embora sob outra perspectiva Em sua narrativa não eram os brasileiros ramos verdejantes de uma cepa vigorosa como dizia o médico sergipano mas um povo de cariz marcadamente negativo que precisava se olhar no espelho e enxergar suas próprias misérias de forma a enfrentálas e superandoas renovaria a si e à própria sociedade 313 O termo é de LEITE Dante Moreira Op cit p 262 314 A respeito ver Martins Wilson A literatura brasileira Vol IV O Modernismo 19161945 São Paullo Cultrix 1965 Se o retrato negativo de Prado permitiu aos seus críticos compreendêlo como um historiador preso na fronteira entre o moderno e o arcaico assim como referenciavam a distância etária existente entre aquele autor e os demais escritores modernista para acentuar certo distanciamento de Prado do Movimento Modernista apesar de ser o mesmo um dos principais financiadores do principal evento e de variadas obras Martins renegou tais perspectivas para reconhecer na obra de Prado as principais características do Modernismo nacional amplamente distanciado do Romantismo típico dos oitocentos pela própria coerência estrutural do seu livro no qual os aspectos históricos são plenamente articulados com os estéticos convergindo para um nacionalismo típico Contra todos os argumentos contrários a recepção de Blaise Cendrars a Retrato do Brasil e sua oferta de tradução para publicação do livro na Europa parecenos fazer cessar a dúvida sobre a inserção das propostas modernistas na obra de Paulo Prado Sobre o contato do modernista francês com Paulo Prado ver EULÁLIO Alexandre A aventura brasileira de Blaise Cendrars São Paulo EDUSPFAPESP 2001 163 Para a realização de uma empreitada conscientizadora Prado teve a preocupação de fugir do modelo de obra histórica peculiar à época em que vivia Como modernista o historiador desprezava o estilo intelectual sonhador e egocêntrico dos românticos marcado pela grandiloqüência e retórica pomposa que para ele nada mais eram que uma dose adicional na deformação da vida nacional a ocasionar um hiato entre a vida material e a vida intelectual e institucional Por conseguinte Retrato do Brasil ofereceuse em seu formato como obra literária de leitura agradável avessa às exigências de citações das fontes utilizadas apesar de largamente utilizadas em sua composição Fugiu assim dos rigores do academicismo no concernente à composição de seu texto embora tenha obedecido ao rigor metodológico dos seus mestres315 para se propor como uma história mais fácil de ser compreendia pela população em geral316 distanciada da erudição de Francisco Varnhagen e do tom inflamado de Manoel Bomfim O jogo de palavras do historiador revelou um excelente escritor capaz de conduzir seu leitor à profundidade de sua argumentação sem o cansar graças à narrativa bem elaborada inteligível com valores e expectativas bem definidas de modo a constituir a identidade pretendida No postscriptum Prado revelou ter pintado o retrato do Brasil como o teria feito um pintor impressionista ao diluir na composição histórica a cronologia e os fatos para que ali surgissem somente os aspectos as emoções a representação mental dos acontecimentos Sua finalidade última porém era a de produzir uma homogeneização da visão sobre o Brasil a ser divulgada de forma a servir para esclarecer a sociedade sobre seus riscos futuros o que denunciou uma postura um tanto iluminista do historiador que 315 Inegável que Prado em muito repetira na escrita do Retrato da prática de Capistrano de Abreu a quem devotava atenção especial e com quem muito aprendera sobre o fazer história A correspondência de Capistrano é reveladora do quantos os dois historiadores discutiam e planejavam as principais abordagens desse texto ficando a Abreu a incumbência da leitura e consequente crítica para o aprofundamento e melhoria do trabalho cujas fontes surgiram das indicações seguras de Abreu profundo conhecedor dos arquivos nacionais Eduardo Prado seu tio já falecido historiador vinculado ao IHGB também lhe serviu como exemplo 316 É importante relevar o fato que ao tempo de escrita e lançamento dos principais títulos de Prado 75 da população brasileira não eram alfabetizadas Em contrapartida o Brasil se destacava no período pelo expressivo aumento de publicação de jornais folhetins e revistas o que pode ter influenciado Paulo Prado a buscar facilitar a circulação de textos históricos à população dando um formato mais leve ao seu livro o que parece ter surtido efeito A notícia de que seu texto era manuseado por leitores nos bondes cariocas foi motivo de exultação do autor sendo relatada por René Thiollier em suas memórias sobre o Modernismo brasileiro A respeito ver THIOLLIER René de Castro A Semana de Arte Moderna depoimento inédito 1922 São Paulo Cupolo sd 164 também apresentava sugestões tais como uma revolução popular como solução para os problemas nacionais Com tal finalidade aquele historiador fez inegável uso político da história ao selecionar das múltiplas reminiscências do passado aquelas capazes de compor os tipos brasileiros no contexto da formação nacional Triste apático romântico individualista erótico bruto inescrupuloso amante da liberdade os brasileiros de Prado se originaram da memória de uma classe específica no contexto de manutenção de prestígio da mesma classe Seu desdobramento entretanto barateou a identidade nacional em favor da própria identidade na qual o historiador se reconhecia Seu esforço na recomposição das origens da nacionalidade por meio de uma viagem à colônia e à experiência dos primeiros séculos permitiu não apenas a composição de uma identidade para o Brasil Ao tempo em que a construía Prado findou por realizar também uma retórica do outro o português formador Em sua narrativa o outro não foi um só o outro foi dual duplo modificado pelo ambiente distorcido em seu caráter original pela ânsia por riquezas depauperado pelas paixões carnais e de livre findou dissolvido pelo desânimo tal como os nacionais 51 O português livre da Renascença Os tipos portugueses em Paulo Prado entretanto não são coexistentes Tal qual Manoel Bomfim Prado decompôs a mentalidade do homem português em dois momentos distintos superpostos em tempo e espaços Se em Bomfim o português experimentara uma sutil e gradativa mudança com o fim da União Ibérica e a ascensão da Dinastia dos Bragança e suas práticas reprováveis em Prado o português se assumiu como um tipo novo ao tempo do Renascimento317 quando segundo o autor descobriu a alegria de viver Assim sendo depreendese que Prado entendia o português anterior a esse período 317 Apesar de não esclarecer seu entendimento sobre este período o conceito de Renascença é sempre retomado no trabalho de Prado que dele se utilizou como forma de insuflar dinâmica a pessoas e lugares de modo a enriquecer sua descrição das formas de agir impregnadas de menoscabo pelo alheio conforme o conceito de um clássico da Renascença Baldassare Castiglione em sua obra Il Corteglione de 1528 O retrato de Prado sobre o português renascentista explorou bem essa peculiaridade ao revelálo como um homem sem maiores sentimentos pelo outro essencialmente individualista e disposto a realizar somente a própria vontade fazendo um paralelo entre esse e o homem renascentista marcado pela desenvoltura n o fazer numa superioridade sem esforço que Castiglione denomina de spezzatura para sintetizar o padrão da época Cf MISSIO Edmir 2008 O cortesão moral de Baldassare Castiglione e o ordinário de Eustache du Refuge Memorandum nº 14 p 2536 Abril2008 165 como diferente imerso nos dogmas das instituições feudais manietado em seu próprio lugar por profundas preocupações sobre a morte e o inferno o medo de Deus e do diabo Foi a alegria a qualidade de maior destaque manifestada no português do Renascimento facultada pela visão humanista da época afirmou o autor Em homem novo se transformou o português ao tempo em que passou de podridão pó e cinza a um grande milagre318 descobrindo a vida tomando o gosto pela aventura pelos prazeres corporais pelas viagens pelo desbravamento das coisas e dos lugares Já não havia espaço para o português ensimesmado amarrado aos dogmas do catolicismo arcaico amortecido pelo terror da cruz e pela promessa do paraíso Superando a Idade Média esse homem livre e consciente voltou ao paganismo e seu retorno ao ideal antigo alargou suas ambições de poderio de saber e de gozo Para chegar a esse ponto foi preciso alterar o sinal negativo319 que o cristianismo inscrevera diante do que exprimia fortaleza e audácia Já não era mais tempo de se resguardar era tempo de conhecer o mundo que se abria em leques ao português acenandolhe com ganhos e riquezas com os quais ainda não havia se permitido sonhar Era tempo de enfrentar a fraqueza a pobreza a doença abrindo as portas translúcidas da prisão ocidental de modo a substituir a obediência pela vontade individualista 320 Esse tempo de libertação gerou um português capaz de grandes conquistas Não à toa datam do período as mais belas expressões da arquitetura manuelina assim como uma plêiade de historiadores teólogos poetas e literatos com suas obras notáveis Mestre do empírico consciente de que a experiência seria a mãe de todas as coisas o português se fez navegador lançandose ao mar na ânsia de descobertas atraindo para si os avanços cruciais de mapeamento do mundo inaugurando a era dos descobrimentos e da expansão comercial aventurandose Foi na conquista e colonização do território americano que esse português renascentista assumiu em definitivo os traços de personalidade decisivos na construção do retrato que 318 O termo é de Hermes Trimegisto expresso na obra Corpo Hermeticum São Paulo Editora Hemus 2005 p 37 319 Prado utilizou a expressão de Nietsche de modo a enfatizar a transformação vital pela qual passou o português renascentista transformado de camelo em leão pela negação ao até então existente Cf Assim falou Zaratustra São Paulo Companhia das letras 2010 320 Nesse contexto Paulo Prado chamou a atenção para a formação da Companhia de Jesus que teve em suas bases o princípio da Obediência Foi contra a mesma segundo o autor que se revoltou o colono no Brasil o que explica o longo embate desse contra os jesuítas Esse ponto de vista de Paulo Prado é originário das leituras de Antero de Quental e de Oliveira Martins para quem a companhia de Jesus foi fator determinante para a decadência dos Ibéricos A propósito ver Retrato do Brasil p 149 166 Prado pretendeu do Brasil Era feliz era liberto era ousado movido pelas ambições de poder de saber e de desfrutar tal qual o fora no tempo das Cruzadas guardadas as devidas diferenças Longe da sociedade européia lastreada por normas de toda ordem o português pradiano alçou a condição de homem novo e livre pois que não mais teve amarras para satisfazer seus desejos Era preciso ser feliz ter gosto pelo que fazia amar a aventura para subsistir à mesma marcada pelo perigo do desconhecido num tempo em que ver se tornou tão importante quanto ouvir Para homens que vinham da Europa policiada o ardor dos temperamentos a amoralidade dos costumes a ausência do pudor civilizado e toda a tumescência voluptuosa da natureza virgem eram um convite à vida solta e infrene em que tudo era permitido 321 Assim o retrato do português construído por Prado tomou seu primeiro contorno esse tipo português livre e aventureiro fora criado nos limites europeus onde o pensamento humanista vingou ocasionando mudanças substanciais nas sociedades do continente Não obstante a liberdade e aventura iniciais só atingiram seu ápice distante dos limites dessas sociedades onde a norma era elemento impeditivo para que sua liberdade se externasse em plenitude Assim já é possível aduzir que o português pradiano mantido nos limites geográficos de Portugal e que mesmo gozando de todas as virtudes permitidas pelos pilares da Alta Renascença jamais atingiu a liberdade e a alegria daqueles que abandonaram a Península Ibérica para desfraldar o mundo Aos navegadores aos descobridores é que a liberdade se ofereceu com capacidade total de mudálos de renoválos de tirálos das peias de uma sociedade normatizada para lançálos num mundo natural sem fé sem lei para oferecerlhes paradoxalmente valores prezados por sua sociedade original ouro liberdade sexo A impulsão desse português renascentista mais que o desejo de conhecer o mundo de superar seus limites geográficos se configurou na escrita de Prado como o desejo de possuir o extraordinário o diferente o exótico Como o português já tinha acesso aos produtos orientais às sedas especiarias às jóias e pedrarias a América pouco lhe valeria num primeiro momento A Carta de Caminha não noticiara a descoberta de produtos comerciáveis o que de pronto lhes tirou o interesse Que lhes proporcionaria uma natureza edênica num tempo em que o amor à natureza era inexistente Tanto o era que a afirmação 321 Ibidem p 61 167 de Hernán Cortez Io no vine aqui para cultivar la tierra como um labriego sino para buscar oro322 tornouse a realidade dos conquistadores de Castela Em Prado foram os portugueses mais abastados que não mostraram interesse imediato pelo território americano que mais valorizavam as riquezas orientais dedicandose a esse mister Diante dos esplendores da conquista do Oriente na metrópole ninguém pensava na terra dos bugios papagaios saguis araras e pausdetinta Esse desinteresse não obstante abriu espaço para que logo nos primeiros anos após a chegada ao Brasil membros das camadas mais desfavorecidas da sociedade portuguesa se aventurassem na conquista da natureza americana sem nenhum suporte a não ser aquele que a própria terra oferecia Assim Prado demarcou a origem social dos primeiros colonizadores do Brasil os fortes troncos que chegaram à nova terra323 remontando à antiga discussão da historiografia nacional sobre o cariz dos mesmos324 Para abrir picadas na mata hostil que não permitia sequer a visão do céu para enfrentar o nativo e tentar livrarse de sua borduna e afiadas flechas aparentandose com o mesmo para descobrir na vegetação luxuriante o que alimentava e o que envenenava só a valentia e determinação dos degredados dos criminosos dos náufragos de másorte e de grumetes rebelado Eram esses os primeiros pais de uma nova raça envolvidos pelo individualismo infrene anárquicos pela volatização dos instintos sociais cada qual tendo no peito a mais formidável ambição que nenhuma lei e nenhum homem limitava entregues ao encanto da novidade e da surpresa primitivos individualistas ávidos de gozo e vida livre A extrema mocidade dessa gente325 traço característico da época foi associada pelo historiador como detalhe favorável às 322 Citado por MOLAS Ricardo Rodrigues Los sometidos de La conquista Argentina Bolivia Paraguay Buenos Ayres Centro editor de America Latina 1985 p 34 323 Observese que Prado utilizou em Retrato do Brasil p 194 da mesma representação de Manoel Bomfim em O Brasil Na América caracterização da formação brasileira publicado um ano antes 1927 324 É preciso destacar que essa representação dos primeiros europeus a colonizar o Brasil se distancia de uma representação mais forte associada à produção do IHGB na qual tratava os portugueses como agentes da civilização uma raça forte capaz de superar todas as adversidades dos momentos iniciais de vivência no novo território Apesar de negativar a origem brasileira forjada no encontro de índios e europeus entretanto as duas representações não se anulam A nosso ver tais representações se fortalecem mutuamente posto ser inegável a fortaleza física e psicológica dos portugueses condenados ou insatisfeitos com a vida na metrópole Tanto o é que as ditas representações foram reproduzidas sem contradição nos manuais escolares brasileiros durante várias décadas como nos mostra o trabalho de RIBEIRO Renilson Rosa Colônias de Identidades Dissertação de Mestrado em História Universidade Estadual de Campinas 2004 325 Sobre a questão Prado destacou alguns exemplos como o de Simão Luís que fugira de um navio com apenas dez anos de idade Afirma ter Cortez dezenove anos quando veio para a América Cieza de Leon apenas 13 Gonçalo de Sandoval 22 No Brasil Estácio de Sá tornouse governador com 17 anos In Retratos do Brasil p 32 168 inovações vitais que produziram um homem novo aberto a diferentes realidades Em grande parte porém Raros eram de origem superior e passado limpo na proporção de 1 para 10 De baxa manera y suerte de linajes obscuros e baxos informam os cronistas castelhanos326 Ao se referir aos primeiros anos do descobrimento período idílico Prado estipulou o primeiro século como aquele capaz ainda de produzir o português aventureiro indômito sôfrego por liberdade o português da Renascença sem peias nem traços de obediência à rigidez moral da Europa Eram os caraíbas aqueles bem recebidos pelos nativos a escória de Portugal transformada na primitiva aristocracia da terra ao se misturar com a indiada num caldeamento de raças livres que originou o bandeirante o mameluco327 Eram aventureiros mas tomaram a colônia como um paraíso terreal onde enriqueceriam distanciados da hierarquizada sociedade portuguesa Ao destacar a ambição como um dos motores desse homem renascentista Prado fez questão de destacar a nomenclatura utilizada pelos colonizadores dos primeiros tempos para demarcar o quanto a cobiça pelo ouro foi decisiva na expansão dos mesmos pelos territórios americanos Rio da Prata Rio do Ouro Castela do Ouro Costa Rica Porto Rico Ouro Preto Diamantina Minas Gerais 326 O retorno a essa temática pareceunos ser necessário na construção da identidade nacional pretendida por Prado sendo essa informação abundante nos documentos utilizados pelo autor e disposta em Retratos do Brasil à página 127 A união espúria do aventureiro principalmente português e francês com a índia do Brasil e com as negras também se refletiu numa perspectiva depreciativa da origem do povo brasileiro carecedora de um estudo mais detalhado 327 Prado informou a existência de três núcleos de povoamento e mestiçagem originados nesse período inicial chefiadas pelos portugueses Jerônimo de Albuquerque Diogo Álvares o donatário da Casa da Torre e João Ramalho A este último intitulou patriarca por excelência dos mamelucos paulistas embora Jerônimo de Albuquerque fosse o único com família e crônica conhecida Ibidem p 128 e seguintes Mesmo que Prado fizesse questão de criar uma identidade paulista a partir da representação da união do português dos primeiros tempos com a nativa cuja prole se tornou ancestral da aristocracia cafeicultora orgulhosamente autodenominada quatrocentona e a qual pertencia há que se destacar não ser o historiador descendente direto dos primeiros bandeirantes O fundador da família Prado no Brasil foi o português Antônio da Silva Prado que chegou ao Brasil na primeira década do século XVII Originário da cidade de Prado provinha de linhagem nobiliárquica e no Brasil casouse com uma senhora descendente direta dos bandeirantes Estabelecido Antônio Prado financiou várias expedições nos sertões de Goiás em 1730 em busca de ouro sendo agraciado com o título de Barão de Iguape o que projetou a sua família no campo político e social cuja fortuna e prestígio distenderamse durante o Período Imperial A data da chegada de Antônio Prado denuncia não ter sido o mesmo um homem com o cariz descrito por Prado como tipificador do português renascentista cujos valores foram fundamentais na criação da raça original dos paulistas Por outro lado Prado afastou da própria linhagem a desdita de descender da baixa estirpe da sociedade portuguesa ao destacar ser seu ancestral um nobre e não mais um aventureiro em busca de fácil enriquecimento 169 Ao constituir esse português aventureiro dado a ousadias que pareciam integrar o seu caráter como algo natural preexistente às conquistas ultramarinas Prado aliouse com Manoel Bomfim que fez uso da mesma descrição para representar o português infrene livre sem temor dos riscos das aventuras e descobertas que se tornaram comuns entre seu povo Não obstante o adjetivo aventureiro denotar certa negatividade o autor não o usou com esta intenção Prado enfatizou aspectos de bravura e determinação ao representar o português como tal mas um aventureiro ávido por ouro e que tinha um fito em suas ações que as justificariam o retorno ao país de origem em melhor situação financeira estabelecendose num lugar social de maior destaque Aventureiro porque ao lançarse no mar não conhecia a realidade que enfrentaria sendo o conhecimento do mundo além da Europa marcado por narrativas que mesclavam a realidade com a fantasia328 O desinteresse pela colônia enquanto lugar de vivência emergiu no texto de Prado ao estabelecer mais uma representação do português a do usufrutuário dilapidador desinteressado pela rica natureza encontrada como já o atestara Frei Vicente de Salvador em sua História do Brasil de 1600 Tal constatação parece ser contraditória se avaliarmos que o português especificamente conhecera no Brasil uma vida aprazível se comparada à que era reservada ao homem pobre do Velho Mundo e cujo detalhamento fora levantado por Alonso de Santa Cruz em 1527 ao descrever as ilhas do Brasil329 Sendo superior a condição de vida do colono em relação à sua existência em Portugal somente o espírito de aventura tão decantado por Prado justificaria a vontade perene de voltar ao Reino espírito esse enfatizado pelo caráter de desapego à terra pelos colonizadores portugueses 328 Claude Suto resgatou a realidade da terra para o homem europeu do século XVI e afirmou a crença na existência do equador dos trópicos de cinco zonas climáticas três continentes três mares doze ventos Falavase em hiperbóreos vivendo em trevas na Europa setentrional e em grandes ilhas cheias de mistério no Atlântico Sobre a África falavase do Magreb e do Egito e nele fundeavamse hipóteses sobre as nascentes do Nilo A Ásia grande pólo de fascínio encerrava o Paraíso terrestre vedado por altas montanhas por uma cortina de nuvens e por hordas de animais monstruosos Ao norte ficaria o país de Gog e Magog onde habitavam as tribos de Israel expulsas por Alexandre No centro estendiase o reino de Preste João descendente dos reis magos e inimigo ferrenho dos muçulmanos Ao sul ficava a Índia composta por ilhas transbordantes de pérolas madeiras preciosas especiarias e peças de seda além de homens e animais monstruosos e uma natureza exuberante O oceano Índico seria à época o horizonte mental corporificador do exótico para o Ocidente medieval Cf SUTO Claude Limage Du monde connu à La fin Du Moyen Age In ALLARD Guy Aspects de la marginalité au MoyenAge Citado por MELLO E SOUSA Laura de O diabo e a terra de Santa Cruz São Paulo Companhia das letras 1986 329 No Islário Geral de 1542 Santa Cruz descreveu a vivência do colono português no litoral da Capitania de São Vicente asseverando ali existir um povoado de dez ou doze casas uma feita de pedra com seus telhados e uma torre para a defesa contra os índios em tempos de necessidade Estão providos de coisas da terra de galinhas e de porcos da Espanha em muita abundância além de hortaliças variadas Tem estas duas ilhas um ilhéu entre ambas do que se servem para criar porcos Há grandes pescarias de bom pescado 170 interessados tão somente nas riquezas que podiam ser constituídas na colônia e na forma de como poderiam transportálas para o reino Em Prado esse modo de vida redimensionava o espírito aventureiramente alegre do português que tinha Portugal como porto de partida mas sabia que o mundo era seu lar Por tal viés dáse a reconhecer algumas continuidades entre a história produzida por Prado e a história íntima de Capistrano de Abreu que buscou revelar o Brasil pelo seu avesso investigando a vida dos sertões O português seria assim na construção pradiana o mesmo tipo transoceânico330 apontado por Abreu mas que deixou no Brasil a sua semente no contato com a nativa originando uma nova raça Um homem que não se pautava mais pelos valores do catolicismo que já não via o mundo pela dicotomia do pecado e graças a isso era livre para praticar o que o momento lhe oferecia dentro de uma lógica proporcionada pela ideologia renascentista Ao mesmo tempo algumas extrusões são reveladas no pensamento dos dois historiadores Um bom exemplo diz respeito ao total esquecimento de Prado à dicotomia aventada por Abreu ao representar o homem simples de Portugal que viera ao Brasil por sua própria vontade como diferente daquele que cumprira uma missão investido de poderes concedidos pela Coroa Em Prado este tipo não existiu o que denuncia o tratamento generalizante aplicado pelo autor em relação ao colonizador Por extensão Prado enfatizou o gosto pela aventura do português renascentista pelo desbravar pelas viagens temática não abordada por Abreu desdenhando do cariz próprio do burocrata enviado para assumir um posto na administração colonial transferido para o Brasil sob uma obrigação e não apenas por exclusiva vontade esses já estavam no território colonial mesmo que em número reduzido bem antes de Martim Afonso de 330 O transoceanismo é característico dos escritos de Capistrano de Abreu que cunhou a expressão para designar a base fluida e instável que dava sustentação ao projeto colonial onde o Estado Português não ia além das costas brasileiras Esta base se refletirá no modo de enxergar o território colonial também pelos seus agentes de colonização que consideravam a colônia como um degredo ou purgatório da qual pretendiam sair o mais breve possível preferencialmente enriquecidos A instabilidade da vida colonial resultante do transoceanismo foi informação resgatada por Capistrano de Abreu nas Informações e fragmentos históricos do Padre José de Anchieta 15841586 prefaciada por Abreu e também na História do Brasil de Frei Vicente inédita até 1886 quando publicada por Capistrano em fascículos do Diário Oficial A respeito dessas descobertas ver o trabalho de WALDMAN Thaís Chang Moderno Bandeirante Paulo Prado entre espaços e tradições Dissertação de mestrado em Antropologia Social Universidade de São Paulo 2009 O liame entre Prado e Abreu será uma constante nos escritos do primeiro posto ter aquele autor em Abreu uma referência de sólidos conhecimentos além de uma qualificada orientação Muitos dos pontos de vista de Capistrano podem ser encontrados nos escritos de Paulo Prado 171 Sousa e o estabelecimento das capitanias331 Mesmo ao se referir ao português do século XVII época em que o arcabouço institucional metropolitano já existia em plenitude no ambiente colonial Prado manteve a representação do aventureiro não obstante marcado por severos vícios como veremos mais adiante O cariz de aventura e de liberdade que deu face ao português pradiano ratificou outra peculiaridade do tipo mostrado como incapaz de se sedentarizar no ambiente colonial Sua liberdade pressupunha um direito quase natural de ir e vir quando tivesse vontade de afiliarse aos costumes nativos de despedir sua companheira ou desposar quantas quisesse de partir para os matos sem se importar com o que deixara para trás de ir e voltar de Portugal sem maiores apegos Prado pretendia com essa representação mostrar o quanto essa liberdade ficara marcada na descendência bandeirante apesar do historiador não fazer menção ao caráter desbravador do português dentro da colônia Em seu texto raros foram aqueles que procuraram desde o início o ermo de difícil acesso do território colonial fixandose no litoral o que denuncia seu desvio da perspectiva abrelina ao referenciar a interiorização da colônia por variados portugueses332 Ao aplicar um teor literário a um texto de história Prado desdenhou da datação como elemento primordial a um trabalho dessa natureza caindo num generalismo abusivo nas representações acerca do português Ao trazer a tese de Paulística para o bojo de Retrato do Brasil evidenciase a necessidade de uma datação mais precisa para que se identifique 331 A propósito ver AVELAR Hélio de Alcântara História administrativa e econômica do Brasil Rio de Janeiro FENAME 1976 332 Prado não fez menção do caráter desbravador do português apenas do bandeirante a quem considera seu descendente fruto de sua união carnal com a nativa Há que se destacar que aquelas tinham como prática o nomadismo além do conhecimento do território advindo da necessidade de se buscar nas tribos inimigas matéria para suas práticas antropofágicas que somados à necessidade portuguesa de buscar riquezas de descobrir veios auríferos e jazidas de pedras preciosas resultou num enlace interessante para os dois Sendo o bandeirante o herdeiro natural de tais características não poderia deixar de promover as mesmas práticas resultantes de uma herança social Ao mostrar o desbravamento como uma virtude apenas do bandeirante Prado subtraiu os devidos créditos ao português ao tempo que avolumou a importância do mestiço bandeirante na formação do território brasileiro concedendolhe um papel privilegiado mais interessante para a fixação da identidade regional pretendida pelos integrantes de sua classe social Em Paulística Prado descriminou as peculiaridades de cada raça para mostrar qual a participação das mesmas na formação da personalidade do bandeirante defendendo a superioridade da mestiçagem originada do encontro do nativo com o português Do índio vinhalhe o ardil o instinto a maleabilidade a coragem impassível a observação agudíssima apurando os sentidos Do branco a obstinação a inteligência a imaginação a cobiça o gosto pela aventura Corrigindo o velho fundo disciplinar e tradicional do europeu a fraternidade comunista do indígena seria a semente da independência esquiva que veio caracterizar o novo tipo étnico em formação E desenvolvendo nessa luta de cada instante contra a natureza foi aí que se revelou a verdadeira grandeza da bandeira paulista PRADO Paulo Paulística São Paulo Companhia das letras 2004 172 sobre qual português o autor se refere em determinados trechos de seu trabalho Ao utilizar as escarpas da Serra do Mar como elemento primordial e único a diferençar o alegre português renascentista do planalto paulista daquele que se dispôs a ficar no litoral Prado findou por lançar dúvidas sobre a acalentada identidade étnica original dos paulistas se considerarmos que a união com a índia fora prática comum do primeiro século em todo território colonial assim como por ele se alastrara o português renascentista na primeira centúria Por suposto o mameluco abrelino ou o bandeirante pradiano deveriam ter a mesma composição étnica Em defesa do retrato regional intentado o historiador insistiu na preservação da cultura originária da raça ali formada o que para ele não ocorrera no restante da colônia nas capitanias mais ao norte próximas do mar e em constante contacto com Portugal Naquelas o português do renascimento europeu cedo teve seu caráter modificado em decorrência de outro ambiente social além do contato freqüente com outros portugueses oriundos de um reino cada vez mais degenerado a produzir homens diferentes daqueles alegres aventureiros que chegaram ao Brasil apenas cem anos antes 52 A Metamorfose de livres a tristes Se o ouro fora a motivação primeira para que aquele português renovado no Quatrocento se lançasse ao mar em busca de aventuras e enriquecimento Prado investiu na tese de que o ouro também se alçou como um dos principais motivos para sua derrocada Foi com o fito de enriquecimento que os aventureiros partiram dos portos portugueses para explorar outros lugares O espírito da época inspirava as descobertas e os portugueses revestiramse desse espírito ao extremo posto terem se tornado exímios navegadores numa busca frenética pela descoberta do mundo Os mais abastados rumaram ao Oriente enquanto aos desfavorecidos restou a América nos seus primeiros tempos Fosse qual a direção ou a condição social libertaramse os descobridores dos freios e sanções de uma sociedade que amadurecia e que passava por severas transformações No Brasil habitado por gente de hábitos prosaicos o aventureiro português refinou suas primitivas pretensões e mesmo ao enfrentar uma natureza que escondia seus prováveis e preciosos encantos para além de serras rios e florestas não se desviou do motor de suas aventuras era necessário descobrir riquezas imperioso seria enriquecer 173 A busca pela riqueza foi mostrada por Prado como a desventura portuguesa no Brasil Se no primeiro momento o fito do enriquecimento foi o motor da aventura colonial do desbravamento dos mares da exploração das matas foi o encontro das profusas riquezas minerais ocultas no território brasileiro uma das ocorrências determinantes para que o português renascentista entrasse em acelerado processo de degradação realçando um cariz que lhe era natural o português era naturalmente um ser melancólico 333 e tal peculiaridade foi relatada desde os primeiros anos da colônia por Padre José de Anchieta 15341597 e por Frei Vicente de Salvador 15641635 A cobiça foi ponto de apoio a justificativa necessária para a superação dos desafios enfrentados pelos portugueses na faina cotidiana Foi a ambição a sede pelo ouro e pelo enriquecimento a cupidez um dos mais pujantes aspectos da mentalidade que impulsionou o português para as descobertas e para a conquista de novos lugares aos quais Prado buscou dar o máximo destaque Por toda a parte o aventureiro corria atrás da prata do ouro e das pedras preciosas que durante quase dois séculos não foram senão ilusões e desenganos Compensava a esterilidade do esforço a descida do indígena Entrelaçavamse e confundiamse assim as bandeiras de caça ao gentio e bandeiras de mineração Quando se dissipava a miragem da mina ficava como consolo o índio escravizado Obsessão formidável de uma época de uma raça e de um novo tipo convergindo numa idéia fixa avassaladora Ouro ouro ouro334 Não obstante o olhar pradiano lembremos que desde os anos iniciais da colonização com a divisão do solo em capitanias a cultura canavieira e a consequente produção açucareira assumiram importante papel no quadro de desdobramento da expansão colonial especificamente na orientação de uma política econômica de interesse metropolitano A 333 Segundo SCLIAR durante a Idade Média a melancolia fora pensada como um grave pecado a acédia A indiferença do homem em relação a Deus era tão grave quanto a cobiça ou luxúria sendo a tristeza crônica quando manifestada considerada coisa do demônio Com o enfraquecimento do papel da Igreja a acédia passou a ser considerada um caso a mais de melancolia A acédia prostrava o homem enquanto a melancolia permitia a produção intelectual e artística Para Scliar a melancolia retornou num contexto de ascensão do individualismo renascentista tipificado em Prado no colono português do primeiro século SCLIAR Moacyr Saturno nos trópicos a melancolia européia chega ao Brasil São Paulo Companhia das Letras 2003 A temática da tristeza como típica do colono português emergiu das pesquisas de Capistrano de Abreu ao editar alguns documentos sobre o período sendo os mais expressivos as Cartas informações e fragmentos históricos de autoria do Padre José de Anchieta Rio de Janeiro Civilização brasileira 1933 bem como na História do Brasil de Frei Vicente de Salvador São Paulo Companhia Editora Nacional 1978 334 Ibidem p56 e 61 174 descoberta das minas e a atividade mineradora datam do início do século XVIII enquanto a instalação dos primeiros engenhos de açúcar remonta ao século XVI 335 A produção da especiaria de alto valor no comércio europeu foi portanto uma das primeiras e a principal atividade econômica do português no Brasil até meados do século XVII quando os preços caíram vertiginosamente obrigando a coroa portuguesa a ressuscitar uma antiga obsessão a descoberta das minas e sua subseqüente exploração que se tornou nas palavras de Prado uma loucura coletiva336 Prado não fez menção à mentalidade portuguesa sobre as minas no Brasil desde os primeiros tempos da colônia apesar de Gândavo referenciar a convicção dos lusos sobre a certeza do ouro e a prata brotarem da terra nas regiões exótica de clima quente337 o que restou provado tratarse apenas de lenda Assim como a produção açucareira em seu fazer meticuloso demandava inauditos esforços do mesmo modo ocorrera com a exploração mineradora O trabalho antes de tudo era a exigência básica para a formação dessas riquezas na colônia que somente em raras ocasiões se apresentavam à superfície da terra na faisqueira da areia dos rios Mesmo para encontrála entretanto eram necessários meses de caminhada na mata formação de roças para a subsistência enfrentamento de terríveis animais pestes e inços próprios dos trópicos Não se pode dizer que a riqueza ansiada pelos portugueses foi auferida com a facilidade sonhada e o trabalho árduo foi o marco na exploração dessa riqueza O Brasil não era o Oriente onde o saque exigia no máximo a luta e o arrancar de ouro se dava diretamente das orelhas das mulheres como já referido por Oliveira Martins Nesse ambiente de trabalho árduo marcado pela 335 Foi precoce a vontade da Coroa portuguesa de introduzir a economia açucareira no Novo Mundo Em 1516 a Casa da Índia recebeu a incumbência de localizar artífice no fabrico e que quisesse tentar a sorte no Brasil Já em 1519 há notícias da existência de pequeno engenho assim como da entrada de açúcar brasileiro no porto de Antuérpia no ano seguinte sem maiores relevância econômicas Somente após a instalação das capitanias verificouse como prerrogativa a concessão de licenças para construção de engenhos e em 1534 foi noticiada a instalação do primeira unidade produtiva em Pernambuco Gândavo informara que em 1570 existiam sessenta engenhos com produção anual total de 2700 toneladas Dez anos mais tarde Fernão Cardim indicaria a existência de 115 unidades produtivas sendo 36 na Bahia 3 em Ilhéus 1 em Porto Seguro 66 em Pernambuco 6 no Espírito Santo e 3 no Rio de Janeiro Os dados podem ser conferidos em GÂNDAVO Pero de Magalhães de Tratado da província do Brasil Rio de Janeiro INL MEC 1965 e em CARDIM Fernão Tratado da terra e da gente do Brasil São Paulo CEN Brasília INL 1978 336 É certo terem sido os habitantes da capitania de São Vicente os encarregados de esquadrinhar os sertões do Brasil central em decorrência das condições geoclimáticas daquela parte da colônia adversas à economia açucareira e ao contato com o litoral razões para a manutenção de uma economia seminatural o que obrigava seus habitantes sem capitais para aquisição de escravos negros buscarem o aprisionamento dos nativos Por não participarem da principal economia de interesse da metrópole e por terem vasto conhecimento dos territórios interno da colônia receberam a incumbência dessa missão 337 Ibidem p 122 175 mentalidade de enriquecimento a todo custo em constante enfrentamento com a natureza desafiadora frutificaram os troncos robustos do português renascentista marcados pelo enfado como pressuposto de sua busca Em oposição do outro lado do Atlântico Portugal decaía em seu poderio a derrota na Ásia a morte de D Sebastião a união com a Espanha assim como o estabelecimento da Inquisição e seu crescente poder foram apontados na escrita de Prado como os fatores da dissolução do homem renascentista que vivia em Portugal e cada vez mais castrado dos ideais humanistas que o Quatrocento lhe proporcionara A nação portuguesa corrompida pelo luxo e pela desmoralização dos costumes perdia pouco a pouco a sua primitiva vitalidade Os governos despóticos e incapazes só conservavam a antiga energia para sustentar a Inquisição338 Para Prado tinha faltado a Portugal a verdadeira compreensão histórica e econômica de sua missão metropolitana A nação e o governo recebiam como uma esmola o ouro as pedras preciosas e os produtos comerciáveis das colônias vivendo sem trabalhar Acoimado pelo ambiente restou ao português comum ser inoculado pelo germe da decadência murchando em si escalavrandose na tristeza que acobertava as terras portuguesas transformandose pois no português da governança e da fradaria No ambiente colonial o mal tardou a chegar nomeadamente nos rincões mais remotos do litoral ausentes do contato constante com o ambiente metropolitano Por sua vez nas terras do açúcar bem antes das descobertas das minas o entrelaçamento com o português oriundo desse ambiente de ruínas corrompido pelo luxo e pela desmoralização dos costumes resultou na degradação dos colonos que se antes eram movidos pela ambição e pela aventura passaram a sêlo por uma cobiça irrefreável Cada vez mais exigia o colono de si na ânsia de enriquecer E nessa angústia o português dantes livre e alegre foi decaindo numa melancolia que nascia das estafantes atividades por ele empreendidas nas lembranças da terra e das pessoas que deixara para trás e assim seu olhar sobre o ambiente colonial foi sendo modificado pois que aquele de edênico tornouse satânico a expressar a inadequação do elemento humano ao cenário paradisíaco tropical339 338 Ibidem p 188 339 CARVALHO José Murilo de O motivo edênico no imaginário social brasileiro Revista Brasileira de Ciências Sociais São Paulo v 13 n 38 Out1998 p 1321 176 Antes disso todavia o mesmo espírito de aventura fizera com que o português se entregasse ao desejo imediato diante da nudez das nativas cujas qualidades estéticas foram objeto de inúmeras páginas escritas por cronistas e navegadores entre os quais Caminha em sua carta ao rei sobre a descoberta de novas terras Abaixo do Equador não existiam pecados e as mulheres pitorescas do Brasil firmaramse como excelente surpresas para os portugueses cuja lubricidade afluiu no contato com os nativos embora preexistisse na mentalidade quatrocentista marcada pelo desejo individual e pela vida livre Prado destacou o quanto o colono português se entregou à vida dissoluta ao fazer das índias as companheiras de lida na colônia formando famílias tendo filhos assumindo os costumes e o parentesco dos nativos Para aqueles não bastava uma ou duas assumindose como companheiro de três ou mais mulheres no mesmo ambiente ou em localidades diferentes como era comum entre os nativos os quais segundo Gabriel Soares de Sousa morriam esfalfados pelas sujidades que cometiam a cada hora340 Do texto de Prado sobrevém a certeza que muitas das práticas adotadas pelo colono português em seu contato com os nativos não se tratava apenas de uma adequação dos primeiros para com os segundos num exercício de adaptação aos costumes vigentes na nova terra como descritos por muitos dos cronistas coloniais341 Para Prado o português já era dissoluto desde sua origem onde o desregramento ocasionado pela mentalidade renascentista somarase à sua experiência diante dos diversos povos do mundo por onde transitou sem cuidados nem respeitos A luxúria que tipificou o português no entanto atingiu novos patamares quando a colônia já não se restringia a dois tipos étnicos O aprofundamento da exploração canavieira exigira braços fortes e a recusa e valente teimosia do índio sobreviera como impeditivo de seu uso como mãodeobra nos engenhos além de não proporcionar lucros diretos à metrópole Por outro lado a escravidão negra emergira como excelente razão econômica para seu estabelecimento oficial e a partir de 1570 os escravos da Guiné aportaram nas praias da colônia para trabalhar do eito dos engenhos numerosos nas regiões mais ricas do 340 SOUSA Gabriel soares de Tratado descritivo do Brasil 1587 341 A perspectiva de Prado por conseguinte trata o encontro entre portugueses e nativos americanos como pouco impactante para os primeiros sexualmente desregrados no ambiente de origem e em contato com tribos complacentes nesse mister Parecenos então que a narrativa pradiana trata de um encontro de mundos não muito diferentes ao destacar as práticas sexuais e sociais dos nativos como forma de esclarecer que a lubricidade portuguesa apenas se acentuou na América sendo anterior à chegada dos portugueses na mesma 177 espaço colonial342 que tiveram sua face modificada desde então Em nova cena a mulher negra em sua condição de submissa bem diferente da índia voluntariosa foi mais um passo na decadência portuguesa justificativa da luxúria infrene somada à ambição do enriquecimento a todo custo que marcou o processo colonial repleto de histórias escusas ocorridas nos quartos da casagrande na sordidez das senzalas no oculto dos canaviais343 Como prova de que a luxúria da qual falava provinha do ambiente metropolitano Prado insistiu em mostrála como uma peculiaridade não exclusiva do homem macho português Com tal finalidade seu texto inovou ainda mais ao resgatar de relatos de viajantes as astúcias na arte de sedução e do capricho na escolha de amantes utilizada pelas poucas mulheres européias na colônia capturando recônditos do mundo feminino português até então inexplorados pelos historiadores locais O relato de autoria desconhecida datado do início do século XVII e utilizado por Prado em seu Retrato não trata de mulheres pobres ou desvalidas sujeitas a prostituição como forma única de sobrevivência mas da vida íntima da boa sociedade da época344 e das práticas secretas das jovens damas portuguesas345 342 Necessário lembrar que a escravidão negra não dominou por completo o território colonial destacandose apenas nas regiões produtoras de açúcar cujos ganhos com a venda da especiaria permitia o financiamento de cativos africanos Nas regiões onde o clima ou o relevo não permitiram a exploração açucareira consideradas periferias da colônia como São Paulo Maranhão e Pará fizeram uso de formas incompletas de escravidão assim como formas servis de submissão do nativo e do homem pobre livre cujos usos atingiram o século XX 343 No texto de Paulo Prado a questão é tratada de forma elegante sem expressões chulas e com a objetividade necessária de forma a demonstrar a seriedade daquele autor para com o seu leitor e seu próprio trabalho A mesma postura pode ser observada quando da publicação da Primeira visitação do Santo Ofício a partes do Brasil Confissões da Bahia 15912 em consórcio com Capistrano de Abreu A correspondência dos dois autores revela como os mesmos consideravam melindroso o trato com a forma como seriam publicados os relatos sobre as heresias sexuais sujidades no dizer de Prado Na discussão entre os autores sobre a forma como tais passagens deveriam ser impressas foi Abreu taxativo ao concordar com o parceiro Você tem razão e não importa a pornografia a impressão deve ser feita Mesmo assim no prefácio do livro Abreu orientou o leitor sobre as páginas onde encontraria o assunto melindroso podendo assim evitálas A respeito ver RODRIGUES José Honório Correspondência de Capistrano de Abreu Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1977 3º volume O interesse pelos temas miúdos da história Prado os assumiu no contato com Capistrano de Abreu para quem o estudo completo e complexo do drama humano engloba duas histórias distintas porém complementares uma íntima e outra externa A história íntima com seus relatos sobre os costumes as moralidades e os vícios deveria mostrar como aos poucos foi se formando a população devassando o interior ligando entre si as diferentes partes do território fundando indústrias adquirindo hábitos unindose por fim à nação A respeito ver ABREU Capistrano Ensaios e estudos crítica e história Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1976 344 Ibidem p 3940 345 A primeira mulher branca de que se tem notícia no Brasil é a de João Gonçalves meirinho em São Vicente e de que fala uma petição datada de 1538 Segundo os termos desse documento o casal deveria ter chegado um ano antes em 1537 Tomé de Sousa em 1549 trouxe algumas mulheres casad as com 178 Outro exemplo do fato teriam sido as práticas cotidianas de Garcia DÁvila em sua Casa da Torre346 que nada mais era para o autor que um pequeno núcleo de devassidão indisciplina e viver desregrado desenvolvendo em plena anarquia moral e social os germes da desmoralização e depravação dos costumes trazidos da metrópole já decadente Ligada umbilicalmente ao organismo enfraquecido e doentio da metrópole a Casa da Torre assim como os núcleos costeiros da colônia não viviam vida própria na ótica de Prado A proximidade com a Europa o intercâmbio comercial a influência direta da administração central mil fatores étnicos e econômicos solidarizavam tais espaços com o ritmo vital do velho reino ora paupérrimo ora esbanjador de riquezas mas no caminho fatal para a decadência Sem ideais religiosos ou estéticos e sem nenhuma preocupação política intelectual ou artística que pudesse entorpecer sua busca constante de enriquecimento e seus excessos carnais Prado abordou tal contexto como o estopim para que o português perdesse de vez o espírito renascentista que o fizera livre Consumido pelo desejo envenenado pela concupiscência no contato constante com os do reino onde a ambição e luxúria assumiram patamares nunca dantes visto o colono português decaiu numa tristeza empregados que vinham temporariamente para a colônia Só mais tarde em 1551 diz Gabriel soares chegaram mulheres para casar com os moradores principais da terra Traziam como dotes ofícios da fazenda e justiça Na frota de BoisleConte em 1556 refere Jean de Lery que embarcaram cinco solteiras acompanhadas por uma governanta Foram as primeiras francesas que conheceram o Brasil casando com seus patrícios no Forte de Villegaignon 346 A Casa da Torre foi uma grande construção em formato de castelo medieval única existente em todo território brasileiro sede administrativa de uma série de datas auferidas pelo português Diogo Álvares e seus descendentes empenhado na interiorização do domínio português no território da colônia no Século XVI Caracterizouse como a sede do maior latifúndio do mundo dentro de uma área equivalente a 110 do território brasileiro equivalente às áreas de Portugal Espanha Holanda Itália e Suíça juntas Localizada na capitania da Bahia representou grande poder militar no combate aos franceses e holandeses que ali aportavam e integrava um conjunto residencialmilitar compreendido pelo próprio Castelo com sua Torre e seus anexos o Forte Garcia dÁvila o Porto do Açú da Torre e sua Ambiência formada pelas áreas adjacentes Também nomeada nos documentos da época como Castelo da Torre de Garcia dÁvila Castelo Garcia dÁvila Torre de Garcia dÁvila Solar da Torre ou Torre de Tatuapara a Casa da Torre representa o arcabouço da aristocracia colonial cuja família original tem na união de Diogo Álvares com Catarina Paraguaçu uma tupinambá batizada na França com o nome de Katherine du Brézil sua máxima representação Além de importantíssima no desbravamento do Brasil e na formação do território nacional a Casa da Torre foi pioneira na pecuária brasileira corroborou com a expulsão dos jesuítas do Brasil participou na corrida pelo El Dorado que culminou nas descobertas das minas em Minas Gerais e teve entre seus membros adeptos dos ideais libertários da Revolução Francesa De 1798 em diante esteve envolvido nas lutas pela Independência sendo muitos de seus membros agraciados com títulos de nobreza por Dom Pedro I e Dom Pedro II A respeito ver SEIXAS Wilson Pesquisas para a história do sertão da Paraíba In Revista do Instituto Histórico e geográfico paraibano Nº 21 João Pessoa Imprensa universitária da Paraíba 1979 p 64 e seguintes 179 paralisante deixando aos poucos de ser um aventureiro ousado cujas faces irradiavam a felicidade de ser solto no mundo de conhecer seus caminhos de ser um desbravador Aqueles pecados capitais refreados no medievo parecem ter sido acordados de um sono ordinário num despertar que os deixara fortalecidos A colônia então se antes fora um local aprazível transformouse no purgatório ou quiçá no próprio inferno lotado de homens decaídos cuja virtude da felicidade se esvaíra no eito dos canaviais na solidão da bateia no gozo rápido com negras e índias A melancolia a tristeza tornouse assim uma peculiaridade do cariz português na narrativa de Paulo Prado a demonstrar não ser o luso um tipo superior conforme descreveram alguns historiadores nacionais Preconizado no grosso da historiografia nacional de até então como aventureira gente com cariz povoador e com a notável capacidade de estabelecer contatos amigáveis com as populações nativas com as quais travava relação347 o português de Prado pareceu inverter esta tese ao salientar a saudade como atributo Sendo a saudade um sentimento do que se deixou para trás como poderia ser esse mesmo português um aventureiro destinado a fazer sua vida nos mais diferentes lugares do globo indiferente à sua terra e à sua gente Se o caráter do português exibia uma maleabilidade tal que o permitia se adaptar sem dificuldades mais que quaisquer outros povos aos diferentes lugares em que chegara como considerar que o mesmo nutria sentimentos adversos pela América portuguesa considerandoa como uma prisão Eram por conseguinte uma raça triste e sua tristeza tinha nascedouro em sua paixão pelo ouro assim como no abuso venéreo experimentado à exaustão principalmente no Brasil Também tornava entristecida a personalidade dos portugueses a melancolia e saudade da pátria que deixaram para trás e por considerarem a colônia um verdadeiro purgatório onde penavam em degredo No alémmar estava a terra portuguesa o lugar de origem a pátria mãe a referência identitária e no trânsito do maroceano emergiu a saudade portuguesa embasada na tristeza e na melancolia originárias dos sentimentos vazios proporcionados 347 Seu argumento permitiu que mais adiante o autor justificasse a escravidão negra como uma necessidade econômica do período salientando sempre o caráter harmonioso das relações entre portugueses e africanos observação utilizada anos mais tarde por Gilberto Freyre em seu Casa Grande Senzala de 1933 180 pela luxúria e pela cobiça e que o português legou ao seu descendente o brasileiro 348 que viveu triste numa terra radiosa permeada por vícios e pecados Conclusões da Parte II Foi Capistrano de Abreu quem comparou o brasileiro a um jaburu ave forte embora pouco capacitada à ação349 O jaburu carregava uma simbologia marcadamente negativa construída ao arrepio do espírito ufanista do início do século XX e embora pecasse pela generalidade expunha uma faceta da identidade nacional que ainda não se ousara construir Nessa identidade os portugueses estariam amalgamados de forma tal que quase não se podia extirpar sua presença tão profunda seria a mesma na formação nacional A colônia gerara um povo novo cujos genes carregavam grande teor dos chamados filhos de Portugal e o questionamento sobre o sentido de valor da antiga metrópole foi expresso na herança mental dos colonos Prado como discípulo de Abreu interessouse pelo tema utilizandoo na construção de uma identidadedenúncia que demonstrava o incômodo do historiador pelos rumos tomados pelo país o que findou por fazêlo enfrentar severas críticas350 Em seu tempo Retrato do Brasil foi uma obra inovadora e polêmica embora tenha inaugurado no panorama da historiografia brasileira uma era de grandes ensaios destacandose por construir uma psicologia da descoberta dominada por dois grandes impulsos A tristeza portuguesa e por extensão a tristeza brasileira não teriam consistido na tese central do pensamento daquele autor organizada a partir de peculiaridades de um dado momento 348 Segundo EULÁLIO CALIL Prado pediu a Blaise Cendrars em dezembro de 1926 uma busca bibliográfica sobre o tema que daria ensejo ao seu Retrato Cf EULÁLIO Alexandre CALIL Carlo Augusto Op cit p 27 349 Em trecho de carta de autoria de Abreu a João Lúcio de Azevedo aquele historiador descreveu o jaburu como de estatura avantajada pernas grossas asas fornidas mas que passava os dias com uma perna cruzada na outra triste triste daquela austera apagada e vil tristeza A carta pode ser lida na íntegra à p 175 e seguintes em RODRIGUES José Honório Org Correspondência de Capistrano de Abreu Vol 2 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1977 350 O volume intitulado O brasileiro não é triste assinado por Eduardo Frieiro em 1931 foi publicado como um contra discurso à proposta de Paulo Prado e só não teve um impacto esperado pelo fato de que na data de lançamento da obra as mudanças políticas operadas pela Revolução de Trinta permitiram uma rápida superação do debate estéril sobre a alegria e tristeza nacionais A respeito ver a observação de Brito Bro ca em Alegria versus tristeza Seção Vida literária A Gazeta recorte não datado pertencente ao arquivo do CEDAEIELUNICAMP 181 histórico sendo a tristeza o resultado da soma dessas ditas peculiaridades a definir um espírito coletivo nacional351 Ao utilizar o português como referencial na construção de uma identidade nacional Prado se diferenciou dos demais historiadores de sua época inaugurando o tratamento ambíguo na relação havida entre portugueses e brasileiros Necessário enfatizar que aquele autor ao falar do português referiuse ao reinol e não ao seu remanescente nascido no Novo Mundo e afiliado à coroa portuguesa por isso considerado português por tantos outros autores ou lusoamericano Seu ponto de vista não admitia o Brasil como uma extensão de Portugal mas como um novo lugar onde surgiram novas raças Digo novas posto o autor entender haver duas ambas lusoamericanas com seus tipos próprios o mulato e o mameluco A primeira formada pelo sangue do negro em contato com o do português decadente tornarase um problema angustioso no dizer do autor A segunda resultante do contato entre europeus e nativos em seu esplendor e fortaleza dominou os campos das Gerais e São Paulo fomentando assim a civilização do café tão bem representada na figura do próprio Paulo Prado Mesmo ao utilizar o pressuposto da herança social largamente difundido em seu tempo o historiador manteve um distanciamento entre portugueses e brasileiros fossem mulatos ou mamelucos de modo a destacar o retrato que queria construir No quadro impressionista pretendido por Prado o brasileiro estava em foco como a imagem principal da composição e não enlaçado com o português como caberia a personagens de uma mesma família irmanados por uma genealogia Um português seria como que uma sombra nessa composição capaz de ressaltar os traços da figura principal Era um outro mas um outro distante perdido nas brumas do tempo de onde já não poderia mais sair embora sua herança psicológica insistisse em ficar mantendose no caráter nacional quase como uma tragédia que precisava ter um fim o que vem demonstrar a diferença na perspectiva de Prado em relação a de Abreu Para um mal tão perverso Prado prescreveu um remédio perigoso a guerra ou a revolução o que nos revela que o próprio autor claudicara na indicação Sendo os grandes males 351 Para BERRIEL a tese da tristeza brasileira não teria sido a principal proposta de Prado ante a vacuidade do tema e da forma como foi tratado A mesma por si só não poderia sustentar um trabalho que veio a ter repercussão e se tornar referência para estudos que foram significativos para a compreensão da realidade brasileira Ver BERRIEL Carlos Eduardo Ornelas Tietê Tejo Sena A obra de Paulo Prado Campinas Papirus 2000 p 192 182 morais da sociedade brasileira produtos de uma mentalidade como exterminálos com tal dolorosa e incongruente solução A violência do remédio é sugestiva de um tempo de indecisão e pouco esclarecimento político um tempo em que se sonhava com o moderno sem que se soubesse bem como realizálo assim como revela um vago heroísmo do autor empenhado no redirecionamento da pátria tal qual o desejava as doutrinas fascistas que começavam a aparecer no Brasil A irmandade entre brasileiros e portugueses por conseguinte inexistiu na composição pradiana Na retórica daquele intelectual a presença portuguesa se caracterizou como passageira temporária fugaz e já se perdera Não havia mais necessidade de se apegar a ela de recompôla no presente como mecanismo de construção de identidade embora o próprio autor lançasse mão desse recurso na tentativa de dar contornos ao Brasil de impor à sua face um espelho onde pudesse mirarse e vendo os próprios defeitos quisesse deles se livrar mesmo que para tanto recorresse a remédios amargos Em Prado o elo aclamado pelos historiadores oitocentistas quebrarase O contexto da época já permitia esse distanciamento de Portugal então imerso nas brumas do Salazarismo distanciado dos tempos de heroísmo e conquistas de costas para a própria Europa da qual os modernistas diziam querer livrarse embora a admirassem profundamente Um século já havia transcorrido desde a realização da independência tempo suficiente para dissolver os laços urdidos nos tempos coloniais mesmo que a historiografia brasileira teimasse em mantêlos embora nos limites de sua historicidade Se em Abreu nos defrontamos com o fortalecimento desses laços expressos em representações impeditivas de dicotomia entre o português de Portugal e um português americano em Bomfim essa divisão é dada como imprescindível de forma a demonstrar as diferenças entre um e outro fazendo emergir dessas diferenças a consciência de uma identidade brasileira nascida desde os primeiros tempos da colônia Mesmo ao traçar uma intensa linha divisória entre os dois povos o sergipano Bomfim não se esquivou de visibilizar o cariz positivo da gente simples de Portugal empenhada no esforço colonizatório em oposição à elite portuguesa cujos esforços centraramse na exploração da colônia e na dilapidação das riquezas dali retiradas Desprezar o colono significaria desprezar a própria formação nacional amparada no pressuposto de uma herança social Valorizar o gênio popular português significaria também aquilatar a cepa portuguesa da qual se originaram os brasileiros 183 Embora Abreu tenha se tornado a referência primeira na historiografia do início do século XX suplantando a caudalosa história produzida por Varnhagen sua perspectiva sobre o outro é marcada pela ambiguidade e em determinados trechos de sua obra é quase impossível discernir sobre a distinção entre ser português ou ser brasileiro A composição do homem colonial em Abreu sofreu do mal da simbiose proporcionado pelos documentos utilizados pelo historiador que instituíam o Brasil como uma província portuguesa o que findou por se refletir em sua narrativa Em Bomfim não obstante toda a negatividade explorada em seu discurso sobre Portugal o liame também se dá ao nível da ambiguidade mesmo que aquele intelectual tenha insistido numa separação física dos organismos por ele utilizados como representações Vencido seu olhar sobre o Portugal parasitário o sergipano encontrou no português uma extensão do brasileiro e essa extensão atesta a favor da irmandade entre os dois povos em face de seu passado comum de seus traços culturais comuns Por sua vez em Prado não se percebe nem o caráter ambíguo da relação entre os dois povos menos ainda há um discurso que dê relevância à irmandade Para aquele intelectual o que restou dos portugueses foi a mentalidade apenas da qual faziase mais que urgente livrarse Abreu por sua vez mesmo alteado pelo olhar arguto de Varnhagen e favorecido pelos novos enquadramentos teóricos que em muito se refletiram em sua forma de fazer história não fugiu de muitas das representações constantes na HGB principalmente aquelas relativas aos portugueses Na ambiência republicana ao tempo da escrita de Capítulos de história colonial já não se fazia necessário o fascínio e admiração pelos portugueses que tanto marcou a obra de Varnhagen e dos quais bem que tentou se afastar embora sem o conseguir de todo No concernente a Portugal Capistrano de Abreu mesmo de forma distinta e sutil referendou os elogios de Varnhagen ratificando algumas das representações construídas na HGB e reproduzidas nos livros didáticos sobre a história nacional Considerando ser a produção histórica passível de fruição e consumo por seus prováveis leitores é neles que as representações ali existentes assumem uma importância vital refletindose no seu aproveitamento ou seu esquecimento É o caso do português abrelino que de tão mesclado com o seu descendente diluiuse numa história percebida como uma história incapaz de se tornar memória posto firmarse na história de homens comuns imersos na faina cotidiana de caráter taciturno retraído intolerante que se diferenciavam 184 entre si apenas pelo esforço autoral de citar nomes e feitos Apesar de entender os fins políticos da história e da necessidade de sua escrita na formação do espírito nacional Abreu não conseguiu configurar o surgimento de um sujeito político capaz de formar a nação que em sua narrativa só surgiu pelo ato político da independência Mesmo traçando distinção entre os tipos portugueses revelando uma heterogeneidade na mentalidade do português em relação à empresa colonial e ao seu próprio papel na sociedade da metrópole Abreu não conseguiu destrinçar o português do brasileiro Em seu discurso ora há uma junção ora há uma separação entre os mesmos o que desvenda a busca de caminhos para a construção de uma nova história do Brasil tão pretendida pelo autor mas que ele não conseguiu alcançar como modo de não destoar da história de seu próprio tempo e de seu lugar social Assim não se pode afirmar existir no discurso daquele historiador uma retórica bem definida de uma alteridade que permitisse a construção de uma identidade nacional onde o nós se defrontasse com o eles A nosso ver o tratamento ambíguo dado aos portugueses pelo autor resultou da própria ambiguidade do momento político vivenciado quando da escrita de um de seus textos assim como pelo próprio lugar social daquele historiador O fato de pertencer ao IHGB ambiente francamente marcado pela imponente presença do antigo imperador a admiração de Abreu pela personalidade de D Pedro II assim como seu apoio ao republicanismo evidenciara contradições e ambiguidades que bem se refletiram em sua obra nomeadamente no concernente ao português no contexto colonial Ao contrário de Abreu o português construído por Bomfim se destacou posto que mostrado como um sujeito interesseiro marcado por qualidades negativas e oriundo de uma sociedade doente Sem respeito pelos povos de terras distantes por onde andara o português bomfiniano teve seu caráter constituído pelo historiador no mesmo espaço temporal utilizado por Prado embora sob outra abordagem que o difundiu como um aventureiro explorador acoimado pela prática que findou por abatêlo transformandoo num parasita das riquezas alheias Embora tomado ao longo de sua obra como parte integrante na formação do nacional com ativa participação na constituição do povo brasileiro evidenciase em Bomfim a retórica da alteridade em relação aos portugueses pois a cepa mesmo sendo imprescindível para a existência dos ramos é tratada com o devido distanciamento inerente à questão 185 Em Bomfim a distância foi mitigada pelo liame de uma cultura comum pela junção da cepa com os ramos onde alguma seiva alimentaria as duas partes vivificandoas e realizandoas Em Prado essa distância foi propositadamente acentuada pelo caráter de herança que o autor imprimiu ao lugar do português na narrativa do nacional Desmistificando seu modernismo Prado fugiu do ufanismo do movimento para tentar se livrar do passado o que permitia ao autor falar do outro um outro que imprimiu sua mentalidade nessa brasilidade marcada por estupros roubo depredação da natureza maus tratos contra negros e índios e que se revelou na alteridade construída pelo autor paulista Sua obra pautada num discurso interessado em desvendar algumas cenas da vida brasileira assumiu papel de destaque na produção histórica nacional persistindo durante décadas nos estudos sobre a colonização Por conseguinte a representação do português ambicioso e lúbrico do Retrato serviu para fomentar estudos sobre a vida cotidiana na colônia em uma série de novas abordagens que modificaram em definitivo o fazer histórico no Brasil refletindose nos grandes ensaios que surgirão na década seguinte tais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda 186 PARTE III EM TEMPOS DE REENCONTRO O RESSURGIR DA IRMANDADE A transição da década de vinte para a seguinte se configurou no Brasil como um especial momento de sua história marcada pela erupção de críticas e oposições à sociedade oligárquica assim como aos rumos tomados pela república A historiografia daquele período marcada pela discussão da herança portuguesa teve como propositura demonstrar o quanto dessa herança sobrevivera no Brasil mesmo após sua independência e de como tal legado proporcionara respaldo às oligarquias nacionais dominadoras de amplos setores da sociedade Tal qual nos tempos de Felipe II o Brasil encontravase dividido em dois núcleos geográficos maiores o Nordeste agrário com toda sua carga colonialista e uma economia já sem expressão e o Sul agrárioexportador ancorado na cultura cafeeira e com crescente burguesia industrial a formar um complexo econômico decisivo para a economia do país Uma linha imaginária dividia a jovem nação em dois pólos nos quais se preservava a concentração de diferentes atividades econômicas além de uma estrutura regional de classes Tal realidade findou por solapar o precário equilíbrio existente no seio da própria classe dominante algumas privilegiadas pelas próprias divisões setoriais evidenciando oposições dessas áreas bem como internamente às mesmas As camadas medianas da população não tinham espaço no jogo de poder assim como o operariado realidade refletida nos diversos movimentos sociais que eclodiram no país desde os primeiros tempos da república A hegemonia política da elite agrária do sul porém sofreu severo golpe ao romperse dentro de si mesma permitindo novas alianças que culminaram numa revolução civilmilitar na tentativa de reordenação do sistema de 187 poder352 A Era Vargas teve início com o sucesso do movimento revolucionário que baniu a chamada Política dos Governadores353 encerrando a República Velha 18941930 expressão maior da sociedade oligárquica Doravante a Nova República ou Segunda República se renovaria no Estado Novo ditadura implantada por Getúlio Vargas sete anos após tomar posse como presidente do Brasil Bem antes disso porém o governo revolucionário definiu seu plano de ação de modo a realizar mudanças estruturais em áreas de seu interesse Era preciso provar naquele especial momento que o Brasil mudara e que os vícios e erros do passado haviam sido banidos da vida pública nacional Era o momento de se republicanizar a República dando início a uma revisão da vida nacional a reclamar por mudanças estruturais A conjuntura externa difícil marcada pela crise econômica de 1929 e descrédito da doutrina liberal manifestada pela ascensão do fascismo do comunismo e do culto ao Estado forte refletiu se no amadurecimento de uma ação governamental consistente em linha antiliberal o Varguismo determinado em seus fins de estabelecer outra ordem econômica e social no 352 A Revolução de Trinta foi considerada por Sodré como uma revolução burguesa ante a ascensão da burguesia industrial ao aparelho do Estado até então limitado aos setores agrarioexportadores hegemônicos desde o Império Essa tomada do poder resultou na implantação da indústria de base meio único para promover o encontro entre o arcaico setor da agro exportação e o setor moderno tão ansiado de um pólo urbanoindustrial criado Para Santa Rosa entretanto a Revolução não pode ser tomada somente como um momento de ascensão da burguesia em virtude da inegável penetração dos setores médios marginalizados no jogo político com a implantação de um regime de participação política que mesmo restrito mostravase purificado dos vícios tradicionais como a fraude eleitoral e a fragilidade do sistema judiciário Para Weffort por sua vez a revolução foi um marco que distinguiu a nova estrutura política da anterior ao não mais expressar a hierarquia social e econômica nem os interesses de uma fração de classe O chefe do executivo assim adquirira a função de árbitro fato que respaldou uma modernização conservadora resultante do conteúdo de classe tradicional e da modalidade autoritária de sua intervenção SODRÉ Nélson Weneck Formação histórica do Brasil São Paulo Brasiliense 1963 SANTA ROSA Virgínio O sentido do Tenentismo São Paulo AlfaÔmega 1975 FAUSTO Bóris A Revolução de Trinta História e historiografia São Paulo Brasiliense 1972 353 A Política dos Governadores se caracterizou como acordo formado desde os anos iniciais da república entre o governo federal e os líderes políticos regionais mais conhecidos como coronéis em alusão à patente da Guarda Nacional do Império Visava a eleição de maciças bancadas para as assembléias legislativas ao nível federal e estadual com o apoio irrestrito do governo federal de modo que nem este nem os governos estaduais enfrentassem qualquer tipo de oposição Esta política foi a progenitora da política do cafécom leite prática de um revezamento do poder nacional entre membros de dois partidos exclusivos de São Paulo mais poderoso economicamente principalmente devido à produção de café e Minas Gerais maior pólo eleitoral do país da época e produtor de leite e certamente moldou diversas práticas políticas no Brasil atual A Revolução de Trinta foi inicialmente articulada a partir da cisão entre paulistas e mineiros unindo se os últimos a outros nomes da política nacional especialmente dos estados do Rio Grande do Sul e da Paraíba para formar a Aliança Liberal na qual se uniram as mais díspares idéias que se materializaram em parte com a revolução 188 país há bem pouco comandado por coronéis Concomitantemente evidenciouse a distância entre a sociedade civil e o Estado entre o Brasil real e o Brasil legal entre a realidade brasileira e as idéias importadas graças ao intenso debate político doravante travado sedimentado na radicalização ideológica do período O Rio de Janeiro capital do país desde os tempos coloniais assumiuse desde o Reino Unido como o lócus de encontro da intelectualidade sediando jornais academias e institutos assim como as sedes dos primeiros cursos superiores implantados no país Mesmo oriundas das várias regiões do território era ali que se encontravam as cabeças pensantes da vida nacional seja no campo político seja no campo cultural Mesmo na década de trinta com a criação de uma universidade brasileira em São Paulo e a efervescência por ela provocada nos meios intelectuais a proximidade das duas cidades só referendou o sudeste brasileiro como espaço privilegiado de produção de circulação e de consumo da intelligentsia brasileira O Sudeste tornarase também o centro urbano e industrial do país seu centro de gravidade para onde convergiam todos os movimentos enquanto as demais regiões ao norte assumiramse como periferia nacional em sua posição geográfica política econômica e cultural no contexto do intenso redimensionamento ocasionado pelo governo pretensamente revolucionário em todos os seus desdobramentos Tal realidade acabou por gerar uma substancial modificação na mentalidade dos intelectuais brasileiros em relação ao futuro do Brasil ao seu progresso e à identidade nacional A transformação das estruturas sociais e a consequente emergência de novas classes também favoreceu uma nova percepção dessa problemática Era mais que necessário decifrar o enigma do Brasil e interferir na produção do seu futuro Dentre as reformas implantadas pelo governo de Vargas ao longo de seus quinze anos duas merecem aqui ter maior destaque por estarem diretamente vinculadas ao objeto do presente trabalho a reaproximação do Brasil a Portugal na tentativa de afirmação do país no cenário internacional e a reabertura consolidação e fundação de instituições de ensino superior com a respectiva implantação de cursos de filosofia e ciências sociais em São Paulo e no Rio de Janeiro como parte do esforço de fortalecimento nacional do novo governo 354 354 O estatuto colonial vetou a abertura de cursos superiores no Brasil que teve na Universidade de Coimbra a referência para a realização de estudos desse nível Somente com a chegada de D João VI foi autorizada a 189 A carência de personalidades nacionais capazes de exercer cargos de magistério superior tornou necessário o convite a nomes estrangeiros tornando indispensável a colaboração de uma nova missão cultural francesa355 Marcada por nomes que posteriormente desempenharam influência significativa no desenvolvimento da cultura e das ciências humanas na segunda metade do século XX os franceses que ali trabalharam em conjunto com alguns dos nomes dos integrantes do IHGB356 acentuaram o convívio dos autodidatas com pesquisadores e professores de formação universitária impondo nova dinâmica à vida acadêmica brasileira357 A influência da cultura humanística francesa em geral e da história da filosofia em particular foi muito visível nomeadamente sobre a terceira geração abertura de cursos superiores no Brasil sendo abertos os cursos de direito em Olinda e São Paulo Outro fator que contribuiu para o atraso na criação de cursos superiores no Brasil teve na influência positivista um forte empecilho ao serem consideradas instituições medievais e com ligações com a Igreja católica Dominante entre os republicanos essa influência resistiu bravamente à criação de universidades brasileiras criadas aos poucos como 27 escolas superiores entre 1891 e 1910 Após esse período surgiram os embriões das futuras universidades De existência fugaz surgiram a Universidade de Manaus em 1909 e extinta em 1920 a Universidade de São Paulo 19111917 e a universidade do Paraná 19121915 A campanha para reabertura e fundação de universidades no país nasceu no esteio do Movimento Modernista e em 1933 logo após a derrota da contrarrevolução constitucionalista um grupo de empresários se dispôs a alinharse com o governo abrindo a Escola Livre de Sociologia e Política ELSP com o objetivo de formar uma nova elite capaz de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições do governo e a melhoria do país Vargas bem soube utilizarse das pretensões paulistas ao incentivar o então interventor Armando de Sales Oliveira a implantar uma universidade a USP em 1934 que teve como fonte de inspiração o mundo acadêmico francês No ano seguinte a abertura da faculdade de filosofia na Universidade do Rio de Janeiro criada desde 1920 consolidou em definitivo a abertura de um novo momento para os estudos superiores do país A propósito ver CUNHA Luis Antonio A Universidade Temporã O Ensino Superior da Colônia à Era de Vargas Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 AZEVEDO Fernando de A Cultura Brasileira São Paulo Melhoramentos 1975 SOARES Maria S A Coord A Educação Superior no Brasil Brasília CAPES 2002 TEIXEIRA Anísio Ensino Superior no Brasil Análise e Interpretação de sua evolução até 1969 Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 1989 CARDOSO Irene A universidade da comunhão paulista São Paulo Cortez 1982 355 Dentre os nomes que vieram para o Brasil integrar o quadro de docentes das faculdades de filosofia ciências e letras recém fundadas destacamse o historiador Fernand Braudel o antropólogo Claude Lévi Strauss o economista François Perroux os sociólogos Roger Bastide e Georges Gurvitch Entre os filósofos cabe destacar Martial Gueroult um dos criadores do Método Estrutural de História da Filosofia Etienne Borne Gilles Gaston Granger Jean Maugüé Posteriormente chegaram como professores visitantes Michel Foucault e Claude Léfort que passaram alguns anos Gérard Lebrun e Michel Debrun permaneceram no Brasil por longo tempo 356 O IHGB perdeu em definitivo sua influência como espaço privilegiado do ensino e pesquisa em história que foi transferida para a universidade de forma quase absoluta A propósito ver MOTA Carlos Guilherme Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 357 Tal realidade permitiu a Michel Foucault afirmar ser o departamento de Filosofia da USP um departamento francês de Ultramar Cf ARANTES Eduardo Um departamento francês do Ultramar Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana uma experiência dos anos sessenta Rio de Janeiro Paz e Terra 1994 A respeito ver também MICELI Sérgio Org História da Ciência Social no Brasil São Paulo SumaréFAPESP 1995 Vol 2 PECÁUT Daniel Os Intelectuais e a Política no Brasil São Paulo Editora Ática 1980 190 de professores do departamento com profundos reflexos na produção historiográfica desde então que passou por intensas reformulações deixando aos poucos de ser campo exclusivo de médicos e bacharéis em direito para se firmar como produção profissional como veremos mais adiante Tal realidade entretanto não se presentificou nos autores e suas obras esmiuçadas mais adiante em face das especificidades de sua formação e de sua vivência como será demonstrado Não obstante é certo que a historiografia brasileira produzida depois desse período sofreu notável influência da presença francesa nas principais universidades brasileiras influência que posteriormente se alastrou para as demais regiões e espaços de produção da história nacional358 O crescente e profícuo contato com a intelligentsia francesa por sua vez fez afluir certo europeísmo que remontava ao Oitocento bem almejado por alguns setores das elites intelectuais brasileiras desde o início da república ensejando uma reaproximação na esfera da política externa e por conseguinte no âmbito cultural A aproximação com esses intelectuais europeus ocasionou notável desconforto entre os Modernistas apesar de alguns dos seus representantes terem tido ativa participação na formação desse quadro acadêmico Entretanto as dificuldades que grassavam o velho continente às vésperas de um novo conflito e imerso nos problemas ocasionados pela Grande depressão se elevavam como um impeditivo para um maior contato entre o Brasil e o Velho Mundo Se até aquela década o país continuava a ser um receptor de mão de obra européia fato que acentuava certa vinculação entre as duas partes após os anos trinta essa realidade foi obscurecida em parte pelos efeitos da crise econômica mundial em parte pela política nacionalista expressa na determinação antiimigratória do novo governo As restrições às atividades de estrangeiros no país inclusive de portugueses tinham como justificativa a defesa dos interesses nacionais face à elevada taxa de desemprego resultante da crise econômica e a possibilidade de ameaça à soberania nacional ocasionada pelo monitoramento político desses imigrantes sobretudo alemães e italianos por seus países de origem359 358 Sob a influência dos franceses a história se aproximou das ciências sociais objetivando analisar a realidade brasileira em seu aspecto econômico social e mental e não apenas político refletindo as complexas e significativas mudanças que ocorriam na sociedade em plena transição de uma economia agropecuária para o domínio do capitalismo industrial e a emersão dos seus peculiares sujeitos 359 GONÇALVES Willians da Silva O realismo da fraternidade As relações BrasilPortugal no governo Kubitschek Tese de doutorado em Sociologia Universidade de São Paulo 1994 191 Dar visibilidade ao Brasil no âmbito internacional integrava o projeto Varguista dentro da complexa realidade do momento O alinhamento a determinados países parecia ser indispensável para a consecução dos planos projetados dos quais o de maior destaque dizia respeito à obtenção dos capitais e tecnologias necessárias ao desenvolvimento do parque industrial almejado por Vargas A tentativa de abertura de mercados consumidores para as exportações brasileiras também foi determinante para redimensionar a política externa do período que de relativamente passiva adotou critérios para se inserir afirmativamente nos quadros da ordem mundial em construção A visibilidade externa pretendida também foi o esteio para a aproximação com Portugal cuja afinidade históricocultural serviria como uma propaganda positiva do país no exterior ou pelo menos no mundo lusófono Para tanto o governo suscitou expressivo número de eventos diplomáticos e civis entre os dois países durante os quinze anos seguintes360 que se alastraram pelos governos posteriores O aprofundamento dessa relação historicamente conturbada marcada por aproximações e distanciamentos não obstante serviu como mais um fator de reforço da nacionalidade brasileira e marcou a adoção de uma diplomacia cultural361 entre os dois países A afinidade étnica lusobrasileira e a semelhança da estrutura e natureza dos governos destes países permitiram que fossem revogadas as restrições para a entrada de portugueses no Brasil como expressão da préfalada afinidade Os argumentos utilizados para justificar a 360 Como exemplo do esforço de aproximação entre Portugal e Brasil no período abordado destacase a realização do I Congresso de Portugueses no Brasil em 1931 no qual foi criada a Federação de Associações Portuguesas Nesse mesmo ano em 30 de abril a Academia Brasileira de Letras e a de Ciências de Lisboa assinaram simultaneamente em Lisboa e no Rio de Janeiro um acordo ortográfico que pretendia manter a unidade e promover a expansão da língua portuguesa Também foi assinado em 1933 um tratado comercial não cumprido pelas duas partes devido a onda protecionista gerada pela crise econômica mundial Em 1938 foi enviada ao Brasil uma delegação portuguesa com a finalidade de estudar medidas que pudessem incrementar o intercâmbio comercial entre estes países e que resultou na assinatura em 1941 de um protocolo adicional ao tratado de 1933 apresentando resultados poucos significativos O acordo acadêmico de 1931 também não obteve o resultado esperado o que fez com que em 1943 fosse negociada a Convenção Ortográfica LusoBrasileira que tampouco conseguiu acabar com as divergências na aplicação dos sistemas ortográficos Mais uma nova tentativa foi feita em 1945 quando uma delegação brasileira foi enviada a Portugal para negociar uma nova convenção que expressasse o interesse dos dois países mas esta nem chegou a entrar em vigor Em 1941 foi assinado o Acordo Cultural LusoBrasileiro em 1946 depois de findo o Estado Novo foi assinado o Acordo Aéreo em 1948 o Acordo de Cooperação Intelectual e em 1953 o Tratado de Amizade e Consulta que também é resultado deste período de grande aproximação luso brasileira Sobre a questão ver CERVO Amado MAGALHÃES José Calvet de ALVES Dário Moreira de Castro org Depois das Caravelas As Relações entre Portugal e Brasil 1808 2000 Brasília Editora da UnB 2000 CORSI Francisco Luiz Estado Novo Política Externa e Projeto Nacional São Paulo UNESP FAPESP 2000 361 O termo é de autoria de LOBO Eulália Maria Lahmayer Portugueses en Brasil en el Siglo XX Madrid Mapfre 1994 192 medida destacavam a importância do elemento português na formação do povo brasileiro o sentido lusobrasileiro da formação histórica da nacionalidade o poder de adaptação do luso a identificação entre brasileiros e portugueses e sua contribuição civilizadora e cultural Em contrapartida tornouse inegável o dispêndio do governo português em se aproximar e tentar melhorar sua relação com o Brasil elo fundamental para que Portugal atingisse um lugar de maior destaque no cenário mundial ansiado por Salazar no contexto do Estado Novo O objetivo era abandonar o título de país periférico constituindose em Estado forte e estabilizado economicamente o que devido a sua incipiente industrialização só seria possível através da manutenção das colônias africanas ameaçada pela doutrina anticolonialista do pósguerra362 A aproximação com o Brasil como parte da política externa salazarista tinha como fito a defesa do império colonial português já que aquele país como excolônia portuguesa apareceria como prova concreta da eficiência lusitana em administrar seus territórios coloniais No sentido de dar maior visibilidade ao vínculo cultural entre os dois países foi lançada em Portugal a revista Atlântico363 com o principal objetivo de difusão recíproca da cultura nacional nas duas margens do oceano apoiada na busca de um passado em comum e da reafirmação de todos os elementos que compunham esse passado Em última análise porém as preocupações comerciais regiam os esforços dos respectivos governos o que pode ser demonstrado pelo rol dos muitos acordos na maioria das vezes ineficazes sobre o tema364 Portugal desejava abrir novos mercados com a finalidade de reduzir a 362 Cf FIGUEIREDO António de Portugal 50 anos de ditadura Rio de Janeiro Civilização brasileira 1976 p 87 363 Idealizada por Antônio Ferro diretor do Secretariado Nacional de Propaganda em Portugal e não pelo governo brasileiro a revista se propunha a divulgar os vínculos comuns entre Portugal e Brasil que partilhavam dos mesmos sentimentos e ideais criando a idéia de uma Civilização Atlântica apoiada na compreensão recíproca proporcionada pelo idioma comum A semelhança lingüística sempre foi defendida como fundamental fator no processo de aproximação lusobrasileiro cujo desejo há muito existia segundo José Osório de Oliveira em artigo de sua autoria intitulado Obreiros da aproximação Atlântico nº 2 1942 Por esse modo a revista se revestiu como o instrumento oficial que garantiria a eficácia e a continuidade dos numerosos esforços para efetivar tal aproximação 364 O comércio entre estes países já vinha apresentando acentuado declínio desde meados da década de 20 e esta situação piorou ainda mais depois de 1929 visto que o Estado brasileiro procurou realizar uma política de autossuficiência que dava ênfase ao desenvolvimento industrial e a uma agricultura que satisfizesse o mercado interno No seu tempo o governo de Vargas apresentou uma disposição diferente com relação a essa questão tanto que um acordo comercial foi assinado em 1933 com a finalidade de recuperar a queda dos índices comerciais das exportações brasileiras e portuguesas estabelecendo princípios da liberdade de 193 dependência do país à Inglaterra e o Brasil precisava manter o comércio exterior de forma que as exportações pudessem garantir certo nível de estabilidade interna Além disso um acordo comercial com Portugal era extremamente importante em face da impossibilidade de competitividade dos produtos brasileiros com aqueles produzidos em áreas coloniais A retórica da irmandade tomou nova forma nesse contexto conectada com as balizas políticas do momento A semelhança ideológica dos dois governos cada um com seu departamento de propaganda e ambos com a mesma nomenclatura após 1937 parece provar que tal aproximação não pode ser considerada unicamente como simples resultado da relação histórica a unir os países ou simples fruto da vontade dos setores da sociedade que desejavam estreitar as relações lusobrasileiras Foi somente com a intervenção e participação dos Estados brasileiro e português que importantes passos foram conquistados mesmo que em longo prazo no caminho de um entendimento recíproco A afetividade constituída nesse período findou por tornarse um laço permanente nas relações lusobrasileiras e um dos seus mais importantes efeitos foi dissuadir o viés político existente nas mesmas sobressaindose sempre o vínculo cultural Proferese que determinados períodos da História de um país são especialmente significativos não porque representam um rompimento radical com as estruturas sociais políticas ou econômicas anteriores mas porque neles os agentes históricos procuram dar novas dimensões e significados à realidade passada a fim de construírem no presente um mundo adequado a seus próprios projetos Tal fato pode ser percebido nos grandes ensaios sobre a formação da nacionalidade brasileira que nasceram nesse ínterim demonstrativos do quanto fora modificada a idéia de nação buscada desde a independência assim como o que se pensava do outro dos outros e no presente caso de Portugal e dos portugueses comércio e navegação de reciprocidade e no tratamento da nação mais favorecida Outros acordos que tinham como objetivo diminuir os obstáculos comerciais entre estes países foram assinados posteriormente mas nenhum deles até a década de 60 conseguiu ter grande êxito 194 CAPÍTULO 6 UMA NAÇÃO IMPREGNADA DE PORTUGAL A obra de Gilberto Freyre365 integrou o rol dos grandes ensaios interpretativos sobre a formação da sociedade brasileira que surgiram no país no contexto dos anos 30366 Seu textogerminal Casa grande Senzala367 é o expoente para revelar a compreensão que aquele autor arquitetou sobre o Brasil e consequentemente sobre Portugal nesse tempo de aproximações Com efeito o que se contêm em CGS é amplo e complexo painel pouco atento a cronologias e ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico da formação da sociedade patriarcal tendo na família a célula civilizadora reinante no Brasil por mais de três 365 Gilberto Freyre nasceu no Recife em 1900 residindo nos Estados Unidos e Europa de 1918 a 1924 tempo em que cursou a graduação e concluiu o mestrado com a tese intitulada Vida social no Brasil nos meados do século XIX Defendida perante a Universidade de Colúmbia em Nova York em 1919 e publicada pela primeira vez na Hispanic american historical review em 1922 sua investigação germinou a idéia aprofundada em Casa grande Senzala Promoveu em 1926 no Recife o 1º Congresso Brasileiro de Regionalismo quando lançou seu Manifesto Regionalista em contraponto ao Manifesto Modernista dos paulistas abrindo caminho para a literatura regionalista e a construção discursiva da região nordeste Realizou em meio a dificuldades financeiras as pesquisas que levariam à publicação de Casa Grande Senzala um desdobramento da investigação da tese de mestrado Vida social no Brasil nos meados do século XIX Iniciou em 1935 um curso de Sociologia na Faculdade de Direito do Recife mas nunca seguiu carreira acadêmica regular Foi eleito deputado federal pela UDN em 1946 mas também não permaneceu na atividade política Seu livro seminal se desdobrou numa trilogia imprescindível para o conhecimento da formação do Brasil seguindose de títulos como Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso Autor prolífico publicou dezenas de títulos reeditados variadas vezes e em vários idiomas o que dispensa a nosso ver de maiores apresentações No Brasil sempre foi visto com desconfianças por um grupo de intelectuais por suas posições políticas e suas escolhas o que resultou numa severa crítica à sua obra crítica que vem se desvanecendo desde os anos 80 após sua morte em 1987 Apesar de nunca ter se afirmado como sociólogo e menos ainda como historiador a trilogia freyreana é acatada como um trabalho de história cultural pelos historiadores nacionais 366 Produzidos por jovens autores que intentavam abordagens renovadoras de fenômenos históricos econômicos sociológicos educacionais étnicos destacamse por ostentarem o termo formação em seu título evidenciando a temática principal das mesmas Formação histórica do Brasil de Nélson Werneck Sodré Formação do Brasil contemporâneo de Caio Prado Júnior Os donos do poder formação do patronato nacional de Raimundo Faoro e até mesmo Casa Grande e Senzala Formação da família brasileira sob o regime patriarcal 367 Doravante ao nos referirmos a este livro trataremos apenas por CGS como já o fizemos em casos anteriores Justificamos nossa opção como estratégia para dar maior fluidez à escrita do presente texto Na leitura ora realizada utilizaremos também Sobrados Mocambos SM e Ordem Progresso OP 195 séculos acima de Igreja e do próprio Estado Mais que uma história íntima pretendida por seu autor CGS é uma análise da gênese da sociedade brasileira agrária em sua estrutura de produção escravocrata no modo de exploração do trabalho e híbrida em sua composição social Composta de cinco partes nas quais o autor analisou o papel desempenhado pelos nativos pelos negros e pelos portugueses na formação social e familiar brasileira o textochave de Gilberto Freyre buscou desvendar a cultura colonial cujo enraizamento se deu de formas distintas em todo território da chamada América portuguesa consideradas as especificidades regionais Seu autor nordestino de nascimento viveu os vestígios dessa cultura amalgamada na vida social de Pernambuco seu estado natal antiga capitania que se destacou como a maior produtora de açúcar da colônia com farto contingente de escravos cujas terras eram loteadas de engenhos e de famílias poderosas Seu lugar social o indicava como um representante da decadente aristocracia pernambucana célula máter da civilização construída pelos portugueses auxiliados por índios e negros o que se refletiu numa perspectiva de ser o nordeste açucareiro a matriz fundamental da sociedade brasileira368 uma expressão da autenticidade na formação nacional onde se formara uma democracia racial369 No contexto político e econômico daquele momento entretanto Freyre 368 OLIVEIRA discute a questão da baixa aceitabilidade da premissa do nordeste açucareiro como epicentro da formação da sociedade brasileira traçada na obra de Freyre A respeito ver OLIVEIRA Lúcia Lippi de Gilberto Freyre e a valorização da província Sociedade e Estado v 26 nº 1 JanAbr 2011 Sobre a questão Freyre esclareceu ter sido o Nordeste e mais especificamente em Pernambuco mais que a qualquer outra região do Brasil que teve início a civilização no Brasil Não foi em São Paulo Em São Paulo fundou se um engenho no Século XVI Enquanto se fundava esse engenho perto de Santos já existia uma constelação de engenhos e casas grandes em Pernambuco constituindo a verdadeira raiz do Brasil Esta é a tese de CasaGrande e Senzala pois a família e não o governo ou a igreja é que foi a raiz brasileira cuja força germinal você encontra aqui e não em outro lugar do Brasil Essa crítica é de gente do sul e você sabe como são exclusivistas Eles querem que tudo tenha começado por lá Veja bem Eu admiro o bandeirante mas ele foi um nômade de pouca fixação A fixação em algum ponto do Brasil vamos dizer vertical começou do Nordeste brasileiro Daí o símbolo casa grande e senzala ser muito importante pois foi uma fixação natural A casa grande era aceita não só como residência mas também como banco escola e uma série de funções Cf trecho de Gilberto Freyre um menino aos 83 anos Santista São Paulo v 1 n 2 nov 1983 p 1618 Entrevista disponível em httpwwwbvgffgforgbrportuguesvidaentrevistasmeninoaos83html acessada em 20102011 369 Sua postura deu margem à larga oposição com o sudeste industrial ganhando a antipatia e a crítica negativa especialmente por parte da chamada Escola Paulista de Sociologia na década de 50 liderada por Florestan Fernandes A EPS contou com nomes como Otávio Yanni Emília Viotti da Costa Fernando Henrique Cardoso e outros cujas perspectivas tinham por base os ideais marxistas característicos dos pesquisadores da USP e da influência européia que ali estava desde sua fundação Desse grupo emergiram 196 representava o arcaico Nordeste em oposição ao Sul transgressor do modelo colonial a esculpir a modernização nacional o que se refletiu facilmente na recepção de sua obra alguns anos depois Ao conceder o papel de matriz da cultura brasileira ao nordeste açucareiro Freyre fez emergir na historiografia nacional o importante papel do negro na formação daquela sociedade até então relegado a segundo plano em face do teor racialista que dominava a temática Ao fazêlo redimensionou em definitivo o papel dos envolvidos no cadinho de raças que se tornara o Brasil revalorizando cada participação nomeadamente em relação aos portugueses A estes dedicou importante espaço em sua pesquisa trazendo à luz variados matizes e tons na construção de um português diferente do que até então se conhecera a respeito Em Freyre os tipos portugueses deixaram de ser considerados pelo seu papel econômico ou por seu teor político sendo mostrados como relevantes agentes culturais na formação de um novo lugar A composição do português freyreano ao contrário dos demais autores aqui utilizados não se deu apenas no contexto colonial Mesmo que outros historiadores tenham se utilizado das origens do Estado português para compreender os aspectos psicológicos e culturais do português que chegou ao Brasil Freyre percorreu um caminho distinto e mais ousado Ao buscar nessas origens a constituição da cultura portuguesa em si Freyre identificou nos recônditos do Brasil a fixação dessa cultura transplantada em sua plenitude e ainda pujante em seus maiores aspectos em pleno século XX Sua investigação foi pautada pela larga variedade de fontes primárias sequer reconhecidas como tais pelos historiadores de discursos combatentes ao sistema capitalista e em prol da independência econômica do Brasil No tocante ao social as possibilidades do discurso foram em torno das contradições de classes e das injustiças sociais A postura de Freyre sobre as relações senhor portuguêsescravo negro defendendo uma democracia racial e a existência de relações amenas entre as duas partes suscitou severas críticas contra aquele autor considerado um conservador desprovido de senso social Não obstante outras críticas surgiram tendo um cunho mais pessoal contra o lugar social de Freyre e de forma disfarçada contra sua origem longe dos grandes centros do sudeste brasileiro Uma se destaca por sua virulência e ataque pessoal intitulada O espírito da aldeia Orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de Gilberto Freyre de autoria de Luís Antônio de Castro Santos Novos estudos CEBRAP n27 p 4566 Jul 1990 A resposta ao infeliz trabalho foi dada por FONSECA Edson Neri Gilberto Freyre a província e o Phdeísmo carioca Ciência e trópico v 20 nº 2 p309316 juldez 1992 Tantas críticas não escondem porém a boa recepção do trabalho de Freyre ainda nos anos 30 por nomes como os de Álvaro Lins Roberto Alvim Corrêia Otto Maria Carpeaux M Cavalcanti Proença Osmar Pimentel Eduardo Portella Gilberto de Metia Kujawski José Guilherme Merquior e Leo Gilson Ribeiro Fora do Brasil Freyre foi aclamado por críticos do porte de Lucien Febvre Fernand Braudel Roger Bastide André Rétif Jean Pouilion Roland Barthes Jean Duvignaud Frank Tannenbaum Asa Briggs Julián Martas e David MourãoFerreira e sua CGS publicada em vários países o que tornou um dos autores brasileiros mais lidos no exterior 197 então antecipandose no uso das mesmas às propostas dos Annales e aos métodos da história cultural ou da micro história370 Em Freyre encontrase o português no contexto de sua própria formação nacional assim como o português colonizador que para o autor aos poucos se tornou em lusobrasileiro Suas fontes falaram do português dos séculos XV e XVI e não do português moderno já manchado de podre segundo palavras do historiador Para ele somente o levantamento e análise do perfil daquele permitiria auferir uma idéia equilibrada e exata do colonizador do Brasil A lusitanidade em sua narrativa foi elemento essencial do Brasil em gestação que chegou ao século XX dela impregnado seja pela repetição seja pela adequação de miríades de detalhes utilizadas pelo historiador para construir o português Tais expressões da cultura portuguesa transplantadas para a colônia segundo aquele autor não se tornaram hegemônicas mesclandose com outras formando uma cultura nova exclusiva singular Apesar de publicado no contexto de um projeto dito revolucionário não é possível afirmar da existência de qualquer vínculo entre o trabalho seminal de Freyre com os interesses governamentais do período CGS é inegável desdobramento da tese de mestrado produzida por Freyre quando de sua experiência universitária nos Estados Unidos sendo sua perspectiva teóricometodológica proveniente do academicismo norteamericano arquitetadas a partir do pensamento de Franz Boas A entrada de diversos pensadores europeus nos quadros acadêmicos do Brasil nos anos trinta em pouco ou quase nada contribuiu na feitura da obra apesar de haver influenciado em muito sua crítica371 370 Freyre fez uso da história oral de testamentos inventários cartas livros de receita romances canções folclóricas relatos de viajantes e a iconografia do período Consoante Burke e Palhares Burke Freire se ressentia da relativa inexistência de diários e agendas pessoais como vestígios da vida colonial brasileira sugerindo que num país católico não foi o diário mas o confessionário que absorveu os segredos pessoais e de família In PALLARESBURKE Maria Lúcia BURKE Peter Repensando os trópicos um retrato intelectual de Gilberto Freyre São Paulo UNESP 2009 p 128 371 SILVA identificou algumas particularidades existentes no trabalho de Freyre que podem ser lidas na ótica de Michel Foucalt Não obstante fazse necessário destacar a datação da obra seminal de Freyre lançada vinte anos antes do lançamento do primeiro livro do filósofo e cuja obra Microfísica do poder de 1979 serviu de parâmetro para a comparação realizada por SILVA Fábio Lopes da Freyre Foucalt Casa grande Senzala como microfísica do poder Revista de história e estudos culturais v 3 nº 3 Jul Set 2006 entrada do filósofo francês no quadro de acadêmicos da USP que ocorreu apenas em 1975 198 61 Uma mentalidade plástica O perfil português traçado por Gilberto Freyre inicialmente teve como base o delineamento histórico da formação nacional de Portugal da qual o autor buscou dar maior visibilidade a alguns aspectos de forma a acentuar peculiaridades importantes para o desenvolvimento de sua tese372 Para Freyre a revelação do colonizador exigia o pleno conhecimento da formação portuguesa enquanto nação e do português dos séculos XVI e XVII como agente final desse empreendimento Só assim seria possível a plena acepção do homem que participara da formação brasileira nela imprimindo sua marca e esta remontava a um Portugal antigo e não ao Portugal moderno decaído do contexto das navegações dos empreendimentos das campanhas vitoriosas O homem oriundo desse Portugal moderno já estaria psicologicamente depauperado manchado de podre posto que resultante de uma sociedade plenamente falida envenenada pelas próprias estratégias de exploração desmedida de suas colônias asfixiada pela imobilidade que escolheu como destino373 Assim o português ao qual se referiu Freyre em sua obra primeira é o homem dos séculos XV e XVI aquele que se tornou o colonizador por excelência Compreendêlo significaria capacitarse à compreensão do Brasil extensão da população ibérica Esse tipo seicentista para nosso autor fora marcado pela ambiguidade sendo seu caráter de difícil definição em face de sua própria formação Sua postura como homem de um século de descobertas e alargamento do mundo não permitia que fosse tratado como um espírito simplório de hábitos toscos como atestado por Keyserling para quem o português seria um plebeu um home rude marcado por certa ingenuidade se comparado com o caráter imperialista374 de outros povos europeus Em Freyre o português no contexto de suas singularidades historicamente construídas nomeadamente em relação aos seus 372 Em sua narrativa percebese com clareza ter o autor feito uso de algumas representações entre os quais as de Keyserling e de Haldemann para elaborar uma contraargumentação convincente na construção de um perfil português KEYSERLING Conde Herman de Portugal Descobrimento nº 2 Lisboa 1931 HANDELMANN Hendrich História do Brasil São Paulo Melhoramentos 1978 373 A este português Freyre referenciou em Sobrados Mocambos decadência da sociedade patriarcal quando abordou a chegada da família real ao Brasil e o processo transformador originado pelo fato deslocando o eixo da sociedade colonial do rural para o urbano do aristocrata do engenho para o burguês da cidade 374 Em Freyre o termo referencia a tendência colonizadora dominadora imperativa de alguns países europeus tal qual Inglaterra e Espanha que não existiria nos portugueses em decorrência da maleabilidade de seu caráter que o tornava um conciliador por excelência sem arroubos autoritários 199 aspectos psíquicos não ofereceria possibilidades de comparações com outros povos tal quais ingleses e espanhóis já engolfados na sanha imperialista que dominou a Europa seicentista O autor em foco defendeu que a formação de Portugal não possibilitara que ali o sistema feudal se desenvolvesse em sua plenitude e como consequência não se consolidara em seu meio uma aristocracia nos moldes como adviera em outros lugares 375 A nobreza portuguesa seria formada em grande parte por eclesiásticos que dominaram grandes extensões de terra desde o fim das Cruzadas constituindose como cerne da estrutura social do país em formação Desse modo o sistema de senhores e vassalos fora em Portugal dominado por clérigos cujo poder se robusteceu pelo prestígio político e militar num primeiro momento aprofundandose numa ordem moral e jurídica lastreada pelo direito canônico que dominou aquela sociedade Em decorrência desse desenvolvimento especial Portugal foi mostrado por Freyre como uma sociedade caracterizada pela mobilidade social desde sua formação haja vista a aliança de casamentos entre a fraca nobreza civil mais interessada na própria sobrevivência que na manutenção da pureza do sangue A união de nobres com membros da classe média impregnada de sangue mouro e hebreu favoreceu a precoce ascendência das classes marítimas e comerciais na economia e na política portuguesa Em decorrência dessa mobilidade extremada não haveria em Portugal grandes distinções entre os patronímicos familiares que permitissem a identificação de classe pois o mais pobre lavrador poderia ostentar o mesmo nome de família do mais alto escalão social Para Freyre o português se aburguesara facilmente mas tal estado não o fizera um portador de um cariz burguês com todas as suas especificidades tal qual reconhecidas nos Oitocentos Para nosso autor tal aburguesamento se deu pela opção política dos reis em se libertar das pressões da aristocracia num quadro de divergência entre os interesses rurais e marítimos A inclinação pelos projetos da burguesia mercantil e pelos centros urbanos mais que pelas demandas rurais foi uma realidade que tornou Portugal uma nação mais 375 Para Freyre a Reconquista embora seguida de concessão de largos trechos de terra aos grandes guerreiros em sua maioria pertencente às ordens eclesiásticas não acentuou traços e característicos feudais e as terras concedidas sempre se encravavam com outras da coroa ou do rei cultivadas por foreiros ou rendeiros Nessa organização social figurava o solar a mansão senhorial avó da casa grande embora as terras ao seu redor não se destacassem como de grande propriedade embora subdivididas em pequenas parcelas Tal formação se distingue no contexto feudal da Europa medieval por somar os proveitos da pequena propriedade com as vantagens do latifúndio o que resultou num saudável economia nos primórdios da nação portuguesa In Casa Grande Senzala pag 2312 200 urbana que rural mais voltada para fora que para si mesma ainda numa época que o restante da Europa tinha sua vida centrada nos campos376 Por conseguinte não se poderia nunca encontrar nos lusos o mesmo cariz de ingleses e espanhóis cuja aristocracia feudal se assumira como imperialista no contexto colonizador tal qual pretendera o conde alemão O português era um semiburguês pela realidade dos casamentos exogâmicos que marcava sua sociedade assim como era um aristocrático no gosto pelo formalismo e pelas mesuras sociais Haveria assim na alma portuguesa uma distinção especial que o tornava um povo à parte da própria Europa dominadora era antes de tudo um contemporizador acostumado que fora ao longo dos séculos a bem conviver com povos os mais distintos possíveis fosse às beiradas de seu território ou em portos distantes O português navegador aprendera com a própria experiência que viveria bem se desenvolvesse a arte da transigência da moderação Sua experiência mundana configurou sua mentalidade como extremamente plástica amoldável às situações existenciais sem que sofresse maiores danos numa saudável expressão cosmopolita que o marcaria como povo devassador do mundo moderno exemplar de um ecletismo fisicopsíquico exclusivamente luso377 Como tal desenvolveu extraordinária força de diferenciação e autonomia diante dos demais povos do continente capacitandose à convivência e à confraternização com povos de origens diversas por ser despido de preconceitos e de ideais absolutos Tal cariz nos leva a perceber que o português freyreano ganhou o mesmo tônus do luso renascentista de Paulo Prado livre liberto de amarras desvinculado dos preconceitos europeus e das amarras do medievalismo aberto a dominar o mundo o que lhe rendeu fama de inepto e contraditoriamente sagaz 376 FREYRE se reporta à discussão em seu livro Interpretação do Brasil Rio de Janeiro José Olímpio 1957 à p 59 377 REIS admoesta que a visão positiva de Freyre a respeito da eclética mentalidade portuguesa que o capacitou como o mais habilidoso dos colonizadores europeus poderia ser tomada como essencialmente negativa sob uma abordagem econômica ou política capaz de justificar a falência dessa empresa em poucos séculos após sua origem Essa falência resultaria pois do caráter bambo flexível frouxo plástico fortemente sexuado imprevidente fatalista que permitiu ao português reunir em si muitos contrastes passando de um estado psicológico a outro rápida e subitamente Místicos políticos aventureiros atolados numa indolência pouco européia e bem oriental REIS José Carlos Op cit p 75 Cabe lembrar ser a análise freyreana centrada nos aspectos culturais da formação das sociedades portuguesa e brasileira resultando em perspectivas dissonantes de outros estudos de viés politicoeconômico Daí ser a plasticidade arguida por Freyre uma qualidade e não um defeito 201 A astúcia foi para Freyre uma arte e uma estratégia de sobrevivência do português desenvolvida no contato com outros povos Foi através da cordialidade e da simpatia que o português tornouse capaz de se projetar pela imaginação na posição de outro homem e de experimentar sentimentos e estado de espírito alheios378 Em razão dessa habilidade Freyre representou o português quinhentista como capacitado mais que qualquer outro povo europeu a desenvolver uma civilização moderna na América sem entrechoques nem conflitos profundos Sua experiência histórica com outros povos o moldara para tanto bem convivendo com mouros e judeus dos quais recepcionaram muitos dos costumes que no ambiente colonial foram tomados como tipicamente lusitanos379 Fazse interessante notar que esse caráter plástico destacado por Freyre como tipicamente português parece dissolver todas as diferenças culturais desses povos cujo contato se deu sem embates nem entrechoques salvo em alguns casos específicos Com tal escopo Freyre elencou uma série de peculiaridades da cultura moral e material portuguesa por ele entendidas como herdadas do contacto com o estrangeiro e que impondose em zonas onde a presença alienígena era mais freqüente findou por configurar distintos tipos portugueses Assim o português do norte o minhoto foi mostrado por Freyre como um português diferente com valores distintos dos habitantes do sul português Ali a presença moura deixou rastros na cultura local que se destacou pela higiene pessoal pelo asseio doméstico entre a miríade de detalhes que Freyre enumerou como exemplos dessa assimilação cultural Essa divisão também foi tratada pelo autor como existente na própria origem de Portugal e na formação étnica de seu povo o que nos leva a entender que em Freyre não há um português mas tipos vários apesar do autor não acentuar tais distinções como de maior relevância em sua construção 380 378 Cf FREYRE Gilberto O mundo que o português criou Rio de Janeiro José Olímpio 1940 379 Dos mouros Freyre destacou a azulejaria a arquitetura o gosto pelas comidas oleosas a prática de certo processos culinários a doçaria com ovos a higiene pessoal o asseio doméstico a facilidade do contato com mulher exótica a poligamia o sistema de ensino a família patriarcal entre tantos outros detalhes Dos romanos estipulou o paganismo típico do catolicismo português o pendor guerreiro os hábitos predatórios a latinização da fala a técnica imperial Dos judeus a prática mercantil a necessidade de entesouramento o desinteresse pelo trabalho braçal a preguiça o cunho escravocrata 380 Dentre os autores aqui analisados somente Capistrano de Abreu se assemelhou a Freyre nesse pormenor visto que o português abrelino apresentou certa dualidade desde sua origem em razão de sua propositura existencial aventureiros ou agentes da coroa Em relação à sua atuação na própria colônia Abreu mais uma vez os dividiu entre filhos do Reino ou naturais da terra Mesmo que os últimos revelem o português em relação à sua naturalização ou seu lugar de nascimento os primeiros levamnos a entender existir em Portugal notável distorção da própria mentalidade portuguesa uma mais liberta e desgarrada das vontades da 202 O comprovado contato do português com estrangeiros de toda ordem e a assimilação de traços dessas culturas serviu para que Freyre argumentasse contra a pretensa xenofobia que marcara os lusos na escrita de Handelmann381 utilizando aspectos do direito português que poderiam comprovar a liberalidade com que o luso recebera estrangeiros em seu país sem que o fato ocasionasse maiores desgastes no tecido social A esse corpo jurídico Freyre reputou com um dos mais liberais de toda a Europa por não sufocar nem abafar as minorias étnicas dentro do reino nem suas tradições e costumes e mais além concedendolhes o direito de se regerem por um corpo jurídico próprio O autor em sua convicção não fez referência aos embates e sangrentos conflitos ocasionados entre portugueses e essas etnias em momentos específicos da história de Portugal com o foco em confirmar suas hipóteses bem ao contrário se aprofundou em mostrar os intensos contactos com outros povos Para Freyre tais conflitos tiveram tônus religiosos e até mesmo políticos jamais étnicos desconfigurando desse modo a xenofobia portuguesa aventada pelo autor a quem Freyre se contrapôs Em Freyre encontramos um português marcado por certa ortodoxia católica que o fizera olhar o mundo a partir do prisma religioso homogeneizado em sua cultura desde a experiência nas Cruzadas Essa religiosidade extremada deu contornos para que sua aceitação do mundo e das pessoas passasse pelo crivo da fé ao que o autor chamou de profilaxia religiosa Para o português quinhentista não seria a cor da pele nem as diferenças culturais que o faria recusar maior contacto com indivíduos pois consoante o próprio Freyre a origem étnica desse português fora marcada por povos tão distintos entre si que era inegável sua mestiçagem um mestiço que gerava crianças louras e corde rosa como um Menino Jesus flamengo para tornaremse depois de grandes morenas e de cabelo escuro382 Esse dado para Freyre sinalizaria a inexistência de questões étnicas no contexto da sociedade portuguesa acostumada que fora com o convívio com estrangeiros coroa outras mais obediente mais submissa e mais interesseira o que vem clarear a questão da própria homogeneidade das ações políticas daquela população 381 O autor analisou como discriminatória e xenófoba a atuação portuguesa ao não aceitar colonos de ou tras partes da Europa na colônia americana baseado na experiência para com os mouros e judeus ainda na Península Ibérica HANDELMANN Hendrich Op cit p 81 A questão será discutida no decorrer deste texto ao se abordar a colonização portuguesa na América 382 Evidenciase na narrativa freyreana o imperativo de mostrar o português como um híbrido talvez no intuito de mais aproximálo de seus descendentes americanos Mesmo que a análise freyreana não tenha como pressuposto a discussão de raça é inegável seu sentido de valorização da mestiçagem como um adjetivo positivo aplicado à condição humana discurso que se contrapôs a certos grupos de intelectuais brasileiros que não tinham a mesma convicção Op cit p 203 203 e reconhecendose como resultado do encontro de povos Esse encontro por sua vez refletirase na religiosidade portuguesa cujo catolicismo fora marcado profundamente por outras crenças no qual o autor apontou inúmeros elementos comprovativos que tirariam desse catolicismo o teor ortodoxo do mesmo O que avultava em Portugal e na personalidade de seus habitantes segundo Freyre era certa mística católica que dava sentido ao mundo e a sua maneira de entendêlo justificando sua ação política Tal se comprovava na análise do entrechoque havido entre portugueses e mouros nas lutas da Reconquista mostrado em CGS como um embate de fé desvinculado de questões raciais e até mesmo como um embate político expressão da autonomia característica do português e da nascente idéia de nacionalismo Da mesma forma ocorrera em relação aos judeus que por muito tempo conviveram pacificamente no reino sem prejuízo de suas atividades até que demonstraram segundo o autor a falta de delicadeza de sentimentos em questões de dinheiro para com os cristãos Por tal viés os conflitos entre portugueses e judeus se transformavam em conflitos de cristãos contra hereges com visões diferenciadas acerca da usura do entesouramento bem praticado pelos judeus e denunciados como pecaminosos pelo clero em determinado momento da conjuntura nacional A questão em si trazida à baila por Freyre denotava a pureza de fé e não pureza de raça que impôs aos judeus portugueses serem conhecidos em Portugal e suas colônias como cristãos novos e não como judeus como o eram no resto do mundo desmemoriandolhes de sua própria condição religiosa mas não de sua condição social O xenofobismo português em Freyre não existiria ante a capacidade portuguesa de estar no mundo de nele se colocar sem freios nem peias salvo aquelas determinadas pela ortodoxia católica as quais inúmeras vezes esqueceu pela sua própria condição de povo cosmopolita que se amoldava às mais diferentes culturas sem imposições imperialistas e que findou por ser entendido como um povo plebeu cujos contactos com outras gentes eram feitos sem maiores formalidades nem separações Essa postura solta sem amarras nem vontades foi revelada pelo intelectual como bastante proveitosa para a cultura portuguesa corroborando o caráter cosmopolita e a maleabilidade psicológica como uma marca que não se podia desdenhar para a cabal compreensão do povo português 204 Tal maleabilidade por sua vez não foi representada por Freyre apenas como uma marca do contato do português com o estrangeiro mas das próprias condições sociais existentes naquela sociedade que findaram por impor certos costumes na população quase por força de lei Freyre atentou para a constante crise de gente enfrentada por Portugal que atingiu seu ápice quando da colonização agrária implantada no ambiente colonial Essa escassez populacional ocasionada pelas condições disgênicas pelas dificuldades do meio físico e pela instabilidade econômica demandava uma solução cabal sendo mostradas pelo autor como um fato que reverberou na mentalidade portuguesa em definitivo e que acresceu o valor dos lusos como agentes da colonização Como um povo numericamente ínfimo tornarase capaz de dominar tão grande espaço submetendo os naturais da terra e impondolhe uma presença ádvena para além de si próprio Para Freyre os lusos foram capazes de fundir os interesses de sua coroa com os da população adequando certos mecanismos sociais com esse fito É o caso do catolicismo português que abriu mãos da própria ortodoxia religiosa em prol de uniões que resultassem no crescimento da população portuguesa O consentimento eclesiástico do casamento secreto consumado com o coito posteriormente reconhecido pelas Ordenações Manuelina e Filipina denunciava o quanto os interesses pela procriação se tornaram questão de Estado abafando não só os preconceitos morais como os escrúpulos católicos o que deu substratos para que Freyre destacasse os aspectos fálicos do cristianismo português e de como a questão se refletiu na cultura portuguesa regida em todas suas esferas por uma simbologia francamente obscena Outro aspecto da obsessão que se tornou em Portugal o problema do amor físico surpreendese no fato de não haver talvez nenhum outro país onde a anedota fescenina ou obscena tenha maiores apreciadores Nem em nenhuma outra língua os palavrões ostentem tamanha opulência Os palavrões e os gestos O erotismo grosso plebeu domina em Portugal todas as classes considerandose efemeninado o homem que não faça uso dos gestos e dos palavrões obscenos383 Sobre a questão Freyre deu vazão à prática etnográfica para elencar os variados aspectos da cultura portuguesa que se transformaram desde então Para tanto destacou desde os rosários com símbolos fálicos vendidos às portas das igrejas portuguesas aos doces conventuais identificados por nomes afrodisíacos do culto aos santos com danças 383 Ibidem p 2501 205 orgiásticas à utilização das igrejas e conventos como recintos de acasalamento Para o autor esse rude naturalismo emergiu como um diferencial do português em contraste com os excessos de reticências característicos dos anglosaxões Não obstante Freyre considerou que esse aspecto renovador nascido no século XV não poderia ser tomado como dissolução moral da sociedade portuguesa Bem ao contrário essa obsessão pelo amor físico seria reveladora da capacidade de adaptação portuguesa a plasticidade que se destacava em sua personalidade e que ao invés de fazêlo sucumbir entre os seus abrialhe as portas do mundo para confraternizarse com outros povos para conhecer novas gentes e entrecruzar dandose permanência e visibilidade Essa plasticidade era de natureza tal que facilmente o plano original se realizou com a ampla formação de uma população mestiça dominada por laços de sangue e pelo poder político integrada ao ambiente colonial para o povoar defender e tornálo produtivo Embora seja persuasória em alguns trechos a narrativa freyreana é marcada por detalhes e sutilezas tais que exigem plena atenção do seu leitor Ao se dispor a analisar o português quinhentista Freyre sempre se voltou à formação da nação portuguesa como espaço de elucidação da mentalidade de seu povo representado a certa altura como uma população famélica extenuada pela alimentação pobre carente de recursos de toda ordem Em sua exposição sobre a alimentação portuguesa alertou seu leitor para que não se deixasse ludibriar pelas muitas crônicas de banquetes as tradições de comezainas as leis contra a gula384 capazes de convencer tratarse aquela população de uma horda de superalimentados385 Nesse contexto no qual mostrou a distinção da alimentação ordinária consumida no cotidiano popular daquela preparada nas cozinhas gigantes dos mosteiros e conventos ou para banquetes festivos Freyre desvendou um Portugal dividido em si não pela capacidade nutricional de estamentos diferentes em um mesmo território mas pelas ações de um Estado e de uma população em mutação ao afastarse da tradição agrária para 384 Ibidem p 236 385 O fato é que Freyre insistia em não identificar a mesma realidade no Nordeste brasileiro região agrária com a maior parte de sua população vinculada ao campo economicamente explorada pelos latifundiários e que beirava a má alimentação minorada pela oferta e variedade de frutos da terra e pela extensão dos canaviais cujas canas serviam para aplacar a fome A fartura expressa na cultura regional e bem típica das famílias aristocráticas que tinha piano de cauda e livros em casa Que recebia bem que apreciava a boa cozinhao doce fino o quitute delicado o bolo bem feito embora incomum para a classe trabalhadora era peculiar aos dias de festas como a de São João Natal ou os dias de eleição quando se abatiam animais e o cardápio era enriquecido em qualidade e quantidade Sobre a questão ver Freyre Gilberto Nordeste Rio de Janeiro Record 1986 206 ingressar na aventura ultramarina numa estratégia que para Freyre só ratificara a plena capacidade de adaptação que tipificava o português Na narrativa freyreana encontramos esse dois Portugais numa sanha íntima de crescimento favorecida pela própria mentalidade cosmopolita que o fizera desvendar o mundo No Portugal agrário Freyre desvendou um mundo baseado em fazendas verdejantes a produzir trigo e víveres que davam saúde econômica ao reino graças à ação criadora das grandes corporações religiosas que a tudo dominavam e que dava pão aos ingleses desde o reinado do senhor Dom Diniz até o do senhor D Fernando 386 A influência moura e a atuação eclesiástica foram decisivas na visão de Freyre para a pujante formação econômica de Portugal antes do século XV embora esterilizada pela inércia dos senhores de terras mais interessados na vida urbana Em contraponto o autor enfatizou o panorama nutricional português após a Era dos Descobrimentos387 a demonstrar que o descaso com a vida rural por parte de sua população foi o substrato necessário para alavancar a vida rural brasileira O paradoxo por ele levantado findou por revelar também a ação criadora e nada parasitária das corporações religiosas além da profunda influência dos conventos no progresso interno de Portugal influência que sob os ventos dos descobrimentos e da colonização perdeuse nos interiores dos engenhos e na paliçada das Missões 62 Casa grande à portuguesa A análise histórica realizada por Freyre justificou sua observação acerca da origem dos primeiros colonos gente famélica a fugir das amarras de um espaço assinalado pela severa fiscalização dos jesuítas e da Inquisição mas com notável disposição mental para enfrentar outras realidades amoldandose e se possível transformandoas À desídia de um Portugal cindido entre o agrarismo e o mercantilismo entre um Portugal semi feudal e um que se queria aburguesar restou à sua gente a busca de outras terras e de novas experiências uma 386 Ibidem p 233 387 Freyre se apropriou dos escritos de historiadores cronistas e viajantes para revelar o quadro alimentar típico de Portugal até o século XVIII Em seus escritos ele resgata dados sobre as refeições realizadas por Beckford em suas viagens por Portugal In BECKFORD William Excursion to the monasteries of Batalha and Alcobaça Londres Se 1835 As Cartas de Clenardo ao retratar da vida lusitana em seu tempo são reputadas por Freyre como fieis testemunhas da sociedade portuguesa Estrabão e suas informações sobre a deficiência alimentar da Península anterior à invasão romana também foi tomado de empréstimos da leitura de SAMPAIO Alberto Estudos históricos e econômicos Lisboa se 1924 207 extensão portuguesa onde em pouco tempo o tônus agrário estaria bem próximo da atividade comercial e os resquícios feudais não entrariam em choque com a flama burguesa A sanha aventureira do português freyreano destoou assim da de Paulo Prado que via o espírito livre como a marca renascentista da sociedade portuguesa Em Freyre foi a necessidade a pobreza e a fome que impulsionaram a adesão dos portugueses ao projeto colonial e não apenas certa liberdade de espírito fomentada pelos ares renascentistas que em bem pouco dominara as gentes dos campos portugueses Em sua narrativa sobre a formação social do Brasil antes mesmo de abordar como o solar português se tornara casagrande Freyre desvendou os primeiros anos após a chegada do luso e do seu contato com as gentes da terra Nesse contexto o autor deu rosto a esses primeiros indivíduos que lançaram com sua intrepidez os fundamentos de uma nova sociedade ante a possibilidade de uma vida livre no meio de muita mulher nua garanhões desbragados388 que agiam pelo gosto da aventura ou pela afoiteza da adolescência apresentando um português que optava pela liberdade colonial como nova forma de vida Sobre o contexto Freyre pouco referenciou a mudança de rota tomada por um Portugal que já não tinha os mercados da Ásia como fonte segura de enriquecimento fixando sua narrativa na transição operada nos limites de Portugal ao optar em deixar de ser agrícola para se tornar explorador em definitivo Tal opção por sua vez teria sido quase uma imposição dos reis portugueses profundamente influenciados pelos interesses dos judeus389 A abordagem dos primeiros tempos após o descobrimento e contacto de portugueses com os nativos tornouse tema recorrente na historiografia nacional em face da construção da própria brasilidade embora tenha se revelado sempre como danosa aos brios nacionais Os relatos sobre os primitivos colonos como parte da escória da sociedade portuguesa expulsos ou fugidos daspelas normas da civilização por não serem capazes de 388 Ibidem p 19 389 Por suas preposições em CGS a demonstrar terem sido os judeus os responsáveis pelo parasitismo na personalidade do português ensinandolhe certo horror ao trabalho manual a prática para viver de escravos incutindolhe a necessidade de abandono do cultivo da terra e o investimento em comércio e nas aventuras marítimas Freyre foi acusado de ser antissemita A respeito ver o texto de SOUZA Jessé A atualidade de Gilberto Freyre In KOSMINSKY Ethel Volfzon LÈPINE Claude PEIXOTO Fernanda Arêas Org Gilberto Freyre em quatro tempos São Paulo EDUSC 2003 BONDER Nilton SORJ Bernardo Judaísmo para o século XXI o rabino e o sociólogo Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 SOBREIRA Caesar Nordeste Semita ensaio sobre um certo Nordeste que em Gilberto Freire também é semita São Paulo Global 2010 SENNA Alecrides de Reflexões sobre antisemitismo O elemento português em CasaGrande e Senzala de Gilberto Freyre Mneme Revista De Humanidadesv 27 nº 11 Jan 2010 208 convivência sob padrões razoáveis de sociabilidade fizeram dos degredados quase uma vergonha nacional que a elite brasileira se esforçou para esconder desconstruir ou relativizar390 Freyre em sua abordagem inovou o entendimento acerca dos primeiros povoadores reconstruindo suas trajetórias pelo entendimento da dúbia sociedade portuguesa marcada pela ortodoxia católica em contradição com a prática auferida na experiência pelos diversos portos e cidades Em Freyre esse pária social não tinha os mesmos traços encontrados em Abreu ou em Prado não eram criminosos tarados estupradores apenas homens expatriados por irregularidades ou excessos por abraçar e beijar por usar de feitiçaria para querer bem ou mal por bestialidade molície alcovitice391 numa demonstração plena de que o degredado português antes de ser de má índole era uma vítima de uma sociedade repressora de moral estreita que confundia pecado com crime 392 Ao mesmo tempo em que essa sociedade reprimia a sensualidade incitavaa restando aos expatriados por crimes dessa natureza o ambiente colonial onde o pecado inexistia e onde a atividade genésica aproveitara aos interesses políticos e econômicos de Portugal no Brasil Apesar de mostrar os benefícios desse contato nos dois lados do Atlântico Freyre destacou que a recepção da aluvião de indivíduos foi rasa e de durabilidade efêmera não deixando rastros capazes de conferirlhe o título de sistema colonizador devendo os primeiros cinqüenta anos após a descoberta ser considerados como uma préhistória nacional393 O interesse do autor tinha como ponto de partida o ano de 1532 quando teve início a 390 Cf REIS José Carlos Op cit p 93 391 Ibidem p 21 392 Fazse interessante destacar o quanto a presunção de serem os primeiros pais da população brasileira representantes da escória portuguesa reverberou negativamente na identidade nacional durante muitos anos A coerência de Freyre ao apresentar esses portugueses como vítimas de seu próprio tempo coagidos pela moral dúbia que regia a sociedade portuguesa quinhentista renovou as representações feitas a propósito dos elementos iniciais dessa formação que por muito tempo foi tida como deformada e deformante Sobre a questão dos degredados como os primeiros povoadores ver ALCOFORADO Carlos Silva Nossos primeiros pais As representações dos degredados no livro didático Cuiabá Argonautas 1979 COSTA Emília Viotti da Os primeiros povoadores do Brasil Revista de História ano VII vol XIII julset 1956 Um estudo conciso sobre as principais linhas de banimento para o Brasil é o de PIERONI Geraldo Vadios e ciganos heréticos e bruxas Os degredados no Brasilcolônia Rio de Janeiro BertrandBrasil 2006 393 O termo é originário de Azevedo Amaral e utilizado por Freyre ao concordar com aquele autor quanto à superficialidade do povoamento perpetrado durante o período à revelia de qualquer supervisão política e sem cariz civilizador Se evidenciou por tal modo assim a natureza do pensamento freyreano bem adiante dos demais historiadores de até então preocupados com a discussão biológica da raça e dos reflexos ocasionados pelo intercruzamento de um povoador sem estirpe com as mulheres da terra A propósito ver AMARAL Azevedo Ensaios Brasileiros Rio de Janeiro se 1930 209 verdadeira formação social brasileira com o estabelecimento da família rural ou semirural por unidade quer através de gente casada vinda do reino quer das famílias constituídas pela união dos colonos com mulheres caboclas com moças órfãs ou sem esteio mandadas vir de Portugal pelos padres casamenteiros Se o português como indivíduo interessara a Freyre ao construir as criaturas da formação brasileira394 sua narrativa sobre esta formação teve como esteio a família Ao contrário de muitos intelectuais de sua época aquele autor deixou de enxergar o Brasil a partir de sua composição racial utilizando a família como a célula da formação social395 que teve na casa grande e no engenho o seu lugar constituindose como um modelo em todas as regiões onde foram implantados os grandes sistemas agrários de produção engenhos de açúcar plantações de café ou fazendas de criação No contexto colonial a família foi o esteio necessário para que o Brasil não se tornasse apenas uma terra de aventureiros firmandose como lugar de vivência como espaço formador de um núcleo onde o casal seus filhos e respectivos cônjuges acompanhados de sua prole junto com outros parentes agregados e escravos conviviam Em Freyre descobrese o português não mais como o aventureiro marítimo nem o plebeu agrário 396 pois sua narrativa erigiu o português como senhor de engenho patriarca agente de uma colonização particular e não estatal Perdida nos grotões coloniais essa família patriarcal foi além de um núcleo econômico um núcleo de poder posto seus membros se subordinarem ao patriarca assim como outros núcleos que atuavam em conjunto com o mesmo solidificandoo A grande propriedade na qual o engenho era o núcleo produtivo teria sido um mundo à parte uma célula que 394 O termo é de BASTOS Elide Rugai As criaturas de Prometeu Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira São Paulo Global 2006 395 Segundo FONSECA Freyre foi o primeiro intelectual brasileiro a deslocar o eixo da discussão do tema das raças para eleger a família como elemento primordial sobre a identidade nacional e sua formação FONSECA Ana Maria Medeiros da Da raça à nação um debate sobre a construção da nação Dissertação de mestrado em História UNICAMP 1992 p 56 Ao interpretar a formação nacional e não apenas sua composição Jean Pouillon defendeu o caráter histórico do trabalho de Freyre ao buscar metodologicamente pela estruturação de sua documentação a constituição de uma unidade social ainda não beneficiada de elaboração teórica Cf LEENHARDT Jacques A consagração na França de um pensamento heterodoxo In DIMAS Antônio Et alli Reinventar o Brasil Gilberto Freyre entre história e ficção Porto Alegre Editora da UFRGS 2006 396 SCOTT ao tratar das representações construídas durante o Estado Novo e mesmo após a Revolução dos Cravos assevera ser tripla a idéia de portucalidade capaz de construir e manter os vínculos com a terra natal o português camponês o português explorador e o português emigrante As duas primeiras bem detalhadas na obra de Freyre no entanto são dissolvidas por uma terceira identidade a do português construtor cujos esforços resultaram na criação de um novo lugar A respeito da identidade portuguesa ver SCOTT Ana Volpi Os portugueses São Paulo Contexto 2010 p 26 210 compunha o tecido colonial dentro de um espectro civilizador que se caracterizava por sua autonomia onde se produzia a valiosa especiaria que sustentava o comércio triangular e que ao mesmo tempo se autossustentava O engenho em si seria quase um pequeno pedaço de Portugal na América onde se manifestava a energia indígena ou negra na figura da mulher parideira cujo ventre era auxiliar direto da empreitada produtiva397 onde se fazia presente a força do braço escravos a arar os campos plantar e colher transportar e fazer girar a moenda a queimar a fornalha a mexer nos imensos tachos de melado fervente onde coexistia a obediência mesclada de mandonismo dos capitães de mato dos feitores dos moradores cuja presença se dissolvia na habilidade de dezenas de artífices Todos submetidos ao poder de um patriarca quase nos moldes de um senhor feudal cingido por vassalos criador e criatura daquele espaço onde sua vontade era lei e cujo modelo familiar embora não fosse único tornouse um padrão dominante398 destinado à manutenção da propriedade e dos seus interesses políticos Na solidão dos matos e diante do desafio do adestramento da terra inculta para recepção da monocultura açucareira Freyre mostrou um português a quem coube organizar um sistema capaz de proteger a si e aos seus de todas as dificuldades e perigos oferecidos pelo ambiente colonial Na organização desse sistema o português foi revelado como colonizador por excelência capaz de sobrepujar as adversidades para construir um lugar novo de onde tiraria o próprio sustento com poder quase absoluto em seus limites territoriais em decorrência da distância do Estado português e de muitas de suas instituições399 A esse homem Freyre revelou como um transformado que acostumado ao 397 Joaquim Nabuco já constatara ser a parte mais produtiva da propriedade escrava o ventre gerador O Abolicionismo Londres se 1883 p 189 398 Cronistas viajantes e agentes coloniais revelaram modelos alternativos de família no Brasil obscurecidos pela ênfase dada àquela forma de organização familiar A propósito ver ALMEIDA Maria Suely Kofes de Et alli Colcha de retalhos estudos sobre a família no Brasil São Paulo Brasiliense 1982 Para as autoras a família patriarcal colonial em muito se distanciou da família tradicional moderna típico produto do urbano e que tem na satisfação dos impulsos afetivos e sexuais sua principal finalidade Este modelo familiar entretanto consideradas suas especificidades já existia no ambiente colonial rural e urbano em face de sua diversidade socioeconômica 399 A afirmativa do autor parecenos contraditória posto que ao longo de seu texto o mesmo informar que muitas das instituições da metrópole fomentavam esse poder no âmbito local É o caso dos párocos que rezavam missa nas capelas dos engenhos em alguns casos preferindo ali habitar para ficar sob as benesses da casa O reconhecimento da autoridade patriarcal pelas demais autoridades coloniais é revelado pelo autor ao relatar que qualquer criminoso sendo conduzido pela justiça poderia pedir asilo ao senhor de engenho de forma verbal ou agarrandose ao mourão do engenho sendo sua súplica atendida nenhuma autoridade poderia se interpor à proteção dada Na analogia entre as casas de coito portuguesas e o engenho Freyre 211 saque e a mercancia estipulou soluções outras para exploração das novas terras 400 a oferecer condições bastante distintas das demais até então visitadas Previsão utilidade prudência e disciplina foram os adjetivos usados por aquele autor ao longo de CGS para valorizar o português na criação de seu espaço na colônia Seu castelo a casa grande ambiente de gênese da sociedade brasileira nada mais foi que uma criação portuguesa fomentada pela experiência lusa em diferentes lugares do mundo solidificada nos distintos detalhes de sua constituição e arvorada como um símbolo da presença portuguesa na América Construção tipicamente local arrematada por alguns detalhes pespegados de outros lugares a varanda o gineceu o pátio interno em pouco podia ser comparada ao solar português quinhentista 401 sendo o hibridismo dessa habitação elemento revelador do hibridismo do povo português em sua diversidade étnica em sua heterogeneidade cultural A analogia entre essas duas moradias e o levantamento de suas diferenças permite antever esse português colonizador como um tipo criador cujo caráter adaptável o levava a também amoldar seu mundo ali originando o necessário para seu conforto Ao analisar a originalidade existente no ambiente colonial como resultante da adaptabilidade portuguesa Freyre revelou uma casa grande marcada pelos grandes traços da sociedade portuguesa embora mesclada com variados aspectos Ali no edifício idealizado por portugueses construído por escravos e com arquitetura própria apesar de revelava a presença imponente das instituições portuguesas na colônia embora submissas ao mandonismo característico do patriarcalismo Submissas mas não ausentes 400 É Freyre quem diz ter tido o português colonizador arremedos de Taylorismo ao pensar na organização do trabalho do engenho valorizando o máximo de esforço útil e não simplesmente o máximo de rendimento 401 Segundo LEMOS a casa grande brasileira detinha inúmeros detalhes típicos das construções portuguesas manifestado na aparência em decorrência da utilização de técnicas materiais de construção e de certos estilos mas não poderiam ser comparadas às construções portuguesas nas quais a diversidade da paisagem impunha variada arquitetura vernácula nomeadamente em relação às habitações rurais A inexistência de latifúndios em Portugal também é fato determinante para traçar as devidas distinções pois se ali os minifúndios agrupavamse em volta de aldeias a casa grande foi marcada pelo distanciamento relevante em relação ao urbano e essa distância juntamente com a presença escrava foi decisiva na definição de um desenho que permitisse agrupar todas as necessidades de seus habitantes LEMOS Carlos História da casa brasileira São Paulo Contexto 1989 p 21 Leitura mais apurada sobre o tema outrossim revela a ampla utilização de mão de obra escrava no interior das casas grandes portuguesas como constatado por CUNHA e MONTEIRO ao investigarem os grande solares portugueses In CUNHA Mafalda Soares da MONTEIRO Nuno Gonçalo As grandes casas In MATTOSO José História da vida privada em Portugal A idade Moderna Lisboa Círculo de leitores 2011 p 202 Em variados aspectos é possível traçar uma analogia entre as casas portuguesas e as brasileiras que mais se aproximam que se afastam nomeadamente em relação à composição da família patriarcal que habitava ambas 212 marcada por certo estilo luso Freyre descortinou a vida íntima portuguesa nos trópicos desvendando práticas cotidianas costumes e hábitos que deram origem à cultura brasileira Dessa heterogeneidade resultou a mentalidade eclética portuguesa que se existira no reino na colônia atingira o vigor de sua expressão Ali o luso adaptouse às mais miseráveis condições para satisfazer suas vontades para realizar seus intentos sobrepujando antigos costumes de sua sociedade original com o fito de realização de um projeto Se não havia homens suficientes para trabalhar nas roças e plantações que se prendessem os nativos se os nativos fossem numericamente insuficientes ou de difícil trato que se trouxessem os africanos Da mesma forma se deu em relação à recriação de um núcleo familiar tão necessário para homens perdidos na solidão das matas se não havia católicas e brancas a índia serviria e na falta daquela a negra seria companheira Ali a família por ele constituída era um híbrido da família portuguesa402 que ele tivera no reino com as adaptações necessárias para que se enfrentasse a solidão e a necessidade de companhia de mão de obra de produção de riqueza de consecução e manutenção de poder403 Do ecletismo português rigorosamente defendido por Freyre alguns detalhes de seu texto destacam as contradições existentes no tipo por ele criado compreendido pelo autor como de definição complexa posto que marcada por ambigüidades Uma dessas imprecisões diz respeito à chamada mística religiosa herdada pelos lusos desde os Cruzados e que se tornou um lema na empresa colonizadora Para nosso autor o Brasil colonial foi preponderantemente um espaço de católicos e a fé instrumento sine qua non para a permanência nas novas terras Os embates étnicos que marcaram a formação do Estado português nunca tiveram lugar no tecido social da colônia preservado graças à uniformidade religiosa que permitira a presença de múltiplas nacionalidades mas não a diversidade de crenças404 Por esse modo as guerras coloniais nunca foram racializadas não ocorrendo entre o branco superior contra o índio inferior nem a coisificação do escravo se deu em 402 Freyre referenciou a existência de uma tipologia familiar no Portugal quinhentista que influenciou a formação patriarcal colonial descendente direta da família feudal e da família comunitária ali existente e cujos modelos referendaram a família rural na colônia Ver Casa Grande Senzala p 240 403 FREYRE Gilberto Sociologia introdução ao estudo dos seus princípios Rio de Janeiro José Olympio 1957 404 O autor utilizou a argumentação do critério de pureza de fé para anular a percepção de Handelmann sobre o caráter xenófobo português sobre o qual nos reportamos no subtítulo anterior 213 decorrência de sua pele mas de sua ausência de cristandade Por tal viés fortaleceuse a idéia de que a colonização mais que uma missão civilizatória era uma missão cristã e que os embates coloniais eram sempre de cristãos contra bugres contra ateus hereges e protestantes fundamentando a percepção do nexo político entre os diferentes grupos que formavam a colônia eliminando diferenças aplainando contradições fortalecendo o poder dos senhores de engenho e dandolhes consciência de espécie no dizer do historiador Na criação desse português profundamente religioso Freyre nos mostrou um cotidiano onde se deixava o descanso para cumprimento da obrigação de rezar Tão grande era a devoção portuguesa que se andava de rosário na mão bentos relicários patuás santos pendurados ao pescoço e todo material necessário às devoções de reza Dentro de casa rezavase em vigílias no quarto dos santos especialmente construído com essa finalidade A vida comum seria assim comandada pela ortodoxia católica abençoando os nascimentos e confortando nas mortes resguardando a moagem da cana de quaisquer perigos e protegendo a família de doenças ladrões assassinos e tempestades através de papéis grudados com orações nas janelas e nas portas Ao catolicismo português no entanto Freyre fez questão de mostrálo como diferente posto que profundamente marcado por múltiplas influências sofridas por aquela sociedade resultando em extraordinário lirismo que deu aos seus fieis profunda intimidade com seus santos e àqueles elementos tão humanos capazes de se presentificar nas mais comezinhas situações da vida prática Em sua narrativa inexistiram apóstatas divergentes da doutrina reacionários e adeptos de outras práticas religiosas O português católico era submisso e fiel aos dogmas religiosos na visão do mestre de Apipucos Ao tempo que mostrou o português como um católico convicto Freyre reforçou a profunda inimizade e contendas havidas entre os colonizadores e os padres da Companhia de Jesus que professavam a liberdade dos nativos e a necessidade de sua conversão Em sua narrativa as peças impedidas de serem apresadas resultavam em desastre para o processo colonial e de prejuízos para os colonos obrigados ao dispêndio na aquisição de africanos Com tal argumentação Freyre superpôs um português metódico identificado com o espírito mercantilista e produtivo do processo colonial interessado em ganhos na lucratividade de sua empresa mais que no ganho de almas que o autor tentou a todo custo definir Ao fazêlo destacava mesmo sem o perceber o dito aburguesamento que vislumbrara na formação da sociedade portuguesa mas que não enxergara nos 214 colonizadores em seu mister A repulsa desses ao interdito jesuítico de escravidão indígena porém não pode ser tomada como mera transgressão de preceitos religiosos porém como um mecanismo de realização da própria colônia em si A proximidade existente entre padres e senhores no contexto da sociedade patriarcal na qual os primeiros viveram sob a tutela física e moral dos segundos é reveladora desse quadro Para Freyre o catolicismo português não se expressou na colônia na forma de catedral e seu bispo nem como mosteiros ou abadias solitários mas na capela do engenho ligada visceralmente à casa grande o que fez da figura do padre mais um aliado e dependente do patriarca em muitos casos participante da procriação nas senzalas Em decorrência de tal proximidade natural tenha se tornado a difusão de um catolicismo se não herético menos ortodoxo de infração e não de interdito Um catolicismo de festa de guerra e de sexo distanciado de uma compreensão mais ética da religião com tudo o que isto implicava em termos da adoção de uma perspectiva mais sistemática neutra e impessoal da doutrina cristã A ligação de padres e nobres como senhores de terra no medievo português foi mostrada no texto de Freyre como modificada no ambiente colonial restando aos primeiros a tarefa de dar suporte ao poder dos segundos pela liturgia pelo catecismo pelas Ordenações e até pela difusão da língua portuguesa auxiliada pela geral de criação jesuítica Fortalecidos os patriarcas freyreanos se aristocratizaram de uma forma nunca dantes ocorrida em Portugal ao que Freyre diz ter sido um esforço coletivo de retificação da história portuguesa marcada por uma nobreza debilitada pelo poder clerical A aristocracia auferida pelo português no Brasil foi considerada por Freyre inicialmente ao destacar o papel de autarquia das casasgrandes que serviam ao mesmo tempo de fortaleza capela escola oficina santacasa harém convento de moças hospedaria e até de banco A multiplicidade de papeis do ambiente doméstico assim como o nexo das dependências da casa permitiriam para Freyre uma sociabilidade tão intensa quanto a vivenciada pela aristocracia européia e por conseguinte permitiria a aproximação de sociedade colonial da cultura medieval que o autor pressupunha como recriada na colônia Nesses domínios o patriarca era influente superposto em sua parentela superior na rígida estrutura social marcada por casamentos monogâmicos como forma de preservação de poder Tal quadro para Freyre era suficiente para provar a autonomia do patriarca em relação ao Estado português autonomia relativa por ser inegável a manutenção do poder 215 graças às horas e mercês concedidas pelo soberano português o que o tornava um vassalo405 Nesse enquadramento o português tornarase um aristocrata acostumado a ser servido com poder de vida e morte sobre seus filiados revestido de poder político e militar e de destaque social406 O engenho seria para Freyre um feudo407 consideradas suas singularidades onde a vassalagem européia fora redimensionada pelos mestiços que ali viviam à disposição do senhor para o que se fizesse necessário de quem recebiam pequenos pedaços de terra inculta para plantar roçados ou bezerros por cuidar do rebanho habituados não à rotação de terras mas à coivara à meação ou à terça Para Freyre o português implantara um sistema feudal no ambiente colonial mesmo sem têlo vivido na sua completude e com as singularidades permitidas pelas facetas do colonialismo Um feudo movido também por escravos negros bem diferentes dos feudos do centro europeu e do patrimonialismo português Um feudo lusobrasileiro que impediria quaisquer comparações com a 405 FERNANDES considerou que o colono de status senhorial não só era o vas salo e o representante da coroa na colônia era simultaneamente a base material visível e a mão armada invisível da existência do império colonial In FERNANDES Florestan Circuito fechado São Paulo HUCITEC 1977 114 Por sua vez Ricúpero ao estudar a formação da elite colonial destacou os pedidos da vassalagem americana ao rei de Portugal na demonstração dos serviços feitos à custa de sangue e fazenda In Formação da elite colonial Brasil 15301630 São Paulo Alameda 1979 O termo em itálico é do autor citado 406 ARAÚJO buscou fazer uma correlação entre a proposição aristocratizante dos senhores de engenho do Brasil colonial construídos por Freyre com o contraste entre uma cultura oficial baseada na seriedade na hierarquia e em aristocráticas separações e uma popular preocupada com a promoção da familiaridade da liberdade e do humor traçado por Mikhail Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento O Contexto de François Rabelais São PauloBrasília HucitecUnB 1987 Segundo aquele autor boa parte das características que Bakhtin imputou àquele universo popular e enfaticamente antiaristocrático poderia perfeitamente se encaixar nos aspectos da casa grande evidenciados por Freyre sobretudo em relação ao comportamento dos senhores da freyreana nobreza açucareira brasileira In ARAÚJO Ricardo Benzaquem de Guerra e paz CasaGrande Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 Rio de Janeiro Editora 34 1994 p 84 e seguintes 407 Apesar de Freyre não esclarecer seu entendimento acerca do Feudalismo usamos a acepção clássica para a leitura de seu texto definindoo consoante Marc Bloch A fragmentação da soberania entre uma multidão de pequenos príncipes ou até de senhores de aldeia In A sociedade feudal Lisboa Edições 70 sd p 71 216 experiência européia por ser única dentro de um espaço e tempo específico marcado pela singularidade do próprio tecido social da colônia408 No aprofundamento do processo colonizatório o historiador reconheceu as profundas modificações que se estabeleceram na mentalidade portuguesa tal qual o fizera já no início do século Manoel Bomfim e o próprio Paulo Prado Não apenas do português colonizador mas da própria sociedade portuguesa peninsular diretamente afetada pelas modificações extremas assumidas no concerto europeu quanto pelo distanciamento português do ambiente dos grandes Estados do Velho Mundo Mais uma vez a questão do parasitismo do caráter explorador da coroa portuguesa repassado aos seus súditos ressurgiu nessa análise sobre a história brasileira a denunciar a fixação de um mesmo tema no constructo nacional Foi a decadência portuguesa que para Freyre fez assomar certo espírito plebeu no português originando um tipo novo Mesmo tendo refutado a existência do espírito rude apontado por Keyserling no contexto inicial do processo colonizatório Freyre reconheceu no português moderno409 o característico do plebeísmo que contaminara Portugal 408 A tese de que relações feudais pautaram o modo de colonização do Brasil gerou profundas controvérsias entre historiadores economistas e sociólogos perdurando durante várias décadas após a assertiva freyreana embora seja possível identificar algumas premissas em Capistrano de Abreu Enquanto alguns autores perceberam e denunciaram essas relações como fundamento do sistema fundiário brasileiro que persistiu de certo modo até o século XX a exemplo de Nelson Werneck Sodré Alberto Passos Guimarães Jacob Gorender e Caio Prado Júnior outros negaram sua existência inclusive na caracterização das capitanias hereditárias tais como Roberto Simonsen Celso Furtado e Ciro Flamarion Cardoso Sobre o tema reputamos preciosa a análise de BANDEIRA Luís Alberto Moniz O Feudo a Casa da Torre de Garcia DÁvila Da conquista dos sertões à independência do Brasil São Paulo Civilização Brasileira 2007 409 Fazse interessante destacar que o autor em muitos trechos de seu texto deixou em aberto seu pensamento não definindo adequadamente certas questões fato que o levou ao decorrer de sua vida tentar solucionar certos excertos em outras obras e por via dos muitos prefácios escritos para CGS Em relação ao cariz rústico por ele indicado como constitutivo do português moderno notamos certo mecanicismo do autor ao referenciar aquele português sem especificar seu próprio tempo explorando uma realidade histórica sem beneficiála da necessária elaboração teórica Freyre foi claro ao dizer que o seu português era aquele dos séculos iniciais da colonização portanto os dos séculos XVI e XVII quando já se reconhece o advento da modernidade em Portugal segundo MONTEIRO Nuno Gonçalves História da vida privada em Portugal a Idade Moderna Introdução Lisboa Círculo de Leitores 2011 Contudo o que Freyre compreenderia por Moderno no contexto que buscava desvendar Guimarães ao estudar a questão da temporalidade na escrita de CGS esclarece a inexistência de um tempo retilíneo sucessivo na proposta daquele autor pautada num tempo tríbio existencial proustiano em seu esforço de resguardar a verdadeira qualidade do tempo passado Para a autora citada a obra freyreana liga o passado ao presente e destaca o futuro como um mundo de reconstituição e de restituição do passado de valorização e reconhecimento das raízes culturais do povo brasileiro Seu tempo não é tempo mensurável é vivido sentido pois o sentir é sua comunicação com o real Não é duração concreta e sim um tempo psicológico fruto de sua introspecção histórica sociológica e antropológica Assim tudo que o autor considera moderno é o seu próprio presente em contraponto ao 217 naufragado na prática da exploração colonial transmutado em espaço a alimentarse da fama adquirida nas conquistas do ultramar vivendo de um passado cujo esplendor era exagerado Para o autor enquanto Portugal fora eficiente no imperialismo colonizador o português não assumira tal cariz só o fazendo depois da decadência quando intentou se erguer como igual entre as grandes potências da Europa 410 Se antes era condescendente no contato com outros povos ao tempo em que se esforçava pela própria autonomia deixou de sêlo desde então ao se tornar dependente o que exara contradições profundas no cariz português criado por Freyre Mas o que seria esse traço plebeu que Freyre abordou como típico do português moderno mas que não foi aprofundado no texto de CGS Ao tema o autor se reportou como típico de uma sociedade que se aburguesou mas que não se tornou completamente burguesa posto ter estacionado na transição de uma sociedade não totalmente tradicional a uma sociedade não totalmente moderna Enquanto a Europa se industrializava Portugal insistia num mercantilismo que obrigava sua população a fixarse em grande parte na atividade agrária tanto na metrópole como na colônia Em decorrência do fato o povo português e a esse o autor especifica ser o peninsular tal qual seu descendente brasileiro fora marcado por uma rusticidade constitutiva expressa na recusa ao processo homogeneizador411 engendrado pelas transformações burguesas no continente Da mesma forma pode ser entendida na persistência de uma mentalidade anacrônica da manutenção da escravidão frente ao humanismo naturalista que avançou sobre a Europa antigo pois em seu pensamento não há uma subordinação aos preceitos de temporalidade escalavrados pelo pensamento eurocentrista GUIMARÃES Myrna Botelho de Barros Uma reflexão sobre o tempo em Casa Grande Senzala In QUINTAS Fátima A obra em tempos vários Recife Massagana 1999 p 57 Sendo o homem do passado o português das centúrias acima indicadas pensamos que ao se referir a um português moderno Freyre tenha se referido ao homem do século XVIII e seguintes que vivenciou as grandes transformações ocasionadas não mais por uma burguesia mercantil mas por uma burguesia industrial no bojo da sociedade européia 410 Sobre a temporalidade de tal fato não há menção na obra de Freyre embora entendamos tratarse do início do século XIX consoante as indicações de VILLON Victor O mundo português que Gilberto Freyre criou Rio de Janeiro Usina de livros 2010 p 61 411 Em aprofundamento de sua tese inicial Freyre deu como indicativos de rusticidade lusa alguns exemplos entre eles a opção pela falta de instrução adequada às novas formas de organização da sociedade compensada por uma natural sabedoria pela imaginação e pelo humor que não devem ser desdenhados nunca O apego à visão católica e conservadora face ao cosmopolitismo e o aburguesamento vivenciado a recriação da escravidão no bojo do desenvolvimento capitalista assim co mo a tendência para tratar escravos como agregados foram mostrados por Freyre como rizomas da rusticidade constitutiva do português que alcançarão seu auge na modernidade FREYRE Gilberto Interpretação do Brasil aspectos da formação social brasileira como amalgamento de raças e culturas Rio de Janeiro José Olímpio 1947 218 Para Freyre esse espírito rústico plebeu que marcou o português moderno não desqualificava o super português constituído em sua obra típico homem de meados do milênio plenamente adaptável mais capacitado que os demais europeus a consolidar uma civilização nos trópicos em face de sua própria constituição histórica Entretanto essa mesma constituição fez do português um semieuropeu com uma visão mais prática que teórica do mundo a valorizar mais a ação que a reflexão precarizando sua ligação com a civilização ocidental aproximandoo mais do Oriente por onde andou no passado 63 Na esquina do mundo um povo multifacetado A perspectiva de o ibérico ser diferente em relação aos demais povos europeus remonta ao final do século XIX e início do século seguinte como uma preocupação ressaltada por variados autores tanto ibéricos412 quanto latinoamericanos413 No Brasil Freyre retomou a discussão em modos de arrematar muitas de suas perspectivas apresentadas ao longo de sua obra A indefinição portuguesa em Freyre decorreu em primeira mão pela alargada mobilidade proporcionada por sua localização geográfica Situado no extremo sudoeste europeu e amplamente voltado para o Atlântico natural seria ter Portugal o cariz hibrido explorado por Freyre que o compreendeu quase como uma periferia da própria Europa tão distanciado o enxergou do padrão cultural modelado pelos países do centro do continente nomeadamente França Inglaterra e Alemanha Tal distanciamento entretanto não deve ser tomado como uma impossibilidade do próprio Portugal em se tornar tão europeu 412 Um exemplo pode ser indicado na obra de Ortega y Gasset quando o autor indicou ser o grande desafio espanhol reconhecerse como um país onde decorreu o encontro das culturas oriental e ocidental existindo na cultura ibérica uma especificidade que escapava à análise dos estudiosos em geral Para o filósofo espanhol uma vez aceita a diferença essencial entre a cultura germânica e a latina classificou se erroneamente a Espanha como informada pela última quando o que se presentificou naquele país fora a cultura mediterrânea capaz de explicar as semelhanças entre os povos do norte da África e os europeus do sul Por sua vez a cultura mediterrânea não se originou na cultura helênica mas na cretense onde desembocou a civilização oriental e se iniciou outra que não é a cultura grega e que em última análise distanciou o ibérico dos demais povos europeus Cf ORTEGA Y GASSET José Meditaciones del Quijote Madrid Alianza editorial 1987 413 Aos últimos a tese se deu como um desdobramento corporificando a percepção de ser a própria América Latina outra América respeitadas as características locais sempre ancoradas na transição EuropaAmérica e OcidenteOriente como é o caso dos trabalhos do argentino Domingos Sarmiento do uruguaio José Henrique Rodó do cubano Lezama Lima e dos brasileiros Mário de Andrade e Paulo Prado seguidos pelo próprio Freyre 219 quanto as demais nações do Velho Mundo414 tratouse pois de uma escolha frente às demais alternativas históricas que marcaram seu passado e como conseqüência de sua própria formação Mais interessado em outras paisagens e nas novidades que os outros lugares o propiciavam que pela própria Europa o português explorou ao máximo as condições de mobilidade que a geografia lhe permitiu bem como os acordos políticos Basta lembrar que ao tempo das grandes navegações o tratado de Tordesilhas concedera aos portugueses a possessão de todo o Atlântico assim como de boa parte das terras americanas fato que parece ter propiciado o país a voltarse mais para a ambiência atlântica que para o interior do chamado Velho Mundo415 Os resultados dessa tomada de rumos em contraponto á política continentalista do infante Pedro416 e de D Manuel I por sua vez parece terem se arraigado indelevelmente na mentalidade portuguesa resultando como fértil temática amplamente manifesta em sua cultura Em definitivo o mar entranhouse na alma portuguesa417 Na verdade o mar tornouse quase que uma representação do imperialismo português uma exigência para que o pequeno reino se tornasse cabeça da Europa durante determinado período Em Freyre tal condição tornouse um motivo de diferenciação do português em relação aos demais europeus Para aquele historiador o fato de Portugal estar numa esquina entre dois continentes foi mais que suficiente para dar a seu povo um cariz indefinido nem de europeu nem de africano mas de ambos numa singular expressão híbrida vaga e imprecisa A imprecisão portuguesa consistiria em Freyre na inexistência de traços puramente europeus nem tipicamente africanos naquele povo A ambiguidade da identidade portuguesa era caracterizada pela bicontinentalidade que sua condição geográfica 414 A respeito do lugar de Portugal no concerto das nações européias SILVA destaca o perfil percussor assumido por seu país desde os tempos iniciais de sua organização a fim de levar a efeito uma união efetiva dos países europeus por intermédio de um acordo pacífico e voluntário fato revelador de um Portugal plenamente inserido no contexto europeu e não voltado contra o mesmo In SILVA António Martins da Portugal e a Europa distanciamento e reencontro A idéia de Europa e a integração européia ecos reacções e posicionamentos 18302005 Viseu Palimage 2005 415 Sobre a facilidade de mobilidade auferida pelos portugueses Freyre utilizou como exemplo a prontidão dos indivíduos de valor tais como guerreiros administradores técnicos deslocados pela política colonial de Lisboa como peças de um jogo de gamão da Ásia para a América e daí para a África conforme as conveniências de momento ou de religião In Casa Grande Senzala p 83 416 Cf SANTOS João Marinho dos Estudos sobre os descobrimentos e a expansão portuguesa Coimbra FLUC sd p 20 417 SILVA Antônio Martins da Op Cit p 15 220 permitira tornando um português quase um povo de transição disposto numa zona de passagem que o impossibilitara de um cariz típico de uma identidade homogênea Enrijecido pelas condições vibráteis entre os povos dos dois continentes pelos constantes estados bélicos o português freyreano era bicontinental manipulado pela indecisão que o definiu como um povo multifacetado no qual era possível se enxergar resquícios de diversos povos que aportaram na Península Ibérica ou que foram visitados pelos próprios portugueses em suas aventuras marítimas Sua extensa mobilidade definiu seu caráter marcado em primeiro plano por um não ser expressivo do amálgama cultural peculiar da própria formação de Portugal Não havia homogeneidade no povo português nem nos caracteres biológicos e menos ainda em sua constituição espiritual418 bem ao contrário Era marcado por um caráter resultante do amálgama de sua própria formação social e que findou por determinála como uma concentração de elementos opostos antagônicos mesmo que surpreendentemente equilibrados Gente mais flutuante que a portuguesa dificilmente se imagina o bambo equilíbrio de antagonismos refletese em tudo que é seu dando lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade às vezes perturbada por dolorosas hesitações e ao caráter uma especial riqueza de aptidões ainda que não raro incoerentes e difíceis de conciliarem para a expressão útil ou para a iniciativa prática419 Assim o português reuniria em si contrastes vários que ao mesmo tempo em que o aproximaria dos povos europeus o distanciava graças à imprecisão e ambiguidade concentrada não apenas nos seus caracteres biológicos sobretudo em sua própria constituição espiritual Nele se enxergava a Ásia e a influência moura as práticas judaicas o espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia do conquistador bem como um inglês sem as linhas duras do puritanismo graças à extensa mobilidade que o fizera deslocarse do seu próprio território e daquele um espaço de deslocamento de outros povos As aptidões daí resultantes entretanto foram tomadas pelo autor como tão flexíveis e fugidias que quase impossibilitavam o português às ações práticas afirmação que se contradiz com outros trechos da mesma obra nos quais Freyre reconhecia o português como o europeu mais capacitado a vencer nos trópicos graças à sua capacidade de adaptação ao seu caráter mimético de quem se tornara capaz de vencer os grandes desafios do mundo 418 O termo é de Freyre e pode ser encontrado à página 197 de CGS 419 Ibidem p 6 221 Tal caráter por sua vez foi destacado como decorrente desse nãolugar português Tendo sido a mobilidade resultante de um pressuposto geográfico o mesmo não se pode dizer da capacidade de aclimatibilidade da virtude mimética alcançada pelo Português em seus contatos com outros povos para Freyre o grande diferencial dos lusos em relação aos demais povos europeus e a que mais os afasta do Velho Mundo O contato com outros povos não se deu apenas em sua forma mais superficial ou mais despótica ou imperial como o fizeram ingleses e espanhóis Àqueles valendose da superioridade bélica e da incapacidade de se relacionar com o outro diferente impuseramse à força estabelecendo sociedades onde o colonizador não confraternizava com o colonizado Ao português diferentemente coube desenvolver a capacidade de se aclimatar com esses povos conhecerlhe os costumes escolher o que lhe parecia mais prático enfim engendrar em sua própria cultura a alheia quase como uma escolha nunca como uma imposição A imprecisão de sua natureza bicontinental desse modo irmanavase com certa heterogeneidade na composição dos mais destacados princípios formadores da alma portuguesa princípios capazes de fazer que nela se destacassem a qualidade da contemporização da negociação pautada na relativização dos ideais na flexibilidade dos preconceitos Enfim uma expressão da contínua deseuropeização portuguesa em sua essência Utilizandose das considerações de inúmeros autores sobre a grande influência moura e judaica na sociedade e cultura portuguesas Freyre se dispôs a estabelecer mesmo a quantificar até que ponto os portugueses tinham sido influenciados pelos demais europeus ou por outros povos posto enxergasse na sociedade portuguesa uma formação social católica mesclada pelo misticismo e com grandes doses de cultura judaica e maometana o que o intrigava Tais elementos o autor afirmava terem sido introduzidos livremente na colônia fato que denunciava o quanto tais práticas estavam naturalizadas na sociedade portuguesa seiscentista Sobre a maior das influências Freyre destacou a dos semitas na formação do povo português seguida de perto pelos costumes mouros determinantes para que o português tomasse uma nova configuração mental e também biológica Freyre indicou ter sido a prática da escravidão o uso da mão de obra de terceiros na feitura das tarefas de uma sociedade inclinada para outras atividades como a maior expressão do contato desses povos Fora a prática da escravidão secularmente comum entre os semitas e sendo aqueles numerosos na Península Ibérica não foi necessário grande esforço para que 222 esta se tornasse comum mesmo que enojasse os mais puristas 420 Mas a escravidão que Freyre perscrutou foi a escravidão negra integralizada em toda sua cruel face na América portuguesa Mesmo sem negar ter sido o português um escravocrata terrível o autor destacou outra faceta desse português como aquele que soube adaptar tal exploração dandolhe um sentido mais suave doméstico onde o escravo estava mais próximo de seu dono tal qual a escravidão apreendida na cultura moura Sabemos que os portugueses apesar de intensamente cristãos mais do isso até campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã imitaram os árabes os mouros os maometanos em certas técnicas e em certos costumes assimilando deles inúmeros valores culturais A concepção maometana da escravidão como sistema doméstico ligado à organização da família inclusive às atividades domésticas sem ser decisivamente dominada por um propósito econômicoindustrial foi um dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à colonização predominantemente mas não exclusivamente cristã do Brasil421 De forma mais profunda chegou mesmo ao recôndito dos lares e aos hábitos dos portugueses de forma a dar maior ênfase às qualidades judaicas e mouras introjectadas na cultura portuguesa e que muito a diferenciava de outros povos europeus Ao destacar o gosto pelo asseio pela limpeza pela claridade pela água Freyre traçou uma divisão peculiar no interior de Portugal identificando as regiões onde a presença moura ou judaica mais se fez presente nos costumes e hábitos populares Contraditoriamente ao representar o português como passível de confraternizarse com outros povos não teve a mesma preocupação generalizando suas observações como se a população portuguesa fosse uniformemente igual Foi a partir da percepção da existência de expressivos costumes mouros e judaicos na população brasileira mais especificamente na nordestina422 existentes desde a 420 O autor esclarece o papel dos judeus no interior da sociedade portuguesa e de sua influência nos métodos escravocratas adotados mais tarde pelos portugueses Os judeus desde o começo do período visigótico souberam imporse entre os povos peninsulares como negociantes de escravos e credores de dinheiro De modo que para o pendor português de viver de escravos parece ter concorrido o sefardim Inimigo do trabalho manual o judeu desde tempos remotos inclinouse à escravidão Diz Chamberlain que Isaías insinua a idéia de que os estrangeiros deveriam ser os lavradores e os vinhateiros dos hebreus E o certo é que na Península muitos dos judeus mais longínquos de que se tem notícia foram donos de escravos cristãos e possuíram concubinas cristãs Ibidem p 228 421 Idem Novo mundo nos trópicos São Paulo NacionalEDUSP 1969 p 83 422 A propósito ver SOBREIRA César Op cit p 134 223 colonização além da coleta de dados em variadas obras que aquele autor traçou a mais forte e resistente representação acerca de Portugal e de seu povo distanciandoo ainda mais do modelo do Velho Mundo centro da cultura ocidental e da civilidade 423 Ao aprofundar seu argumento o autor justificou suas alegações com base em dados da grande ascensão intelectual dos judeus dentro da sociedade portuguesa Para além da habilidade daquele povo nos assuntos financeiros base da expansão do imperialismo luso foram as tradições sefardínicas de intelectualismo que influenciaram em grande medida os portugueses Desde 1589 segundo o autor a Mesa de Consciência e Ordem já identificara estarem os cristãos novos a fazer monopólio dos ofícios de médico rivais poderosos dos padres perante as famílias e os reis e boticário além do de bacharel o que fez Coimbra ser tomada como um covil de heréticos424 face ao grande número de judeus como alunos e professores da universidade Para Freyre a presença preponderante de judeus na sociedade portuguesa e a realização plena da cultura hebraica em Portugal findaram por estabelecer como comuns algumas práticas contrárias à mentalidade européia como a da escravidão e o ambiente doméstico português foi inundado por africanos antes mesmo que fossem levados à colônia americana sob a alegação de inexistência de mãodeobra Da prática escravocrata de origem judaica Freyre produziu um sentido considerando ter a mesma apenas realçado algo bem peculiar do português comum a índole oposta ao 423 O gosto pelas comidas oleosas e pela doçaria a aprendizagem a partir de canções da tabuada ou da cartilha o ideal da beleza feminina ligado ao excesso adiposo os banhos de gamela o gosto da água corrente nos jardins o uso da mantiha pelas mulheres dando às modas femininas um ar mais oriental que europeu a preferência mais pelos tapetes e esteiras que pelo sofá ou estofados onde se sentavam de pernas cruzadas à mourisca os pezinhos tapados pela saia pois seria grande vergonha deixar alguém ver os pés a azulejaria a telha mourisca a janela quadriculada a gelosia o abalcoado e as paredes grossas Todos esses foram costumes trazidos pelos colonizador inclusive uma indefinida doçura no tratamento com escravos docilidade esta desconhecida pelos historiadores ante os variados relatos de abusos e a existência de vários instrumentos de castigo e tortura de uso comum nos engenhos Antagonicamente o autor assevera que o horror à água o desleixo pela higiene do corpo e do vestuário permaneceram entre os portugueses de forma mais intensa nas zonas menos beneficiadas pela influência moura A divisão do país em norte e sul sendo o último o reduto de influência mourisca surpreende pelos exemplos de higiene da casa Para Freyre a casa portuguesa seira suja feia e emporcalhada no norte e no centro e o minhoto mais europeu mais louro e mais cristão o mais desasseado a denunciar flagrante desleixo pelo asseioIbidem p 222 424 Freyre utilizou a expressão de AZEVEDO João Lúcio de História dos cristãos novos portugueses Lisboa se 1922 224 trabalho425 Para Freyre a indolência seria marca do caráter português que a escravidão apenas ratificara O autor não esclareceu se a reconquista da península e a subseqüente escravidão moura ensejaram tal estado de espírito apesar de ter destacado que bem antes de aprender a prática escravagista com os africanos o português bem soubera submeter os mouros na Península passando a viver da exploração do trabalho daqueles Por outro lado insistiu em demonstrar a percepção lusa em relação ao trabalho físico coisa de negro assim como o novo sentido dado ao verbo trabalhar tomado livremente como mourejar a demonstrar o quanto a prática fora alojada na cultura portuguesa desdobrandose numa aversão pelo trabalho que transformara o português num povo indolente A aclimatibilidade portuguesa em relação a práticas de outros povos foi revelada por Freyre como mais um atributo do crescente distanciamento luso da própria Europa O Velho Mundo apresentava uma história de trabalho de esforço físico e mental valorizado não pelas instituições feudais de servidão e vassalismo mas pelo esforço burguês de crescimento financeiro de industrialismo enobrecedor de ascensão social propiciada pela capacidade de trabalhar capacidade esta decantada como uma ética por Weber426 passível de diferenciar populações inteiras pela sua capacidade de impulsionar ou não a economia ocidental moderna O português aburguesado em suas primeiras experiências mercantis não aprofundara tal cariz posto ter enfrentado um dos grandes enclaves de sua história ao ter que optar entre o mercantilismo e o imperialismo colonizador quando fundou a maior civilização moderna dos trópicos Esse aburguesamento tão referenciado por Freyre encontrou seu termo quando da descoberta de uma rearistocratização confirmada pela sua capacidade de exploração da mãodeobra escrava que findou por fazêlo se aclimatar a um novo modelo de vida modelo este emergido na contramão das férteis transformações ocorridas no seio social do Velho Mundo Como um indolente o português foi tratado por Freyre como o avesso do europeu a percorrer um caminho à parte das grandes nações do continente o que lhe deu uma identidade distinta daqueles Todavia ao constituir esse português pouco afeito ao trabalho mergulhado na languidez e morosidade reproduzidas na colônia Freyre evidenciou a própria historicidade da formação de Portugal resultante não de fatos como a 425 A percepção de uma suposta indolência portuguesa é colhida por GF nas cartas de Clenardo traduzidas pelo Cardeal Gonçalves Cerejeira e publicadas no livro O Humanismo em Portugal citado pelo autor mas sem referências In Casa Grande Senzala p 238 426 WEBER Max A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Martin Claret 2001 225 Revolução Gloriosa ou a Renascença Italiana mas da cultura de povos distantes aos quais se aclimatara sem prejuízo algum Essa capacidade de adaptação bem própria do português Freyreano todavia tomou novos contornos ante o aprofundamento das relações dos lusos com os demais povos Mais que se adaptar aos mesmos o luso foi mais adiante fundindose miscigenandose atingindo o ápice do contato que lhe foi proporcionado pela geografia e sua própria constituição psíquica capaz de se achegar a outros povos posto que tal capacidade não se originasse da realidade de suas fronteiras continentais mas decorresse dela A aclimatibilidade portuguesa não seria pois uma conseqüência da localização mas uma estratégia diante da mobilidade propiciada pela localização a capacidade de convivência pacífica e integrada com povos distintos decorreu para Freyre de um componente distinto bem peculiar ao português e inexistente em outros povos europeus quase tão móveis quanto aqueles embora incapacitados a um contato mais próximo A miscigenação por sua vez resultou desse componente ao alargar a mescla cultural da aclimatibilidade em mescla biológica Desse modo o português teria perdido o cariz de branco puro desde que confraternizara com romanos fenícios árabes franceses e judeus diferenciandose dos demais europeus ao se tornar um híbrido resultado de um amálgama iniciado antes do seu desembarque no continente americano 427 Esse intercruzamento teria resultado numa nação onde as propriedades singulares de cada um desses povos não se dissolveram possibilitando o surgimento de um tipo com perfil próprio que sintetizasse as diversas características de sua composição Bem ao contrário o mestiço português freyreano assim como o próprio tecido social português se assemelhavam a alguém que guardou a indelével lembrança das diferenças presentes em sua composição 428 O português tal qual sua própria sociedade exibiria notáveis antagonismos que dado ao seu equilíbrio não se desfariam não se homogeneizavam de forma a se reunir numa entidade separada original e indivisível 427 Neste sentido Freyre ofereceu uma impressionante descrição dos movimentos dos mais diversos povos que desde a préhistória até a ocupação moura converteram a Península Ibérica e em especial a sua face lusitana em um local de intensos encontros contatos nem sempre pacíficos mas ainda assim capazes de produzir mútuas e duradouras influências In Casa Grande Senzala p 21620 e 22330 428 ARAÚJO argumentou que o hibridismo que Freyre enxergou na sociedade colonial não era a conversão do azul com amarelo transformado em verde Tal mistura naquele autor não facultaria a perda das cores originais mantendose as mesmas ARAÚJO Ricardo Benzaquen de Op cit p 74 226 Embora Freyre em muitas passagens de seu texto houvesse proclamado as expressivas peculiaridades étnicas mouras e judaicas da sociedade portuguesa ele defendia o hibridismo como sua principal marca Seria assim a sociedade portuguesa híbrida sincrética polifônica Indefinida entre Europa e a África Nem intransigentemente de uma nem de outra mas das duas A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual à alimentação à religião o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura o ar da África um ar quente oleoso amolecendo nas instituições e formas de cultura as durezas germânicas corrompendo a rigidez doutrinária da Igreja medieval tirando os ossos ao cristianismo ao feudalismo à arquitetura gótica à disciplina canônica ao direito visigótico ao latim ao próprio caráter do povo429 Tais características por sua vez não importariam em qualquer diminuição ou perda para Portugal Muito pelo contrário seria exatamente por essa índole flexível e até vulcânica inteiramente despida de compromissos com a coerência e a rigidez que o nosso autor localizou a maior virtude do português o sucesso do empreendimento colonial marcado por uma expressiva mobilidade aclimatibilidade e miscibilidade de sua exígua população e incipientes recursos materiais Deslocandose com rapidez deitandose com qualquer raça e aceitando todas as situações e todos os climas o português realizou a proeza de não só se multiplicar e assegurar a sua presença nas mais longínquas regiões do planeta mas também a de fazêlo através de um tipo singular de colonização baseada em um íntimo contato com as terras e os povos por ele conquistados distinguindose em especial da colonização européia e angloamericana dos trópicos A mobilidade a miscibilidade e a aclimatabilidade como multifacetas do povo português refluiu na idéia da plasticidade portuguesa categoria central de construção de um português e sobre a qual já nos referimos em títulos anteriores A plasticidade seria então uma ampliação e uma concretização da experiência étnica e cultural de Portugal tônica do português freyreano apresentado ao Brasil uma extensão de Portugal imerso em sua cultura herdeiro de sua formação Na defesa dos valores dali decorrentes clamava Freyre 429 Ibidem p 23 227 CAPÍTULO 7 O PASSADO COMO OBSTÁCULO AO FUTURO Enquanto a intelectualidade brasileira ainda se encantava com as descobertas proporcionadas pela Casa Grande Senzala freyreana outro título era lançado na esteira de obras que se dispunham a analisar a formação daquela sociedade Raízes do Brasil Seu autor Sérgio Buarque de Hollanda430 paulista de nascimento vivenciara a Revolução de Trinta acontecimento que desencadeou uma complexa trama de tradição e modernização tornada em substancial apelo sobre a vida pública brasileira e por extensão na 430 Natural da cidade de São Paulo onde nasceu em 1902 ali vivendo até 1921 transferindose para o Rio de Janeiro com o fim de cursar a faculdade de direito Como acadêmico Holanda ingressou na carreira jornalística assim como na crítica literária exercida em jornais e revistas como principal atividade até os últimos anos da década Nesse ínterim participou do Movimento Modernista participando da revista Klaxon e fundando em 1924 a revista Estética na qual trabalhou até 1929 quando partiu para a Alemanha onde permaneceu por um ano O período naquele país como correspondente dos Diários Associados inseriu Holanda nas tendências dominantes da intelectualidade europeia do momento tendo o Historicismo conquistado seu modo de ver e entender o mundo o que findou por se refletir na composição de sua obra inaugural publicada em 1936 Raízes do Brasil Com a mesma ingressou no quadro de docentes da Universidade do Distrito Federal onde permaneceu por três anos até sua extinção nos quadros do Estado Novo Nesse período teve contatos próximos com os grandes nomes da cultura francesa tornando se assistente do francoargelino Henri Hauser 18661946 em História econômica e de Henry Trouchon em literatura comparada experiência que o iniciou nas técnicas sistemáticas da pesquisa histórica utilizadas na produção de Monções publicado em 1945 No ano seguinte após a extinção do Estado Novo Varguista Hollanda retornou a São Paulo para assumir a direção do Museu Paulista cargo abandonado em 1956 quando ingressou na Universidade de São Paulo como regente da cadeira de História da Civilização Brasileira onde se efetivou como catedrático com a tese Visão do Paraíso os motivos edênicos do descobrimento e a colonização do Brasil publicada em 1959 Antes porém publicou Caminhos e fronteiras no qual historiou a lenta ocupação territorial promovida pelos bandeirantes Sérgio Buarque de Holanda foi professor da USP até 1969 quando pediu aposentadoria em face ao clima de tensão proporcionado pela instalação do AI5 instrumentado pela ditadura militar Desde então sua produção ocorreu desvinculada de instituições levando a cabo a direção da coleção História Geral da Civilização brasileira iniciada na USP desde 1960 da qual redigiu vários capítulos e um volume completo Do Império à república publicado em 1972 Engajado politicamente durante toda a vida ajudou a fundar junto com outros nomes o Partido dos Trabalhadores em 1979 Foi casado com Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda com quem teve sete filhos tendo falecido em 1982 228 historiografia a partir de então produzida Ao contrário de Freyre que olhava o passado que aos poucos se desfazia tal qual o esfarelar das casas grandes e das famílias patriarcais Holanda espreitava o presente vivido impactado pela ocorrência de uma revolução no âmbito nacional seguida de outra de cunho regional431 e tentava imaginar o futuro que aguardava o país Foi o caráter da Revolução além de todos os acontecimentos políticos dela decorrentes que aproximaram Sérgio Buarque de Holanda da perspectiva de que no Brasil nunca houvera uma revolução social pois todas as revoluções foram políticas e voltadas para remodelar os interesses das elites432 Para ele todas as medidas políticas sociais e econômicas do governo varguista eram inerentemente conservadoras e portanto pertencentes a um quadro social que remontava à sociedade colonial Para a subversão de tal estado Holanda apregoava a necessidade de se revelar o passado do país para combater o autoritarismo do seu tempo ou desvendar nesse presente as permanências e as sobrevivências arcaicas do passado com o fito de superálas para que a almejada modernização nacional viesse a se concretizar433 Observese que o autor já não buscava mais o espírito nacional em sua formação como o tentara Capistrano de Abreu Era do próprio espírito nacional que ele buscava revelar os grandes males que atrelavam o país ao passado impedindo sua progressão suas melhorias e cuja extirpação daria sentido à realização revolucionária 431 A chamada Revolução Constitucionalista Revolução de 32 ou Guerra Paulista ocorreu em São Paulo de 9 de julho a outubro de 1932 objetivando derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e promulgar uma constituição nova para o país A face oculta do movimento armado por sua vez expressava o revanchismo dos paulistas contra o novo poder instituído em 30 que extinguiu a autonomia gozada pelos estados desde 1891 submetendo São Paulo ao governo federal O movimento também expressava o inconformismo dos paulistas pela ação revolucionária de 30 que impediu a posse do candidato vencedor das eleições à presidência da república Júlio Prestes indicado pelo estado e por ter derrubado do poder o então presidente Washington Luís também paulista Sérgio Buarque de Holanda apoiou integralmente este movimento mesmo residindo no Rio de Janeiro à época de sua ocorrência Sobre o evento de farta bibliografia sugerimos a leitura de BORGES Vavy Pacheco Getúlio Vargas e a Oligarquia Paulista História de uma Esperança e Muitos Desenganos São Paulo Brasiliense 1979 e da mesma autora Os sentidos do Tenentismo memória história e historiografia São Paulo Brasiliense 1992 432 A propósito da postura autoral ver COSTA Marcos Antonio Silva Biografia histórica a trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre os anos de 1930 e 1980 Tese de doutorado em História Universidade estadual Paulista 2007 433 Holanda parafraseando Goethe defendia a validade do conhecimento do passado como forma única de libertação do próprio passado Para ele a missão do historiador consistia em procurar afugentar do presente os demônios da história Quer isso dizer em outras palavras que a lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que corre In HOLANDA Sérgio Buarque de Visão do Paraíso Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil São Paulo Companhia das letras 2010 p 181 229 Para o autor a verdadeira revolução se operaria com uma passagem definitiva da vida rural brasileira para a vida urbana e pela superação das raízes ibéricas impregnadas no recôndito da nação sob as formas do ruralismo do personalismo das relações de favor do patriarcalismo e da democracia improvisada onde o interesse privado prevalecia sempre sobre o público O Brasil necessitava para Holanda não apenas de uma revolução política mas de uma revolução social434 ou seja uma revolução que desencadeasse um processo de passagem de uma formação social a outra superando a formação originada na colônia e que se perpetuara sob novas roupagens Para ele a revolução política seria apenas um episódio da transformação institucional das relações de poder o que vem demonstrar o sentido da História para aquele autor O estudo do passado longe de ser operação saudosista ou modo de verificar ou legitimar as estruturas vigentes poderia ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais que contariam com a ajuda do povo e não o confinaria a mera massa de manobra Com tal finalidade Holanda se empenhou em apresentar em Raízes as permanências e sobrevivências do passado colonial brasileiro como um entrave a ser superado um estorvo para o tempo presente que deveria ser outro e não mais aquele tão bem apresentado por Freyre em sua Casa Grande Senzala As vívidas reminiscências acalentadas pelo historiador pernambucano deveriam ser banidas da vida nacional fosse válida a busca pelo progresso alardeado como um dos fins da revolução e arduamente defendido por alguns intelectuais435 nomeadamente os do sudeste agrário exportador Em Raízes do Brasil o historiador paulista buscou analisar o sentido do Brasil mediante um estudo do processo histórico de nossa formação mas não um processo marcado por uma sequência de eventos Tal como Capistrano de Abreu Holanda preferiu abordar 434 SINGER definiu a revolução social apontada por Holanda como um evento com dinâmica própria produzida por amplas mudanças históricas na infraestrutura econômica e outras tantas na superestrutura ideológica e institucional Para aquele autor a noção de revolução política ofuscou a de revolução social por causa da tese até então pouco predominante nos meios de esquerda que a condição necessária e suficiente para a conquista do socialismo seria a conquista do poder estatal Continua sendo verdadeiro que o socialismo pressupõe a transferência do controle efetivo dos meios de produção dos capitalistas aos trabalhadores Mas esta transferência requer muito mais do que um ato jurídicopolítico de transferência de posse Ela requer antes de tudo que os trabalhadores estejam desejosos de assumir coletivamente tal controle In SINGER Paul Uma Utopia Militante repensando o socialismo Petrópolis Vozes 1998 p 93 A assunção de tal controle requeria em Holanda o amplo conhecimento de todos os aspectos da sociedade e com esse fim ele procurou denunciar o quanto ainda havia na sociedade brasileira dos mecanismos coloniais 435 A exemplo do pensamento de Alberto Torres Oliveira Viana Azevedo Amaral e Plínio Salgado 230 formas de vida social de instituições e de mentalidades do passado introjectadas na identidade nacional em vias de ser superada Desse modo o autor buscou reconstituir uma identidade nacional tradicional arcaica aferrada a padrões exógenos que não lhe conferiam singularidade com a intenção que a mesma pudesse ser sobrepujada pela sociedade em seu devir em seu processo de construção Os padrões exógenos referenciados por Holanda destacaram o papel de Portugal e dos portugueses como autores dos pilares da formação nacional marcada por incompatibilidades entre o modelo de milenar tradição implantado e o extenso território e sua gente cujas condições no mais das vezes foram adversas e contrárias à violenta imposição do modelo adotado Ao fim restara ao Brasil uma formação resultante da soma de múltiplos e distintos elementos da qual tomou relevo um padrão o luso a despeito das diferenças Para o autor nem o contato e a mistura com raças indígenas ou adventícias fizeram um povo novo mas uma gente e uma sociedade que transbordava lusitanidade mais parecidas com os avós do alémmar436 como às vezes intentariam não sêlo Residiria a contradição da sociedade brasileira na permanência dessas raízes ibéricas e da própria estrutura do mundo colonial que somadas ao processo desencadeado pelo incentivo à industrialização e conseqüente modernização do país originadas pelo processo revolucionário revelava a incongruência da formação brasileira Não obstante o confronto dessas forças que se opunham veementemente até chegarem à exaustão cederia lugar a formas e forças novas capazes de transformar os homens e a sociedade Ao historiador desencantado com os rumos tomados pelo Brasil437 coube denunciar a persistência dessas raízes de uma modernização conservadora calcada num passado com a intenção de que se encontrassem mecanismos de neutralização dessa tradição ibérica para ele um entrave responsável pelo atraso Na mostra dessa tradição Holanda construiu um Portugal cujos traços principais tentaremos apresentar a seguir 436 O termo é de HOLANDA Sérgio Buarque de Raízes do Brasil Rio de Janeiro José Olímpio 1988 à p 73 437 Sob forte influência de Max Weber e do complexo das variantes interpretativas implícitas na obra daquele pensador é expressivo o envolvimento de Holanda com o grande teórico da racionalização da modernização da burocratização e da administração racionallegal Para Dihel a vinculação ao pensamento weberiano denunciou o desencantamento do mundo por parte do historiador brasileiro em relação à realidade enfrentada por seu próprio país A respeito ver DIEHL Astor Antônio Op cit p 200 231 71 Um Portugal pouco europeu Chama atenção o fato de Holanda mesmo se colocando numa posição diferente da de Freyre em relação ao papel das raízes portuguesas no Brasil ter retomado o tema abordado pelo mestre de Apipucos em sua CGS embora por outro viés sem o saudosismo nem a alegria freyreana mas a expressar certa inquietação diante da persistência de tais rizomas Em primeira mão Holanda se destinou a desconstruir uma das maiores referências de Portugal para o Brasil a de porta de entrada ao mundo europeu tão acalentado em sua aura civilizatória pelos historiadores oitocentistas A apresentação de um Portugal fronteiriço com uma cultura marcada pela transitoriedade onde o europeísmo seria mantido apenas como patrimônio necessário foi tratado por Holanda como um exercício de contrastes do qual sobressairiam algumas peculiaridades ibéricas bem presentes no Brasil vintista Em Holanda ser português significava pertencer a um territórioponte a Península Ibérica no limiar entre dois mundos a própria Europa e demais continentes A Península não seria único exemplo dessa comunicação também exercitada pela Rússia e países balcânicos e até mesmo pela Inglaterra o que evidenciava que a diferenciação dos ibéricos em relação à Europa não era única Desse modo a Europa foi mostrada como um continente geograficamente centralizado com vários pontos de contacto com outras partes do globo condição validada mais pelo seu papel histórico que pela cartografia O Velho mundo exibiria também seu próprio centro pautado pelo avanço econômico em relação às demais regiões periferias do continente que construía a modernidade Ao propugnar o distanciamento de Portugal em relação à Europa Holanda não tomou como referencial apenas a sua localização geográfica ou o contato com outros povos como o fizera Freyre O diferencial abordado por Holanda circunscreveuse à específica formação histórica dos próprios ibéricos designadamente dos portugueses Enquanto as regiões centrais da Europa se organizavam no contexto de seu próprio território os povos da Península ainda lutavam contra invasores convivendo durante alguns séculos com uma cultura totalmente ádvena No caso específico de Portugal tal diferença fora ampliada por só ter conseguido se organizar em torno de uma monarquia apenas no século XIII o que impusera aos lusos um desenvolvimento quase à margem das congêneres europeias Ao tempo que aquelas nações já superavam os entraves feudais com sua rígida hierarquia 232 Portugal tentava se adaptar a um modelo utilizandose de ajustamentos que findaram por se revelar mais como diferenciais que como análogos Como resultante desse descompasso histórico de Portugal em relação às nações da Europa central sua sociedade assumiu na visão de Holanda uma estrutura marcada por notável frouxidão expressa em ampla mobilidade desde a Revolução de Avis A crescente união de membros da nobreza com a crescente burguesia mercantil portuguesa resultou numa sociedade que mais valorizava o prestígio pessoal que os nomes de família pouco apreciando as influências e os privilégios hereditários zelosamente resguardados nas demais nações europeias O individualismo originário da nobreza feudal como ética de fidalgos não se restringiu à nobreza lusitana alastrandose pelas demais classes fazendo dos lusos um povo de mentalidade diferente da dos demais europeus438 Graças a tal particularidade a burguesia mercantil portuguesa não necessitou adotar um novo modo de ser e viver para marcar seu predomínio bastando à mesma associarse às antigas classes dirigentes e assimilar seus princípios guiandose mais pela tradição que pela razão predominante nos membros da mesma classe nos demais países do Velho Mundo Desse entrelaçamento de classes dessa união de interesses avultou a cultura da personalidade que definiu na sociedade portuguesa uma ética da autonomia que expressava a valorização da autossuficiência do alvedrio do homem em relação aos demais Cada homem seria assim filho de si mesmo sem necessidade dos seus semelhantes contando somente com suas virtudes e seu próprio esforço Ao tempo em que mais se valorizava a capacidade pessoal de conquista que os privilégios hereditários inegavelmente o português tendia a desenvolver uma mentalidade ousada moderna e diferenciada de uma Europa marcada pelo sangue azul por antever a irracionalidade desse sistema e a injustiça social dali resultante Bem notável ainda é aduzir que a própria nobreza portuguesa que deveria defender esses privilégios subverteu a regra com fito em outros interesses fazendo de Portugal um lugar especial e diferenciado do tecido social europeu 438 Michel de Foucault esclareceu que durante o medievo a individualidade se vinculava à posição social do indivíduo e tinha como pressuposto a liberdade Desse modo o rei era considerado como indivíduo por excelência o que já não ocorria com o servo que por não ser dono de si mesmo não figurava como indivíduo In Vigiar e Punir o nascimento das prisões Petrópolis Vozes 1987 Portugal por sua vez alheio à severa hierarquia do sistema feudal teve uma nobreza que não se enquistou e sua acessibilidade favoreceu uma fidalguia em todos os níveis diferenciandoo dos demais países do continente 233 Dessa mentalidade valorativa do mérito e da responsabilidade individuais nasceu o português de Holanda que contraditoriamente não foi capaz de desenvolver o espírito de organização espontânea tornandose inepto para a vida social para a associação entre os homens A solidariedade como laço de união entre os interesses compatíveis não existiria entre os portugueses para os quais a associação derivaria apenas dos vínculos sentimentais a unir círculos limitados e particularistas tal qual a família patriarcal explorada por Freyre ou associações beneficentes comuns na metrópole e na colônia Deste modo o personalismo português tornouse fruto de uma sociedade que compreendia a diferenciação entre os homens entendendoos como desiguais frente a uma Europa moderna que crescentemente valorizava a igualdade como um pressuposto da individualidade439 Da incapacidade dos lusos para a organização espontânea para a racionalização da vida social a exigir a gestação de formas livremente pactuadas emergiu na sociedade portuguesa construída por Holanda evidente inclinação à anarquia e à desordem Para o historiador na terra em que todos eram barões não era possível acordo coletivo durável a não ser por uma força exterior responsável e temida 440 Teria que haver um elemento que favorecesse a criação e manutenção artificial de organização política fator de estabilidade e de equilíbrio de um povo eminentemente personalista e por isso incapaz de diferenciar as ditaduras e a anarquia posto serem ambas típicas de seu caráter Um governo seria a necessidade básica do português de Holanda incapaz de gerenciar a própria vida social em decorrência da própria mentalidade O individualismo português formara assim uma gente incapaz de se aglutinar só o fazendo em casos extremos regidos pelos sentimentos e por certa proximidade É desse contexto outra peculiaridade portuguesa resgatada por Holanda a extraordinária disposição para o mandonismo441 nascida do predomínio individualista da autarquia do indivíduo da exaltação extremada da própria personalidade que atingiu seu ápice na 439 Cf DUMONT Louis O individualismo uma perspectiva antropológica da sociedade moderna Rio de Janeiro Rocco 1993 p 316 440 Ibidem p 4 441 O termo foi usado por Sérgio Buarque de Holanda reproduzindo um conceito que já se estabelecia nas ciências sociais brasileiras e que já se fizera conhecer na literatura nacional Característico do coronelismo o mandonismo referese à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder bem presentes no Brasil e representadas pelo patriarcalismo O mandonismo não é um sistema é uma característica da política tradicional e existe no Brasil desde o início da colonização segundo CARVALHO José Murilo de Mandonismo Coronelismo Clientelismo Uma Discussão Conceitual Dados vol 40 nº 2 1997 234 implantação do sistema escravocrata Na colônia o trato com o escravo expôs a capacidade de mando do português assim como com o indígena tornandoo em terrível senhor442 embora Holanda tenha vinculado esse cariz como um paradoxo da capacidade lusa em obedecer Mais que o próprio mando a virtude maior do português seria a obediência a capacidade de se submeter à disciplina imposta a submissão total cega irrestrita distinta da lealdade originária dos princípios medievais O que se destacava na obediência que caracterizou o português de Holanda seria o interesse pessoal sendo este o único princípio político verdadeiramente forte entre os mesmos A capacidade de obedecer em Holanda foi trazida à baila quase como uma arte desenvolvida pelos portugueses uma virtude maior que ancorava aquela sociedade e que fora levada aos seus limites pelos jesuítas Ao mesmo tempo em que o português se valorizava em sua própria autonomia em que se fazia senhor de si não lhe onerava o mando havendo em si uma extremada capacidade de submissão submissão ao outro ou à própria realidade submissão não à linhagem mas ao mérito pessoal Todavia o que dera origem à mentalidade portuguesa que ao tempo em que libertava aprisionava condicionando os lusos à submissão de uma liderança ou à anarquia pura e simples A respeito Holanda constituiu os antecedentes dessa aptidão composta na junção dos campos políticos e teológicos Para ele a doutrina agostiniana teve papel decisivo para que o português assim se tornasse ao se alhear da organização de um mundo afastado de Deus no qual o princípio ordenador da hierarquia e das relações de poder estava distante do modelo da cidade proclamada por Santo Agostinho Na construção agostiniana do mundo ibérico o português era movido por uma fé no sobrenatural que o distanciava da organização do mundo terrestre 443 Contrariamente ao que se passava no resto da Europa o individualismo português jamais foi significativamente submetido à idéia de organização hierárquica dos homens em termos sociais e políticos O indivíduo em si contaria apenas com seu próprio esforço e com suas 442 Mais que Holanda foi Freyre em sua CGS quem esmiuçou a capacidade de mando do português expressa em variados exemplos da disciplina imposta pelos patriarcas que se revelava na execução de castigos atrozes para os que ousavam dela se afastar mulheres emparedadas vivas crianças estouradas no calor das fornalhas escravos mutilados filhos assassinados por ordem do pai 443 A mesma perspectiva foi desenvolvida por Holanda em Visões do paraíso os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil São Paulo Companhia das letras 2010 Naquele texto o autor explorou a mentalidade dos portugueses a respeito do Novo Mundo salientando o quanto os teólogos medievais foram responsáveis pelos mitos e lendas que ancoraram suas ações no descobrimen to e povoamento do Brasil 235 virtudes fazendose diferente e em decorrência merecedor de prestígio e valorização444 Por esse modo na retórica de Holanda seria natural entre os lusos a insensibilidade à organização social bem como a invencível repulsa à moral fundada no culto ao trabalho conforme abaixo assinalado É compreensível que jamais se tenha naturalizado entre a gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente e até mais nobilitante a um bom português do que a luta insana pelo pão de cada dia O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor exclusiva de qualquer esforço de qualquer preocupação E assim enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual as nações ibéricas colocamse ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica O que entre eles predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é em si menos valiosa que a contemplação e o amor445 Ao considerar as virtudes proclamadas pelos portugueses a inteireza o ser a gravidade o termo honrado o proceder sisudo no dizer de Francisco Rodrigues Lobo446 Holanda deu uma interpretação à mentalidade portuguesa como essencialmente inativa que em nada favorecia ao país prejudicado em seu desenvolvimento pela apatia de sua população sempre indisposta a modificar o que já existisse e o que estava determinado A indolência lusa seria a antítese da ética protestante e a nãovalorização do trabalho tomava foros de defesa da dignidade humana aviltada e depreciada pela mecânica sobre as coisas Desse modo Holanda construiu um português distinto dos demais europeus posto que indolente hostil ao trabalho braçal e aferrado à exploração de mouros e negros Contudo fosse a preguiça e o próprio catolicismo uma das marcas desenvolvidas pelo português e destacada no texto de Holanda como mais um diferencial dos lusos em relação aos povos europeus como justificar a disposição do português para a aventura do além mar para a descoberta de novos mundos já que os grandes caminhos e descobertas resultaram da ação direta dos mesmos e não do trabalho escravo 444 Para Leenhardt os portugueses da obra de Sérgio Buarque de Holanda seriam os herdeiros dignos da doutrina estóica de Sêneca Cf LEENHARDT Jacques Frente ao presente do passado In PESAVENTO Sandra Jatahy Org Um historiador sem fronteiras O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda Belo Horizonte Editora da UFMG 2005 p 85 445 Ibidem p 10 446 LOBO Francisco Rodrigues Corte na aldeia Lisboa se 1945 p 136 236 Mesmo sem responder a essa indagação Holanda aventou uma ética própria do português navegador uma ética que surgiu na época das chamadas grandes navegações e que se fez presente no empreendimento colonial americano Essa ética foi tomada por Holanda como um instrumento capaz de ordenar o conhecimento dos homens e entender os seus conjuntos sociais Ao tempo em que o português se submetia às atitudes mentais herdadas de Santo Agostinho vivenciava uma época que predispunha os grandes gestos astúcias e façanhas fermento natural para o surgimento de um sem número de aventuras bem recepcionadas pelos lusos Nesse contexto desenvolveuse o que Holanda chamou de ética da aventura em oposição à ética do trabalho vivida pelos povos europeus protestantes Com tal finalidade aquele autor construiu tipos sociopsicológicos o aventureiro e o trabalhador como instrumentos metodológicos capazes de evidenciar a importância da dimensão psicológica nas ações sociais447 Para ele as sociedades se constituíam de atores capazes de construir riquezas e as usurpar graças à astúcia e à violência assim como por outros que por segurança privilegiavam os investimentos confiáveis invariavelmente despojados pelos primeiros Esses primeiros seriam em Holanda os indolentes portugueses aventureiros afeitos às novas sensações e ao reconhecimento público Propositalmente cegos quanto às fronteiras os limites impostos em oposição aos que enxergavam primeiro as dificuldades a vencer animados pelo desejo de segurança o português da obra de Holanda queria o mundo sem penhorar esforços em seu domínio O que o português vinha buscar era sem dúvida a riqueza mas riqueza que custa ousadia não riqueza que custa trabalho 448 A esse português aventureiro e personalista Holanda configurou com atributos tais como audácia imprevisão irresponsabilidade e instabilidade cunhados no esteio de uma concepção espacial do mundo em oposição à concepção temporal vigente entre os povos trabalhadores Estes por sua vez se destacariam por valorizar a paz a estabilidade a segurança o empenho desinteressado típicos segundo Holanda do mundo sociopolítico do norte da Europa 447 Evidente que os tipos construídos por Holanda foram inspirados pela obra de Max Weber embora o autor os articuasse aos modelos de Vilfredo Pareto o Rentista e o Especulador utilizados para explicar a distribuição da riqueza e sua concentração Na verdade esse uso sistemático de oposições polares tornouse evidente na obra de Holanda Trabalho e aventura o semeador e o ladrilhador Caminhos e fronteiras assim como na de Freyre não apenas como uma idealização weberiana mas como uma necessidade de colocar em ação um campo de tensão tal qual a própria realidade que ambos vivenciavam dividida entre a tradição e a modernidade 448 Ibidem p 18 237 Entretanto o cariz imposto por Holanda aos portugueses é perpassado por sutilezas tais que ocultam mesmo mostrando o papel decisivo dos lusos nas transformações mundiais ocorridas com a expansão ultramarina Na articulação do tipo aventureiro o autor construiu um português plenamente apto a viver sua temporalidade repleta de movimentos decisivos para que se tomasse a dianteira do mundo lançandose na aventura das grandes navegações Ao mesmo tempo se mostrava portador de mais aptidões para tal empreendimento que os tipos trabalhadores naturais da Europa arquitetada por aquele autor e caracterizados positivamente em Raízes O trabalho de explorar as ilhas do Atlântico e os territórios americanos não foi evidentemente tarefa capaz de ser desempenhada com sucesso pelos demais europeus tamanha era sua disposição para o trabalho mas um trabalho de outra natureza planejado meticuloso que não exigia coragem nem audácia talentos que sobejavam no aventureiro português É inegável que a ousadia que Holanda afirma ser peculiar ao português também era uma forma de trabalho considerada a diversidade de papeis existentes no contexto das grandes navegações e no processo colonial O português seria ousado por fazer o que os demais temiam ou evitavam traçando estratégias definindo novas rotas articulando ações arrojadas Ser ousado não implicava em ser preguiçoso embora o autor tenha destacado que a própria sociedade portuguesa em suas leis derrogava a nobreza se vinculada aos chamados ofícios mecânicos Mesmo que a fidalguia como trato social perpassasse todos os estratos haviam discriminações consagradas pelos costumes em relação aos ofícios de mais baixa reputação social o que tornava o trabalho na sua expressão física braçal uma ocupação de desvalidos no seio da sociedade portuguesa Se a alguns pensar o empreendimento dispensava o esforço físico traçando estratégias definindo rotas articulando ações para a grande maioria dos envolvidos o que restava era a labuta fosse no convés das embarcações no cais dos portos nas oficinas ou nas lavouras É preciso destacar que o trabalho como significado de execução de uma obra é próprio do final do século XV449 o que colide com a percepção do autor sobre a existência de uma 449 Segundo Le Goff a palavra trabalho não existia antes do século XI assim como a palavra trabalhador veio a surgir apenas no final do século XVII com o estabelecimento do CapitalismoPor sua vez Hobsbawn esclarece que já nesse período o trabalhador era considerado socialmente inferior um ser ignóbil cuja ocupação tão necessária era desdenhada pelas classes superiores evidenciando a desvalorização social do próprio trabalhador A propósito ver LE GOFF Jacques Para um novo conceito de Idade Média Tempo trabalho e cultura no ocidente Lisboa Editorial Estampa 1979 Ver também HOBSBAWN Eric Os trabalhadores estudo sobre a história do proletariado Rio de Janeiro Paz e Terra 1981 238 suposta ética contra as atividades laborais ditas físicas na sociedade portuguesa desde sua fundação O desprezo pelas atividades braçais aventado pela nobiliarquia do medievo a nosso ver confrontase com o personalismo português no qual um homem se tornava notório pelo próprio esforço Desde que esse não lhe causasse calos nas mãos estaria apto ao recebimento das mercês régias demonstrativo que a tão falada permeabilidade social abordada por Holanda tinha também seus entraves e que a ascensão era vetada para os mais humildes Evidente que o português como homem de aventuras foi utilizado por variados autores na escrita da histórica colonial a exemplo de Varnhagen Abreu Prado e mesmo de Gilberto Freyre ficando restrito ao tempo inicial da colonização O aprofundamento da exploração do território pela coroa portuguesa parece ser um tempo em que os autores já divisavam que os homens que se dispunham a viver na colônia já não tomavam a tarefa como uma aventura mas como uma missão Holanda por sua vez quebrou este paradigma e como exceção construiu um português naturalmente aventureiro para o qual o trabalho comum era elemento social que desvalorizava o indivíduo ao qual recusavam e sequer compreendiam O personalismo que gestou esse tipo valorizador de aventuras por oportuno foi válido nos séculos iniciais da colonização sendo superado pelo próprio movimento do mundo moderno onde o trabalho se tornou elemento substancial no sistema econômico que se impôs do outro lado dos Pirineus e que se alastrou pelo continente atingindo territórios longínquos tal qual o da colônia A ética da aventura ali foi mostrada por Holanda como necessária num primeiro momento para o sucesso da empresa de modo que ficou cristalizada na mentalidade dos seus habitantes numa realidade temerária da qual o Brasil do século XX deveria se desembaraçar sob pena de nunca atingir suas metas de modernização e de progresso A análise de Holanda sobre o não pertencimento do português ao contexto europeu vinculouse em seu texto à separação da Península Ibérica do restante do continente para além de sua histórica constituição pela linha imaginária dos Pirineus O Velho Mundo na retórica de Holanda foi representado pelos países do norte expressão de um europeísmo que inexistia para os ibéricos Enquanto aqueles se caracterizavam por uma significativa 239 homogeneidade cultural os ibéricos se diferenciariam entre si apesar da proximidade geográfica e da formação histórica assemelhada como veremos mais adiante Mas de qual Europa Holanda falava ao retirar de seu meio os ibéricos e mais especificamente os portugueses Na tentativa de desvendar a questão anterior lembremos que essa divisão assumiu expressiva relevância quando da apresentação dos tipos aventureiro e trabalhador localizandose estes no norte europeu e aqueles na Península Ibérica fronteira com o ultramar A despeito da cartografia do norte europeu nos séculos XVI e XVII observamos que Holanda fez poucas referências à França e à Inglaterra principais representantes europeus no colonialismo imposto à América além dos portugueses e espanhóis Entretanto ao se referir aos europeus do norte o autor indicou indubitavelmente os holandeses como os representantes daquela Europa povoada por tipos trabalhadores em oposição aos tipos aventureiros por ele reconhecidos no aquém dos Pirineus450 A França que deveria referenciar o europeísmo aduzido por Holanda parecenos não se adequar perfeitamente aos predicados próprios do tipo trabalhador construído por Holanda posto que antes mesmo que os portugueses explorassem as regiões litorâneas do Brasil os franceses conduziam uma política de entrepostos nas costas brasileira em contato constante com os nativos O estabelecimento de excelentes relações com os naturais induziu os franceses a invadir a região da Baía de Guanabara ali estabelecendo um povoamento que durou mais de uma década e cuja experiência resultou no relato de Jean de Léry451 Outra experiência francesa no Brasil embora de menor duração e intermitente com a primeira foi a da França equinocial que fundou a cidade de São Luís no Maranhão meionorte da colônia A presença francesa na colônia revelou o quão pouco poderia se identificar do tipo trabalhador construído por Holanda naquele povo que cedo se acostumou a ser acolhido nas malocas nativas aceitando as esposas oferecidas pelos anfitriões e adequandose sem 450 A respeito Holanda reporta que O insucesso da experiência holandesa no Brasil é em verdade mais uma justificativa para a opinião hoje corrente entre alguns antropologistas de que os europeus do norte são incompatíveis com as regiões tropicais No índice de assuntos organizado ao final do texto de Raízes do Brasil encontramos apenas uma referência aos europeus do norte que alude especificamente aos holandeses A problemática da colonização dos Países Baixos na região Nordeste do Brasil findou por se tornar relevante no trabalho de Holanda que a utilizou para traçar uma analogia entre ibéricos e europeus Ibdem p 34 e 149 451 LÉRY Jean Viagem à terra do Brasil Belo Horizonte Itatiaia 2007 240 pejo à vida natural dos indígenas452 Tal quais os portugueses os franceses que contrabandeavam livremente paubrasil no litoral encerraram as trocas voluntárias passando a exigir o domínio da terra e do trabalho nativo realizando a profecia tupinambá que antecipava o desejo dos franceses de fixaremse na terra para desrespeitar os costumes nativos e escravizálos da mesma forma que os lusitanos453 Em suas práticas não se vislumbrava a busca de estabilidade a segurança o empenho sem perspectiva de proveito imediato peculiares da ética do trabalhador do norte europeu de Holanda Por outro lado no contato dos franceses e a subseqüente tentativa de colonização no Brasil podem se identificar variadas ações recheadas da audácia e irresponsabilidade típicas do aventureiro ibérico Em relação à Inglaterra o próprio Holanda reconheceu tratarse de um povo aventureiro e pouco laborioso assemelhandose aos portugueses em suas práticas colonizatórias e principalmente escravagistas A correlação entre portugueses e ingleses realizada pelo autor é reveladora as similitudes entre os dois povos pouco industriosos com tendência à indolência e à prodigalidade atributos também reconhecidos pelo autor inglês William Inge cujas idéias foram apropriadas por Holanda para justificar a própria visão454 É preciso destacar que Holanda referiuse não ao inglês que viveu o surto industrial evento que para ele criou uma idéia equivocada em relação ao povo da Inglaterra mas ao inglês anterior à era vitoriana que denominou como típico nãoindustrioso sem senso de economia tal quais seus vizinhos continentais mais próximos Inge por sua vez referirase ao homem do século XIX imerso no que chamou de ociosidade impudica mas que foi considerado por Holanda como um tipo que já ultrapassara os vícios do passado o que revela evidente descompasso entre o contexto tratado pelo historiador inglês em relação à abordagem de Holanda que lançou mão de certas adequações a fim de justificar as suas proposições 452 Cf MARCHANT Alexandre Do escambo à escravidão As relações econômicas de europeus e índios na colonização do Brasil 15001580 São Paulo Companhia editora nacional 1980 p 281 453 A propósito ver DAHER Andrea O Brasil Francês as singularidades da França Equinocial 1612 1615 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007 454 Sobre a questão o autor inglês fez a seguinte observação A indolência é vício que partilhamos com os naturais das terras quentes mas não com qualquer outro povo do Norte da Europa In INGE William Ralph Inglaterra Londres se 1933 p 160 O autor não viu o mesmo atributo nos franceses praticantes da frugalidade parcimoniosa nem nos alemães aos quais julgou portadores de uma diligência infatigável 241 Em nosso entendimento a tipologia criada por Holanda escondeu alguns problemas de cunho histórico Ao intentar distinguir os lusos dos demais europeus a partir de um cariz aventureiro visibilizado ao limite durante o empenho colonial assim como o perfil trabalhador dos países ao norte designadamente dos povos dos Países Baixos Holanda não observou que a política de exploração levada a efeito pelos portugueses se reproduzia nas demais colônias francesas inglesas e flamengas455 sem grandes diferenças Em meados do século XVI os entrepostos eram realidade tanto nas costas africanas quanto na América de norte a sul configurandose como um desdobramento da expansão europeia na tentativa de superação da crise do fim da Idade Média e da questão inerente à formação dos Estados nacionais456 A presença indiscriminada das nações europeias nos movimentos de expansão e as práticas daí decorrentes a nosso ver não encontram semelhança na chamada ética do trabalho construída por Holanda Bem ao contrário detêm todos os pormenores com os quais nosso autor consagrou aos ibéricos determinandoos como um povo de aventuras A peculiaridade da política de expansão europeia nos seiscentos nos leva a entender trataremse todos de aventureiros movidos mais por uma concepção espacial do mundo do que com sua própria temporalidade Não seriam assim o Renascimento o humanismo a busca da segurança ou a consolidação da paz os motores do alargamento do espaço europeu mas a ânsia de ultrapassar fronteiras a partir de modus operandi equivalentes Somente no século XIX consolidado o industrialismo e profundamente modificada a situação sociopolítica e econômica do continente a mentalidade colonialista europeia sofreu algumas modificações Foi o caso da França que mesmo realizando uma política violenta em suas colônias como imperativo da própria prosperidade e da defesa e 455 O termo de uso comum na historiografia brasileira referencia os naturais das Províncias Unidas ou holandeses sendo resgatado dos documentos portugueses relativos ao Brasil nos séculos XVI e XVII conforme esclarecimento de Melo que indica seu largo emprego no ambiente colonial Os flamengos mesmo sem envolvimento nas atividades de exploração de novas terras se estabeleceram em entrepostos no Brasil São Tomé e Príncipe Angola Índia Portuguesa Sri Lanka Formosa Japão e Indonésia entregando sua administração a companhias especializadas restando ao Estado holandês apenas a responsabilidade nominal da empreitada In MELO José Antônio Gonsalves de Tempo dos flamengos Influência da ocupação holandesa na vida e cultura do Norte do Brasil Recife Secretaria de educação e cultura 1978 p 34 456 Cf VAN DULMEN Richard Los inícios de La Europa Moderna 15601648 México Siglo vintiuno editores 1984 p 746 Ver também RIBEIRO Darcy As Américas e a civilização Petrópolis Vozes 1979 p 62 242 preservação de sua ordem social457 assumiu um forte papel ideológico em nome dos ideais da revolução de 1789 por efeito da libertação das nações da América Latina e perante uma Inglaterra que não capitulou de seu papel militar comercial e industrial tal qual Portugal A participação dos lusos na recolonização da África no século XIX a nosso ver mais os aproximou da mentalidade colonial europeia e dos interesses comuns das potências do Velho Mundo Na ocasião a ética da aventura parece ter se fundido com a do trabalho embora em Holanda a primeira tenha se mantido cristalizada no Brasil 72 Semeadores dos verdes campos da América Vencido o contraponto entre portugueses e europeus Holanda se dedicou a analisar a singularidade de Portugal conquanto Estado colonizador A unidade proporcionada pela historicidade da Península perante o restante da Europa tratada pelo autor nos termos iniciais de sua obra pareceu perder dinâmica quando defrontada com o ambiente colonial Em tal contexto Holanda buscou dar sentido às peculiaridades portuguesas indicadas ao longo de seu texto mostrando como as mesmas se revelaram na prática da colonização de enorme espaço ocupado por populações nativas Como o português afeito à aventura incapaz de gerenciar a própria vida social e avesso ao trabalho obteve sucesso no empreendimento colonial Haveria diferenças entre os ibéricos considerados pouco europeus A partir dessas questões o historiador passou a burilar o português por ele construído no sentido de mais compreendêlo e assim julgar o que restou de sua herança a um Brasil aferrado àquela mentalidade apesar de decorrido mais de um século de separação Em novo cenário o português teve que se adaptar a demonstrar sua profunda capacidade de enfrentamento da realidade o que revela o quanto Holanda se debruçou no trabalho de Freyre compartilhando muitas de suas proposições A maleabilidade portuguesa tornouse assim no texto de Holanda uma qualidade imprescindível para que o mesmo assumisse 457 À época Ernest Renan defendia a idéia de que Uma nação que não coloniza está irremediavelmente condenada ao socialismo ou à guerra do rico contra o pobre A conquista de um país de raça in ferior por parte de uma raça superior que se estabelece nele para governálo nada tem de estranho A Inglaterra pratica este tipo de colonização na Índia com grande proveito para a mesma para a humanidade em geral e para a própria Índia Do mesmo modo como devem ser criticadas as conquistas entre raças iguais a regeneração das raças inferiores ou abastardadas por parte das raças superiores se situa pelo contrário dentro da ordem providencial da humanidade Regere império populos eis nossa vocação Cf ARON Raymond Dimensões da consciência histórica São Paulo Editora da UNESP 1994 p 45 243 em definitivo o desafio da conquista das terras americanas destinandose a colonizálas Observese que aquele autor mesmo tratando da mentalidade portuguesa não se reportou a temores impossibilidades adversidades da época do descobrimento situações certamente existentes e enfrentadas pelos que se destinavam a integrar a aventura Em seus escritos a colônia surgiu como uma miragem um fato novo a ser recepcionado pela população prontamente disposta a vencer o desafio sem maiores preocupações com o porvir por ser de sua natureza a experiência arriscada e a imprevidência em sua realização O português de Holanda parecia não ter consciência dos riscos da aventura pois toda sua vida seria dedicada às mesmas sem apegos à família a amores à própria terra onde nascera Seria assim um homem sem vínculos mostrado como avesso ao meio social embora contraditoriamente nele integrado num coletivo de vontades de aventurarse pelo mundo de descobrilo para dele se apossar Num ambiente totalmente novo a exibir diferente realidade o aventureiro se fez outro submetendose à sedentária vida rural rechaçada em Portugal posto que o cais e as embarcações ofertassem melhores condições que a lide campestre para seu instinto aventureiro embora o ambiente colonial revelasse um cenário oposto aos seus propósitos existenciais Vitimado pelo caráter inativo nascido da mentalidade que tomava o trabalho físico como desonra o português de Holanda desejava a riqueza do Novo Mundo como um fruto maduro a pender de galhos firmes em árvore de fácil colheita contudo não era esse o caso A riqueza que buscava ali se escondia em florestas inacessíveis e adentrar nas mesmas significava suor e desgaste físico termos fora do padrão português Sob essa configuração como esse português venceu a ética da aventura para realizar a colônia Para aquele historiador a imprevidência fora a marca dos lusos no empreendimento colonial Chancelado por este modo de ser lançavase ao que julgava dever ser feito sem preocuparse com os meios e por isso mesmo exibia franco caráter plástico adaptando às mais distintas situações por não se preocupar em prevêlas Assim a aventura seria a própria realização do caráter português e sua plasticidade não decorreria de um condicionante geográfico mas da própria formação histórica que sedimentara uma mentalidade na qual aquela na acepção do que está por vir458 definira as feições do elemento português 458 O historiador fez questão de alertar para a expressão na primeira edição de Raízes do Brasil dandolhe o sentido do porvir do possível de acontecer o que a nosso ver retirou do termo certo ranço pejorativo Com 244 Aí se destacam as diferentes visões de Freyre e Holanda pois se para o primeiro o português exibiu uma plasticidade social e cosmopolitismo únicos mostrandose perfeitamente capaz de conviver e coabitar com outras raças graças à formação social de Portugal integrandose plenamente em outra cultura sem prejuízo da própria vemos que Holanda não comungou da mesma idéia Convicto do espírito aventureiro do lusitano Holanda encontrou nele a justificativa para a adaptabilidade portuguesa às condições mais ásperas ou resistentes embora a partir da recriação dos lugares de sua procedência459 A versatilidade portuguesa só encontrava esteio ante a recriação de seu próprio lugar na construção de outro Portugal de uma nova Lusitânia Não obstante esta recriação não pode ser tomada ao pé da letra em decorrência do caráter plástico do português Tratavase mais de adaptações nas quais os lusos somavam elementos de sua cultura com o que preexistia no lugar verdadeiros monumentos da cultura lusitana impregnados indelevelmente da vida material de uma América dita portuguesa Ao recriar a própria cultura na colônia o português Holandino não perdeu seu cariz aventureiro bem ao contrário mostrouse aberto ao futuro disposto a enfrentálo fosse como fosse Não teria sido pois um mero adepto da aventura amante da precariedade e afeito a expedientes mas um homem sem preocupações com o agora cujo nível de adaptabilidade decorreria pois de seu senso de futuro o que o tornaria desapegado do próprio presente Na colônia competiulhe fazer uso de tais atributos mentais frente a realidade ali encontrada encarada como a renovação da própria aventura outros níveis aos quais necessitava revelar sem maiores imposições Desse modo a recriação de Portugal não prescindia da imposição do mesmo padrão mas de uma adaptação entre o pré existente e o encontrado num jogo de combinações despido de regras a expressar a maleabilidade lusa Esta para Holanda seria uma fraqueza que os fizera fortes Da ausência de planejamento do colonizador da negação coletiva à organização política nasceu um empreendimento realizado ao sabor das conveniências onde não houvera interesse pelo fazer mas pelo resultado dada sua incompreensão em relação à própria ética tal sentido o português de Holanda mais que um especulador de novas experiências foi também um dinamizador cujo empenho resultou em vetustas mudanças e progresso social do mundo moderno 459 Com essa abordagem Holanda se distanciou da perspectiva de Gilberto Freyre não reconhecendo o caráter cosmopolita do português Lembremos que em Freyre a plasticidade dos lusos originavase em seu contato com diversos outros povos dentro e fora de seu território o que se refletia na franca recepção dos mesmos a outras terras e outras culturas Holanda por sua vez considera a mesma plasticidade a partir da não imposição da própria cultura embora permeada pela adaptação e pela interpenetração de elementos de uma com outra 245 do trabalho Para aquele intelectual o português não planejou em todas as minudências a implantação dos vastos campos coloniais onde a cana seria transformada em açúcar sendo eles apenas a multiplicação do modelo já existente na Madeira que por sua vez fora tomado da bacia do Mediterrâneo Em decorrência não existiram maiores preocupações com a adaptabilidade da cultura canavieira ao solo nem com as condições a longo prazo do mesmo danificado em sua fertilidade pela baixa qualidade técnica da exploração pela ausência de investimentos e pela ganância dos exploradores Seu primado marcado pela desorganização também foi solitário desgarrado do grupo antipolítico e antimoderno Ao nomeálo como um semeador o historiador patenteou um português que se adaptou ao máximo às oportunidades dadas pela natureza encontrada na colônia por ser capaz de renunciar às normas imperativas e absolutas cedendo sempre quando a oportunidade lhe fora conveniente a assim agir Jogara a semente da qual cuidaria a chuva e sol tão somente e seus frutos seriam colhidos460 Se para fazêlo tivesse que desmatar destocar adubar e lavrar o solo jamais teria lançado a semente pois o empenho físico contrariava sua índole 460 A análise das metáforas existentes na obra de Holanda especialmente do português como um semeador revelam ser aquela figura originária da obra de Padre Antônio Vieira da qual teria sido apropriada por Holanda de modo a compor seu tipo português A metáfora da semeadura também pode ser encontrada na chamada certidão de nascimento do Brasil a famosa carta de Pero Vaz de Caminha na qual o escritor se referia à semente como a ação salvacionista e civilizatória que deveria ser empreendida pela coroa portuguesa a favor dos nativos americanos Não obstante alguns autores identificam tal metáfora como originária da obra de Paulo Prado onde o português semeador teria forte conotação lúbrica A semente lançada seria ali desvinculada de teor agrário para se assumir como um gene de procriação de geração de uma nova população Em Gilberto Freyre também é possível encontrar o português representado como um reprodutor a sedimentar as relações entre a casa grande e a senzala a partir de sua semente originando uma população mestiça e valorosamente original A respeito ver DE DECCA Edgar Salvadori Deciframe ou te devoro As metáforas em Raízes do Brasil Rio de Janeiro Editora da UERJ 2008 Ver também CAMPOS Haroldo O Barroco e a identidade cultural brasileira Vieira Venera Vênus In JUNQUEIRA FILHO Luís Carlos Uchoa Org Perturbador mundo novo São Paulo Escuta 1994 e FINAZZIAGRÓ Ettore A trama e o texto história com figuras In PESAVENTO Sandra Jatahy Um historiador nas fronteiras O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda Belo Horizonte Editora da UFMG 2005 A nosso ver a figura do semeador não tem o teor genésico que alguns autores quiseram imprimir lhe posto não haver maiores preocupações por parte de Holanda com a questão do cruzamento racial ou de quaisquer outras abordagens sobre a formação da população no contexto relacional em Raízes do Brasil O que o autor intentou mostrar foi a formação de todo o universo histórico do homem brasileiro do qual o mesmo fez parte e do qual resultou universo este de criação única e exclusiva dos portugueses sem coadjuvantes de outras raças como os existentes em Prado e em Freyre A semente como instrumento formador o português seria a origem da árvore e os rizomas a cultura portuguesa em todas as suas facetas sua base a demonstrar desde o título da obra que Holanda buscava evidenciar o quanto de Portugal estava incrustado no Brasil formando suas raízes título da obra A metáfora também faz alusão à origem agrária do Brasil tendo sido utilizada também por Manoel Bomfim 246 Assim teria sido o empreendimento colonial português na escrita de Holanda marcado por pequenos e individuais esforços sem vontade para devassar o sertão pois no litoral já se tirava riquezas de um mundo francamente rural isolado onde o que valia era o esforço subjetivo que resultava em prestígio pessoal Com tal fim investiuse na abertura dos campos na semeadura em larga escala das mudas de cana posteriormente transformadas em mercadoria preciosa pelas mãos nodosas e pelas costas retalhadas de escravos Suas cidades meras extensões da vida rural não foram erguidas em oposição à natureza Bem ao contrário a topografia urbana em nada ou pouco alterara o que ali préexistira e suas ruas toscas e sinuosas exibiam uma adaptação à composição original da paisagem Para Holanda tais cidades não foram produzidas mentalmente parecendo brotar do panorama ao qual se enlaçaram numa expressão do desleixo própria da mentalidade lusa desapegada das necessidades do presente cariz que o autor se empenhou em demonstrar Para o colonizador as cidades seriam apenas centros de administração da própria coroa pois o coletivo representado pelo urbano contrariava sua mentalidade avessa à coletividade à vida social Seu mundo era o latifúndio espaço onde se constituía a solidariedade os laços comunais onde o Estado não existia e a família tomava foros de unidade básica da administração política A cidade seria um instrumento de dominação que poderia desequilibrar o caráter autárquico dos domínios rurais onde sobejavam os valores aristocráticos onde o personalismo vicejava em plenitude A repulsa ao trabalho ação mesquinha e estúpida para o aventureiro fez dos portugueses adeptos da preação indígena e do mercadejar de africanos sobre os quais a disposição de mando assomou ao extremo tornandoos terríveis senhores maus patrões que muito cobravam e pouco sabiam fazer Ali a ética da aventura parece ter se tornado também uma ética do trabalho embora um trabalho realizado de forma distinta pois não se poderia negar a qualidade da tarefa realizada pelos portugueses em suas experiências além das próprias fronteiras Na conjugação dos valores que os distinguiram dos europeus e mais especificamente dos povos dos países baixos fracassados nos trópicos o português foi mostrado em sucesso graças àqueles predicados Em seu gosto pela aventura na aversão à vida social o português semeador construiu um novo lugar adaptandose sem imposições reformando sem muito alterar transformando sem transmutar Teria sido isso possível 247 A construção levada a efeito por Holanda parece negacear todas as oposições gestadas pela ação colonizadora Ele não referenciou o impacto causado sobre as populações nativas com a chegada sempre crescente de grande número de pessoas e a plasticidade portuguesa esmerada em sua retórica tratou de omitir os conflitos oriundos de tal presença A prática de preação a destruição de pequenas roças os descimentos as expulsões os estupros a tomada de terras inexistiram em sua narrativa fazendo crer ter sido a colonização portuguesa despida de maiores problemas que não aqueles relacionados ao português em si e para si na realização de mais uma aventura mesclandose com outros povos com uma naturalidade desabusada Holanda também passou ao largo ao construir seu português na América da questão negra e dos dissabores da escravidão É certo que seu intento não seria investigar a formação da sociedade brasileira em si mas de uma sociedade específica uma sociedade onde o principal e único ator teria sido o português de forma a revelar o quanto do mesmo restara Ao tempo em que negaceou a participação dos demais povos envolvidos nessa formação social diluindo suas práticas como se fossem unas Holanda ampliou seu foco de imagem relegando temas mais próximos para fixar com nitidez outros alheios à realidade investigada Na América ibérica dividida entre portugueses e espanhóis o historiador paulista foi definir a singularidade portuguesa criando um povo de cariz único distinto de todos os demais e homogêneo em si mesmo O semeador português já não tinha as mesmas qualidades que o espanhol de quem se distinguiu por incontáveis razões Destacado como emérito construtor de núcleos de povoamento estáveis e bem ordenados o espanhol assegurou seu domínio pela força ao contrário do português plástico que mais se adaptou que se impôs O estabelecimento dos domínios lusos predominantemente rurais foi marca diferencial entre portugueses e espanhóis nos escritos de Holanda Enquanto os primeiros se dedicaram convenientemente à exploração agrária os segundos expressaram uma fúria centralizadora461 uma vontade de mandar maior que a dos portugueses Para o autor em seu cariz aventureiro os lusos teriam sempre os olhos voltados para o futuro daí sua irreprimível vontade de sempre partir Mesmo aqueles estabelecidos em latifúndios e com vasta prole voltavamse sempre para o mar revelando o caráter transoceânico já mostrado por Abreu e reproduzido parcialmente por Holanda 461 O termo é de autoria de Holanda constando à página 52 de Raízes do Brasil 248 Aos ladrilhadores espanhóis competia ficar traçando cidades regulares com o mesmo esquadro que desenhavam seu futuro na nova terra e cujo traçado era um acinte à própria natureza Foram aventureiros na Península mas na América assumiramse como administradores a reprimir qualquer ato de vontade além da própria sem comedimento e prudência Enquanto o português recriava a Nova Lusitânia lançando mão de adaptações sem trabalho sem planejamento sem método o espanhol assegurava seu predomínio a partir do pleno domínio dos eventos da modificação da ordem natural da imposição da razão pura e impessoal No plano dos sentidos por outro lado Holanda apresentou o calculista espanhol extasiado com as descobertas da nova terra cuja descrição foi imersa num tom de maravilhas e mistérios A criação de mitos oriunda do medievo encontrou guarida na imaginação dos castelhanos e a cartografia fantástica promovida por seus navegadores recriou o paraíso terreal marcado por vegetação luxuriante primavera constante rouxinóis cantantes e gente simples e inocente O deslumbramento sem medida dos espanhóis apareceu em contraste com a noção mais nítida das limitações terrestres e humanas própria dos lusos consoante o historiador A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantástica do Renascimento achase realmente em nítida desproporção com a multíplice atividade de seus navegadores Sensíveis muito embora às louçanias e gentilezas do mundo remoto que a eles se vai desvendando pode dizerse no entanto que ao menos no caso do Brasil escassamente contribuíram para a formação dos chamados mitos da conquista A atmosfera mágica de que se envolvem para o europeu desde o começo as novas terras descobertas parece assim rarefazerse à medida que penetramos a América lusitana462 Nesses termos surgiu nos escritos de Holanda um português comedido e prudente que realizara navegação de cabotagem nas costas da África e que evitara adentrarse nos sertões americanos preferindolhe o litoral mais real e imediato Sua indiferença ao exotismo das novas terras pautavase no pragmatismo que o tornava demasiado realista e por isso mesmo pouco audacioso se comparado aos vizinhos que exacerbavam na fantasia As diferenças que separaram os ibéricos visibilizadas quando de sua presença na América foram justificadas alusivamente por Holanda ao apontar alguns meandros do 462 HOLANDA Sérgio Buarque de Visão do paraíso os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil São Paulo Companhia das letras 2010 p 43 249 desenvolvimento daquelas sociedades bem como no desdobramento alcançado durante a colonização Os portugueses ao atingirem uma unificação política concreta e precoce conseguiram certa unidade étnica463 o que findou por se refletir em relativo afrouxamento das tensões internas daquela sociedade Tal detalhe para Holanda explicaria o natural descaso para com a realidade não a sujeitando a leis rígidas aceitandoa sem grandes embates por já se sentirem senhores da própria história domesticada aplainada na qual as tradições seriam mais relevantes que a imaginação Diferentemente a unidade espanhola foi tardia e difícil não tendo se completado à época da colonização e enfrentando mesmo em nossos dias sérias ameaças de desintegração o que teria exigido uma administração centralizadora disposta a tudo controlar A realidade da multiplicidade de identidades existentes na Espanha foi recepcionada por Holanda como um motivo para a própria fragmentação da América hispânica ao contrário da América portuguesa que se manteve intacta graças à identidade monolítica dos lusos Para Sérgio Buarque de Holanda enquanto os portugueses experimentaram os trópicos e todas as suas naturais diferenças tendo que se adaptar aos mesmos os espanhóis vivenciaram uma realidade geográfica distinta de maiores altitudes e clima ameno o que lhes permitiu a reprodução da própria Espanha Em cidades ladrilhadas erguidas como cenários de um Estado regulador disposto a controlar não apenas as onças de prata extraídas das minas bem como as sociedades nativas mais bem estruturadas e desenvolvidas que as encontradas pelos portugueses os espanhóis implantaram seu catolicismo inquisitorial e intolerante realizado com toda sua severidade de modo a evitar misturas étnicas e culturais tal qual se dera abertamente no Brasil português464 O historiador paulista apesar de se esforçar em demonstrar as diferenças havidas ente os ibéricos em si pontuandoas na intenção de ressaltar as diferenças internas da própria América dita latina em decorrência de suas distintas colonizações entretanto não se deixou fisgar pelo passado Efetivamente para ele o passado ficara para trás e seu interesse 463 Alguns anos mais tarde em estudo sobre as fronteiras étnicas existentes na sociedade portuguesa Sérgio Buarque de Holanda reconheceria na formação daquela sociedade o cruzamento das culturas muçulmana hebraica africana e ibérica nulificando a afirmação anterior sobre a pretensa unidade étnica que diferenciava portugueses e espanhóis In HOLANDA Sérgio Buarque de Elementos formadores da sociedade portuguesa à época dos descobrimentos Dissertação de mestrado Escola Livre de Sociologia e Política São Paulo 1958 464 Sobre a questão ver o trabalho de FEITLER Bruno Dos usos políticos do Santo Ofício no Atlântico O Período Filipino In Mello e Souza Laura de FURTADO Júnia Ferreira BICALHO Maria Fernanda Orgs O governo dos povos São Paulo Alameda 2009 250 evidenciava uma preocupação com o futuro da nação imersa em nuvens sombrias que antecediam o Estado Novo e que o historiador já se preparava para enfrentar Os portugueses em Holanda nada mais foram que povos formadores raízes enterradas na terra talvez dispersas em galhos ambos a desempenhar um papel fulcral no robustecimento da planta Ele não os enalteceu tecendo odes de admiração como o fizeram outros historiadores tampouco fez pouco caso de sua atuação como agentes decisivos na formação nacional Para Holanda o que o interessava eram os frutos Conclusão da Parte III Necessário destacar que os olhares distanciados desses dois intelectuais contemporâneos se refletiram na produção historiográfica brasileira consecutânea abrindo uma esteira de disputas ideológicas entre as duas partes do país iniciada com a crise da oligarquia brasileira e a transferência do poder do Nordeste agropecuário para o Sudeste urbano Gilberto Freyre como integrante dessa oligarquia decadente enxergou o progresso e a industrialização do Brasil com desconfiança e em sua obra fez um grande elogio ao passado defendendo uma retomada daqueles valores que estavam sendo superados pelo aprofundamento do processo de urbanização e industrialização nacional Freyre conclamava pela sobrevivência dessa cultura tão arraigada em seu Nordeste berço mãe da experiência lusa em oposição aos modernistas paulistas Seu Manifesto Regionalista465 exprimiu um grito pela manutenção de um passado congelado nas paredes derruídas das velhas casas patriarcais abandonadas pelas famílias cada vez mais segmentadas para viverem nos sobrados urbanos crescentemente influenciados pela cultura inglesa que se espraiava pelo Recife 466 465 Tratase de texto escrito em 1926 a propósito da realização do Congresso Regionalista embora só publicado em 1952 Nele Freyre fala à consciência da geração de uma mocidade atônita diante do holocausto de sangue da cultura colonial e da necessidade de lutar contra o furor neófilo e as idéias de progresso que cegavam a geração mais velha A análise desse texto foi realizada por DIMAS Antônio Manifesto guloso Introdução ao Manifesto regionalista Recife Massangana 1996 Ver também TELES G M Vanguarda europeia e modernismo brasileiro apresentação e crítica dos principais movimentos vanguardistas Petrópolis Vozes 1977 466 A propósito ver do autor Sobrados Mocambos Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano Rio de Janeiro José Olympio 1977 e Ingleses no Brasil aspectos da influência britânica sobre a vida a paisagem e a cultura do Brasil Rio de Janeiro José Olympio 1977 Apesar de Freyre asseverar sua anglofilia defendia a todo custo a cultura lusobrasileira A respeito ver PALLARESBRUKE Maria Lúcia Garcia Gilberto Freyre um vitoriano dos trópicos São Paulo UNESP 2005 Sobre a presença inglesa no Nordeste ver MELLO José Antonio Gonçalves de Ingleses em 251 Por sua vez Sérgio Buarque de Holanda buscava uma ruptura com o passado pois projetava no futuro o progresso a mudança o avanço da sociedade avanço este em plena prática nas terras paulistas financiado não apenas pelos capitais provenientes dos lucros com as exportações do café mas também subsidiado pelo governo de Getúlio Vargas contra o qual se opunha Com uma diferença apenas de três anos entre as publicações o texto de Holanda repercutiu as teses esposadas por Freyre embora sob um outro enfoque Não obstante vale salientar ter o texto de Holanda sofrido constantes modificações nas variadas edições conforme já alertara Pesavento ao analisar as reconfigurações efetivadas pelo autor no corpo de sua obra467 o que pode ser apontado como um impeditivo para que se reconheça o pensamento original do autor em todas as suas nuances Freyre por sua vez acrescentou ao texto original variados prefácios como se tentasse a cada edição clarificar seu pensamento ou responder à crítica crescente após os anos 40 período em que o pensamento marxista inundou o Brasil A despeito de aqueles dois intelectuais pensarem o Brasil por distintos enfoques e mesmo estando em díspares lugares sociais em ambos reverberou o reconhecimento a Portugal como elemento diferenciado e superior da identidade brasileira Por outro lado as considerações tecidas por ambos os autores mesmo comuns à primeira vista detêm algumas especificidades a ser esclarecidas É o caso daqueles autores considerarem Portugal como um país à parte do contexto europeu A construção de Holanda tomou como base uma divisão IbériaEuropa na qual o Portugal ibérico não seria nunca um Portugal europeu ligado ao Velho Mundo apenas pela sua localização geográfica e mesmo assim seccionado pela divisão promovida pelos Pirineus Em sua formação histórica o português e por extensão os espanhóis em muito se distanciavam dos europeus centrais erguendose como um povo distinto marcado por especificidades que lhe davam um caráter próprio único Freyre por sua vez viu em Portugal resquícios culturais dos dois continentes e até mesmo de três franqueados pelo Pernambuco história do cemitério britânico do Recife e da participação de ingleses e outros estrangeiros na vida e na cultura de Pernambuco no período de 1813 a 1909 Recife Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano 1972 467 PESAVENTO Sandra Jatahy Cartografias do tempo palimpsestos na escrita da história In Um historiador nas fronteiras O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda Belo Horizonte Editora da UFMG 2005 p 51 252 contato proporcionado pela própria geografia Se no autor paulista a geografia separava Portugal do Velho Mundo fechandoo em si mesmo no pernambucano era a localização geográfica que lhe franqueava o mundo enriquecendo sua cultura o que permite vislumbrar as mudanças de percepção da intelectualidade brasileira a respeito da própria Europa como centro do mundo ocidental A perspectiva dos dois historiadores é deveras interessante por revelar o total afastamento da cultura histórica dos anos trinta das antigas pretensões do IHGB que apresentava Portugal como um elo a unir o Brasil ao Velho Mundo A negação desse papel a Portugal descaracterizado como simbólico representante europeu poderia ter sido tomada como minoração dos lusos no concerto geral das nações do Velho Mundo paradigma do modelo civilizacional acalentado pelas elites nacionais Aos novos tempos tal modelo já não apresentava melhores serventias ao Brasil fato repercutido na produção historiográfica de então que ao contrário da produzida no Oitocento procurava encontrar uma identidade para uma nação já existente enquanto os ihagagebeanos queriam definir o projeto da nação por eles pretendida Na produção dessa identidade nacional os dois historiadores enxergaram reconheceram e assumiram a presença portuguesa como o lastro necessário à formação da sociedade brasileira nela estando amalgamada até o século XX Para Freyre três raças formaram o Brasil e seu estudosíntese explorou as particularidades e contribuições de portugueses negros e índios não obstante o autor reconhecer o papel prevalecente dos portugueses sedimentado em todos os recantos do engenho assim como na rotina da família patriarcal peçachave na composição civilizacional Sua tese corajosa rompeu com o estigma da mestiçagem nacional valorizandoa ao tempo em que transformou a experiência portuguesa em grande êxito Ao reivindicar para a sociedade colonial nordestina e escravocrata o papel de matriz fundamental da cultura brasileira Freyre teve que transformar a escravidão em fenômeno doméstico e cultural minimizando seu cariz e consequente impacto Com isso maximizou o papel dos portugueses na formação do Brasil ocasionando questões transversais tais como a pretensa harmonia social a acobertar o racismo a ausência de conflitos e de desigualdades sociais Por outro lado seu discurso referendou o Nordeste decadente tanto econômica quanto politicamente como espaço autêntico da formação nacional o que veio a acentuar as diferenças regionais já existentes face ao Sudeste urbano e capitalista 253 Holanda por sua vez fixou o português conquanto principal senão único lastro da sociedade brasileira pouco referenciando os demais povos como se os mesmos em nada tivessem contribuído na composição da identidade nacional Tal perspectiva acentuou novas questões no concernente à dita identidade ao se considerar que tal ausência tenha sido usada pelo autor como de somenos na formação nacional468 A despeito de o intelectual paulista ter reconhecido a manutenção do cariz português transplantado para a vida nacional argumentando pela necessidade de extirpação do mesmo ele não o considerou como preponderantemente negativo como defendem alguns autores Holanda na verdade propunha uma renovação da mentalidade brasileira como um impulso necessário para se assumir como específico para crescer como independente para traçar seu próprio destino livrandose de um passado que parecia durar para sempre Para ele seriam os brasileiros uma metamorfose do português desterrados em sua própria terra a demonstrar que Holanda compreendia a colônia como uma extensão de Portugal O que havia de estranho nessa composição era a constelação de valores de referências culturais oriundas de um meio diferente de um processo histórico distinto e que precisava ser sobrepujada A imbricação de figuras desse modo enfatiza a retórica de Holanda como marcada por certa ambiguidade pelo reconhecimento do outro quase como uma extensão do próprio eu e expressando uma dificuldade de vêlo como diferente É certo que a fluidez e a indefinição em termos políticos e históricos da diferença entre a antiga metrópole e o Brasil remontavam ao século passado no contexto da produção dos discursos de legitimação da nação emancipada revelandose no discurso histórico de Holanda Não obstante no momento em que aquele autor reconhecera ser a carga cultural portuguesa uma criação ádvena ele assumiu o discurso da irmandade ao formatar um cenário de criação do Brasil pelos portugueses Em Freyre tal irmandade é tão íntima a ponto de se reconhecer o português como uma extensão do Brasil Sua retórica não é propriamente de alteridade pois ele fala de um outro mas de um outro que estava plenamente introjetado no tecido social brasileiro que 468 Holanda viu a mestiçagem como influência formadora embora não fosse capaz de alterar o traço luso essencial Antes porém exacerbaria os defeitos e diminuiria as virtudes acentuando o afetivo o irracional o passional ao tempo que estagnando ou mesmo atrofiando as qualidades ordenadoras disciplinizado ras racionalizadoras peculiaridades que o autor considerava como imprescindíveis a uma população em vias de se organizar politicamente Ibdem p 31 254 não havia como vêlo em suas diferenças Em Freyre o português não era um povo que ficara no passado do Brasil personagem fugidio de sua história Bem ao contrário ele estava presente em todas as casas nas pessoas na linguagem nos costumes nos ditos e não ditos de um Brasil vintista há mais de um século afastado politicamente de Portugal embora continuasse entrelaçado em sua alma As perspectivas de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda evidenciam até que ponto os discursos sobre a identidade nacional no Brasil tiveram inevitavelmente uma dimensão política e regional A questão do papel atribuído nesses discursos aos portugueses tem muito menos relação com os eventuais traumas provocados pela independência ou com pretensas implicações póscoloniais do que com o lento e mormente conflituoso processo de estruturação da sociedade brasileira 255 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES A Retórica da alteridade realizada pelos historiadores abordados neste trabalho cada um ao seu modo é reveladora do quanto a presença portuguesa no Brasil se tornou alvo de diferentes discursos no cerne da produção histórica nacional Se em alguns momentos tais formações discursivas demonstram certa similitude em outros foram perpassadas por relativo distanciamento ou acentuadas diferenças revelando o quanto o pensamento de um só tempo bem pode ser diacrônico contraditório original O levantamento dos escritos dos historiadores aqui elencados tem uma expansão temporal que conta um século de produção historiográfica no Brasil segmentada em quatro principais formações discursivas469 das quais as três primeiras podem ser identificadas na produção desses autores Esses ofereceram à sua geração e à própria nação como expressão da experiência social brasileira distintos discursos sobre o país e sua formação acentuando ou não a presença portuguesa como elemento prezado e indispensável nesta arquitetura Tal fração discursiva objeto de nossa investigação se destaca em sua manifesta flutuação referendada mais pelas questões nacionais do que pelo movimento de aproximação ou 469 Consoante os estudos sobre a produção historiográfica nacional especificamente sobre os estudos que tiveram o Brasil como objeto a mesma se organiza a partir de quatro formações discursivas sejam O discurso das descobertas no qual o Brasil foi produzido como o Outro da Europa de Portugal da civilização O discurso fundador onde o Brasil passou a ser produzido como nação a escrever sobre si a construir sua identidade nacional seja em sua versão romântica ou em versão positivista e naturalista O discurso nacionalpopular onde se repôs a questão da nação e sua identidade em conexão com a questão da produção de um povo civilizado cidadão e dotado de uma cultura moderna e racionalizada seja em sua versão fascista liberal ou marxista e por fim o discurso da desconstrução onde a historiografia se preocupou e se preocupa com a desconstrução dos mitos e marcos que fundaram uma identidade para o país e criaram uma dada imagem de seu passado 256 distanciamento entre os dois países Nos tempos propostos como marcos metodológicos do presente trabalho podese observar a flutuação desses discursos Nos primeiros tempos nos quais se formou a própria historiografia nacional aos quais denominamos de construção da nação nos deparamos com retóricas baseadas na fraternidade sem a qual parecia não ser possível a construção da própria história do período A história da pátria nasceu assim vinculada indelevelmente a Portugal sem impasses nem conflitos a expressar a própria genealogia da nação Nesta o Brasil é dito como dádiva da Europa do Portugal famoso dos séculos XVI e XVII O descobrimento português representou pois a inauguração de nossa história o pano de boca para as cenas que doravante vieram a existir já que não se concebia uma história nacional anterior à presença européia em terras da América As grandes navegações e a chamada história universal como história específica de algumas nações do continente europeu tornaram se quase a expressão genuína de uma préhistória brasileira na qual as comunidades nativas descritas em suas singularidades assumiram um papel francamente nulo no sentido que se queria dar à nação A identidade nacional construída nesse contexto se constituiu quase que exclusivamente pela inserção no mundo ocidental e cristão no qual o Brasil seria uma extensão do Velho Mundo um outro da própria Europa Mas não um outro marcado pelas diferenças bem ao contrário Um outro que reproduzia em si todas as virtudes que integralizava o modelo social e administrativo vigente nas sociedades europeias já que o cariz mais destacado da Europa o influxo civilizatório representava nessa historiografia o aporte mais valorativo de um Brasil que se criava como autônomo porém em consonância com seu modelo primeiro de civilidade Portugal Destarte Portugal emergiu nessa narrativa como o receptáculo da civilização berço dos grandes herois homens audazes que dominaram o pavor dos mares e que subjugaram a precariedade técnica de uma época para com o ardil e a valentia que lhes eram característicos desvendar ao mundo novos espaços neles recriando a própria Europa Católicos audazes que exterminaram a barbárie dos campos americanos e implantaram o temor a Deus e a submissão à santa igreja transformando hereges e infiéis em afáveis súditos de uma monarquia formada por espíritos ilustres homens de caráter que amavam o Brasil 257 A retórica bem lapidada de tal período que salientava ao extremo a irmandade como um laço a unir Portugal e Brasil indefinidamente enredados pelo seu passado comum teve como expoente a tese central de Francisco Adolpho de Varnhagen apoiada na proposta de Carl Friedrich Philipp Von Martius Gestada no período monárquico além de financiada pelo próprio imperador natural que a cultura historiográfica do período expressasse um vínculo com Portugal e os portugueses considerandose os laços parentais existentes entre as casas de Bragança nos dois lados do Atlântico O discurso vanhageniano foi inegavelmente o discurso inaugural de uma identidade nacional dentro de um paradigma romântico embora mesclado por muitas das proposituras existentes na chamada historiografia lusobrasileira produzida pelos cronistas coloniais e que antecedeu a independência nacional A história escrita sob tal enfoque para atingir os fins a que se propunha escamoteou o crescente desacerto entre brasileiros e portugueses cujo alargado espaço político ocupado pelos últimos no império brasileiro ensejava uma negativa apreciação dos mesmos e por extensão um desejo de mudança do quadro que deveria ser ampliado pela ascensão de certos setores da sociedade em plena mutação Mesmo que essa fosse a voz das ruas ou de apenas uma fração da elite política nacional a mesma não encontrava respaldo no poderoso IHGB voz ecoante de uma trono que tentava a todo custo perpetuar os laços entre Portugal e Brasil e que constituía o lugar social do chamado pai da história do Brasil Seu discurso oficial monocórdio erudito ao extremo dirigido à elite intelectual de sua época e consequentemente consumido por um público restrito teve que se deparar com o som mais poderoso que provinha dos republicanos ferrenhos adversários do sistema monárquico que lhe respaldava Em certo sentido a república foi o ápice da independência posto representar o decisivo corte com o passado colonial distendido no trono bragantino Aos novos tempos aqui chamados de mudança sobrevieram discursos históricos rigorosamente elaborados com a finalidade última de mostrar que o passado passara ficara perdido na história e que de pouco valeria Dentre os historiadores que perfizeram nossa investigação impossível não dar o devido destaque a José Capistrano de Abreu tanto pela inovação encetada na forma de pensar o fazer historiográfico bem como no seu esforço em redimensionar a própria abordagem da história brasileira Autêntico representante de um período ambíguo na história política 258 nacional a produção do historiador cearense foi marcada pelo paradoxo de ser gestada do espaço oficial da extinta monarquia o IHGB ao tempo em que tentava a todo custo se desvencilhar das proposituras oficiais Nesse sentido seu esforço foi exitoso apenas em parte haja vista ser comum em sua retórica a reprodução de muitas das proposituras constantes na obra de Varnhagen A farta documentação utilizada por Abreu assim como as injunções sociais de seu tempo foram determinantes para que o mesmo reproduzisse muitas das proposituras constantes na HGB de Varnhagen Omitir a presença negra na história social do país ou se referir pejorativamente aos nativos é dado inegável em sua narrativa que resultou numa maior ênfase ao luso como agente criativo da nação O reconhecimento do mameluco como tipo especificamente brasileiro resultante do contato do luso com as nativas americanas deu ao seu discurso a inovadora abordagem de um Brasil que se fez principalmente com os portugueses mas não apenas por eles A criação do conceito do transoceanismo foi um marco para dividir até onde o português fora responsável pela nova nacionalidade e até onde ele se recusara a sêlo Nem por isso a narrativa de Abreu deixou de fixar o português como homem forte destemido oriundo de uma sociedade que o lapidara para o enfrentamento da dor e de todas as provações que o ser humano fosse capaz de enfrentar Embrenhado nos matos preando índios criando vilas e contribuindo para o crescimento de uma população nova se erigiu um tipo português pioneiro na retórica abrelina em contraponto ao português administrador em missão oficial e sem maiores vínculos com o Brasil O outro seria esse executivo mero transeunte das sendas do oceano representante do Estado O português criador corajoso desbravador criatura viva nas páginas dos livros de história escolar desde meados do oitocento fora acalentado por Abreu como uma extensão de Portugal no Brasil embora vinculado indefinidamente ao último por fertilizar seus campos e erigir suas cidades frutificandose numa população numerosa e nela se dissolvendo Em Abreu evidenciase a ambiguidade bem própria da relação entre as duas nações pois mesmo reconhecendo um tipo português específico como o outro estranho ao lugar não lhe nega o caráter de elemento formador do nacional posto que metamorfoseado no brasileiro que o autor reconhece existir desde os primeiros anos da colônia Contudo nos tempos de mudança outras visões também estiveram presentes na cena historiográfica nacional marcada pelo nacionalismo e pelo sentimento patriótico fermentados nas disputas pretéritas entre republicanos e monarquistas Os tempos eram 259 outros mesmo que tenha havido um dia uma cepa ou de que a herança recebida fosse demasiada perniciosa para ser mantida Na retórica em muitas vezes tóxica de Manoel Bomfim e de Paulo Prado evidenciouse que a alteridade do período não poderia ser perpassada pela noção da irmandade Baseada numa ótica marcadamente negativa insuflada pelo caráter ambíguo da mentalidade dos republicanos em relação ao passado os citados historiadores revelaram suas preocupações com as singularidades nacionais decisivas para o futuro Conquanto ao nível diplomático as trocas tenham sido abundantes no período abordado a despeito do corte de relações havido em 1894 evidenciouse que as preocupações contidas em suas problemáticas eram bem mais profundas no tocante ao verdadeiro papel de Portugal na composição da pretendida identidade nacional O regicídio que ensejou a república portuguesa acarretando um alinhamento político entre os dois países parece não ter ocasionado maiores intervenções nas elucubrações desses historiadores a respeito do passado nacional Por sua vez o evidente recrudescimento do antilusitanismo mais como expressão popular que ao nível diplomático ou comercial entre os dois países se refletiu na cultura historiográfica daquele momento Maior prova disso foi a ruptura total daqueles historiadores com a propositura original do IHGB alavancada na monografia sugestiva de Von Martius que propugnava a presença portuguesa como o principal motor no construto da nacionalidade Republicano convicto embora desiludido Manoel Bomfim alteouse como uma voz contrária ao eterno liame historiográfico com Portugal Como um provável consumidor da teoria marxista nos albores do século XX aquele historiador não temeu em assumir em primeira mão o discurso da exploração colonial apontando Portugal e a empresa colonizadora como responsáveis por grande parte dos males que afetavam o país Com base em metáforas biologizantes Bomfim execrou o Estado português e seus mandatários trazendo ao conhecimento do brasileiro algumas locuções depreciativas existentes no trabalho do historiador português Oliveira Martins como meio de validar os próprios argumentos Em compensação foi o historiador brasileiro que muito se empenhou na compreensão da sociedade portuguesa por nela enxergar a ambiência própria que poderia auxiliálo na compreensão de um povo que quisesse ou não continuava incrustado na realidade brasileira O tempo de sua produção foi efetivamente um tempo de rupturas no 260 qual o Brasil tentara a todo custo se perceber como nação autônoma desembaraçada da forte herança portuguesa dos tempos monárquicos Por sua vez em Paulo Prado nos deparamos com uma articulação do próprio futuro da nação O passado só seria válido como um momento formativo da herança social que deveria ser sobrepujada a todo custo sob pena de não se constituir uma identidade autônoma tomando a forma de uma comunidade imaginada que com o fito de alcançar novos patamares necessitava ser redimensionada em sua formação Por tal viés as mentalidades como atitude mental coletiva foram objeto dos estudos daquele historiador ao utilizar a história nacional como artefato denunciador daquilo que julgava ser uma herança social explicitamente portuguesa Em Prado encontramos marcante e negativo discurso sobre o tipo português cuja utensilagem mental fora entendida pelo autor como profundamente entranhada na mentalidade brasileira num processo de transferência mecanicista que negava ao brasileiro o lugar de sujeito da própria história Aquele intelectual não se preocupou com o Estado luso como o gestor de um processo de formação do nacional ancorandose firmemente na composição psicológica do português para apontar onde tal composição se alocara nos brasileiros dandolhes uma face negativa desprezível que necessitava ser extirpada brutalmente Tal operação não obstante consistia em primeira mão no reconhecimento de certa herança social como estratégia para em seguida banila como uma maldição impeditiva do avanço nacional O afastamento definitivo de Portugal e da herança portuguesa a ruptura com esse passado é que daria sentido à melhoria ansiada a um Brasil aperfeiçoado liberto em definitivo não só dos grilhões coloniais mas de toda uma mentalidade embolorada que só nos lançava no abismo incapacitante da preguiça da luxúria e da cobiça Por meio dessa retórica Paulo Prado cristalizou em sua obra um português obtuso medíocre atrasado como forma de justificar o próprio atraso dos nacionais cem anos após a emancipação política de Portugal O modernismo como movimento de vanguarda financiado e defendido pelo historiador em seu viés nacionalista deu lastro a sua retórica Mesmo que a Europa representasse o supro sumo da modernidade para Prado ápice da modernidade que ele desejava que se realizasse em seu próprio país certamente que o mesmo não enxergava Portugal como parte desse cadinho do Velho Mundo o que denuncia o surgimento de uma nova 261 compreensão a respeito de Portugal pelos intelectuais brasileiros e que terá desdobramentos em outros estudos tais como o de Freyre e de Buarque de Hollanda Nos Tempos de reencontro percebemos que o verdadeiro enlace não foi apenas do Brasil para com Portugal mas para consigo próprio As lutas políticas intestinas aliadas à conjuntura mundial se uniram como forças inexoráveis para que o Brasil olhasse o próprio passado e enfrentasseo sem medos buscando formas de encaminhamento sobre os problemas sociais decorrentes desse processo histórico nem que fosse pelo silenciamento e pela exclusão A historiografia produzida nesses tempos bem que tentou se livrar da idéia de um passado único e homogêneo dando vez mesmo que de forma pontual aos diferentes setores sociais e étnicos embora os seus efeitos tenham passado ao largo de suas propostas A produção de Gilberto Freyre é representativa do deslocamento do eixo na cultura historiográfica brasileira ao abandonar o ponto de intersecção entre o Brasil e seu passado Gestada em outro ambiente os EUA sob amparo de teóricos distintos daqueles até então utilizados pelos intelectuais nacionais a retórica freyreana se dedicou à reconstrução de facetas de um português que ainda não fora impresso nos livros de história gente inovadora sem preconceitos nem heroísmos solta no mundo graças aos traços de sua própria natureza embora tangida pela ocasião Enfim um tipo único e por isso mesmo superior Destoando do discurso das décadas anteriores Freyre aprofundou observações sobre a formação da mentalidade nacional considerandoa plural posto que articulada num panorama de diversidade cultural que a diferenciava de qualquer outra experiência Ao assumir sem receios nem vergonhas a diversidade étnica nacional Freyre transformou a participação lusa considerandoa tão responsável pela sociedade brasileira quanto a de negros e índios envolvidos em sua formação Para o mestre de Apipucos a herança social brasileira provinha da tríade étnica envolvida em sua composição e não apenas de um dos seus elementos como fizeram Bomfim e Prado Assim o historiador desmontava em parte o teor de responsabilidade que aqueles historiadores dedicavam a Portugal como construtor de um Brasil que teimava em não deslanchar A especificidade de um Brasil criado entre os canaviais num mundo rural diverso de tudo que até então existia fez emergir em sua narrativa ricos detalhes da cultura portuguesa que o historiador identificara como reproduzidos no cotidiano nacional assim como dos demais povos nele envolvidos 262 Em contrapartida Sérgio Buarque de Holanda produziu um Brasil e consequentemente um português distante do terreiro da casa grande Seu palco era a Serra do Mar e seu português aquele que ali se isolou pronto para produzir riquezas ou ao menos novas formas de sobrevivência Homem impoluto oriundo de um Portugal em seu esplendor imperialista originou no território dentro de um tempo específico uma raça de fortes Por outro lado na construção de um tipo específico Holanda enfatizou a consequente decadência portuguesa retomando a questão de herança social para promover uma história regional com fins evidentemente políticos Sua obra revelou tempos distintos de um Portugal até então mostrado como imutável maciço em seu poder e em sua expansão sem rupturas nem graves crises Ao revelar um português especial ilibado ensejou também sua antítese representado num outro sujeito moralmente decrépito aliciado pelas próprias necessidades para explorar o território americano mesmo que em outro tempo e em novos espaços Conquanto fossem inegáveis os fins da retórica de Holanda não se pode desdenhar a convergência do pensamento do autor para um ponto fixo a preponderância dos lusos na formação do Brasil a despeito de todos os demais elementos que deram seu contributo à mesma Dessa forma a tríade traçada por Martius em meados do século XIX provava sua validade ante o impulso de modernidade que assomava o Brasil e o papel do português como elemento decisivo na arquitetura nacional atingia seu auge na cultura historiográfica nacional mais uma vez na retórica holandina quem ponderou ser o brasileiro um neo português Nesses três momentos aqui chamados de tempos a nosso ver a produção de discursos sobre Portugal e os portugueses configurouse como uma estratégia de constituição da identidade nacional Neles falouse do outro para falar de si numa evidente recombinação de elementos de discursos anteriores em função das novas problemáticas germinadas em cada contexto o que vem revelar o viés político e ideológico tão próprio da cultura histórica Foram as preocupações políticas de cada um dos autores aqui analisados que fomentaram sua retórica sendo o fim último dos mesmos a criação de uma identidade nacional capaz de convencer o público que consumiria seus textos A esse foram ofertadas versões que ao mesmo tempo em que erigiam modelos desconstruíam outros cristalizavam memórias e 263 lançavam nomes e fatos ao esquecimento consoante os interesses de cada autor na tentativa de estabelecimento de uma comunidade imaginada e por eles desejada Se hodiernamente necessitamos de outros operadores conceituais para compreender nosso presente e a definição de nossa identidade ocorre a partir de referências específicas flexíveis e provisórias470 para os historiadores dos três períodos fora imprescindível a definição da própria identidade o que os remeteu à busca da essência nacional no mais das vezes entendida pelos mesmos como oculta nas profundezas de nossa mentalidade Tudo com o fito de compreender o passado para transformar o presente e por conseguinte liberarse de um fardo romper com as pesadas tradições que emperravam o progresso e entrar no compasso da História Republicados pelas gerações seguintes amplamente elogiados e difundidos até o final dos anos setenta471 tais autores e suas leituras históricas do passado formaram inúmeras gerações moldando a chamada consciência nacional Tornaramse pois uma das principais referências acerca da identidade nacional lentes através das quais os brasileiros passaram a se olhar e a reconhecer sua própria imagem assim como a imagem dos portugueses e por conseguinte de Portugal472 Erigidos como cânones da cultura brasileira aqueles autores foram definidos como matrizes do pensamento social brasileiro graças ao regime discursivo de verdade que produziram e reforçaram falando do lugar privilegiado da ciência ou do que se pensava dela mantendose inquestionáveis por várias décadas como verdades Verdades que omitiram serem apenas discursos retóricas a falar de si e do outro construções que expressaram também uma prática e não apenas um dizer 470 Cf NORA Pierre Entre memória e história a problemática dos lugares Projeto História nº 10 p 0728 Dez1993 471 Salvo os casos específicos de Manoel Bomfim e Gilberto Freyre desprezados pelos acadêmicos brasileiros até bem recentemente 472 Sobre a estratégia de construção da história nacional em detrimento da própria História Silva pondera ser a mesma para além da narrativa autoral uma tarefa de gerações de tal forma que ao passar o tempo à força da constante repetição desde as primeiras letras até os bancos da universidade com graus variados de acuidade e sofisticação forjamse determinados estereótipos determinados temas que passam a ter um peso suficientemente marcante para dar consistência a um corpo que há pouco não existia Aos poucos passa se de hipóteses de suposições a afirmações e a construção de uma história geral passa por um somatório dessas histórias nacionais In SILVA Rogério Forastieri da Colônia e Nativismo A História como biografia da nação p 1314 264 Os rumos tomados pela historiografia produzida nos últimos anos apontam para a gradativa desconstrução daqueles mitos e marcos que fundaram uma identidade para o país e criaram uma dada imagem de seu passado A retórica que tem emergido nos novos tempos em relação a Portugal continua a ser marcada pelo binômio de uma irmandade ambígua trôpega quase impossível de se realizar em face da própria dinâmica mundial cuja organização insiste em desconhecer as ligações coloniais e todos os liames dali oriundos Caminhamos para as comemorações dos duzentos anos de nossa independência uma independência que hoje assume no imaginário nacional mais uma face econômica do passado recente no qual estivemos atrelados ao FMI que essencialmente política Embora prescinda de um estudo rigoroso admitimos não ser difícil perceber que a população brasileira em si já não detém a consciência de que já fomos colônia e que o território brasileiro em grande parte é resultado das ações do Estado português assim como falamos uma língua comum e que muitos dos nossos costumes são resultado desse contacto Não obstante não se pode negar que a presença portuguesa ainda ocupa lugar de destaque no seio da sociedade brasileira em parte cristalizada graças às décadas de reprodução discursiva de modelos que se tornaram estereótipos do dono da padaria do boteco ou do armazém Estereótipos firmados pelo discurso historiográfico e estresidos pela literatura pelo cinema e por outros meios disseminadores de determinados retratos facilmente fixados pela população em geral A identidade nacional continua a ser construída mas podemos afirmar que o contraponto dessa construção não mais tem Portugal como referente Outros povos que tem se relacionado com os brasileiros e cuja presença tem afetado sobremaneira a face da nação tem tomado o espaço anteriormente exclusivo de Portugal Portanto hoje a identidade nacional pode ser tomada como mais diáfana diluída diante de outros referentes Já não nos vemos mais como descendentes de portugueses apenas mas também de italianos alemães japoneses libaneses russos espanhois entre tantos outros Abrangentes movimentos sociais clamam pelo reconhecimento da cultura afrobrasileira e boa parte da sociedade antes constrangida pela branquidade sugerida como perfeição já se orgulha da própria negritude do passado escravocrata das raízes africanas Guaranikaiowás é título unificado em nomes de milhares de brasileiros pelas redes sociais a reclamar a difusa herança indígena e a defesa de tradições e de terras dos povos nativos 265 A narrativa da trajetória do Brasil de sua formação colonial de sua criação enquanto nação explorada sob diferentes abordagens pelos historiadores relacionados em nossa investigação revelase a nós como frutos exclusivos de seu tempo Era necessário construir o outro definilo mostrálo ora como igual ora como diferente tudo com o fito de que nos tornássemos o que somos para que tal discursividade nos desse visibilidade nos materializasse enquanto povo uno liberto autônomo Contudo não podemos afirmar que a produção desses historiadores por mais que ancorada em documentos tenha exarado uma verdade absoluta sobre Portugal e os portugueses Nenhum texto lembrou Chartier473 é capaz de manter uma relação transparente com a realidade que apreende As dobraduras que envolvem a confecção do mesmo os interesses de cada autor e os fins políticos inerentes à produção historiadora podem ser tomados como eixos capazes de dar rumos variados ao que se pretende historiar Por fim como narrativa é preciso destacar que um texto só encontra sua completude quando posto diante do leitor É este sujeito que o torna significativo e que pelo seu ato revela as mais diversas possibilidades interpretativas dessa produção reconfigurandoa Nesta relação dinâmica novos sentidos podem ser descortinados sentidos que escapam à vontade autoral daquele que o produziu Tal vontade não pode ser invocada como o lugar de produção da verdade do texto mas como lugar de partida para um debate e de fato a produção de um novo texto474 o que faz do leitor um novo autor Assim sendo ousamos afirmar que mesmo estando os discursos dos historiadores contemplados na presente investigação encerrados num contexto histórico não devemos esquecer serem os mesmos criações de um dado tempo narrativa passível de interpretação refletidas por historiadores que olharam com olhos do seu presente um Portugal que talvez nem mais existisse Ou que talvez nunca tenha sido como foi constituído no contexto de uma retórica 473 CHARTIER Roger A História Cultural entre práticas e representações Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1990 p 52 474 GUIMARÃES Manoel Luís Salgado Introdução Anais do Museu Paulista São Paulo v15 n2 p 125 148 juldez 2007 266 EVIDÊNCIAS pela ordem no corpo do texto 267 Karl Friedrich Philipp Von MARTIUS Como se deve escrever a história do Brasil In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Livro de fontes da historiografia brasileira Rio de Janeiro EdUERJ 2010 Originalmente publicado na RIHGB t VII 1845 pp 381403 SPIX Johann Baptist Von Viagem pelo Brasil 18171820 Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Edusp 1981 268 Francisco Adolpho VARNAHGEN Carta acerca da reimpressão do Diário de Pero Lopes Revista do IHGB Tomo 24 1861 p 0308 Correspondência ativa de Francisco Adolfo de Varnhagen coligida e anotada por Clado 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