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lygia fagundes telles 5ª edição ROMANCE AS MENINAS Lygia Fagundes Telles As Meninas httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras OBRAS DA AUTORA Praia Viva contos São Paulo Livraria Martins Editora 1944 O Cacto Vermelho contos Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras São Paulo Editora Mérito 1949 Ciranda de Pedra romance Rio de Janeiro Edições O Cruzeiro 1954 4a edição Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1973 Histórias do Desencontro contos Prêmio Instituto Nacional do Livro Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1958 Verão no Aquário romance São Paulo Livraria Martins Editora 1963 3a edição Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1973 Histórias Escolhidas contos Prêmio Boa Leitura São Paulo Livraria Martins Editora 1964 Gaby novela em Os Sete Pecados Capitais obra coletiva Rio de Janeiro Editora Civilização Brasileira 1964 O Jardim Selvagem contos Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro São Paulo Livraria Martins Editora 1965 Trilogia da Confissão em Os 18 Melhores Contos do Brasil trabalhos premiados no 1 Concurso Nacional de Contos promovido pelo Governo do Paraná Rio de Janeiro Bloch Editores 1968 Antes do Baile Verde contos Rio de Janeiro Bloch Editores 1970 2ª edição revista e aumentada prefácio de Fábio Lucas Rio de JaneiroBrasília Livraria José Olympio EditoraInstituto Nacional do Livro 1971 Prêmio Guimarães Rosa da Fundepar Paraná Seleta Organização estudo e notas da professora Nelly Novaes Coelho Rio de JaneiroBrasília Livraria José Olympio EditoraInstituto Nacional do Livro 1971 LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA apresenta o romance de LYGIA FAGUNDES TELLES As Meninas Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras 5ª EDIÇÃO 1974 RIO DE JANEIRO Capa Eugenio Hirsch Contracapa Foto Pirozelli Copyright 1973 by Lygia Fagundes Telles Direitos desta edição reservados à LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA SA Rua Marquês de Olinda 12 Rio de Janeiro República Federativa do Brasil Printed in Brazil Impresso no Brasil FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pelo Centro de Catalogaçãonafonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros GB Teles Lygia Fagundes 1923 T272m As Meninas por Lygia Fagundes Telles 5ª ed Rio de Janeiro J Olympio 1974 266 p 21 cm 1 Romance brasileiro I Título 740398 CDD 86993 CDU 8690 8131 NOTA DA EDITORA DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DA AUTORA Lygia Fagundes Telles é paulista filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário de Azevedo Fagundes Passou a infância no interior do Estado em pequenas cidades onde seu pai foi delegado e promotor público Areias Assis Apiaí Sertãozinho Voltando à capital cursou o ginásio do Instituto de Educação Caetano de Campos tendo sido aluna do professor Silveira Bueno de quem recebeu os primeiros incentivos para a carreira literária Durante o curso secundário escreveu suas primeiras histórias reunindo as num pequenino livro que viria a destruir anos depois porque em sua opinião a pouca idade não justifica o mau livro Hoje uma jovem de quinze anos fuma bebe lê Kafka discute sexo enfim ousa tudo Eu com essa idade era só ignorância e medo Diplomandose na Escola Superior de Educação Física ingressou então na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco estava ainda na Faculdade quando seu livro de contos Praia Viva foi publicado pela Martins em 1944 Foi publicado pela Martins em 1944 Em 1949 já casada e residindo no Rio de Janeiro publicou pela Editora Mérito O Cacto Vermelho contos Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras Seu primeiro romance Ciranda de Pedra saiu em 1954 nas Edições O Cruzeiro e alcança agora a quarta edição lançada por esta Casa Histórias do Desencontro Prêmio do Instituto Nacional do Livro foi editado por nós em 1958 Cinco anos depois a Martins publicou Verão no Aquário cuja terceira edição apresentamos em nossa Coleção Sagarana Histórias Escolhidas Prêmio Boa Leitura lançouo a Martins em 1964 No mesmo ano Lygia contribuiu com a novela Gaby para ilustrar o capitulo reservado à Preguiça na coletânea Os Sete Pecados Capitais pela Editora Civilização Brasileira e na qual colaboraram também João Guimarães Rosa Otto Lara Resende Carlos Heitor Cony Mário Donato Guilherme Figueiredo e José Condé Em 1965 seu livro de contos O Jardim Selvagem Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro foi editado pela Martins Trilogia da Confissão trabalho premiado no I Concurso Nacional de Contos promovido pelo Governo do Paraná figura hoje em Os 18 melhores contos do Brasil volume lançado em 1968 por Bloch Editores que também publicara em 1970 os contos enfeixados em Antes do Baile Verde cuja segunda edição revista e aumentada foi por nós publicada em 1971 em convênio com o INL Traduzido por Georgette Tavares Bastos o conto Antes do Baile Verde conquistou em 1969 em Cannes o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros em língua francesa ao qual concorreram 360 manuscritos de 21 países Em 1971 lançamos em nossa Coleção Brasil Moço e também em convênio com o INL uma Seleta de Lygia Fagundes Telles com organização estudo e notas da professora Nelly Novaes Coelho Lygia Fagundes Telles é procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo Casada com o crítico de cinema e professor universitário Paulo Emílio Salles Gomes mora atualmente na capital paulista Tem um filho adolescente Goffredo Telles Neto Integra o Corpo Deliberativo de Cultura do Estado de São Paulo A convite de instituições culturais tem pronunciado conferências em cidades brasileiras bem como nos Estados Unidos Também em Portugal onde tem diversos livros publicados Foi distinguida pela Fundepar do Paraná por seu conjunto de obra Premio Guimarães Rosa 1972 Rio de janeiro setembro de 1974 Ana Clara não envesga disse a irmã Clotilde na hora de bater a foto Enfia a blusa na calça Lia depressa E não faça careta Lorena você está fazendo caretaA pirâmide As Meninas um Sentei na cama Era cedo para tomar banho Tombei para trás abracei o travesseiro e pensei em MN a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar o tio da Lião disse isso mas ele não sabe a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que MN vai dizer e fazer quando cair meu último véu O último véu escreveria Lião ela fica sublime quando escreve começou o romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego Imagine pêssego Dezembro é tempo de pêssego está certo às vezes a gente encontra as carroças de frutas nas esquinas com o cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a cidade inteira fica perfumada já é sublimar demais Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte tudo em latim Imagine se entra latim no esquema guevariano Ou entra E se ele gostava de latim Eu não gosto Nas horas nobres deitava no chão cruzava as mãos debaixo da cabeça e ficava olhando as nuvens e latinando a morte combina muito com latim Não tem coisa que combine tanto com latim como a morte Mas aceitar que esta cidade cheira a pêssego exorbita Qué ciudad será esa ele perguntaria na maior perplexidade Tercer Mundo Terceiro Mundo Y huele a durazno Na opinião de Lia de Melo Schultz cheira Ele então fecharia os olhos onde eram os olhos e sorriria um sorriso onde era a boca Estoy bien listo con esas mis discípulas Enfim problema dela o meu é MN um MN nu em pêlo muito mais em pêlo do que eu ele é peludo à beca assim na base do macaco Mas um macaco lindo a cara tão intelectual tão rara o olho direito um pouco menor do que o esquerdo e tão triste todo um lado da sua cara é infinitamente mais triste do que o outro Infinitamente Eu poderia ficar repetindo infinitamente infinitamente Uma simples palavra que se estende por rios montes vales infinitamente compridos como os braços de Deus As palavras Os gestos se renovando como a pele da cobra rompendo lisa sob a pele velha E não é viscosa toquei nela na fazenda era verde e espessa mas não viscosa O gesto de MN também novo não é verdade que tudo será como das outras vezes ele virá de pele limpa inventando o inventado nas suas minúcias Se Deus está no pormenor o gozo mais agudo também está na miudeza ouviu isto MN Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços a cena do biquíni não tinha a menor importância mas assim que começava a tirar os cílios era a glória Os olhos nus Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo Pura convenção achar o sexo obsceno E a boca Inquietante a boca mordendo mastigando mordendo Mordendo um pêssego lembra Se eu escrevesse começaria uma história com esse nome O Homem do Pêssego Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite um homem completamente banal com um pêssego na mão Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos fechando um pouco os olhos como se quisesse decorarlhe o contorno Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vincos como riscos de carvão mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego Fiquei fascinada Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com as pontas dos dedos As narinas dilatadas os olhos estrábicos Eu queria que tudo acabasse de uma vez mas ele parecia não ter nenhuma pressa com raiva quase esfregou o pêssego no queixo enquanto com a ponta da língua rodando o nos dedos procurou o bico Achou Eu estava encarapitada no balcão do café mas via como num telescópio achou o bico rosado e começou a acariciálo com a ponta da língua num movimento circular intenso Pude ver que a ponta da língua era do mesmo rosado do bico do pêssego pude ver que passou a lambêlo com uma expressão que já era sofrimento Quando abriu o bocão e deu o bote que fez espirrar longe o sumo quase engasguei no meu leite Ainda me contraio inteira quando lembro oh Lorena Vaz Leme não tem vergonha Não diz em voz alta o Anjo Sedutor Acendo depressa um tablete de incenso oh mente pervertida Queria ser santa Pura como esse perfume de rosas que se enrola em mim e me dá sono Astronauta também sentia sono quando eu acendia o incenso E se espreguiçava como me espreguiço foi com ele que aprendi a me espreguiçar Gato à toa por onde você anda Hein Dava aulas diárias de preguiça e luxúria mas nunca repetia os movimentos todo bailarino devia ter um gato A astúcia Ao mesmo tempo o abandono O desprezo pelas coisas realmente desprezíveis E aquele cálculo e fixação Todo feito de delicadezas perigosas meu gato Ou Demônio Nas pausas das lições ficava me olhando tão mais consciente do que eu na minha inconsciência como é que eu podia saber Ainda nem conhecia MN não ficava horas e horas minhocando como tenho minhocado ai meu Pai Só Jesus compreende e perdoa só Ele que já curtiu como nós Jesus Jesus como eu te amo Vou pôr um disco em sua homenagem espera ofereço música assim como Abel oferecia ovelhas é lógico que ovelha é muito mais importante mas Jesus sabe que tenho horror de sangue minhas oferendas só podem ser musicais bem Hendrix Escuta meu amado escuta esta última musiquinha que ele fez antes de morrer morreu drogado o pobrezinho todos eles morreram drogados mas ouça e sei que você vai baixar a mão até sua carapinha cheia de suor e poeira dear Jimi Num salto elástico Lorena se atirou na cama de ferro dourado da cor do papel da parede Ensaiou alguns passos de dança levantou a perna até tocar com o pé descalço na barra de ferro e saltou para cair na estreita listra azul do tapete de juta Aprumouse sacudiu a cabeleira para trás e olhando em frente foi se equilibrando na listra até chegar ao tocadiscos Jimi Jimi onde você está perguntou ela examinando a pilha dos discos na prateleira da estante Vestia um leve pijama branco com florinhas amarelas e tinha no pescoço uma corrente com um coraçãozinho de ouro Segurou o disco nas pontas dos dedos E você Rômulo Onde agora Apertou os olhos úmidos e colocou o disco no prato Mansamente levantou a agulha e a conduziu como o bico de um pássaro cego até a vasilha dágua Deixoua tombar Lorena A voz vinha do jardim Rapidamente ela arrepanhou a cabeleira torceua na nuca e pôsse nas pontas dos pés Abriu os braços Foi andando na listra em caracol do tapete tensa como uma equilibrista num fio de arame Lorena bota a cabeça na janela quero falar com você Ela vacilou perigosamente o pé direito plantado na listra o esquerdo em suspenso no ar Descontraiuse quando conseguiu pousar o esquerdo na frente do outro sem perder o equilíbrio chegara ao fim da travessia Inclinouse para os lados numa profunda reverência os braços em arco para trás as mãos se tocando como pontas de asas entreabertas Agradeceu recuando um pouco o sorriso modesto posto no chão Mas empolgouse ao colher uma flor no ar beijoua atiroua triunfante para as galerias e voltou rodopiando à janela Acenou para a jovem que esperava de braços cruzados no meio da alameda Levou as mãos ao lado esquerdo do peito e suspirou com ênfase Minha amada seja bemvinda Veja que dia É primavera Lião primavera Vera é verdade prima naturalmente primeira a verdade primeira Hum Numa manhã assim tenho que me segurar senão saio voando olha as margaridinhas abriram todas Apontou o canteiro embaixo da janela Coisa mais jóia Bom dia minhas margaridinhas Lorena será que você podia me dar um pouco de atenção Fala Lia de Melo Schultz fala Com um movimento brusco Lia puxou as grossas meias brancas até os joelhos A sacola de couro resvalou para o chão mas ela se concentrava nas meias atenta como se esperasse vêlas escorregar em seguida Apanhou a sacola Será que amanhã sua mãe podia me emprestar o carro Depois do jantar Digamos às nove entende Lorena debruçouse na janela Sorriu Suas meias estão caindo Ou enforcam os joelhos ou ficam desabando Olha aí No começo este elástico apertava de deixar a perna roxa Mas que idéia querida usar meia com este calor E sapatões de alpinista por que não calçou a sandália Aquela marrom combina com a sacola Hoje tenho que camelar o dia inteiro putz E sem meia dá bolha no pé Provavelmente nas solas Cafonérrimo Pior do que bolhas só os tais joanetes de Irmã Bula Joanete deve vir de Joana houve uma antiga Joana com os primeiros pés deformados e os netos herdaram a deformação e viraram os joanetos Ai meu Pai Primavera eu apaixonada e Lião falando em bolha no pé Tenho umas meias tão bacanas ainda nem usei quer ir com elas Só se forem francesas entende São suíças minha queridinha Não gosto da Suíça é limpa demais E nem vão servir imagine ela deve calçar quarenta Que idéia usar meias que engrossam os tornozelos a coitadinha está com patas de elefante Ainda assim emagreceu subversão emagrece Lião Lião ando tão apaixonada Se MN não telefonar me mato Estou demais aperreada para ficar ouvindo sentimentos lorenenses ô Miguel como preciso de você Falo baixo mas devo estar botando fogo pelo nariz Lena escuta eu não estou brincando E eu estou Por que essa pressa Suba venha ouvir o último disco de Jimi Hendrix faço um chá tenho uns biscoitos maravilhosos Ingleses pergunto Prefiro nossos biscoitos e nossa música Chega de colonialismo cultural Mas nossa música não me comove querida Se os seus baianos dizem que estão desesperados acredito acho ótimo Mas se vem John Lennon e diz a mesma coisa então vibro fico mística Sou mística Você é fresca Fresca Lião Você disse fresca repete ela Debruçouse mais na janela e em meio do riso envesgou botou a língua pra fora e colou os polegares na cabeça Abanou as mãos como orelhas ô é preciso ter saco pra agüentar essa menina Loreninha é sério Preciso do carro amanhã digo Não me ouviu Ficou de repente angelical enquanto acena para alguém do casarão Madre Alix Madre Alix que abriu a janela e corresponde ao cumprimento a mão erguida no estilo da rainha da Inglaterra Mas assim que a freira foi embora fez a careta maior a que costuma reservar para o fim Ô Miguel segure as pontas você disse É o que procuro fazer Mas às vezes fico oca está vendo Não sei explicar mas e duro demais cumprir a rotina queria ser presa ficar no seu lugar por que não fui presa em seu lugar Queria morrer A Faculdade ainda está em greve gemeu Lorena bocejando Apontou para minha sacola Que é que você tem aí Metralhadora Aprumouse como se manejasse uma o olho cerrado na mira os ombros sacudidos pela descarga tequetequetequetequeteque Apontou para o casarão tequetequeteque Descarregou em Irmã Bula que finge que brinca com a Gata mas está atenta em nós Estou sorrindo porque sei que é exatamente assim que Miguel reagiria Loreninha não começa não gosto dessa brincadeira Vai pedir o carro Devolvo no dia seguinte como da outra vez Não tem problema Vocês deviam sequestrar o MN Lião Por que é que não seqüestram o MN Ele ficaria escondidinho debaixo da minha cama per omnia secula seculorum Amen Acendo um cigarro Que me importa dormir no meio dos bêbados das putas o cigarro aceso no meu peito dói sim mas se soubesse que você está livre dormindo na estrada ou debaixo da ponte Mas livre Não sei agüentar sofrimento dos outros entende o seu sofrimento Miguel O meu agüentaria bem sou dura Mas se penso em você fico uma droga quero chorar Morrer E estamos morrendo Dessa ou de outra maneira não estamos morrendo Nunca o povo esteve tão longe de nós não quer nem saber E se souber ainda fica com raiva o povo tem medo ô como o povo tem medo A burguesia aí toda esplendorosa Nunca os ricos foram tão ricos podem fazer as casas com as maçanetas de ouro não só os talheres mas as maçanetas das portas As torneiras dos banheiros Tudo de puro ouro como o gangster grego ensinou na sua ilha Intactos Assistindo da janela e achando graça Resta a massa dos delinqüentes urbanos Dos neuróticos urbanos E a meia dúzia de intelectuais Os simpáticos simpatizantes Não só explicar mas tenho mais nojo de intelectual do que de tira Esse ao menos não usa máscara ô Miguel Precisava tanto de você hoje esta vontade de chorar lá sei Mas não choro Nem tenho lenço Lorena não acharia fino limpar meu nariz na fralda da camisa Lorena me empresta um lenço estou resfriada digo tenho vontade de esfregar esta cara molhada de lágrimas Mas que lenço Não quero lenço quero o carro Quero o carro Lorena Posso contar com você Tenho branco rosa azul e verdemalva Ah e um turquesa olha que lindo este turquesa Então Lia de Melo Schultz que cor a senhora prefere Fico olhando a caixa de lenços que ela foi buscar Guarda tudo em caixinhas de pano florido essa é de papoulas vermelhas e azuis com fundo preto Tem ainda as de prata e couro que ficam nas prateleiras da estante E sinos Por onde o irmão Passa manda um sino Outros colecionam selos um outro coleciona gravatas e lá adiante um entra na fila de cinema Maurício aperta os dentes que se quebram Não quer gritar e então aperta os dentes quando o bastão elétrico afunda lá no fundo No desenho animado o gato leva um trompaço e dentes e ossos se trincam Mas na cena seguinte já se colam e o gato volta inteiro Seria bom se fosse como nos desenhos Silvinha da Flauta Gigi japona E você Maurício Quando o bastão entrar mais fundo desmaia Desmaia depressa morra Devíamos morrer Miguel Em sinal de protesto devíamos todos simplesmente morrer Morreríamos se adiantasse você disse Lembra Eu sei ninguém daria a mínima Arrancaríamos o coração do peito olha aqui meu sangue olha aqui meu coração Mas tem um tipo ao lado engraxando os sapatos que cor de graxa o cavalheiro prefere O verde Tiro da caixa o verdemalva que está em terceiro lugar na Pilha Tão delicados os lencinhos que Remo mandou de Istambul adeus meu lencinho Lião é capaz de limpar os sapatões em você mas pense no if dos lenços a poeira é tão digna quanto as lágrimas Não será uma poeira lunar tão branquinha tão fina a Poeira terrestre é da pesada principalmente essa dos sapatos da minha amiga Mas não se importe não seja lenço Soltoo no espaço Abriuse leve como um páraquedas que Lião apanha impaciente Você está deprimida Lião Angústia existencial Exato Existencial Está furiosa comigo ai meu Pai Mudou tanto coitadinha Quer dizer que Miguel continua preso E aquele japonês E Gigi E outros estão caindo quase todos que loucura E se de repente ela Ana Clara já viu um careta meio suspeito rondando o portão Aninha mente demais é lógico mas isso pode ser verdade Sim Pensionato Nossa Senhora de Fátima nome acima de qualquer investigação Mas quando aparece agora nome de padre e freira no horizonte já ficam todos de orelha em pé Devolvo amanhã diz ela dobrando o lenço Fique com ele imagine Quer levar mais um Atirolhe o lenço corderosa que não se abriu como o verde Por que meu coração também se fecha Rômulo nos braços de mãezinha procurei um lenço e não vi nenhum seria preciso um lenço para enxugar todo aquele sangue borbulhando Borbulhando Mas que foi isso Lorena Brincadeira mãezinha eles estavam brincando e então Remo foi buscar a espingarda corra senão atiro ele disse apontando Está bem não quero pensar nisso agora agora quero o sol Sento na janela e estendo as pernas para o sol Fico vermelha e queria ficar marrom olha que cor O Fabrizio disse que meu apelido na Faculdade é Magnólia Desmaiada já pensou E o velho Nada ainda Conto até dez antes de responder grrrrr Por que chamar MN de velho Primeiro ele não é velho Segundo ela sabe que sou do gênero enrolado as coisas comigo não se resolvem assim Terceiro qual é o terceiro Estou me esforçando para parecer inatingível Ficou de telefonar para jantarmos Você vem com a gente Estou precisada é de um banguebangue Cinema imagine Zona perigosa tem milhares de zonas perigosas onde a mulher dele ou a prima Acho que o melhor lugar para a gente se ver é o hospital porque se o mundo é grande aquele hospital ainda é maior Doutor Marcus Nemesius está eu pergunto e a enfermeira principal fala com a subordinada e a subordinada fala com a subordinada da subordinada que por sua vez fala com aquela lá longe a que escapou da corrente e o sapato branco a memória branca Por acaso é você que está esperando o doutor Melloni ela vem e pergunta depois de duas hora e meia Não esse não Por acaso estou esperando o doutor Marcus Nemesius ele está Acabou de sair ela diz Não serve outro médico Se ele não telefonar vamos nós Lião Tenho oriehnid até para caviar Russo Não querida do Irã O melhor caviar do mundo Remo meu irmão mandou uma lata Estou comovida Mas fico com minha empada da esquina Aqui tem a sopinha o picadinho com o jeito assexuado das freiras mas é sempre melhor do que essas coisas que ela come pela rua E nem toma mais banho coitadinha Antes enchia minha banheira e lá ficava tão feliz um dia até pediu os sais Você mudou Lião Pra pior perguntou ela abrindo o lenço e se assoando Bossa escapamento aberto Nesse ponto os bichos são tão mais bacanas nunca vi Astronauta se assoar em público Buracos demais secreções demais Ai meu Pai Comer empadas no café que loucura Mas se viesse com a gente acabava envenenando nosso encontro adora fazer ironias que MN finge que não entende tão sólido Tão seguro Mais vinho Lião O vinho ela aceita Também aceita a lagosta fala lagostim Mas precisa lembrar a estatística das criancinhas morrendo de fome no Nordeste esse assunto de Nordeste às vezes exorbita Não sei até quando a gente vai ter que carregar esse povo nas costas horrível pensar isso mas agora já pensei e estou pensando ainda que se Deus não está lá é porque deve ter suas razões Ah Sou um monstro Monstro Queria tanto ser diferente mas queria tanto E esta vocação para a mesquinharia Ai meu São Francisco minha Santa Teresa son tan escuras de entender estas cosas interiores Devolvo amanha diz Lião guardando o lenço na sacola Não vai devolver e lógico E nem eu aceitaria lenço é como escova de dentes não se pode emprestar Igualzinha a Ana Clara que até agora não aprendeu esta coisa tão simples não se emprestam objetos pessoais Lia Lia chama Irmã Bula da janela do casarão A voz é de um gnomo da floresta saindo de dentro de um tronco de árvore Quer gritar telefone para você Leva a mão ao ouvido como se virasse uma manivela nos telefones do seu tempo tinha que virar a manivela Ou nasceu antes ainda Deve ter uns duzentos anos Lião está com medo Ana Clara também posa de indiferente mas se não toma tranqüilizante recomeça naquele delírio ambulatório Com a maior semcerimônia do mundo abriu minha caixa de lençopapel e levou mais da metade anda com montes de folhas para se limpar depois do amor O certo seria tomar um banho em seguida é lógico higiênico e poético correr nua até o chuveiro No campo correr debaixo da cascata chuáaaaaa Mas fazer a toalete como uma doméstica apressada Certos gestos e palavras de Ana Clara coitadinha Tudo está nos detalhes as origens a fé a alegria Deus Principalmente as origens Lá sei das minhas me disse quando ficou de fogo Nem quero saber A margaridinha aí embaixo pode dizer a mesma coisa nada sei da minha raiz Mas e a gente Nem pai nem mãe Nem ao menos um primo Não tem ninguém Pelo visto a Bahia inteira deve ser da parentela de Lião mas Ana Clara é o avesso do quadro familiar Nem uma tiazinha para lhe ensinar que tudo que se faz antes e depois do amor deve ser harmonioso É antiestético masturbarse Não propriamente antiestético mas triste No tempo em que Lião fazia milhares de pesquisas fez uma entre as meninas da Faculdade quantas se masturbavam Incrível o resultado entre as virgens Incrível Estamos saindo da Idade Média disse ela examinando a pupilada Heranças das nossas mães e avós entende Somadas nos hábitos da adolescência dá essa porcentagem alarmante Você também se masturba perguntou cravando em mim o olho negro da inquisição Duas abelhinhas louras dessas que só fazem mel e amor pousaram no meu pé primeiro uma e depois a outra Afasto as brandamente o gesto tem que ser brando para que não se sintam rejeitadas viu MN Se você não me quiser é assim que deve fazer comigo vai minha abelhinha vai Antes de voar a maiorzinha delas esfregou as duas patinhas dianteiras como quando se lavam as mãos e em seguida esfregou uma das patas até a extremidade do abdômen listrado de amarelo Não deu Para ver onde exatamente a mão foi parar mas se Lião fosse pesquisar também entre as abelhas tu quoque bestiola Bestiola é inseto E abelha Enfim ela perguntou e se não respondi com maior nitidez foi porque nunca podia bem alcançar aquela tarde lá atrás Masturbação Aquilo Treze anos lição de piano O Camponês Alegre Participei tanto da alegria que a banqueta oscilava Para a frente e para trás o ritmo se acelerando acelerando A ânsia no peito o sexo pisoteando a almofada com a mesma veemência das mãos martelando o teclado sem vacilação sem erro Nunca toquei tão bem como naquela tarde o que hoje me parece complacente extraordinário Desci da banqueta como de um cavalo Na hora do jantar mãezinha me beijou toda comovida Ouvi seu piano enquanto mexia a goiabada você tocou divinamente Então fiquei sorrindo para o prato meu primeiro segredo Rômulo atirou em mim uma bolota de miolo de pão e Remo enfiou um besouro no meu cabelo mas quando fomos para a varanda me senti luminosa como uma estrela E se Rômulo não viesse me assustar com um lençol poderia ter permanecido mais de dois minutos em levitação A segunda vez também foi na fazenda enquanto tomava banho Ainda por acaso Entrei na banheira vazia deiteime no fundo e abri a torneira O jorro quente caiu no meu peito com tamanha violência que escorreguei e ofereci a barriga Da barriga já pisoteada o jato passou para o ventre e quando abri as pernas e ele me acertou em cheio senti num susto a antiga exaltação artística mais forte embora dessa vez não tivesse o piano Fechei os olhos quando Felipe cruzou e recruzou meu corpo com sua moto vermelha Felipe o do blusão preto e moto Escondi nas mãos a cara querendo fugir e ao mesmo tempo colada ao fundo da banheira com a água subindo destemperada já me cobria inteira as borbulhas rebentando no meu queixo por que não abri o ralo Saciada e insaciada ela ou eu pedia mais a boca Penetroume encachoeirada tapoume o nariz pronto vou morrer pensei num salto Fugi aos pulos Era o amor Era a morte Uma coisa só respondi num verso Nesse tempo escrevia versos A Gata aproximouse da sacola que Lia deixara no meio da alameda Cheirou o couro desconfiada Sentouse meio de lado por causa da barriga E ficou olhando para Lorena encarapitada na janela do quarto Esse quarto e o banheiro disso Lorena estava certa foram do motorista da família dona do casarão Embaixo a garagem do carro provavelmente antiquado Em cima senhor absoluto o chofer desordeiro e sensual amante da copeira que se chamava Neusa nome escrito muitas vezes com o bastão de barba ou desodorante branco na parede caiada de azul Dela ficaram alguns grampos apontando por entre as gretas do assoalho E o perfume de jasmim num frasco quebrado no ladrilho do banheiro Com uma pequena reforma sua menina poderá ficar muito bem aqui disse Irmã Priscila com um otimismo que contagiou Lorena agarrada ao braço da mãe que por sua vez segurava firme no de Mieux Voltou para ele a cara perplexa nessa época o consultava até para saber se devia ou não tomar uma aspirina Dê sua opinião querido Não vou gastar demais Isto está um horror queixouse repugnada com o perfume de jasmim misturado ao cheiro de urina Mieux piscou para Lorena Ficava eufórico quando podia mostrar seu prestígio Vai ficar a coisa mais jóia do mundo já estou com umas idéias Quero este banheiro todo corderosa é importante que ela se sinta num ninho quando se despir para o banho disse ele atirando a ponta de cigarro no vaso rachado Bateu a porta atrás de si e cheirou o lenço Este quarto imagino amarelo bem claro tenho o papel de parede a cama dourada ali naquele canto A estante e a mesa naquela parede Neste espaço o armário embutido Ali a minigeladeira e o barzinho hem Loreninha Apanhou no chão uma carta de baralho era uma damadeespadas Colocoua de pé na frincha da porta E como mãezinha ia na frente e Irmã Priscila se ocupava em fechar a janela ele aproveitou e passou a mão na minha bunda Aconteceu alguma coisa pergunto à Lião que voltou correndo Arfava Chutou uma bola de jornal que a Gata estraçalhou O chá que ofereceu ainda está valendo Agora aceito essa taça Mais um telefonema desses e entorto completamente Tiro depressa o pijama e visto a malha preta de bale Ouço Lião subindo a escada degrau por degrau Na alegria ela sobe em três saltos coitadinha O namorante preso o ano estourado por faltas a mesada estourada antes do tempo mais da metade dá ao tal grupo Ai meu Pai Posso baixar isto pergunta ela indo reta na direção do toca discos Baixou tanto que a voz de Jimi Hendrix virou voz de formiguinha debaixo da mesa Acendo o fogareiro elétrico faço mais dois movimentos para desenvolver o busto e abro na mesa a toalha Pego as xícaras Os pratos Trago a cestinha de pão com a fita vermelha entrelaçada por entre a tessitura da palha dando a volta toda até o encontro das pontas para o laço Fico admirando a graça do estampado da toalha com suas grandes folhas de uma tonalidade verdequente por entre as quais espia meio escondido o olho asiático de uma ou outra laranja O prazer que encontro neste simples ritual de preparar o chá é quase tão intenso quanto o de ouvir música Ou ler poesia Ou tomar banho Ou ou ou Há tantas pequeninas coisas que me dão prazer que morrerei de prazer quando chegar a coisa maior Será mesmo maior MN Me mato se ele não telefonar digo abrindo os braços e indo na ponta dos pés até a geladeira Tenho uvas e maçãs maravilhosas querida Lia sentouse no tapete e começou a roer um biscoito Está sombria como um náufrago comendo o último biscoito da ilha Catou os farelos que se entranharam nas pregas da saia mas por que essa saia hoje Apesar do popô de baiana exorbitar acho que ainda fica melhor de jeans Problemas Lena Problemas ô esqueça disse tentando aplacar com as mãos a cabeleira crespa Cravou em mim o olho objetivo Não deixe de pedir ouviu Atirolhe uma maçã Em sua honra botei na mesa uma toalha nova não é linda Diga que é você quem vai usar entende O quê O carro Lena pára de sonhar presta atenção você vai pedir o carro à mãezinha Deitome de costas e vou pedalando Posso chegar a duzentas pedaladas Este exercício é ótimo para engrossar as pernas incrível como minhas pernas são finas Você teria que pedalar ao contrário para afinar as suas digo e seguro o riso Ela mordeu a maçã com tanta fúria que senti o reflexo no meu joelho que estalou Depois do jantar Lorena Não esqueça depois do jantar está me ouvindo Diga que é pra você Carro carro A máquina está varrendo a beleza da terra ai meu Pai E vamos entrar na Era do Aquário quer dizer domínio da técnica mais máquinas O trânsito aéreo balões e jatinhos individuais o céu preto de gente Não quero nem saber fico lendo meus poetas em cima de uma árvore deve sobrar alguma Comprei ontem uma edição linda de Tagore digo me sentando no tapete Junto as palmas das mãos no peito Velo ao longo das noites por aquele que me roubou o sono Construiu as paredes daquele que derrubou as minhas Passo a vida colhendo espinhos e semeando flores Choro por beijar aquele que não me conhece mais Ela atiroume um olhar baixo Deu uma risadinha e falou de boca cheia Não precisa fazer tanto basta não querer roubar o homem da próxima aprendeu Madame Tagore Mas ele não gosta mais dela querida Acabou o amor acabou tudo Só se pertencem nos papéis Você acha pouco Eu me ficho com isso mas precisa ver se ele também se ficha E onde a novidade nesse poema Tudo isso está na Bíblia Lena Você não lê a Bíblia Pode procurar está tudo lá Recomeço a pedalar com mais energia Comprei Proust não é fino MN tem paixão por Proust Vou ter que ler mas confesso que acho um pouco sobre o chato Grrr Romance de grãfino e grãfino de antigamente é o fim Nunca tive sacola pra isso disse ela e tirou o cigarro da própria Vou correndo buscar um cinzeiro e na volta destapo a chaleirinha A água está quase fervendo não deixar nunca a água do chá ferver o paizinho ensinou Desligo o fogareiro e vou deixando cair o chá na água Aspiro de olhos fechados o perfume enquanto ponho o cinzeiro debaixo de Lião que não sabe onde jogar os restos da maçã Seguro o microfone invisível e me aproximo de joelhos Ela prendeu o cigarro entre os dentes Por obséquio queria sua opinião sobre alguns problemas importantes da nossa comunidade digo levantando mais o microfone Antes de mais nada pode declinar seu nome Lia de Melo Schultz Profissão Universitária Ciências Sociais E podese saber sua atual situação naquela casa de ensino Rodei este ano Faltas Tranquei a matrícula Muito bem muito bem E o livro Disseramme que tem um livro quase pronto Segundo a informação tratase de um romance não Rasguei tudo entende disse ela soprando a fumaça na minha cara O mar de livros inúteis já transbordou Ora ficção Quem é que está se importando com isso Deixei o microfone Rasgou Não tinha vocação coitadinha Mas gostava tanto de escrever suas histórias naqueles cadernões de capa engordurada para onde ia levava aqueles cadernos A cidade cheirando a pêssego imagine Ofereçolhe um cacho de uvas mas ela recusa Não sei o que dizer agora Tão lúcida quando fala mas quando escreve fica tão sentimental oh a lua o lago Sabe da novidade Lião Vai chegar uma poetisa do Amazonas já pensou Só pode ser índia Vai ficar no seu quarto querida Entregolhe a xícara de chá fumegante Pede mais açúcar e fica mexendo o chá e me olhando Por que no meu quarto Você aqui nesta mansarda e ainda com banheiro putz índio gosta de banho O quarto de Ana Clara também pode abrigar uma tribo Não lá não imagine A índia em estado natural Ana Clara vai buleversar a coitadinha Mas até janeiro ela já não está casada com o industrial Guiando um Jaguar preto com almofadas vermelhas Um diamante do tamanho de um pires no dedo E um casaco de onça até a ponta do pé Pooodre de chique Reviro os olhos e imito Aninha quando respira o ar de femme fatale Mas Lião continua sombria Vai mal a Ana Turva De manhã já está dopada E faz dívidas feito doida tem cobrador aos montes no portão As freirinhas estão em pânico E esse namorado dela o traficante O Max Ele é traficante Ora então você não sabe resmungou Lião arrancando um fiapo de unha do polegar E não é só bolinha e maconha cansei de ver a marca das picadas Devia ser internada imediatamente O que também não vai adiantar no ponto em que chegou Enfim uma caca Abro as mãos no tapete Examino minhas unhas Divinomaravilhoso se o noivo milionário se casar com ela Empresto o oriehnid para a plástica na zona sul ele só se casaria com uma virgem ela tem que ficar virgem Ai meu Pai Você acredita que casamento rico vai resolver perguntou Lia Teve um sorriso triste Devia se envergonhar de pensar assim Lorena E vai sair casamento O moço então não está sabendo de toda essa curtição Ao invés de ficar pensando num milagre do casamento você devia pensar num milagre de verdade entende Não sei explicar mas vocês cristãos têm uma mentalidade tão divertida Vou até a chaleira e encho novamente as xícaras Paro no meio do caminho Ele cantava drogado essa voz meio rouca não é de drogado Voz turbilhonada de quem pede socorro mas não quer ser socorrido Ontem ela estava tão lúcida Diz que Madre Alix ajuda vai recomeçar com a análise Quem sabe hein Lião Você acha que nessa altura uma análise vai funcionar Teria que ser um analista bossa São Sebastião aquele das flechas bonito e bom Então ela se apaixonava por ele e se salvava pelo amor como nas revistinhas que adora ler E mais o Jaguar e o tal casaco Lorena me entrega a xícara com seus fagueiros desenhos de pássaros e florinhas A toalha de linho combina com a xícara uma toalha com uma exuberante estamparia tropical As poltroninhas claras Os objetos raros Tudo aqui é muito fagueiro muito bonito Você ainda é rica Lorena Ela ficou séria Relaxou o exercício A tal agência de publicidade de Mieux deu em nada Com a loja de decoração mãezinha gastou à beça E continua gastando uma sede de novidades Parecem aqueles milionários americanos na Europa dos anos vinte sabe como é Sei lá Eu perguntei se você tem dinheiro Defendo minha parte Por quê Está precisando Lião Despejo mais chá na xícara Um chá danado de bom Pulo Lorena que parou de pedalar e agora faz exercício respiratório já me explicou que tem a respiração solar e a respiração lunar Acho que vou precisar Lena Para umas operações bem diferentes das de Ana Turva Ai meu Pai Morro de pena dela Morre de pena de todo mundo Vai ver morreu também de pena de mim quando disse que rasguei tudo Não é uma forma de esconder seu sentimento de superioridade Ter pena dos outros não é se sentir superior a esses outros Rasguei o romance eu disse E ela ficou quieta Bebo o chá morno Uma boa menina Ana Clara também é uma boa menina eu também sou uma boa menina Como vai a coleção pergunto examinando os sinos arrumadinhos na prateleira Meu irmão Remo prometeu um dos beduínos lá da Tunísia ele agora está em Túnis mora numa casa linda em Cartago já pensou Cartago ainda existe Lião Delenda delenda Mas ainda existe Outro dia me pediu toda excitada pra ir a uma das reuniões do grupo essa Lorena que está aí tocando seus sininhos tlimtlim tlem tlem tlomtlom Pensa que nossas reuniões são daquele estilo dos festivais de contestação iria com essa malha botas e um cachecol vermelho pra quebrar o pretume Os intelectuais com seus filminhos do Vietcong Há tanta fome e tanto sangue na tela de lençol Tão terrível ver tanta morte putz Como pode meu Deus como pode Revolta e náusea Náusea sartriana murmura uma convidada bisonha Que se cala quanto sente no escuro os olhares gelados na sua direção Silêncio novamente só o zunido exasperante do projetor a curtição é longa tem filme à beça esperando nas latinhas As luzes se acendem mas as caras demoram pra acender que horror Uísque e patê pra aliviar o ambiente Considerações sobre prováveis nomes nas próximas listas Voltam os filminhos de respectivas latas enquanto aos poucos voltam todos às respectivas casas Os que não têm carro pedem carona nos carros disponíveis que vão pro mesmo lado São bem humorados os intelectuais Até piadas Mas justiça seja feita estão vigilantes Sobretudo enturmados pudera se reunindo como se reúnem Sabem que você foi preso e torturado menino corajoso esse Miguel é preciso ter coragem bravo bravo Sabem que a Silvinha da Flauta foi estuprada com uma espiga de milho o tira soube do episódio do romance alguém contou e ele achou genial Milho cru ou cozido perguntou o outro e ele deu pormenores Milho esturricado aqueles grãos espinhudos Os intelectuais estão comovidos demais pra falar só ficam sacudindo a cabeça e bebendo A sorte é que o uísque não é nacional Um ou outro mais fanático se irrita com o tom dos encontros afinal não reuniu só pro queijo e vinho quando as notícias são as piores possíveis Eurico continua sumido foi preso assim que desembarcou e até agora ninguém sabe dele Desapareceu como personagem de ficção científica quando o homem metálico emite o raio e o tipo se dissolve com revólver e tudo e fica no lugar uma manchinha de gordura O Japona deixou uma maleta na casa do irmão avisou que ia buscar no dia seguinte Este é grego Lião Veja que som divino Contei que rasguei meu livro e foi como se dissesse que rasguei o jornal Não gosta do que eu escrevo Ninguém gesta deve ser uma bela merda Mas as pessoas sabem o que é bom O que é ruim Quem é que sabe E se for válido Não devia ter rasgado coisa nenhuma Mas sei de cor posso aproveitar o texto talvez num diário Gostaria de escrever um diário Estilo simples direto Dedicava a ele Perfeito Perfeito repetiu e apanhou a sacola Não vá esquecer Lena O carro Lia de Melo Schultz se você falar nisso mais uma vez me mato Olha fique com este sininho bota no pescoço Quando a gente se perder você faz blemblem e já sei onde está todo mundo devia andar com um sininho como as cabras Brandamente Lia sacudiu o pequeno sino de bronze Sorriu para a amiga enquanto procurava tirar do pescoço o cordão preto Baixou o olhar úmido Fica junto com este orixá presente da minha mãe Preciso escrever comprido pra mãe Outra carta pro pai eles são opostos Ao mesmo tempo iguais Quando não mando notícia cada qual vai chorar no seu canto um escondido do outro Queriam tanto ver a filha recebendo o diploma Noivando Noivado na sala e casamento na igreja com vestido de abajur Arroz na despedida Os netos se multiplicando embolados na mesma casa casa enorme tinha tanto quarto não tinha Aqui também chegou a praga dos apartamentos escreveu o pai na última carta Nosso bairro está sendo invadido mas resistiremos Quando você chegar e encontrar uma única casa em toda a cidade pode entrar que é a nossa Se meu amado telefonar você vem jantar com a gente Lia fica me olhando Está pensando em quê Lião Faz um agrado na minha cabeça e vai saindo com ar de quem carrega nos ombros o peso do mundo Subo o volume da vitrola Get out of here ele grita já rouco Espio pela janela Desceu a escada nos seus três saltos e agora está exatamente no lugar onde esteve antes de subir Hesita ainda como se tivesse esquecido de dizer algo importante não lembra Abriu a sacola espiou dentro Roeu sem maior interesse a unha do dedinho e apanhou um pedregulho Atirouo para o alto É o carro querida Fique tranqüila sabe que mãezinha já me deu um Nem fui buscar o cheque já pensou Você fica com uma chave detesto guiar ih as caras que as pessoas fazem quando guio Ela está concentrada inteira num ponto atrás de mim e que se distancia e se perde como a pedra que atirou no ar Faço caretas sei fazer caretas ótimas nem Remo nem Rômulo sabiam fazer caretas como eu mas Lião só se interessa pelo pontinho lá longe e que parece ter voltado e caído dentro dela A cara se buleveram como a superfície de um poço quando a pedra afunda Não estacione no portão pare na esquina Se sair deixe a chave na estante Aí numa dessas suas caixinhas Naquela de prata em forma de trevo querida Sabe que eu sei que anda num imbróglio dos demônios mas sabe também que respeito seu segredo A pedra repousa no fundo das águas complacente Requiescat in pace Faço sinal para que ela se aproxime mais Quem é que tinha um hímen complacente Ela agora ri como nos bons tempos ria Franziu a cara batida de sol Resolva logo Lena Mas não é o que estou querendo pergunto e lá no escuro me respondo acho que não estou querendo não A alegria que me dá a idéia de ver em torno a promiscuidade dos sexos se dando sem amor por aflição desespero E o meu Virgo et intacta Abro os braços Que dia maravilhoso Se Ana Clara aparecer diga que preciso daquele dinheiro que emprestei Oriehnid Lião oriehnid grito e levanto o braço direito o punho fechado na saudação antifascista Ela prende o cigarro nos dentes fecha a mão e torce a munheca Banana Lião Isso é uma banana Afastase a passos largos e pelo jeito de balançar a cabeça imagino que está sorrindo Atravessa o jardim como um soldado em dia de desfile a mochila ao lado as meias desabando podem desabar toque toque toquetoque Abriu o portão com um gesto desabrido heróico gesto de quem assume não o seu caminho prosaico demais imagine mas o próprio destino Antes mesmo de chegar à esquina as meias já desabaram completamente Ai meu Pai E justo a mãezinha fornecendo condução para o aparelho Pode ter um daqueles ataques se souber dois Coelha Ei Coelha você está dormindo perguntou ele Sacudiua pelos ombros Que é que você tem que não se mexe Ana Clara esforçouse por abrir mais os olhos Em torno do olho esquerdo desenharase uma orla de carvão na medida do aro negro de um soco Esfregou os olhos com os nós dos dedos e o delineador de pálpebras marcou também o outro olho Voltouse sono lenta para a fumaça espessa que o abajur projetava no cone de luz Beijou o ombro nu do jovem disfarçando o bocejo numa mordida Estou quase desmaiando amor Tão bom Max Então por que está assim gelada Ahn Parece que estou trepando num pingüim você já viu um pingüim Ela enrolou e desenrolou no dedo um anel de cabelo É que hoje não estou brilhante Queria que me dissesse o dia em que esta brilhante resmungou ele sentandose na cama Max eu te amo Eu te amo Ele coçou a cabeça com as mãos em garra Cocou o peito reluzente de suor Voltou a coçar a cabeça Mas não gosta de fazer amor Coelha É importante fazer amor ahn Ando meio travada Preciso falar com meu analista fiz uma puta confusão com essa análise Diga que você se contrai no amor feito ostra quando se pinga limão nela Ih vontade de comer umas ostras com vinho branco bem gelado disse ele estirando os braços Tenho nojo de ostra não posso nem ver Uma droga de bicho Ele procurou no chão as calças amontoadas ao lado da poltrona Tirou do bolso o maço de cigarros e sacudiuo fazendo cair na palma da mão um pequeno embrulho de papel de seda Uma dose adamada pra Coelha e outra pra mim ahn Com isto engrena Ela puxou o lençol até o pescoço Engrena nada Se ao menos engrenasse mesmo e eu subisse pelas paredes de tanto engrenar e a cabeça deixasse roqueroque de pensar só coisas chatas Mas por que minha cabeça tem que ser minha inimiga pomba Só penso pensamento que me faz sofrer Por que esta droga de cabeça tem tanto ódio de mim Isso nenhum analista me explicou isso da cabeça Só de porre me deixa em paz essa sacana E aquele besta me esperando enquanto descasca seu pãozinho descasca o pãozinho com a unha até ficar só o miolo feito rato É minha cabeça que ele descasca roqueroque Bastardo Hoje não posso demorar muito amor digo Ele apanha no chão os copos vazios pisca um olho e vai para a cozinha levando os copos e o balde gelo Abriu a geladeira Abraço o travesseiro Dormir dormir Dormir até rachar de dormir sem nenhum sonho que sonho só serve pra encher o saco Tem uns bons Aqueles Por que nunca posso dormir o quanto quero Por que tem sempre alguém me cutucando vamos fazer um amorzinho vamos fazer um amorzinho Mas que amorzinho que nada Max eu te amo Eu te amo mas não sinto nada nem com você nem com ninguém Faz tempo que já não sinto nada Travada Tinha outra palavra que ele gostava de dizer qual era mesmo Esse Hachibe Como vou sentir prazer com aquele escamoso se com este daqui que eu amo Já está lá sentadinho com o pãozinho na mão tem sempre um me cutucando pra fazer amor e outro me esperando em alguma mesa Vou da cama pra mesa e da mesa pra cama Bloqueada agora lembro bloqueada É só comigo que você é assim fria ele perguntou Aquele escamoso Anão pretensioso É que sou virgem meu bem Me desculpe mas sou virgem e virgem não pode vibrar como Ele então me olhou com aquele olho indecente e riu Tudo pivô pomba Pensa que só eu Também ele com dinheiro e tudo entrou bem em matéria de dente Infância pobre ombro pobre cabelo pobre Tenho um metro e setenta e sete Sou modelo Uma beleza de modelo O que mais você quer Bastardo Se esta cabeça me desse uma folga pomba Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona Contente Semente torrada com sal é bom pra lombriga ainda tenho o gosto e também daquele remédio nojento Não quero a semente mãe quero a história Então à meianoite a princesa virava abóbora Quem me contou isso Você não mãe que você não contava história contava dinheiro A carinha tão sem dinheiro contando o dinheiro que nunca dava pra nada Não dá ela dizia Nunca dava porque era uma tonta que não cobrava de ninguém Não dá não dá ela repetia mostrando o dinheirinho que não dava embolado na mão Mas dar mesmo até que ela deu bastante Pra meu gosto até que ela deu demais Uma corja de piolhentos pedindo e ela dando O mais importante foi o Doutor Algodãozinho Max você está aí Sabe como se chamava meu dentista Doutor Algodãozinho Max despejou uísque no copo Sacudiuo e o depósito de poeira esbranquiçada ameaçou subir Algodãozinho Doutor Algodãozinho Aperta o copo na mão Quando Lorena sacode a bola de vidro a neve sobe tão leve Rodopia flutuante e depois vem caindo no telhado na cerca e na menininha de capuz vermelho Então ela sacode de novo Assim tenho neve o ano inteiro Mas por que neve o ano inteiro Onde é que tem neve aqui Acha lindo neve Uma enjoada Trinco a pedra de gelo nos dentes Às vezes dorme com o Pato Donald Fica apertando a barriga dele coem coem Enjoada Com a ponta da língua empurro o pedaço de gelo até o céu da boca Na realidade o céu é lá em cima sem nenhuma dor O inferno começa em seguida com as raízes Tanta raiz se entrelaçando umas nas outras Solidárias Ele vivia trocando o algodão dos buracos dos dentes passava semana mês ano e ele vinha com aquele algodãozinho na pinça ficou sendo o Doutor Algodãozinho Mas você tem bons dentes ahn Não tem Coelha Meu lindo Meu inocente amor Tenho Então o Doutor Algodãozinho era bom Era Era ótimo Mudava o algodãozinho enquanto o buraco ia aumentando Aumentando Cresci naquela cadeira com os dentes apodrecendo e ele esperando apodrecer bastante e eu crescer mais pra então fazer a ponte Uma ponte pra mãe e outra pra filha Bastardo Sacana As duas pontes caindo na ordem de entrada em cena Primeiro da mãe que se deitou com ele em primeiro lugar e depois Fui passando pela ponte a ponte estremeceu água tem veneno maninha quem bebeu morreu Quem bebeu morreu Ela cantava pra me fazer dormir mas tão apressada que eu fingia que dormia pra ela poder ir embora duma vez No cinema tinha sempre uma mãe cantando romântica prós filhinhos abraçados nos bichinhos de pelúcia Avó também costuma contar histórias mas por onde andava minha avó era uma coisa que eu gostaria de saber Queria ter uma avó como Madre Alix Ter uma avó como Madre Alix é ter um reino Freira pode ser avó amor Responde pode Ele está de costas escolhendo os discos Podre de lindo assim nu Pomba tenho vontade de chorar de amor porque ele é lindo Um sol Acho que primeiro me apaixonei pelos dentes os dentes são perfeitos não pode haver uma boca mais perfeita Te amo Max Te amo mas em janeiro meu boneco Em janeiro vida nova Tirar o pé da lama Você já foi rico agora é minha vez não posso Ano que vem stop Um escamoso mas podre de rico Então Este é o meu corpo disse ele levantando o disco bem alto Beijouo Este é o meu sangue Tenho ódio de Deus digo virando a cara De Deus ou dessa música Dessa música Tenho ódio dessa música ódio ódio Lorena também tem mania Uns negros berrando o dia inteiro um berreiro desgraçado Tenho ódio de negro Mas Doutor Algodãozinho era branco Olho azul o sacana Esse era o apelido mas e o nome Doutor Hachibe disse que a gente expulsa tudo que foi ruim e se for assim esse maldito nome não vou lembrar nunca Mas lembro o apelido Que é que adianta apagar o nome se ficou o roqueroque das ratazanas gordas lá da construção dia e noite roqueroque no escuro Mas esses futos não deixam a gente formir gritava o Téo que era desdentado e trocava as letras pelo f Mas dormia A mãe também dormia Até que dormia bem aquela lá Mas eu ficava acordada pensando roqueroque A sala de espera com a negra de lenço amarrado na cara inchada A cestinha de flores artificiais cobertas de poeira A negra e eu éramos as clientes mais assíduas com nosso cheiro de Cera Doutor Lustosa quando doía demais a gente tirava o algodãozinho e enchia o buraco com a cera que espalhava na boca inteira aquele cheiro que era cheiro do céu Dona Inês falava tanto em céu céu Só experimentei no instante em que o nervo deixou de me fisgar e dormiu completamente encerado Então eu dormi junto O cheiro dessa cera misturado ao cheiro de creolina são os dois cheiros fortes que me empurram até a infância a cera queimando no dente e a creolina que vinha da lata branca onde o Doutor Algodãozinho ia jogando os algodões usados Outro cheiro que ficou fazendo parte dos cheiros é o de mijo Mijo mesmo e não pipi ouviu Lorena Cheiro de pipi até que fica perfumado quando é dito por você que abotoa a boquinha perfumada com pastilhas de hortelã SenSen Refresca tanto o hálito ela me disse com o hálito refrescado Masco meu chiclé para disfarçar o meu chiclé é mais forte mais fácil ah sim eu sei que não é fino O fino é o SenSen Não é por acaso que você tem sempre alguns sutilmente se diluindo na boca Então o pipi fica cheirando a SenSen mas aquele da construção era cheiro de mijo Outro que devia usar essas pastilhinhas era o Doutor Algodãozinho que cheirava a cerveja choca Até hoje não posso nem ver cerveja porque ele me atendia depois do jantar hora dos clientes mais miseráveis e no jantar naturalmente emborcava sua meia garrafinha Filhodaputa Queria botar a broca no dente dele zzzzzz e varar o dente assim bem no fundo zzzzzzzzzzzz e varar a carne e varar o osso zzzzzzzzzzzzzzzz Me abraça Coelha estou com frio me abraça depressa que de repente ficou o Pólo Norte com urso e tudo não quero o abraço dele quero o seu Coelha que gostoso ficar assim com você bem queridinha tenho vontade de chorar de tão bom Ouça essa música ouça Então ele disse que precisava arrancar os quatro dentinhos da frente porque estavam perdidos que é que adiantava ficar com aqueles dentinhos perdidos Comecei a chorar e ele me consolava alisando o guardanapo que prendeu no meu pescoço com a correntinha o melhor era botar ali uma ponte que ninguém ia notar porque ia fazer uma ponte na perfeição como fez a ponte de minha mãe e ia fazer a do Téo Enxuguei as lágrimas no guardanapo sentindo na nuca o frio da correntinha que me beliscava a pele não era uma correntinha igual a sua Max Ou igual a de Lorena com seu coraçãozinho de ouro Aquela era escura e prendia um guardanapo que tinha uma mancha de sangue numa das pontas O sangue endurecido O fecho machucava meu pescoço principalmente depois que ele começou a alisar o guardanapo com mais força enquanto repetia a beleza que a ponte ia ficar Mais perto o cheiro de cerveja e mais perto o olhinho azul como conta por detrás do vidro sujo dos óculos A mão gelada e fala quente mais rápida mais rápida a ponte A ponte Fechei a boca mas ficou aberta a memória do olfato A memória tem um olfato memorável Minha infância é inteira feita de cheiros O cheiro frio do cimento da construção mais o cheiro de enterro morno daquela floricultura onde trabalhei enfiando arame no rabo das flores até chegar à corola porque as flores quebradas tinham que ficar de cabeça levantada na cesta ou na coroa O vômito das bebedeiras daqueles homens e o suor e as privadas mais o cheiro do Doutor Algodãozinho Somados pomba Aprendi milhões com esses cheiros mais a raiva tanta raiva tudo era difícil só ela fácil Cabecinha de enfeite Comigo vai ser diferente Diferente repetia com os ratos que roqueroque roíam meu sono naquela construção embaratada diferente diferente repeti enquanto a mão arrebentava o botão da minha blusa Onde será que foi parar meu botão eu disse e de repente ficou tão importante aquele botão que saltou quando a mão procurava mais embaixo por que os seios já não interessavam mais Por que os seios já não interessavam mais por quê O botão eu repeti cravando as unhas no plástico da cadeira e fechando os olhos pra não ver o cilindro de luz fria do teto piscando numa das extremidades e o botão Não não é o botão que eu quero é a ponte a ponte A ponte me levaria pra longe da minha mãe e dos homens baratas tijolos longe longe Posso rir de novo e me emprego de dia e estudo num curso noturno fico manicure porque de repente vinha um homem e se apaixonava por mim enquanto eu fazia as unhas dele As unhas arrebentando o elástico da minha calça e arrebentando a calça e enfiando o dedo de barataaranha pelos buracos todos que ia encontrando tinha tantos lá na construção lembra As baratas cascudas eram pretas e se agachavam como a gente se agacha pra passar pelo vão Inteligentes essas baratas mas eu era mais inteligente ainda e como conhecia seus truques foi fácil agarrar a mãe delas pelas asas e abrir a panela e jogar ela lá dentro Tome agora sua sopa com a baratona eu disse chorando de medo enquanto ele sacudia minha mãe pelos cabelos e ia me sacudir também bêbado de não poder parar de pé Estou com fome gritava quebrando minha mãe e os móveis porque o imitar não estava pronto e o que aquelas vagabundas de mãe e Filha estavam pensando da vida Lugar de puta é na rua ele gritava É na rua e não no quarto que o engenheiro tinha dado só pra ele A barata abriu as asas e começou a nadar firme em cima do fubá com a folha de couve A sopa soltava bolhas de tão quente e até hoje não sei mesmo como ela conseguiu nadar o nado de peito num estilo tão olímpico vupt vupt vupt e já ia saindo da panela com as asas pingando gordura quando a empurrei de novo pro fundo Agarrouse na colher e ainda uma vez voltou à tona e juntou as patas e pedi pelo amor de Deus que não não Por que está gritando assim minha menininha Não grita que não pode estar doendo tanto só mais um pouquinho de paciência quieta Quieta A sopa está pronta gritei e o motor da broca ligado pra disfarçar o grito porque a preta do lenço já batia na porta nem vi a cara mas adivinhei que era ela Pronto Pronto pensei chorando de alegria Agora vai me soltar porque a preta conhecia a mulher dele e ele tinha medo da mulher Vai me soltar porque a sopa está pronta com a baratona inchada debaixo da folha de couve Mas ele arrumou o cabelo na testa e abrindo a porta falou muito calmo que não podia atender porque o tratamento da menina era demais demorado e ainda por cima dolorido ela não tinha escutado um grito Viesse de manhã que hoje não podia mesmo atender Compreendia ah sim compreendia muito bem o quanto ela estava sofrendo porque essa infecção dói pra cachorro mas hoje era impossível Levasse alguns comprimidos olha aqui leva este punhado de presente e tome dois agora Se a dor continuar mais dois e depois mais dois e assim por diante Ouvi o fecho da bolsa se abrindo pra guardar o punhado de envelopes que ele tirou do armário de vidro Ouvi o passo dela ir se afastando O portão se abrindo Quis ouvir seu andar na rua e só ouvi o passo dele por detrás da cadeira Usava sapatos de borracha e a borracha grudava e estalava no oleado do chão como se tivesse cola Baixou a cadeira A correntinha que prendia o guardanapo me beliscou o pescoço A mancha de sangue endurecido numa das pontas do guardanapo Quietinha Quietinha ele foi repetindo como fazia durante o tratamento Você vai ganhar uma ponte Não quer ganhar a ponte Depressa Max quero beber pediu ela fechando as mãos Onde está seu copo Ahn Mas que é isso não precisa chorar por que você está chorando Não chora amor senão choro junto Ela enxugou a cara no lençol Abraçouo e rolaram enlaçados como um só corpo por entre as cobertas O copo rolou e tombou quase silencioso no tapete Uma depressão disse ela descolandose dele Apoiouse nos cotovelos para beber E o Doutor Hachibe Sacana Não era oriehnid que ele queria Era dinheiro mesmo Bastardo Análise de grupo Imagine se vou me abrir com esses piolhentos pensou enrolando no dedo um anel de cabelo Ou se queixam o tempo todo das trepadas ou curtem aquelas dúvidas fico veado Não fico Ora danese Quem é que está se importando Encolheuse Fechou as mãos e escondeuas no peito Muito fácil atribuir tudo à infância tinha ombros largos essa daí Que merda o Doutor Batista ter viajado e aparecer aquele doido de pedra pior do que eu Como se chamava aquele feto Cara de feto Nome comprido mas perna curta A perna e o resto Porcaria de homem Piorei com ele pomba Sujeito mais doido Não cobrava mas como podia cobrar perguntou ela massageando a própria nuca Me tratei depois com um velho podre de velho que falava o tempo todo na mulher que estava com câncer e ia morrer E eu com isso Ia lá pra relaxar um pouco e ficava ouvindo a história do velho apaixonado pela mulher que ia morrer de câncer Tinha pena mas também ficava puta da vida porque cobrar isso ele cobrava Infância Na realidade tudo se simplifica quando se descobre lá longe uma tia querendo enfiar o dedo no olho da gente Em mim enfiaram em outro lugar mas não me manquei sozinha Então Ficaram todos no subsolo Só eu Deitouse de bruços Estava tomando coisas certo Mas quem podia se agüentar de pé sem viagem e sem analista Quem perguntou olhando fixamente o travesseiro Aquelas flores lá de cabo quebrado Elas não precisavam de morrer Então Duro sustentar Vergando de chateação Mas no ano que vem meu boneco vida nova Está me ouvindo amor Vida Nova Com dinheiro e casada não precisaria mais de nenhuma ajuda Nenhum problema mais à vista Livre Destrancaria a matrícula faria um curso brilhante Os livros que teria que ler As descobertas sobre si mesma Sobre os outros Mesmo essas coisas que a gente Me enriqueci com a experiência não enriqueci Intelectual burguesa Podre de chique E aquela terrorista subdesenvolvida ainda Papo furado minha boneca Liberdade é segurança Se me sinto segura sou livre Bebeu no copo de Max que dormia com uma expressão afável a mão erguida num gesto de quem convidava algum visitante para se aproximar Com um saco de ouro se curaria fácil Ou não E mesmo que curtisse uma ou outra crise que importância tinha se era dentro de um Jaguar O duro era se desbundar num ônibus E Lorena dizendo que era uma escritora menor a francesa que escreveu isso Mas por que menor Menor nada Não pode ser menor quem descobre uma coisa dessas pomba Nenhuma originalidade Concordo Mas é como a história do ovo que ninguém conseguiu botar de pé muito fácil muito fácil mas ninguém pensou só depois que o Galileu Foi Galileu Sacudiu o companheiro Responde Max Não é melhor curtir num carro de luxo do que num ônibus via marginal Os marginais dentro matando a gente a coronhadas Então Em dezembro me costuro e em janeiro Valdo faz o vestido Quero branco Estilo medieval Pérolas um fio de pérolas brancas Enormes Max que horas são Seu relógio Onde está seu relógio Comprei um suíço que tem até cineminha Aperto um botão e sai o horóscopo aperto outro e sai o aviso do banco e do dia em que vou ser corneado bacana ahn Que relógio As viagens Coelha O botão vermelho é dose de cinco horas o azul dá uma viagem de um dia com direito a baldeação desço e continuo noutro trem E o botão preto ai esse botãozinho Que medo A piruleta branca já vem de tarja preta no braço vem de luto a marota disse e riu se sacudindo frouxamente Pra quem você vendeu responde Max Pro vovozinho Doulhe murros no peito mas ele me morde o pescoço O pescoço não quero pedir mas estou rindo tanto que não consigo falar a única coisa que posso fazer é tapar sua boca e ele me morde a mão A mão pode não pode é o pescoço que o pescoço o escamoso vê na hora que mancha é essa Pergunta tudo quer saber tudo enquanto vai comendo a casquinha do pão nojento assim pelado Janto com a Nona e depois a gente pode cear no Zuza Como se eu fosse vibrar com a idéia Levar a noiva num inferninho desses Por que não me convidou pra jantar com a Nona por quê Bastardo Sempre me esfregando a família na cara Não tenho família eu disse Morreram todos num desastre de aviação Vôo internacional Voltavam da Escócia onde foram passar o Natal com meus tios Ah seus tios moram na Escócia Moravam Morreram todos quando aquele monstro do lago se levantou uma noite e engoliu meus tios e primos com casa e tudo Monstro escocês a Loreninha sabe o nome dele ela sabe tudo sobre esses monstros Podre de chique ser engolido por um monstro ao lago escocês Não sobrou ninguém ninguém ninguém repito e bebo no copo que Max me estendeu Bebo até o fim Até o amargo fim não foi uma fita Onde vi esse nome Queria comprar uma ilha Coelha Sabe que não é difícil comprar uma ilha Ahn Tem ilha por aí de dar com o pau E ele com essa família de encher um navio Danese Danese que o colete está se derretendo tinha um puto de um colete aqui me fechando o peito Posso agora respirar viver É bom viver pomba Quem foi que disse que Sou linda brilhante vou sair em dez capas Revistas importantérrimas Sucesso Deixa os piolhentos morrerem de inveja A nhem nhem tem razão é preciso respirar o tempo todo e então seria ótimo Podia me convidar o bastardo A Nona com seu chinelinho de pelúcia Os netos doidos pra esnobar e ela Podia me convidar Não sou a noiva dele Não tem importância o ano novo está perto Stop Miolo de libélulas ao molho verde ahn Restaurante fabuloso aquele Molho de luz de vagalume acendendo e apagando Tium Tium Ahn Viro maratona romana Respeito quero respeito É o que madre Alix não compreende Uma santa Faço tudo o que a senhora mandar minha santa Avó e santa Bastante leite está certo bastante leite e aquele remédio e bato no peito nunca mais nunca mais Amanhã a gente vê isso Se a senhora me ama Os santos são transparentes que nem água Tinha uma porção de agüinhas coloridas lá nos tubinhos de vidro Lá no laboratório de química Eu limpava e vinha o judeu velhinho que gostava de mim e me dava o avental para vestir e deixava eu lidar com as agüinhas Me explicava as coisas das cores azul vermelho verde As agüinhas mudavam de cor O cheiro Tenho aqui o cheiro mas esse era um cheiro que eu gostava porque não tinha nada a ver com gente Os vidrinhos mudando de cor que nem nós Olha amor bebo e viro arcoíris azul amarelo ai não me pega senão derramo Eu sabia a música como era Me ensinou a dançar A Madame Lamas A mamãe queria que a gente dançasse porque mais isso e mais aquilo Madame Lamas isso mesmo minha irmãzinha e eu aprendemos tudo Divertido ahn O dia inteiro tinha festinhas uma porrada de meninas e festinhas Dançava feito louco a Madame Lamas me ensinava a Madame Lamas Boas maneiras ih que garotão você precisava ver Te amo amor Posso urrar de gozo mas não Não tem importância deixa Eu vi numa vitrina de cristal sobre um soberbo pedestal Como é mesmo esse troço Paixão por esse troço fico histérico olha aí vai canta numa vitrina de cristal Uma boneca encantadora Não compreende porque é santa Na realidade fico limpa com ele aqui Limpa de todas aquelas coisas limpa limpa Está vendo que feliz que eu estou Nem quando fazia aquela análise lá com o turco como era o nome dele Não tem importância Mentia tudo Bem feito Boa noite que a gente fala a verdade Fala nada Histórias sujas de dentes podres não quero não quero Você é lindo amor O homem mais bonito que já vi Eu sou belo disse ele apoiandose na cômoda Vacilou Essa música está ouvindo Um anjo tocando não posso ouvir que começo a chorar feito uma besta meu olho já está aguado Você é igual ao David de Michelangelo Onde você viu o David de Michelangelo Ahn Onde perguntou ele rindo Apanhou a garrafa no chão Onde onde Minha amiga seu besta Tem um pôster dele deste tamanho a Loreninha Ela conhece a Europa inteira não é só você viu Besta fila é riquíssima Você foi rico Não é mais chega Não interessa Acho que é Milão O irmão dela o diplomata Acho que é lá Ele sacudiu o uísque com gelo Bebeu e enxugou a barbicha na mão A gente vai viajar ahn Ih Coelha a gente vai ganhar dinheiro de dar com o pau está bem assim Mamãe tinha paixão por viagem quanto navio Até no hotel a gente lia aqueles livros sabe aqueles livros com mapa Ahn Uma porrada de mapas Minha irmãzinha lá naquele colégio e então todo dia a gente viajava aquela coisa de visita Sentou se na cama Sorriu Eu colecionava postais A Lorena coleciona sinos Nhemnhem nhemnhem Sininhos Mas meu piupiu é maior do que o dele De quem Maior do que o piupiu de quem Do David Não é da estátua que você Ahn Ano que vem meu amor Você já foi rico viu tudo E eu Aí é que está Fico virgem pomba Caso com o escamoso destranco a matrícula e faço meu curso Brilhante Nas férias viajo pra comprar coisas ele já disse que adora viajar aquele Ah que coincidência porque eu também Operação fácil Loreninha me empresa Vai comigo Generosa a Lena Então Sempre me tira das trancadas E se eu estiver Não não Seria azar demais ih falei a palavra a gente não pode falar essa merda de palavra só no avesso que pode a Lena disse que no avesso da sorte Começando pelo fim como fica isso Espera calma tem o r tem o a E a outra Aquela outra Ah não interessa chega Grávida nada Estou é lúcida roque roque Cabeça podre de lúcida Bebo e não acontece nada Nada Essa música de pé frio Ele estendeu a mão para a pilha de disco que pendeu perigosamente alguns resvalando mansos para o chão Um quarteto de cordas Verdadeiros anjos ahn Quer este Coelha Vou botar este fabuloso Uma Certa Simpatia Pelo Diabo ahn Berreiro desgraçado Ora música de agressão Estou cheia de agressão que pra meu gosto já fui demais Agora quero agrados presentes Um dia compro um caminhão só de presentes tudo bobagem esbordoar o dinheiro só com bobagem quero ficar boba Uma louca aquela lá com as reivindicações E vem ainda com Deve me achar uma puta E daí Me forro de dinheiro faço meus cursos compro um laboratório que nem aquele As agüinhas escorrendo e eu verde amarela azul ah vou me tingindo num mar Um mar amor Vou boiando e as línguas verdes dos peixes me lambendo os pés Fico rindo porque as línguas verdes vão me lambendo as pernas não grito me cobrindo porque a língua maior lambe meu ventre e me penetra tão quente ah amor Te amo Podre de feliz que nem Podemos morar num troço assim besta como a Irlanda Por que a Irlanda A Irlanda também não sei ficou a Irlanda Ahn Vai entrar dinheiro Ela abriu os olhos e foi se voltando para o jovem Ele fumava e sorria vagamente Que horas são Que horas são Max A gente não veio pra se aporrinhar Jogar tudo fabuloso Uma ilha Ela tiroulhe o cigarro da boca e ficou fumando O mais curto ficaria chiquérrimo com a calça de veludo Podia pagar em cinco vezes Dez Bastardo Bicha Não perdoava porque era bonita e tinha seios aplaca esse peito aplaca esse peito ele berrou na prova e toda gente se torceu de rir Ódio era ódio porque queria ter e não tinha Não interessa O escamoso me dá um navio de casacos Três fábricas Vai querer E daí Me atocho de óleo Johnson e ele vai achar que não tem na cama Posso também desfilar pro Marcil e ele me da o terninho preto ou O Brando vai endoidar mas digo então me de o casaco Depressa Coelha Me da sua boca Dou a boca dou tudo Mas tensa roqueroque E se estiver Lena me paga a plástica mas não tem um saco de ouro tem Preciso de oriehnid oriehnid oriehnid A Madre disse que paga Tirar dinheiro de uma santa e dar pro turco ora análise de grupo Besouragens No ano que vem recomeço E posso pagar uma individual sim senhor Pensando que queria me deitar Turco pretensioso Sou casado e feliz no casamento Minha mulher é uma gueixa Gueixa gueixa Vai ver é corneado as vinte e quatro horas Bem feito Também não ia adiantar porque a gente perde o respeito como aconteceu com aquele besta Mais louco do que eu aquele lá Podia me ajudar Analista marca merda Até filho Vai ver estou de novo É justo isso da gente não sentir prazer nenhum e ainda por cima Que dia é hoje Vinte e seis Vinte e sete vinte e oito vinte e nove Este mês tem trinta e um Max este mês tem trinta e um Vem Coelha Quero sua boca Abro os braços Ele desaba no meu peito Te amo sim E então Ficar rica Ficar rica Você já foi a nhemnhem já foi Quero experimentar não posso Lena disse que empresta é boazinha a Lena Generosa Se ofereceu para ir comigo e segurar minha mão Quer virgem o escamoso Já andou com tudo quanto é vagabunda mas na hora Bastardo Está certo Se você faz mesmo questão eu sou a própria E se pedir o oriehnid pra ele Por que não Noiva não tem intimidade pra pedir dinheiro ao noivo Digo que é pra uma operação urgente e ele vai perguntar que operação é essa não tem no mundo um cara que faça mais perguntas Vai perguntar e digo que vou operar as amídalas minhas amídalas estão podres meu apêndice está podre ah que depressão E esse aí que não resolve Estou com frio Max me cubra Me cubra amor disse ela Debateuse fracamente sob o corpo do jovem Um frio Ele apalpou por entre as cobertas até encontrar a manta de lã Puxoua cobrindose até a cabeça As pontas da franja chegavam aos ombros de Ana Clara Fechou a abertura da barraca vacilando em corcoveios que se aceleraram até uma arremetida mais aguda Imobilizouse no alto e baixou em convulsões até se desmantelar em pregas rasas Veio de dentro um estertor fragmentado quase um choro Coelha Coelha Eu te amo Ela afastou as franjas da coberta e voltou a face para a parede Ficou enrolando no dedo um anel de cabelo Tão bom amor Vamos casar Coelha Vamos casar Quero casar imediatamente ahn Vamos Gostoso casar vamos Coelha Vamos Vamos Ele beijou repetidas vezes a boca de Ana Clara ajeitoulhe meigamente o cabelo em desordem e rolou sobre seu corpo como se rolasse sobre uma duna de areia Estendeuse de bruços a cara afundada no travesseiro Deixou pender o braço para fora A mão tocou no tapete pesquisando com a cautela de uma aranha os dos dedos cegos esticados num movimento de antenas Contornou o cinzeiro onde um toco queimava retraiuse e numa queda inspirada caiu certeiro sobre o copo Sacudiuse esfregando a cara na fronha Bebeu O uísque escorreulhe pelo pescoço Ih Coelha me molhei todo me enxuga depressa que me molhei Molhada estou eu Que horas são Só relógio Parece a Mademoiselle Germaine atrás da gente com o reloginho de ouro hora disto hora daquilo Maximiliano tu es en retard Tu es en retard Você se deitou com ela Era nossa governante Coelha E daí Ela era pavorosa só osso e sarda com aquele cabelo em pé sempre esvoaçando olha tudo assim fez ele abrindo as mãos em leque no alto da cabeça O andarzinho igual ao relógio tiquetaque tiquetaque O cabelo era assim olha Ana Clara tinha o olhar fixo no teto Alisava o ventre Já vi já vi A governante de Lorena era inglesa Nhemnhem nhemnhem Disse que chegou a escrever melhor em inglês porque a governante que morava na fazenda Parece um inseto Acabou não acabou Aí é que está Não acabou Não tem mais fazenda nem governante nem nada Acabou Do resto do oriehnid o moço da mãezinha se incumbe Bem feito Dinheiro de dar com o pau Descobri uma coisa é fácil ou ter muito dinheiro ou não ter nada ahn Não é fabuloso Huuuupi Quando bota aqueles óculos fica um inseto de óculos E nem precisa deles enjoamento Nnhemnhem nhemnhem Você se lembra dela Responde Max você se lembra Aquela bem magrinha As duas têm inveja de mim porque sou bonita elegante Capa de revista Então A nhemnhem compra milhares de vestidos a mãe manda malas de roupas E daí Não veste nenhum anda só com aquelas calças e blusinhas de nnhemnhem Fala assim fininho nhemnhemnhem O irmão é diplomata Manda milhares de coisas Adianta Pomba se eu tivesse a metade daquele guardaroupa Chiquérrimo É a comunista Você está trocando tudo comunista é a gorda bossa retirante Essa é a magrinha aquela meio cabeçuda Sobre o inseto Você está triste Coelha Fica contente amor fica contente Eu queria tanto que as pessoas todas fossem mais contentes é tão bom ficar contente A gente vê na rua todo mundo tão triste por que as pessoas estão tristes Ahn Queria tanto sair por aí alegrando as pessoas olha não fique triste segura minha mão e vem comigo que te mostro o jardim da alegria com Deus lá dentro vem Acho que estou grávida está me ouvindo Grávida Ahn Ela encostou a boca no ouvido dele Grávida grávida grávida Ele arqueou as sobrancelhas inocentes Metade do uísque que tinha no copo escorreulhe pelo peito Pousou o copo no chão e inclinouse sobre ela Procuroulhe as mãos debaixo do lençol Estavam fortemente fechadas Abriuas devagar e beijou a palma de uma mão Beijou a outra Vamos ter esse filho Coelha Vamos deixar ele nascer vamos ficar bem alegres e ele nasce alegre Alegríssimo Podiam ser gêmeos Isso mesmo gêmeos A gente cria eles naquele carrinho duplo ahn Os dois passeando no carrinho duplo a gente chama Mademoiselle e ela vem correndo tiquetaque tiquetaque et alors mon petit choux Se for menina vai se chamar Mecânica Celeste não é lindo Meu professor de Mecânica Celeste era Onde foi que aprendi isso Aprendi uma porrada de coisas mas agora esqueci tiquetaque tiquetaque Et alors Ana Clara sentouse na cama enlaçou as pernas e encostou o queixo nos joelhos Os olhos verdes se apertaram em meio do aro sombrio Voltouse bruscamente para o jovem que tentava acender o cigarro Sacudiuo Os palitos da caixa espalharamse no peito dele Você tinha que ficar assim duro Tinha Agora preciso casar com outro seu besta Quero oriehnid sabe o que é oriehnid A Lorena disse que falar ao contrário dá sorte Agora tenho que E ainda lúcida Estou lúcida feito uma cachorra acho que você me deu aspirina Por que não me dá essa medalhinha aí do seu pescoço Nosso filho vai querer essa medalhinha você dá Mamãe não deixava tirar só na hora de dormir tinha aí uma história de um nenê que morreu enforcado na correntinha A Ducha ganhou uma igual Sua irmã que endoidou Essa Ele esfregou a cara no travesseiro Gemeu Não fale assim da minha irmãzinha não quero Mas ela não está internada pomba Então Você mesmo disse Minha Ducha minha Duchinha Tão queridinha tão florzinha Mas ela não está desmemoriada Max Você disse Max você disse Isso é falar mal O pai da Lorena também perdeu a memória morreu no sanatório sem lembrar de mais nada a última vez que ela foi ele perguntou quem é essa mocinha Isso é falar mal Ele sacudiu a cabeça e virouse de bruços a cara afundada no travesseiro os ombros sacudidos por um soluço seco Tapou os ouvidos Não quero não quero soluçou e riu em seguida Voltou a face para o teto e riu por entre as lágrimas que começaram a correr Um dia a gente foi no zoológico ui que bicho aquele bicho que tem aquele chifre aqui ahn Ela é loura que nem você É loura responda Max eu quero saber como ela é responda A sua irmãzinha Mansamente ele foi estendendo o braço na direção da vitrola A mão foi se abrindo em ritmo de câmara lenta o dedo estendido para tocar em alguma coisa mas sem muito empenho à espera de que essa coisa viesse ao seu encontro O tapete Que tapete Estou falando da sua irmã sua irmã Então Ê assim loura Só dormia com a luz acesa tinha medo de sonhar feio Reza Duchinha reza que essa noite você vai sonhar bonito não quer sonhar bonito Reza comigo vamos me voici Seignew tout couvert de confusion et pénétré de douleur douleur ahn ahn ahn ahn ahn ahn davoir offensé un Dieu si bon si aimable et si digne dêtre aimé Foi a Mademoiselle que ensinou essa reza Responda Responda senão jogo essa água na sua cabeça ameaçou ela agarrando o balde de gelo Vamos acorda Responda Ele tentou se proteger com as mãos fazendo espirrar a água que lhe inundou a cara Debateuse rindo Duas pedrinhas de gelo deslizaram do balde para o seu peito Campeão olha aí campeão gritou num movimento desordenado de braçadas Cronometra Shimoto Japonês safado cronometra direito Você está roubando na contagem já dei tudo vigia aí mamãe Estou quase desmaiando estou na estafa safado Vigia mamãe estou chegando Ela enxugoulhe o peito a cara Deixou cair o cigarro molhado dentro do copo e acendeu outro Você ganhou Max Ele fechou os olhos Riu e cantarolou estendendo a mão Eu vi numa vitrina de cristal Sobre um soberbo Queria ser um puto dum cantor Enfim eu vi nessa boneca uma perfeita Vênus Um ídolo Se você nadar como está nadando no prazo de um ano pode Impressionante era meu colega A fumaça movediça se enovelava compacta em redor do abajur encasulando a luz que incidia sobre a cama apaziguada Ele estendeu a mão repetindo o convite para um vago alguém se aproximar A música do saxofone se integrara ao quarto como os dois corpos azuis de fumaça O tapete da mamãe O último que ela fez era verde com umas coisas assim tudo assim Eu deitava nele Musgo Era bonita Sua mãe Conta Max ela era bonita Ele fez um gesto evasivo e começou a chorar baixinho Assoouse no lençol Riu Bobi vinha correndo lá lá de longe e tibum na piscina Caía em cima de mim latindo feito louco queria me salvar todos os dias queria me salvar e salvar a Duchinha não tem ninguém se afogando seu tonto Shimoto prenda o Bobi que não posso treinar cachorro mais louco Arrastandose penosamente ela debruçouse sobre o corpo dele e apanhou a garrafa no chão Sacudiu o copo até a ponta de cigarro se descolar do fundo No tapete uma pedra de gelo derretia solitária como uma ilha em meio da poça dágua Colheu a pedra deixoua cair no copo e voltou ao seu lugar recuando de rastros como avançara Com você foi tudo alegre Rico Mas quando pomba Quero só o presente entrando no futuromaisqueperfeito existe futuromaisque perfeito Se pudesse lavar por dentro minha cabeça Com escova Esfregar esfregar até sair sangue Derrubaram a casa Derrubaram tudo Ducha disse que não sobrou nada só a árvore construíram um puto de edifício no lugar Mas também a árvore eles iam murmurou e recomeçou a chorar convulsivamente abraçado ao travesseiro A jabuticabeira Nunca fez mal pra ninguém só dava jabuticaba por quê Era nossa amiguinha só dava jabuticaba Fugiu do sanatório e foi correndo pra casa já tudo derrubado aquela tijolada no chão as portas As portas estavam encostadas num muro reconheci a porta do meu quarto As portas ali ainda de pé com as fechaduras Os trincos soluçou estendendo a mão como se fosse abrir o mais próximo Ela se agarrou no tronco e ficou gritando gritando eu também queria gritar junto quando vi ela gritando abraçada na nossa árvore que ia ser derrubada não gritei porque senão também me internavam internam tudo a gente não pode Não grita Ducha não grita Duchinha e eu queria gritar porque era uma coisa horrível ver tudo assim no meio dos tijolos E minha porta Não grita eu disse te dou todas olha esta grande pega é sua Pega Ducha este galho está preto pega Ele me estende as mãos vaziascheias as jabuticabas rolando em cima de nós olha que monte esconde esconde gritou e nos escondemos debaixo do lençol Beijo sua boca brilhante de sumo que escorre doce Max me dá sua infância Ele me dá sua língua Escorrego e fujo não é isso Queria A cabeça roqueroque Aquela massagem na nuca acalma tanto a Loreninha sabe Faz Max começa aqui aquela massagem Mais forte amor Queria saber as horas Digo que me atrasei Vai perguntar perguntinhas Anão pretensioso Aquele anão pretensioso Bastardo Um cara aí Conta Max O chinezinho sentado no pufe fazia que sim com a cabeça que sim que sim Eu tinha que subir no banco pra poder alcançar ele a Isabel gosta de mim chinezinho E botava o dedo na cabeça que fazia sim sim sim E sempre rindo sim sim sim Vou passar de ano chinezinho Sim sim sim ih que safado não minta senão te quebro responde direito Sim sim sim ria com aquela cabecinha de gorro preto Mamães vai sarar Vai Sim sim Mais forte amor Aí perto desse ossinho Não fica triste que eu te dou uma casa com porta jabuticabeira te dou deixa Vou ter dinheiro e reparto tudo milhares de jabuticabeiras ninguém mais vai derrubar viu Aí mais forte aí Digo que fui atropelada pomba Só o choque Esse sax Coelha Está ouvindo Uon uon uon uon Fabuloso Dane se esse saxofone E as jóias da família Um saco de jóias mas com quem ficou tudo isso Doidinha mas esperta E as jóias Os dentes perfeitos beleza de dentes Tradição de bom leite Frutas Loreninha bebia leite de cabra Eu bebia leite como um bezerrinho Ficou insetoanão mas os dentes Acredito Não deve ter bebido outra coisa Este também mamou na cabra Conta Max Conversa comigo conversa O pãozinho já está pelado Digo que fui com Loreninha por isso me atrasei Lá naquele lugar Não tem importância agora dorme Em janeiro meu boneco Agora dorme Seria capaz três Calar assim é fácil mas se um dia eu for provada Que isso não aconteça porque não resisto um pouco que me apertem o dedinho e já vou falando Sou da família dos delicados Dos sensitivos Prima da lagartixa estatelada na vidraça através da carne podia ver entalada na garganta a sombra da asa da mariposa que ela acabara de engolir Lião sabe que não pode contar comigo é lógico mas se me convidasse eu iria correndo na ponta dos cascos Bank of Boston Acho demais roubar um banco com esse nome Vestia o terninho da marinha americana com divisa e tudo Lião não pode nem ver essas divisas mas um detalhe desses não daria ao cenário um toque todo especial Notícia até no Time o banco não é de Boston Queria dizer ao menos isto é um assalto O tiroteio o chato é o tiroteio Morte E morte em violência Rômulo com o furo no peito borbulhando sangue um furo tão pequeno que se mãezinha tapasse com um dedo hein mãezinha Foi sem querer como Remo podia adivinhar que Diabo escondera a bala no cano da espingarda Uma espingarda quase maior do que ele Até hoje não sei como conseguiu correr com ela não sei Não chora meu irmãozinho não chora ninguém é culpado ninguém Papai tirou as balas todas não tirou Mas tem uma que o Diabo Remo querido passou tudo Passou Mas às vezes está vendo preciso lembrar Você montado em burro bravo pinoteando desgrenhado O olho intenso Você caçando mosca para jogar no suco de laranja de Rômulo Escondendo a mariposa na minha cama Diplomata Remo A voz bem impostada Os gestos A expressão sutil a palavra é mesmo esta não tem outra para a expressão oficial de Remo sutil Em festas de reis e rainhas do lado direito Ou esquerdo Os protocolos Mas como uma pessoa pode mudar tanto Rômulo e eu éramos os delicados lembra As pessoas tomavam tanto cuidado Como aquela plantinha DormeMaria DormeMaria a gente ordenava e antes mesmo de tocar nas folhinhas elas se fechavam como olhos DormeMaria Nasci num tempo de tamanha violência Orfeu chegou a comover as feras com sua lira e eu não consegui comover nem o Astronauta Enfim um gato é um gato mas como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio de amor ao mundo mas sem entrar nele é lógico Ficar de fora mantenha distância diz aquele ônibus bufando tanto pelo traseiro que não fico atrás nem um minuto Detesto guiar entrar nas engrenagens Nas besouragens diz a Aninha Enredos Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante as pessoas tão inofensivas na rotina Comem e não vejo o que comem Falam e não ouço o que dizem harmonia total sem barulho e sem braveza Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores Vozes Um pouco mais e já nem é espectador vira testemunha Se abre o bico para dizer boa noite passa de testemunha para participante E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janelaguilhotina fechou rápida Eram laços frouxos Viraram tentáculos Ah que alegria quando fico aqui sozinha Sozinha Como chupar escondida um cacho de uvas E a máquina do mundo repelida se foi miudamente recompondo ah preciso decorar isso CDA Minha poesia Minha música Às vezes os amigos podiam ser menos vezes ai meu Pai A presençaausência de MN Dos meus mortos Rômulo meu irmão Paizinho A lembrança de veludo de Astronauta Uvas deve ter ainda um cacho na geladeira eu não disse Rosadas Fico lavando minhas uvas mãezinha mandou uma caixa enorme Distribuí tudo Abandonei minha filhinha num pensionato de freiras pobres num quarto de chofer em cima da garagem e fui viver com um homem que me apunhala pelas costas disse à tia Luci num dos seus dias de punição que começam na segunda e vão até domingo Número um imaginar Mieux manejando punhais coitadinho Deixame rir Usa no máximo aqueles palitinhos plásticos de espetar azeitona Número dois isto não é mais o quarto do chofer O nome da Neusa ficou sepultado sob o azulejo corderosa o encardidume das paredes do quarto com a obscenidade escrita a lápis vermelho ficou para sempre debaixo do papel amarelodourado virou concha Lá fora as coisas podem estar pretas mas aqui tudo é rosa e ouro É preciso ter um peito de ferro pra agüentar esta cidade diz a Lião que cruza esta cidade com sua alpargata azul Mas não entro na transa e nem quero Faculdade cinema um pouco de clube clube fechado uma ou outra lanchonete compras nas minhas lojas especialíssimas O oriehnid vem num envelope Dia de comprar livros e discos dia de Deus me visitar oi Lorena Às vezes o medo não da cidade tão remota para mim como seu povo mas um medo que nasce debaixo da minha cama Imagine se lesse jornais como a Lião ela lê milhares de jornais por dia recorta artigos Mas seu cabelo já de natureza eriçável também sobe como o pêlo do Astronauta quando via fantasma houve um tempo de fantasma neste quarteirão Os olhos crescem as unhas diminuem na roeção não sei explicar ela começa E passa duas horas explicando que é preciso tratar o corpo como a um cavalo que se recusa a pular o obstáculo a chicote O medo mora nas pupilas A pupila de Astronauta tão negra invadindo o verde tinta transbordante até as pálpebras As pupilas de Ana Clara também dilatadas mas por outros motivos coitadinha a droga excita a pupila com a mesma força do medo Duas rodas pretas Um brilho A mentira vem brilhante mente ah tanta mentira seguida Fecha as mãos e começa a mentir com tamanho fervor esmerouse nesse mentir gratuito sem o menor objetivo As freiras também têm medo Madre Alix é o equilíbrio Mas aquela hora em que fecha a porta A luz Pensionato Nossa Senhora do Medo E você pergunto a Jimi Hendrix gritando e já rouco de tanto gritar Tiro o disco Lião fica um tigre com essa música diz que é desfibrante Mas quem devo ouvir Wagner Não tenho Wagner querida Tenho leite Serve leite murmurou Lorena indo até a pequena geladeira embutida na parede Olhou apática a jarra branca sob a luz fria Mordeu uma maçã A espuma morna do leite no estábulo Cheiro morno de bosta e feno As maçãzinhas da horta eram ácidas mas tinham tanto sumo Remo subiu no galho mais alto e rasgou o jeans no joelho se sujava e se rasgava com a mesma fúria com que colhia os frutos Ou brincava de xerife e bandido era sempre o bandido carregando a espingarda grande demais Tão grande Estudar convidou abrindo na mesa a pilha de apostilas e livros que trouxe da estante Colocou em cima os óculos a caneta e a régua de plástico transparente Apertou os olhos e através do plástico leu as linhas enreguadas Isso já sabia E sabia o resto Sabia tudo Se acabasse a greve e os exames começassem no dia seguinte mesmo seria a glória A música absorve o caos e o ordena disse e ficou atenta Mozart Musicália Examinou meio distraidamente o livro que Lia devolvera com várias páginas marcadas de vermelho tinha o hábito péssimo de assinalar o que a interessava não só nos próprios livros mas também nos alheios Detevese no trecho indicado por uma cruz mais veemente A Pátria prende o homem com um vínculo sagrado É preciso amála como se ama a religião obedecerlhe como se obedece a Deus É preciso darmonos inteiramente a ela tudo lhe entregar votarlhe tudo É preciso amála gloriosa ou obscura próspera ou desgraçada Obedecer a Pátria como se obedece a Deus estranhou Lorena Por que Lia grifara isso Não acreditava em Deus acreditava E a Pátria para ela não era o povo Abriu as torneiras da banheira e sentouse na borda a mão brincando com a água Riu baixinho Lembravase de Lia chegando com as duas malonas estourando de coisas E O Capital debaixo do braço metido num papel de pão que mais mostrava do que escondia A mãe é morena da Bahia casada com holandês pensou assim que a viu Era baiana com alemão Herr Paul exnazista que virou Seu Pô um tranqüilo comerciante apaixonado por música e por Dona Dionísia para os íntimos Diú com aquele u comprido que não acabava mais Diúuuuuuu Deu Lião Loucura imagine um nazista de águia no peito entende vir parar em Salvador e lá então não sei explicar mas se apaixona pela moça Diú e a soma é Lia de Melo Schultz que faz seu necessaire e vem terminar o curso no Pensionato Nossa Senhora de Fátima Um pé baiano o outro berlinense Alpargata Conga Quando meu pai que é distraído à beça viu de perto o que era realmente o nazismo arrancou a farda e veio trotando por aí afora até Salvador Difícil dificílimo entender uma fuga dessas não houvesse o cinema Através do cinema Lorena já não vira tantos atores atravessarem o Mar Vermelho aberto como braços ah loucura total desse alemão vir lá do inferno velho sem a farda E provando ainda um total desprezo a qualquer preconceito ao entrar de cabeça erguida na honradamente nativa e beata família Melo em disponibilidade a caçula Dionísia sua criada Eh Lião Como herança do pai tinha o vigor germânico andejo capaz de fome inverno e tortura com travessia em rio coalhado de jacaré Mas as proporções gloriosas herdou da mãe proporções e cabeleira de sol negro desferindo raios por todos os lados que fivela que pente consegue prendêla O açúcar da voz quando está nostálgica também é herança baiana Compota de jaca Mas o senhor Karl firme debaixo do braço escondido e exposto camuflado e exibido que ninguém saiba que esta é minha Bíblia Teria ido até o fim O pé alemão solidamente racionalista mas e o pé brasileiro Já li disse Lorena apontando o livro Não parece mas sou muito inteligente se quiser troco em miúdo para você Ela então riu dentes de alemão fanático mas risada com som tropical Tentou enfeixar a cabeleira irradiante no elástico Que estourou todos eles estouram não há no mundo elástico que resista a tamanha explosão Padrão afro Tem mulher hino e mulher balada pensou Lorena tirando o pijama Sentouse na borda da banheira e percorreu com as pontas dos dedos a superfície da água Eu sou uma balada medieval E Ana Clara E Lia Que gênero de música eram elas A única forma de ajudálas seria oferecerlhes coisas que não tinham Apresentarlhes coisas que não conheciam O espanto de Lia quando chegou de sandálias franciscanas a sacola de juta dependurada no ombro só mais tarde comprou a de couro na feira Genial entende Genial repetiu examinando os objetos de toalete no banheiro Abriu o frasco de sais Cheirou B em meio do enlevo bateu no piso a cinza do cigarro Disfarçadamente enquanto esticava o piso felpudo Lorena apanhou o rolinho de cinza como se apanhasse uma borboleta Quer tomar um banho Essa banheira é tão repousante sugeriu quando ao se inclinar viu de mais perto seu pés nas sandálias Posso ela perguntou atirando a ponta de cigarro no trono Apertei a descarga e prepareilhe um banho caprichadíssimo Oferecilhe águadecolônia para uma frição no corpo calçava sandálias mas fazia frio O talco O pente limpíssimo Chá com biscoitos Como apoteose poesia leio bem poesia Quando levantei a cabeça ela cochilava na poltrona Mais tarde descobri que não gosta nem de poesia nem de música Ainda assim liguei o tocadiscos e deilhe os patrícios Bethânia Caetano E se não dei televisão é porque acho aquilo o fim Embora esteja pensando numa mas só para ver os filmes antigos E os longametragem de vampiros e monstros Na saída fez sua primeira ironia Nem respondi Ainda ponho uma placa na minha concha Perdão pela ordem pela limpeza perdão pelo requinte e pelo supérfluo mas aqui reside uma cidadã civilizada da mais civilizada cidade do Brasil Vão me perdoar Ana Clara dá uma resposta ambígua e pede oriehnid emprestado Lião não responde mas pede o carro Pode levar querida Perdão ainda se empresto um Corcel e não um jipe cada qual dá o que tem entende Mergulho na banheira toda dourada de sais dourados O susto de Lião quando mergulhou e a água começou a transbordar de todos os lados eh Lião Eu tinha calculado um banho com a minha medida dágua Ela pedia desculpas pelo estrago enquanto eu salvava o piso na caudal Quando as coisas se acomodaram ficou sorrindo para a espuma Um banho assim diário desmonta qualquer coluna vertebral Vim preparada pra uma vida dura entende No povo propriamente começou a falar mais tarde Também amo esse povo Lião não precisa me olhar assim Amor cerebral reconheço que outro gênero de amor pode ser Se não me misturo na tal massa morro de medo dela pelo menos não fico esnobando como faz Aninha O que é natural ela deve ter sido paupérrima Se já estivesse guiando o famoso Jaguar pensa que emprestaria ao seu grupo sequer a bicicleta Imagine Vai passar por nós naquele andar de transatlântico os ossos dos quadris furando as águas E a cara oca de capa de figurino por acaso já nos vimos antes Turbante de cetim branco com uma esmeralda combinando com o verde dos olhos tão mais belos do que a esmeralda tem olhos lindos ela inteira é linda Ai meu Pai Eu podia ser menos insignificante não podia Pernas de palito Desbotadinha olha aí me torro no sol e o sol não cola em mim Magnólia Desmaiada O pior são estes peitinhos pobres oh Oh Inveja isto Não simples constatação é lógico Quero vêla curada casada com o tal milionário embora saiba que quando ficar divina maravilhosa não vai me perdoar Ampareia nos pilequinhos segurei sua mão nos abortos empresteilhe milhares de coisas a metade nem voltou E o monte de oriehnid que vou emprestar dar para o cerzido na zona sul Difícil me perdoar por isso Por acaso nos vimos antes vai perguntar batendo a cinza do cigarro na minha cabeça é altíssima Não pessoalmente Alteza Sou uma simples universitária em recesso Tirante a Faculdade vou a pouquíssimos lugares e todos sem importância Lembro que certo dia chegou ao Pensionato Nossa Senhora de Fátima uma vaga estudante e vago modelo cheia de malas e dívidas mas não era Vossa Alteza é lógico Tinha a cuca tão embrulhada que fiquei em pânico se entra na minha intimidade vai criar problemas Forçou a entrada Deus sabe que evitei mas agora é tarde no planeta Tarde no planeta dizia o paizinho trancando a porta que dava para a varanda Abre meus armários empresta minhas coisas usa minha esponja da zona norte na zona sul e só não leva meus livros porque na realidade gosta mesmo de romances supersonho E das histórias da Luluzinha Nega imagine sempre que pode passeia com um Herman Hesse ou um Kafka debaixo do braço ambos da minha estante digase de passagem Mas só para constar De resto instalouse no meu banheiro e em mim Obrigueime a verdadeiras práticas de caridade cristã para aceitála mas agora sinto falta dela quando some Ana a Deprimente Deprimida e deprimente Os amantes As angústias Ensineilhe a respirar profundamente Depois andar Respirando e andando quilômetros vem a vontade de trabalhar salvação pelo trabalho Jacaré aprendeu Análises amores e sapato de brilhante podem mudar alguém Acho que todo mundo segue igual até o fim Mãezinha fazia goiabada cuidava do jardim bordava toalhinhas e era glingueglongue Agora faz plástica massagem análise e principalmente faz amor com outro homem Mudou a circunstância E ela Igual Não fica à vontade com Mieux como ficava com paizinho é lógico Representa Mas continua insatisfeita e catastrófica Com mais medo da velhice porque já está na velhice coitadinha Glingueglongue Quero ser uma velhinha diferente gênero cara lavada e blusinha bem branca a cometa acústica no ouvido virgem acaba surda aquela história da Lião fechamse os orifícios Todos Vejo Lião uma mãe gordíssima e felicíssima sorrindo meio irônica para as passadas guerrilhas juvenilidades meu senhor juvenilidades Ana Clara pintadíssima e afetadíssima mentindo a idade e o resto as mãos sempre fechadas é do gênero de mentiroso que fecha as mãos Ficando de fogo no particular Oh O que aprendi com ela não bebo e posso escrever uma tese sobre alcoolismo e drogas Nunca tive nenhum homem e sei com pormenores a arte e desarte de amar Ni ange ni bête murmurou Lorena inclinando o corpo e afundando na banheira Esfregou os cabelos até fechálos num espesso capacete de espuma Olhouse no espelho Com as pontas dos dedos foi alargando a espuma branca até a altura dos olhos Assim de gorro e máscara MN operava As luvas amarelas quebrando a brancura ai que sensual Se pudesse ser amada na própria sala de cirurgia Entraria na padiola como Ana Clara No fundo a espera o Anjo Sedutor na sua roupa imaculada ainda imaculada E mascarado Lena me dá sua mão pediu Ana Clara Deulhe a mão constrangida sabia que ela transpirava demais na mão e tinha horror de suor Um suor frio como a sala frio como a luz do holofote Na estreita faixa entre o gorro e a máscara os olhos do médico eram frios A voz branca de Ana Clara parecia vir filtrada através dos algodões Um dois três quatro cinco seis ssss A luta metálica dos ferros se entrechocando O peso do sangue na gaze O hálito de éter se desfazendo no ar Not to be Ai meu Pai gemeu Lorena enrolandose na toalha Saltou no piso e ficou esfregando nele as solas dos pés Viuse irreal no espelho embaçado pelo vapor dágua Não era amada Não certamente não Mas continuaria amando amando amando até morrer não Até viver de amor Foi ao tocadiscos e aumentou o volume O som se fortaleceu áspero intratável Torceu mais o botão e a música se expandiu empurrando os móveis as paredes Recuou aturdida num acesso de riso oh vontade de sair pelada pela rua afora agarrar as pessoas e sair dançando com elas lutar boxe fazer amor comer ai que fome Que fome gritou E apertou o peito do patinho de feltro sentado na prateleira da estante Coém Coém fez juntamente com o pato Tomou um pequeno gole de leite e suspirou Gostaria de gostar de outras coisas bifes sangrentos sopas com peixes e polvos nadando por entre tranças de cebola em temperatura de vulcão plu plu plu Pousou o copo vestiu um biquíni branco uma camisa grande demais dobrou as mangas e depois de se perfumar com águadelavanda e polvilhar talco nos pés reuniu num prato o que lhe apeteceu uma maçã uma cenoura crua escrupulosamente lavada alguns biscoitos de água e sal e um triângulo de queijo Sentouse no degrau de pedra banhado de sol abriu no colo o guardanapo e colocou o prato ao lado Olhou o jardim através do gradil de ferro da escada e começou a roer a cenoura Será que o sexo ia lhe dar tanto prazer como o sol Fico tomando sol porque não posso tomar o homem que amo pensou mastigando mais energicamente E Ana Clara As coisas que tomava seriam para substituir o casaco de onça O Jaguar E se fosse simplesmente porque não conheceu o sol a infância Deus Tudo que tive e ainda tenho tão triste ir buscar lá fora o que devia estar aqui dentro Uma formiguinha ruiva passou a um centímetro do pé de Lorena Carregava um pedaço de folha recortada com certa simetria nas bordas ondulantes vela de veleiro equilibrandose a custo na travessia Inclinouse para ver melhor Agora a formiga tinha parado para conversar com outra formiga que vinha em sentido contrário Deixou de lado o pedacinho de folha pôs as mãos na cabeça gesticulou barroca procurou afobada a folha não achou mais desistiu e meio estonteada voltou pelo mesmo caminho de onde viera Que bicho correspondia à Aninha Raposa Fazia cálculos mentia queria ser sempre a mais esperta mas na realidade era inconsciente como a cigarra Por que teve que engravidar nas vésperas do tal casamento por quê Se ainda fosse do noivo E eu é que tenho de arrumar oriehnid E ir junto e dar a mão na hora Já disse mais de uma vez que a intimidade é inimiga da amizade essa intimidade que exorbita no cotidiano tão cotidiano Ela ouviu concordou e em seguida pediu meu maio emprestado Amar meu próximo como a mim mesma no caso amar Ana Turva Já não estou turva estou preta disse ela num dos seus raros momentos de bom humor São as ovelhas pretas as mais amadas respondi Madre Alix tem paixão por você Ela então me olhou em silêncio E seu olhar que em geral é oblíquo ficou reto Não fez nenhuma ironia ao contrário foi com a maior gravidade que apertou por cima da roupa o Agnus Dei ele devia estar no sutiã mas como ela não usa sutiã prendeuo com um alfinete de gancho no biquíni A Madre me deu disse É um pedaço das vestes de uma freira que ficou santa Perguntei lhe que freira era essa Sei Ia murmurou enquanto rolava o cílio postiço operação que exige atenção integral porque sua mão treme demais Ia a uma boate e foi me pedir um pouco de perfume Banhouse nele e de tal forma que tive que abril a janela apesar da noite fria A Gata entrou no meu quarto e espanou minha mesa com o rabo quebrou meu perfume meu espelho e o vidrinho de colírio posso levar o seu Tudo mentira No dia seguinte fui saber se queria ir ao cinema Não estava mas estava o vidro de perfume o espelho e o vidro de colírio vazio Um monte de roupa suja embolada debaixo da cama As jóias verdadeiras e falsas espalhadas por toda parte Um longo de cetim verde num cabide dependurado na porta do armário O caos dos sapatos escapando por entre a fresta do gavetão A peruca negra e o casaco de couro em cima da cadeira A caixa de maquilagem esvaziada na cama devia estar procurando alguma coisa que não encontrou Nas paredes retratos seus e de very important person Fiquei comovida quando vi que pregara na cabeceira da cama a gravura de Chagall que eu lhe dera na véspera um anjo verde abençoando o pecador roxo ajoelhado no azul O rosário de Madre Alix também estava ali exposto mas a presença do Anjo Sedutor pairava no quarto Vulgaridade e beleza se misturavam no pôster que tirou de biquíni colante e meias pretas pose mais agressiva do que sensual Chamei Sebastiana e lhe dei a trouxa de roupa para lavar Aproveita e varra um pouco este chão eu disse mas a mulher não despregava o olhar do pôster A beleza de Ana iluminoulhe a expressão A cara encardida clareou no impacto É artista quis saber Mais ou menos respondi e fiquei pensando que se tivesse metade dessa beleza MN já teria subido umas cem vezes esta escada Na minha concha como a pérola na ostra não é poético Precisamos pensar num outro esquema ele respondeu quando o convidei para tomar um chá comigo Por que outro esquema Mas meus amigos não estão sempre subindo A gente estuda ouve música discute qual é o problema Ele sorriu o sorriso MN É diferente Só por essa distinção fiquei mais consolada Lorena Carta do estrangeiro para você A letra é do seu irmão Com dois dedos Lorena abriu a úmida cortina de cabelo que lhe caía até os ombros Espiou a freira no jardim empenhada em arrancar do canteiro de margaridas o matinho rasteiro que brotava com a força da primavera Encostou a testa no gradil de ferro da escada sentarase no primeiro degrau Engoliu o biscoito antes de responder Estou esperando um telefonema minha Irmã Ninguém me telefonou Irmã Bula examinou desconfiada a pequena raiz que acabara de arrancar Deixoua cair limpou as mãos no avental e levantou a face franzida de sol Os olhos lacrimejaram abundantes Tirou o lenço do bolso enxugou os olhos e aproveitou a oportunidade para se assoar Ficou olhando pensativo o ranho esverdinhado no lenço Dobrouo inclinouse para o canteiro e arrancou um tufo maior que veio com um bloco de terra Está liquidando o canteirinho sussurrou Lorena enquanto dobrava o guardanapo com o mesmo cuidado com que a freira dobrara o lenço No guardanapo branco as iniciais do pensionato estavam bordadas com linha vermelha PNSF Ponto de cruz A letra P era a mais caprichada Já o N meio torto se aproximara demais do S que para compensar o defeito abandonara o F ilhado na auréola avermelhada da linha que desbotou Um mato duro de tirar resmungou a freira vergando o corpo para trás Sua Santidade o Papa disse que o vício aumentou no mundo como esse matinho a gente arranca arranca e daí a pouco nasce tudo outra vez A senhora faz jardinagem como borda digo passando o dedo no F tão mais pálido do que as outras letras a se esvair sanguinolento em meio da nódoa rosada Como um ferido de morte Ah Rômulo Rômulo O sangue escorrendo do furo que mãezinha procurava tapar com a palma da mão a camisa vermelha empalidecendo recuando diante do sangue tão mais forte Que foi isso meu filho ela perguntou e o som da sua voz era branco Respondi por ele e minha voz também saiu de uma paisagem de neve sem sol Fiquei me ouvindo repartida em duas o Remo deu um tiro nele mas foi sem querer aquela brincadeira de xerife estavam perto do paiol e Rômulo corria para o rio acho que ia mergulhar quando Remo fez pontaria e gritou para nessa hora ouvi o tiro Rômulo parou segurando o peito e veio vindo foi sem querer estavam só brincando foi sem querer Ela não me ouviu Que foi isso meu filho repetiu baixinho sentada no chão com a cabeça dele no colo Fazia um movimento de embalo para a frente o para trás cingindoo com delicadeza mas a mão que tapava o furo do peito tinha uma crispação enérgica E se eu fosse buscar uma rolha Uma rolha A cara de Rômulo era cera transparente O sorriso transparente úmido Os dentes ficaram pálidos Sorria como se pedisse desculpas por estar morrendo Encaro o sol até a cegueira não não quero agora não Estava tão contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo tão perigosas quando se juntam Mas na raiz são descomprometidas Umas crianças A B H M O Tão raro o X Em declínio o Z rei desmemoriado o irmão gêmeo S com a astúcia de um usurpador Ponho o dedo em cima do F desventrado que Irmã Bula bordou as letras também levam facadas no ventre tiros no peito socos agulhadas coices também as letras são atiradas ao mar aos abismos às latas de lixo aos esgotos falsificadas e decompostas torturadas e encarceradas Algumas morrem mas não importa voltam sob nova forma como os mortos Como os mortos digo em voz alta e meu coração se alegra de novo Aleluia grito à Bulinha Mas ela já se foi com as mãos sujas precisa laválas depressa Eram boas as plantas que andou arrancando Eram más Correu o risco do julgamento e agora tem medo Adora fazer jardinagem e bordar Madre Alix tinha que ser a maravilha que é para permitir que ela cuide do jardim e marque com essas iniciais vermelhas toda a roupa do pensionato Enrolo no dedo o fiapo de linha que está se soltando de uma das letras qual Pensionato Nossa Senhora de Fátima Falta o de mas está subentendido Mordo o último biscoito e respiro estimulada Aí está onde eu queria chegar milhares de coisas estão subentendidas Nas entrelinhas O lado omisso Quero a verdade MN meu amado escuta entenda isso quero a verdade E você sugere reticências Omissões A verdade de peito aberto digo de cara para o sol Estou a fim de ter um derrame sai fumaça da minha cabeça mas preciso ficar minhocando as minhocações debaixo do sol são sempre mais lógicas ah MN você ainda não sabe o horror que tenho da mentira Escrevi seis folhas sobre o delito da omissão tive dez em Penal e você agora Minha mulher não deve saber é claro Por que claro Sorriso evasivo Vaguidão Porque é uma megera devia responder Todas as esposas são megeras que antigamente eram fadas falavam e saíam da boca pérolas e rosas que no decorrer da decorrência foram ficando umas rosas ambíguas miasmas de mau hálito e maus bofes como é que MN pode fazer amor com uma mulher assim Obesa vesga dentadura postiça ai meu Pai seria a glória se ela usasse dentadura E irônica mais do que irônica sarcástica A voz rascante Como será voz rascante Ligações suspeitas com corujas gralhas grrrr Tia Luci fala assim Mãezinha disse que ela foi bonita milhares de apaixonados e fogos de artifícios enfim agora não é mais e continua como se fosse coitadinha Alguém teria que avisar mas quem Já fez plástica até no pé usa vestidos da jeunesse dorée lá do tempo dela e faz aquelas caras Até para o Fabrício insistiu no charminho estávamos no cinema e ela começou a mostrar pela abertura da bata oriental adora essas batas um pedaço do joelho e nesse pedaço tinha varizes Ficamos tão deprimidos e ela continuava tinha operado os seios e precisava mostrar como estavam bacanas ah quinze anos E os malvados dos médicos botando lenha na fogueira que tal agora a orelha Mas a voz que não fez plástica é aquela esponja de fel a voz tem a idade verdadeira e não esconde um botão E se a mulher de MN for como tia Luci Polidamente infeliz Se você pensa que vou lhe dar o desquite está muito enganado meu caro Era do gênero de dizer meu caro assim com o maxilar duro e nessa faixa também entra a mãezinha ih o avesso desse meu caro que ela fica repetindo no auge da discussão com Mieux Boas maneiras Sim boas maneiras família rica estudou em colégios fechados O que não significa que MN lenha se casado por interesse ele era pobre me deu a entender que era pobre mas infelizmente se casou mesmo por amor Com o tempo foi descobrindo os pecados maiores da amada vícios próprios da burguesia como diz Lião soberba e avareza A gula também entra Lião já provou nas suas pesquisas que burguesa de país subdesenvolvido é gulosíssimas aos trinta anos estão todas com uma papada e um popô do tamanho do Jaraguá Então meu amado foi se fechando com seu cachimbo e seu Proust solidão de bichodecaramujo pode bater que não abro Mas abriu algumas vezes não abriu Cinco filhos Por que tanto filho MN É o que me deixa meio invocada cinco filhos Um caso difícil disse Dona Guiomar logo na primeira volta quando apareceu aquele Reide Copas Apontou a DamadeEspadas com seu dedo preferido e avisou que ele estava muito enrolado na mulher olha aqui a mulher Olhei e devo ter caído de quatro porque ela teve tanta pena que quis me descomprimir Previu milhares de homens maravilhosos que vão me amar até o fim dos tempos todos chegando de avião com uma pasta preta bossa James Bond Homens maravilhosos imagine Só pensava no meu rei proibido He has a god in him though I do know which god oh poeta onde estiver proteja este meu pobre amor Sei que devia pedir proteção a Ogum e Iemanjá mas perdoa Lião só posso curtir com espíritos e duendes de outros bosques tão linda a palavra bosque Temos bosques Bosque aqui é mato He has a god in him Mas é proibido já entendi é o verboten que às vezes se crava em mim como um estilete Em baiano a gente dava um jeito mas em alemão não tem esperança verboten verboten oh língua definitiva Se a mulher morresse de leucemia Tenho filhos da sua idade Lorena Ainda assim aceita este viúvo para marido Teria que me ajoelhar aos pés de Lião seja minha madrinha Quem mais quer se casar Lorena Quem Só os padres e as prostitutas E um ou outro homossexual entende Quis dizer eu eu Adoraria me casar com MN não existe uma idéia mais jóia queria me casar com ele sou frágil insegura Preciso de um homem em tempo integral Com toda a papelada em ordem acredito demais em papel herdei isso da mamãezinha Agora ela esnoba a papelada antiga mas é tarde os arquivos não estão nas gavetas estão na cabeça O quanto ela quis o casamento com Mieux como vibrou com a idéia Chegou a desenhar o vestido veio me mostrar o desenho não é melhor me casar regularizar nossa situação Concordei com o coração apertadinho assim lógico Lógico E lembrava a conversa com tia Luci que começou contando a origem do apelido Mieux em tudo quanto era reunião ele contava a anedota do tipo que dormia com a própria mulher porque não tinha ninguém melhor na hora faute de mieux on couche avec sa femme E sempre se torcendo de rir como se tivesse dito a coisa mais divertida do mundo Estendeu o faute de mieux a outras circunstâncias ia a um restaurante pedia vinho francês Não tem francês Então um chileno mesmo faute de mieux Acabou o chileno Então traga um nacional faute de mieux Ficou sendo Mieux ela rematou repugnada E daí tia Que importância tem se é um simplório Se convém à mamãezinha não tem problema Sei é muito mais moço E daí Assunto deles Vestese bem adora festas faz o gênero dela Não se pode exigir que ainda por cima seja um pensador Então a tia me puxou para mais perto e fez a cara de mistério que mãezinha faz quando não há nenhum Aí é que está De inocente ele não tem nada é espertíssimo Tenho provas de que andou investigando em bancos teve a ousadia de ir até nosso advogado tudo com ar de quem queria proteger a Mana Ficou sabendo das casas dos terrenos ficou sabendo por quanto foi vendida a fazenda e onde ela empregou o dinheiro ficou sabendo de tudo Puro golpe do baú Se sua mãe não tomar cuidado vai acabar no asilo São Vicente de Paula Então fiquei um pouco sem voz quando mãezinha veio mostrar toda radiosa o modelo do vestido um longo rosapérola com aplicações de renda no peito e nas mangas Eu num modelo igual iríamos feito gêmeas ela viu o retrato de casamento aí de uma artista e achou a glória mãe e filha de laçarotes nos cabelos e mãos dadas vamos brincar na floresta enquanto Seu Lobo não vem E Mieux firme no altar escondendo o rabo no rabo do fraque Desistiu da idéia só porque se lembrou que na hora de preparar os papéis apareceria a verdadeira diferença de idade entre ambos Mieux fazendo pressão e ela inventando milhares de pretextos para não casar mais protelou fez a cínica mas comigo se abriu Tenho nojo dessa papelada amarela que a gente tem que desenterrar no cartório mania de brasileiro viver Talando cm documento em nenhum lugar do mundo existe isso Não nasci Nunca mais voltamos ao assunto mas um dia morri de pena quando encontrei todo dobradinho dentro de um romance de Charles Morgan o desenho dos vestidos que usaríamos na cerimônia Esse livro ela me emprestou queria demais que eu conhecesse seu autor amado Cheguei a decorar trechos inteiros de Morgan na minha primeira juventude ela disse Teve primeira segunda e até quarta juventude Que fúria quando num dia de mau humor Mieux lhe disse aos urros que a juventude é uma só Coitadinha Como ninguém toca nesse livro ficou sendo o guardião das cartas que escrevo para MN E que acabo não mandando ai meu Pai Escrevi que toda minha vida convergia para ele e que era só dele que iria se irradiar de hoje em diante Quero te dizer também que nós as criaturas humanas vivemos muito ou deixamos de viver em função das imaginações geradas pelo nosso medo Imaginamos conseqüências censuras sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital mais profundo mais vivo A verdade meu querido é que a vida o mundo dobrase sempre às nossas decisões Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte Nossa plenitude eis o que importa Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros Cuidado com o sol Lorena diz Irmã Priscila É a voz de Irmã Priscila Abro os olhos Irmã Priscila subindo alguns degraus da escada Avanço de joelhos para alcançar a carta que ela me estende A cara de porcelana se abre num sorriso rosadinho Do meu irmão digo Ela protege com as mãos os olhos que se derretem na luz O sol está forte demais filha Lavou a cabeça E já secou olha aí Dias inteiros tão azuis e essa moça aí escondida no quarto Madre Alix perguntou hoje se você está bem ela até estranhou Estou ótima minha Irmã A Faculdade está em greve não então nada que fazer lá Se meu amado telefonar vou jantar com ele Ninguém telefonou Seus dentinhos são redondos e brancos um pouco separados Sorriso de dentesdeleite Antes de sair com o namorado passe lá tem caramelos de mel E tem esperança Mandolhe um beijo As pessoas são boas sim o que ela disse não é lindo Ponto pacífico que ele vai telefonar e que vamos sair Pensamento positivo Faço minha respiração solar pela narina direita e volto para o meu degrau Apalpo a carta que não é carta é cartão Adio o instante de ler como adiava na fazenda a hora de comer as primeiras mangas Querido Remo A embaixada é em Túnis mas sua casa fica em Cartago ainda existe Cartago Remo Existe sim Um bairro lindo com casas lindas em meio das ruínas romanas No jardim por onde andou Salambô há jasmineiros iguais aos da fazenda ele escreveu às vezes fica poético Há oliveiras plantadas nos quintais as azeitonas são colhidas nas árvores E as tâmaras vêm em cachos Como os mendigos atalhou Lião quando li a carta para ela Lá os mendigos também andam em cachos como no Nordeste Nem respondi Adianta responder Não se pode dizer mais nada de coisas belas e amáveis que Lião já agride com o Nordeste Remo só convive com diplomatas e banqueiros amigos de Bourguiba ele lá sabe de mendigos Telefone pergunto me levantando Agarro o corrimão de ferro e me debruço na escada Telefone As largas janelas do casarão abertas para o jardim estavam vazias Nas alamedas que contornavam os canteiros os pedregulhos brilhavam como pedras de sal Lorena passeou o olhar perplexo pelas janelas Nunca a casa lhe pareceu tão oca como naquele instante Mas não foi o telefone A Gata veio vindo tranqüilamente até o cesto de jardinagem de Irmã Bula experimentou com a pata o avental embolado e deitou se nele Enrodilhouse formando um círculo perfeito Já se engatou a vontade e agora descansa pensou Lorena enfiando os dedos por entre o emaranhado úmido quente dos cabelos o vento trazia ao acaso alguns estilhaços de vozes Mas na retaguarda inteira densa a voz de Jimi Hendrix se repetindo na vitrola esta molhado de suor e desespero mas não para tem que dizer depressa Escutem todos antes que eu vá embora depressa Já sei disse ela apanhando no chão o prato e o copo Cobriu os com o guardanapo Na escuridão latejante do quarto abriu mais os olhos deslumbrados assim cega ouvia melhor a voz calada e repetindo como no disco por quê MN Por quê Se ao menos Fabrizio telefonasse Cinema das quatro às seis Hamburger com chope ele adorava chope Tu quoque Fabrici A cara barbuda O cabelo espetado um jeito de andar assim de homem das cavernas oi Lorena Era noite e chovia potes Chegou todo molhado rindo e se sacudindo inteiro como um cachorrão sem saber direito onde meter as patas os botinões pesados de lama As apostilas encharcadas Ela ameaçou carregálo para não sujar o tapete e acabou sendo carregada e rodopiada pelo quarto mas você é gente Lorena Não pesa nada olha aí Quando ela sentiu no rosto a aspereza da barba dele deixou de rir e se fez mais frágil aconchegandose entre seus braços musculosos como se aconchegava nos braços do pai A certeza de que ele tomara banho havia pouco enterneceua não era sabonete de feno Sentiu de novo aquele mesmo aturdimento bachiano abriu a boca debatendose fracamente me larga me larga pediu puxandolhe os cabelos e ao mesmo tempo pensando que iam acabar amantes naquela noite mesmo Amantes Foi a palavra amantes que a assustou até o pânico Desvencilhouse Vamos tomar um chá Sei fazer um chá delicioso Ele a puxou pela mão Perdera o ar de cachorrão alegre estava agora sombrio o olhar baixo A voz baixa Senta aqui Lorena senta aqui Ela correu para encher a chaleirinha dágua o chá não ia demorai nada nem cinco minutos Demorou quase uma hora Primeiro foi o fogareiro elétrico que não acendia chameio para me ajudai estuda eletrônica além de Direito Quando a transa dos fios começou a funcionar caiu um raio não sei onde e a luz do quarteirão inteiro pifou Milhares de freirinhas vieram trazer pacotes de velas gritos na vizinhança tombos de Irmã Priscila quando foi recolhei a Gata que miava feito doida na treva do jardim um guardachuva era da Bulinha que escapou aberto e saiu voando na ventania Quando voltou a luz houve em torno uma certa paz a paz da contagem da verificação No telhado a chuvinha modesta Apaziguadora Achei que o chá se fazia mesmo necessário para armai uma certa atmosfera de confiança condicionei o amor ao chá Mas não tem um saci que entra na chaleira e fica soprando a água Despejei o chá antes da fervura não que estivesse me afobando imagine mas já disse que o chá não fica bom em água fervida Quando afinal nos olhamos de frente sem chá e sem palavras adivinha quem chegou Nunca ela me pareceu tão grande como naquela noite com seu impermeável velhíssimo e cabeleira de tempestade Trazia debaixo do braço os jornais e uma pasta de estatísticas estava na fase das estatísticas Sentouse no seu lugar preferido que é o tapete pediu um uísque e tirou as alpargatas pesadas de água Deilhe uma toalha para enxugar os pés depois de oferecerlhe um banho Recusou o banho Adoro me enfiar num chuveiro bem quente depois da chuva ah a sensação de bemestar com o talco e colônia e roupa seca fico feliz até às lágrimas Mas Lião não toma banho nem antes nem depois Estava vibrando com a entrevista que fez com duas prostitutas Falou um pouco sobre o tema no seu tom discursivo e depois de ligeira abordagem sobre a decadência da burguesia incluindo a decomposição da nossa geração e a falsa virtude dos velhos rasgou um pedaço de jornal para forrar as alpargatas Quando começou a recolher os pertences que espalhara pelo tapete me deu tamanha alegria que lhe ofereci a garrafa de uísque ainda pela metade leva querida tenho mais Aceitou radiante porque ia ter um encontro com o grupo e naquela chuva no mínimo uns dois deviam ter se resfriado Estava em pleno amor com Miguel ele ainda solto coitadinho Depois tenho uma entrevista no particular ela disse fazendo uma cara muito especial Assim que desceu a escada nos seus três saltos fui à vitrola Bach tinha que ser Bach Fabrizio fumava sério o braço debaixo da cabeça estirado no chão aqui só as freirinhas usam as poltronas Então ouvi passos Me mato se for Ana Clara E tive o que os antigos chamam de sorriso pálido quando ela entrou de terninho preto muito digna ficou mais de duas semanas assim de cara lavada conversando horas com Madre Alix meditando e tomando leite Pediu um copo recusou o cigarro que Fabrizio lhe ofereceu e sentouse na poltroninha tinha me esquecido Aninha também prefere as poltronas Queria livros emprestados estava a fim de destrancar a matrícula no curso de Psicologia diz que está no segundo ano mas desconfio que não fez nem meio semestre do primeiro Estamos em exame eu disse apontando a pilha de apostilas que Fabrizio deixou secando perto do fogareiro Temos que ler aquilo tudo já pensou Ela pegou o copo de leite e foi para a cadeira ao lado da estante Acendeu o abajur tirou os óculos da bolsa todas as vezes que pára de beber volta a usar óculos Não vou perturbar vocês fico aqui vendo uns livros E sem a menor cerimônia foi desembrulhado o que eu tinha comprado naquela manhã Deus Existe Eu O Encontrei Fabrizio me olhou Desliguei a vitrola Quando viramos a última folha eram quatro e meia da madrugada Ana Clara se cobrira com meu xale e dormia profundamente toda enrolada na cadeira Tinha passado a chuva Volto amanhã ele disse quando montou na sua moto sem o menor entusiasmo Fechei o portão Amanhã conheci MN Aperto a barriga do Pato Donald presente de Fabrizio Coém Coém Beijolhe o bico Meu pobre cachorrão estabanado penso abraçada ao pato fica fiel e me guarda como aquele cachorro do anúncio policial guarda o cofre Antes de Astronauta eu preferia cachorro mas descobri agora se cachorro me comove o gato me fascina Não minha poeta não é a morte que é limpa mas cruel é o gato Eu voltava do cinema com Aninha sóbria quando vi aquele gatinho mijado abandonado na esquina Fiz mamadeira de um vidrinho de remédio que Irmã Bula trouxe dormiu no meu pulôver de cashmere fez pipi e etcétera no meu bidê até aprendei a fazer no jardim entrou na cama comigo mas pensa que ficou um gato sentimental deixame rir Passava o dia na almofada ou dormindo ou me olhando sem muito interesse Nem agrados nem concessões um egípcio Entrou na minha concha mas não entrei na dele Um dia sem uma palavra sem um gesto saiu por aquela porta e não voltou mais Ainda vai aparecer sei que vai aparecer todo sujo rasgado Cuido das suas feridas das suas doenças e quando ficar de novo um gato lustroso gordo vai fugir outra vez e ser livre Quem é que segura um gato Não a mulher que já está velha ou quase velha o filho do meio não regula comigo Deve ter a idade da mãezinha que já fez duas plásticas e está caminhando para a terceira Outras estruturas outras esferas Sou a mãe dos seus filhos ela deve lembrar as trezentas e sessenta e cinco horas do dia Chantagem Meu amado meu amado como é que você permite tamanha chantagem Estou fadada à solidão digo e desato a rir ouço isso de tia Luci todas as vezes que ela sai de um casamento um pouco antes de entrar noutro Ponho um disco da Bethânia ah como ela lembra as amenidades de Lião quando Lião bebe e fica amena Antes de MN eu achava que não podia viver sem música mas agora sei que não posso viver sem ele Morreria com música as horas os dias os meses e o disco aí girando para todo o sempre lá lá lá lá lá lá Um dia descobririam um esqueleto mais franzino do que os esqueletos em geral metido numa bata tão tênue que a brisa num sopro desfaz E o tocadiscos soterrado sob a poeira a música já sem disco e sem agulha girando na barriguinha de um camundongo li li li li O telefone Ai meu Pai o telefone quatro Tinha um relógio grande assim na torre e eu queria me agarrar nos ponteiros segurar as horas por que é que o tempo não parava um pouco Queria ficar lá dependurado segurando o tempo Então mamãe me deu a mão e me levou na praça era tudo tão verde foi em Londres Os músicos tocavam e a gente sentava nas cadeiras escuta Max é Mozart Presta atenção querido Mozart Descubro um biscoito debaixo do travesseiro Mastigo devagar porque é um biscoito adocicado e não queria que ele acabasse logo gosto tanto de açúcar posso comer açúcar à vontade meu corpo é elegantérrimo não engordo Posso comer açúcar aos montes e não acontece nada Lião não pode Ainda vai ficar obesa aquela lá mais uns quilos e já pode vestir roupas de MãedeSanto Lorena não conta é inseto Existe inseto com problema de engordar Um inseto Danese esse Mozart gosto de Chopin Chopin e Renoir quero artista doce A boca no lugar da boca tudo certo tudo feliz que de malditos já estou cheia Foi o que eu disse a Loreninha Adora ouvir esses piolhentos mas só usa geléia inglesa no pão Uma esnobe Deixa me rir diz e verga pra trás e faz ha ha ha Ele largou os ponteiros do relógio e deitouse de novo A gente não veio ao mundo pra se aporrinhar aí é que está a coisa Procuro mais biscoito e só encontro farelo Tiro o cigarro da sua mão e a fumaça é açucarada Seu beijo é açúcarcande Max você gosta de Renoir Renoir o pintor Você gosta Ele recebeu o cigarro de volta e estendeu o braço para o teto Bosch Hieronymus Bosch Ah só monstro só atormentação Pintura de louco pomba Tenho ódio de louco Sentandose na cama ele começou a movimentar os braços num giro de hélices Gemeu quando os punhos fechados se chocaram no ar Quebrei a mão Ui que dor Bastardos Quero coisas lindas Quero tudo que lembre dinheiro bastante fartura Adoro os Estados Unidos por que não Aquela subversiva tem raiva porque é uma dura nunca vai ter nada melhor que fique com os piolhentos mas eu O melhor hotel Quantas estrelas tem o melhor hotel do mundo Inventou a nave espacial está lá nos quadros tem uma porrada de naves quando ninguém ainda pensava Uma droga essa daí que está na lua Tudo voando vuuuuuu Gosta de viajar o escamoso Pois vai viajar olha aqui a companhia Os melhores hotéis Ano que vem recomeço meu inglês quero aulas de conversação com aquele cara como era o nome dele Aquele besta Pronúncia de Oxford Diabinho de asa veja só que sacana Tem um que agarrou a mulherzinha pelo pé isso Ferro na boneca Podia dormir três dias seguidos murmurou Ana Clara esgueirandose por entre as pernas do homem Foi subindo rastejante até atingirlhe o peito Onde está seu copo Estou lúcida Max Foi a aspirina que você me deu Estou lúcida nada mais faz efeito Sei lá Ih aquele bem pretinho Está com um penico olha olha depressa Que revoada ahn Sai sai pra lá gritou ele escondendose atrás dela Cingiua como um escudo Riu Querendo enfiar o penico na cabeça Num penico vivi eu Só atormentação só monstro Cansei Era que mais Agora quero dourados anjos coisas ricas Pintura bem quadrada isto é o que eu quero que abstracionismo já tive Na realidade a miséria é abstrata No auge ela é abstrata Sabe aquele abstrato no estômago Quero uma casa quadrada Flores quadradas quero rosas tenho ódio de flor excêntrica aquelas que A cara no lugar Ora Van Gogh A paixão de Lorena é Van Gogh e aquele outro louco Nhem nhem nhemnhem Pinta flores de carne sabe o que é carne Sangram Carne lixada o sangue poreja confessa confessa ele dizia afundando o pincel Lião contou que o piolhento foi lixado assim Se me convidassem para entrar nesse grupo quando era menina você sabe que eu entrava Enfiava mesmo porque pensava demais em justiça e coisas era uma menina muito especial viu Lorena Mas agora quero um grupo diferente Tira ele daqui Coelha Me abraça Ela cobriulhe o rosto com o travesseiro Ficou enrolando no dedo um anel de cabelo Bem feito Ora acabar com a burguesia Mas se é agora que eu Esperem um pouco também quero não posso Ano que vem vida nova meu santo Tranco a matrícula e depois Quero ser a primeira está me ouvindo Com dinheiro a gente aprende rápido com dinheiro fica fácil Sou inteligente não sou Psicóloga O escamoso me compra a clínica caixa alta tenho nojo de problema de mendigo Escolho a clientela Um saco de ouro Então Max torciase de rir Enrolavase agora nos lençóis Tem um querendo bicar o meu piupiu olha o bico dele gritou se descobrindo Fechou os olhos subitamente apaziguando Escondeu o sexo com as mãos Sorriu Mon chou O ano que vem ele vai ver quem é o petit chou Vida nova meu lindo Adeus Ana Clara Conceição filha de Judite Conceição mas e esse seu sobrenome Vaca Fez cara de espanto a vaca Mulher é mesmo inimiga Algum professor me esnobou por causa disso Quem é que se importa com nome Ela se importou Vaca Ciúme porque sou bonita Você tem uma incrível resistência para línguas Ana Se eu tivesse um saco de ouro ela teria notado essa resistência Vaca A nhemnhem também fez aquela carinha que conheço quando repetiu meu nome Ana Clara Conceição Conceição sim senhora E daí Quem mais nesta cidade se importa com nome Cidade formidável acabou tudo isso agora é só saber se a gente tem ou não um saco de ouro em casa Se tem pode ter o sobrenome de merda e as pessoas enchem a boca e dependuram no seu peito uma medalha Acabou isso de nome acabou tudo Tempos novos minha boneca Gosta de brincar me chamando pelo nome inteiro Ana Clara Conceição você está me ouvindo Estou Lorena Vaz Leme Descendente de bandeirantes Original pomba Estupravam as índias e metiam um tição aceso no rabo dos negros pra saber se não tinham escondido um ourinho lá no fundo Mas eram tão bacanas Os chapelões enormes e os nomes mais enormes ainda Quem é que está ligando hoje pra essa conversa de bandeirante Rasgo a certidão com o pai não sabido e ignorado e quero só ver Certidão nova pago uma certidão nova com pai conhecido e sabido Batizo meu pai pra me casar não posso Nome de imperador Então Quando o escamoso ler a certidão certinha vai babar de gozo Caio César Augusto Caio César Augusto Conceição Professor Ou físico Bacana ter um pai físico Cientista Melhor ainda professor universitário Não tem uma porrada de universidades espalhadas por tudo quanto é canto Por que meu pai não pode Uma débil Fazia amorzinho até em terreno baldio isso ela sabia fazer mas agarrar um daqueles vagabundos pelo cabelo e levar ao registro vamos você é o pai dela dê aí seu nome que você é o pai Porque morreu vou ficar sentimental Só alegria disse ele abrindo os braços Se a gente afundar vão se abrindo assim tão alegres A vida fica perfumada e doce Uma paz tão fabulosa A alegria Fico olhando Max dormir todo feliz segurando o pinto E tem coisa melhor pra segurar Muito lindo o meu amor E daí Ano que vem você vai ver Não fico sentimental só porque ela É isso que a senhora não compreende Não quero botar a culpa em ninguém não vou ficar o resto da vida acusando mas Sei lá Os tipos nojentos que levava pra cama Uma sorte não levar negro devia ler alguma coisa contra negro Vi de tudo menos negro Uma sorte não gostar de negro pomba O Jorge tinha aquele cabelo duro usava touca de meia Mas era branco lá à moda dele Como os outros Seu tipo é de italiana Você descende de italianos perguntou Lorena O escamoso também perguntou igual De italiano não De francês Podre de chique descender de francês Meu pai era francês Jean Pierre Lariboisière Lariboisière Sei lá na hora decido meto o nome que entender não estou pagando O Conceição e da mãe Assim que se separaram tomei o partido dela Boa filha Então Mas como é que Sei lá Chega de pergunta não está vendo meu cabelo ruivo Minha pele Tudo autêntico Branquíssima Bastante suspeita é a Lião E mesmo a Loreninha com seus bandeirantes Sacudo Max Você também é branco amor Não temos nada com esses subdesenvolvidos somos brancos está ouvindo Uma manhã tão contente A manhã de sol Dá a mão pro sol Dou a mão que ele segura e depois larga Na mão do Jóge tinha uma letra tatuada era um R Um anel de pedra vermelha no dedinho Ela falava Jóge A unha do dedinho mais comprida do que as outras por que era mais comprida A touca de meia pra alisar o cabelo caindo até o ombro Sabia dançar figurado ganhou até um troféu num programa de calouro Um Degrau Para A Glória Bicha Na certa deu o rabo pro animador Max estou lúcida acho que tomei aspirina Foi aspirina Procuro no chão um cigarro Bebo na garrafa e fico tragando até chegar à estratosfera mas por que essa barragem de pedra Preciso me desligar Madre Alix Queria tanto esquecer e não esqueço Fica às vezes na minha frente com aquele olho pingando de amor e dizendo pra gorda que o Jóge dança qualquer musica na perfeição e que no programa ganhou um troféu deste tamanho Madre Alix me ajuda Me ajuda me ajuda me ajuda Eu não quero mais lembrar e lembro Sei que a infância acabou tudo acabou e que ela era uma No ano que vem vai começar tudo novo e tudo bom e eu posso viver como se não tivesse atrás esse começo Mas ouço às vezes tão perto a bofetada que ele dava nela e que fazia funcionar o anel de pedra do dedinho O quarto gelado da construção que não acabava nunca e ainda bem que não acabava porque o dia que acabasse O Aldo Era o Aldo Tão bom o Audo ela dizia mas acho que pensava ainda no Jóge Quero voltar pro Recife assim que acabar essa maldita construção e me livro de você com sua maldita filha O cimento cinzento os ratos cinzentos sujos de cal as baratas cascudas sujas de cal e nas unhas nos cabelos na boca cal cal Entrava no pão nos olhos nos ouvidos e a gente precisava soprar o pão e a roupa Por que você está sempre sacudindo as coisas a Lorena me perguntou Tão fina a poeira de cal tão branca e fina Loreninha diria sutil Uma noite olhei pro Aldo com sua camisa nojenta e o boné de jornal Cal na cara nas gretas nas pestanas Ele era inteiro uma estátua no meio do quarto Minha mãe já tinha apanhado feito um cachorro e agora estava deitada e encolhida gemendo gemendo ai meu Jesus ai meu Jesus meu Jesusinho Mas o Jesusinho queria era distância da gente Então catei a primeira barata que passou pelo fogão e joguei dentro da panela de sopa Aí parei de chorar chorava de ódio e o choro de ódio é estimulante as minhas melhores idéias nasceram do ódio Fiquei olhando a barata atravessar num nado de peito toda a piscina de sopa e transpor a ilha enrugada que era a folha de couve e chegar na outra margem juntando as mãos e pedindo pra sair da panela fervente Chegou a subir até a borda com as asas compridas pingando pingando e me olhou sentimental como minha mãe me olhava ai meu Jesus meu Jesusinho Com a colher empurrei a baratona pro fundo não Madre Alix não quero mentir aporá Agora não Não tive pena nem nada quando ela veio me dizer que tinha que tirar mais um filho porque o Sérgio não queria nem saber nesse tempo era o Sérgio Não quero nem saber ele disse dandolhe um bom pontapé Uivou de desgosto o dia inteiro e nessa noite mesmo tomou formicida Morreu mais encolhidinha do que uma formiga numa pensei que ela fosse assim pequena Escureceu e encolheu como uma formiga e o formigueiro acabou Rua dos Guaianases fundos Não tinha cal mas tinha violão e futebol O gaúcho também cantava Chutou na perfeição Ou foi aquele outro Não interessa Ele matou seu irmãozinho ela choramingou apertando a barrigona Quando voltei de noitinha a primeira coisa que vi foi a lata aberta no chão Fiquei olhando Não chorei nem nada mas por que havia Não senti nada Tinha a cara no travesseiro manchado de preto e o corpo encolhido e retorcido como a formiga no rótulo da lata Apaguei a luz e saí pensando que se fosse trabalhar na manhã seguinte podia trazer lá da floricultura as flores de cabo quebrado Mas não vou voltar a trabalhar nessa floricultura porque tenho ódio dessa floricultura Não quero mais nada que odeio Nunca mais ninguém vai me ver Agora estou sozinha Noite estrelada com gente do cortiço se despencando pelas janelas pelos muros Sua mãe está lá A novela já começou Ela não vem perguntou a Mina que engravidava diasim dianão Ia vibrar com a pílula Minha mãe também ia mas às vezes falha Max estou grávida Que é que eu faço que é que eu faço Os diabinhos ainda voam por aqui e brincam comigo e eu dou beliscões em Max que nem sente nem sente É festa Esqueça esqueça Levanto a cabeça e entro na estratosfera podre de azul grito azul e deslizo azul até o chão rastro veludoeventre a gente devia andar só assim liquefeita e azul colada ao chão escorrendo os braços de rio sem nenhum perigo de cair nem nada Tanta coisa no chão olha aí A brasa trinca os dentes e se apaga na água mas o gafanhoto adulto vem vindo e me olha com seus óculos redondos e me estende as mãos juntas e fica na minha frente com seus sapatos pretos de amarrar e meias brancas Fico rindo dos seus sapatos mas ele está sério e suplica juntando as mãos verdes você me prometeu Ana Clara Beijo seus sapatos O ano que vem Madre Alix O ano que vem Já está tudo programado isto é só a despedida estou lúcida não estou A gente tem que conhecer as coisas todas chegar ao fundo do poço e depois dar aquela arrancada de avião uiiiiiiiiiii Meu noivo tem um aviãozinho só dele Dou uma casa pra senhora uma casa na praia tenho paixão pelo mar olha ai o mar Tinha a minha amiga vesga lembra Adriana Está vendo como estou lúcida Adriana Ela não sabia onde eu morava não sabia nada e pensou que eu também podia ser do grupo a gente se conheceu por acaso na fila do cinema e depois tomamos sorvetes juntas e intuí logo que ela era rica a Loreninha diz muito isso eu intuí Também eu pomba Fiquei sutil como a rataria em noite de lua sabiam que a lua clareava tudo e tomavam seus cuidados Inventava quilos e comecei a ficar tão esperta a intuição me dirigindo por aí não depressa fecha a boca agora dê risada Agora chorei Fecha a boca Aninha Fechei muito a boca porque a ponte estava cainãocai Então a velha quis saber por que eu andava assim quietinha A casa era enorme bem defronte do mar ninguém mais podia tomar banho naquela praia só a gente Então a velha quis saber Meu pai morreu num desastre de aviação e minha mãe está com câncer Ela então se benzeu meu Deus que horror Que horror ficou repetindo e sacudindo a cabeça e me consolando porque já comecei a chorar ah minha pobre menina minha pobre menina Vai acontecer que nem nas besouragens da mulher importante que adota a órfã pobre e bonita E vem um sobrinho orgulhoso e cruel porque me visto mal mas logo fica vidrado de amor e se atira em mim que nem E o Doutor Algodãozinho Digo que aconteceu num tombo que levei Tombo não um negro me agarrou no campo quando fui num piquenique e rasgou meu vestido e perdi os sentidos Doutor Hachibe sabe disso aquele meu analista A casa no alto de um penhasco e a mãe me detestando no começo porque queria que o filho se casasse com uma prima rica e vesga que nem a Adriana A verdade Madre Alix minha querida minha santa A verdade na miséria fica um lixo A nhemnhem é igual com essa mania Se um daqueles discípulos desse um saco de ouro pra Pilatos ele lá ia lavar as mãos Lavava nada Arrumava um cavalo e Jesus fugia pelos fundos e ainda por cima com uma escolta da cavalaria montada garantindo até a fronteira Mas isso tudo é mesmo verdade estranhou a mulher enquanto ia tecendo um tapete fazia um tapete e era exigentíssima tanto no trabalho como no questionário Antes de falar eu precisava pensar mas ela trabalhava tão depressa com a agulha que comecei a me enredar nos fios Aconteceu quando meu pai guiava um Opala e ela parou a agulha Opala Mas não foi num avião Recomecei a chorar pra ganhar tempo Primeiro foi com o Opala e depois Mas seu pai tinha um avião ela se espantou Ele era o aviador O avião era de um velho que lidava com petróleo Petróleo Petróleo sim senhora Como se chamava esse homem Esse patrão do seu pai Ah lá sei Sei que era um homem importantíssimo tinha avião tinha iate Ah Ah fez ela recomeçando o maldito tapete E depois Depois o avião se espatifou nas pedras tinha caído uma horrível tempestade e meu pai perdeu o controle foi isso Então minha mãe piorou lá do câncer dela e perdemos tudo e fomos morar com meu tio que é um grande médico Médico Qual é o nome dele Fui ficando com raiva então era só ir fazendo a vontade dela Um grande médico sim senhora importante à beca tio Clóvis Já ia perguntar o sobrenome dele quando entrou a vesguinha Tinha uma concha na mão Clóvis Conchal respondi sem pestanejar Clóvis Conchal repeti e antes que ela me cutucasse com mais perguntas como cutucava o pano dei um grito sacudindo a mão uma vespa Saí correndo ai que dor que dor Não se voltou a falar no meu pai não sabido e ignorado nem na minha mãe que tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor do que a morte pra apagar as pegadas como a onda apaga toda a escrita da areia As noites cintilantes Noites cintilantes As pessoas cintilantes bebendo e rindo com o mar lá na frente não sei porque disso tudo me ficou uma lembrança assim de pedrarias e gelatinas azuis vermelhas verdes nas noites de copos na varanda O colorido dos vestidos alguns tão brancos como ovos batidos por quê por que essas pessoas me faziam pensar em coisas de comer Gelatinas e cremes parecidos entre si como fatias saindo da mesma massa Da mesma forma Minha boca se enchia dágua como diante diurna mesa posso A fome antiga tão antiga posso Não Ainda não Nenhum priminho pra me amar Nenhum casado pra me seduzir Deixame rir diz a nhemnhem O jogo era entre eles e jogo alto Sobrou a velha solitária que eu olhava com olho comprido quem sabe está querendo minha companhia no seu castelo Eu iria à festa com meus trapos mas quando o príncipe me visse entre as debilóides das princesas Na minha história nem faltava a amiga vesga e rica já se esquivando porque a comparação era inevitável Quando meu amor completar quinze anos vai ser operada da vista na Inglaterra não é amor E o amor envesgando ainda mais de pura alegria o bocão rindo rindo Eu vibrava É evidente que depois Adriana vai ficar uma boneca mas por dentro dava cambalhotas de gozo Porque nem operada por Deus aquela cara ia ter concerto Nenhuma será minha amiga Madre Alix nenhuma A senhora me ama mas a senhora é santa não conta Na realidade Como podem me perdoar Nem a Loreninha que me dá presentes e dinheiro e me pinta quando minha mão treme demais nem a Lorena que lava meus pentes Oriehnid Aquele arzinho superior que conheço bem Como se eu fosse uma agregada Me esfregando a família na cara o tal tronco de bandeirante de chapelão e bota Os senhores da terra que abriram cidades E o rabo da negrada Não é que não goste dela Gosto Mas me enerva com aquele jeitinho todo especial de dar conselhos sem aconselhar uns conselhos enroladinhos toda ela é enroladinha Nhemnhem Uma coleção de vestidos bacanérrimos uma coleção de perfumes bacanérrimos e Com aquela roupeta de menininha cheirando a sabonete Não gosto de muito perfume só uma gotinha às vezes Muito apurado o insetinho com sua minigotinha de Miss Dior Na realidade quer dizer que uso perfume demais que sou vulgar porque despejo perfume em mim Despejo mesmo pomba E então A outra da esquerda faz aquele sorriso da esquerda e também arreganha o nariz Sinto seu Perfume até no meu quarto Trabalhando pela pátria Ora danese Quem e que esta pedindo quem Fica me olhando com o olhão Parado Que é isso no seu braço Uma picada Picada sim e daí Paro com tudo quando bem entender Vou ser capa de revista Me casar com um milionário Fique aí embananada porque o ano que vem Como sou boa posso ainda ajudar você e seus piolhentos ajudo todos Dou uma casa pra suas reuniões Dou uma casa pra Loreninha que vai ficar sem nada com aquela mãezinha esbanjando a fortuna não tem importância não interessa Resolvo tudo Então fico verdadeira Só peço a Deus pra ser sempre verdadeira ela disse não sei quantas vezes naturalmente com intenção de Verdadeira Com dinheiro também fico pomba rico a própria boca da fonte jorrando a verdade É fácil dizer a verdade na riqueza Bacana os gloriosos contando nas entrevistas que na infância reviraram a lata com os ratos muito bacaninha tanta autenticidade Coragem não Bonito Mas é preciso ter quatro carros na garagem e caviar na geladeira e uma vila na putaquepariu pra confissão ficar interessante É preciso cuspir dólar pra ter graça a história do mascaradocurasgado é preciso Madre Alix minha santa santa Por enquanto ainda não Quando me estruturar conto tudo esconder onde Sabe o que é se estruturar Se forrar de oriehnid Antes me costuro e faço um enxoval que o escamoso gosta de me exibir prós meiacervejinhas dele Escolho um bom analista que agora sou eu que não quero mais aquele louco Bastardo Ganancioso Perguntei se tinha se casado por amor e me respondeu que era um amor que durava até hoje Casar por amor ora Se com este daqui que amo às raias não sinto nada imagine só como vai ser com aquele escamoso Me atocho de óleo e fico ganindo Está lá descascando o pãozinho dele por que se atrasou Fui assaltada pronto O tipo me levou pro mato e se não fosse o Agnus Dei da Madre Alix Estou sem dinheiro todo aquele que você me deu Ah Madre Alix diga que não vai acontecer nada me abençoa e bota a mão aqui na minha cabeça que está fazendo roqueroque passa sua mão e eu esqueço como quando vinha aquela onda e a espuma Aterrissar Aterrissar gritou Max abrindo os braços e desabando de bruços no travesseiro Eu vi numa vitrina de cristal sobre um soberbo pedestal ih Coelha essa música eu queria cantar tudo é uma boneca que ele ama uma boneca na vitrina uma puta de uma boneca mais linda que Vênus no bazar das Húmus no reino das fascinações cantou e se afogou no riso A estrada vermelha Estou contente porque a estrada é vermelha Passou um anão agora mesmo aqui no canto do meu olho mas precisamente A estrada é vermelha de sol Vou indo no sol e vou contente porque faz calor e o vento Lá longe vejo o cantor vem vindo com sua guitarra elétrica antes de ver sua cara vejo a guitarra brilhando no sol é como se tivesse um outro sol dependurado no ombro Um negro mas desse eu gosto Gosto de todos os negros gosto de todo mundo todo mundo é bom pra mim e estou contente de sol e de música ele vem cantando pela estrada e as coisas todas vem cantando junto uma alegria vermelha tão quente boa viagem grito e ele me cumprimenta rindo gosto desse daí com sua guitarra elétrica que brilha tanto que preciso fechar os olhos é um sol Boa viagem ele diz no meio da luz vermelha da estrada e agora ficou longe sua cara sua guitarra A guitarra Onde estou Que horas são Esfrego os olhos que ardem Sento no tapete E isto O pé de Max pende fora da cama Beijo seu pé Meu joelho está molhado Uísque Uísque é evidente Como pode ser baba Teria que ser um crocodilo Abro os braços de alegria ah aquela estrada Falar É preciso falar tudo é ir falando o tempo todo deixar correr a confissão como vai correndo o mijo Quero mijar vou de rastros até o banheiro agora sou vegetal se alastrando Trono alto tenho que fazer na banheira levantar a perna como o Lulu Vou ter daqueles cachorros bacanérrimos com pintinhas pretas e olho azul como é o nome Aquele Mas quero também um vagabundo com a cara do Lulu A única coisa decente que tive a única que me amou vem Lulu eu chamava Vem Lulu E ele vinha rindo e dando esguichadas de pura alegria Passear Lulu Passear Quando vi a praia pensei logo nele o Lulu vai contente correndo aqui na praia O mar No mar esqueci minha mãe inesquecível o rançoso da brilhantina do Jorge com a meia enfiada até a orelha nesse tempo era o Jorge Tempo do Doutor Algodãozinho a ponte já vacilava na minha boca mas vinha a espuma e me cobria e eu podia rir sem passado sem visgo uma onda atrás da outra e os algodõezinhos afundando na espuma No mar fiquei sozinha porque enfiei tudo num saco e fechei a boca com corda como a Mila fez com os gatinhos e joguei lá onde passam os barcos minha mãe o quarto os homens as baratas as roupas O Lulu não O Lulu eu enterrei num caixão de ouro branco ninguém vai jogar meu cachorrinho no lixo volta Lulu Volta Te dou um osso de ouro volta me lambe a cara a mão ai que dor Que frio quero o tapete Vem Aninha vem aqui no tapete eu chamo e obedeço Não chora que te dou Não chora vem A garrafa boiando na onda tem uma mensagem dentro se eu rastejar mais um pouco Estendo o braço e bebo a mensagem que diz Fico boiando e o sol brilha indo e vindo no mar de pedra verde em cada onda tantas pedras A pedraria verde uma imensa pedraria toda verde arranco um pedaço de mar e me enrolo nele Pomba quero saber agora quem tem um vestido igual Quem Estou acesa com um holofote aberto no ventre Deslizo e o ventreporto me leva às furnas onde me penetro e me escondo Cuidado A voz me avisa e abaixo a cabeça e vou remando agachada porque o teto é baixíssimo Ouço o plaqueplaque da água batendo solta nas paredes O escuro das gretas Borbulhos dos bichos de sombra colados às folhagens o maior deles me espiando por entre a mata de pêlos vivos grossos Barbatanas Levanto o remo e bato com força mas as ventosas se enrolam em minhas mãos e me puxam para o fundo mais fundo me larga Arrebento os fios nos dentes e fico batendo até a dor ficar insuportável Acordo Estou molhada de suor Fico olhando meu ventre latejante Limpo a cara no tapete Tinha que engravidar Tinha Debilóide Engravidando igualzinho Mas o ano que vem me arranco feito um jato a diferença é essa ela virou formiga e eu Me desgrudo desta pele e nasce outra sem tatuagem sem nada Empurro a garrafa e fico rindo toda dourada por dentro Depois do mar e do leite e sei lá Não interessa Digo que me atrasei porque aquele negro da estrada que era tão meu amigo de repente voltou e me agarrou rasgando meu vestido olha aí meu vestido rasgado Que é que o Doutor Algodãozinho tinha de negro A unha A unha Lião fica fumegando com a negrada Tem paixão pela negrada Corintiana Disse que era abominável falar assim e só não deixava de me cumprimentar porque era minha amiga mas se eu continuasse era capaz de Compreendo minha boneca compreendo mas quero só ver se você se casaria com um negro e ela ficou histérica é evidente que sim e só não casava porque não queria nem saber de casamento mas se um dia se apaixonasse por algum pensa então Penso sim Penso Então não sei Você e toda essa corja tem ódio de negro Que nem eu Todo mundo tem ódio Mas não tem coragem de dizer e faz aquele olho bonzinho O ano que vem Destranco a matrícula e faço meu curso fácil sou inteligente à beça Uma casa podre de chique na praia convido convido todos podem morar lá não sou mesquinha dou pra vocês também Quero jóias Tudo brilhando Jóias grito e sacudo Max que me olha mas continua dormindo Max vou me casar com um escamoso mas não te abandono nunca Está ouvindo Max Posso casar com mil escamosos e não te abandono nunca nunca Dorme ele diz e sua baba escorre fiodemel na barbicha Beijo sua mão seu peito Beijo a medalhinha de ouro que está toda enredada na corrente que santo será esse Beijo a medalha beijo seu pescoço Mas não te abandono Pra onde eu for te levo comigo e te protejo Protejo Compro uma casa linda fique com ela pomba A gente faz uma desintoxicação com leite a gente se cuida fique tranqüilo Quando o escamoso começar a encher o saco me desquito Metade das fábricas e livre livre Desabo no tapete e gemo de dor bati com as costas onde Foi aspirina que você me deu Max Acho que foi aspirina estou podre de lúcida olha aí Ele agora está com soluços Deve estar com os pés frios cubro seus pés tem pés de estátua com as unhas cortadas retas como nos pés das estátuas Se fosse jogado assim nu no meio de todos os bastardos da minha mãe se destacava na hora como se tivesse vindo Pode enfiar aquela meia na cabeça e usar a brilhantina e não fica rançoso nunca Mas esconder a minha marca A marca escatológica a Lião fala demais em escatologia tinha uma peça fomos ver e ela vibrou Diz que é a visão do fim do mundo escatológico sei lá Mundo deles que o meu e outro Me viro pra fazer sumir a marca mas pensa que Só no teatro no teatro fica muito bacana o cara ensinar à trapeira a fala nobre aquele cara de roupa xadrez como era o nome dele Tudo mentira Enquanto a gente não tiver aquele saco de ouro a pronúncia não funciona porque vem a Lorena e descobre Danese Um inseto O ano que vem Max O ano que vem stop está ouvindo Você só vai tomar leite Chega Acredita em mim Max nunca mais está ouvindo Max diga que acredita em mim pelo amor de Deus Ai Coelha está doendo Diga nunca mais vamos diga nunca mais Nunca mais Nunca ele repete e se sacode todo em meio a um soluço mais forte Colo minha boca na sua e assopro até passar o soluço Ele se debate e se aquieta sorrindo para mim ou para alguém que está atrás de mim acho que agora está vendo a mãe faz essa cara quando vê a mãe Começo a chorar mas não estou triste estou é estimulada como aquela barata que fez a travessia em cima da opa estourando no vulcão e chegou inteira do outro lado não chegou Também chego do outro lado e ainda volto pra te buscar Vamos ter dinheiro meu amor e você larga esse trabalho perigoso e sujo tenho tanto medo que te apanhem Max Se te apanham A Lião disse que estão apertando demais o cerco estou com muito medo Acorda Max estou com medo Não quero mais que se arriscando pros menininhos não Me ajude Madre Alix eu não quero mais assim não quero ouviu Max Vamos começar tudo de novo fazer esportes hora de esportes vamos começa ordeno agarrando seus tornozelos Mexa essas pernas vamos nadar um pouco olha aí o japonês cronometrando Faça motorzinho depressa umdois umdois mais força nisso Umdois Beijo seus pés e neles enxugo as lágrimas que não param de cair Comecei chorando baixinho e agora estou aqui aos berros tenho ódio de chorar porque me estraga a cara que tem que ficar em ordem apostei tudo nela está me ouvindo Mas agora tenho que berrar tem vento mas grito mais alto do que ele ô Ôooooo Rolo nas nuvens e caio num fio dental que me apara na gangorra tem uma moça de porcelana branca na outra ponta eu subo e ela desce Vestida de primavera em que jardim ela estava Tira flores do cesto que está no colo e as flores têm aquele arame que vara i comia não essas flores não Essas não eu digo e ela começa a cantar fui andando pela ponte a ponte estremeceu Seguro a minha com a ponta da língua água tem veneno maninha quem bebeu morreu Mas eu não bebo eu não que já sei eu não grito e ela saiu dançando pra se encontrar com as irmãs que descem o gramado de mãos dadas São tão brancas e leves com os vestidos de porcelana uma dizendo eu sou o verão A outra encapuzada dizendo A musiquinha é feita dos sinos de Lorena e fala na alegria de cada estação ah quero essas estátuas no jardim da minha casa somos as quatro estações as quatro irmãs Agora a encapuzada chegou bem pertinho de mim e arrancou o capuz Sorriu Não tem os quatro dentes Escondo a cara no lençol mas ouço o riso da formigona desdentada com sua boca de fenda Se eu pudesse Não tem importância Nenhuma importância diz o anão que passa Pisca pra mim Puxo sua barba e rolamos na maior alegria ô como te amo Arranco o cigarro da sua mão e subo com a fumaça pelo cone do abajur Felicidade é isso é se preparar calculando tudo ponto por ponto Depois jogar no lixo as muletas todas Boa essa palavra Estruturar Jogar tênis meu lindo Sempre quis aprender lembra Estou com fome gemeu ele Tinha os olhos fechados Que fome Ela encolheu as pernas e apoiou o queixo nos joelhos Bateu a cinza no lençol Quero montar também Saltar obstáculo acho demais aquela roupa vermelha caça a raposa ainda tem raposa Um espetáculo o controle sobre o cavalo controle de nervos Estendeu a mão que tremia Se desintoxicar numa clínica bacana a Lião fala desintochicar Riu Levaria as duas para a casa da praia até que gostava bastante daquelas duas bestas Gostava sim Estendeu a mão que segurava o cigarro Um bom tratamento e não teria problema Na realidade menos resiste a um Porsche na garagem A um Renoir na sala Heim Haveria ainda algum Renoir à venda Max tem Renoir à venda Punha um anuncio Pergunta de anuncio Riu Metade gozação metade pra esnobar Chocar esses bastardos Milionária sulamericana compra um Renoir de preferência com as demoiselles seiláoquê de cabelos da cor do meu colhendo flores no campo Banhistas de calcanhar corderosa existe pé com calcanhar assim Lorena disse que ele pintava a classe média francesa mas se classe média eram aqueles veludos e flores queria eu estar nessa classe A gente não veio pra se aporrinhar ahn disse ele estendendo a mão Traçou com o dedo um círculo no ar Veja a cor no avesso Onde vai esta louca Ana Clara distendeu as pernas Deslizou pelo corpo nu as mãos abertas Fechouas na altura do ventre e golpeouo com fúria O olhar intenso se fixou no púbis Deixou tombar sobre ele a mão fechada num último murro enfraquecido Mais despesa Mais chateação Engravidar de um duro desses E agora dorme como um anjo Pois agora não dorme Max acorda que eu quero conversar Quero conversar Cuidado Duchinha o verde é venenoso Vai no vento tão louca Quando menino ia com a irmã colher cogumelos mas onde Onde é que podia haver tanto cogumelo assim Guardachuva de sapo Tão úmida a construção que começaram a brotar por entre as pilhas de tijolos cobertos de limo O mato rasteiro E os cogumelos brancos lembra Era bom despedaçálos entre os dedos cravar as unhas naquelas copas penugentas que se deixavam esfrangalhar sem resistência E pisar nas formigas ruivas mas nas baratas não Faziam craquecraque debaixo do pé enquanto a massa silenciosa saía como de uma bisnaga que se aperta até o fim Eram peitudas e nadavam bem naquele bravo nado de peito vupt Vupt Mas tremiam de medo quando eram caçadas Também os cogumelos tremiam com suas calvas brancas Arrogante só a formigona de nariz arrebitado e fenda na boca rasgada de uma orelha à outra Ria ria com o bocão desdentado a bastarda Pensar que podia voltar de novo tão traiçoeira Às vezes era apenas uma bolinha de gude E de repente no vidro preto ia se desenhando uma cara que crescia com a rapidez do inferno e sob as ventas arrebitadas prestas Acho que estou precisando pomba Mas tenho que para todo mundo já está com o saco cheio só aporrinhações quem quer saber Quem Só Madre Alix que é santa Estou ouvindo filha pode falar o que quiser se isso lhe faz bem Mansamente Ana Clara foi enrolando e desenrolando no dedo uma ponta de cabelo Faz bem sim Faz bem A única desinteressada a única Até o Kléber Louco pra agarrar a gente o sacana Que respeito posso Que respeito perguntou ela golpeando o colchão Bestas Todos uns safados e bestas Melhor fluido de isqueiro que qualquer fluido é melhor do quê Caríssimos Mas precisava Quase endoidava às vezes de vontade de ficar falando das aporrinhações Dos sonhos E pagar com um cheque pela falação Puro masoquismo Porque fico falando tudo o que mais me feriu me ralando de novo com o que fiz e não fiz E pagando ouro em pó pela autoflagelação Os sonhos Alguns voltavam como aquele das flores Flores enormes se abrindo e se fechando de todas as cores as pétalasportas entre entre Mergulhara até o fundo do caule se apertando como um túnel lá onde corria um rio licoroso Bebeu o rio até chegar à cerejinha espetada num palito Mordeua e ela se contraiu dolorida sangrando licor vermelho Tirou o fio de arame era num fio de arame que o coração estava espetado Comi meu coração descobriu deslumbrada pronto não ia doer nunca mais Mas veio um copo transbordante de cerejinhas vermelhas milhares delas se multiplicando espetadas nas farpas Meu Sagrado Coração de Jesus Meu Coração de Jesus não era a mãe rezando Rezava e pedia a morte Me tire meu Coração de Jesus me tire Ou tire ele Tirou ela Que o Jorge ficou no melhor da saúde Era o Jorge ou o Bingo Podia também ser o Aldo Ou o velho do lábio leporino na época não sabia o que era lábio leporino Vendia bilhetes cobra Borboleta A gravura colorida estava numa moldura sem vidro Que vidro podia enquadrar aquele coração vermelhoescuro entalado nos espinhos gotejantes Tirou ela Os outros todos ficaram Ou morreram também Sei lá não interessa O velho de lábio leporino tinha um nome tatuado no peito Quero comer Coelha Está bem então dorme A agulha subiu tremelicando e pairou sobre o disco Veio da mesa uma vaga onda de ruídos filtrandose pastosa através das persianas fechadas Quando a agulha tombou de novo no prato Ana Clara relaxou a posição tensa odiava aquela música mas ainda assim era melhor do que ficar se ouvindo Voltou o olhar desinteressado para o abajur O cone de luz forcejava por entre a massa espessa da fumaça Em redor a penumbra atenuada pela cortina cinzaclaro tomando toda uma parede acetinada tela metálica defendendo estática a intimidade do quarto Ele tateou por entre o lençol Você está aí Coelha Sacudíamos tudo e a poeira voltava e cobria tudo e a gente sacudia a roupa o cabelo a vassoura a comida Pronta entrega em setembro próximo Dez apartamentos por andar falar com o guarda no subsolo Cal e cimento e o cheiro frio Também ela com seus sonhos também a cabecinha de alfinete sacudindo o pano de prato e dizendo que estava no sonho tão contentinha passeando e de repente caí num barril de cimento e fui afundando no cimento mole me entrando pela boca pelos ouvidos E de repente filha não era mais cimento era pior ainda era uma fossa Uma fossa Acordo e tenho que me lavar feito louca sentindo o cheiro ainda no nariz Adamastor Esse era o Adamastor As mãos ressequidas batendo os pregos Carregando as tábuas mexendo o cimento Apertava um tijolo em cima do outro e espremido pelo vão escapava Tenho que ir Ele está lá com o pãozinho todo roído me esperando Quem Aquele lá Já descascou um pãozinho inteiro ele gosta de ficar descascando o pãozinho Corintiano também Ele e a Lião O que é corintiano perguntou a Lorena ela nem sabe o que é futebol você já pensou em falar com a deusa Diana sobre futebol Então Também detesto só negro Mas sei essa coisa de corintiano Branco e preto que nem a Lião Está me esperando lá na mesa Esse meu noivo Você tem um noivo Coelha Tenho Meu noivo é um saco mas tem oriehnid Ele é bonito que nem eu É um anão O corpo é coberto de escamas as escamas começam aqui na barriga e vão subindo subindo e quando chegam aqui debaixo do braço está vendo prosseguiu ela avançando as mãos Aqui está vendo bem Aqui tem escama à beca Ele se sacudiu num acesso de riso Enlaçaramse rindo Tinha a história da morte que montou nas costas do velho e não desmontou mais o velho pescador ficou sendo o cavalo dela lembrou Max acariciandolhe de leve o bico do seio E daí Acabou A cozinheira lá de casa sabia tanta história Vamos Coelha vem comigo e te mostro um diamante da cor dos seus cabelos te mostro os jardins os templos Te mostro o sol e minha casa pintada de branco te mostro o Afeganistão te mostro Lá os preços são irrisórios Te compro coqueiros camelos Quer um camelo Coelha Te dou um camelo você passeia montada num camelo Ahn Você disse que montou um dia num cisne lembra Lembra Max Você disse que montou num cisne que cisne foi esse Hein Responde que cisne foi esse Responde senão leva um murro Montei num porco Ela desceu o punho fechado e golpeouo no queixo Uma gota de sangue escorreu lhe do lábio e se infiltrou na barbicha Quando ele passou a mão no queixo e viu o sangue voltou se de bruços os ombros sacudidos por soluços Você quebrou meu dente Quebrou meu dente Quebrei nada mentira Quebrou Quebrou Ela agora se equilibrava de joelhos na cama puxandoo pelos cabelos para verlhe o rosto que ele escondia nas mãos Max pára com isso abra a boca vamos Abre essa boca Apoiado nos cotovelos ele sacudia a cabeça a boca fortemente fechada os olhos fechados Negouse num grunhido humhum Mas não resistiu às cócegas Ela inclinouse sobre ele Seu cretino Você me assustou seu cretino Outra vez que me assustar assim quebro de verdade ouviu isso Com a ponta do lençol limpoulhe o lábio ferido Está doendo amor Juro que se tivesse quebrado algum dente seu nem sei Pode me bater vamos acerta aqui bem aqui Indicoulhe o ventre Ele uniu os polegares e abrindo as mãos como asas baixouas sobre Ana Clara A lua Pouso suave na lua Estou grávida Grávida Um filho Coelha Ah eu quero esse filho Me dá pelo amor de Deus me dá Eu quero esse filho ahn Ele disse que quer nascer ouvi agora a falinha dele está tão contente quero nascer ele disse Vamos ficar riquíssimos compro uma ilha é facílimo comprar uma ilha no Brasil Tem terra de dar com pau Por que você não se enturma com esses mafiosos Podia me dar um iate Um helicóptero Eu saía nas minhas besouragens Vamos fazer um cruzeiro pelo mundo Coelha Convidados fabulosos A Jackie vai aceitar o convite pergunto e ele fica me olhando inocente A Jacqueline Onassis seu bobo Ela vem A Onassis pomba Ele franziu as sobrancelhas Suspirou Fomos amantes É muito peluda tem pêlo até no peito segredou agarrando minha mão e me puxando para a confidencia maior Descobri uma coisa impressionante ela tem seis dedos em cada pé Quero rir mas lembro Que é que eu digo Nesta altura já depelou dez pãezinhos e agora pica em mil pedacinhos o palito com que pautou os dentes O olho virou uma pedrinha de gelo Tenho que contar uma história bem contada Sou a Gata Borralheira meu príncipe Chegou minha tia rica com minhas primas peitudas e me proibiram de sair de puro capricho a mais velha e mais nojenta fazendo beicinho mama mama a prima é mais bonita do que eu Uá uá Cobriram minha cabeça com tanta porcaria que quando chegou o cara da cometa aquele dos avisos só viu no borralho um monte de cinza Além das vossas bigodudas filhinhas não existe no vosso palácio nenhuma outra donzela que possa ser a dona deste sapatinho A tia então puxou as filhas para o meio do palco Nenhuma meu senhor Na realidade só temos na cozinha uma trapenta bastarda que jamais poderia calçar tal mimo Vamos meus tesouros cortem as pontas dos vossos dedinhos e o sapatinho vai servir como uma luva Que horas são As horas tenho de saber as horas Meu coração está tão cheio de alegria tão cheio Vou de cara lavada em dez minutos fico pronta E então Ele acha lindo cara lavada Bossa natureza Beleza despojada diz a Lorena Tudo pra ela tem que ser despojado mania com despojamento está certo certíssimo vou despojada Entro e ele olha o relógio Mas seu relógio não está adiantado amor Nem me responde só fica batendo no mostrador a ponta da unha tem unhas nojentas com aquela pele invadindo tudo Sardas nos dedos Um lixo Meu relógio não adianta nunca Alma de relojoeiro devia ter nascido na Suíça Aproveita e dá corda roqueroque Onde esteve Acontece que comi no Pensionato uns pastéis de camarão e fui parar no ProntoSocorro uma intoxicação monstro quase morri Vai querer saber em que ProntoSocorro estive Quem me atendeu Os remédios que tomei Detalhes Detalhinhos Vamos Todos Um desbunde resmungou ela deslizando para fora da cama Acendeu a luz do banheiro mas recuou diante do espelho Bateu as pálpebras aturdida Desviou da própria imagem o olhar enfurecido Afundou as mãos na cabeleira cinco Atenderam Ninguém na janela para me chamar Ninguém Perdão foi engano disse a voz opaca toda voz de engano fica opaca Imagine se Lião escrevesse nesse tom assim opaco Tão nítida Nítida demais os entendidos querem opacidade na linguagem uma certa névoa confundindo sutilmente a silhueta das palavras Biombos nas entrelinhas guarnecendo amo essa palavra guarnecendo o mistério das letras E as letras sem mistério em pleno coito com o Demônio Há orgasmo O Demônio vai e vem por linhas tortas trançando os cabelos das amadas em nós inextricáveis E quem vem trançar o meu cabelo Ai meu Pai Disse que rasgou tudo Melhor assim coitadinha Ninguém mais vai ler que em dezembro a cidade inteira cheira a pêssego Outra vez o telefone Algum terrorista perguntando por ela Algum noivo perguntando por Ana Turva impressionante como Aninha faz noivos Antes desses já teve uns três Noivos e dívidas abre conta em tudo quanto é butique montes de vestidos Quilos de quinquilharias Uma aflição de se cobrir de coisas que ficam bem nas vitrinas Nas revistas E não precisa disso uma cara maravilhosa Podia se vestir como as gregas apenas uma leve túnica Mais nada Nada murmurou Lorena tirando da prateleira um longo colar de âmbar Enfiouo no pescoço chegavalhe até quase os joelhos Deu corda na caixinha de música e ficou olhando a gravura da tampa Beatriz e Dante na ponte Ele se afastou um pouco para deixála passar o olhar incendiado a mão direita apertando o coração Sou Beatriz beata e bella arrastando a cauda do meu vestido de púrpura Na ponte não mais Dante mas MN trespassado de amor e rugas Lorena Acertou no canto do espelho o pequeno flagrante que Irmã Clotilde tirara diante do portão ela no meio de Ana Clara e Lia as três rindo um riso ardido de sol Não envesga Ana Clara E não faça careta Lorena você está fazendo careta A pirâmide A poeta HH descreveua Dentro do prisma a base o vértice de suas três pirâmides contínuas recitou E baixou o olhar para a própria imagem refletida Se emagrecesse mais um quilo ficaria com a idade da Beatrizinha uns nove anos e meio E MN com a mulher de ancas e peitos de encher as mãos Megera Bruxa sussurrou ela fechando os olhos Sacudiu a cabeça Cabecelha poluída pensou e correu até a gaveta onde guardava o incenso nada como um pouco de Jaipur Rose para purificar o ambiente Sou tonta e fresca Mas e se MN a levasse mais a sério Incrível mas quando nos levam a sério ficamos seriíssimos Aspirou até o fundo a fumaça com seu perfume de rosas Um perfume antiquíssimo Velórios A morte poderia ser apenas isto incenso e música Jazz é o jazz que combina com a morte em desespero Morte em pecado Foi até o tocadiscos e aumentou o volume que lhe coiceou os ouvidos com a força de um cavalo selvagem Não sei explicar diria Lião se entrasse agora E durante vinte minutos ficaria explicando porque esta música tira o caráter Mas o que ela queria que eu ouvisse A internacional Devia estar cantando aos gritos em algum aparelho grouponsnous et demaaaain Demain Amanhã o serviço meteorológico já anunciaria trinta e oito graus a sombra com trovoadas no fim da tarde Agrupar é conspirar e transpirar Tinha repugnância pelo suor Podia ser oca às vezes mais era com política que ia encher esse oco Não acreditava mesmo mu comunismo não acreditava em nada disso e como não sabia fingir o que em geral fazem as pessoas Detestava o jogo do fazdeconta Se mal tenho tempo e energia para cuidar de mim imagine Um jardim mínimo três ou quatro plantinhas Cercado de murro por todos os lados E as tarefas suplementares Como tirar o pó dos livros que a Dona Sebastiana não tirou Aumentou muito secundo a Bulinha O pó dos vivos e o pó dos mortos Muda a cor do pano amarelo para os vivos e roxo para os mortos vi o motorista do carro fúnebre limpando com um pano roxo o caixão que devia ter vindo de longe A família esperando e ele passando e repassando a flanela roxíssima na poeirinha da tampa O Demônio DosOlhosDeLua deve se vestir de preto mas a Morte se veste de roxo Com uma rosa de lamê dourado na peruca ah MN quando olhei através do vidro da porta e vi você passar inteiro de branco Luvas e máscara ai quase desmaiei Exorbita aquele pedaço em que vai se aproximando da mesa camuflado e silencioso O campo de batalha histérico de luzes os aparelhos Os ferros Milhares de preparativos tudo pronto E a Morte com sua rosa dourada sorrindo de braços cruzados Sua traidora sussurrou Lorena examinando o furinho na lombada do livro Abriuo e soprou o furo que prosseguia ondulante por entre as páginas Onde agora Onde perguntouse e apertou os olhos não não era em Rômulo que estava pensando era no caruncho Tão sutis os carunchos Labirintos galerias Voltouse para o calendário que pendia da parede flâmula com os meses estampados na seda Este era o Ano Solar Nunca o sol esteve tão perto pensou escancarando a janela Bom tempo para fazer amor mas não revolução que calor muito forte em subdesenvolvido amolece Desfibra Lião entendia bem disso quanto mais calor no Terceiro Mundo mais terceiro ele fica Nada gritou Lorena gesticulando em código para Irmã Priscila que apareceu na janela do casarão A freira abriu os braços e respondeu também perfilada como um marinheiro sinalizando no convés Nada E arrematou a mensagem levando as mãos ao peito para exprimir seu sentimento Com um gesto pálido Lorena agradeceu e ficou mordiscando a conta maior do fio de âmbar Se até agora não telefonou não telefona mais Era ir pensando na rotina do dia banho Ginástica O certo seria fazer a ginástica antes mas devia estar com a pressão baixa precisava da água quente para o estímulo inicial Embora passageiro Ai meu Pai Almoço com a mãe como estaria ela Péssima naturalmente Não esquecer de pedir a chave do carro diasim dianão Lia vinha pedir aquela chave por sorte a mãe era vagotônica não lembrava que já tinha emprestado na véspera Queira Deus que Lião não seja metralhada dentro dele Faculdade Fabrizio devia estar por lá atiçando a greve Laçálo para um cinema festival Greta Garbo ih paixão por essa mulher O sofrimento e o gozo por saber exatamente como é a mulher eterna ela que era efêmera Lorena a Breve pensou e franziu a testa Mas a poetinha neurótica devia estar desencadeada ah querido ame uma p mas não ame uma neurótica que a p pode virar santa mas a neurótica Montar naquela moto e se agarrar à sua cintura sentindo o cheiro de couro da jaqueta bichohomem trepidando na ventania vamos Fabrizio Minha mesada está inteira comeremos como príncipes bolinho de bacalhau e fado Choraria potes porque estaria o tempo todo pensando cm MN que por sua vez estaria pensando no filho mais velho com minhocações agudas ele tem cinco filhos Foi enrolando o colar em torno tia cabeça dando voltas até formar com o fio um diadema de contas na altura das sobrancelhas Se uma das freirinhas fosse à drogaria pediria que lhe comprasse um creme emoliente para as mãos e Modess Lião acabara com o estoque As duas acabavam com todos os estoques de tintas e vernizes e não repunham em seguida sabonete fio dental algodão e etcétera Então na hora que preciso não tenho E nenhuma das duas tem Com acetona a mesma coisa Ana levara o vidro cheio e o vidro voltou com duas gotas no fundo Também éter Que loucura Precisava fazer alguma coisa Mas o quê Ser compreensiva não era ser conivente Um tratamento rigoroso talvez ajudasse Mas jacaré quer ser tratado Só pensa no cerzido e no industrial Vaginoplastia Meu melhor ângulo murmurou voltandose de perfil O colar já lhe desabava sobre os olhos Prendeuo nas orelhas A estrutura social Segundo Lia a única responsável era a estrutura social Fez uma verdadeira conferência sobre essa estrutura Entendo querida entendo Estou de pleno acordo Mas e Ana Clara Fora do contexto das estruturas a piedade perplexa de Madre Alix E esse noivo Também não vai tomar providências espantouse Lorena Lá estava Ana devidamente classificada no reino da palavra e no reino de Deus Mas isso era suficiente O controle é meu paro quando quiser respondeu lhe Imagine Há muito que já não tinha mais as rédeas nas mãos Abriu as próprias Mas quem é que tem A própria Lia que falava sempre de cima de um caixote tinha ainda essas rédeas Perdeu o namorado perdeu o ano por faltas buleversou tudo Nem banho mais toma E com este calor pensou Lorena lembrandose em seguida de comprar um desodorante achava deprimente recorrer a desodorante o que resolvia era água e sabão Mas se ela não tem tempo entende Deitouse de costas no tapete Entendo Lia de Melo Schultz Entendo Ana Clara Conceição entendo tudo porque estou transbordando de amor Jesus salve minhas amigas Salve minha mãezinha tão glingueglongue Meu irmãozinho com seus carros suas mulheres e sua culpa sentase à direita de DeusPadre mas pensa que esquece Salva meu irmãozinho e salva MN no seu casamento buleversado se for para a alegria dele salva também esse casamento ai meu Pai Que o Fabrizio não se enrole nu poetinha que não trombe sua moto salva todo mundo pacíficos e delirantes executados e executores Salva meu gato Dominus vobiscum Et cum spiritu tuo Ite Missa est digo abrindo as mãos com as palmas voltadas para num Duas salvas vazias aparando a graça Que um dia háde vir Jesus eu te amo Ia esquecendo salve também os meninos Lião estão presos ou vão ser salve os meninos tão fortes e tão frágeis somos todos muito frágeis Vou até os lenços de papel e neles enxugo os olhos Lorena A jovem voltou engatinhando até a cama Estendeu os braços ao longo do corpo e foi levantando as pernas unidas e retas os pés em ponta Conduziu as pernas para trás os quadris apoiados nas mãos Assim que tocou os pés na cabeça com a cabeleira em leque aberta no colchão tirou as mãos dos quadris e pôsse a apalpar as nádegas Podiam ser maiores Incrível como homem gosta de mulher de bunda grande Lorena você está aí Trouxeste a chave Não não trouxe Irmã Bula tem nos bolsos bulas e lenços não chaves Agora deve ter encostado na porta o ouvido que ouve melhor quer saber com quem estou falando algum homem Curiosidade e medo Coragem minha irmãzinha coragem Os olhos de coelho velho lacrimejando no lençolençol Dou uma cambalhota e caio em cima da almofada que abraço com toda força de que não sou capaz Ria então resolveu bater As pancadinhas parecem fazer parte de um código vi no cinema antigo um gangster lustroso bater assim na porta do chefe as pontas das unhas provavelmente esmaltadas arranhando sutilíssimas Entre gritei Ela entrou toda encolhidinha sempre entra com esse ar de quem pede desculpas por ocupar um lugar no espaço Avisa que não vai demorar mas se instala e fica cinco horas Cheirou as rosas da caneca fez um gesto de enlevo ai que delícia Parou diante da gravura de Chagall Sabe que estou começando a gostar desse seu quadro É esquisito disse escondendo as mãozinhas nas mangas do hábito Um cavalo de véu e grinalda ora veja É a centésima vez que faz esse mesmo comentário e naturalmente vai acrescentar que o azul é bonito É um casamento Irmã Eu sei mas essa sereia Não é uma sereia Um casamento tem que ter de tudo O azul é bonito Levanto as pernas para o teto até tocar na lanterna Olha Irmã Bula posição de vela Bate o vento e a chama vai vergando para trás mais ainda está vendo No chão faço melhor O sangue vai todo para a cabeça filha Pode dar um derrame É ótimo para a circulação Deve ser bom para hemorróida murmurou nostálgica Suspirou A velhice é uma doença filha Dói tudo algumas partes mais do que as outras Deus sabe o que faz louvado seja Deus Louvado seja Do meu quarto vi que você acordou tão cedinho Pensei que precisasse de alguma coisa Preciso de solidão Hum E de umas carnes aqui não existe um popô menor existe Com roupa esporte ainda passa mas num longo já pensou Ela não ouviu Tem olhos membranosos Os olhos dos peixes daquela naturezamorta da nossa sala na fazenda Caçarolas peixes e coelhos tudo morto Uma trança de cebola pendia da mesa e só a trança dourada tinha um certo brilho A trança de Julieta dizia o paizinho Tanta insônia filha Não gosto da noite só do dia Acho tão bom o sol Queria morar num lugar onde só tivesse sol Um lugar sem noite sem dor Com a ponta do pé faço balançar a lanterna Se pudesse entrar o pé lá dentro até chegar à lâmpada Seria a glória Queria morar num lugar onde não houvesse a morte onde ninguém aborrecesse disse e teve um sorriso radiante como se acabasse de descobrir esse lugar Agora está examinando as unhas secas invadida até quase as pontas por uma película tão seca que se abre nos cantos em espigas sequíssimas Enxugou no lenço os olhos lacrimejantes Quer ser eterna Irmã Eterninha Mas um lugar assim já é a morte A sorte deixame rir ha ha Acho que foi essa sonsinha que escreveu a tal carta anônima com milhares de delações Lião uma comunista fabricante de bombas Ana Turva uma viciada em rápido processo de prostituição Eu uma amoral indolente parasita da mãe devassa velha corruptora de jovens O que se pode esperar de uma menina com uma mãe semelhante Tem mais mágoa da mãezinha do que de mim Mulher sem escrúpulos que internou o marido desmemoriado e foi torrar o dinheiro com o amante que podia ser seu neto O que não é verdade Mieux não é tão jovem assim ai se mãezinha soubesse E aquela outra carta que denuncia Irmã Clotilde como namorada de Irmã Priscila barra pesadíssima Ana foi falar com Madre Alix e viu a carta em cima da mesa Se é que não mentiu a carta exigia medidas drásticas para se pôr um paradeiro em tamanha abominação E Madre Alix Tranqüila Imagine se vai entrar num moinho desses No seu caderno não tem receita para insônia pergunto em meu ouvido Dezenas de receitas filha Mas me atacam o fígado Continue então com suas cartas maravilhosas minha querida Uma Para o gerente do supermercado outra para as divertidas senhoras do sobradinho azul outra para o homem do pão do leite milhares de cartas anônimas nas insônias inspiradíssimas o olho vertendo água o calo aumentando no dedo contraído de remorso e medo Mas escrevendo escrevendo sem parar a letra mascarada o estilo mascarado sai Satanás E Satanás sentado no rabão enrodilhado lambendo os selos Tem o Diabo principal rei de todos Os outros são diabinhos menores colaboradores nas tarefas secundárias alfinetes palitos de pecados São esses que transam dentro e fora de mim e preciso acreditar na atualidade do Diabo disse o Papa Mas Sua Santidade eu não acredito em outra coisa Antigamente eles moravam nos desertos rolavam debaixo do sol se esfregavam na areia escaldante montavam nos camelos mas agora a morada ideal é nosso corpo mesmo Nunca tanto capeta curtiu lauto corpo que é quente como o deserto Com a vantagem de ser macio O local preferido é o ventre quer dizer toda a zona sul com as ramificações nas partes Apertei as minhas Quando MN entrar eles vão sair aos pulos O exorcismo pelo amor Aquilo que pensamos se reflete em três espelhos do absurdo leio no poeta que abri ao acaso consulto poesia como o paizinho consultava O Velho Testamento sempre ao acaso Três espelhos do absurdo Esse é o meu E os dois outros Se MN não me amar urgente viro um livro Você fala tão baixo Lorena Que foi Ai meu Jesus por que ela não faz aquelas ligações maravilhosas Tem um fiozinho cinzento que sai de um botão no ouvido e vai para a rua como antena plastificada facilita tanto Mãezinha contou o crime com pormenores devia ter um álbum com recortes policiais como essa daí tem o álbum de bulas o pederasta velho enforcado pelo menino no fio do aparelhinho de surdez ouvindo a morte vir vindo pelo fio da pilha rouquejando tão rouca que e que você está fazendo amor E o amor apertando mais nó Enfim estão velhos demais Ela põe a mão na pequena saliência a que se reduziu a orelha sob a touca Crime digo Tem havido crime à beca Um despropósito filha É a bomba só pode ser a bomba No meu tempo não usava nem a parcela mínima dessa violência Até as bulas você precisa ler as coisas pavorosas que as bulas dizem agora Uma diferença Antes animavam eram delicadas uma delícia ler aquelas bulas Mas hoje Tão cheias de ameaças tão duras Irmão Mata O Outro Numa Brincadeira Irmão Mata O Outro podia ser assim a manchete do jornaleco de escândalo Em destaque o depoimento da irmã caçula só as iniciais por se tratar de menor Disse L V L que eles estavam brincando Rômulo corria perseguido pelo irmão Remo que de repente resolveu apanhar a espingarda que se encontrava no escritório onde o fazendeiro costuma deixála em geral descarregada De posse da arma gritou para o irmão fuja Rômulo que vou te matar E deu um único tiro certeiro e mortal no peito da vítima Embora houvesse grande número de empregados trabalhando na sede da fazenda nenhum presenciou ao acidente apenas a irmã caçula viu o menino cair sangrando e tomada então de grande susto correu para chamar a mãe que se achava nos fundos do imponente casarão em estilo colonial O fazendeiro viajara para a capital naquela manhã retornando ao anoitecer quando em meia de grande desespero tomou conhecimento da tragédia que se abateu sobre seu lar Houve retrato Não não houve Mas todo jornal tem seu desenhista e esse caprichou na composição da cena em traços veementes a mãe está sentada no chão com Rômulo no colo uma das mãos sustentandolhe o tronco a outra escondendo a ferida Está desgrenhada e em prantos mas no seu sofrimento há qualquer coisa da inexorável calma de quem chegou ao último degrau e sabe que daí por diante nada de pior poderá lhe acontecer O desenhista é elogiado não foi ocasional a relação do seu desenho com a Virgem amparando o Filho Morto Giovanni Bellini Museu de Milão Em Milão há uma pracinha dos surdosmudos lá eles se encontram todas as tardes Os gestos criam um som farfalhante como folhagem eu fechava os olhos e ouvia ssssssss O mais conhecido foi o crime de Dona Brunilda uma fazendeira encontrada sem cabeça disse Irmã Bula segurando a própria Foi pavoroso Durante meses e meses procuraram a cabeça da pobre senhora prosseguiu a freira voltando o olhar inquieto para as prateleiras da estante Acharam Que esperança Nem o assassino nem a cabeça Falouse muito que foi o marido parece que ela gostava do preceptor das filhas um moço muito bonito que tocava piano e usava flor na lapela Um cravo Serenata de Schubert Fumigações e perfumes Sons de violino e ninguém tocando violino Roçar de asas O Anjo Sedutor na sombra da cortina Alguém escreveu uma carta anônima ao marido digo Por que penso em meu pai Em Rômulo Perco a vontade de brincar Se ao menos MN me dissesse eu te amo Ou o Fabrizio A senhora se lembra do Fabrizio Fabrizio Aquele da motocicleta Corro até a janela o telefone As janelas vazias O jardim vazio Ela me interroga com seus olhos membranosos Virgem também nos olhos não não quero ficar assim eu não Ah MN meu amado Meu amado Aperto no pescoço o colar de âmbar Boto a língua para fora Se ele não me procurar me enforco Serei a primeira suicida canonizada Ela ri sua risadinha de gnomo uh uh uh ih ih ih Ah menina Casamento cura isso por que não casa com esse Fabrizio Não posso Ele tem uma perna mecânica Tem o quê Vou buscar um cálice de licor Uma perna mecânica Ela se sacudiu inteira na tosse e no riso Descobriuse a gengiva plástico rosado com os enormes dentes cor de areia em fila indiana mas por que os dentistas fazem dentaduras assim grandes Prodigalidades pelos dentes perdidos O Filho Pródigo voltou maltrapilha e sem dentes os anos tombam mas os dentes caem como os grãos de feijão que Joãozinho e Maria semearam no mato os coitadinhos queriam marcar o caminho de volta E vieram os passarinhos e comeram os grãos adeus lareira acesa adeus infância Por que meu amado por que tanto filho E se enfiar agora nesse cursilho o que você pretende com isso salvar o casamento Mas querido será que não percebe Seu casamento apodreceu salvar o que Naturalmente foi ela que teve essa idéia a bruxa Um homem lindo desses imagine se uma bruxa vai desistir assim fácil Cinco filhos Deve ser gordíssima Celulite nas coxas Os peitos caídos Enfim uma vaca Minha Irmã estou ficando preta preta Reza por mim É de damasco Gosto mais deste do que aquele de hortelã Um néctar Abro as narinas e aperto meu plexo solar O cheiro de Irmã Bula é mais forte do que os licores e charutos flor seca somada a uma vaga pincelada de desinfetante com qualquer coisa de mar se insinuando por entre escamas pálidas ah se respirar agora eu morro Suspendo a vida no ar e me escondo debaixo da almofada a morte está aqui com outra roupa e me olha com seu olho de salmoura Sou capaz de me matar mas não quero morrer Brincando de escondeesconde Menina menina Bebeu o último gole é louca Por um licor Retribuo seu sorriso licoroso Irmãzinha minha Irmãzinha promete que não vai me mandar uma carta denunciando o japonês da pastelaria que fez recheio de pastel com meu gatinho Ai meu Pai Mais um cálice querida Ria apóia as mãos na almofada da poltrona pronta para se levantar Já não sinto o cheiro de maresiaflor desapareceu a morte e em seu lugar está apenas unia velhinha surda e virgem que perdeu o céu por causa das cartas Amar o próximo como a mim mesma Estendolhe a mão Mas de repente ficou desconfiada quer ir embora bastou querer amála para se levantar em pânico tem medo de mim como tive dela Preciso ajudar Irmã Priscila a ralar o coco inventou de fazer cocada mas machucou o dedo preciso ir repetiu Prove antes esse biscoito esse a senhora ainda não conhece eu digo Quando volto com a lata ela está olhando muito interessada para os próprios pés Como tem pernas curtas não consegue tocar o chão e fica com os pés balançando no ar como as crianças sentadas na sala de visitas Tenho que ir filha Mas não vai Irmã Priscila já está ralando o outro dedo ah tão longe a fala do ato Se eu não falasse tanto em fazer amor se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer se Lião não falasse noite e dia em revolução É cedo Irmã Bula Essa revista chegou ontem digo oferecendo os biscoitos e a revista Ela passou os dedinhos na moça da capa Mas por que essas moças precisam tirar retrato sempre de perna assim aberta Por que as pernas têm que estar abertas desse jeito Afirmação querida Sexo em ângulo aberto Tanto tempo a mulher andou com ele fechado que agora precisa polemizar coitadinha Fala mais alto A Lião escreveu uns dez tratados explicando isso libertação pelo sexo minha querida A porta mais fácil é muito comprido grito enquanto mudo o disco Bach Encosto o disco na face MN meu amado queria tanto ser amada ouvindo este prelúdio Não peço nada em seguida vou me embora para sempre mas antes você precisa me amar tem que ser você está me ouvindo Não ouviu Apanho a pétala que caiu da rosa e levoa até a boca Façoa estalar num beijo e colandoa ao lábio enfio a ponta da língua pelo furo brincávamos assim com as flores da fazenda Quer ver como ela ouve Irmã minha irmãzinha acho que estou doente penso tanto em sexo Pensa mesmo O dia inteiro Se o Diabo quisesse ser simpático carregava agora a Bulinha na brisa e na brisa de volta me traria MN Ficaríamos trancados no meu banheiro que é tão jóia Se Lião ou Ana Turva chegasse eu diria não posso querida estou num banho de imersão que vai durar duas horas E abro a torneira A Ana Clara disse que ia sair na capa de uma porção de revistas Ainda não vi nada Você viu filha Levo para a cama minha caixa com petrechos de unha tenho esta caixa sempre ao alcance Assim que intuo as conversas inquietas e incertas vou pegando minha lixa e tesourinha para não perder tempo Com isso minhas unhas andam tratadíssimas Até as unhas dos pés cheguei a fazer outra noite enquanto Lião curtia Simone de Beauvoir De Simone de Beauvoir para o sexo foi um passo porque o primeiro sexo porque o terceiro sexo porque o segundo Como fatalmente acontece partimos para o próprio Então o sangue de Herr Karl pairou sobre todas as coisas Apertou meu braço com tanta força que até gemi Não vai me dizer que continua virgem putz Suspirei Vou querida vou Ela então arrancou nos dentes a última centelha de unha que lhe restava no dedo preferido A culpa era de MN claro Burguês incompetente resmungou recortando uma notícia de jornal guarda pastas e pastas transbordantes de recortes sobre política Só restava uma saída sutil não é todos os dias que se encontra um Guevara eu disse e seu olhar amenizou A águia nazista virou pomba coqueiro coqueiro de Itapoã coqueiro Dona Diú sorriu na rede Quando tudo me parece perdido quando nem Miguel consegue me levantar penso em Che e me vem a certeza de que vou resistir Penso às vezes Lena penso que ele tinha que morrer para que eu nascesse de novo Concordei Mas ficaria uma vara se lhe desse a fonte do renascimento Evangelho de São Marcos Não vos maravilheis se vos disser évos necessário nascer de novo Calei o bico e fui depressa buscar uísque para as saudações revolucionárias Sentime tão leve que poderia voar enfim MN já estava de lado E também esse drama da minha virgindade Confesso que de vez em quando preciso falar nisso provoco o assunto alimento as reações me exponho a todas as conseqüências numa necessidade tão aguda de ficar centrodemesa Mas de repente me vem um pudor não sei se será exatamente pudor e não suporto a menor referência problema meu friso e levanto a cerca de arame proibida a entrada de pessoas estranhas Uísque para ela e guaraná para mim tenho paixão por guaraná Quando Lião viu as duas garrafas juntas fez aquela cara de pensadora Marca President Lena Olha o vexame do nosso guaranazinho Adiantei rápida que foi um presente da mãezinha quando na realidade foi presente de MN essas mentirinhas que facilitam a convivência o Papa João XXIII não condenou um santo de Papa Sabendo que não bebo MN me ofereceu a garrafa suas amigas não gostam Não existe delicadeza maior A única coisa que esses calhordas sabem fazer disse ela servindose de uma boa dose O cinema deles também tem classe arrisquei mas nem me ouviu porque já enveredava para sua preleção principal que é provar a decadência da burguesia através do uso de drogas Não sei explicar mas é um erro pensar que a droga é uma atitude antiburguesa entende A última vez que estive em Salvador quase endoidei de aflição tem legiões acrescentou e seus olhos se encheram de lágrimas Os meus também ah era triste demais demais demais O baiano tão próximo do índio em seu estado de inocência Faleilhe justamente sobre isso mas devo ter sido gaúche porque ficou me olhando meio sentida e sacudindo a cabeça Esse seu tom Lorena O tom repetiu Encolheu os ombros Não sei explicar mas E durante horas explicou que a forma mais rápida de matar o índio brasileiro é tentar civilizálo Até certo ponto acompanhei seu discurso mas depois foi me dando assim um cansaço Pois é o índio Tenho paixão pelo índio Mas logo fico pensando em Gonçalves Dias com seus índios divinosmaravilhosos que é que eu posso fazer Ela agora falava nos vícios Aproveitei para encaixar o verso oh Tupã que mal te fiz que assim me colha do teu furor a seta envenenada Mas Lião não se emociona com poesia Inesperadamente desatou a falar sobre a queda do dólar e dessa vez teve razão em dizer que não sabia explicar porque não explicou nada mesmo Se era sobre esse tipo de problemas que escrevia no jornalzinho lá da esquerda os leitores estavam bem arrumados Mas seu trabalho na redação era coligir material Ainda bem Pergunteilhe o que estava fazendo nas horas vagas agora que Miguel estava preso Não tem horas vagas entende Distribuo panfletos oriento um grupo de estudos e traduzo livros Isso quando não aparece uma missão mais importante insinuou amarrando os cordões das alpargatas Senteime também no chão e fiquei fascinada pelas suas alpargatas A sujeira tinha se incorporado de tal forma à lona que nem a mais engenhosa operação química conseguiria separálas Mas os cordões estavam limpos misteriosamente limpos Não era mesmo estranho aqueles cordões assim brancos Pensando nos cordões pergunteilhe se seu amigo ainda estava incomunicável Qual deles Lena Tantos estão incomunicáveis Uma crise infernal Precisamos de dinheiro de gente de tudo Fico feito doida com os montes de coisas urgentíssimas que devem ser providenciadas Mas fazer o que sem oriehnid O quê Ainda assim pensa que perco a fé Pensa O programa da revolução está inteiro estruturado resta ligar o pequeno motor que somos nós com o motor principal Levantouse com cara de comício e andando de um lado para outro discursou sobre a dificuldade do operariado em se organizar a maior parte habituada à servidão à miséria herança transmitida por gerações de conformismo O medo Lena Medo de assumir um cagaço de fazer chorar Temos um bom grupo pra o que der e vier o problema é com os mais velhos os intelectuais Salvase uma meia dúzia Assinam os manifestozinhos fazem suas reuniões secretas o sorriso secreto da Gioconda o copinho na mão E daí Olhei para o copo que ela segurava com a energia de um atleta segurando o bastão na corrida de revezamento Quando Ana Clara pega no copo levanta o dedinho mínimo finuras de motorista de caminhão em festa de casamento mas Lião agarra tudo com dedos e unhas quer dizer com as zonas onde deviam estar as unhas Melhor mesmo roer todas imagine se podia pensar sequer em cortálas Voltei aos cordões mas por que só eles estão limpos Ela parou de falar e ficou me olhando com ar de quem se perdeu no mato e deu uma enorme volta e de repente descobriu que estava de novo no mesmo lugar Sentouse no tapete e apanhou um cigarro Rodouo entre os dedos Meus amigos estão todos presos eu mesma posso ser presa saindo daqui começou com brandura Manuela está intentada como louca e Jaguaribe está morto Então você se preocupa com o cordão da minha alpargata Dou importância ao que não tem importância começo e paro Não é Lião que está aqui mas a Bulinha lendo com o maior interesse mas o que esta lendo com tanto interesse Colocou seus óculos de lentes telescópicas e levantou a revista a um centímetro do nariz Não notou sequer que a puxei até ler o título Erotismo é Amor Ai meu Pai Que exagero murmurou ela sem tirar os olhos da pagina Por que às vezes firo Lião quando minha vontade é vêla contente Ficou tão triste ali no chão que fui buscar depressa a lata de biscoitos e a escova Ajoelheime e comecei a escovarlhe os cabelos Você parece a Angela Davis eu disse e ela sorriu mas senti que seu pensamento continuava lá longe lá onde Manuela enlouquecera Onde Jaguaribe fora baleado Que Manuela era essa E Jaguaribe Você nunca me falou nesse eu disse e ela passou a mão na alpargata acariciando a biqueira de borracha cheia de rabiscos Uma florzinha preta feita com capricho se destacava no emaranhado do desenho Era dele disse e agarrou com ambas as mãos os bicos das alpargatas Despejei mais uísque em seu copo Coragem Lião não fique comprimida tenho meus santos que me atendem você não acredita mas deixa comigo Se tiver que rezar reze por Che entende É só dele que preciso disse E passou o dedo precisamente na florzinha preta desenhada na borracha Lembrei que Rômulo também estava morto e comecei a chorar tão sentida que se viu obrigada a esquecer seus mortos para me consolar Disse que não há morte definitiva nem sequer para ela uma materialista Que morte e vida se integram e se completam tão perfeitas como um círculo e por isso meu irmão continuava vivo a vida precisa da morte para viver não sei explicar entende Explicou Inesperadamente ficou de novo alegre cantarolou com o disco do Vinícius e perguntou no melhor humor por MN E o velho Fiquei alegre também choro quando choram perto do mim mus se começam a voar saio voando junto Fui fazer um chá quente porque depois de beber feito esponja Lião adora um chá com biscoitos Tomamos um bule inteiro e se ela não tivesse ido fazer pipi e se eu não tivesse inventado de entrar num banho na certa teríamos ficado curtindo até as cinco da manha Tanta bobagem resmungou Irmã Bula fechando a revista Soprei a cutícula do meu polegar onde a ponta da tesourinha fizera nascer uma meia lua de sangue Escolhi um blue A senhora leu tudo Não sei porque gastar papel com tanta bobagem acrescentou guardando os óculos Enxugou os olhos no lençolençol que daria para enxugar as mucosidades de um batalhão Essa gente vive como se o sexo fosse a coisa mais importante do mundo E não é Ou uma das mais Só numa noite Ana Turva chegou a dúzias de orgasmos o que naturalmente é mentira Mas e as outras As conversas que ouço se fala tanto nisso Algumas um pouco sobre a loucura seria melhor conversar com o médico é lógico Não deve ser normal Um exagero Filha será que você podia pôr um pouco de Chopin Um daqueles Noturnos pode ser Esses seus cantores cansam um pouquinho não No começo eu pensava que vocês estavam brigando tamanha gritaria Agora acostumei Fico me perguntando essas letras fazem sentido E quanto As palavras triviais mas é no trivial que está o trágico Como pode não estar a grama do jardim é mesmo grama a sopa da sopeira não esconde nenhum símbolo e o beijaflor é a negação do mistério Mas se a gente estiver em estado de graça pode intuir todo um leque de direções que se abre tão rico quanto o baralho de Dona Guiomar o ValetedeEspadas é casamento se vem perto do Setede Ouro que é má notícia quando se junta ao CincodePaus que por sua vez é viagem se dá o braço ao ReideCopas Que vira sentença de morte sem apelação se dá o braço à DamadePaus oh as circunstâncias Lião fica uma vara se falo em cartomantes sou vidrada em cartomante Disse que não tem destino não tem nada porque somos livres completamente livres Não sei explicar mas se um dia eu for presa é essa prisão que vai inovar minha liberdade Não entendia fazia muito calor quase quarenta graus à sombra a cuca obumbrada e ela a fim de me expor a doutrina sartriana Ficou falando sozinha sobre o nojo que tem da literatura do século dezenove com todos aqueles personagens fadados ao bem e ao mal como trens correndo fatalmente nos trilhos onde foram colocados não tem trilhos Pois sim Deixame rir That Old Black Magic ele cantou na hora em que foi condenado à câmara de gás condenação antiga no dia em que nasceu já estava aquela marca se escapamos da fogueira não escapamos dos signos Ousei falar em signos e ela me acusou de cristã desbundada Como é que um cristão pode acreditar nisso Sou Peixe A freira olhou o teto Li que os jovens precisam da violência para canalizar os complexos Você viu Outro dia um menino de catorze anos tacou gasolina e fogo na cadeira de rodas da avó que virou um torresmo Diz que é preciso Então é esperar que esses jovens se cansem de tanta violência fazer o quê Quando se cansarem estarão velhos como nós Espertinha sussurrou Lorena esfregando as solas dos pés nos tapete enquanto procurava o disco de Chopin Riu Mais uma dose e vai me expor o conflito das gerações Trouxe a garrafa e de novo encheu o cálice que a freira lhe ofereceu em meio de um fraco protesto vou ficar tonta O protesto transformouse num ah de beatitude assim que começaram os primeiros acordes do Noturno A senhora prefere ler ou escrever Escrever diários por exemplo Cartas A freira bebeu delicadamente Cruzou os pés e balançouos no ar Nem uma coisa nem outra filha Minha vista piorou disse voando para Lorena o olhar de desbotada inocência E aquele seu irmão Está na Itália ainda África do Norte África do Norte Já ouvi Lorena Esse é o Rômulo Rômulo morreu esse é o Remo Se voltar lembra pensou Lorena abrindo as mãos com a palmas voltadas para cima num gesto de oferenda Fez análise fez cursos fez amor com mulheres lindas fez filhos lindos fez viagens mais mulheres mais carros mais filhos Se voltar lembra Basta olhar para a mãezinha que é transparente a dor é transparente A face gravada no véu de Verônica Attendite et videte exclamou estendendo os braços em frente e exibindo as mãos abertas como um livro Inclinouse até o ouvido da freira A senhora me acha louca Acha o quê Lorena sorriu Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas Como era possível isso Até os dedos de Remo pesados demais para o piano foram se afinando tão leves como seriam agora os dedos de Rômulo se Rômulo vivesse Sim melhor que continuasse lá no seu exílio mandando presentes cartões retratos Casas imensas nos gramados verdes de perder de vista As crianças nas suas malhas coloridas correndo sempre atrás de algum cachorro O carro brilhante estacionado por perto Ana Clara falava tanto em Jaguar coitadinha Tão superado o Jaguar Ela devia se atualizar no salão do automóvel onde Remo comprava sempre o último modelo tinha paixão por máquinas Se voltar lembra O encontro com ele devia ser lá fora lá longe como foi em Veneza Os museus as lojas Ruínas e vinho Mãezinha ainda acaba comprando uma gôndola ele disse enquanto ajudava a tirar os pacotes do porta mala E beijou a única compra de Lorena uma antiga bolsinha de miçangas que ela descobrira entre as velharias de um bazar Os dias e as noites estourando de compromissos sim era preciso outros países Outras gentes Aqui na primeira hora disponível ele começava a falar depressa e alto A mãe começava a rir estridente ambos tentando cobrir o murmurejar que vem subindo lá do fundo pardacento O rio No verão a água chegava a ficar tão quente que parecia impossível que no inverno ela esfriasse daquele jeito Assim mesmo os dois entravam roxos e bafejantes Remo ousava a travessia Está com friuu Lava o rabo no riuuu Enxuga na capa do tiuuu Debaixo dágua os cabelos pretos de Remo continuavam pretos mas os louros cabelos de Rômulo ficavam cinzentos Cinza cinza Seu irmão era bonito perguntou Lorena A freira enxugou no lenço os olhos vertentes Tomou o último gole Bonito não Mas era uma flor de menino Foi fazer um piquenique com os colegas do colégio já contei Se afogou no mar Quando tiraram o corpo eu estava perto Jesus que coisa pavorosa todos aqueles camarões amontoados se mexendo no buraco dos olhos Lorena fechou os seus e pensou em Rômulo os dentes pálidos como era possível Isso dos dentes empalidecerem E aumentando na camisa vermelha o vermelho mais poderoso do sangue A mão da mãe tapando o furo que borbulhava como uma garrafa de vinho empapando a toalha Achei que uma rolha podia resolver Anos e anos eu não queria nem enxergar a cara daquele bicho Depois fui esquecendo a gente esquece Ainda outra noite comi com tanto gosto a torta de camarão que Irmã Clotilde fez Palavra que nem lembrei Com gesto refletido lento Lorena arrolhou a garrafa de licor Não era mesmo de estranhar Um furinho insignificante e todo aquele sangue A mãe também não entendia que foi isso ficou repetindo É preciso tapar depressa um dedo que ela pusesse em cima melhor ainda a mão assim mãezinha assim Mãe cura tudo mãe sabe tudo tapa com força E continua saindo Debaixo da sua mão olha aí a camisa vermelha descorando tão mais forte esse outro vermelho meu Deus tão forte Desviei depressa o olhar porque ela escondeu a ferida com o mesmo pudor com que escondia os seios quando estava se vestindo e a gente entrava no quarto Não olhe que estou nua Dei lhe tempo de vestir a voz E a ferida Estava mais calma do que na tarde em que ele cortou o dedo abrindo a melancia Mas o que foi isso Lorena perguntou com voz rouca Apenas rouca Os dois estavam brincando acho que o Remo era o bandido no sei que trouxe a espingarda e apontou não foi por mal mãezinha não foi mesmo Imiteia falando baixo e quase num cochicho me ofereci para chamar o médico Ou o Lauro Queria que chamasse a Jandira Ela fez que não com a cabeça não não era preciso Fiquei ali pregada a boca abrindo e fechando ressequida sem nenhum som A boca do Rômulo também se abriu e se fechou silenciosa como a de um peixe atirado na areia que a água não alcança mais Foi ficando suave Se pudesse pediria desculpas por estar morrendo Sonhando filha Fecho Rômulo e a garrafa de licor na custódia de vidro do bar Cerro a cortina E MN que não telefona E esse Noturno tocando com esse sol ah queria agora mesmo montar na moto e correr sem corpo sem pensamento me busca Fabrizio Morrer deflagrada MN verá chegar um estilhaço ensangüentado Lorena Deflagrada e deflorada Estou me carbonizando de paixão minha Irmã Marcus Nemesius grito Abraçoa e colo a boca no seu ouvido O pai era latínista todos os filhos têm nomes declináveis a irmã é Rosa Rosae como bosta bostae Ela não entendeu mas riu Acompanhoa até a porta Seus ossos estalam Um dia vou ficar assim velha Me mato antes Baixo a cabeça Ela me abençoa e se prepara para descer a escada Desligo a vitrola Som de vozes The isle is full of noises Alguns miados se enrolando nas noises Como será miado em inglês Abro o dicionário seis Na saleta de teto baixo frouxamente iluminada havia duas pequenas mesas velhíssimas uma antiga máquina de escrever e algumas cadeiras de palha Duas tinham o assento furado No chão uma pilha de pastas e jornais com uma trouxa de roupa em cima Amarrados por uma cordinha dois travesseiros e um cobertor O chão enegrecido queimado por pontas de cigarro fora varrido conforme indicava o cesto transbordando de lixo com a vassoura plantada no meio Espetado no cabo da vassouramastro um rolo de papel higiênico Lia tirou a sacola do ombro e dependuroua na cadeira mais próxima Olhou a mesa recoberta de poeira o calendário enrolado apontando detrás da máquina o copo com um resto de café no fundo Desenrolou o calendário ocupando mais da metade da folha a gravura colorida de uma loura de biquíni a boca polpuda se entreabrindo para emborcar a garrafa de CocaCola Deixouo cair e ele se enrolou como se tivesse molas Voltouse para o teto pardacento pontilhado de moscas estateladas a maior parte morta em meio de fiapos de antigas teias Sorriu Lorena se divertiria muito aqui pensou No centro do globo de vidro leitoso a mancha espessa de um amontoado de insetos que lá entraram e lá morreram aprisionados Muito fraca pensou Lia desviando o olhar para o dedo indicador que examinou com severidade Voltouse para o jovem que acabava de entrar Precisamos de uma lâmpada mais forte Onde você estava Ele enxugou as mãos nos fundilhos do jeans Sacudiu a cabeça A privada é uma coisa Rosa você precisa ver Fica lá no fundo do corredor A gente tem que pensar na rainha e fechar os olhos Providencio um penico tenho uma amiga que tem um penico de porcelana com dourados e anjos Se ela tirar a samambaia de dentro peço o penico pra você entende Ele puxou a cadeira Cavalgoua Fiz a mudança sozinho todo mundo dando ordens mas só eu camelei Isto estava um lixo já despejei três cestos e ainda sobrou este Até rato olha só o túnel do maroto cochichou apontando para um buraco no ângulo do assoalho E é inteligente viu Me fez correr feito uma besta e depois se recolheu aos seus aposentos Vai ver é um tira disfarçado em rato Quando saí ontem do cinema me pediram os documentos Que medo Rosa Você não tem medo Lia passou a ponta da língua na unha roída Demorou para responder Perfeito Amanha trago uma lâmpada mais forte E uma folhinha sem anuncio de CocaCola De onde veio esta maravilha Não tenho idéia porra Aproximandose da janela a jovem tentou abrir as venezianas mas o fecho estava emperrado Espiou por um vão maior entre as tábuas carcomidas Putz o pátio interno Você sabe o que tem aí defronte Uma alfaiataria falei com o velho quando cheguei Legal Rosa Está vendo aqui embaixo a rede de arame Em caso de emergência dá perfeitamente pra pular e ir andando até a janela do velhinho Que é dedoduro da Oban A gente enfia a cabeça na janela e ele agarra a gente pelo pescoço assim fez ela puxando Pedro pela gola do pulôver Atracaramse aos safanões numa luta breve e feroz Separaramse rindo Ele examinou a mordida no pulso e ela prendeu na nuca a cabeleira que ele puxara Você tem força porra Acho que ia levar uma surra se continuasse resmungou ele examinando o braço Mas viu Pedro Conheço uma freirinha que você olha e diz bom não tem uma avozinha igual Precisa ler as cartas anônimas que escreve pra todo mundo Só espero que não ache o endereço do Dops está quase cega Carta anônima Que genial Você recebeu alguma Ela tamborilou no vidro rachado da janela Vamos tapar com jornal Tem cola Nem uma gota Nem durex nem papel não temos nada Amanhã trago alguma coisa O Bugre deixou dinheiro Diz que amanhã Todo mundo só fala em amanhã ele gemeu cocando a cabeça Não tenho nem pra cigarro Depois de oferecerlhe o maço Lia ficou olhando o globo de vidro com sua tímida aura de luz Uma armadilha Os bichinhos entram e não podem mais sair E mesmo que consigam tem as teias aí fora a morte e pior ainda Morte sem luta sem nada No papo da aranha Podiam sair como entraram não podiam Se pudessem não estavam aí mortos Mas os politizados escaparam Com o lenço de cambraia verde ela limpava agora o teclado da máquina Passou a limpar a mesa esfregando enérgicas as manchas mais resistentes Guardou na sacola o lenço enegrecido e procurou um cinzeiro Sorriu e bateu a cinza no chão Tenho uma amiga tão fanática com ordem que já estou pegando a mania Onde vou ela vem atrás com um cinzeirinho na mão acrescentou tirando um recorte de jornal de dentro do livro que trouxera Você lê francês Leio um pouco de inglês Ela percorreu o recorte Encarou Pedro E uma entrevista de André Malraux sobre Guevara Sabe quem é Malraux Um escritor não Parece que morreu faz pouco tempo Quem morreu foi André Maurois não interessa Esse é Malraux um cara muito importante entende O romance dele foi das coisas mais fabulosas que já li A Condição Humana Está traduzido Tomávamos uma média Misto quente A alegria que senti quando ele propôs vamos tomar uma média A gente está gelando Meus joelhos contra os seus nossos sanduíches tão juntos que eu podia morder o que ele soprava Da sua boca também saía fumaça Não sei explicar eu disse mas se você for preso vou e me entrego também Ele nem respondeu Tirou o livro do saco de lona e abriuo em cima da mesa Mas esse Malraux é muito bom o chato é que você marcou com essas cruzes o livro inteiro por que fez isso Você riscou tudo olha só Mas Miguel o livro não é meu perguntei e ele espalhou geléia na torrada Não fale como nazista meu bem Você tem que pensar nos outros que vão ler não pode impor seu gosto aos outros Atrapalhou minha leitura resmungou me beijando com a boca suja de geléia Geléia de laranja Fico olhando o cigarro que tombou da caixa de fósforo onde o deixei Rolou apagado pela mesa Chateada Rosa Vamos trabalhar Na desordem da gaveta tinha de tudo menos papel Cuidando ter achado um lápis Pedro tirou do fundo uma escova de dentes de cabo vermelho Fez pontaria e atirou a escova no cesto de lixo mas ela bateu na vassoura e desviou para a janela Nunca entendi esses efeitos do bilhar disse e me encarou Queria fazer uma pergunta Rosa Posso É uma coisa que eu queria saber Fala Você já teve experiência com mulher Já Que genial E então Não sei o que você quer saber digo e fico rindo por dentro porque sei muito bem o que ele quer saber Nada de extraordinário Pedro Tão simples Foi na minha cidade eu ainda estava no ginásio A gente estudava junto e como nos achávamos feias inventamos namorados Quando lembro Como era bom se sentir amada mesmo por meninos que não existiam Trocávamos bilhetes de amor ela ficou sendo Ofélia e eu era Richard de olhos verdes e um certo escárnio no olhar ô como ela sofria com esse escárnio Mas era preciso um pouco de sofrimento Não sei bem quando o nome de Richard foi desaparecendo e ficou o meu Acho que foi numa noite botei um disco sentimental e tirei a pra dançar me dá o prazer Saímos rindo e enquanto a gente rodopiava qualquer coisa foi mudando ficamos sérias tão sérias Éramos demais envergonhadas entende Nos abraçávamos e nos beijávamos com tanto medo Chorávamos de medo Você era feliz Rosa Passo a mão no seu queixo forte Foi um amor profundo e triste a gente sabia que se desconfiassem íamos sofrer mais Então era preciso esconder nosso segredo como um roubo um crime Tanto susto Começamos a falar igual Rir igual Tão íntimas como se tivesse me apaixonado por mim mesma Não sei explicar mas a primeira vez que me deitei com um homem tive então a sensação do amor do estranho Do outro Aquela boca aquele corpo não eu já não era uma só éramos dois um homem e eu Você achou isso bom Se a gente tem vontade tudo é bom E eu tinha vontade de saber como era pra poder escolher Escolhi Mas quando lembro ô por que as pessoas interferem tanto Ninguém sabe de nada e fica falando Fazendo julgamento tem juiz demais Uma noite ela me telefonou em prantos a família estava a fim de fazer um escândalo eu tinha que sumir quer dizer aparecer na pele de um namorado Reinventar urgente um namorado o namorado do início daquele nosso jogo Teria que lhe mandar cartas presentinhos assinados por um homem que não seria mais Richard que nome então Até o moço da padaria eu usei no telefone precisava da voz do Ricardo ficou sendo Ricardo Mentimos tanto em função dos outros que nos contaminamos com as mentiras Não éramos amantes mas cúmplices Ficamos cerimoniosas Desconfiadas O jogo perdeu a graça ficou amargo Do namorado de mentira ela passou pra um de verdade Do meu lado deixeime cortejar por um primo falouse em noivado E sua família Rosa Meu pai percebeu tudo e ficou calado Minha mãe teve suas adivinhações e ficou em pânico queria me casar urgente com o primo O vizinho também servia um viúvo que tocava violoncelo Fez tudo pra me agarrar pelo pé mas catei meu necessaire e vim Que é isso Necessaire Abro na mesa o recorte de jornal Olho o relógio Uma amiga fala muito em fazer o necessaire frescuras Fazer a maleta a frasqueira Vamos trabalhar um pouco Estou às ordens Rosa de Luxemburgo Tiro da sacola dois tabletes de chocolate um pra ele e outro E outro pra ele também decido Atirolhe o segundo tablete tenho que emagrecer uns cinco quilos não tenho Arrancolhe da mão a minha parte e agora não posso responder porque estou de boca cheia Miguel preso falta de dinheiro de pai de mãe meus amigos caindo Iodos e ainda vou me privar de açúcar Ficamos mastigando concentrados Quem falou nela Na Rosa Luxemburgo pergunto O Jango Uma mulher fabulosa Foi assassinada pela polícia alemã logo depois da Grande Guerra Há uma ponta de malícia no olhar de Pedro Ouvi dizer que seu pai era nazista Verdade Dou um tapa na mesa com uma irritação que estou longe de sentir Curtiu um pouco Mas Pedro não estamos brincando eu queria que você entendesse bem isto Aqui eu sou Rosa e você é Pedro Fim Só mais uma pergunta só mais uma e prometo Você pergunta demais entende Essa Rosa de Luxemburgo era bonita Não tinha esse de Feíssima Mas vamos lá Malraux foi um antigo revolucionário estava na China quando as coisas começaram Participou da Guerra Civil Espanhola da Resistência Francesa e etcétera etcétera Quando ficou velho começou a se apoltronar e acabou ministro do De Gaulle Mas foi muito bacana antes Veja que lúcido isto que ele diz sobre Guevara considera Che o maior homem do nosso tempo mas com uma técnica errada e a prova disso é que morreu numa armadilha mais cretina do que esse globo aí em cima Enganouse quando pensou que estava dominando aquelas aldeias em redor não sei explicar mas na verdade estavam todas controladas pelos norteamericanos Devagar deixa eu escrever isso Achou um lápis roxo e molha a ponta do lápis na língua a letra fica nítida mas os lábios vão se manchando de roxo Guardo o recorte Assim gostaria de guardálo também no fundo da sacola bem protegido Ô acho que estou ficando uma velha sentimental Veja Pedro ainda na opinião de Malraux a revolução na América Latina terá um caráter trotskista não será uma revolução das massas Também penso assim porra Acendo nosso último cigarro Ele traga Sua mão treme um pouco Pode incluir o testemunho de um sacerdote peruano Wenceslau Calderón de la Cruz não é um belo nome Wenceslau o que Calderón de la Cruz Considera homens como Guevara e Luther King verdadeiramente santos Não gosto de Luther King ele resmunga Deixa então só o Che mas repense sobre Luther King Antigamente a santidade era vista como o máximo da penitência caridade aquilo que você sabe Mudou tudo Hoje um cristão não pode alcançar a salvação da alma sem servir objetivamente à sociedade Não sei explicar mas todo aquele que luta com plena consciência para ajudar alguém em meio da ignorância e da miséria todo aquele que através dos seus instrumentos de trabalho do seu ofício der a mão ao vizinho é santo Os caminhos podem ser tortos não interessa É santo Nessa altura posso falar dos nossos padres hein Rosa Você precisava ver o Frei Cristóvão Estava ontem caindo de gripe e ainda assim foi debaixo de chuva falar com as pequenas lá da Casa Vermelha quase tivemos que dar uma porrada na dona A idade delas varia entre treze e dezesseis anos é só nessa faixa que são arrebanhadas Saiu de lá e foi conversar com a loirinha que faz ponto na porta do cemitério pega uma por uma um trabalho tão lento tem que gastar tanto cuspe E o que ouve em troca Romantismo Mas enfim um romantismo mais lógico que o pedido desse monte de padres enchendo o Vaticano Casar Padre tem que casar com a igreja Ou então não fica padre vai fazer outra coisa Padremaisoumenos é como políticomaisoumenos um lixo Padre não deve casar nem com a mãe que respeito a gente pode ter Não freqüento igreja nem nada mas se um dia quiser voltar quero encontrar um padre de mente limpa pra me dar a comunhão Ele riu Então o sexo suja Não sei explicar Pedro mas no caso atrapalha bastante Fragmenta E o padre tem que estar inteiro porque fragmentados já estamos nós Padre a fim de trepar não tem vocação é um equívoco e essa história de equívocos é abominável Focalizo também a esquerda maisoumenos Um cagaço que Deus me livre Sinto fome e frio Apanho no chão um pedaço de barbante e com ele amarro o cabelo Fico às vezes uma vara com esse grupo E agora com essa do embaixador putz É o medo Ele levantouse foi até a janela e ficou espiando a noite pelo buraco carcomido da veneziana Escondeu as mãos nos bolsos e me encarou Acho que tenho mais medo da gente lá de casa do que da polícia Meu irmão mais velho faz parte daquela onda de tradição e família você precisa ver como ficou histérico Morro de medo dele E seu pai Separado da minha mãe Ih Rosa como sofri com essa separação Eu chorava de noite mordendo o travesseiro chorava feito uma besta queria que eles morressem os dois mas não queria que ficassem separados Não é esquisito Por que sofri tanto assim Não dizia pra ninguém eles não souberam nem ninguém estou dizendo agora pra você Fiquei todo quebrado por dentro Feito o vidro da minha janela que levou uma pedrada olhava o vidro e me via igualzinho Nunca disse nada estou dizendo agora e já estou chorando de novo Por que tenho que chorar de novo porra Coisa mais imbecil Fico passando o lenço na mancha da minha malha Sei que não vai sair e continuo esfregando como se tirar essa mancha fosse a coisa mais importante do mundo Lorena ficaria radiante se me visse Ela se casou outra vez Sua mãe Vejo um tipo rondando e até que é simpático Não tenho mais nada com isso Leio muita ficção científica e como faço o desligado eles me consideram sobre o debilóide e me deixam em paz Montou de novo na cadeira apoiou os braços no espaldar e encostou o queixo no braço A boca e os dedos manchados de tinta como os dedos das crianças que começam a escrever Tenho vontade de aconchegar sua cabeça no meu colo dorme Pedro Família é mesmo um pé no saco A minha mora longe Relações perfeitas Perto também a gente não vivia na perfeição Mas é melhor ele se consolar comigo Molhou a ponta do lápis na língua e começou a desenhar no canto da folha Fez um passarinho voando Fez uma casa Reforçou o rolo de fumaça saindo da chaminé Assim que começar a trabalhar peço transferência para o curso noturno e vou morar com dois colegas Você tem preconceito com bicha Meu preconceito é contra o maucaráter Acho que um deles é bicha Tem ódio de menina diz que elas são a porta do Diabo Descalço as meias e faço com elas uma bola Quero rir mas ele está seríssimo Deixo as meias na gaveta o que me perturbaram essas meias com seus elásticos frouxos Como é possível um simples par de meias perturbar tanto Um dia guardei aqui no fundo um par de soquetes de lã preta E se ainda Fechoas na mão Empoeiradas mas quentes Olho Pedro e me vem não sei de onde tanta esperança Se não interessa diga antes de se mudar deixe tudo explicado certo Nada de enrolamentos isso é importante Você é virgem Virgem propriamente não É uma embrulhada Já sei virgem Podia fazer com Lorena uma boa parelha Tomo seu lápis e desenho um sol radioso ao lado da fumaça Não ficou mais quente Reaprender a sorrir Pedro Reaprender a aguçar os punhais E nitidez nada de fumaças Não faça o piedoso nem o sentimental porque aí você pode ferir muito mais Afirmação Mas são eles os sentimentais Você precisava ver quando meu amigo desbundou o cara só faltava morrer quando veio me dizer como estava infeliz como a família era cruel e se eu também ia fazer como os outros só porque ele não passava de um maldito Não se ajoelhou porque não deixei Mas por que maldito Não suporto nem o pânico a declaração de princípios nem acoelhamento nem provocação Minha tiaavó ficou tão avariada com o peso do sexo que se escondeu num convento virou freira Uma outra tia que gostava da polêmica fez tantas que acabou puta O mesmo medo o mesmo medo Se a gente não tivesse mais medo Nem dia nem noite sentenciou a Lorena Eles estão no crepúsculo e o crepúsculo será sempre incerto Inseguro Literatura bah As mulheres já estão encontrando sua medida Eles virão em seguida acho que no futuro só vai haver andróginos digo e fico rindo A Loreninha acrescentaria coitadinhos Mas quando fala em tom poético não usa diminutivos Você ama alguém Rosa Amo E agora tire esse pulôver que hoje preciso dele Vista o meu Alguma missão Com o Bugre Tomo sua mão entre as minhas Suja e áspera Não ouvi a pergunta Ele voltou a cavalgar a cadeira teria corado Corou Ih sou mesmo uma besta Ai Rosa pelo amor de Deus fica minha namorada Te dou meu coelhinho minha bicicleta meu ovinho de pomba tenho um ovinho de pomba murmurou e riu baixinho Fica Agarroo pelo cabelo Já tenho namorado Fim Agora preciso ir Espera quais as características de um país do Terceiro Mundo O nosso por exemplo Estou pensando em escrever um artigo Mas onde publicar E onde eu poderia publicar perguntei Miguel ficou me olhando com esse mesmo olhar com que estou olhando Pedro Acertou nas mãos o maçarote da minha novela e deu uma resposta ambígua ele que não é ambíguo Continuasse escrevendo sem pensar em publicar Um dia quem sabe se achasse que o texto ainda era válido Percebiase que fora escrito com amor Com honestidade Aperto a mão de Pedro como se apertasse a minha Os bons sentimentos o amor nada disso é suficiente hein Pedro Não se preocupe em publicar vai escrevendo Você não quer ser jornalista Então é praticar depois a gente vê Presta atenção falar em subdesenvolvimento não é só falar nas crianças depois dou o número exato das que morrem por dia Tem o analfabetismo A multiplicação das favelas Os retirantes dê um passeio pelas rodoviárias escute o que essa gente fala Vendedores ambulantes com pentes lápis giletes O lixo estourando nas ruas como se chamam essas bocas que se abrem entupidas nas calçadas A sujeira dos cafés restaurantes privadas a sujeira apoteótica dessas privadas a começar pelas da Faculdade ô Pedro Dê uma ligeira volta por aí e o artigo se fez sozinho no acessório e no principal como diz minha amiga em latim ela gosta de latim Amanhã a gente conversa sobre as causas Agora tenho que ir Ele me acompanha até a porta Remexo o fundo da sacola Fica com este oriehnid dinheiro de trás pra diante dá sorte guarde oriehnid Depois acertamos nossas contas Mas é muito Rosa Beijoo no rosto Entro na escuridão do corredor enquanto ele pergunta pelo meu romance Não quero que me veja quando respondo que rasguei tudo rasguei Pensei que tivesse vocação e me enganei como esses padres que estão aí se casando Mas como você sabe que se enganou A gente sabe Pedro A gente sabe Ele me abraça com tanta força que chego a me espantar não imaginava que fosse capaz de tanta força assim Sua boca tremente procura a minha Vou ao encontro dela nem sabe beijar putz Eu ensino por etapas espera por que tanta afobação Não me machuque não somos inimigos procuro lhe dizer com a língua que aplaca a sua e ensina o beijo demorado Profundo No começo e só desajeitamento não tem importância depois tudo se arruma tenho ainda uns quinze minutos murmuro ao seu ouvido Recuamos abraçados até a sala Ele estende a mão e apaga a luz quer que seja no escuro De acordo no escuro e de porta fechada decido empurrando a porta com o pé Seus dentes machucam meu lábio é dentuço ô não lute assim às tontas eu mostro o caminho É sofrimento sim mas também é gozo não se preocupe comigo entende Vamos sem medo estou do seu lado não contra você Não fique assim Pedro Descansa relaxa Temos tempo Ele me beija e soluça de aflição e raiva o sexo confundido Tenho que tomar a iniciativa vai fracassar de emoção e ficar desesperado Vamos Pedro Não é nenhuma porta do Diabo sussurro ao seu ouvido e rimos juntos Também não é de Deus é só uma porta entre Explodiu em esperma e choro agudo Perdão Rosa perdão Se me falar mais em perdão te mato agora já Foi tudo uma droga Droga coisa nenhuma Não foi bom Tiro o lenço da sacola e enxugo seu rosto Sintoo sorrir e fico sorrindo junto Você vai orientar o Pedro Bugre ordenou Olha aí orientação completa Uma boa ação ou simples vontade de amar ô lá sei lá sei Sei que amo Miguel mais ainda depois da traição Se é que isto pode se chamar de traição Puxo o cabelo de Pedro que está saindo da depressão com uma rapidez que me assusta Ri sozinho no auge Beija a palma da minha mão e depois a leva até sua cara esbraseada Te amo Rosa te amo Perfeito Mas vai agora procurar sua menina Espera Rosa Cato meus pertences Ele me agarra mas tenho mais força Deixoo estendido no chão completamente terno e bobo Quer saber se vamos nos ver no dia seguinte se meu namorado é mesmo Miguel faz perguntas perguntas Boa noite Pedro Trabalha bem nesse artigo certo A escada de caracol é escura Alguém tosse meio sufocado Levanto até as orelhas a gola do pulôver Pedro vai sentir frio com minha malha mas pode tomar uma média e amanha vai olhar a namorada de frente ô Miguel como preciso de você Como esse menino precisou de mim Quem sabe um dia ainda vou escrever bem Se isso acontecer Tenho pensado num diário diário deve ser mais simples uma coisa assim despojada a Lorena me aconselha a escrever despojado me acha barroca Sou barroca por dentro e por fora aceito Planejamentos e estrelas Genialidades sem gênio é isso Miguel Um diário honesto Enxuto contando meu trabalho sem glória sem nada Até ser presa e morrer obscura apenas com o nome que escolhi Rosa Preciso urgente de ar que estou me comovendo Abro a porta do edifício e uma rajada de chuva e vento me bate na cara a chuva vem em rajadas Rajada não é uma palavra boa mas de trás pra diante adajar Rosa levou uma adajar no peito fica menos grave Corro até a esquina chegamos juntos Bugre e eu O carro é da cor da noite Então Bugre Foi tudo adiado tem coisas mais importantes acontecendo E uma boa notícia para você Seu relógio está funcionando Perdi o meu pode me emprestar esse Deixa aí no portaluvas Ela tirou o relógiopulseira Boa notícia pra mim Fala Bugre Um momento não estou enxergando direito tem um lenço Emperrado o limpador do párabrisa não conseguia fazer escoar o chuvisco cerrado ia até a metade do leque demarcado no vidro o voltava tremelicando antena de um inseto moribundo sem forcas para cumprir sua tarefa A antena da direita apenas vibrava mas não saia sequer do lugar Quer que empurre Agora está melhor me acenda um cigarro está no portaluvas Ah esse gorro tira daí você ia usar hoje É seu Ela abriu nas mãos o gorro de malha preta sanfonada Meu Gorro mais lindo Bugre Ando doida com meu cabelo putz Ele recebeu o cigarro Olhoua através do espelho Ficou com cara de marinheiro Rosa Vai ser útil na viagem Que viagem Ele arrefeceu a marcha e voltouse para vêla Miguel está na lista dos que vão ser trocados Na lista Ela foi levantando a cabeça Miguel está na lista Seu namorado vai embarcar Argélia Um dos primeiros da lista queria estar no lugar dele A notícia sai amanhã pode ir arrumando o passaporte Argélia Ficou olhando o vidro do párabrisa por onde escorria o chuvisco até o dique da haste em convulsões mais espaçadas Argélia Argélia ficou repetindo Apertou demoradamente o lenço contra os olhos Fungou e limpou o nariz no dorso da mão O Miguel Na Argélia Vamos ficar juntos Demais Bugre demais Não sei explicar mas estou tão atordoada Vamos ficar juntos é isso Tenho que arrumar o dinheiro perdão oriehnid É cara a passagem Enfim não tem importância falo com minha gente a gens lorenensis também vai ajudar é evidente Argélia Sufocou o choro e o riso E cuida logo do passaporte que a operação vai ser rápida Agora vou deixar você em casa tenho um compromisso amanhã a gente se fala Contente marinheira Ela abriu a boca e respirou com cuidado com medo de receber uma dose maior de ar Com a ponta do dedo ao invés de Argélia escreveu Algéria pensando em Alger No vidro esbranquiçado pelo hálito de ambos se transferisse o e para junto do l Algéria ficaria sendo alegria Limpou depressa o vidro com o lenço Ô Bugre Me turbilhonou completamente Estava com pensamentos horríveis sei lá Mas como foi isso como foi É longo Rosa Fique por enquanto com a boa noticia Depois a gente conversa Vocês vão levar uma vida dura Eu sei Eu sei Muito trabalho Mas vão ter bons contactos Nenhum problema com sua família Depois de três dias de choro minha mãe vai ficar ocupada demais em arrumar dinheiro vai querer me forrar o pavor que eu passe fome no estrangeiro Meu pai é um alemão sentimental mas contido ele entende Sou capaz de mandar de lá uma foto com vestido de noiva pra efeito familiar obrigo Miguel a posar de noivo ô o sucesso da foto no portaretrato de prata da sala de visita Faria pose de estrela de cinema qual era o nome daquela que a mãe gostava tanto Rita Hayworth Ela dizia Raivorti O pai era distraído não guardava nomes mas de um não esquecia Claude Rains Um velho antipático resmungava a mãe Artista tem que ser moderno bonito Depois você conversa com Mineiro Sobre o passaporte É esta sua rua Não consigo ver a placa A próxima vai em frente E o Corcel Amanhã estará na sua porta Com os cumprimentos revolucionários Bugre Bugre esse gorro e essa notícia entende Mas onde você vai É neste portão avisou inclinandose para beijálo Pensou ainda em perguntar se Miguel falara sobre ela mas apanhou a sacola o livro e perguntou apenas se podia ficar com o maço do cigarro Leve também o fósforo E olha seu lenço isto não é seu lenço Entrou protegendo a cabeça com a sacola a chuva aumentara Que tempo resmungou se sacudindo no vestíbulo do casarão Lia É você Lia perguntou Madre Alix abrindo a porta do seu gabinete Entre um instante filha Sentese Aqui ao meu lado Quer tomar um café Foi leito há pouco vê se está bom de açúcar Lia deixou a sacola e o livro no chão Sorriu desamparada Queria ficar só pensando e repensando Insônia Madre Alix Não muito trabalho Mas que beleza de gorro Não é mesmo Presente de um amigo Prendendo assim o cabelo você fica com cara de marujo e marujo alemão você tem os olhos de seu pai Foi o que falou meu amigo cara de marinheiro digo tomando o café Quente demais Doce demais A senhora recebeu carta da minha mãe Uma longa carta Gosto muito da sua mãe Fico olhando o relógio em formato de oito dependurado na parede caiada de branco O som também é antigo Na minha casa tem um relógio igual Você tem saudade Lia Não sei explicar mas lá é como este café adocicado e quente Minha mãe chegava a me abafar com tanto amor preferia às vezes que me amasse menos O velho disfarçando com carrancas tios e tias estourando por todos os lados com os batalhões dos primos Aconchegos festinhas Lembro de todos amo todos mas não tenho vontade de voltar Isso é saudade Foi um período que se encerrou Aqui começou outro e agora vai começar um terceiro período e então fico com esses dois períodos pra lembrar Será saudade Acho que sim Quando noviça eu pensava muito na minha gente Sabia que não ia voltar mas continuava pensando com tanta força Como quando se tira um vestido velho do baú um vestido que não é para usar só para olhar Só para ver como ele era Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar Acho que saudade é isso Quebrei a cinza do cigarro no pires com rosinhas pintadas Irmã Priscila pinta na porcelana Tanta coisa que precisava de revisar ô essa notícia Argélia Mas que loucura Argélia Argélia putz E ouvindo aqui o caso do vestido Fico olhando os olhos de aço de Madre Alix Não é o caso do vestido Um poema que Loreninha já recitou pra mim Terei que dizer adeus à concha corderosa Mas pra onde quer que vá e passe o tempo que passar sei que não vou esquecer seus incensos Suas recitações Suas músicas Mil anos e posso vêla branquinha e magrinha na sua malha preta deitada de costas pedalando no ar Tomo mais uma xícara digo pegando a garrafa térmica Ela puxa sobre a orelha a touca branca A cabeça não é pequena para o corpo Procuro imaginála jovem e já vestindo o hábito uma vida cinzenta sobre os panos e sobre a touca que lhe cinge a cabeça a como um capacete Mas por que vida cinzenta Ela não pôs nesse trabalho de mais de meio século o maior amor Então não tem nada de cinzenta Soldado de Cristo como era mesmo o hino Levantaivos Soldados de Cristo Meio século curtindo um pensamento só E os estudos filha Você trancou a matrícula Bem as coisas tomaram outro rumo entende Vou viajar Madre Alix Exterior Por enquanto só posso adiantar isso dentro em breve levanto a âncora veja já estou com o gorro digo e não sei por que me emociono Não esqueço a paciência que a senhora teve comigo sei que sou agressiva Complicada Deve ter tido às vezes vontade de me botar na rua E me abria a porta Ela guardou os óculos no estojo de couro Pôs uma mão sobre a outra e ambas em cima da mesa Fiquei fixada na sua aliança de prata Vocês me parecem tão sem mistério tão descobertas chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto quando descubro que me enganei que sei pouquíssima coisa Quase nada exclamou e abriu as mãos no espanto O que sei afinal Que é da esquerda militante e que perdeu o ano por faltas Que tem um namorado preso que está trabalhando numa novela e que está pensando numa viagem que não tenho idéia para onde seja Que sei eu sobre Lorena Que gosta de latim que ouve música o dia inteiro e que está esperando o telefonema de um namorado que não telefona Ana Clara aí está Ana Clara Como me procura e faz confissões eu podia ficar com a impressão de que sei tudo a respeito dela Mas sei mesmo Como vou separar a realidade da invenção Quando ela se cala fico ouvindo o som do relógio As cadeiras de jacarandá com as toalhinhas de crochê na altura da cabeça estavam puídas as toalhinhas Mas se foram feitas por avó Diú Modéstia Madre Alix Na realidade a senhora sabe mais fundo do que aparenta Vocês são jovens Lia Eu não contava com uma aproximação maior Mas assim afastada como estou de que forma posso ser útil E eu queria ser útil repetiu O pano da touca foi se franzindo modelando as rugas que se aprofundaram na testa Ana Clara é a única que se deu sem reservas Pois diante dela me sinto tão inútil quanto diante de vocês reduzida como estou a um gravador gravo o que me diz aceito a carga mas quando procuro influir mudar o que deve ser mudado ela me escapa como uma enguia Peço exijo Um dia está arrependida até o fundo da alma promete faz planos Chego a acreditar numa recuperação você sabe tenho uma confiança ilimitada no milagre Está esperando que eu conteste mas não vou entrar nesse moinho Hoje não ô como eu queria curtir minha alegria sozinha na minha cama no escuro A senhora tem feito tanto Madre Alix Então não sei Ficou a confessora dela A enfermeira E agora delatora já conversei com meu primo que é diretor de um sanatório Ela não pode ser internada à força tem que estar de acordo e já me disse que concorda mas depois muda de idéia se acha curada mais promessas projetos mirabolantes Gostaria de conversar com esse noivo Vou até a janela e olho a noite brilhando de chuva Vontade de recomeçar a escrever mas quem decide Se tenho ou não vocação Lorena e Miguel não se entusiasmaram muito Não se entusiasmaram nada Mas não podem se enganar Não devia ter rasgado precipitação histeria Mas isso não tem problema reescrevo se quiser Lorena é sofisticada Miguel é um cerebral despreza ficção Você conhece filha Quem Esse noivo Parece que é muito rico mas não gosta dele gosta do outro do Max Fala muito nesse Max viciado também Um caos completo Assim de costas com seu avental cinzento e touca ela parece uma camponesa dessas bem antigas modelo limpo demais até para um pintor acadêmico Faço pontaria e acerto o cigarro no canteiro Foi Lorena que espiou lá na janela Se interna e se desintoxica Perfeito Depois de uma semana de um mês tem alta não pode ficar internada a vida inteira Então recomeça tudo igual a senhora sabe disso melhor do que eu Não vejo saída Queria fazer análise prometi pagar o tratamento ficou de ver o médico mas quando pergunto que médico escolheu ou quando vai começar vem com respostas vagas adia é incapaz de uma decisão Ontem chegaram as roupas que andou comprando Devolvi tudo nem a Pensão ela pode pagar e nem espero que pague Mais dívidas com o cobrador insolente exigindo um sinal Meus céus Este assoalho tão claro com suas tábuas largas quase brancas Na minha casa eu gostava de me deitar no chão enquanto os grande iam conversando pela noite adentro Bom dormir com aquele som das conversas Fico às vezes com vontade de sacudir Aninha bater nela tanta raiva me dá ô sei que está doente é lógico mas essa doença me deixa uma fúria Então a senhora acha que um analista vai resolver no ponto que está Já leve dezenas de analistas Madre Alix Dezenas Andou com uns os outros não pagou Recuperáveis são os casos recuperáveis Fim Os loucos menos loucos esses que nem a gente Uma neurose que não chama muita atenção porque faz parte enquanto o neurótico puder trabalhar e amar nessa loucura razoável qual é o problema Mas quando Ultrapassa aquela linha fininha como um fio de cabelo do cabelo da Lorena de tão fino Quando pisa um pouco para fora e mergulha nas águas amarelas Kaput Os olhos de aço estão prestes a se derreter ela gosta bastante dessa tonta E é lúcida o suficiente pra não ter muita esperança Desde ontem não aparece Telefonou dizendo que está na chácara do noivo Noivo A senhora me desculpe Madre Alix mas Ana é o produto desta nossa bela sociedade tem milhares de Anas por aí algumas agüentando a curtição Outras se despedaçando As intenções de socorro e etcétera são as melhores do mundo não é o inferno que está exorbitando de boas intenções é esta cidade Vejo a senhora sair com outras senhoras bondosas dando sopinha aos mendigos Bons conselhos cobertores Eles bebem a sopinha ouvem os conselhos e vão correndo trocar o cobertorzinbo pelo litro de cachaça porque o dia amanheceu mais quente pra que cobertor Tudo continua como na véspera com uma noite de demência a mais fornecida pelo donativo Um padre nosso amigo foi ensinar catecismo à menininha de nove anos que o pai vendeu pro bordel e quase morreu de tanto apanhar do agregado da proprietária Aprendeu a lição ô se aprendeu Caridade individual é romantismo cheguei a essa conclusão não faz muito tempo Agora ele funciona com a gente mas dentro de outra perspectiva Nos esquecemos nos descuidamos diz Bela Akmadulina E tudo caminha ao contrário Vou até à garrafa térmica e me sirvo de mais café mas queria um sanduíche Presunto e queijo Uma abelha se debate contra a vidraça e de repente seu zunido ficou mais importante do que nossa fala Mas de onde veio essa abelha numa noite dessas Gostaria de escrever como ela faz mel E quase me dobro num riso desatinado era bem doidona a cigarra da fábula com suas cantorias mas a formiga de vassoura na mão não ficava atrás Tinha tanta coisa que lhe dizer filha E já nem sei por onde começar Essa sua política por exemplo Me pergunto se você está em segurança Segurança Mas quem é que está em segurança Aparentemente a senhora pode parecer muito segura aí na sua redoma mas é bastante inteligente pra perceber do que essa redoma está lhe protegendo Alguns padres romperam o vidro como aquele de que falei Por acaso estão em segurança Não Nem estão pensando em segurança quando se deitam no colchão sem travesseiro ou quando rezam suas missas num caixote feito altar Ela sorriu Um sorriso triste que me arrependi de provocar Mas não estou na redoma Lia É nesse ponto que você se engana como se enganou também quando disse que eu queria lhe apontar a porta Deus sabe que meu desejo maior é protegêlas e guardá las para sempre como se isso fosse possível Se não interfiro se não me aproximo é porque não quero que pensem em vigilância fiscalização Vocês bateriam as asas mais depressa ainda Pronto magoouse Essa minha mania de discurso baiano com subversão pode dar noutra coisa Não sei explicar Madre Alix mas o que queria dizer é que embora resguardada a senhora luta a seu modo respeito sua luta Respeito até a luta dos que querem nos destruir respeito sim senhora eles estão na deles Como estamos na nossa enfraquecidos traídos divididos não calcula como estamos divididos Mas vamos agüentando Um que fique tem que correr como um cão danado pra passar o facho ao seguinte que recebe e sai correndo até o próximo que nem estava na corrida entende De mão em mão É demorado mas não estamos mais com tanta pressa Facho Lia Você fala em facho mas o que vejo é um levar ao outro violência morte Um rastro de sangue é o que vocês vão deixando por onde passam Temos um Condutor Supremo e do Seu esquema transcendente a violência foi riscada A espiritualidade Olha aí vitória da espiritualidade Arranco uma lasca da unha que vem com um fiapo de pele O sangue brota Chupo o dedo Uma bala dumdum no peito doeria menos O Bezerro de Ouro está instalado na praça e a senhora me fala em espiritualidade Os adoradores não são espirituais porque são adoradores entende O povo não é espiritual porque o povo quer fazer parte da adoração e não pode nem chegar perto está desesperado aquele brilho aquele exemplo de conforto gozo Esses desastres esses crimes tudo isso é desespero o povo está sem esperança e nem sabe Então fica subindo nos postes dando tiro àtoa bebendo querosene e gasolina de aflição Medo Eu estava mesmo desorientada Agora sei o que quero fazer Violência também Não consigo mais ficar sentada me levanto Assumo o risco Não Madre Alix Confesso que estou mudando a violência não funciona o que funciona é a união de todos nós para criar um diálogo Mas já que a senhora falou em violência vou lhe mostrar uma digo e procuro o depoimento que levei pra mostrar a Pedro e esqueci Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante a justiça ele ousou distribuir panfletos numa fábrica Foi preso e levado à caserna policial ouça aqui o que ele diz não vou ler tudo Ali interrogaramme durante vinte e cinco horas enquanto gritavam traidor da pátria traidor Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo Carregaramme em seguida para a chamada capela a câmara de torturas Iniciouse ali um cerimonial freqüentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político Neguei Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos iniciandose a tortura elétrica deram me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes Depois obrigaramme a tirar a roupa fiquei nu e desprotegido Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes principalmente nas mãos Molharamme todo para que os choques elétricos tivessem mais efeito Pensei que fosse então morrer Mas resistia e resisti também às surras que me abriram mu talho fundo em meu cotovelo Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio Obrigaramme a então a aplicar os choques em mim mesmo e em meus amigos Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca Outras vezes panos fedidos Após algumas horas a cerimônia atingiu seu ápice Penduraramme no paudearara amarraram minhas mãos diante dos joelhos atrás dos quais enfiaram uma vara cujas pontas eram colocadas em mesas Fiquei pairando no ar Enfiaramme então um fio no reto e fixaram outros fios na boca nas orelhas e mãos Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos mal ouvia Meus punhos estavam ralados devido às algemas minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas E etcétera etcétera Dobro a folha Madre Alix me encara Os olhos cinzentos têm uma expressão afável Conheço isso filha Esse moço chamase Bernardo Tenho estado muito com a mãe dele fomos juntas falar com o Cardeal Agora é que eu não sei mesmo o que pensar Muito especial diria a Lorena Nunca ninguém me deu tanto essa idéia de união de gelo e fogo como ela me dá Tinha empalidecido mas está de novo corada as veiazinhas se cruzando na superfície da face numa rede fina como se fosse feita de cabelos rompidos aqui e ali as pontas meio perdidas se buscando adiante e se dando as mãos até formar um só todo transcendente e indefinível como o ser único desse seu universo Um universo que é o da sua infância A própria infância da humanidade Boa noite Madre Alix Gostei muito de conversar com a senhora Toma cuidado Lia Não quero que você sofra toma cuidado eu peço Sou forte à beca Não Lia Vocês são frágeis filha Você Lorena Quase tão frágeis quanto Ana Clara Haja o que houver não deixe de me dar notícias Conte comigo Vou lhe mandar meu diário Madre Alix Ao invés de cartas um diário de viagem Ela me acompanha até a porta Posso lhe dar uma epígrafe É do Gênesis aceita pergunta e sorri Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei É o que você está fazendo acrescentou Hesitou um pouco É o que eu fiz sete Irmã Clotilde entrou triunfante com o ramo de margaridas e a sacola de frutas Trouxe laranja melão e maçã E também banana olha que beleza de cacho Interrompi meu exercício de bicicleta mas continuei deitada n chão Sopreilhe um beijo nas pontas dos dedos A senhora é uma santa Quem me dera Ela deixou pender os braços desamparados dentro das mangas do hábito inclinou a cabeça e ficou pensativa olhando para dentro de si mesma E o que vê não deve ser animador A senhora queria mesmo Abriu o sorriso amareloesverdinhado a dentadura tem um vago tom vegetal Cheirou as margaridas e a cara continuou parada inspirada Na adolescência eu quis ser Santa Teresinha Fiz tudo o que ela fez cheguei até a pintar um quadrinho óleo acredita Não consegui ter a febre minha saúde foi sempre excelente Depois quis ser Santa Teresa DÁvila Mais difícil realmente Fico olhando o teto Las Moradas Você leu ela perguntou juntando as mãos Animouse Eu sabia quase de cor menina No es pequeña lástima y confusión que por nuestra culpa no entendamos a nosotros mismos ni sepamos quién somos O avental cinzachumbo chega até seus tornozelos bem torneados Tem a cintura fina Pelada deve melhorar muito Muitas religiosas estão tirando essas roupas a senhora não está pensando nisso Suas pernas são bonitas Irmã Terribles son las ardiles y mañas del Demonio para que las almas no se conozcan ni entiendan sus caminos Espeto dois dedos na testa e faço uma careta que se perde porque agora ela está olhando de novo para si mesma Afundou ainda mais Confusión y lástima Abriu a boca e respirou já na tona Mas eu dizia que quis imitar as duas Teresas Não tive nem a candura da primeira nem a inteligência da segunda Aprendi a lição tolice copiar modelos O estado de graça de uma alma está mais num estado de inconsciência do que em outra coisa Gosto muito de pintor primitivo enquanto ele ainda não sabe que é primitivo acrescentou ela examinando a bolselha que Aninha esqueceu na mesa O fecho se abriu e pelo vão escapou um fino pincel delineador Essa sua amiga por exemplo E se estiver mais próxima de Deus do que nós que vivemos para isso Ai meu Pai Se ela continuar me mato Não é o telefone Irmã Estou esperando um chamado Ficou escutando Apertou contra o peito a bandeja que tinha ido buscar e fixou em mim o olhar de amêndoa nem amarga nem doce As mangas do seu hábito terminam em ponta como asas um passarinhão nem da terra nem do céu Crises de consciência coitadinha Sabe que é menos grave fazer amor com mulher mas ainda assim deve se queimar na curtição É no vizinho Tem um telefone que toca demais aí na vizinhança e ninguém atende Fecho o livro e nele apoio minha cabeça Mais guerra do que paz senhor Leon Nikolaievitch Tolstói Se somarmos as guerras todas do mundo já imaginou Ainda vou defender essa tese em Direito Internacional a anormalidade é a paz Foi assassinado Quem Lorena Esse vizinho que não atende o telefone Mãezinha adora historias de crime outro dia me contou um crime horrível que houve na França Um padre Padre Já faz tempo Ele assassinou no bosque a amante grávida i n ou o feto batizou o feto tudo direitinho e depois enterrou mãe e filho debaixo de um carvalho e ainda fincou em cima uma cruzinha de graveto já pensou Só fico me perguntando que nome ele botou no filho digo apanhando a laranja que rolou no chão ela está arrumando as frutas na bandeja Não foi um padre que cometeu o crime foi um demônio O demônio se apossou de sua alma Mas não totalmente Irmã Ele batizou o feto e depois fez a cruz na sepultura Acho que foi por causa de crimes assim que antigamente a igreja tolerava a pederastia Se ele tivesse um amante digo e já estou arrependida É tarde no planeta O silêncio ficou tão inteiriço que posso ouvir seus gestos compondo a pirâmide de frutas Estou exausta mas recomeço a pedalar é preciso fazer alguma coisa Seria maravilhoso cantar se eu tivesse voz Ai meu Pai Está bem assim Lorena Ela tenta equilibrar a maçã no alto da pirâmide Tenho vontade de alisar seus sapatões escalavrados estacionados em engulo reto Toda ela tão reta pobrezinha Mas quem inventou que é lésbica E por que eu acreditei Por que aceito sempre o pior Estico as pernas à moda oriental e fico sentada no tapete E não é o pior lógico Essa idéia que me veio acrescento depressa A senhora é de um tempo maisqueperfeito Que tempo será o meu Ainda não sabe filha Não Você é jovem demais não se encontrou Ih o blablabla clássico o que sou de onde venho pra onde vou Lião fica p da vida quando alguém começa com essas elucubrações Trabalhe entende Seja útil participe e quero ver se vai ter folga pra ficar admirando o próprio embigo Ela diz embigo eh Lia de Melo Schultz Concordo e tudo mas as milhares de horas que gastei olhando o meu O que sou Plenitude transbordante se ao menos por telefone ele me diz um alô Alôlorena A senhora já amou Irmã Antes dos votos é lógico Ela cata no chão as folhinhas das margaridas Não se esqueça das suas cenouras que estão na nossa geladeira Cenouras Queria comer beleza e me oferece cenouras Queria tanto ser bonita O silêncio Sempre que falo nisso há um certo silêncio E continuo falando ah preciso da piedade de todos vocês Ora filha Seu tipo é assim tão Especial Examino as palmas das minhas mãos Quando mãezinha era jovem teve uma amiga muito purinha que acordou um dia com as chagas de Cristo nas mãos não é extraordinário pergunto Mas não quero resposta quero ficar só Gosto muito das pessoas mas essa necessidade voraz que as vezes me vem de me libertar de todos Enriqueço na solidão fico inteligente graciosa e não esta fera ressentida que me olha do fundo do espelho Ouço duzentos e noventa e nove vezes o mesmo disco lembro poesias dou piruetas sonho invento aluo todos os portões e quando vejo a alegria esta instalada em mim Não e o primeiro caso Das chagas disse Irmã Clotilde endireitando o corpo e empunhando as flores tesas como um feixe de lanças Precipitou se para o banheiro Posso Pede licença para entrar como se corresse o risco de encontrar um homem lá dentro Digolhe que entre não precisa pedir licença Tombo de costas Este fruto tem fogo dentro dele ah que horrívelmaravilhoso é viver Fico ouvindo o jorro da torneira penetrando na caneca de cobre Um ato de amor Vai transbordar Isso de não comer carne menina Você está pálida Sou vegetariana querida Aspiro com fervor o ar recémnascido da manhã Abro as mãos estendidas para o teto e meu plexo solar também se abre e vai girando como um girassol Que sabe a flor da raiz pergunto em voz alta Os poetas pressentem mas não estão certos Consolatrix afflictorum grito por dentro A raiz está fechada na custódia de ouro coberta com um pano dourado A chave é a verdade só peço verdade e dou verdade em troca É um preço alto Pelo visto altíssimo Quem é que se interessa Todos me olham tão simpáticos me fazem um agradinho na cabeça e vão correndo comprar ingresso no Trem Fantasma com seus túneis de papelão pintado e viajantes de matéria plástica O trem corre por paisagens de flores e cascatas artificiais só farsa nos efeitos do jogo de espelhos Ana Clara então tem cor de coalhada disse Irmã Clotilde reaparecendo na porta Enxugou as mãos Até a Lia que parecia uma romã também está perdendo as cores Não sei o que está acontecendo com vocês Sabe muito bem pensou Lorena apanhando na estante o tratado de legislação social Agitouo fazendo farfalhar as longas tiras de papel que marcavam as páginas Leu as anotações na extremidade de uma das fitas Debruçouse na janela e ficou olhando o jardim O Direito nasceu espontâneo como aquelas florinhas brotando no meio do mato Mas vieram os homens cavilosos complicaram tudo com suas cavilosidades pensou arrancando outra fita de dentro do livro Leua com atenção e picoua em pedacinhos miúdos como confete Soproua na palma da mão Tesão era caviloso Imagine Os que vieram depois é que fizeram aquelas caras espertas e inventaram a sed lex E que no fundo não é tão dura assim Com Madre Alix aprendera essa palavra caviloso Esse seu gato é tão caviloso ela disse apontando Astronauta que nesse momento exato começou a fazer a toalete das partes Foi ao dicionário capcioso manhoso sofista A expressão era de origem nordestina tudo se ajustando Madre Alix era cearense A voz de barítono de Irmã Clotilde dominou o ruído embesourado de um helicóptero em vôo baixo Parece banheiro de cinema Nunca encontrei uma menina assim caprichosa como você A desordem me deprime Irmã Ah se eu pudesse me arrumar por dentro tudo calminho nas gavetas Minhocação demais Ela apanhou alguma coisa que deixou cair no chão Abriu o armário de roupas Lorena acompanhavalhe os movimentos pelos pequenos ruídos que os objetos emitiam quando eram violados Ficou curiosa Quer ver se minha roupa também é de cinema pensou examinando uma folha de caderno dobrada dentro do livro O rascunho de uma carta para MN Uma carta em verso que não mandara como tantas esboçadas e imaginadas O meu coração é que veio sangrando veleiro vermelho na crista da espuma leu e sorriu para a pequena zebra de flor na boca que desenhara no canto da folha Minha poesia é pouca porém ruim Que foi Ai meu Pai Também esta deve estar ficando surda Lia já tinha dito não tinha Os orifícios menores acabam se fechando solidários com o principal Res accessoria sequitur rem principolen murmurou voltandose para a freira A fisionomia se acendeu E se eu ficar repetindo sou divina maravilhosa e ele me ama perdidamente sou divinamaravilhosa e ele me ama perdidamente sou divinamaravilhosa E ele Assim filha Pensamento positivo Lorena aluiu o livro ao acaso leu um trecho sobre acidentes no trabalho e em seguida fechou os olhos podia repetir palavra por palavra o que acabara de ler Sorriu excitada E as coisas que via de olhos fechados Não existiriam realmente Por que o delírio não haveria de corresponder a uma realidade Ficou olhando as margaridas na caneca de cobre que a freira deixou em cima da mesa Agora estavam de cabeça baixa os cabos compridos sem forças de sustentar as corolas que pendiam com suas grinaldas de pétalas brancas Como noivas tímidas pensou comovida Levou a caneca até a prateleira da estante onde estava o retrato do pai Me ajuda paizinho Ele gosta de mim eu sei Mas o suficiente Mulher filhos é gente à beça Tenho horror do fazdeconta e ele vai querer assim ah meu paizinho querido posso dizer que vou resistir que vou renunciar Mas se ele me chama vou correndo pisando na ponta dos cascos chego duas horas antes meu amor Na casa dos meus avós tinha uma igualzinha disse Irmã Clotilde lustrando com a ponta do avental a barra dourada da cama Doulhe o pano de pó e ela exulta adora trabalhar Já avisei que a empregada da mãezinha vem vindo por aí com seus sapatos de ferro e eficiência daquelas fadinhas arrumadeiras Jacaré ouviu Precisa estar fazendo alguma coisa com as mãos mãos grandes e ossudas as unhas quadradas cortadas rente Está em meu redor há milhares de horas E se estiver apaixonada por mim Já pensou Mulher de padre vira mula semcabeça E mulher de freira As unhas cortadas rente Conhecete pelas unhas Precisam aparálas com cuidado instrumentos importantíssimos ô vexame Por que só coisas assim varam minha mente pervertida Quem me vê tão suave Uma criança Apenas um terço de nós é visível a senhora sabia o resto não se vê O avesso Só um terço visível Viro a página Ainda os acidentes blablablablabla Lá sei O resumo deve estar aqui adiante quer ver Pronto blablabla Encaroa Ela parou em suspenso segurando a flanela esticada entre as mãos pronta para recomeçar os movimentos de engraxate nas barras que brilham como ouro Só um terço querida Vejo seu manto seu rosto suas mãos segurando esse pano É pouco não E o resto Onde está o resto que não posso ver Deve ter ficado satisfeita com sua alta porcentagem de mistério O resto é tudo menina Mas esse pertence a Deus Seus sapatões de amarrar acabaram por tomar sua fisionomia sapatos de quem sabe o que faz E faz bem Pisa para fora os pés abertos no compasso de uma marreca sólida em direção à água plaqueplaque Virgem De um certo modo sim disse a Lião meio reticente ainda não fez suas pesquisas a esse respeito A corrida para o quarto de Irmã Priscila tem que ser descalça Os cochichos Os suspiros freira deve suspirar dobrado no amor Frases curtas Respiração curta no feitio dos livrinhos bandalhos do século dezoito onde uma abadessa de nome francês conta às noviças suas memórias secretíssimas Quando eu ficar velha vou escrever minhas memórias digo O chato é que o pensamento delirante tão lindamente desgrenhado acaba penteadíssimo Triunfo das normas de conduta Ela agora está no banheiro lavando as mãos depois de cada coisa que faz lava as mãos No meu tempo todas as mocinhas tinham seu diário Mas vocês agora podem dizer tudo aos namorados ao analista Até aos pais Por que o diário Também deve gostar de lavar os pés De noite antes da corrida da madrugada plaqueplaque os dedos em leque livres dos sapatões escolhendo as tabuas que rangem menos no chão rangente pela própria natureza Ai meu Pai Não admira que Irmã Bula viva com o olho pingando as coisas que vê ou adivinha pelo buraco da fechadura O desfile a Lião com suas alpargatas que carregam a poeira do mundo E que pacotes são esses panfletos Bombas Em seguida Ana Turva com seu sapato dourado e bêbado pisando na longa écharpe a la Isadora Duncan Não demora muito e essa daí aparece com sua camisola de algodão e rendinha os pés grandes demais para qualquer sutileza por entre as tábuas gementes ah a inspiração dos antigos conventos com as passagens subterrâneas Fechando o séquito a Gata de patinhas enluvadas a barrigona roçando o chão onde um ninho para despejar a gataria A ordem de entrada em cena sujeita a variações inalterado o produto Bulinha enxuga o olho no lençolençol e se debruça tremente na janela quer me ver casta e tranqüila esperança de salvação você está bem menina E a menina possuída pelos demônios escancarada na noite e pedindo socorro em código de navio dumdum dumdum Horror horror A solução é escrever urgente mais uma carta anônima que Madre Alix lê o rasga pairando magnífica sobre todas as coisas ostende nobis Domine misericordiam tuam Agora preciso ir Mais alguma coisa filha Queria pedirlhe perdão Leva algumas frutas minha Irmã Daqui a pouco vai chegar uma cesta da casa da mãezinha imagine se vou comer tudo Me jogue aí uma banana sim Ela examinou o cacho Franziu a testa Só estarão no ponto daqui a dois dias Toda fruta tem seu dia certo acrescentou e ao invés de olhar o cacho olhou a própria mão Não deve ser comida nem na véspera nem no dia seguinte Há uma ligeira nuvem na sua cara póstuma Nem antes nem depois coitadinha Desvio depressa sua atenção para mim Meu namorante me acha verde demais Verde Estendeume o figo que segurava pelo cabo Que idade ele tem Não é aquele menino o Fabrizio É outro Marcus Nemesius O pai era latinista todos os filhos têm nomes declináveis não é bacana Rosa rosae Servus servi Como bosta bostae Mordo o figo quase obsceno Ainda a nuvem Escondeu as mãos nos bolsos Ficou desocupada ficou triste Somos amantes Estou esperando um filho dele Menina fantasiosa exclamou rindo Ao menos consegui fazêla rir Corro e encho com frutas seus bolsos A senhora conhece algum remédio para o mal do amor Estou doente de amor Maravilha Curativa do Doutor Humphreys Cura tudo a gente põe compressas no peito no lado do coração Adeus Encontrouse com Lião no meio da escada Podese entrar ela perguntou já dentro do quarto Foi até o cacho de bananas e arrancou duas Estão verdes querida Lorena avisou Lia encolheu os ombros Era uma receita dela Ouvi falar em compressas entende Como se tivesse prendido uma borboleta pelas asas Lorena segurava no alto o cabo do figo Olhou em redor Onde deixálo Não no cinzeiro se misturaria à cinza destilando umidade Foi buscar um prato e nele recolheu também as cascas que Lia amontoara na concha da mão Ajoelhouse diante da amiga e cuidadosamente dobrou a bainha esfiapada do seu jeans Amarroulhe os cordões das alpargatas Examinoulhe o pulôver preto de gola alta esse eu não conhecia E se interessou pelo gorro Onde você arrumou isto Lia despejou no tapete uma parte do conteúdo da sacola Presente de um amigo O carro da sua mãezinha já está aí na frente achar a chave é que está meio difícil Foi tudo bem Perfeito disse Lia Empilhava com certo método alguns mimeografados políticos cigarros soltos uma escova de dentes e a metade de um sanduíche embrulhado em papelmanteiga Despejou o resto das miudezas algumas moedas um pente preto com fiapos de Fumo acumulado entre gretas um chaveiro de prata e uma bolinha de pano enegrecido Lorena reconheceu o lenço verde na bolinha que rolou até quase seus pés Ficou esperando pela saída do segundo lenço mas do fundo da sacola só saíram farelos de pão de mistura com papel picado Sentouse ao lado da amiga e ficou olhando o teto Lia de Melo Schultz estou triste mas você está contente Muito disse Lia pondo o chaveiro em cima da mesa Ajoelhouse na almofada arrancou o gorro e a cabeleira explodiu no maior entusiasmo Aconteceu uma coisa ótima entende O problema vai ser oriehnid mas se meu pai colaborar e se você também Quanto Ainda não sei digo depois É uma viagem Viagem para o exterior depois digo tudo Ô Lena ando fervendo por dentro Lorena aproximouse mais Sentouse no tapete dobrou as pernas e ficou olhando os próprios pés descalços Pega o microfone e me entrevista Lia segurou firme a banana e estendeua até a boca de Lorena Jura dizer a verdade só a verdade nada além da verdade Juro Nome por favor Lorena Vaz Leme Universitária Universitária Direito Pertence a algum grupo político Não Por acaso faz parte de algum desses movimentos de libertação da mulher Também não Só penso na minha condição Tratase então de uma jovem alienada Por favor não me julgue só me entrevista Não sei mentir estaria mentindo se dissesse que me preocupo com as mulheres em geral me preocupo só comigo estou apaixonada Ele é casado velho milhares de filhos Completamente apaixonada Uma pergunta indiscreta posso Você é virgem Virgem Depois de pedir licença Lia descascou metade da banana que empunhava Abocanhou um pedaço e respirou com ênfase Falou de boca cheia Quer dizer que não são amantes Será ousadia minha perguntar o motivo Ele não quer Nem me procura mais faz um montão de dias que nem me telefona Mas tratase de um impotente De um homossexual Se não me falha a memória ouvi qualquer coisa sobre filhos não ouvi Ele é um gentleman Ah Mas se me chamasse como a última das moicanas juro que eu iria correndo correndo você me chamou Ia morar com ele num porão debaixo da ponte na estrada no bordel Lião Lião choramingou ela afastando a banana Não quero mais brincar estou tão triste Lia contraiu as sobrancelhas grossas Mastigou concentrada Chegou a estender a mão para apanhar o lenço embolado entre o cinzeiro e o pente Limpou as mãos no tapete e fez uma carícia na cabeça da amiga Não sei explicar mas vai ver a culpa é sua Não andou falando em casamento Se falou o cara ficou apavorado essa mania de falar em casamento Virgindade Piorou muito depois que entrou num cursilho Entrou num cursilho Se entrou é porque está a fim de salvar o casamento Você não vai ter nem amante nem marido Fim Mas quem é que quer casar Você Quer casar sim senhora não pensa noutro assunto certo Pois então vamos partir pra um que seja livre putz E o Fabrizio Sei lá Sumiu Me viu com M N e então fui franca você sabe não gosto de enganai ninguém Lentamente Lia foi levando o polegar a boca Começou a roer a unha E de repente riu O Pedro e demais inexperiente não serve Tem então o nosso padre que também deve ser inexperiente mas com a vantagem da idade Um padre como você sonhou maravilhoso Louco pra casar Lorena riu silenciosamente sacudindo os ombros Quer mesmo Hein Lião Não quer outra coisa disse Lia apanhando na bandeja uma maçã Esfregoua no punho do pulôver antes de morder Agora que está provado que casamento não funciona a padraria toda se animou dezenas de pedidos de licença Será o golpe de misericórdia que vão dar na igreja Kaput Delicadamente com as pontas dos dedos Lorena foi juntando num montículo os detritos espalhados na pequena área do tapete onde Lia despejara a sacola Recolheu o montículo numa folha datilografada mas antes de despejálo no cinzeiro leu Jamais reencontramos a liberdade a não ser no dia em que foi posta por terra escreveu Marx em 1844 Infelizmente a continuidade de submissão e reacionarismo mantevese até nossos dias na história alemã Não tem sentido Lião Se você é da esquerda tem que aceitar essas renovações que fazem parte do quadro É a Igreja Nova que está nascendo dos escombros da outra vamos ter padres desreprimidos contentes América Latina precisa fazer mais amor do que as outras Américas Trópicos Não sei explicar Lorena mas a igreja abriu demais as pernas O que salva é esse monte de padres lutando por aí quase choro de emoção como lutam putz É o que está vivo em toda a engrenagem Desembrulhou o sanduíche deu uma dentada vigorosa e recolheu na sacola os objetos que espalhara Pegar em carabina pode Casar verboten É isso Ela enfiou na boca o pedaço de presunto que lhe caiu no peito e ali ficou preso na malha Não pode falar a boca está cheia demais Dobro de novo a barra das suas calças desbotadíssimas E essas meias de lã preta empoeiradas onde arrumou essas meias Eh Lia de Melo Schultz Puro preconceito de Dona Diú somado ao nazismo de Herr Schultz Padre fazendo amor Câmara de gás nele Como se estivéssemos na aurora dos tempos quando Jeová separou as águas das terras as trevas da luz o Bem de um lado e o Mal do outro E os crepúsculos No crepúsculo fica o amor que transgrediu querida A faixa que não é nem dia nem noite mas penumbra meias tintas Silêncio A faixa dos que preferem calar Entram aí os homossexuais os incestuosos os adúlteros os do amor tenebroso veja que classificação genial Da minha cabecelha Padre que está querendo mulher também se enturma com esses A ambigüidade O medo Vagarosamente Lia foi amarrotando o papelmanteiga e deixou a bolota ao lado do cinzeiro transbordante Arrancou o pulôver Lorena ficou olhando a camiseta de algodão que ela vestira no avesso Como você é quadrada resmungou Lia Quadrada e romântica o que dá no mesmo Está no avesso avisou Lorena E se arrependeu Era bem provável que o direito estivesse ainda mais encardido Esperou de olhos baixos que a amiga a desvestisse Mas veja Lena se eles se enrolam em mulher vão ter mais medo quer dizer mais problemas Por que casar Se não querem uma causa política tem milhares de outras pedindo aí tempo integral Acho que nunca se precisou de tanto padre como agora Gente endoidando morrendo quero confessar quero comungar gritou sacudindo pernas e braços em convulsão E os marotos arrepiando carreira Fantástico entende Isso é Chopin Muda isso quero uma coisa alegre Estou alegre Lena Mas o que você está fazendo Inclinada sobre o pescoço da amiga Lorena procurava desatar o nó do barbante com o pequeno peixe prateado e o sino Calma querida calma Tenho uma corrente de prata que não uso nunca este fio está feio espera vou trocar Mas os padres hein Nossos índios se sifilizando os meninos todos caindo de drogados favelados e ratos multiplicação das putas e diminuição dos pães E justo agora esses moços se preocupam com o nihil abstat pra trepar O nó desatouse afinal Lorena foi buscar a corrente e fez tilintar o sininho Ficou tão jóia Lião Espera ainda não mexa quero passar um pouco de colônia no seu pescoço aquele cordão horroroso deixou sua marca já pensou Uma delícia de perfume dá um frescor Sinta Com um certo conformismo Lia entregoulhe o pescoço e cocou o nariz tenho alergia por perfume Franziu a cara Você não pode calcular como fico entusiasmada com esses padres que estão lutando Ação Lena que contemplação já tivemos demais Sair por aí falar até secar o cuspe andar até o osso furar a pele levar xingos porta na cara pedrada e continuar sem desfalecimento continuar no meio da incompreensão da hostilidade continuar até a morte mas não foram eles que escolheram São soldados de Cristo ou o quê Cristo parava pra descansar na rede Vejo Cristo como um homem empoeirado e seco a sandália rota trotando pelas estradas feito um demente fome sede sarcasmo e lama até os discípulos duvidando enchendo E ele Não sei explicar Lena mas viro vidro moído quando ouço essa conversa de padre se apoltronar E vê se pára com isso tenho alergia estou ficando sem ar com tanto perfume Tenho que ir Olhou a corrente beijoua Beijou Lorena e enfiou o pulôver na sacola Dependurou a sacola no ombro E o nosso almoço Lião Não era hoje Queria tanto oferecer um almoço maravilhoso morangos com creme lembra Nunca mais a gente almoçou Outro dia Vem comigo até o portão Espera leva algum oriehnid estou riquíssima Mas isso é muito digo quando ela vem com a maçaroca que enfia na minha sacola Ofereça em meu nome um abajur lá para o grupo Abajur repito e fico rindo Tenho até vergonha de me sentir tão feliz Vou é comprar coisas na papelaria falta tudo no escritório uma pobreza transamazônica Descemos a escada de mãos dadas Parou no meio e deu um grito Olhei para seus pés descalços tinha se machucado Lião No fim da tarde que tal um cinema Fita de lobisomem querida Não hoje não posso entende Tenho trabalho à beça E tenho também que ver começo e paro no meio Irmã Clotilde vem vindo na nossa direção Enfim coiselhas Lorena Descalça nessas pedras ela se espanta As solas dos pés não estão doendo Apoiandose mais no meu braço ela volta para a Irmã a cara martirizada Horrivelmente Risinhos Comentários de ambas sobre a beleza do dia Lorena confessa que tem vontade de gritar num dia assim Apanho um pedregulho que aperto na palma da mão com tanta força ô ele resiste posso ficar apertando até o fim dos tempos e ele intacto Que alegria me dão as coisas que resistem assim Guardoo na sacola e agora sou eu que tenho de gritar para o sol Miguel Nós te salvaremos mundo Nós te salvaremos repito e meus olhos estão nadando em lágrimas Você sabe se saíram as notas pergunta Lorena com voz de palco É o sinal Inclino a cabeça para o segredo que ela vai contar Irmã Clotilde faz um adeuzinho discreto e se afasta com sua cesta de compras Pode dizer Ana Clara está grávida outra vez Do noivo Antes fosse Mas com o noivo é tudo platônico grávida do Max o outro Tem que fazer depressa o aborto e depois a plástica na zona sul já pensou Anda péssima a coitadinha Até heroína Lião Vi as marcas Essa madrugada ela se enganou de quarto entrou no meu Foi reto me sacudir na cama quase morri de susto pensei que fosse a polícia Lorena atracouse em mim Doem lhe os pés mas precisa se flagelar Temos que fazer alguma coisa Lião Uma loucura uma loucura Não e possível continuar desse jeito Lião olhando a mirrada pitangueira que nunca deu pitangas Parece morta Mas lá no cerne ainda está viva Lorena acompanhou a direção do seu olhar Colheu uma folhinha trituroua entre os dedos Cheiroua E inesperadamente deume as costas e subiu nos meus pés me leva Agarroa pela cintura e coladas e lentas vamos indo xifópagas pela alameda ela me guiando por que com sua cabeça na frente da minha não vejo o caminho Leve como o perfume de sabonete que sinto nos seus cabelos recémlavados Agora eles me cobrem a cara como um lenço aberto no vento Penso em Carla por que penso em Carla Apertoa mais Ela ri sente cócegas A gente se ama sim a gente se ama isto é amor Não sei explicar mas também amo Pedro E o Bugre e Ana Turva amo todos Sou capaz de todos Miguel principalmente Seus pés escorregam em cima dos meus desequilibrase Quase caio por cima dela Vamos desça Não obedece quer brincar mais Levantoa pela cintura e no ar ela se retesa e faz pose de bailarina Depositoa diante do portão Quando era criança andava quilômetros assim com Rômulo Esse é o diplomata Rômulo morreu O diplomata é Remo Sempre confundo Todo mundo confunde Sabe aquela arca que guardei na garagem Tem dentro um álbum de retratos antigos um dia te mostro Era linda a casa da fazenda aquele colonial bem purinho Tinha cento e vinte e tantos anos já pensou Abro o portão Mas tenho ainda que dizer alguma coisa o que mesmo Baixo a cabeça agora sei Estou completamente amarrada Lena não posso ajudar Ana Clara Se me enrolo com viciado Nem que fosse minha irmã não posso onde tem traficante e viciado tem tira aos montes estão querendo demais nos misturar Se facilito Sei que ela está doente mas essa é uma doença que me dá vontade de esganar o doente Vão submergindo com aquelas caras pasmadas vão afundando todos um por um você puxa eles pelo braço pelos cabelos grita ameaça faz tudo e eles afundando como um bloco de cimento atirado num pântano Nem os bichos Lena que os bichos reagem esperneiam Eles não Afundam com aquela cara parada morto por dentro Fazer o quê pergunto e sacudo o portão porque é difícil fazer o que a gente quer Já estou atrasada Lena A viagem milhares de preparativos Lorena se apóia nas barras do portão e geme não sei se de dor ou desânimo Fico morrendo de pena Me sinto cúmplice porque ajudo tem uma palavra em Direito Penal conivente Mas como me negar Mãezinha já depositou o cheque do meu carro entro com o oriehnid para as operações não tem problema Mas sei que não é oriehnid que vai resolver Não agora Vou precisar também Lena a viagem está aí estourando que duro tirar passaporte ô tanto papel Tanta exigência Outra noite ela me disse que viu Deus Não tem viciado que já não viu acho que Deus está se popularizando um bom sinal O Corcel vermelho fulgura debaixo do sol Um menino atravessa a rua na sua bicicleta Em algum jardim um cachorro late desatinado Há um homem de terno escuro parado debaixo da árvore da esquina Quando se sentiu observado tirou um jornal do bolso e começou a ler Que foi Lião Por que você está assim Aquele homem digo A mulher que está saindo da garagem abriu a porta do carro Ele entrou Respiro até o centro da terra Como uma criança Lorena enfia os dedos por entre a renda de ferro do portão e fica dependurada nas rosáceas amarelas de ferrugem E se for verdade Lião Isso que ela disse que viu Deus Você já viu Cansouse da posição e agora examina as mãos com as marcas vermelhas Mãezinha teve uma amiga que um dia amanheceu no colégio com as chagas de Cristo na palma da mão Rômulo meu irmão ouviu o caso e no dia seguinte foi me sacudir na cama estou com as chagas estou com as chagas E me mostrou as mãos marcadas Mas o outro o Remo era esperto mercurocromo já pensou Eu fazia umas bolhas de sabão enormes nem Rômulo nem Remo conseguiam fazer bolhas tão grandes como eu Um besourinho de pintas amarelas vai subindo pela manga da sua bata de cambraia Desde já lembro dela assim descalça com seu besourinho e sua virgindade perplexa como as bolhas que soprava Essa viagem putz Bahia Mais longe já disse vê se presta atenção Lena Exterior Depois dou os detalhes agora não quero perguntas A gente faz uma festa de despedida hein Lião O Guga vem com o violão bateria tenho bebida à beca vamos dar uma festa Você convida todos seus amigos Meus amigos Verboten ô die Zeit entrinnt digo e abro o portão Alemão mais louco O meu pai Às vezes bebia e cantava e quando cantava me parecia assim um deus embora o estranhasse porque cantava em língua estranha Então ficava um estranho com todo seu prestígio de guerra e exílio O vozeirão de soldado como era Wie einst Lilli Marleen Wie einst Lilli Marleen Lorena repete o estribilho marcando o compasso no maior entusiasmo mais Lião canta mais Tenta ainda me prender não quero mesmo almoçar E que tal uma volta no Corcel Um sorvete no clube Saio e bato o portão Vejoa como uma prisioneira através das grades do seu jardim Sinto uma certa tristeza mas logo tenho vontade de rir Pontos de vista para ela a prisioneira não sou eu Pergunte à mãezinha se tem algumas roupas que queira dai aceitamos qualquer roupelha camisa cueca pulôver tudo Ela estende o braço por entre a grade e enfia minha camisa para dentro da calça Lógico que tem Quem sabe resolve dar as roupas de Rômulo Tinha treze anos mas era tão desenvolvido sabe meu suéter de listras azuis Era dele Guardou tudo fica tão mórbida sussurrou tirando para fora minha corrente com o peixinho e as coisas de Mieux Compra navios de tecidos e depois muda de idéia vocês podem fazer até fardas De revolucionários sem revolução pergunto Lorena apoiou a cabeça no portão e seguiu a amiga com o olhar Levantou a bata e coçou vagamente o estômago os dedos descendo em giro até o umbigo Interessouse pela tênue sombra triangular do sexo que transparecia através da calça branca E sorriu para o passarinho que varou a copa do pinheiro e foi pousar no muro da casa vizinha Inclinou se para ele numa reverência de menina Good morning mister Brown Good morning mister Smith How is your father My father is very well thank you And your mother Oh my mother is a cat A very little cat So sorry No silêncio do jardim batido de sol ecoou o riso ensolarado de uma mulher Lorena foi andando penosamente sobre os pedregulhos as mãos em concha contornando os seios ai os peitos das estátuas Principalmente os peitos daquelas quatro mulheres de bronze montanhas seminuas sentadas em torno do pedestal com o velhote de capa de vampiro encarapitado lá em cima Praça das Rosas E os peitos de rosas desabrochadas pojados de leite quando for tempo de leite Leite da fazenda tão espumoso tão branco As noites de luar leitosas de tão brancas Mas quando a lua entra atrás da nuvem os caninos do velhote se aguçam e ele desce para acariciar os bicos intumescidos dos peitos expostos não devo Deve elas respondem caladas oferecendo o sangue em bronze dos pescoços Sorriu o sorriso que as estátuas deviam sorrir E acariciou os bicos recolhidos dos próprios seios quase inexistentes Suspirou Queria ser uma vaca Uma vaca de focinho úmido e tetas rosadas asseada como as vacas da fazenda Vacona malhada Veja o escudo desta dizia o pai alisando com amor o traseiro da Branquinha com suas manchas cor de mel Escudo sussurrou Lorena apoiando se na pitangueira Limpou a areia da sola dos pés Tão mais nobre escudo do que bunda Esta já foi coberta perguntava ele e a vaca respondia com um mugido terno ruminando verde a baba verde a bosta verde verde que te quiero verde Mugiria tão musgosa quando MN encostasse a cara no seu focinho escorrendo verdor Minha amada Amor pastoral de vaca cercada de touros por todos os lados E virgem um guizo no pescoço em caso de perigo blem blem blem Novilha noviça O primeiro homem de Ana Clara foi um alemão que bufou como um touro quando se atirou em cima dela era ver um SS caindo sobre o inimigo num assalto a baioneta calada Mas não contou depois que o primeiro tinha sido aquele professor de filosofia a barba negra e as mãos de plumas Enfim com Ana Turva é tudo sobre o delírio Pensou em Lia com seu primeiro amante olhando para o teto e fumando horrível horrível Não sei explicar começou ela E explicou com pormenores que escolheu seu parceiro assim a frio como se escolhe uma escova de dentes pronto vamos nos deitar E daí Lia o que foi que ele fez Lia pregava o zíper num jeans que há muito devia ter sido lavado Ora ficamos na cama olhando o teto e fumando Falamos sobre tanta coisa entende Incrível Mas é incrível Lião Logo na primeira vez tudo tão gelado explodiu Lia examinoua com uma expressão de cansaço Arrancou nos dentes o último fiapo disponível de unha Gelado por quê Fiquei com vontade de conhecer um homem e tomei as providências onde está o gelo Não é preciso fazer a histérica Um tipo legal estudante de medicina nosso companheiro Outro dia tomamos um lanche juntos vai se casar Fiquei olhando Lia pregar o zíper com seus pontões polêmicos costurava no mesmo tom com que falava em estado de exaltação Estranho não Arrisquei e ela me encarou irônica Simples como tomar um gole dágua De que jeito você queria que fosse Eu lavava meus pentes em água quente com algumas gotas de amoníaco já ensinei não sei quantas vezes que é assim que se lava pente mas jacaré aprendeu Ana Clara usa na bolsa de Dior um pente plástico encardidíssimo e Lião tem mania com pente preto sempre suspeito porque não se vê nele a sujeira A solução e pegar no quarto de cada uma seus pentes sinistros e laválos junto com os meus Dei um tão jóia para Lião tinha até incrustações de madre pérola Avisei que tinha sido de minha tiaavó Ela agradeceu muito e enfurnouo na sacola de achados e perdidos e numa mais botei os olhos nele Vai ver quebrou pelo meio na hora em que entrou naquela cabeleira baiano tem o cabelo muito duro Mas de que jeito você queria que fosse ela repetiu e eu respondi que esperava que fosse como nos romances que escrevia imagine se alguma das personagens da tal cidade cheirando a pêssego vai ter relações com um homem por puro ato de libertação E logo na primeira vez Vejo hoje que perdi uma boa oportunidade de calar o bico Acabou rasgando o romance coitadinha Sabe agora que não está em nenhum artigo do código que mulher inteligente precisa escrever livros Me acho inteligentíssima Continuei fazendo poesia Subo a escada devagar para sentir nos cascos a quentura da pedra Uma borboleta pousou no corrimão bem ao meu alcance Prendia pelas asas mas tremeu tanto que solteia Saiu voando buleversada como se tivesse ficado cem anos presa Nos meus dedos o pó prateado Tão breve tudo Prendi assim a alegria ainda há pouco foi minha mas se debateu tanto que abri os dedos antes que se ferisse não se pode forçar Um pouco mais que se aperte e não fica só o pó mas a alma Entro na minha concha Eh MN Escolhi você porque não vai me perguntar se é a primeira vez Nem vai fumar olhando para o teto sabe que sou sexo bobina cuidado cuidadinho Nem vai dizer que está grato por ter sido o escolhido Grato Abominável Ai meu Pai Me mato se MN falar em gratidão ou olhar para o teto mesmo de relance Quero fervor sabe o que é fervor Ele não tem manifestado muita sede mas não será porque se controla Controle é lógico um gentleman não pode mesmo se afobar Meu noivo morre de tesão por mim disse Ana Clara quando amarrou um dos seus pilequinhos solta o vocabulário tipo e nas ebulições Tenho especial má vontade por essa palavra mas aqui ela vai caber digamos que MN me deseja mas não tem tesão por mim that is the question Se eu tivesse aqueles peitos Deve me achar sem saúde suas mãos mais me protegem do que acariciam Como se eu fosse de biscuí Cuidado com esses objetos de biscuí recomendava mãezinha aos homens da mudança E os homens tão apressados e rudes inesperadamente perdiam toda a pressa e começavam alcochoar com algodão e palha as bailarinas transparentes da vitrina de bibelôs Sangue aguado de fim de raça Se tiver uni filho com um homem branco que nem eu o filho desapareceria na brancura dos lençóis olha aí meu filho eu diria e as pessoas procurando onde onde Teria que ser posto num lençol preto Estendo as mãos para o sol que bate na janela Unhas pobres Dedos pobres Os de MN são enérgicos mesmo quando em repouso as unhas quadradas escovadíssimas ginecologista lava as mãos muito mais do que os outros A sensibilidade nas pontas dos dedos que conhecem tão bem nossas partes Que lidam na perfeição com nossas raízes Me perturbo quando penso nisso mas é justamente esse pensamento que me dá a doce sensação de segurança estou em boas mãos oito Sento na cama e vejo o quarto rodando Estou parada sou o eixo O eixo do mundo Senta aqui que é o eixo do mundo dizia o Jorge mostrando o dedo espetado pra cima Bastardo Podre de sífilis agora eu sei que era sífilis Deve estar morto também Me acordava aos berros café quero café Minha mãe na cama vomitando na toalha Acho que você vai ter um irmãozinho Debilóide Ah muito boazinha todo debilóide é só bondade Me sacudia o sacana e eu tinha que fazer o café de madrugada porque a porcaria do serviço dele ficava na putaque pariu já vou já vou seu besta Nunca pude dormir o quanto quis porque tem sempre alguém me sacudindo acorda acorda Vontade de dormir cinco dias e acordar no consultório do turco como é o nome dele Aquele analista Esqueci pomba Enfim não interessa Queria falar do pântano com a cara da minha mãe na água preta Fujo feito doida nadando com forca não sei nadar mas continuo nadando arrancando do fundo lodo e plantas que se enroscam em mim e me tapam a boca me larga Sacudo as mãos e me livro das coisas gelatinosas peixes folhas Sei que logo adiante vai aparecer a piscina fica logo ali a piscina eu não disse Entro de cabeça na água limpa e me lavo inteira rindo com Lorena que está nadando ao lado Sei nadar digo e ela sacode a cabeça e faz caretas e vai dizendo azulpiscina azulpiscina Quero rir com as caretas mas tapo a boca Perdi minha ponte Minha ponte mãe Perdi minha ponte a ponte fico passando a língua e só gengiva escorregadia como lodo Ela viu ela viu Começo a me debater porque não consigo mais nadar afundo com as plantas enroladas nos meus pés me larga Doutor Hachibe O nome dele é Doutor Hachibe digo enxugando a cara molhada de suor Enxugo as mãos Aquele meu analista Max saltou da cama e ficou pulando num só pé gemendo e rindo Minha perna dormiu Coelha Dormiu completamente dormiu Bebo no seu copo Danese Outro anão de vermelho passou rápido rindo Ou era o mesmo Fico rindo também Não interessa Muda esse disco Max Uma negrada berrando Ele levanta nas pontas dos dedos outro disco da pilha O gesto de Lorena Também gosta de Bach A Mademoiselle do reloginho deve ter funcionado nas duas casas ensinando as mesmas coisas O coraçãozinho de ouro na corrente que deve ser tirada à noite pra não enforcar a menina Nem precisam falar e se reconhecem de longe como os cristãos das catacumbas se cruzando nas praças Podem se misturar com os outros e não se misturam Ela pode dizer indecências e não fica indecente pode ficar putinha e não fica putinha Anel de brasão Este aqui também tem seu anel que nem Deus sabe onde anda Mas tem O feudo familiar Sofri tanto porque não tive o meu e agora Sei lá acabou tudo a decadência vem de longe vi isso no álbum A nhemnhem tem um álbum de retratos na arca Capa de veludo Fecho de prata Toda a parentela antiga posando em sépia Finge que não liga mas não pensa noutra coisa Não sossegou enquanto não me mostrou todos Mas vieram os carunchos atacando tão sutis que atravessaram os tafetás das saias as flanelas inglesas das calças e chegaram às respectivas bundas Em sépia Então começaram a roer bem devagarinho os popôs a nhemnhem fala popô abotoando a boquinha Está certo Os sacanas roeram os popôs e chegaram aos ossos o apetite desses carunchos pomba A vez dos ossos Se ela encostasse o ouvidinho na arca podia ouvir o roqueroque da carunchada arrotando também em sépia A cor do tempo Dá uma fogueira disse ele catando os palitos da caixa de fósforos que se espalharam em seu peito A mãe dela vive com um gigolô Dessa Lorena aquela magrinha que fala nhemnhemnhem A viúva esbordoa a fortuna com meninos mas ainda assim Uma americana velha queria que eu vivesse com ela só viajando pelo mundo num iate de ouro mas tinha uma cara de meter medo o nariz era deste lado olha era assim A boca vinha pra cá tudo torto olha Coelha olha Está apaixonada por um médico Um velho Casado cheio de filho uma droga Mas quando ele desaparece ela entorta O irmão é diplomata Remo meu irmão ela diz de dois em dois minutos Manda presentes divinos tem gosto o cara Quando era criança matou o irmão menor Matou quem O irmão Estava com uma espingarda e apontou bum Liquidou o irmão na hora Que história sinistra Coelha Diz que é virgem O irmão Doulhe socos no peito Ele se defende cruzando os braços rolando de tanto rir Virgem é ela virgem é ela fico repetindo e para cada ela dou um soco mais forte Toda excitada com aquela vozinha de beijaflor meu namorante Meu namorante Liga de namorado com amante besteira Diz que é contemplativa passiva Gosta de mulher Não seja ignorante amor Contemplativo é o que contempla não sabe disso Tem o ativo e tem o passivo que é tão passivo que os passarinhos fazem ninho no cabelo dele Recita nua no quarto Mania com poesia e com latim Vocês não são amigas Quero dizer somos mas agora já não posso Ou posso Amigo não é pra isso Dizer as coisas todas Dureza Ana Clara sentouse na cama fechou o cigarro na concha das mãos e tragou concentrada Se não gostava dela Gostava sim Gostava muito Então Uma esnobe se acha especialíssima Mas é minha amiga como não Quem é que me tira das trancadas Não é você Nem aquele besta é ela Minha amiga Me acha linda a maior admiração por mim Acha meus olhos especialíssimos Você acha meus olhos especialíssimos Max estou falando presta atenção Ele beijoua demoradamente Olhos de pantera Quero essa pantera Não posso disse ela e se enrolou no lençol Cruzou os braços Fechou as mãos Agora sou múmia Ele inclinouse para o chão Procurou vagamente Pegou a garrafa deixoua Estou com fome Coelha quero comer vem comer comigo chamou correndo para a cozinha Abriu a geladeira Que genial Fabuloso estou encontrando coisas olha quanto queijo Vinho tem vinho ih Frio Coelha estou com frio quero me cobrir Que horas são Preciso ir embora já Que é que eu digo que é que eu digo Não interessa Uma depressão Ele vestiu o pulôver e esticouo até quase os joelhos Voltou correndo para a cozinha Vem Coelha Um sanduíche fabuloso Já descascou um pãozinho e agora está no segundo roqueroque com aquela unha indecente Unha nojenta E se eu telefonar Aqui é a noiva dele Avise que me atrasei porque sofri um ligeiro acidente e precisei prestar depoimento milhares de depoimentos Comigo não aconteceu nada mas o padre Por que padre Fica mais raro Não é toda hora que um padre tem a cabeça esmagada baixo da roda A batina preta Terno preto com aquela coisa na gola acho bacana aquela coisa branca na gola Mas gastou todo esse tempo Não Não é isso O caso é que minha amiga Lia foi baleada A guerrilheira Guerrilheira é assim facilitou leva um balaço Estou aqui no ProntoSocorro tenho que desligar porque milhares de pessoas Não sei que ProntoSocorro é não sei Como vou poder O endereço Você quer o endereço Ele quer o endereço E já desconfiado de que é mentira o escamoso não sabe de nada não viu nada e já está desconfiado Vem achei mais coisas avisou Max e a voz se perdeu em meio do barulho de louça se quebrando Ih caiu tudo Enfio a cabeça debaixo do travesseiro Estou com medo Max Estou com medo A Lião disse Não interessa Inveja dela Por que não dá conselho aos piolhentos do grupo Só serve pra abrir o bocão Guevara Guevara Quem é que está se importando Ano que vem Madre Alix será a madrinha me ama às raias esta fazendo montes pra todos vocês mas comigo Lorena também lua madrinha Vai com a mãe que é vip Alta burguesia rural sabe lá o que é isso Lião pode ir como bem entender uma intelectual de esquerda pode ir de cigana e fica interessante mas Lorena e a mãe Então As freirinhas com suas roupetas de festa O clero inteiro me prestigiando Tenho de entrar de braço com o padrinho Que padrinho O professor Langue pronto O professor Langue com aquela estampa de lorde pode ir até de terno escuro um lorde decadente mas com classe Que classe pomba Meu vestido simplérrimo mas podre de chique A corja vibrando o escamoso vibrando olha só a noiva que arranjei Foi capa de revista desfilou em Londres no mês passado Universitária Trancou a matricula mas no ano que vem Max o ano que vem vou destrancar a matrícula Ouviu Max Todo mundo trancou a matrícula uma porrada de meninas só me falam nisso tranquei a matrícula Noivo costuma dar presentes importantes Podia me dar o casaco de onça não podia Por que me dá dinheiro Pensa que e só pagar um pensionato de pobre e uns alfinetes Pensa Bastardo Tenho minhas dívidas vou operar as amídalas Viro na boca a garrafa e meus poros se abrem e meu peito se abre Vidão Não fosse esse negro aí berrando não gosto mesmo de negro Nem de branco Não gosto de ninguém Todos uns bons sacanas que não perdem a chance de mijar na cabeça da gente Agora quem vai mijar sou eu grito e fico rindo de feliz Max eu te amo eu te amo eu te amo Beijo seu sapato que está em cima do meu biquíni O sapato Amo o sapato dele amo tudo mas tenho que ir tenho que ir Quando me desbloquear a gente vai rolar de gozo quero rolar de gozo Beijo meu Agnus Dei que prendi no biquíni amo meu Agnus Dei amo Madre Alix minha santa não fique triste que em janeiro minha santa santa E minhas roupas pombas Sumiu tudo Queria ser invisível e sair como o cara dos quadrinhos como era o nome dele Ele sai e entra e ninguém vê Tenho que ir Max Caiu a gaveta Não interessa ele não faz perguntas Não é como escamoso que desconfia até da Nona Fiquei doente não posso Doença feminina sou muito feminina e então Então vem cá Aninha que meu irmão é ginecologista ele te examina vamos lá imediatamente vamos meu bem abra as perninhas um pouco mais sim Agora relaxa bem boazinha Pronto não foi rápido Pode botar a calcinha que você é a mais linda noivinha prenha que meu irmãozinho podia arrumar A Lorena está doente É a Lorena que teve que fazer um aborto Aborto Mas que raça de amiga vagabundas são essas Vagabunda é a irmãzinha Lorena é rica antiga Quando sua Nona comia banana podre no porão do navio a vela E mesmo Lião Guerrilheira e tudo mas o pai também foi um nazista importantíssimo Mãe usineira Minhas amigas E então Então vá se vestir sua cadelona Que é que está esperando ai pelada Estou fazendo umas comidas fabulosas Ana Clara apoiouse na banheira Olhouse no espelho Arregaça com o lábio e ficou olhando os dentes Examinou a língua Sentouse na banheira para urinar Apoiou a cabeça nas mãos e ficou enrolando no dedo um anel de cabelo Você acha que pareço ter mais de vinte anos Me acho uma velha Tem aí um cara disse ele voltando ao quarto Passou as pontas dos dedos no peito do pulôver manchado de vinho Meu amigo O maior cozinheiro do mundo a gente pode aí Deitouse encolhido e silencioso como se receasse acordar alguém que dormia ao lado E se de repente tive a eólica Não seria uma solução pensou ela esfregando a toalha molhada no vão das pernas no ventre Digo que fiquei com a cólica pronto Tomei analgésico forte demais e dormi e perdi a hora Esfregou a toalha na cara Não é próprio de noiva falar nisso mas se até Examinou no espelho a face brilhante E Lião ainda com suas teorias de superioridade da mulher Mas onde Papo furado Uma cólica e já avacalha tudo Se não é cólica é o filho dependurado no peito Pronto Mas que guerrilha pode sair disso Mulher tem que ser assim mesmo Se embonecar Vestir coisas lindas A única vantagem que vejo é essa da gente fazer amor sem se sujar A única Preciso dizer isso pra Lião repetir nas reuniõezinhas dela lembrou e riu enquanto despejava águadetoalete nos seios nas coxas Pulou num só pé gemendo e rindo Como arde pomba Apanhou o copo de prata que estava no armário de laca vermelha ao lado do talco Riscou caridosamente com a ponta da unha vermelha o nome gravado em meio do desenho compondo um buquê de espigas e flores Maximiliano Encheu o copo dágua pingou dentro um pouco da lavanda e gargarejou Cuspiu na pia agarrandose na cortina para não cair Tirou a bolsa dependurada no trinco da porta e fez rolar o copo para dentro dela Escovou os cabelos com energia renovada eriçandoos para o alto até formarem uma coroa de anéis Umedeceu na língua a ponta do lápis e acentuou a linha cor de ferrugem das sobrancelhas Pingou colírio nos olhos A mão tremia Segurou o pulso enquanto passava nas pestanas o bastão de rímel O bastão resvalou borrando a pálpebra Recomeçou o duro movimento de guindaste a mão esquerda sustentando a outra o braço colado ao corpo a boca entreaberta Cerrou os olhos Estou bêbada Abriu a torneira e molhou o peito Tirou do armário um envelope de aspirina trincoua nos dentes e enfiou a boca debaixo da água Sentouse no chão para calçar as meias e a malha de seda preta Foi enfiando no pescoço as correntes de prata espalhadas pelo tapete Da sua boca começou Max forcejando por abrir as pálpebras As pupilas dilatadas rodaram e desapareceram no fundo das órbitas Ela vestiu o casaco de veludo preto que lhe chegava ate quase os sapatos de verniz com uma antiquada fivela de prata lavrada Apertou a cabeça entre as mãos E essa dor Apanhou a calça que ele deixara ao lado da poltrona Examinoulhe os bolsos e num gesto automático tirou o maçarote de dinheiro e sem contar guardouo no bolso do casaco O maço de cigarro americano estava debaixo da poltrona Meteu dois dedos por entre os cigarros e pesquisou o fundo do maço Trouxe nos dedos em pinça uma fina tira de papel de seda cuidadosamente dobrada Apalpou o papel e fechouo na mão Voltouse eufórica para a cama Ele dormia tranqüilo com seu pulôver azul Cobriulhe as pernas Ajeiteilhe o travesseiro debaixo da cabeça Dorme amor Não demoro dorme Apanhou o cigarro queimando no cinzeiro fechou no peito a gola do casaco e saiu devagar pisando em ziguezague mas aprumada a cabeça erguida Na rua aceleravase o movimento sob a garoa engrossando em chuvisco Ela apertou os olhos contra o céu tumultuado Merda de noite Merda de cidade resmungou esboçando um gesto na direção dos carros que passavam com a velocidade da mão única os faróis altos as buzinas atropelando os mais vagarosos Acenou para um táxi que não parou Acenou mais vivamente para um segundo protegendo com a bolsa os olhos ofuscados Cretino Bastardo gritou para o motorista que fugia O homem calvo aproximouse com seu carro prelo também re luzente Fez um gesto que abrangia o norte e o sul Quer condução Vou para aqueles lados Ela somou o carro ao homem num cálculo rápido Inclinouse ofegante para a porta que se abriu Ao entrar perdeu o equilíbrio e tombou sobre a direção Puxou com violência a barra do casaco que a porta prendera Desde as oito e meia nessa esquina O senhor tem horas Desde as oito e meia o homem estranhou Apontou o dedo almofadado para o relógio embutido no painel do carro Mas são quase onze horas menina Aconteceu alguma coisa Ana Clara apertou a cabeça entre as mãos Que dor O senhor tem aí aspirina Me dá um cigarro Ele diminuiu a marcha do carro e baixou o volume do rádio que comentava uma partida de futebol Examinoua através do espelho de onde pendia um ursinho de veludo Você está aflita aconteceu alguma ciosa Tem tudo o que pediu aí no portaluva pode pegar Só não tenho água Nem uísque acrescentou com um sorriso Ela rasgou nos dentes o envelope de aspirina Sufocou um acesso de tosse Eu estava numa festa quando me avisaram Tenho medo que seja tarde demais nem sei se ele ainda está vivo Ele quem Penosamente ela engoliu as aspirinas Recostou a cabeça na almofada do banco Ficou enrolando no dedo a ponta do cabelo Meu pai Teve um enfarte no escritório Pode me deixar na São Luís Por favor me deixa na São Luís Mas vamos mais rápido sim Desculpe O homem acelerou a marcha do Mercedes Desligou o rádio Mas quando foi isso Perdi a noção do tempo tenho impressão de que estou horas nessa esquina Eu estava numa festa quando ah meu pobre pai meu pobre pai saía do escritório é advogado É o primeiro O quê Enfarte É o primeiro que sofreu Acho que é o segundo O primeiro foi quando meu irmão foi preso meu irmão é terrorista Até hoje não se sabe se está vivo ou não Sumiu O homem mordiscou as pontas do bigode que lhe chegava até o lábio Sou industrial não sou médico Mas se puder ajudar disponha Pode sim Fechando sua fábrica seu bastardo Assassino Joga os detritos todos na cabeça da gente e depois O ano que vem também vou jogar os meus Uma casa na praia e outra no campo A ralé que se desbunde Não tem coração que agüente este ar O senhor mora no centro Bem praticamente estou morando na minha chácara tenho uma chácara deliciosa Agora com o helicóptero é como ir daqui até a esquina Você já andou de helicóptero Não faço outra coisa pensou ela guardando o maço de cigarro que tirou do portaluvas Examinou rapidamente o isqueiro cromado É do quê Sua indústria Frigoríficos murmurou ele e brecou abrupto diante do sinal vermelho Está vendo É o cúmulo passou da luz verde para a vermelha E a amarela Bateu a cabecinha Ela procurou no regaço o cigarro aceso que lhe caíra da mão Cretino Porcóide Devia era aprender a guiar Não foi nada O senhor guia maravilhosamente A gente tem que desconfiar dos semáforos dos vizinhos Nem diga Tenho um Corcel mas evito a curtição O homem examinoua Agitouse inquieto O escritório é na Rua São Luís O escritório do seu pai Um andar inteiro Meu pai é um grande advogado Francisco de Paula Vaz Leme Mas será que ele ainda está lá menina Não pode estar lá fazendo o quê É natural que tenha sido levado ao hospital Ela desceu o vidro da janela e atirou fora a ponta do cigarro Dobrou o corpo para frente e apertou contra o peito as mãos fechadas Quer saber tudo esse merda Meu tio cardiologista tem a clínica no mesmo andar já da outra vez meu pai ficou na clínica mesmo disse Ana Clara apoiando a cabeça nos joelhos Enlaçou as pernas Que depressão O senhor tem um lenço Ele tirou o lenço do bolsinho do paletó Não está usado Mas que é isso Não chore tenha calma não chore Seu pai está bem cuidado não está Como é o nome do seu tio Esse médico Loreno Loreno Vaz Leme Me chamo Lorena por causa dele que é meu padrinho O homem acariciou de leve a cabeça de Ana Clara Conheço vários médicos dessa rua Esse não conheço Vaz Leme Não conheço Na realidade ele passou a maior parte do tempo nos Estados Unidos Digo que fui com Loreninha a uma conferência está decidido O cara falou duas horas sem parar e ainda assim porque derrubou a jarra dágua Conferência onde Na Faculdade querido Um jurista parente da Lorena todos os juristas são parentes dela Ficamos na primeira fila não se podia sair que em conferência e em trepada não se pode sair no meio que não fica fino E eu sou fina Você não quer se casar com uma moça fina Então Você andou bebendo menina Está me ouvindo Lorena Lorena Levanto a cabeça Dormi Não disse Sempre alguém me cutucando Agora é o homem da mãozinha olha só a mãozinha dele Vai perguntar mais Vai Dá carona mas cobra Parece o escamoso Não interessa Agora sou Lorena Você andou bebendo não andou E bastante Misturei bebida lá na festa Não estou acostumada mas já estou lúcida passou tudo Quer tomar um café Paramos aí num café você fica nova E não me chame de senhor não sou tão velho assim sou Vamos a um café Não não por favor estão me esperando fico aflita Desculpe mas Que é que você faz Lorena É uma menina encantadora subia Faço o último ano de Psicologia Na USP Outra vez a mãozinha agora no meu joelho Nem com meu pai morrendo esse porcóide me respeita Sorry ele gritou Esses insensatos Assustouse Sorry Quase entramos numa jamanta e me diz sorry Quem se assustou foi ele Vai guiar agora com as duas mãozinhas Vai Ou digo que tive um desastre Fui testemunha três carros trombados eu estava no terceiro Os motoristas presos nas ferragens Ah preciso Depressa depressa Podemos ir mais depressa Mas você está ruinzinha Lorena Como é que Estou ótima doutor foi só um susto pensei que tinha esquecido Me chame de Valdomiro Na realidade nunca estive tão bem não fosse isso do meu pai Olha me deixa ali na esquina depressa ali facilita O senhor é um santo E se ele não estiver mais lá Posso esperar Lorena não se afobe é naquele prédio Mas a porta está fechada não está Não não é ali é mais adiante Pára aqui quero andar O ar da noite é bom pra mim Mas está chovendo menina Toma fica com o meu cartão estou no escritório nesse telefone vai me telefonar Sem falta amanhã mesmo Amanhã Ele beija minha mão Abro a porta e caio de joelhos na calcada E ele ainda falando acho que vem vindo atrás Saio correndo Queria ter patins Sempre quis ter patins Sair patinando pela estrada patinando sozinha Passou a chuva mas estou gelada Podia ter pedido um empréstimo Ele dava E o cartão Lá sei jogue fora Valdomiro MercedesBenz Dava nada Um conhaque peço ao moço do balcão Ele fica me olhando Mas por que ele me olha assim Levanto a cabeça e vou tirando o dinheiro será que está pensando Nacional Estrangeiro O melhor que tiver Enfio a mão no bolso e estraçalho o papel de seda Bebo devagar Os olhos e a boca se enchem dágua Como a gente é escondida E como é livre Por que aquela tonta fala tanto em liberdade pomba A gente é livre olha aí ninguém sabe o que tenho no bolso Ninguém sabe o que estou engolindo Milhares de pessoas em redor e ninguém Só eu Agora mesmo neste minuto uma porrada de gente está matando outra porrada e quem é que está sabendo Neste prédio aqui em cima Milhares Genial isso Fazer as coisas na cara dos outros e os outros Boa noite Tem um velho na minha frente dizendo boa noite Mas o que quer esse velho Parece um mendigo com esse impermeável as pessoas estão ficando confiadas Quer minha companhia o vagabundo Está desacompanhado Eu também A noite dos desacompanhados Esvazio o cálice Estou serena como uma rainha é glorioso se sentir rainha Se sentir outra Chega de Ana Clara Sou Lorena Vou encontrar meu marido Ele quer dizer qualquer coisa e não diz Saiu esfregando no ladrilho sujo as solas dos sapatos sujos E se for meu pai Se de repente é meu pai Corro atrás dele Toco no seu ombro Fico me procurando na sua cara O senhor sabe que horas são Ele mostra o pulso de pelos grisalhos o homem que podia ser meu pai não tem relógio Preciso me segurar porque senão caio em prantos Que felicidade Estou tão feliz Talvez seja Talvez não Não interessa ele não sabe que é dois o que fica no bar e o que sai de braço comigo Perdoei tudo Eu tinha certeza que a gente ainda ia se encontrar Os homens na porta se multiplicam num jogo de espelhos Passo soberana entre as alas passo entre todos levando meu segredo como um navio Sou um navio passando lá longe todo iluminado me vejo passando lá longe e é um espetáculo me ver passando no mar Levanto a gola do casaco e fico um navio embuçado A voz a voz me chamando Me viro e ele está ali de braço dado comigo Meu pai e eu na noite do mar Ele não sabe de nada Sou menina e ele nem sabe Você é bela Bela Obrigada digo e fico sorrindo Jamais saberá porque agradeço Ele me enlaça Sinto seu desejo que pesa seu desejo é uma âncora mas a noite é leve pode haver uma noite mais leve O pai com a filha Se encontraram na noite Subo leve como a noite e tudo é silêncio onde estou Os astros passam passam e me iluminam posso pegar aquela estrela pelo rabo Táxi Táxi grito e os faróis me cegam Não é preciso táxi minha bela O apartamento é aqui pertinho um cantinho delicioso vem Se apóia em mim que eu ajudo Que foi que esta minha bela andou bebendo Levadinha Não vai me dizer Não vai Chuva Riu Dentes Tem bons dentes Não tem relógio mas tem dentes Relógio não interessa mas os dentes Bonito pomba Tinha que ser um homem bonito eu sabia Meu pai está comigo Estou protegida Protegida Meu uísque é de primeira a gente pode beber e ouvir um pouco de música Gosta de tango Tenho uma coleção de Gardel sou apaixonado por Gardel Mas meu Deus você é mesmo bela parece uma deusa disse ele me apertando mais Me visto assim displicente porque não ligo pra nada sou boêmio Mas se adivinhasse que ia ter uma deusa dessas punha até casaca Fiquei transparente Transparente Posso me ver porque estou transparente meus tecidos corderosa minhas veias entrelaçadas os órgãos organizados nos seus compartimentos estou inteira em ontem lá por dentro como o homem de plástico da vitrina tinha um homem no avesso de pé na vitrina Só ordem e luz Tanta luz que preciso fechar o casaco para que ninguém veja isto o Coração de Jesus está no meu peito O susto me atordoa tanto que tropeço e grito É Ele É Ele O homem também se assusta e me agarra Rolamos juntos Que foi que é que deu em você Que foi que você viu A gente podia quebrar a perna beleza Se machucou Se eu contar a senhora acredita Madre Alix escuta Ele está aqui dependurado no meu peito com a coroa de espinhos não rezo nem nada e Ele me escolheu está vendo Justo em mim Ele veio ficar quero gritar isso porque é uma puta de glória Ele ter me escolhido mas só pra senhora só pra senhora eu conto tenho que ir séria e digna com meu Coração Resplandecente Se ele me escolheu é porque mereço e Ele viu tanta humilhação tanto sofrimento lembra o que sofri com todos aqueles sacanas que Eu era criança e os sacanas nem podia me defender nem nada eu era criança Nem podia pomba Chorando minha Bela Está doendo alguma coisa Conta aqui pro hermano murmurou ele e cantarolou apanhando a bolsa que ela deixou cair Si precisas una ayuda si te hace falta un consejo Meu nome é Lorena Lorena Vaz Leme Pra mim é Bela só vou te chamar de Bela Ganhava fácil num concurso de beleza quando vejo aí esses bagulhos Você tem uma cara excepcional não estou vendo aí debaixo do casaco mas adivinho sou especialista no assunto Mas não chora assim não quer andar mais preguiçosinha Estamos chegando moro aqui pertinho um boêmio tem que morar na zona da boêmia exclamou e riu Você vai gostar do meu cantinho à moda antiga tem ale uma vitrola de manivela sabe como é Que pergunta besta você nasceu ontem Bela Bela Assim quero você rindo gosto de gente alegre E sou um triste Adoro tango vamos ouvir uns tangos Mas eu não estou sozinha Pois não mesmo que novidade é essa Cuidado Bela segura em mim torceu o pezinho Faço depois uma massagem já fui massagista Massagista cronista esportivo radialista corretor ai como vendi papel Fui tanta coisa menos rico Quando moço tive até uma escola de modelagem física até hoje faço minha ginástica bota a mão aqui está vendo Quarenta e seis anos e nem sinal de barriga Toureiro Me atrasei porque Meu pai e Jesus eu sei eu sei é difícil ninguém entende Tão simples Amassa o pãozinho e o rato é um rato que ele tem na mão Sustento seu olhar de raiva e medo Não tenho medo nunca mais Sou luz e ele é só escamas Escuridão e escamas Não interessa A mínima Então Olha aí minhas velharias só me cerco de velharias A cama larga coberta com uma colcha rendada ocupava quase todo o quarto aconchegante com suas almofadas de seda e paredes cobertas de retratos familiares misturados a flagrantes de homens seminus em poses atléticas Os retratos familiares eram antigos amarelados e convencionais com seus grupos de homens e mulheres de preto cercados de crianças de cachos e botinhas Na mesa de cabeceira o abajur com franja de miçangas coloridas e a pequena vitrola com uma toalhinha de crochê em cima Minha família disse ela abrindo os braços Minha família Ele tiroulhe o casaco dobrouo na cadeira de almofada acetinada e ajoelhouse diante dela que vacilava Correu de leve as pontas dos dedos pelas meias pretas Que físico Seu físico Bela Estas pernas Não quero que tire nem as meias nem os sapatos tenho paixão por meias pretas assim bem compridas estas vão até lá em cima Vão sim murmurou beijandolhe respeitoso as fivelas dos sapatos Bela Bela Os retratos disse Ana Clara apontando pródiga para as paredes O menino com o gato Meu irmão pomba meu irmão Sim Bela somos todos irmãos deixa o mundo lá fora e aqui no nosso cantinho Mas descansa vem deita aqui Bota a cabecinha aqui na almofada pura paina Não é macia Está confortável assim Bela Vamos tomar um uisquinho pra esquentar que tal um uisquinho Escocês minha Bela Meu amigo me abastece ele é da alfândega tenho amigos em toda parte Mas deixa te olhar Bela Meu gato sumiu Deixa te arranjo outros vamos beba Pode segurar o copo Vou botar um tango pra formar o ambiente mas aquele tango hum Também cantei aí numas bocas mas minha voz começou a ratear fumo demais Um veneno o fumo Tenho que ir gemeu ela se agitando Ameaçou levantarse Que horas são Que é isso que bobagem é essa A noite é uma criança Bela vamos bebe Cuidado não vai derramar na blusinha ah já derramou Não faz mal seca logo Bela O ano que vem O ano que vem Janeiro Eu já disse que Ele ajustava a manivela na vitrola Deu corda Os violões romperam fanhosos e veementes Em cada volta do disco a agulha saltava o obstáculo do arranhão profundo e se descontrolava na queda Para retomar em seguida a trilha Ele aproximouse Quero que fique bem quietinha assim mesmo como está inteira vestida murmurou com voz pesada Quero que fique bem quietinha enquanto vou ler uma coisa está confortável Me dá o copinho depois dou mais agora fique assim mesmo Não é belo esse tango Bien sabes que no hay envidia en mi pecho que soy un hombre derecho Espera um instante já volto Mansamente ela ficou rolando a cabeça na almofada Cruzou no peito as mãos fechadas Tenho que ir Meu pai Não interessa porque meu pai Com gestos contidos ele foi tirando a roupa Dobroua metódico empilhando peça por peça na cadeira Ficou nu Inspirou e expirou seguidamente dilatando o peito contraindo o estômago Avançou gravemente até a gaveta da mesa maior coberta com um velho xale espanhol Tirou de dentro uma revista já rota com o retrato de uma antiga artista de cinema na capa colada com pedaços de esparadrapo Deitouse ao lado de Ana Clara mas sem tocar nela Tremia inteiro Tirou os óculos debaixo de uma almofada de cetim vermelho com aplicações de filé cordechá Colocou os óculos A voz enrouquecida tropeçava nas palavras Quando na tarde lúgubre de Waterloo Napoleão desesperado ordenou a todas as baterias do seu exército em começo de derrota que despejassem seus balaços em compacta saraivada romperamse em dilúvio sobre o campo de batalha as comportas do firmamento Então ouvindo troar a artilharia enterrada na lama e ouvindo trovejar o espaço por entre cordas dágua o homem fenomenal cuja glória cesárea bruxuleava no crepúsculo definitivo dos Cem Dias teria exclamado com os olhos orgulhosos postos no céu Estamos de Acordo Fez uma pausa Respirava com esforço as narinas dilatadas silvando por entre os dentes brancos de saliva Virou de bruços e ajeitou a revista aberta na almofada Os músculos encordoados se retesaram rijos O pé esquerdo distendeuse e contraiuse em câimbras Mordeu a almofada levantou a cabeça os lábios repuxados num esgar Prosseguiu lendo num sopro Outros famosos conquistadores ao soltarem do peito heróico o suspiro último ouviram talvez desencadearse em fúria os elementos da natureza cósmica na solene solidariedade trovejante coriscante e pluviosa Os grandes capitães não sucumbem sem o trovão sem a chuva sem o vento sem o raio para que a sua glória temerosa ainda mais acresça o esplendor terrorista da cólera solidária dos espaços Ninguém contestará que Rudolph Valentino foi o maior conquistador do nosso tempo alucinante Gemendo ele rastejou até quase tocar a boca espumosa na face de Ana Clara que dormia Aspiroulhe o perfume os dentes apertados numa contração aguda de maxilares Colocou no seu ventre a revista ainda aberta e fincou os cotovelos no colchão Ajustou os óculos embaçados e respirou doloridamente Baixou para o texto o olhar esgazeado Sem dúvida ele não enviuvou a Andrômaca nem aceitou o duelo com Aquiles nem conquistou as Galias não destruiu Cartago nem tornou Constantinopla não pelejou nas Cruzadas nem esteve em Trafalgar não transpôs a Berezina nem trespassou com a lança o López do Paraguai Fez mais porém infinitamente mais rouquejou arrancando os óculos Arrepanhou a colcha com as mãos crispadas o corpo banhado em suor se sacudindo em contorções A voz saiu num silvo espesso Conquistou o coração de todas as mulheres que o viram na tela e mal o viram mal o viram experimentaram esse delíquio de platonismo amoroso que é segundo os fisiologistas a forma sutil da paixão mais temível que não encontra finito que não encontra finito no infinito da insaciedade Afundou de braços abertos na almofada Imobilizouse Na vitrola já sem corda o som esmorecia pastoso nove Ana Clara fazendo amor Lião fazendo comício Mãezinha fazendo análise As freirinhas fazendo doce sinto daqui o cheiro quente de doce de abóbora Faço filosofia Ser ou estar Não não é ser ou não ser essa já existe não confundir com a minha que acabei de inventar agora Originalíssima Se eu sou não estou porque para que eu seja é preciso que eu não esteja Mas não esteja onde Muito boa a pergunta não esteja onde Fora de mim é lógico Para que eu seja assim inteira essencial e essência é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra não há competição mas identificação dos elementos Apenas isso Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou eu estou estou competindo e como dentro das regras do jogo milhares de regras preciso competir bem tenho conseqüentemente de estar bem para competir o melhor possível Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser próprio ou alheio o que vem a dar no mesmo Ora se sacrifico o ser para apenas estar acabo me desintegrando essencial e essência até a pulverização total Vaidade das vaidades Apenas vaidade A conclusão é bíblica mas responde a todas as perguntas deste mundo desintegrado e confuso Os loucos reinando sobre os vivos e mortos Dominarão os poucos que conseguirem segurar as rédeas da loucura quais Pulmões e mentes poluídas Importante papel está reservado aos psiquiatras Aos profetas acre dito ainda mais nos profetas Acho que eu seria mais útil se estudasse Medicina de que vão adiantar no futuro as leis se agora já são o que se sabe Uma psiquiatra maravilhosa O chato é que quando leio um livro sobre doenças mentais descubro em mim os sintomas de quase todas uma psiquiatra por dentro demais da loucura Salva pelo amor Ai meu Pai Por que MN não me telefona ao menos para dizer Não sou bonita ponto pacífico Mas meu QI não é muito acima do normal E tenho algum charme Meio velado é certo mas se procurares encontrarás o ouro escondido na terra Lor cachê Fecho meu tratado já tratadíssimo queria entrar em provas ah esta greve Houve um tempo longe não em que estudávamos juntas Lião e eu Ana Clara não estava assim tão ambulatória delirante coitadinha Estudava com a gente um ou outro problema borboleteava sobre seus planos e depois ia experimentar meus vestidos mas não perturbava muito Tempo das pesquisas Lião ainda não estava curtindo a revolução estudava normalmente Estatísticas Formulários Chegou a fazer um trabalho para pesquisar o que leva o motorista a dependurar berloques no espelhinho do carro Dois grupos nítidos os que dependuram coiselhas e os que não dependuram nada Estes revelando evidente superioridade intelectual sobre os outros na conclusão lionina Para mim uniu simples questão de bom gosto ouviu MN Platão dependuraria o sapatinho do filho no espelho do seu Porsche se guiasse um Porsche Naturalmente foi a mulher ou a filha que dependurou aquele chapeuzinho E chapeuzinho mexicano ay ay ay ay Mieux não dependurou um bebezinho erótico no corcel da mãezinha Se Lião tivesse visto o sombrero no carro de MN apontaria o dedão para baixo kaput E Lião sabe Lião sabe tudo até quantas prostitutas sentem prazer e quantas não sentem pesquisou isso também Um mês inteiro transou pela zona com sua sacola e sua pasta fazia perguntas tão originais Quando começou a trabalhar na recuperado dos adolescentes maconhados entrou para o tal grupo Um pouco mais e já estaria de avental branco no seu consultório de psicologia infantil todas começam muito humildes e daí a pouco estão com consultas marcadas até novembro Os adultos já entraram nesse moinho até a medula Agora é a vez das crianças Uma psicóloga a menos o que é lamentável A tese seria Da importância do retrós preto na vida prénatal Consolatrix Afflictorum Entro no meu banheiro Se fechasse os olhos me veria entrando no bosque de eucaliptos Sebastiana usou o vaporizador à vontade Mas o perfume verdadeiro é diferente Sento na borda da banheira e junto o indicador ao polegar formando um anel para que o jorro dágua passe no meio Com o polegar e o indicador dois dedos importantíssimos MN desabotoará o soutien que não uso por absoluta desnecessidade mas que nessa hora é necessário Ana Clara contou que o alemão estraçalhou sua blusa o tal alemão maravilhoso o primeiro homem primeiro amor primeiro tudo mas a respiração de MN mal vai se alterar será como se ele tivesse subido uma escada um tanto longa dessas de caracol digamos Interrompoo porque quero beber estou com uma sede danada O que não é nenhuma novidade desde criança sou assim antes de sair de casa a Babá a mãezinha todo mundo perguntava se eu não queria fazer pipi e etcétera Não não queria Tomávamos o carro a fazenda ficava a uns quinze minutos da cidade e já no carro eu começava a me mexer Descíamos na porta da igreja Na hora exata em que a procissão ia saindo a fila de anjos lá na frente eu voltava correndo porque estava com sede ou apertada o que era mais complicado devido às asas amarradas no peito por dentro da camisola de cetim Até hoje não sei porque baixar minha calça acabava por deslocar as asas Um pouco de uísque na água ele pergunta Por enquanto tirou o paletó e afrouxou ligeiramente a gravata ainda bem Apesar do calor mas não calor excessivo minha pressão deve estar no subsolo a bebida é indispensável Peço com ênfase uma boa dose não costumo beber mas numa hora dessas só a bebida descontrai Viro o copo de uma só vez glugluglu O atordoamento que começa na nuca acaba na boca em meio do beijo mais lento mais sugado Em câmara lenta tudo assim sem muito empenho ele começa a tirar a roupa com um jeito de quem quer apenas ficar mais livre de movimentos está um pouco quente não está Apesar de toda lentidão é chegada a hora da cueca ai meu Pai O horror que tenho de cueca a começar pelo nome Por mais bacaninhas que elas sejam fico no maior constrangimento quando vejo no cinema um artista de cueca Não sei mesmo porque ele tem que passar a fita inteira com essa cueca branca queixeime à Lião a máquina dava um giro disfarçava um pouco e já vinha reta focalizar os elevados e a cueca Também quero ver a cara dele reclamei Enquanto comíamos um sanduíche Lião deu as explicações dela Não sei explicar mas parece que todos os diretores de cinema são agora bichas e bicha tem mais obsessão por pau do que mulher entende Faleilhe do meu complexo com cueca mas nesse ponto ela já ramificava a conversa para a política e quando chegamos ao pensionato o culpado de tudo era o imperialismo norteamericano A república sonhada seria uma praia nós dois de maiô tão mais poético uma praia Bom mas agora não adianta estamos num apartamento onde ele tem que tirar a cueca com uma habilidade tão hábil que quando eu der acordo de mim já está nu Mergulho na banheira Delícia delícia Abro a torneira de água fria Calma Lorena Vaz Leme calma Melhor começar pelo elevador você acabou de entrar no elevador Sozinha Lógico sozinha Mas por que ele não entra comigo Não se esqueça de que sou casado minha querida Não podemos nos arriscar Abro o fiasco e despejo sais na água Perfume de eucalipto ainda o falso bosque Espuma Mas não e deprimente esse medo que ele tem de ser pilhado Sugere a mascara e tenho horror de máscara Queria apenas ser verdadeira Honesta O mundo do burguês é o mundo das aparências Lião repetiu não sei quantas vezes Eu e MN pertencemos a burguesia logo estamos condenados a esse mundo Mas estamos mesmo Queria ser mas vou estar na engrenagem do fazdeconta Gosto tanto quando me chama de MN ele disse Sopro a espuma que chega até meu queixo Gosta ou acha prudente Só iniciais Quando na antehora do dilúvio ele perguntou ao secretário se por acaso precisava de condução fora a secretária da Faculdade tratar da transferência do filho e o secretário disse estava de carro e quando então ele se voltou mim e repetiu a pergunta quando rapidamente saímos da quase penumbra dos corredores para a noite escura guardei apenas a imagem de um homem moreno de cachimbo Mais nada No senti seu cheiro de homem bem cuidado com um leve toque de lavanda E fumo sempre amei esse cheiro de fumo Durante percurso reparei que tinha mãos fortes tranqüilas A aliança discreta aspireilhe o hálito de homem de meia idade e meia felicidade que é pior do que infelicidade inteira diz tia Luci que já casou um monte de vezes Fiquei à vontade ali com ele Seu estilo de guiar também me impressionou nunca me senti tão segura A tempestade aconteceu no meio da história que lhe contava sobre nossa fazenda Quando desci no portão desceu Junto e antes que pudesse impedir tirou a capa e me cobriu Corremos pelo jardim azul de relâmpagos acendendo o caminho seu braço direito contornando meu ombro enquanto com o outro braço sustentava a capa aberta sobre nossas cabeças pálio das procissões guardando o sacramento Pallium Incrível como num instante assim de desordem um por menor tão miúdo se destaca com essa forca trovões raios e meus dedos se fixando nas suas iniciais Pegueio pela cintura para conduzilo senti o bordado das iniciais na camisa Que letras são essas gritei quando me despreguei dele para subir a escada MN respondeu e sua voz ficou mais forte do que a tempestade MN Parei na escada e olhei continuava no mesmo lugar se protegendo com a capa Volte MN gritei Confessou no dia seguinte com seu meio sorriso que ficara na dúvida afinal a ordem era Para voltar ao carro ou voltar para me ver A espuma dos sais começou a se cristalizar na superfície da banheira Me abraço e me vejo correndo desatinada como a mulher dos Cânticos desfalecendo de amor e procurando o amado das pernas de coluna ele joga golfe deve ter pernas rijas Na hora certa ele intuirá essa hora vejoo estender as mãos sábias Aguçamentos requintes nas pontas dos dedos limados até a carne como os de um arrombador de cofre se esmerando no tacto tacto com e para impedir a precipitação certas palavras devem ter seu degrau medida contra afobados cuidado com o degrau Ele toma cuidado ah se toma E tanto que já está com ambas as mãos nos meus seios e nem percebi como foi que chegaram tão perto Um primeiro toque o torcer leve dos botões para a direita para a esquerda Uma pausa Mais um movimento que é quase só imobilidade e me abro de par em par sem segredo O tesouro de uma moça é a virgindade ouvi mãezinha dizer mais de uma vez às mocinhas que trabalhavam na casa da fazenda Como nunca mais fez essa advertência calculo que o tesouro só era válido para aquele tempo E para aquele gênero de mocinhas filhas de colonos ou órfãs Mas se chego e digo tenho um amante Vai escancarar os olhos e empalidecer num susto que pode durar algumas horas sempre demora um pouco para se acomodar às novas situações Um amante Procuro depressa um argumento decisivo Você não há de querer que eu fique virgem para o resto da vida certo Certíssimo isso não desejaria em nenhuma hipótese já fez milhares de alusões irônicas sobre as que morrem virgens e viram estrelas Não vai querer que eu fique lésbica se não ando com homem tenho que andar com mulher não tenho Ela sacode a cabeça apavorada não não Embora catastrófica nesse momento não está pensando no pior que possa me acontecer mas sim numa hipótese normal saudável por que um amante e não um noivo Me concentro para fazer desfilar todos os argumentos da Lião contra o casamento Argumentos fraquíssimos acho o casamento a melhor coisa do mundo eu me casaria com MN em vinte mil igrejas e registros Ai meu Pai Enfim faço a preleção com aquela sinceridade tão sincera que nos empolga quando as uvas estão verdes Ela desanda a fumar um cigarro depois do outro sinal de insegurança Para mostrar como está atualizada faz seu canto à juventude sem espartilhos libérrima mas não deixa do expor algumas das suas perplexidades Por exemplo não entendo esse abismo entre minha geração e a de vocês Foram séculos que se passaram ou alguns anos O escândalo quando minha prima teve um filho quatro meses depois do casamento parecia que o mundo vinha abaixo E que idade você pensa que ela tem hoje Quarenta e tantos anos Imagine se agora alguém vai sequer comentar se por acaso uma de suas amigas acrescem a e deixa a frase pela metade acabou de se lembrar que já falou nisso tudo não tem parceira de jogo que não vibrou com essas distâncias entre o próprio tempo e o tempo das filhas Netas Ou sobrinhas no caso de não haver descendência direta Fica calada pensando A expressão começa a pender sobre o dramático quando me visualiza na cama com um homem caras de gozo gemidos sem intenções matrimoniais O que tem qualquer coisa de devasso não tem Aperta os olhos A esponja de fel começa a pingar no sorriso lento Uma menina ainda me vê com uns doze anos e com um amante um fauno velho babando nela sua baba imunda A decepção vai se transformando em cólera anda de um lado para o outro de braços cruzados porque já não consegue nem ficar sentada nem ficar me olhando tem que andar Mea culpa Mea culpa Sou uma insensata uma leviana Deixar minha filhinha no meio de uma gente que nem sei direito quem é e ir viver com um homem que se ri de mim que me trai o quanto pode Se não tomasse chá amargo ele já teria me matado com doses de arsênico no açúcar Uma mãe não pode se separar assim da filha quase adolescente você até que tem tido muito juízo uma onda nessas circunstâncias A autopunição se ameniza quando anuncia que o romance com Mieux está mesmo liquidado Quer apóia vivei uma vida retirada sem mundanismos inteira voltada paia minha filhinha Deus me livre e guarde de um novo casamento dirá sem se lembrar que disse isso mesmo e com igual ênfase logo depois da internação de paizinho Divide um pouco a responsabilidade com minhas amigas Acho esquisitíssimas essas duas moças que moram lá A gordinha com cara de lésbica A outra tão vulgar Por acaso serão boas companhias para uma mocinha Aperta a mão da mocinha em sinal de reconhecimento por ter sido verdadeira e não vir com mentiras quanto a isso pode ficar tranqüila e sob o pretexto de me consolar por ele ser casado se consola nostálgica Mas se você está contente eu também estou diz e faz aquele sorriso tristíssimo para mostrar o contentamento Todas as vezes em que o presente a desgosta o que vem acontecendo com maior freqüência refugiase no passado As lembranças colhidas sem ordem no tempo são sempre as mesmas Lembra filhinha Brinco no chafariz da fazenda e tenho uma flanela vermelha amarrada no pescoço porque estou com dor de garganta paizinho tirou o retrato quando perdi o equilíbrio e caí sentada na água Alguém grita Ifigênia de dentro da casa Essa menina vai ter pneumonia Agora passeio na garupa de Remo tão nítida minha cara que aparece até a falha do canino arrancado na véspera O dente balança na extremidade de um fio num movimento de pêndulo cadê o dentinho que estava aqui O gato comeu Cadê o gato O primeiro banho na bacia de prata forrada de correntes e pulseiras de ouro através da água vejo o ouro destinado a me transmitir seu brilho Disselhe que me lembrava desse banho e ela riu impossível filha você tinha só oito dias Mas lembro Vejo a água e o emaranhado do ouro brilhando no fundo reconheceria essas jóias se não tivessem sido fundidas a que resistiu mais tempo foi a corrente que dava voltas e voltas e voltas e que numa volta Mieux levou Meu primeiro dia de escola quando atirei longe a lancheira e me agarrei aos pés da cama Ela usava um vestido de linho branco e prendera no decote um raminho de jasmins Eu gostava tanto daquele vestido repete e vejo que vai reconstituindo o vestido e o resto Continua me olhando agudo o processo punitivo Não devia nunca ter vendido a fazenda devia ter ficado lá Arranjava um enfermeiro ele não teria piorado como piorou se vivesse no meio das coisas que amava tanto suas plantinhas seus bichos Morrer sozinho num sanatório gelado sem ninguém para lhe segurar a mão Rômulo morto Reino tão longe que é como se tivesse morrido também Minha filhinha amante de um homem casado E eu na companhia de um cínico que me trai e explora oh que castigo Que castigo Afundo mais na banheira Estou com os olhos inundados fiquei comovida por que fui complicar assim o quadro Me comovi à beça e não estava no programa me comover Melhor não contar que ele é casado se não for casado ela pode ter esperança e tirar a esperança de mãezinha é a última coisa que eu faria no mundo Digo apenas que não tenho nenhuma vontade de casar Ela se anima Não tem agora mas vai ter todas vocês dizem isso mas quando vem a vontade de filhos vem junto a de casamento É fatal Tão mais prático Lorena Nas viagens nos hotéis Na vida mesmo em comum você tem bens filha Quem senão um marido para administrar os nossos bens Pensa nos próprios desadministrados confiar naquele fútil naquele irresponsável e toma minhas mãos entre as suas esse é seu gesto quando quer me falar de mulher para mulher Você já está estruturada filhinha diz solene incorporou a palavra estruturada ao seu vocabulário mas não sabe exatamente o que significa A decisão é sua Faça o que o seu coração quer O que o meu coração quer O que o meu coração quer Ih mãezinha Meu coração quer ficar com ele mesmo sem casamento sem nada Ela pisca duro por causa dos cílios postiços minha boneca piscava exatamente assim Mas se ele não quer se separar é porque está apaixonado pela mulher e não por você Fim diria a Lião Lavo os ouvidos nas reentrâncias onde o Anjo Sedutor de novo destilou seu visco de luxúria e inveja Como se não bastasse a preguiça Abro a torneira e fico vendo a espuma renascer sob o jorro quente Todo aquele que por ação ou omissão voluntária negligência ou imprudência causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar seu prejuízo Não cumprindo a obrigação responde o devedor por perdas e danos Perdas e danos repetiu Lorena procurando a própria imagem no espelho Através do denso vapor dágua só via a mancha escura da cabeça e uma parte rosada dos joelhos emergindo da espuma como vagas plantas esponjosas Isto é uma norma meu amado Norma jurídica Por negligência sua perdi a alegria pensou eu quanto se enrolava na toalha Esfregou as solas dos pés no piso e fez caretas para o espelho mas sem muita convicção Estou triste Polvilhou talco no corpo abriu a toalha no espaldar da cadeira e vestiu o chambre vermelho Sentiuse repentinamente fascinante ah se MN a visse agora Foi buscar correndo um livro na estante e de dentro tirou uma carta Sentouse no almofadão A fita da máquina devia estar tão gasta que as letras quase se diluíam no papel de seda azulado Loreninha Ela sorriu para o jovem que abrira silenciosamente a porta e espiava pela abertura Oi Guga Entra Acabei de sair do banho Estou vendo Quer tomar um Se quiser disponha Agora não disse ele se desvencilhando da sacola de lona Sentouse no tapete ao lado dela Você vai ouvir hoje o conjunto Lá no galpão Estou sem vontade Guga Você vai Ainda não sei Meu irmão toca o sax eu iria só por isso Mas também não sei murmurou ele cruzando as pernas e agarrando os bicos das sandálias Ela ficou olhando o sol amarelo bordado no peito da sua camiseta de algodão Foi você que bordou Foi Ficou bom Está muito tremido disse ela inclinandose para beijálo na face Com as pontas dos dedos alisoulhe a barba Sei bordar um patinho na perfeição traga uma camisa e eu bordo Esta é a única A única Ai meu Pai Que pobreza coitadinho do meu Guga Quer me adotar Estou procurando alguém que me adote E me ame Espera vou buscar um uísque avisou ela correndo até o toca discos Você conhece o último do Chico Acho que não estou por fora de tudo Loreninha Ou melhor por dentro Ela trouxe a garrafa e um copo Aproximou o cinzeiro da mão dele que segurava o palito ainda aceso Ficaram silenciosos sentados lado a lado ouvindo a música Por dentro como Ele sorriu Por dentro Parei de rodar por aí como um alucinado Eu estava feito um alucinado estudando sem vontade fazendo coisas sem vontade tudo sem vontade só pra provar Não quero provar mais nada Estou bem comigo mesmo É o que importa Ou não é Foi por isso que você sumiu da escola Deixei de estudar Loreninha Saí de casa deixei de estudar A gente alugou aí um porão cada um dá um tanto por mês Estamos vivendo numa comunidade Ih Por que ih Nunca dá certo querido vocês acabam brigando tem sempre um que é mais confuso do que os outros e turbilhona tudo Nem Jesus agüentava muito a comunidade que fundou lembra Até quando heide vos suportar ele explodiu um dia disse isso ou coisa parecida E era Jesus já imaginou Vamos então fundar uma comunidade a dois posso morar com você Ela tomoulhe a mão Beijoua Te amo mas estou apaixonada Aliás sem esperança acrescentou fazendo uma careta Suspirou E o teatro Deixei também Aquilo era teatro Tudo tão pobre sem sentido Quero viver em profundidade Ela desviou o olhar dos pés dele encardidos e magros dentro das sandálias frouxas Mas o que você chama de viver em profundidade Essa contestação Essa marginalização Tranqüilamente ele se serviu de mais uma dose Seus gestos eram suaves A voz branda Encaroua Mas quem é que disse que estou contestando Não estou contestando nada Loreninha Nem isso Contestar é tomar atitude Quem é que quer tomar atitude Quero fazer só as coisas que me dão alegria minha florzinha Leio converso ouço música laço música faço amor Tudo bem simples Aprendi a pensar essa uma descoberta importante Pensar Ela levantou7se e foi buscar uma tesourinha Estou adorando conversar com você mas enquanto a gente conversa deixa cortar sua unha Por favor Guga estou lhe pedindo implorou assim que o viu recuar de rastros escondendo a mão dentro da camiseta É um instante só Deitando a cabeça no regaço dela ele relaxou o corpo e entregou lhe a mão Riu baixinho Está bem Dalila se lhe dá tanto prazer Você parece minha mãe me vê e já pega a tesourinha Diz que quero agredir contestar Bah O que quero mesmo é tão diferente Assim que cortava a unha ela passava debaixo da unha cortada a ponta do bastãozinho de pau de laranjeira Acho que você está dentro da doutrina que inventei vê se não é bacana ser ou estar Ou você é ou você está Preferiu ser não está na Faculdade nem no palco nem nos grupinhos ativos de política ou arte ou lá sei mais o quê Está sendo você mesmo certo Mas Guga você pode ser livre E ao mesmo tempo cumprir o seu destino você tem um destino querido Ah minha Loreninha leia menos e viva mais Você é um livro Venha morar com a gente e vai esquecer um pouco a teoria Vocês fazem pipi no chão eu passaria o dia lavando os banheiros perfumando os tronos Trono riu ele puxandoa pela mão Beijoua no pescoço mas quando tentou beijarlhe a boca ela se desvencilhou rápida Não Guga Não quero Não quer por quê Porque estou apaixonada Fabrizio Antes fosse É um homem casado velho etcétera Estou me carbonizando nesse amor Olha aí a literatura dela Acabou perguntou examinando as unhas Quero esmalte rosa natural eu ia comprar pra minha mãe rosa natural Lorena juntou num pequeno montículo as unhas cortadas Queria ler para você a carta que ele me escreveu posso Apanhou as folhas que deixara no almofadão e voltou de joelhos Inclinou o tronco para trás e sentouse sobre os calcanhares Não vou ler tudo só um pedaço presta atenção Tenho vivido em dois planos o cotidiano o real com as obrigações de cada dia com os laços que me prendem às pessoas queridas que amo também e diante das quais sou um determinado com identidade certa com passado presente e futuro que me enleiam a um caminho pausado de responsabilidades conscientemente aceitas Desse mundo L você é afastada e quando também se ausenta esta emoção enorme que chego às vezes a negar sinto que esse é o mundo real verdadeiro e que não devemos não podemos não podemos Que é preciso parar logo e fugir guardando a lembrança amiga de um encantamento que poderia ter sido Chega Loreninha Não quero ouvir mais Espera querido tem aqui um pedaço importante espera Chega eu já disse Não me interessa esse cara me interesso por você Nem entendo o que ele está aí dizendo Só mais este pedacinho este é importante por favor Quando o seu frágil e tão belo mundo L inesperadamente irrompe e se instala desse modo em mim como agora em que esta emoção vai me tomando então é nisso que sobretudo acredito nessa alegria que me perturba de ter recebido uma doação tão milagrosa e alta É nesse tempo que sobretudo acredito um tempo feito à sua imagem e construído aparentemente com fatos pequenos e miúdos um telefonema hoje um encontro rápido amanhã uma esperança para Deus sabe quando Fatos tão incertos tão escasso e que constituem no entanto toda a nossa história visível Sinto que mesmo desse pouco eu poderia desistir se você quisesse Paro porque minha boca está completamente seca Corro até garrafa dágua bebo um gole e volto Guga está me olhando de boca meio aberta como se não tivesse entendido uma só palavra Mas por que ele escreve assim Assim como Tudo embrulhado Loreninha Avisei que ele é muito mais velho casado não avisei É o estilo querido Só a última frase escuta só a última Este carinho tão fundo e puro Secreto e altivo Que guardo como um bem raro Que nem você poderia mais atingir ainda que tudo acabasse amanhã Este carinho que me devolve e recria sua imagem já agora tão minha para sempre tão junto e amiga MN Dobro a carta Guga me olha intensamente O que quer dizer esse MN As iniciais do nome dele Marcus Nemesius É embrulhado demais Loreninha Me dá angústia Sopro o excesso do talco acumulado nos meus pés Mais uma lição por que ler a carta para ele É para me desesperar que atiro meu pobre amor aos leões Lião pois é a Lião Não sei explicar e explicou que era a carta de um velho apaixonado e com medo Mais medo do que paixão Mas por que o exponho assim Incrível Só Aninha foi maravilhosa quando poderia imaginar que justo ela Estava de fogo Devolveu o xale que lhe emprestei arrancou os sapatos e se sentou para um uísque Não lhe mostraria a carta se não confiasse no instinto subterrâneo dos loucos e dos bêbados paizinho me ensinou isso E depois coitadinho Mas então ela cruzou as belas pernas contou as mentirinhas ia ser capa de revista em Roma o Conde Cicogna a convidara para jantar e etcétera etcétera Chiando sossegou no seu poder e glória deilhe a carta Na metade parou Os olhos cheios de lágrimas Gostaria de ser amada por um homem como esse pomba Fiquei na maior alegria não é mesmo Aninha E a Lião dizendo Ela ajustou o cigarro na piteira andou uns tempos com uma piteira que depois não vi mais Uma materialista como ela não pode entender um amor que e só espírito Eu me apaixonaria por ele Quando saiu deilhe o xale muito lindo e tudo mas em mim as franjas se arrastariam pelo chão por que tia Luci pensa às vezes que sou altíssima Uma ana de xale arrastando Ai meu Pai Ficou triste Loreninha Não querido imagine Se encolheu aí feito uma florzinha Magnólia Desmaiada Sabe que é meu apelido na Faculdade pergunto e escondo a cara no chambre Loreninha não chora não chora Mas não estou chorando tento dizer Não me deu tempo se levantou e me segurou pelos ombros está me beijando a testa os cabelos Meu chambre se abre Luto por fechálo mas como Seu braço já dá voltas em torno de mim enquanto sua língua engrossa na minha boca que contra minha vontade por um momento um século se entrega Salto para o lado e ele salta junto puxo sua barba seu cabelo não Guga não Mordo a mão que se aplastrou no meu seio Ele me solta Ficamos nos medindo ofegantes Atribuo minha vermelhidão à cólera mas a bem da verdade não estou muito certa disso Ele apanha a sacola Guga querido estou apaixonada por outro digo amarrando o cinto Você já me disse Não tem problema Está de novo sorrindo Doulhe a garrafa de uísque e ele agora ri me olhando e alisando a barba com as pontas dos dedos tem mãos lindas Deume um beijo de borboleta é que esse seu namorado tem uma habilidade pra complicar as coisas parece meu pai Meu pai fala horas comigo e não sei o que ele quer dizer Acaricio o sol bordado no seu peito por que não quero mais que ele vá embora Limpo a cinza do seu jeans com três pontos quase brancos de tão descorados um em cada joelho O terceiro nos elevados Desvio o olhar para o sol Sei bordar venha buscar uma camisa com um pato bordado na manga na próxima semana já está pronta vai ficar lindo digo e vou atrás dele falo quase no seu ouvido Não está tomando porcarias hein Guga Não necessariamente Que é que você quer dizer com isso não necessariamente Ele arqueia as sobrancelhas calmas Isso que eu disse Loreninha Não necessariamente Meu coração se aperta Guga deixa eu tomar conta de você Que é que você entende por tomar conta Cortar minhas unhas Abraçoo por detrás No abraço descubro que tem os ombros larguíssimos Número um vou trancar sua matrícula seu tonto Se de repente você resolve voltar Hein Ah quer me ver com o diplominha Eu não disse que você parece minha mãe Antes de desaparecer na curva da alameda se volta e me manda beijos Retribuo e sinto os olhos úmidos não sei se de emoção não sei se por causa do sol desabrochado em raios como na sua camisa Enfio os pés nos caracóis de ferro da grade da escada e olho o casarão Não é o telefone Da janela Irmã Bula me dá um adeuzinho abrindo e fechando a mão como fazem as criancinhas Fico ouvindo o motor de um avião embananado na nuvem não Não é o telefone E mesmo que fosse só podia ser a mãezinha para contar como Mieux tem sido perverso prefiro tanto quando ela está glingueglongue Mas o glingueglongue é só na alegria na depressão a voz fica mais soturna do que um besouro preto caído de costas vuuuu E o Fabrizio Enredado na poetinha sinistra era assim que me amava Mas que espécie de amor era aquele Bastou me voltar um pouco para outro lado Aperto o corrimão até as pontas dos meus dedos ficarem esbranquiçadas Guga Guga se cuide Não me esqueceu Como a gente se divertia hein Guga Uma tarde ele se fez de aleijado e foi indo pela rua todo retorcido babando e eu do lado seriíssima andávamos quilômetros assim Todo mundo penalizado olhando Por aqui Guga por aqui eu dizia e ele se virando para o outro lado trombando nas pessoas Num outro dia bolou os óculos escuros mas não deu reação tem cego à beça na cidade Então eu tinha que pegar no seu braço e ir brigando horrores com ele e em voz alta que todos vissem que eu estava uma fúria porque queria ir ao cinema e não podia por que tenho que ser uma guia Estou cansada de ser cachorro de cego gritei quando duas velhinhas já indignadas se aproximaram mais de nós A do guardachuva quase me bateu Menina bruta Você não tem coração menina A outra mascava mascava mocidade mais selvagem mi Sua selvagem Quando elas se afastaram ele tirou os óculos e se torceu de rir mas em meio da risada notei qualquer coisa de dolorimento Na fila do cinema fez a queixa na maior mágoa Eu estava cego e você judiou de mim Ô Guga Que triste ficou tudo isso não é esquisito Depois que conheci MN Fabrizio e ele ficaram meninos como se tivessem feito parte da minha infância Com Remo Com Rômulo Paizinho me pegou pela mão para vermos no estábulo o bezerrinho que tinha nascido de madrugada Estendo minha mão e não vem mais ninguém eu fico com ela estendida até o fim dos tempos Ad seculum et secolurum Ninguém As mãos de Remo eram banais mas as de Rômulo eram douradas a penugem dourada do braço se estendia até elas Ficavam douradas As de paizinho eram morenas com uma vaga de pêlo bordejando o dorso eu me dependurava nelas paizinho tem mão de macaco Paizinho é um macaco Sonhando Quase desabo da escada de susto Lião está parada atrás de mim mas como é que ela chegou até aqui nesse silêncio Não faça mais isso Lião Você quase me matou olha como só como estou trememendo Ela riu Vim na ponta do pé entende Você estava aí tão estatelada pensando na morte do bezerro Agarreia Você disse bezerro Bezerro Lião Extraordinário Que tem de extraordinário Mas justamente eu tinha pensado em bezerro estava me lembrando que meu pai me pegava pela mão para ver o bezerrinho Tinha sempre um bezerrinho nascendo de madurada Incrível Então vamos tomar um chá que tenho coisas importantíssimas você está sozinha O Guga acabou de sair digo e baixo a voz Lião Lião ele me beijou na boca fiquei perturbadíssima E daí Daí acabou fechei depressa meu chambre e botei ele na rua mas não é estranho Todo crescido o cabelo a unha todo assim arrepiado sabe como é E eu que sonho com um homem limpíssimo me excitei a ponto dele perceber me deu assim uma vontade de rolar com ele pelo chão empoeirado suarento Mas pensei em MN e quebrouse o instante mágico Lião desabou no tapete Ria abraçando uma almofada Lorena Lorena como você é burra Desatei a rir também Mas não é mesmo Uma loucura Lião Loucura total Ela começou a tirar as coisas da sacola e fazer suas pilhas em redor Enchi a chaleirinha dágua É uma pena eu ter que ir embora porque senão ia provar por a mais b que você está apaixonada por um fantasma entende Que fantasma pergunto Esse MN putz Será que ainda não percebeu que ele ficou sendo seu pai Tiro as xícaras Me mato se ela recorrer aos seus analistas maravilhosos para repetir o que está em qualquer almanaque juvenil E em quadrinhos ih a história da secretária jovem identificando o patrão grisalho com o progenitor na história o pai é progenitor Pensando bem foi melhor ela ficar curtindo a subversão porque quando estava naquela onda de explicar autoidentificação e transferência Blablabla Qual era mesmo o nome daquele psiquiatra Lião Você falava demais nele o francês Lacan Ah Esse Era esse Lacan e uma outra doutora americana eu também sabia o nome Enfim não interessa Agora virou antiedipiana somos todos mais ou menos loucos bobagem trancar alguns entende A loucura vem do sistema Acabar com o sistema para acabar com a doença E com isso ela continua pinoteando por aí Telefonou ontem está numa chácara podre de rica Tintas e vernizes Avisei que ia conversar sério e você me vem com Aninha Estou tirando meu passaporte digo mas Lorena já se enfurnou no banheiro A coleção dos sinos está na prateleira ao alcance da minha mão Toco o maior Som de cabrinhas Tiro minha corrente fora da gola e fico sacudindo o sininho que me deu Já vou Lia de Melo Schultz Já vou Veio metida na malha preta de bale e traz nas mãos a caneca de margaridas Vem como se estivesse no palco carregando uma ânfora quando veste essa malha anda como as bailarinas Ou anda sempre assim Tenho paixão por margaridinhas diz pondo a caneca na estante ao lado do retrato do pai Tinha tantas na fazenda Foram as flores que cobriram o caixão de Rômulo meu irmão Preciso ir buscar as roupelhas que sua mãezinha prometeu e ainda nem tive tempo ô como tenho camelado Levo pra mim as coisas de lã vou precisar Lena Argélia Inverno africano mas inverno Milhares de vezes já me perguntou se você é lésbica Dou risada estou tão contente Tudo tem graça A situação fica mais preta porque agora não posso exibir Miguel ô como as pessoas se impressionam com o sexo do próximo Deviam se impressionar com outras coisas Você inclusive Ela pega uma margarida pelo caule e vem se ajoelhar na minha frente Estende a margarida até minha boca Lia de Melo Schultz poderia me conceder uma entrevista Por obséquio fique mais perto do microfone Queria sua abalizada opinião sobre o homossexualismo feminino e masculino Antes me dá esse chá A água não está fervendo Você disse que chá não presta com água fervida anda corra Perfeito Agora o dinheiro Oriehnid não é Lorena Estava quase fervendo disse ela deixando cair o chá na chaleira Fico olhando as marcas de talco que seus pés deixaram no tapete deve ter saído há pouco do banho Mas quantos banhos toma por dia Falei ontem com meu pai ele mesmo atendeu o telefone minha mãe tinha saído Ele é fabuloso entende Pai não me faça perguntas explico tudo depois mas agora quero avisar que vou para o exterior Ele não disse nada Perguntei está ouvindo pai e ele respondeu estou pode continuar Vou precisar de dinheiro pra passagem de avião continuei E a passagem é cara você sabe Pode me dar o dinheiro Ele ficou um instante calado Tão calado entende A ligação estava próxima como se estivéssemos falando um em cada esquina eu quase podia ouvir a batida do seu coração Responda pai você pode me dar esse dinheiro Procuro na sacola o lenço onde foi parar essa merda de lenço Enxugo os olhos na barra da camisa Daí ele disse conte com a gente filha Vendo aí uma coisa e dou o dinheiro não se preocupe Mas no fim do mês Você pode esperar até o fim do mês Mando não só a passagem mas também uma sobra razoável não sei onde vai Sei que é caro Lorena já vem trazendo a bandeja e pela sua cara percebo que não ouviu uma só palavra Equilibrou a bandeja no almofadão Estou com o pressentimento que MN não vai me procurar nunca mais Daí eu desliguei e beijei minha mão porque queria beijar a mão dele Você acha mesmo Lião O quê Que MN não vai me procurar mais Você acha isso Despejo chá na xícara Ela espera o olhão pregado em mim Respiro tão fundo que devo ter chegado até o calcanhar Você começa a falar em casamento Ele está com medo da mulher entende Ela contornou o bule com as mãos tem sempre as mãos frias pés frios Mas não estou querendo que ele case comigo estou querendo que ele me procure É a mesma coisa Lena Depois do telefone você vai querer o casamento você só pensa em casamento Com a mãezinha oferecendo o coquetel Ela empurrou o prato para mais perto porque estou comendo biscoito e os farelos Mas esta menina só pensa na cinza ou no farelo que pode sujar o tapete É só isso que preocupa essa cabeça E também esse MN que deve ser uma bela besta ô Tenho agora vontade de dar urros porque ela já começou a dobrar a barra da minha calça todas as vezes que visto esta calça ela vem correndo e começa a dobrar a bendita barra Daqui a pouco vai buscar o pentinho branco Começo a rir Acho que você é bastante louca Lena Mas presta atenção já falei um monte de vezes e você não ouviu meu passaporte está quase pronto vou viajar por esses dias Voume embora ouviu isto Estou de partida Mas Lião assim tão depressa Vejo você aí falando mas pensei que fosse uma coisa remota você disse que já tirou o passaporte Exterior O lugar ainda é segredo segredíssimo Nem ao meu pai eu disse ainda mando a carta de lá da Argélia Lá espero por ele Ele quem O Miguel O Miguel vai ser solto vamos nos encontrar na Argélia desembarco em Casablanca E não peça mais detalhes os detalhes dou depois fique com isto por enquanto vou pra Argélia Argélia Mas que coisa maravilhosa Lião Porque não me disse antes Argélia imagine Lia de Melo Schultz vai para a Argélia E diz isso assim com essa tranqüilidade que maravilha Vamos ver já no mapa Remo meu irmão conhece bem aquilo lá ele mora em Cartago na Tunísia Ouço você falando num blablabla de viagem mas jamais pensei Foi aos pulos buscar o mapa Abriuo no tapete Uma gota da minha xícara caiu na Ásia mas na excitação ela não viu Está aqui Alger apontou e afastou o cabelo que despencou molemente como uma fita sobre o mapa Vizinha da Tunísia está vendo E Marrocos deste lado Veja o Saara Areia areia Se fosse para esperar MN eu iria correndo na ponta dos cascos atravessava o deserto e batia aqui nesta portinha toquetoque Dobra o mapamúndi Encho a boca de biscoitos ô esses sentimentalismos O problema é o seguinte só no fim do mês meu pai vai poder me dar o dinheiro Oriehnid Oriehnid O oriehnid entende Eu disse que estava perfeito mas estou a fim de ir antes as coisas se precipitaram Você poderia me emprestar No momento em que meu pai putz Seria um adiantamento Mas é lógico Lião Mãezinha depositou em meu nome uma fortuna o famoso carro esporte Não quero carro pelo menos por enquanto não faço a menor questão imagine Não vou emprestar à Ana Clara para os negócios dela Quanto é a passagem Vou saber agora Leve um cheque só assinado e bote lá a quantia que for mas com margem Lião pelo amor de Deus bastante margem para o seu começo Me mato se souber que você está passando fome ai meu Pai uma loucura essa sua viagem Estou elétrica E eu então Não durmo faz dias deito e fico minhocando Abro o livro de cheques enquanto ouço Lião ir triturando os biscoitos Vou perdêla Não vai voltar nunca mais vou perdêla Como perdi o Astronauta Meus olhos ficam nadando e neles a letra submerge o Leme por último tão tremido Quem vai agora me entrevistar seu nome Lorena Vaz Leme Universitária Universitária Virgem Viro a folha e assino em outro talão As lágrimas voltam às suas fontes obscuras Quero que você leve uma cruz aí na sua corrente promete que vai levar Vamos promete senão Agarroa pelos pulsos Está quase rasgando o cheque Mas que chantagem é essa Lorena Levo levo até uma dúzia de cruzes se fizer questão não tem problema Promete que vai deixar aí na corrente Prometo Ela me beija Está radiante Com seus gestos de gueixa vai buscar o chá e enche de novo minha xícara Um dia de repente você vai apertar essa cruz na mão Vou Tenho certeza Lião Tenho certeza Sua cuca está totalmente buleversada com política etcétera você entrou num moinho querida Meu diagnóstico fé adormecida Em estado latente Guardo o cheque no fundo da sacola onde vão se acumulando os elos da corrente da viagem Onde fica esse banco Acho ainda uma unha pra roer Perto lá do despachante Certo Quando abro os olhos dou com Lorena me observando Façolhe um carinho na cabeça Ah sim Deus Também fui anjo de procissão papahóstia fui tudo Acreditava com aquela força da infância um fervor Justamente por isso uma reconciliação entende Não sei explicar Lena mas assim que comecei a ler os jornais a tomar consciência do que se passava na minha cidade no mundo me deu tamanho ódio Fiquei uma fúria Sem dúvida ele existe eu pensava mas e só maldade Desse estado passei para o da ironia fiquei irônica mas e um bricoleur sabe o que é um bricoleur Na minha rua morava um baiano santeiro que pegava sobras de objetos fragmentos meio ao acaso sem plano juntava as peças com jeito ele tinha muito jeito e acabava formando suas maquininhas Comecei a achar que Deus era simplesmente isso um bricoleur de gentes Calava uma sobra aqui outra lá adiante e assim ia formando suas engenhocas Por disponibilidade entende Capricho Quando uma bricolage começa a funcionar quando bem ou mal se põe em movimento ele se desinteressa e já pega outra milhares de maquininhas humanas sem destinação se arrebentando por aí feito doidas Kaput Agora Lorena se deitou de costas abriu os braços e desatou a pedalar Recolho na bandeja os farelos que deixei cair no tapete Bastou falar em máquina e já se atrela à sua bicicleta de vento e entra na engrenagem Maquininhas humanas Lião Maquininhas de pedalar comer cagar foder Ela tombou de lado rindo Que horror meu ouvido quase explodiu querida Vou usar então palavras mais sutis chier baiser Não fica fino Quero saber se essa idéia é sua Que idéia Essa das maquininhas Eu leio Filosofia francesa Ela fez hô hô encolheuse toda agarrou os pés e rolou sobre os quadris como uma bolinha preta Podiase contar suas costelas sob a malha colante Recomeça a música na vitrola e que faz parte disto como o chão as paredes O miado de um gato se aguça próximo como se viesse aqui debaixo do tapete Sua testa se franze na expectativa deve estar pensando no Astronauta Ou em Deus Levantou a carinha perplexa Pedalou rolou e nem transpira E as maquininhas de sonhar Me explica agora isto e as maquininhas de sonhar Eu sou uma maquininha de sonho já pensou Mãezinha meu irmão Remo minhas tias um monte de gente tudo é maquininha Já meu irmão Rômulo e eu sempre fomos diferentes Principalmente ele Era tão especial aquele meu irmãozinho Está tudo atrasado listas de coisas que providenciar ainda hoje e aqui estou em divagações metafísicas vendo Lorena se exibir na sua malha preta Mas já não é quase a despedida Quantas vezes mais vou subir até este quarto Pego um último biscoito Sei que vou me lembrar dela como está agora sem poeira e sem suor olhando lá dentro do seu vago mundo Depois a gente se vê digo Mas então você acredita nEle Como um bricoleur não interessa mas acredita Outra hora vamos discutir esse assunto hoje não dá mesmo pé Acho apenas que você nunca será como eu e eu nunca serei como você não é simples E não é complicado Lorena acompanhoua até a porta Arrumoulhe a fralda da camisa desabando sobre a calça Você mesmo disse que não tem nunca mais lembra Não estamos vivas E se um dia lá em Cananéia eu for metralhada a las cinco en punto de la tarde E se você entrar para um convento em Espanha Lia desceu a escada rindo Quando olhou para trás Lorena fazia caretas dez A Gata dorme entre dois canteiros de margaridas a barrigona estalando ao sol Vou ver ainda esses gatinhos Mimosa gostava de parir na rede lembra Os gatinhos pelados e cegos se despencando por entre as franjas e ela recolhendo um por um na boca que virava pluma Miguel não quer saber de filhos pelo menos por enquanto Concordei é evidente mas tenho às vezes tanta vontade de me deitar como essa gata plena até à saciedade tão penetrada e compenetrada da sua gravidez que não tem no corpo lotado espaço sequer pra um fiapo de palha Daria a ele o nome de Ernesto Bom dia Gata Ela levanta a cabeça pedindo um afago e volta a dormir Mais dois gatos malhados cruzam o jardim que se transformou no reino dos gatos eles sabem que aqui não serão assassinados Contudo o Astronauta de Lorena fez seu nécessaire Esquerda Independente com colorações anárquicas Chuto os pedregulhos A idéia de que não vou ver mais este jardim me dá uma certa tristeza Nunca mais Não tem nunca mais no presente presente quer dizer imprevisto tudo eu posso ver agora Ou daqui a pouco quando for agora de novo Argélia tenho vontade de gritar Bonito nome para uma filha Argélia chegou Argélia está chamando Pena é que na Bahia logo transformam em Gegê a mania dos apelidos Se não tivesse a passagem iria nadando andando Rios montes vales montanhas e um oásis Um mês um ano Chego coberta de pó e sangue meu sapato dei pro homem do jipe que me recolheu na estrada minha blusa dei pro homem do bar que me deu de beber teve outro que me quis nua e fiquei nua e depois ele repartiu comigo o seu arroz falta muito ainda Falta Tem um deserto e depois do deserto um rio Que santa se deu ao barqueiro em troca da condução Minha mãe contou essa história da santa que encontrou o barqueiro malvado exigindo que ela se despisse e se desse pra ele Daí ela tirou o manto descalçou a sandália e se deu pra poder atravessar o rio Atravessou o rio e entrou no paraíso Se você acredita no homem você acredita em Deus disse Madre Alix Não sei explicar mas o que quero dizer é que acreditar no homem não me deixa tão feliz como acreditar nessas histórias absurdas que os homens contam Quanto mais simples e inocentes forem mais me envolvem com suas façanhas de heróis e santos vem mãe vem me encher de superstições que não entram na minha rotina mas também não esqueço vem de noite me cocar as costas e depois abrir meu cabelo a Ivanilda aquela porcalhona passou piolho pra classe inteira O avental cor de cafécomleite tinha um sabiá bordado no bolso Abro o portão O Corcel vermelho da mãezinha está estacionado em frente com o motorista dentro Ele lê um jornal Esperando Lorena pergunto Faz mais de meia hora Ela pediu o carro mas saiu e não voltou esqueceu vive no mundo da lua Acho que vou embora Vai Posso ir junto Tenho que pegar lá umas roupas Sento ao lado dele É um mulato grisalho e com jeito de quem espera não há meia hora mas há meio século Mundo da lua Minha avó falava muito em gente que vive no mundo da lua Os lunáticos Lorena não viu só um disco voador mas um esquadrão deles em formação no céu O senhor trabalha há muito tempo na família Chi até perdi a conta Carreguei a Loreninha no colo eu trabalhava antes no trator da fazenda Este homem por exemplo Se interessaria em entrar pro grupo Apoltronouse é claro Numa poltrona bem mais modesta do que a dos patrões mas poltrona Não quer nem saber E o filho Por acaso se interessaria O senhor tem filhos Uma menina da idade de vocês E um mais velho Que é que ele faz Trabalha no escritório da MercedesBenz Vai muito bem viu Meu falecido patrão tem um primo que é funcionário lá e encaminhou meu rapaz é um filho que só me dá alegria No fim do ano vai ser promovido e então se casa está noivo Fico olhando o bebezinho de plástico dependurado no espelhinho A carinha ri tão safada que não consigo me desviar dele A filha também dá alegria Ele demora na resposta Vejo sua boca se entortar Essa moda que vocês têm essa de liberdade Cismou de andar solta demais e não topo isso Agora inventou de estudar de novo Entrou num curso de madureza E isso não é bom Só sei que antes de fechar os olhos quero ver a garota casada é só o que peço a Deus Ver ela casada Garantida o senhor quer dizer Mas ela pode estudar ter uma profissão e se casar também não é mais garantido assim Se casar errado fica desempregada Mais velha com filhos entende O bebezinho safado se sacudiu de rir com o solavanco do carro Descubro que não é sua masturbação que me enoja mas sua carinha lustrosa satisfeita A Loreninha também fala assim mas vocês são de família rica podem ter esses luxos Minha filha é moça pobre e lugar de moça pobre é em casa com o marido com os filhos Estudar só serve pra atrapalhar a cabeça dela quando estiver lavando roupa no tanque As poltronas da sala cobertas com plástico A televisão A novela de gente rica e a novela de gente pobre os pobres mais sinceros mas com muitos problemas Solucionados parcialmente nos últimos capítulos onde a virtude é recompensada Embora dois dos cínicos fiquem impunes tinha gente demais O conformismo só marcado pela ambição de um carro novo e de uma TV maior a cores ô mas não era um esquema parecido que desejei há pouco quando vi a Gata Minha cara se tinge de vermelho quando me imagino puxando Miguel pra vitrina na liquidação de inverno Fechandoo gastando sua força e paciência com as quinquilharias do cotidiano recusando a palavra de ânimo no seu dia de desencanto presença negativa não Se for pra falhar como tantos falharam que os ventos soprem meu avião com toda força das suas bochechas pro mais agudo pico dos penhascos todos os passageiros salvos menos uma jovem estudante baiana que se precipitou no abismo Fim E se ela se casar com uma droga de homem e depois virar aí uma qualquer porque não sabe fazer outra coisa Já pensou nisso Me desculpe falar assim duro mas vai ter que prestar contas a Deus se começar com essa história de dizer case depressa filhinha porque senão seu paizinho não morre contente Se acreditar nela aposto como vai querer merecer essa confiança vai ser responsável Se não for é porque não tem caráter casada ou solteira ia dar mesmo em nada Fiz o discurso Saio e bato a porta do carro Ele está meio aturdido Mas nunca pensei Pense digo enfiando a cabeça na janela Ainda uma coisa se não quiser se moer num desastre arranque esse bebezinho do espelho Quem pôs ele aí Não sei explicar mas isso tem péssimos fluidos dois conhecidos tinham um mascote igual no cano um se despencou de uma ponte caiu no rio o outro se desbundou entre dois caminhões Eles e os carros foram pulverizados incêndio naufrágio tudo Só os bebezinhos de plástico foram encontrados rindo Intactos Estou rindo também quando entro no edifício Sim disse o copeiro entreabrindo a porta Lia ajeitou a pilha de livros debaixo do braço Sou a amiga da Lorena Vim buscar uma mala de roupas Ela não vem Não tenho idéia entende A mãe está me esperando Com um gesto evasivo ele apontou uma cadeira no vestíbulo penumbroso O olhar voltou a boiar indiferente na superfície meio estagnada dos olhos Fechou a porta Examinou Lia mais demoradamente Hesitou Não sei se ela vai poder receber hoje Mas telefonei ontem cedo disse que eu viesse Seu nome Lia Lia de Melo Schultz Schultz Meu pai é alemão sei falar alemão Ele deulhe as costas e saiu num andar silencioso sobre o mármore forrado de tapetes Por que os escravos do rei acabam mais cacas do que o próprio pensou Lia enfiando a fralda da camisa dentro da calça Tateou à procura do cinto Com quem estaria Apaziguou a cabeleira com as mãos Examinou o polegar inflamado e com a ponta da língua umedeceu a unha roída Na parede os altos espelhos refletindoa em todos os ângulos Como tomar um porre de si mesma Inclinouse rápida até ficar abaixo do nível das molduras Sentouse no tapete Como Narciso podia ser livre escravizado como estava à própria imagem Sorriu Lorena também gostava de espelhos igualzinha à mãe Como era a filosofia lorenense O estar era a estagnação do ser Se eu quiser ser não posso estar sequer no espelho acrescentou interessada no tapete castanhoclaro e azul Os olhos acostumados à penumbra viam melhor o desenho enrodilhado mas nítido o tigre perseguia a gazela até montála nos dois lances seguintes cravando garras e dentes em seu flanco de onde escorria um filete de sangue aguadamente azul Outras gazelas perseguidas e abocanhadas se multiplicavam na lã e seda da miniatura oriental Por mais que corressem como corriam estavam todas condenadas Alisou a cabeça espavorida da que saltava na moita Procurou no intrincado dos arabescos de folhas um caminho diferente que ela pudesse fazer para escapar do tigre iminente teria que sair fora do tapete A volúpia com que os homens criam e descriam a fatalidade em tudo quanto tocam E depois atribuem a responsabilidade aos deuses Você é livre soprou no ouvido em pânico da gazela Agora era livre Ainda era livre Cobriu com o livro o tigre caçador e deitouse de costas O lustre de pingentes de cristal rosado era outra fatalidade no teto Também o relógio de parede dentro do longo esquife dourado e preto O pêndulo tinha a forma de uma lira mas os ponteiros eram setas agressivas Só valem os números que apontamos avisavam empoladas espetando o alvo O som enérgico do coração mecânico batendo dentro do esquife Que coisa mágica o tempo Tempo da Argélia De repente ficou o tempo da Argélia Como ia ser Imprevisão Aventura Certo só o desejo de luta De sobrevivência Certo o diário Quero que todos saibam que ninguém no mundo amou mais seu povo e sua pátria escreveria na introdução Palavras já sem sumo de tão chupadas pelos políticos nas campanhas Pois se serviria delas para exprimir o sentimento novo Vivo Conversar muito com Miguel sobre isto se a Nova Esquerda não se unisse aos outros grupos acabariam todos tão multiplicados e enfraquecidos que quando se tentasse uma linguagem comum ninguém mais se entenderia A igreja já está vivendo sua Torre de Babel lembrou ela batendo a cinza do cigarro nos olhos do tigre Vamos seguir o mesmo caminho Peço um tijolo e me atiram uma trave Fracionados repartidos Como organizar as massas assim perplexos Soprou o rolinho de cinza que foi se desfazendo no tapete até desaparecer Esmagou a brasa do cigarro na sola da alpargata azul Estavam como aquelas gazelas com destinação marcada pulava uma duas e a terceira era fisgada no pescoço mais duas e o sangue correndo azulado Não exclamou virandose de braços O diário Seria num estilo simples como o das notas e lembretes do caderno Abriuo ao acaso Teve dificuldade de ler a própria letra grande desarticulada Hoje dia 12 Lorena disse que era dia de banho Entrei no chuveiro dela que quase me pelou porque a torneira de água fria estava com defeito Em seguida me ofereceu almoço quer dizer cenouras cruas um ovo cozido e um copo de leite Se não me atirasse às bananas devo ter comido meia dúzia não poderia ter feito as milhares de coisas que fiz Na saída encontrei com Ana Deprimente que ia chegando deprimidíssima tinha tido uma conversa com Madre Alix que deve estar perdendo a paciência Falou baixo com Lorena queria dinheiro emprestado Depois pediu emprestado um suéter E me disse que estava com angústia o que não é novidade ou está empolgada ou a fossa Por que aquele seu olhar meio estrábico me dá vertigens Depois de pegar o passaporte Argélia Argélia fui escritório e lá encontrei Pedro e Elisabete de plantão Estão se amando quer dizer Pedro está apaixonadíssimo mas ela me parece muito cerebral E as pessoas assim cerebrais se apaixonam um modo diferente dos passionais como Pedro e eu Ela está liderando um movimento feminista e redigia um artigo sobre o trabalho da mulher no nosso mercado Por que me comovo quando penso que Pedro vai sofrer Tem que sofrer merda Beber querosene e gasolina porque é assim que se firma uma estrutura penso Mas no coração fico sentimental só me falta dizer como Lorena coitadinho De lá fim ao apartamento do Bugre Já estavam ouvindo música o Dil a Ivone e o Eliezer Chico Buarque e Caetano Chegou o Bugre e nosotros começamos o trabalho Quatro horas cerradas de estudo extremamente frutífero Do economicismo ao idealismo filosófico do idealismo filosófico à crise da física no início do século dela a Hegel tudo isso passando pelos turtuosos caminhos da insensatez da ignorância e do amor pelo Brasil Miguel é um cerebral pensou Lia fechando o caderno Mas isso não era bom Fazia média com ela que era dos acessos na hora vulcânica ao menos uma cabeça precisava ficar raciocinando Ou não Burra sou eu se me pegam com estas notas Que é que eu tenho que andar com isto Ela acabou de sair do banho já vai atender avisou a empregada de avental corderosa entrando no vestíbulo Aparou no cinzeiro o cigarro de Lia já apagado Entra aqui na sala Loreninha não vem Mas é só isso que todo mundo pergunta pensou Lia seguindo a empregada Empilhou os livros no tapete da sala mais espaçosa e mais clara Não vi Lorena hoje Volto outra hora não tem problema Mas ela quer ver você espera só um pouquinho É que hoje esta casa está tinindo A pobre chora sem parar o olho já está inchado assim Mas o que aconteceu Morreu o Doutor Francis Quem é o Doutor Francis Pois é o médico que trata dos nervos dela o enterro foi ontem ela nem sabia de nada Toma um refresco Ou prefere um uísque Um pouco de uísque Puro Mas escuta só vim buscar uma mala de roupas você não pode resolver Espera garota Você entra um pouco ela se distrai Sem muito entusiasmo Lia recebeu o copo No primeiro estágio o copeiro de cara estagnada e o vestíbulo penumbroso Agora a sala mais importante com a empregadinha descontraída a oferecer bebidas Sentia se uma visitante em ascensão Aproximouse do retrato a óleo dominando todo um lado da parede A mãezinha remoçada e revivida com o sangue de alguma jugular recente Lorena adora fitas de vampiro pois ali estava a mãe num esgazeante vestidocamisola a cara branquíssima os olhos sepulcros Até os cabelos eram densos como dois coágulos negros apertando a testa alta Condessa Drácula Você gosta a empregada quis saber sorrindo e escondendo nas mãos nos bolsos do avental corderosa Custou uma fortuna esse retrato É inquietante E faz dois dias que ele não aparece Ainda hoje três mulheres telefonaram perguntando o doutor está imitou a empregada aflautando a voz Também pode ser o filho dela Mas ele é doutor provoco A moça riu escondendo a boca no avental A cara tem qualquer coisa do bebezinho de plástico Doutor em gostosura menina Encho a boca de amêndoas No banquete das inconveniências essa serva fiel se sentará na cabeceira Experimento na ponta do dedo o canino azul do dragão de porcelana chinesa eriçado na mesa de mármore Na mesa menor a arvorezinha de prata com quatro miniaturas de esmalte pendendo dos galhos como frutos ovalados o retratinho de um homem moreno e pálido com a expressão de Lorena quando em fase mística No galho paralelo a mãe de chapelão de palha empunhando a tesoura de jardinagem um buquê de jasmins no peito Logo abaixo num galho menor o retratinho de Lorena menininha rindo sua risadinha hihihi No ramo vizinho carrancudo o rapazinho de topete Rômulo ou Remo Só os quatro na árvore E o outro menino Vamos ela está chamando avisou a empregada Formalizou se ao segundo toque de uma remota campainha Por aí não garota essa porta vai dar no escritório Você não esteve aqui antes Está tudo mudado lá sei Corredores e salas até o túnel ir se apertando mais secreto mais escuro O vestíbulo dava para um quarto trevoso Quarto Pela primeira vez entrava numa verdadeira alcova onde não vi janelas mas cortinas e planejamentos de um dossel lânguido sustentado por quatro colunetas Aproximeime Os panos desciam em pregas frouxas compondo uma espécie de casulo vaporoso envolvendo a cama com espaldar de palhinha dourada Mornidão de perfumes Meio sumida entre os lençóis e bordados ela descansava sobre os travesseiros altos dois tampões de algodão nos olhos A luz do abajur de cabeceira estava acesa O sol explodia lá fora mas ali era noite A voz meio úmida algodoada Senta filha E a Loreninha Vem vindo por aí Hoje preciso muito dela Hoje preciso de todos vocês sabe o que aconteceu não sabe Era meu amigo meu irmão Metade de mim mesma morreu com ele Oh Deus Posso voltar depois mãezinha Não tem problema Com a pontas dos dedos ela tirou os algodões dos olhos Deixouos na salva de prata ao lado do frasco de águaderosas Abriu as pálpebras com esforço Gosto tanto que me chame assim de mãezinha É que estou perdendo tudo as pessoas todas morrendo sumindo E você chega e diz mãezinha Sempre gostei de você Lia Eu dizia à Loreninha fico tranqüila quando lembro que você tem uma amiga assim por perto Fico rindo por dentro Tranqüila Fungo e espirro porque não posso enxugar o nariz no lenço que não trouxe ô esse perfume me dá alergia Peguei um resfriado monstro Que dor pensar que ele está morto que aquele riso aquele olhar tão forte e ao mesmo tempo tão doce Então ele me perguntava li eu respondia no mesmo tom então Doutor Francis Oh Deus meu amigo querido acima de tudo meu amigo Estou de novo sozinha Completamente sozinha Está chorando e eu procuro e não encontro nada o que dizer enquanto ela chora silenciosamente Estava de terninho branco quando nos vimos um terno de flanela que Lorena chamaria de impecável Era domingo fora levar metade de um peru assado com nozes e que Ana e eu devoramos Lorena beliscou uma asinha Saía de uma plástica eufórica Mas é esta aquela fagueira senhora Derreteuse como sorvete de chocolate e creme mais creme do que chocolate Recuo na banqueta agora ela procura ver a empregada que eslava atrás de mim e não esta mais A senhora quer alguma coisa A Bila sumiu Aperte ali aquela campainha quatro empregados e nenhum para atender quando chamo Ficam os quatro conversando lá dentro pode apertar mais não ouvem Oh Deus Ele me parecia tão firme tão certo está me ouvindo Tudo podia ruir desabar Ele não Como se fosse imortal Tão fino e ao mesmo tempo autoritário poderoso Áspero e ao mesmo tempo gentil Só uma vez vi um homem igual e assim mesmo num romance um romance de Cronin O personagem era como ele mas existe gente igual O Doutor Francis Nem vi ele morto ninguém me avisou Tinha jogado de tarde uma partida de tênis jogava tênis maravilhosamente chegou a disputar campeonatos Posso imaginá lo com a raquete na mão os movimentos tão enérgicos elásticos ele inteiro tinha tamanha energia e elasticidade Oh Deus oh Deus Meu querido amigo e então ele me perguntava E então Doutor Francis As lágrimas correm correm na cara esticada sem o menor vinco Mas as mãos são tortuosas como raízes expostas de uma planta arrancada da terra ô vontade de estar em qualquer outra parte menos aqui Pensar em Miguel Miguel rima com Argel rima pobre mas tão rica estou indo Mar Mediterrâneo República Argeliana Democrática e Popular O mar que cor tem esse mar A senhora vai arranjar outro analista não tem problema Com dinheiro a senhora pode se tratar com o maior analista do mundo Sete anos Sete anos Voltei à estaca zero tudo o que disse e fiz tudo se perdeu como num naufrágio Com a morte dele voltei à estaca zero como se oh Deus como posso me conformar Como posso me conformar Mais desconformado deve estar ele a esta hora penso e aproveito para enxugar o nariz na fralda ela fechou os olhos Não vai dar mais tempo o escritório fica pra amanhã Telefono pro Bugre explico e se ele puder deixar o recado com Mineiro Dom esse telefonema resolve Um dia embananado Loreninha podia lei vindo segurar uma ponta não podia Me dei inteira a ele numa bandeja passado presente Ficou com tudo Com a morte me devolve tudo outra vez Aquelas pedras fui tirando as pedras uma a uma tanta pedra amontoada em cima de mim aqui no meu peito fui tirando devagarinho ele me animava vamos dizia vamos moça Respira Às vezes me chamava assim moça Que é isso moça Moça repetiu tapando a boca que transbordou de lágrimas Agora as pedras caíram aqui de novo mais pesadas do que antes voltaram aumentadas Como posso procurar um estranho que não sabe de coisa nenhuma repetir tudo outra vez Sete anos Pelo meu andar já sabia como eu estava às vezes eu decidia hoje vou blefar quero me fazer de curada estou ótima Doutor Francis hoje estou ótima Ele só nu olhava aquele olhar penetrante que ia até lá no fundo Então eu caía em prantos porque era exatamente isso o que queria fazer chorar Voltei à estaca zero Queria só saber com quem está meu Grau Zero da Escritura que nem li Maiakovski e Lorca dou ao Bugre Malraux a Beauvoir e Satre dou ao Pedro ele vai vibrar Eliezer fica com os nacionais todos curtir o indianismo até a última pena é preciso é preciso A historia da filosofia e os dicionários ficam com Loreninha A psicologia com Ana Clara quem sabe ainda desencuca e faz esse curso Ana Turva Até Madre Alix que era o próprio fiel da balança já está meio neurotizada neurose é contagiante Como foco cm palha seca queima tudo Deus sabe que se não fosse ele eu já teria me atirado daquela janela Olhei na direção que apontou só agora conseguia visualizar uma janela por detrás dos panejamentos Lorena também faz o estilo concha mas gosta de ar Como uma cristã pode falar assim A senhora não é cristã As lágrimas recomeçaram mais espaçadas descendo dos cantos dos olhos e se infiltrando nos cabelos Foi meu pai meu irmão meu amante Amante espiritual está me compreendendo não Perfeitamente Tudo o que tive e perdi Fiquei pensando o terrível da vida é que as coisas acabam Todas as coisas acabam Na minha fazenda tinha um moedor de cana as crianças adoravam garapa Roberto meu marido gostava ele mesmo de escolher a cana estavam verdinha tão viçosa entrava viva e saía do outro lado aquele bagaço seco esfarelado Nem uma gota de suco só bagaço A vida faz assim com a gente minha querida Igualzinho E as pessoas ainda ajudam a nos triturar Me pergunto como é que ela pôde ser tão cruel Quem Quem foi cruel Aquele olho de víbora Víbora Quem mãezinha Tirou um lenço de debaixo do travesseiro e ficou com ele pendendo das pontas dos dedos Um lenço transparente e mole como os panos do dossel Você é baiana não Lia Acho que por isso é tão fina os baianos são sobretudo finos Também estuda Direito querida Ciências Sociais Ah é verdade Ciências Sociais Fico satisfeita de pensar que é amiga de Loreninha Minha filhinha querida Tão pura tão honesta e sensível Tão fina Não é por ser minha filha mas sei que é difícil encontrar uma menina assim Quando fiz essa loucura de me casar outra vez quando me apaixonei por esse homem que me tem feito chorar lágrimas de sangue perguntei a ela qual é sua opinião filhinha Então ela tomou minhas mãos entre as suas e com aquela doçura que você conhece respondeu o que mãezinha fizer está bem feito Não sabe nem a metade do que tem me acontecido não quero que se machuque que sofra Esse namorado dela o atual você conhece Ligeiramente Fiquei com a impressão de que ele é casado uma referência qualquer que Loreninha fez não sei bem Li na minha adolescência um livro encantador ninguém mais lê esse livro mas a geração da minha mãe se deliciou com ele As Meninas Exemplares da Condessa de Ségur você já ouviu falar Quando vejo Loreninha com seu jeito de menina antiga penso nesse livro suspirou e cobriu os olhos com o lenço Dessa outra amiga de vocês não gosto muito já que estamos na hora da verdade deixa que eu diga essa ruiva estava outro dia numa boate com uma roda esquisitíssima Bonita sem dúvida mas tão vulgar Como é que chama mesmo Ana Clara Isso Ana Clara É uma boa moça digo e sacudo minha perna que dormiu Me levanto me sento Mas por que a enfermeira foi cruel A senhora estava falando sobre a enfermeira lembra Ela arrepanhou o lençol A alça de renda da camisola resvalou e o seio se descobriu Uma orquídea preta e murcha ô será que ainda é dia lá fora A enfermeira dele a Estela Uma verdadeira víbora Cheguei tão animada no meu vestido azulturquesa ele adora essa cor cheguei antes da hora e pensando que essa seria uma sessão mais leve sem queixa sem choro Com vontade de fazêlo rir um pouco comigo de dizer coisas divertidas Você já fez análise Antes de entrar a gente pensa sempre nas coisas acumuladas que vai dizer e depois não diz aquelas diz outras muda tudo Mas dessa vez vai ser como planejei chega de lamúrias Tem a saleta onde a gente se arruma antes e depois da sessão principalmente depois Quantos lenços de papel não tirei daquela caixa para enxugar estes olhos quantos Sempre levo lenço na bolsa mas às vezes esqueço Perco Fico esperando que me conte essa história da enfermeira mas pelo visto vai ser como profetizava Dona Lã comadre da minha mãe e cartomante aposentada futuro longo e alegria distante Na mesa de toalete está o retrato dele de costeletas e cachimbo A pose é de galã soltando sua meia baforada de fumaça Que absurdo uma mulher assim velha se desbundar por um tipo desses O que adiantou essa análise Sete anos E ainda por cima se apaixona pelo médico que desencarnou e não resolveu o problema está inteiro aí Queria morrer Se pudesse morrer sem deixar o menor vestígio odeio a idéia de velório das pessoas nos pegarem assim despreparadas Só os caixões dos jovens deviam ficar abertos Dos jovens e dos vampiros digo querendo aliviar a atmosfera Não consegui O teto baixo não oferece a menor visibilidade Por motivos de ordem técnica começa a comissária de bordo com aquela voz sorridente na hora em que o avião perde metade da asa esquerda Então a gente aperta o cinto medo medo Sou bicho da terra e vou ter que subir naquilo Vou de fogo se o troço explode não quero nem saber Ora apertar o cinto Tenho horror das pessoas que entram sem bater que vêm por detrás para fazer surpresa horror de estar desprevenida e é isso que a morte faz não dá tempo Considero uma traição Tem qualquer coisa de sinistro essa cara sem vinco mas não parece uma daquelas cabeças reduzidas espetada num pau Uma múmia entende E a enfermeira Não tinha uma enfermeira Agora preciso saber o que aconteceu com essa enfermeira também a Lorena tem o costume de deixar o assunto pela metade Por que a enfermeira foi cruel Sempre teve ódio de mim sempre Uma mulher horrenda não sabe se vestir se pentear uma víbora que resolve ficar velha que culpa tenho se aparento menos idade Se gosto de me enfeitar Se mordia de ciúme de mim amava Doutor Francis agora tenho certeza amava Doutor Francis apaixonadamente acho que ficou radiante com a morte dele nem meu nem de ninguém mais Não é uma vitória Por entre as almofadas do canapé vislumbro uma caixa dourada bombons Estou quase babando quando estendo a mão Posso Cheguei de azulturquesa tão leve quase feliz Me olhei no espelho e achei que estava com a idade exata da minha cara fiz uma plástica mas sei que o importante é ter por dentro a idade que está fora ensaiei o que ia dizer Doutor Francis hoje amanheci tão bom Como se durante a noite tivesse vindo uma fada uma dessas fadas das histórias antigas fadinha boa com sua varinha de condão não sofra mais querida disse tocando com a varinha na minha cabeça não sofra mais não sofra mais ficou repetindo e nessa hora acordei e me senti diferente Estou diferente Doutor Francis diferente Nenhum ressentimento por Mieux que fique com suas traições suas mesquinharias não era melhor nos despedirmos simplesmente como duas pessoas educadas cuja convivência se tornou insuportável Apenas isso Nenhum rancor nenhuma mágoa não é melhor assim É mais moço que procure alguém da sua idade o que já fez antes de vivermos juntos Pois que prossiga e me deixe só estou me preparando para a solidão Olha nos meus olhos Doutor Francis juro que não estou blefando acordei respirando até o fundo o peito aberto e a cabeça erguida a cabeça que a fada tocou com sua varinha lembra Não sofra mais querida não sofra mais Não quero prometer nada Doutor Francis mas acho que hoje se inicia uma nova fase estou ótima Ou quase Ou quase repeti para mim mesma enquanto passava a escova no cabelo e rindo para o espelho fazendo a cara que ia fazer quando entrasse então Doutor Francis Ouvi o passo dela vindo por detrás dá sempre um jeito de contornar e ficar atrás da gente o passo de borracha aquele sapato de enfermeira Me assustei quando ouvi sua fala bem no meu ombro mas o que a senhora veio fazer aqui Fiquei olhando Mas como Será que ela enlouqueceu Como me pergunta uma coisa dessas o que eu vim fazer Mas a senhora esqueceu Pois hoje não tenho sessão Fiquei meio em pânico sou distraída quer ver que me enganei de dia Hoje não é terçafeira Foi aí que me olhou demorado e sorriu juro que sorriu quando botou a mão no meu ombro mas o Doutor Francis morreu a senhora ainda não sabe Ele morreu Foi enterrado ontem mesmo diz que teve uma parada cardíaca mas como a senhora não foi avisada O enterro foi de tardinha Peguei minha bolsa e fui saindo nem esperei pelo elevador fui descendo a escada com aquela voz me acompanhando o enterro foi de tardinha De tardinha oh Deus Me pergunto como é possível tanta crueldade Desembrulho o terceiro bombom que também é de licor além da invenção do durex que considero uma das mais importantes invenções do século tem esta do bombom com uma cereja dentro Não sei explicar mãezinha mas não vejo onde está a agressão Ele não morreu Se morreu ela precisava dizer Não foi hábil é evidente mas não vejo porque cruel Excelente ocasião para me esfregar na cara as amantes escolheu a ocasião a dedo ainda hoje minha copeira atendeu dois telefonemas a mais ousada disse o nome Karin Quer deixar recado perguntou e a prostitutazinha riu ah ah ah só pessoalmente Queria que ele me aparecesse agora para lhe pedir que laça Suas malas faça imediatamente suas malas e saia da minha casa Suma do meu horizonte seu cafajeste No começo presentinhos flores como me iludiu com suas gentilezas não podia haver um homem mais fino Quis abrir uma loja de decoração dei a loja Inventou depois aquela agência de publicidade mais dinheiro gastei o que podia e o que não podia Cínico Cafajeste Este ao invés da cereja tem uma uva atolada no creme rosado E não sei mesmo por que me vem a frase de um político genial governar é prender Muito fino como diria aí a mãezinha Faço uma bolota com os papéis dourados Respiro corajosamente Vamos lá Mas seus problemas são reais Se é uma dor de dente o que é que o analista pode fazer Quero estudar estruturalismo eu não entendo porque sou uma estúpida em que o médico vai me ajudar Quase digo se seu problema é a velhice e se a velhice é incurável entende Não entendeu Ficou me olhando lá do fundo dos seus travesseiros mas não vai entender nunca que está velha e nenhum analista do mundo vai fazêla rejuvenescer O papel desse Doutor Francis era ajudála a aceitar a velhice Ou manter acesa a tal chama deixandose amar inclusive como o personagem do romance espiritualidades Sei lá já estou ficando exausta Outro caminho A senhora não tem fé em Deus Se tem fé mais importante do que Doutor Francis acima de tudo está Deus Não sei explicar mas de que adianta ter Deus se numa hora difícil a senhora não se sustenta nele Ela sorriu Gostaria de entrar para um convento Acho que seria feliz num convento ficaria lá quietinha olhando o mundo lá longe envelhecendo em paz sem testemunhas tenho pavor das testemunhas descobri que o que mais me apavora tanto na vida como na morte são as testemunhas Sempre estou encontrando alguém que se lembra de mim nesta ou naquela data as testemunhas são tão atentas uma memória Por que as pessoas têm tanta memória Eu estava num jantar tão alegrinha e veio alguém que me olhou olhou e começou com aquela conversa que me arrepia inteira acho que você não está mais se lembrando de mim Oh Deus quando ouço esse começo já fico gelada começa assim aposto que você não está se lembrando Faço aquela cara vaga disfarço mas não adianta a testemunha é um bico voraz me arrancando os fiapos de carne tuquetuque não vai deixar a presa uma voracidade não foi em A data Antes de mais nada vem a bendita data completa Até a hora Esse queria que eu me lembrasse dele no meu baile de debutante que coincidiu com meu aniversário lembra Digo depressa que lembro ih como não Lembro de tudo já sei Mas ele estava insaciável foi reproduzindo a festa como se tivesse sido ontem dançamos de cara junta Siorm Weather na época essa música era obrigatória como era obrigatório a gente dançar de cara junta lembra Mieux ria de pura felicidade estava longe mas quando pressentiu o assunto veio correndo Tinha um enorme bolo na mesa um bolo todo branco está lembrada Nem sei mais desse bolo mas ele sabe um bolo com pombinhas de açúcarcande voando sobre um laço de cetim com as pontas caindo até o chão para cada convidado você ofereceu uma pombinha eram quinze você fazia quinze anos lembra Juro que eu podia ouvir o barulho das cabeças em redor fazendo os cálculos rápidos se nessa data ela fez quinze anos hoje então Oh Deus oh Deus Tive que beber quase meia garrafa de uísque para poder ficar na festa até o fim falando e rindo rindo para aquele monstro imbecil que ainda veio com cara de Mariaquequebrouopote me perguntar se por acaso não tinha cometido uma indiscrição você não ficou zangada ficou Absolutamente te adoro vamos dançar face to face como naquela noite eu disse e minha vontade era enfiar a cara dele na lareira que estava acesa ficasse face to face com o fogo oh Deus que horror que horror Me levanto Quero fazer pipi andar beber água comer sal ô a sessão comigo foi dupla Começo a perceber porque eles cobram tanto Kotig O banheiro Vou entrar um instante A sala de banho lilás resplandece como se a noite do quarto tivesse se estendido acesa até ali Tenho que deixar a porta aberta porque ela continua falando enquanto luto com o zíper que me belisca a pele Do vaso perdão Lorena do trono fico vendo os objetos cintilantes na mesa de mármore e que lembram os da concha rosada sais coloridos em frascos de cristal arminhos potes de creme argolas douradas onde estão as toalhas com um grande M bordado em roxo o L da Lena é corde rosa A voz continua mais pesada e rápida Me obrigava a sair quase todas as noites festas festas você não quer ir Então vou sozinho Eu não queria ir mas ia mais vestidos mais cabeleireiros desde cedo me enfiava no cabeleireiro andava com o couro cabeludo ardendo de tanta tintura tanto penteado descansei um pouco quando comprei cinco perucas era mudar a peruca pintar a cara e sair correndo atrás dele boates jantares coquetéis vernissages cismou de investir em quadros nunca teve a menor cultura mas se achava o máximo esteve a ponto de abrir uma galeria Nos intervalos as verdadeiras multidões de amigos dele conhecia hoje um casal e amanhã o casal já estava instalado aqui em casa drinquinhos programinhas Meu olho fechando minha cara caindo mas precisamos receber tanto assim Mieux Precisamos minha profissão não é decorador Depois a profissão de publicitário também exigia contactos contactos e naturalmente a profissão que viria em seguida de marchand oh Deus Oh Deus Mas o que tem você ele perguntava Está cansada Não absolutamente estou ótima eu respondia querendo me deitar em cima da mesa de exausta comecei a tomar estimulantes para agüentar de olho aberto as noitadas foi ótimo foi ótimo Ele dava aquele risinho como conheço aquele risinho foi bem divertido não foi Você não gostou Tudo de propósito Pura crueldade mental minha querida Sabe o que é crueldade mental Destapo o frasco com arminhos de pó Destapo o frasco de perfume todo espelhado coleciona perfumes como a filha coleciona caixinhas sinos Crueldade mental Era criança quando ouvi a avó contar do marido que insistia pra mulher que usava dentadura dupla comer goiabada de cascão dizendo que podia comer era molinha Hoje escrevo comprido lá pra casa quanto mais conheço os pais dos outros mais amo aqueles dois meu alemão com minha baiana ô mãe uma carta como você gosta bem ajuizada e pedindo a bênção Andam se moendo com minha militância não quero mais isso direi que serão andanças ulíssicas ele leu Ulisses e acha que as ciganagens dos jovens têm qualquer coisa de heroísmo na falta de cálculo no desprendimento ô pai te amo mas nada de amor mórbido um amor do peito pra cima Nazista como poderia ter sido comunista passional puro capaz de vibrar por uma farda um hino Um alemão bastante louco Quando descobriu que não era aquilo que imaginara correu tanto que veio parar em Salvador sarava meu irmão Ela ainda fala sobre crueldade mental com uma história onde entra uma taturana Preciso ir entende E a mala Espera querida toma antes um chá aperta outra vez a campainha mas o que eles fazem lá no fundo Quatro empregados suspirou pegando o espelho que estava encoberto pelo lençol Olhouse apertando os lábios como se fosse beijar a própria imagem E a Loreninha Tínhamos combinado ir na Dona Guiomar mas parece que está presa não sei porque a polícia persegue essa pobre gente Nunca falhou previu a ida de Remo meu filho para a África do Norte previu a morte do Doutor Francis a senhora vai perder uma pessoa muito querida me avisou Previu a tentação de Mieux previu tudo Se a Lucrécia ainda vivesse podia me benzer era uma espírita acho que foi escrava Quer dizer que a mala eu levo hoje Sem dúvida querida a Bila arrumou tudo tem muita roupa de inverno Mieux não presta mas a roupa dele é muito fina Você não sabe guiar Leva o carro e deixa lá com Loreninha quem sabe ela resolve vir Minha filhinha querida Foi uma criança tão educada tão gentil Colecionava pedrinhas folhas Estava sempre salvando algum bichinho que caía no rio Ela ainda é virgem Ainda Fico tão feliz por saber que continua pura murmurou com uma expressão de beatitude Mas logo a testa se franziu A voz ficou embuçada Você não acha que ela se interessa pouco por sexo Tenho às vezes tanto medo está me compreendendo Aumentou tanto ultimamente você sabe essas moças Mastigo mais um bombom Não quero ser rude mãezinha mas acho completamente absurdo se preocupar com isso A senhora falou em crueldade mental Olha aí a crueldade máxima a mãe ficar se preocupando se o filho ou filha é ou não homossexual Entendo que se aflija com droga e etcétera mas com o sexo do próximo Cuide do próprio e já faz muito me desculpe mas fico uma vara com qualquer intromissão na zona sul do outro Lorena chama de zona sul A norte já é tão atingida tão bombardeada mas por que as pessoas não se libertam e deixam as outras livres Um preconceito tão odiento quanto o racial ou religioso A gente tem que amar o próximo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse Digo e penso imediatamente em Ana Clara Tenho que amála Difícil sim fico impaciente irritada Mas sou eu a cristã Mulher sem homem acaba tão complexada tão infeliz Com homem também tenho ganas de dizerlhe e darlhe o capulho na mão Complexada porque todo mundo fica enchendo a sacola Não é o caso da Lorena não estou mais pensando nela estou pensando só nisto já é tão difícil crescer ser amado por aquele que a gente ama E tem que vir alguém determinar o sexo do amor Mas e você Lia Ama alguém Se não quiser não responda Estou rindo quando respondo estava demorando Não tem problema comigo entende Tenho um amante ele precisa de mim e eu dele agora está viajando mas logo a gente se encontra Ficou me olhando lá de longe sacudindo de leve o lenço como se espantasse moscas Passou águadetoalete na testa no pescoço Acho que morreria de desgosto se meu filho Remo ou Loreninha Quero um enterro bem despojado bem simples Ela sabe até o vestido que quero vestir A maquilagem que vai fazer combinamos até os pormenores O caixão só ficará aberto se eu tiver muito bem caso contrário ninguém terá o prazer de me ver morta Antes eu ficava em pânico com a idéia de morrer e ele ia bisbilhotar minha papelada aquela papelada amarela que odeio na certidão de óbito vem a idade vem tudo Só de imaginar a cara radiante que ele ia fazer quando descobrisse minha idade rondou sempre querendo saber não deixei Nunca deixei Na morte eu ficaria indefesa está me compreendendo Agora posso morrer sem medo minha filhinha querida cuidará de tudo aquele perverso não vai mais me humilhar Entrou a empregada numa lufada de ar Respirei como um condenado na câmara de gás Faz horas que estou chamando Está bem já sei já sei traga depressa um chá avisou sacudindo o lenço na direção da moça Voltouse para mim O novo flerte da Loreninha por acaso não é casado Não tenho a menor idéia É estranho vocês são tão amigas murmurou e cobriu os olhos com as mãos Tão estranho tudo não é mesmo Por que será que diante do Doutor Francis eu não tinha vergonha da velhice Não tinha nenhuma vergonha queria parecer bonita sim elegante mas não tinha essa vergonha esse pudor que tenho diante dos outros Com certas pessoas tenho vontade de me esconder como se tivesse cometido um crime escondo a velhice como um criminoso esconde a vítima tamanho pânico que descubram que espalhem Não é estranho Certas pessoas me fazem ter mais vergonha ainda como se estivesse nua numa vitrina Já com você fico completamente à vontade com você com Loreninha Minha filhinha querida Perdi tanta coisa mas ganhei minha filha agora posso voltar e morar com ela Mas ela vai morar com a senhora Voltar pra debaixo da sua casa Já sei a senhora é mãe perfeita a minha também mas por isso mesmo tem que cortar o cordão umbilical entende Senão ele enrola no pescoço da gente acaba estrangulando Castrando Me desculpe mas acho essa a idéia mais errada do mundo Se o filho está estruturado tem que voar fora do ninho o mais depressa possível pra não acabar aquela coisa que a gente conhece ô acho que estou gastando cuspe Desço as mangas da blusa Vai vampirizar a filha que já tem o sangue mais fraco do que o das gazelinhas do tapete Este apartamento é enorme querida Ficará numa ala só dela Por que não vem também morar aqui Eu teria a maior alegria Nem respondo Ai meu Pai como diz ela na aflição Olho com maior simpatia o retrato do galã com seu cachimbo e meia baforada Aquela arvorezinha de retratos o menino é Rômulo ou Remo Remo Rômulo não podia estar ali Não Morreu nenenzinho querida Nenenzinho Não tinha nem um mês não chegou nem a isso O médico disse que ele não tinha viabilidade Um sopro no coração Levanteime com uma vontade maluca de puxar aqueles panos arrancar tudo e fazer entrar a luz do dia Mas ainda era dia Um momento o Remo deu um tiro nele enquanto brincavam não foi isso Um tiro no peito teria uns doze anos não foi isso que aconteceu Milhares de vezes Lorena contou essa história com detalhes ele era alourado Vestia uma camisa vermelha vocês moravam na fazenda Ela está sorrindo dolorida olhando o teto Minha pobre filhinha Nem conheceu o irmão é a caçulaEra menininha ainda quando começou a inventar isso primeiro só aos empregados que vinham me perguntar eu nem negava disfarçava que mal tinha Continuou falando na escola nas festas o caso começou a ficar mais sério oh Deus o malestar que eu sentia quando queriam saber se Não queria que pensassem que ela estivesse mentindo foi sempre uma criança tão verdadeira Os médicos nos acalmaram que não tinha essa gravidade ia passar com o tempo imaginação infantil rica demais quem sabe na adolescência Não passou Roberto foi sempre tão confiante tão seguro me tranqüilizava não é nada Falei com Doutor Francis teve uma entrevista com Loreninha achoua inteligente sensível Está me compreendendo querida Não deu também maior importância Sinto um certo enjôo será do chocolate Aperto o estômago e fico olhando o tapete este é liso Cordemel Mas o que é isso Então toda aquela história que me contava tanta dor ô Lorena Ô Lorena Que coisa mais sem sentido por quê Por que fico repetindo e me aproximo do casulo onde ela dorme acordada as pálpebras mal escondendo o olho aceso E se estiver mentindo E se a versão verdadeira for a de Lorena Pois não disse Nem os médicos nem o marido ninguém deu maior importância ao caso Por que não deram Porque a doente era ela a doente era a mãe escamoteando a tragédia por defesa muito mais fácil imaginar que o filho morreu bebê devolvêlo ao limbo não tinha viabilidade O rapazinho de camisa vermelha e peito varado por um tiro disparado pelo irmão é subtraído da morte e reduzido a um nenenzinho com um sopro no coração Hein Procuro uma unha mas não vão mais crescer Mordisco uma espiga que se descola aguda como um espinho Ao mesmo tempo Lorena com tamanha fixação pela verdade armando enredos até em torno de um botão E as maquininhas de sonho perguntou E a carinha ficou secreta como esta alcova O pulôver de listras era dele não era Mas tem que ter existido eu sabia tanto a seu respeito como se tivesse sido meu irmão E agora Preciso ver urgente seu álbum de retratos lá deve estar a gens lorenensis do começo ao fim Seja como for que triste Quem sabe a mãezinha vai lhe dar as roupas que foram dele Estaca zero minha querida Fiz plástica mas chorando como tenho chorado devo ter estragado tudo Minha irmã Luci descobriu um creme escandinavo feito com óleo de tartaruga deve ser ótimo as tartarugas se conservam séculos murmurou erguendose sobre os cotovelos Oh Deus o terrível é isso é que as coisas acabam Todas as coisas acabam onze Com um gesto suave Ana Clara afastou os anéis de cabelo empastados na testa Fechou no alto do pescoço a gola do casaco e com a bolsa fortemente apertada contra o peito começou a subir a escada Tropeçou no degrau e caiu de joelhos Gritou quando foi se apoiar o chão fervilhava de baratas A maior delas se levantou nas patas traseiras o peito engomado na túnica de esgrima o florete na mão en garde Inclinouse rindo porque a barata também ria atrás da tela de arame da máscara era uma brincadeira Olhou mais de perto e escondeu o peito mas era tarde o florete a varou de lado a lado Quis respirar e o sangue jorrou do coração coroado de espinhos espirrando em sua boca com tamanha violência que se engasgou nele Dobrouse na tosse Não quero mais gemeu Calma querida Se apóia aqui em mim pediu Lorena agarrandolhe o braço O cavalo Lá atrás ficou a barata mergulhando em parafuso na folha de couve Apanhou o florete caído no chão fechou com ele a gola e montou no cavalo branco Riu no galope pela campina estrelada tanta estrela que podia ver os cristais brilhando nas prateleiras Fez um afago no pescoço do cavalo Ele sorriu Lorena Era Lorena Relaxou o corpo Aqui está tão bom Eu não disse que você ia gostar Vou abrir mais a água quente avisou Lorena Levanta a cabeça vamos Ela obedeceu Riu frouxamente encolhendose no fundo da banheira Se você soubesse pomba Com um braço Lorena sustentavalhe o tronco enquanto com a outra mão foi lhe esfregando nos seios a esponja ensaboada Onde se sujou tanto assim Aninha Incrível Você estava um tatu de suja querida Tinha lama até no seu ouvido já pensou Ana Clara falava com dificuldade a voz espessa o maxilar travado Abriu os olhos Recomeçou a rir Um banho Você está me dando banho Vamos agora lave a zona sul Aqui ordenou Lorena conduzindolhe a mão Vamos esfregue aí com força Não não largue a esponja Ai meu Pai Tenho que ir Que horas são Sossega Aninha Não me espirra água fica quieta ainda é cedo querida Vamos esfrega Me dá um uísque Eu dou mas então esfrega aí a esponja Assim Lúcida Roqueroque estou completamente lúcida fico puta da vida porque a cabeça Roqueroque Perfume de eucalipto está sentindo Sinta que delícia de perfume é eucalipto Eucalipto Agora Lorena lhe ensaboava os cabelos Fecha os olhos e não abra enquanto eu não mandar Quero minha bolsa Eu dou mas então fecha os olhos vamos obedece Por onde você andou é uma coisa que eu gostaria de saber Onde você esteve onde Uma festa Que festa Espera deixa tirar o sabão Levanta vamos segura em mim disse Lorena enlaçandoa pela cintura Cuidado Aninha Enroloua na toalha e conduziua ao quarto Ana Clara estremeceu Apontou a janela Quem é que está ali espiando Ali É a cortina querida Sossega não tem ninguém estamos só nós duas As freirinhas todas já foram dormir sossega Madre Alix Madre Alix Ela já vem então deita não foi uma delícia de banho Esfregou lhe a toalha nos cabelos E ficou olhando as nódoas roxas que tinha nos seios No braço Trouxe a lata de talco Aninha Aninha Onde será que você andou Ele foi preso murmurou Ana Clara abrindo os olhos Fechou as mãos e cruzouas no peito Foi preso Quem Quem foi preso Caiu num pranto seco sem lágrimas A fala ficou mais difícil Roqueroque Está bem digo que Levantouse E tombou novamente de costas na cama Veio Deus e ficou no meu peito bem aqui bem aqui Saiu voando o passarinho era Deus Ele veio e então Visto nela meu chambre vermelho Passo a escova nos seus cabelos acesos como brasa curtinhos assim vão secar logo mais que loucura Loucura Imagine se Madre Alix Cato no chão sua roupa imunda como se tivesse rolado num pântano E as manchas roxas E o cheiro medonho de vômito misturado com perfume amanhecido ai meu Pai meu Pai meu Pai Chácara imagine Levo a trouxa de roupa até a cesta ainda bem que amanhã é dia da Sebastiana O casaco mando ao tintureiro Ponho seu sapato um ao lado do outro não é curioso Os sapatos não estão quase sujos Como se tivesse andado de cabeça para baixo Coitadinha Ana quem foi preso Você disse que não sei quem foi preso Ela rolou a cabeça no travesseiro agarrou os cabelos Puxouos As palavras saíram pedregosas O Max sumiu sumiu Loreninha me ajuda o Max Ana fala mais baixo quer que as freirinhas acordem Quer que Madre Alix venha aqui e veja você desse jeito É isso que você quer O Max sumiu Não está lá fiquei esperando Viajou ora Ele não viaja Viaja Então viajou sua boba Fiquei esperando Ficou é pinoteando por aí Onde você andou hein Agora ela ria a face corada os olhos brilhantes ligeiramente estrábicos Se você soubesse pomba Soubesse o quê Não sei mas adivinho Vão acabar essas curtições ouviu isso Você vai ter juízo Não quero juízo Vai querer na marra agora você vai na marra querida Madre Alix já cansou todo mundo já cansou A formigona ria aquela bastarda Depois a barata veio e começou o campeonato Max chegou na frente o japonês Aquele Como é que se chama o japonês Aquele O japonês Não sei queridinha Só sei que eu estava lendo sobre as estrelas quando Dona Ana Deprimida e Deprimente se despencou nos meus braços Andei com Deus Ele estava aqui Não interessa mais as coisas que depois eu disse não não e ele veio e tinha uma luz assim tudo assim na minha cabeça e ele me deixou voar tão alto com a mão dele segurando a minha Chiquérrimo Chega Max Max é você Sou Lorena querida Seus pés estão duas pedras de gelo deixa eu fazer uma massagem Sossega Ana Agora seu nome é Ana Bacante Bacante e Bacana Sabe o que é uma bacante Aquelas ninfetas dos cortejos de Baco vou te coroar com folhas de parreira Podre de chique hein Me dá um uísque Quero um uísque Lorena massageoulhe os pés Cobriuos com a manta Lorena Lorena Vaz Leme Nhemnhemnhem Ana sossega senão chamo Madre Alix Pára de rir não tem graça nenhuma Quero um uísque Leninha Só um me dá Prometo prometo Despejo no chá vou fazer um chá bem quente disse Lorena cobrindoa com a manta que ela atirava no chão Se um dia eu precisar trabalhar vou ser femme de chambre Acho que é a única coisa que faço na perfeição na outra vida devo ter trabalhado num castelo com uma cortesã parecida com Ana Clara Conceição Quero minha bolsa Minha bolsa Doulhe a bolsa e vou encher a chaleirinha Mas por que tudo tem que acontecer ao mesmo tempo Fim da greve os exames começando amanhã mãezinha louquinha Doutor Francis morrendo justo agora que Mieux resolve se mandar mas não é mesmo uma dose de iguanodon Como será que se traduz iguanodon Lião nos seus urros de impaciência discursos e outros sentimentos Eu aqui com Ana Clara Devia estar estudando não devia Devia O abismo entre o ser e o estar Estou com Aninha e estar com Aninha e estar com os ventos arrecifes e tempestades ah MN por que não me dá um emprego de enfermeira no seu hospital Recebeu o bilhete E não vai responder Está no teto O que está no teto pergunto Sinto meu olhar tão triste que me comovo com ele estou me comovendo comido mesma e isso não é saudável As horas Preciso saber depressa ela diz voltada ainda para o mesmo ponto perto da lanterna Não interessa O ano que vem sem falta O ano que vem Deve estar prometendo a Deus o mesmo blablabla que promete a Madre Alix Nenhum dos dois acredita e contudo por ser a mais preta do rebanho Miserere Nobis digo e abro a mãos sobre a chaleira que retribui meu gesto bafejando quente Ana Clara soltou um gemido e diz qualquer coisa de tão enrolado que foi Aninha Obrigoa a deitarse de novo alguma dor Que deve ter passado porque agora está rindo às gargalhadas A cabeleira de caracóis vai ganhando brilho à medida que seca os olhos estrábicos de gozo escureceram na malícia Abriu a gola do chambre e seu pescoço engrossa na risada tenso encordoado As nódoas no peito A mancha no braço calcando como um dedo a veia principal Res accessoria digo vagamente Estou fascinada olhando A língua se enrola obscena Uma figura dionisíaca e possessa se revolvendo no chambre vermelho Cubroa com a manta até o pescoço e seguroa Ela se acalma O olhar entortado vai esmorecendo Que frio Lena Que frio Aconchego seu corpo nas almofadas Você vai tomar um chá bem quente Digo que Fechou os olhos Fechou as mãos Virou anjo dormindo Apanho no chão a toalha de banho vermelha e dobro sua camisa suja de sangue não vi o sangue mas senti a umidade na minha mão e dobreia depressa porque achei que mãezinha não gostaria que vissem a camisa manchada já que o sangue do peito estava sendo lavado na banheira Fechouse com Rômulo e não deixou que ninguém ajudasse eu lavo meu filho Rômulo Rômulo Sinto às vezes que você continuou em mim seus gestos nos meus A fala Depois fico sozinha e então você me avisa que é preciso ficar só que vou ser feliz assim ah Rômulo Como você cresceu Me dá sua mão ela pede Doulhe a mão que ela aperta e depois larga Com o que estará sonhando Deixo sua mão debaixo da manta e corro até a água fervente Apago o fogareiro O perfume do chá me tranqüiliza como o incenso preciso queimar um pouco Afastar os espíritos Aninha veio carregada deles como se tivesse descido aos infernos você esta bem Aninha perguntei no maior susto quando ela quase se despencou da escada Sorriu estrábica O cavalo Fecho as mãos em torno da xícara e bebo o chá Tinha a expressão do Anjo Sedutor quando a despi um fulgor nos olhos que fugiam e voltavam Você Lena Que é que você vai fazer comigo Abro a janela Como no casarão ninguém ouviu ela gritar Chegou gritando E nenhuma freirinha nem a Bula Uma sorte essas novelas de TV soltas pela vizinhança têm sempre entreveros ranger de dentes choros Os gatos engatados urrando em correria no meio das flores Se fôssemos uma sociedade calminha Ana chamaria a atenção dos presentes mas nesta sociedade erótica os presentes também estão ocupados demais com erotismo Poucos pouquíssimos estão rezando Ou pensando Eu lendo sobre as estrelas imagine Nascem e morrem como nós a visão do cosmos é a mesma do mundo você sabe disso MN Olho a Via Láctea As estrelas maiores são as estrelas jovens da minha geração As outras velhinhas vão diminuindo diminuindo assim como a Bulinha Até que se diluem somem não é lindo Queria tanto envelhecer sossegada parar com as escamoteações disse mãezinha com tamanha sinceridade Estou exausta filhinha Quero as rugas todas os cabelos brancos as sardas os netos estou com nojo do sexo O nojo dura pouco O corpo começa a ficar tristinho e então reage com uma energia Que energia Basta um convite mais especial que nem precisa ser de homem uma amiga do gênero estimulante e já levanta a cabeça e sai correndo na ponta dos cascos Agora vamos morar juntas filhinha Como nos bons tempos lembrou Mas quando estávamos nesses bons tempos ela se queixava tanto aqueles bons tempos eram bons Abandonar minha concha Meu delicado mundo que amo tanto Se ao menos fosse para ir com MN Por que ele não me convida nessas suas viagens Esses altos congressos internacionais que vive curtindo eu caberia no seu necessaire você Fabrizio Uma poetinha neurótica me pergunte o que é curtir um neurótico e eu respondo Se ao menos o Guga aparecesse para buscar a camisa que ainda não comprei Bordo um patinho mas não é no pato que estou pensando é na sua barba na sua boca Cheiro de fumo suor e poeira E a língua de cetim e punhal que eu tive que expulsar mas por que expulsar Ai meu Pai nunca imaginei que aqueles pés caprinos mal escondidos nas sandálias e aquele jeans puído bem nos elevados ilha branca desviei o olhar e o olhar acumulado naquele desbotamento que tive tanta vontade de MN MN só você não vai mesmo ter coragem Por que sou virgem é isso Faz tanta diferença assim Poderíamos morar no campo adoro o campo Uma casa de tijolos nus Um gramado Livros música Quero ler para você todos os poetas que amo minha voz não é bonita mas aprendi ao menos a fazêla grave este natural esganiçado posso corrigir quando me esforço Vão dizer alienação fuga Diremos integração retorno A nós mesmos Ao sol A Deus Meu bilhete é decisivo responda escrevi um bilhete decisivo Os bilhetes decisivos Tudo somado isto eu te amo Não uma simples amizade entre um homem e uma mulher mas uma espécie de unificação absoluta unidade harmônica neste mundo caótico O sentido profundo Profundo repito e olho para Ana Clara Dormindo Lião vive pregando que a sociedade expulsa o que não pode assimilar Ana foi expulsa pela espada flamejante disse que tinha um florete no peito mas não era um florete era uma espada O que dá no mesmo Coexistência pacífica ensinam os ensinantes E na prática Lia de Melo Schultz digo Chegou A janela do seu quarto acabou de se acender ah Lião acho que nunca sua presença foi tão desejada Se não fosse tão tarde e se Aninha não estivesse nesse estado gritaria com todas as minhas forças Lia de Melo Schultz E você responderia Presente Calço a sandália troco de camisa e depois de cobrir o pé de Ana Clara que se descobriu saio como aprendi com Astro nauta deixando o corpo físico e só levando o corpo sutil Nau vejo a lua só um céu chamuscado de estrelas As maiores estão decotadas palpitantes Virgens Deixame rir Até as margaridinhas estão agitadas com suas grinaldas expostas se sacudindo no vento Arranho a veneziana Ela abre e enquanto pulo meu coração se fecha a última vez que estou pulando esta janela e entrando neste quarto Quase caio em cima da mala de couro amarelo Levanto n Pesadíssima Pronta Já Lião fechou o caderno na mesa estava escrevendo O diário Ai meu Pai Não está reconhecendo a mala da mãezinha Fiquei horas com ela Morte do analista que era muito fino rompimento com o amado que era muito grosso tanto drama disse Lião e de repente me encarou Por que está me olhando assim Nada entende Foi uma sessão de desbundar até um profissional resmungou e riu Gosto dela Muito fina muito fina Tiro a pastilha de hortelã da boca para poder falar Se você soubesse Lião Imagine que eu estava muito poética lendo sobre estrelas quando ouvi aquele turbilhão na escada e um grito tão agudo que meu livro foi parar no teto adivinha quem era Estava dependurada na escada berrando tinham enterrado um florete no peito dela enfim podre de drogas Loucura completa E tão imunda Na roupa tinha lama carvão umas manchas suspeitíssimas E aquele cheiro Dei lhe um banho de imersão até na cabeça tinha sujeira Não continuo porque Lião está rindo sem parar Espero Foi até a sacola tirou um rolo de barbante e começou a amarrar pequenas pilhas de livros alinhados no chão Acendeu um cigarro e com a brasa queimava o barbante depois de fazer o nó E daí Agora está dormindo na minha cama Ah e nódoas roxas no peito no braço Um hálito pavoroso coitadinha deve ter vomitado antes Mas não estava numa chácara de very important person Chácara imagine Perguntei mas aqueles delírios que você conhece me confundiu com o namorado chorou riu E amanha as oito tenho exame acabou a greve exame de legislação social lá sei tudo mas tinha que dar ao menos mais uma espiada em alguns pontos jacaré deu Os problemas vieram hoje em cachos a gente passa dias num lago e de repente Lião amarrou mais uma pilha de livros e começou a andar no seu passo enjaulado Vim com o carro da mãezinha idéia fabulosa porque adiantei demais minha lista fiz coisas à beça providencias despedidas de amigos disse e parou na minha frente Tudo se precipitou de tal jeito Miguel já embarcou Embarcou Já deve estar lá Isso quer dizer que vou antecipar minha viagem quero entrar na primeira vaga que tiver tenho tudo pronto estou tinindo Faltava só um saco de viagem e mãezinha me dá essa mala viajo com mala de milionário ô Lena Mais uns dois dias e desembarco em Casablanca Depois Argel Lião Lião você está brincando E nossa festa de despedida A gente tinha combinado uma festa Não dá pé Um dia a gente festeja que vai chegar o tempo de festa agora é arrumar a mala e tocar pro aeroporto ô que medo Não sou nem passarinho nem nada resmungou levantando a mala Colocoua na mesa Quando vim de Salvador a comissária de bordo uma moça muito fina como diria a mãezinha avisou pelo microfone que por motivos de ordem técnica ia acontecer não sei quê e por isso a gente devia apagar o cigarro e apertar o cinto não entendi o que ia acontecer mas depois dos motivos de ordem técnica o avião desbundou até a alma Tive o maior cagaço do mundo Lorena fez uma careta de pânico riu e sentouse nos jornais que amontoei no chão Suspirou ao tirar do bolso uma pastilha de hortelã Então vai mesmo Ouvia você falar a viagem a viagem mus me parecia uma coisa meio vaga um pouco sobre a piada Ah Lião murmurou Animouse Quero ir ao aeroporto é lógico Melhor não Lorena Nada de despedidas digo e olho suas sandálias branquíssimas como se tivessem vindo neste instante da loja Vou embarcar na maior discrição até meu casaco é preto mãezinha me deu um casaco fabuloso diz que viajou com ele pela Europa um cachemisère explicou Não é genial Só que no meu caso ele está escondendo de fato uma miséria muito maior do que sonham todas as mães filosofias ô Lena Se não endoidar antes de lá mando cartas cartões diários Acho que você não vai escrever Nem vai voltar Não não fale que nem a mãezinha se você ouvisse putz Apesar da dor e tudo quis saber se eu tinha alguém Falei em homem e essa palavra mágica resolveu pronto não ia mais te poluir Quis saber depois se você era virgem Infelizmente eu quase disse Ficou contente e ao mesmo tempo não ficou a coisa é mais complicada do que parece mas por que será que até hoje sendo você essa maravilha que é por quê Agora Lorena ri tapando a boca e eu fico rindo também o mesmo riso escondido dos inconfidentes no auge da inconfidência Conta Ela tocou em Ana Clara Ora Acredita nas más companhias se duvida muito até as freirinhas podem exercer suas influências entende Virou a página o homem que você estava rondando por acaso não era casado Por acaso respondi que não sabia e ela ficou espantadíssima como é que eu não sei Mais lágrimas e etcétera e depois do chá e dos presentes me despedi na maior gratidão Fim Federico Garcia Lorca murmurou Lorena olhando o pôster em branco e preto pregado com tachas na porta do meu armário Triturou a pastilha nos dentes Respirou de boca aberta Que cara maravilhosa ele tinha É seu Vai herdar livros também estou deixando todos só levo uns três ou quatro Vem cá seu despertador está funcionando Tenho que acordar de madrugada e o meu emprestei e não voltou digo me aproximando da estante Mas afinal por que não foi ver a mãezinha Segurei a corda como pude fui muito fina mas a filhinha querida fez falta Lorena inclinouse para examinar os montículos de livros que transbordavam das prateleiras para o chão formando uma trilha sinuosa até a cama Olhou debaixo da cama e puxou uma malha verde e mais dois livrões desgarrados Eu podia dizer que Ana atrapalhou mas não e verdade tive a noite toda para ir e não fui porque esperava uni telefonema de MN deixei no hospital um bilhete decisivo Telefonou Não Só mãezinha que falou umas cinco horas comido logo depois que você saiu Quer que me mude ainda esta semana já pensou Você vai Prudentemente Lorena cheirou a malha que abriu no chão Enroloua com as meias que estavam entre os jornais Tenho que ir Lião O analista Mieux e mais o drama da velhice Sinistro esse drama de repente ela ficou com cem anos Precisa de mim Perfeito vai mas salte fora assim que puder entende Diga que está precisada da sua concha de umas férias na concha e se mande Ela não vai casar outra vez Depende querida Já sei como vai ser com minha avó foi igual a avozinha se embonecava e tudo mas quando acontecia uma chateação muito forte assumia a velhice até que o desgosto ia passando e ela ia resolvendo ficar em forma de novo e assim um monte de vezes caía levantava caía levantava Numa dessas quedas suspirou Lorena Ah agora me lembro tinha uma cantiguinha que minha pajem cantava escuta escuta Aprumouse pigarreou e depois de tirar a pastilha da boca cantou com sua voz fraca Polida Teresinha de Jesus de uma queda foi ao chão acudiu três cavaleiros todos três chapéu na mão Me abaixo e canto junto com ela no tom mais grave que consigo O primeiro era seu pai o segundo seu irmão O terceiro foi aquele a quem deu seu coração Rimos baixinho agachadas Minhas tias achavam essa cantiga um sacrilégio por causa desse terceiro digo e me alegro ô o gorro que pensei que tivesse perdido Enterroo na cabeça Mas vem cá a mãezinha Queria tanto que ela se banhasse naqueles perfumes e amanhã já saísse correndo Na ponta dos cascos Isso Na ponta Lorena voltou a mascar sua pastilha Começou a amontoar os jornais Já vi mãezinha se estatelar e se levantar umas três vezes coitadinha A primeira quando Rômulo meu irmão morreu A segunda quando paizinho foi internado ela sofreu mais no dia da internação do que no dia da morte A terceira estatelação foi quando precisou vender a fazenda Levantouse das três é lógico Esta é a quarta querida Então se levanta decido e me ajoelho diante dela Sacudoa pelos ombros parece que ficou criança de novo ô se volta com a mãe vai ficar mais criança ainda Você tem que viver sua vida ao seu modo e não do modo que os outros decidirem ô Lena Lena não sei explicar mas aquela história do Tempo devorando os filhos não é o deus Cronos Ele mesmo ia parindo e ele mesmo ia devorando tudo Mas de verdade não é o Tempo que engole a gente é um tipo de mãe como a sua Um pouco como a minha também Presta atenção salta fora e ela vai se dedicar a outra causa a caridade Deus quem sabe até vai querer adotar uma criança Minha mãe adotou uma está radiosa lá com a garotinha que beija e castiga à vontade Em todo o caso ontem já tomei minhas providências posso embarcar tranqüila Providências Que providências Lião Está na maior excitação deve estar pensando em MN Agarroa como se agarra um inseto pelas orelhas Esqueça esse cara esqueça Só vejo vocês trocarem bilhetinhos cartas como se um morasse em Vênus e o outro em Marte ridículo Isso é medo ele morre de medo Agora mesmo estou tremendo só de pensar em subir num avião mas medo de avião é saúde a gente é bicho da terra tudo perfeito Mas medo de amar Ele não suporta a idéia do sofrimento alheio querida A mulher os filhos montes de filhos A problemática do remorso Mas que remorso Mansamente Lorena tombou para o lado a cabeça apoiada na roupa que juntou Numa das cartas começou ela Implorou paciência quando levantei os braços Espera deixa eu falar numa das cartas ele contou que quando menino achou um dia um caramujo na praia um caramujo muito lindo daqueles de madrepérola o bojo se fechando em caracol até acabar assim numa coroinha sabe como é Com um pedaço de arame arrancou lá do fundo o bicho que veio em pedaços Daí lavou o caramujo despejou no buraco álcool amoníaco perfume e deixou secando no sol Dois dias depois começou aquele cheiro medonho como se o bicho continuasse morto lá dentro Cutucou de novo mais água mais sabão acetona gasolina experimentou tudo No dia seguinte o cheiro no fundo da acetona da gasolina do álcool o cheiro Acabou jogando o caramujo no mar sabia que nunca mais ia encontrar outro igual mas jogouo no mar Agora Lorena desenfurnou algumas pontas de cigarro que juntou em redor e levantou os jornais deve estar procurando algo Achou uma caixa de fósforos vazia Continuou seu ritual de limpeza enfiando os tocos dentro da caixa Fico esperando E a metáfora do caramujo Não é uma metáfora E daí Lena O caramujo Pois o cheiro do caramujo é como o cheiro da memória O resto da vida ele sentiria esse cheiro já pensou Sofrimento da mulher dos filhos Sofrimento também dele não foi Tolstói que disse Só há dois sofrimentos no homem a dor física e a dor do remorso Perfeito Se é que entendi o caramujo é você o que não é nenhum elogio metáfora muito vagabunda essa Mas se esse caramujo era assim raro com coroinha e etcétera ele podia ter lutado um pouco mais não podia Se não fosse o comodista que é Muito mais fácil jogar o caramujo no mar nesta altura você já está em pleno Atlântico Kaput Então não se fala mais nesse homem chega Você vai amar o Guga conversamos muito já sabe dos dramas todos e está a fim de te salvar Divinomaravilhoso Mas onde você encontrou o Guga Passei no teatro estava curtindo o violãozinho dele fez uma música fabulosa ficou entusiasmado com a idéia Entusiasmado Ficou Lógico Se mãezinha comprimir muito se casa até de fraque faz qualquer negócio Hábil como você é depois de seis meses ele está tomando dois banhos por dia Lião que loucura riu Lorena Você deu assim esperança Evidente Às vezes puxa suas fumaças mas com uma menina mais ou menos equilibrada como você não vai tomar mais nem aspirina Mais ou menos Lião Você disse mais ou menos equilibrada repetiu Lorena rolando sobre os jornais Lentamente Lia foi tirando a roupa da mala aberta na mesa Sorriu Tinha o mesmo cheiro dos armários de Lorena Muito fino muito especial pensou desdobrando um pulôver de cashmere cinza ô esse não ia servir direitinho em Miguel Esfregou nele a cara Riu Um pouco mais em contato com a gens lorenensis e sairia tatuada no nariz ouvido e garganta Voltouse para Lorena que se imobilizara sonhando entre os jornais Teria mesmo existido Esse Rômulo Esmoreceu o ruído do jato varando a noite Os miados dos gatos mais próximos foram se esticando até se juntarem aos uivos de um cachorro Uma pedrada e o cachorro se afastou ganindo Ficaram os gatos Durante uns vinte anos vou ser elegante no inverno disse Lia vestindo o cashmere vermelho Abraçouse Estou me sentindo um gato ô mãezinha meus melhores votos que se levante e dê outra arremetida Amém Ah ia me esquecendo disse Lorena embolando dois jeans que encontrou debaixo da cadeira Irmã Bula veio me dizer toda contentinha que a nova pensionista está para chegar a estudante de Medicina A menina é sobre o gênio Vem do Pará Já pensou Pará Santarém Já avisei que pode ficar na minha concha murmurou e uma leve sombra baixou sobre seus olhos Sacudiu se Minha empregada lava isto amanha você tem que viajar com tudo em ordem Mas esses jeans estão limpos Lena Não estão querida Deixa por minha conta ela lava divinamente Olha o cachemisère Não é suntuoso perguntou Lia vestindo o casaco que estava no fundo da mala E o cheiro Lorena Cheiro de riqueza putz Mais baixo Lião elas vão acordar estamos gritando Que acordem estou excitada demais não consigo falar mais baixo disse e aproximouse de Lorena Estive hoje com Madre Alix É uma mulher bastante estranha Estranha como Bastante estranha repetiu Lia olhando para o jardim Levou a mão à boca e repassou as unhas na ponta da língua Ela me faz pensar no mar de Amaralina conheço aquele mar melhor do que esta mão a cor da água em qualquer hora do dia Os peixes todos as conchas as pedras nenhuma surpresa entende Mas uma tarde enquanto mergulhava uma planta se enrolou no meu pé trouxe ela pra praia Uma planta assim meio azul eu nunca tinha visto antes essa planta de folhinhas lisas como peixinhos azuis e raiz cor de carne mas então devia ter outras como essa planta lá embaixo Comecei a olhar o mar com mais respeito Sobre o que vocês conversaram Biscoitos sortidos Faz às vezes a ingênua mas está tão por dentro como nós Ou mais sei lá a mulher é fogo O prato principal foi Ana Clara Ai meu Pai Tenho que ir imediatamente até me esqueci E amanhã a prova logo às oito Mas que foi Lião Porque me olha assim Os álbuns de retratos da família estão na arca da garagem Ana disse que viu o mais antigo o de capa de veludo Em cima da arca cobrindoa cadeiras velhas rolos de tapetes caixas molduras Os polvos guardam o mistério do naufrágio Não dá mais tempo entende De fazer o quê Pesquisas digo e fico olhando Lorena saltar a janela com a elasticidade de uma bailarina Apanhou a trouxa de jeans e equilibroua na cabeça Teve um olhar para a janela do seu quarto O que vamos fazer Lião Com ela Se ao menos esse famoso noivo aparecesse Acho que esse famoso noivo não existe Ela fixa em mim o olhar assombrado Desvio o meu Não Lá sei confusões Posso usar cedo o carro da mãezinha Vou levar minha mala pra casa de um amigo perto do aeroporto E outras coiselhas Lógico querida Mãezinha deve ter tomado quilos de calmantes só vai acordar tarde Vejoa atravessar o jardim com todo o cuidado escolhendo onde pisar com a prudência de um gato de luvas Parou no meio da alameda e ficou escutando Prosseguiu Apenas uma silhueta esgarçada na névoa baixou uma névoa branca como suas sandálias Debruço na janela Mais algumas horas Eu devia avisar Lorena que não ficarei aqui nem o tempo de secar a roupa que está levando Lembro da ampulheta quebrada entrei no escritório do pai pra pegar o lápis vermelho e esbarrei no vidro do tempo Fiquei em pânico vendo o tempo estacionado no chão dois punhados de areia e os cacos Passado e futuro E eu Onde ficava eu agora que o era e o será se despedaçara Só o funil da ampulheta resistira e no funil o grão de areia em trânsito sem se comprometer com os extremos Livre Sou digo e tenho vontade de correr até Lorena e avisála que nesse andar de minhocações poderemos participar do próximo congresso de filosofia com as corujinhas de prata na gola ô respiro e olho em frente Na janela iluminada Lorena me faz sinais frenéticos está me chamando com as mãos com a cabeça Quando me vê ir ao seu encontro desaparece Atropelo dois gatos que fogem em direção ao muro piso nas margaridas e chego até metade da escada Estou sem fôlego Minhas pernas se vergam quando ela se debruça na janela escancarada Os olhos também estão escancarados Inclinase Nossas caras ficam tão próximas que nem preciso me erguer no degrau para ouvir Ela está morta Estendo a mão querendo agarrar sua voz através do nevoeiro O que Lorena O que você está dizendo O sussurro é álgido como o hálito de hortelã Ana Clara está morta doze Uma síncope perguntou Lia Foi isso Esperou a resposta imóvel ainda no degrau da escada Não é possível não tem sentido Nenhum nenhum sussurrou para o jardim lá embaixo e que lhe pareceu um jardim já visto num outro tempo numa circunstância assim igual com uma voz debruçada na janela lhe avisando baixinho da morte de alguém A mesma névoa O mesmo oco no peito Mas agora a noite cheirava a pastilha de hortelã Voltouse para a janela Vazia Não é possível disse quando entrou no quarto Lorena estava montada em Ana Clara massageando seu coração Ainda o cheiro frio de hortelã Ou cânfora Fiz uma massagem com álcool e nada Vamos ver agora ai meu Pai Cruzando os braços contra o corpo Lia procurou segurar o tremor que a sacudiu dos pés à cabeça Enrijeceu os maxilares para poder falar Você não sabe Lena vamos chamar um médico O Pronto Socorro chama o ProntoSocorro Madre Alix tem o número Você não sabe fazer isso Sei Estou fazendo exatamente o que deve ser feito disse Lorena empenhandose mais nos movimentos Encarou Lia sem interromper a massagem E baixou a voz como se receasse que Ana Clara a ouvisse Ela está morta Estou apenas tentando não vê Ai meu Pai meu Pai meu Pai Mas não parecia uma piada O menor sentido pensou Lia deixandose conduzir pelo olhar aparvalhado Os sapatos de fivela prateada colocados lado a lado na porta do banheiro A bolsa de verniz no chão junto à cabeceira da cama A manta de xadrez vermelho e verde cobrindo só os pés de Ana Clara melhor mesmo que a manta estivesse ali porque não queria ver seus pés Demorouse em Lorena que lhe cavalgava a cintura sem fazer o menor peso os joelhos fincados na cama a fisionomia endurecida no esforço mais agudo da concentração Uma xícara com um resto de chá no fundo Contornou a caixa de talco com a esponja amarela Lorena ainda não tivera tempo de limpar o talco que caíra na mesa Mais uma vez a bolsa estava entreaberta De novo a xícara e sem resistência o olhar se abateu sobre a face da morta Morta Mas ela não está morta Lia quis gritar Aproximouse mais Ana Clara as espionava pela fresta verde dos olhos Brincadeira não é Aninha A meialua de vidro estrábico estava prestes a se abrir o meio sorriso da boca pronto a se declarar ensaiando dizer qualquer coisa divertida mas por que não dizia Como se de repente achasse mais divertido não dizer Tomoulhe a mão Abriua Na palma um pouco de talco entranhado nas gretas E a lembrança do calor como o ferro de engomar desligado há quanto tempo guarda na chapa uma certa tepidez Dormia na mesma posição que deixei disse Lorena aos arrancos ofegante Fiquei contente porque tinha medo que acordasse e inventasse de sair devia ter um compromisso Guardei sua roupa suja no cesto e botei a mão na testa dela um frio esquisito Então chamei sacudi dei um soco no seu peito um soco às vezes Nada nada Fiz até a prova do espelho peguei meu espelhinho de bolsa ah Lião Mas foi antes de você sair Você acha que foi antes Como posso saber Chegou aqui gritando que estava com um florete enterrado no peito era o coração que devia estar doendo não sei também não sei Lião pelo amor de Deus querida não fale agora comigo Lia aproximouse Dedilhou o pulso estático numa busca tão intensa que acabou por transferir para o pulso da morta o latejar do próprio dedo inflamado Disse da morta Cravou o olhar no corpo seminu sobre o chambre vermelho como estava magra Só agora reparava como tinha emagrecido prestavalhe tão pouca atenção As nódoas roxas na altura dos seios No braço Mas o que foi que lhe fizeram O que foi que ela fez Espera não estava respirando Aquele arfar não vinha lá de dentro Continua Lena não pára acho que ela respirou A voz de Lorena era um murmúrio de mãe que fala já cansada à filha brincando de esconder em algum canto escuro Ana Aninha você está me ouvindo Ana volta Volta Ana obedece eu sei que você ainda está aí eu sei que está Vamos volta Firmavase nos joelhos apertandolhe os flancos entre os pés em ponta voltados para dentro calcando com força na altura dos rins cavalgava leve num galope sem tocar a sela só as mãos subindo e descendo no ritmo que era o da própria respiração Milhares de vezes ela chegou drogada entende Mas o que aconteceu hoje perguntou Lia Milhares de vezes Mas que foi que ela tomou Sob a cortina cega de cabelos a voz de Lorena baixava e subia com o movimento das mãos reduzida a um sopro em certa altura Eia pois Advogada nossa Os vossos misericordiosos olhos a nós volvei A nós volvei exclamou atirando a cabeleira para as costas Estavam doidas essas duas Que brincadeira mais sinistra era essa pensou Lia Quis falar mas não pôde porque agora acompanhava as variações da massagem Lorena era criativa inventava movimentos como esse de lagarta os pulsos colados ao peito de Ana Clara só os dedos se distendendo e se contraindo como lagartas cavando a terra contornando lentamente o coração obstinado Lena e se a gente chamasse As freiras têm experiência Elas não fariam melhor do que estou fazendo Fecha a janela Mas por que fechar a janela e não o tocadiscos tocando e retocando aquele saxofone Arrancou o gorro e a cabeleira subiu elétrica Enfiou de novo o gorro puxandoo furiosamente até o pescoço e girou sobre os calcanhares Abraçouse com força porque o tremor voltara ô o absurdo do saxofone ganindo feito um cão danado Ao mesmo tempo Não sabia explicar mas não era aquela música que criava assim um ambiente de expectativa Enquanto houvesse saxofone e enquanto Lorena continuasse encarapitada lá em cima lutando O silêncio esse era pior do que tudo Despejou uísque no copo e bebeu de olhos fechados se pudesse gritar como se grita na montanha Ou no mar mas gritar até ficar sem voz se exaurir gritando e derrotada gritar ainda enquanto só a voz do outro continua igual Merda disse entre os dentes fechando o copo na mão Eu devia ter feito alguma coisa por ela e o que fiz Discurso Essa puta vocação pra discurso Ninguém podia fazer nada querida Nada E Lorena dominando a situação tensa mas contida ô Lena chega mais perto faça ele funcionar como o relógio o miserável tinha corda e parava de caprichoso mas se a gente com mão ligeira segurasse o pêndulo e fizesse aquele balanço uma duas vezes continue agora sozinho vamos Golpeou a parede com o punho fechado Assim de costas resfolegando sobre o corpo ela parecia empenhada não em fazê lo respirar mas gozar num jogo erótico tão desesperado que Lia precisou morder o lábio para não gritar chega Aproximouse Uma gota de suor escorreu da testa de Lorena e pingou no peito de Ana Clara montaria doce e mole num abandono que contrastava com a tensão da cavaleira firme no seu galope alto Nada Lena Deixa eu ver Com esforço Lorena endireitou o corpo e levantou as mãos para que Lia pudesse encostar o ouvido no peito exposto O frio odor de cânfora Mais no fundo o talco quase tão íntimo quanto o sono Achei que ela estava reagindo hein Ana Clara Não vai mesmo voltar gemeu Lorena torcendo as mãos Madre Alix vai ficar tão triste ai meu Pai me inspire pelo amor de Deus me dê uma inspiração pediu e saltou para o chão Vamos ver com o espelhinho Não adianta chega pensou Lia tapando a cara com as mãos ô a maldita cena do espelhinho refletindo luminoso a boca da boneca aprendera com o tio ele fizera assim na avó Diú e depois não veio aquela resposta sem olhar nos olhos a vovó viajou comprido Dobrou o corpo sacudido por soluços É tão estúpido Cuidado Lião assim você acorda as freirinhas E daí Não posso chorar alto Ela está morta Lena ela está morta Por que você está aí cochichando Por que esse mistério Tenho uma idéia digo depois mas por enquanto não grite pelo amor de Deus calma Calma Mas não vamos acordar Madre Alix Acordar imediatamente todo mundo Não é isso que vamos fazer Espera Lião Por enquanto não vamos acordar ninguém já disse tenho uma idéia Calma sim Esfrego a cara na almofada mas antes que os olhos fiquem outra vez transbordantes vejo Lorena apanhar o missal largou o espelhinho e abriu o missal preto Enquanto durou a massagem esteve corada mas agora está de novo pálida os cabelos detrás das orelhas os lábios crispados Ana Clara também já está numa posição formal o chambre fechado os braços dobrados na altura dos seios Simplesmente repousando depois do banho e do talco Lorena devia estar satisfeita conseguiu darlhe um banho completo antes da morte Quer dizer que a gente vai ficar aqui esperando as freirinhas A polícia É isso que você quer Curtindo aqui a morte com uísque e biscoitos Temos que acordar Madre Alix menina Explicar que não teve nenhum milagre ela esperava um milagre não é bacaninha Um pequeno milagre digo e abafo a boca na almofada ô se pudesse grunhir de dor e raiva Um momento sim fez Lorena com aquele seu gesto que conheço bem Rezava no missal empertigada os lábios se movendo quase silenciosos os olhos transparentes Total beatitude Espero comendo desesperadamente os biscoitos da lata eu explodiria se não tivesse neste instante alguma coisa pra mastigar Em meio da leitura imperturbável pousou a mão na testa de Ana Clara Agnus Dei qui tollis peccata mundi dona ei requiem sempiternam Tenho ganas de lhe atirar a almofada na cabeça agora está brincando de missa Viro mais uísque na goela e quase arrebento de tosse A voz me sai da garganta como uma labareda Lorena tenha juízo e pára com esse teatro entende Você vai chamar Madre Alix e eu vou desaparecer me dê o tempo de fazer a mala e sair não posso ficar nem nas imediações quando essa morte explodir e a polícia se instalar nesta mansarda Conforme os jornais ela morreu devido a uma dose excessiva de barbitúricos sabe o que isso significa não sabe Preciso ir embora digo e enxugo os olhos na manga da camisa não quero chorar e os olhos continuam jorrando feito cascatas Você é perfeita as freiras são santas mas e eu Deixamos o corpo lá no quarto não chamamos ninguém melhor ainda carregamos o corpo Não posso continuar Arranco o gorro e enxugo a cara Ana Clara já virou corpo Nomes apelidos tudo desapareceu e ficou só o corpo Eu disse o corpo Aceitei sua morte E Lorena tomando providências sem maior aflição se chorou foram lágrimas escassas que nem percebi a Loreninha toda composta acendendo seu incenso e pedindo calma Lógico que você precisa sumir querida Deixa o resto por minha conta Que resto Ela sopra a brasa O incenso começa a escapar em fios tênues pelos furos da ânfora dourada Estou com uma idéia já disse Deixa por minha conta Mas quero ajudar putz Melhor que ela fique no próprio quarto podemos levála agora depois você volta e se fecha aqui amanhã vai fazer seu exame não sabe de nada E eu já viajei ontem você nem me viu mais fui pra Bahia pro Alto do Xingu não estava nesta cidade quando ela morreu Fim Não é isso que vamos fazer Chuto a almofada Não não é A idéia é outra Vai Lião não se preocupe comigo pode ir Mas quero saber antes o que você está planejando não vou sair por aí correndo feito rato quero ajudar Que idéia maravilhosa é essa Abriu o armário e está escolhendo um vestido Então a idéia maravilhosa é vestila Evidente que não deve vir mais coisa por aí o modo como me olhou com aquele ar de sacerdotisa A voz de vitral Aperto a mão de Ana Clara Está mais fria ou é apenas impressão Faço um afago nos seus cabelos que se desenroscam entre meus dedos Bem vivo o cheiro de sabonete Puxolhe a orelha e a cabeça resvala obediente para o lado que puxei ô Aninha que confusão menina E na véspera da minha viagem Mas como foi isso Lena Você não disse que ela melhorou depois do banho Que conversou riu Ela não estava melhor Lorena estendeu na cadeira um longo preto com bordados prateados que começam na gola alta e descem com a fileira de botõezinhos até a barra Conversou riu chorou aqueles delírios alguma coisa lúcida no meio ah como é que eu podia saber Viu Deus da outra vez também viu Chamou Madre Alix o namorado achou que ele estava preso acalmeia Pediu uísque prometi que dava no chá Pediu a bolsa dei a bolsa Depois pediu minha mão a última coisa que pediu foi minha mão queria segurar minha mão Inclinouse para procurar alguma coisa na gaveta os ombros sacudidos por um choro silencioso o mesmo choro manso da mãezinha Uísque queria uísque E a bolsa Vejo a cabeça como se ao invés da bolsa estivesse ali no chão uma cobra Entreaberta exatamente entreaberta Enquanto Lorena fazia seus chazinhos enquanto trocava o disco Estava dentro da bolsa foi ali que ela enfiou a mão e trouxe do fundo entende Minha cabeça estala de dor Lorena enxuga os olhos com um daqueles seus lencinhos me deu dois onde foram parar Não quer que a veja chorando precisa ser o bom exemplo chora escondido fingindo que ainda procura coisas na gaveta mas já separou a meiacolante cor de fumaça e o biquíni de renda Apertolhe o ombro por detrás Lena fui rude à beca me perdoa Vai me perdoar Fiquei maluca a viagem essa morte Tudo do melhor e do pior acontecendo junto estou como se tivesse levado uma porretada Tive a intuição Disso que aconteceu digo mais murmurou ela pondo as mãos sobre o vestido Está lívida Meu irmão Remo me mandou este kaftan de Marrocos eu juro que pensei é Aninha que vai vestir isto não vou usar nunca nem me serve imagine Quem vai usar é Aninha Para sempre intuí Tive um estremecimento enquanto fechava a porta do armário era como se estivesse fechando seu caixão Pronto começaram as iluminações Desvio o olhar de Lorena Podre de chique hein Ana Turva Marrocos E combina com os sapatos dela pobrezinha Pena que não tenho umas argolas de prata Ela disse argolas Argolas Vai fazerdeconta que Ana está viva Melhor ainda se lhe vestirmos um cachemort do gênero do cachemisère que mãezinha me deu mais importante do que enfeitar a morte seria escondêla Mas os jovens não precisam baixar a tampa Estou sem cigarro digo e despejo no tapete o conteúdo da bolsa que me espera aberta Rapidamente espalho as milhares de miudezas e procuro E estes envelopes Aspirinas Tem de tudo na bolsa de Ana desde bolotas de algodão usado ate um carretel de linha preta com uma agulha espetada Tem até um relógio de homem Até um pequeno copo de prata com um nome desenhado Maximiliano É esse o amado Não é estranho que ele ainda não saiba Neste instante mesmo deve esperála num bar numa boate Ou no apartamento onde se encontravam Olho o relógio parado na meianoite Também pode ser no meiodia não tem mais o tempo não tem mais a morte ele apenas estranha que ela esteja tão atrasada mas costuma mesmo se atrasar Abro o zíper da bolsinha de plástico estourando de batons lápis de várias cores esponjinhas pincéis Salta como um caroço um vidrinho de delineador verde Nada Mais nada A bolsa voltou ao seu estado de inocência fútil apenas fútil A carteira de estudante é ainda da época em que fez os vestibulares O retrato de cabelos compridos As sobrancelhas mais densas A assinatura numa letra de desafio Ana Clara Conceição Entre o cartão e o plástico o retratinho dele muito risonho e louro radiante na sua malha preta Max o Max do copo etcétera Rasgo o retrato em pedacinhos Aviso Lorena Pegue antes da polícia aquele caderninho de endereços aquele caderninho preto lembra E rasgue os retratos dos cavalheiros que encontrar Pensei que quisesse ver este careta trancafiado mas não Sei lá Não vou deixar nenhuma pista querida Passei minha meninice lendo romances policiais lido bem com os alfinetes disse enquanto abotoa os botõezinhos prateados do vestido Que é que você procura Lião Nada digo apanhando um cigarro Fico olhando o pente que mais de uma vez vi Lorena lavar nos seus preparados cheirando a amoníaco Cubroo com um lenço quando ela se aproxima Tem este relógio e este copo guarda Dou o copo à Madre Alix coitadinha O relógio fica com você não perdeu o seu Fica com ele querida Vai servir muito na viagem decidiu ajustandoo no meu braço É um relógio fino ia ficar com a polícia já pensou Mas não é mesmo impressionante Ana Clara não ter nenhum parente ninguém no mundo ninguém Pensava nisso há pouco não tem uma pessoa sequer a quem avisar nenhuma amiga falava aí nuns nomes mas tudo assim meio no ar Só as freirinhas Nós Nem vou avisar Max o mais prudente é que ele nem apareça coitadinho E esse noivo Esse noivo repito e não tenho forças de encarar Lorena prefiro ficar olhando Ana Clara no seu traje de noite mas é uma festa Cubro o relógio com a mão De tudo ainda me ficou um relógio Incrível Isso dela não ter mais ninguém no mundo Tem outras coisas mais incríveis ainda digo e me aproximo quando a vejo abrir o saquinho plástico que estava na bolsa Mas o que você vai fazer Não era preciso perguntar seus gestos são nítidos Ordenados Tirou o cremebase rosado e começou a maquilar Ana Clara Usa apenas dois dedos na operação mais precisamente apenas a ponta do indicador e do dedo médio espalhando em movimentos circulares a pasta que vai espremendo do tubo Seus movimentos são rápidos De uma eficiência exemplar Muitas vezes ajudei Aninha quando a mão dela tremia demais E ultimamente a mão tremia tanto aparecia aqui completamente turbilhonada não conseguia nem acertar com o pincel na boca do vidrinho já pensou Ai meu Pai Que loucura Diz que loucura tão superficialmente a palavra não correspondendo à ordem que existe neste quarto Nesta morte A importância da aparência mãezinha frisou A náusea me sobe numa golfada até a boca Vou ao banheiro Se metesse o dedo na garganta Mas Lorena já avisou nada de barulho Música pode lá está o disco rodando rodando um pouco mais e a agulha vara o plástico mas choros e vômitos não Por quê Lá sei é ela quem está liderando a noite tem motivos Idéias Foi médico padre e agora está sendo a mais perfeita funcionária da agência fúnebre inspirada em moldes norteamericanos Sem cansaço sem desfalecimento prepara a freguesa como se não tivesse feito outra coisa na vida O apelido na Faculdade é Magnólia Desmaiada Queria ficar de porre entende E não posso ficar de porre Venha Lião venha ver Ah como ela está ficando bonita Lavo a boca e vou ver como ela está ficando bonita Ajoelhada na cabeceira da cama Lorena está sombreando de verde a pálpebra de Ana Clara Às vezes se afasta um pouco para ver melhor o efeito Parece satisfeita o pincel na mão esquerda e a caixinha na direita é canhota Luminosa sob a base rosada a face me parece agora mais distante Desinteressada Será só impressão minha ou a meialua dos olhos diminuiu Está ligeiramente encoberta como se a névoa da noite tivesse chegado até ali Não me lembro de têla visto tão bem vestida e tão bem maquilada como nesta hora Na poltrona as correntes de prata E os colares pergunto O vestido já tem muito bordado fica mais fino assim suspirou ela apanhando a escova Já estão secos pensou Os cabelos Atenção especial para os cabelos Vou buscar o frasco de perfume faço questão de trazer o perfume Este Lena pergunto e não me seguro mais Respiro bem fundo antes de falar Você está exagerando entende Você sabe que está exagerando não sabe Estamos aqui feito duas dementes completas presta atenção Lena vão botar ela numa padiola ou sei lá o que e daqui vai reto pra autópsia sabe o que é autópsia O médico vem e retalha tudo e depois costura Fim Tudo isso que você está fazendo vai ser desfeito na mesa de mármore não tem sentido Lena Não tem sentido Tem sentido sim Me solta querida estamos atrasadas Mas ela não vai pra festa Apanhou no chão os sapatos de fivela e delicadamente calçouos na morta Alisou uma ruga que a meia fizera no tornozelo e sorriu através das lágrimas É aí que você se engana Não querida não estou louca não é nada disso é aquela minha idéia Enquanto rezava lembra Pedi a Deus que me desse uma inspiração e Ele me inspirou A chave do carro não está no seu bolso Eu vi no seu bolso Excelente Um momento deixa eu calçar minha sandália Em duas largas passadas Lia foi até a janela Escancaroua e respirou de boca aberta alisando com as mãos a cabeleira Procurou o gorro no bolso e vagarosamente enterrouo até as orelhas Olhou o casarão Nenhuma estrela Nenhum gato A neblina estava tão densa que chegou a estender a mão como se esperasse encontrar resistência Fechou a janela Lorena já tinha calçado as sandálias e agora dobrava o chambre vermelho Seguroua pelos ombros Lena daqui a pouco amanhece tenho que ir embora antes que amanheça certo Mas não quero te deixar sozinha diga logo qual é essa sua idéia e eu ajudo mas depressa depressinha que no seu relógio já passa das três Sim vamos imediatamente murmurou ela entrando no banheiro o chambre vermelho apertado contra o peito Deve estar se lembrando do irmão com sua camisa vermelha ô que noite Que noite pensou Lia fechando os olhos Ouviu Lorena abrir e fechar o cesto de roupa suja Imagine que tinha esquecido o Agnus Dei na blusa dela estava preso no avesso da blusa coitadinha Foi Madre Alix que deu deixa eu prender vai com ele Por favor querida pegue a bolsa A caderneta está dentro A de estudante Está tudo aqui Ela está tão magra acho que sozinha eu podia carregar mas faz confusão melhor você pegar num braço e eu pego no outro Vamos disse e parou Por que Lorena lhe perguntara se a chave do carro estava no seu bolso Apalpouo Vamos Lena Essa bolsa atrapalha você leva depois Mas a bolsa tem que estar com ela querida Na cama Mas ela não vai ficar na cama disse Lorena Encarou a amiga Ana Clara não vai ficar na cama Não Lógico que não Ela não vai ser encontrada no quarto ela não morreu no quarto morreu noutro lugar Onde Numa pracinha Mas por que você pensa então que fiz esses preparativos todos Vai ficar numa pracinha já passei milhares de vezes por essa pracinha tem um banco debaixo de uma árvore é a praça mais linda que existe É naquele banco que ela vai ficar depois da festa foi a uma festa e na volta sentouse lá Ou foi deixada não interessa Vão encontrála chamam a polícia avisam Madre Alix aquela coisa toda Está entendendo por que a bolsa tem que ir com a caderneta dentro Deus fez com que mãezinha mandasse o carro murmurou Lorena prendendo a relíquia no avesso da gola do vestido Veja que as coisas todas vão se ajustando o carro a neblina Nunca vi uma neblina mais providencial a noite estava claríssima lembra Lia sentouse no chão Fechou a boca perplexa Fungou sacudindo a cabeça repetidamente as duas mãos na cara Riu Lorena você está brincando não está Quer dizer que vamos levar Ana Clara pra rua ou melhor deixála sentada numa pracinha muito jóia e voltarmos É essa sua idéia maravilhosa Lena É essa Foi por isso que me perguntou da chave Do carro da mãezinha Hein Por favor Lião não começa com ironia pense um pouco Ana Clara não pode morrer drogada num quarto do Pensionato Nossa Senhora de Fátima Não pode Sabe o que isso pode significar para as freirinhas Para Madre Alix Ela amava tanto Madre Alix não havia de querer comprometêla num escândalo desses estou fazendo tudo como Aninha gostaria que fosse feito Deus me inspirou pedi inspiração e Ele me deu depois que tive essa idéia cheguei a sentir uma certa paz Posso mudar querida Se a morte não tem remédio posso ao menos salvar as circunstâncias Você quer dizer as aparências Lião querida compreendo perfeitamente é um risco grande para você não estou pedindo que me ajude é lógico Mas eu vou fazer tudo exatamente como calculei não adianta discutir mais disse e voltou a olhar para o relógio Tenho meia hora para ir e voltar já pensou Me ajude só na escada e depois faço tudo sozinha me dá a chave Deixo na sua janela quando voltar Com passos decididos Lia aproximouse da morta Prendeu a alça da bolsa na cintura e coçou com força o nariz os olhos Estou com uma puta alergia quando fico nervosa começa essa coceira Tenho um antialérgico quer Não agora quero é pegar esta moça Vamos Não esquecemos nada Lorena correu e desligou o tocadiscos A luz fica acesa que pensem que passei a noite estudando com um colega elas devem ter ouvido algum movimento Irmã Bula principalmente Por isso o saxofone gemendo a noite inteira Ela pensa em tudo murmurou Lia esfregando o nariz na manga Teve um sorriso Pegou Ana Clara nos braços Deixa pediu quando Lorena foi ao seu encontro Na escada você me ajuda Leve sim Eu sabia que ela é leve eu já sabia Abro a janela para que a luz ilumine mais a escada Dividimos o peso agora Lião vai na frente segurandoa pelas pernas e eu vou atrás sustentandolhe o tronco Seu corpo verga docemente como uma rede Sinto seu perfume Bom terlhe dado aquele banho Bom ter baixado essa névoa Não deixe cair o sapato digo quando o pé de Ana Clara se enrosca no gradil Também tinha pensado nisso que a escada seria a prova mais difícil é estreita demais e nem podemos ofegar Aninha é leve quando transportada numa superfície plana Nestes degraus todos tão estreitos Também sabia que Lião é mais desajeitada tem força mas se afoba quase cai se me descuido rolamos as três pela escada abaixo Está arfando e para compensar respiro o mais silenciosamente possível ai meu Pai nos ajude agora nos ajude que está demais difícil Não Ana não escorregue querida por que de repente você está resistindo Facilite não fique se jogando assim a pracinha é linda você vai gostar de ficar lá no banco a árvore tem passarinhos já pensou Depois Madre Alix fala com o Max quem sabe sua morte vai ajudálo O milagre que não aconteceu com você já pensou Me ajude meu Pai Me ajude Cuidado Lião Mais devagar querida Vamos parar um segundo Paramos Sustento a cabeça de Aninha no meu joelho enquanto enfio as mãos por dentro das suas mangas para segurála melhor pelos braços Sinto nos dedos suas axilas ainda outro dia lhe emprestei o aparelho está no quarto dela Uma gilete novinha E me lembro da tarde quando foi em que estávamos as três no meu quarto eu passava a lixa na perna Aninha pinçava as sobrancelhas com minha pinça e Lião recortava qualquer coisa num jornal Quando levantou o braço usava um camiseta sem mangas me levantei e fui correndo buscar a gilete pelo amor de Deus Lião passa a gilete nessa axila Ela obedeceu e fez sua distinção Axila é quando está raspado entende Sovaco é quando não se raspou disse e eu agora me lembrando de uma tolice dessas Com vontade de rir como naquele dia Vamos Lena Já descansou Sim vamos Vamos Como não reparei antes nesta escada Mas é compridíssima Não acenderam uma luz perguntou Lião Aquilo não é uma luz Não tem importância elas não podem nos ver sussurro mais no ouvido de Ana Clara do que no de Lião Estamos no finzinho só mais um pouco Quase corremos quando chegamos na alameda Um gato começou a miar desatinado ótimo mia mais meu gatinho cubra com seus miados nossos passos que parecem moer os pedregulhos outra coisa que eu não tinha reparado na indiscrição desses pedregulhos O barulho que eles fazem Não chuta assim querida Mas quem é que está chutando Fecha esse bico Lena Não fecho quero falar falar o tempo todo agora que estamos chegando quase no portão a primeira etapa já passou aleluia Olhamos A rua está deserta pelo menos até o limite onde podemos enxergar porque além é só um muro esfumaçado O Corcel opaco sem contorno Sustento o corpo de Ana contra o portão enquanto ela abre a porta ah bendita seja mãezinha com sua generosidade bendita seja a noite e as casas com seus olhos fechados Agora pode ir querida eu digo Daqui por diante me arrumo sozinha o pedaço mais complicado já passou Ela me ajuda a sentar Ana Clara no banco da frente Em seguida entrou Sentouse ao lado enlaçoua e bateu a porta Eu seguro você guia disse sem me encarar Mas vamos Enxugo os olhos Acendo os faróis Ah Lião Ela está sorrindo de dentes cerrados Você é demente mas não vou te deixar sozinha nisso Vai ser muito divertido se nos pegarem transportando um cadáver ô que divertido disse e sacudiu a cabeça rindo abertamente Transportando um cadáver em plena madrugada eu de passaporte na mão Mas não é original Começo a rir também quando vejo através do espelho seu gorro preto enterrado até as sobrancelhas Recostada na almofada a cabeça de Ana Clara parece descansar tão naturalmente não vejo o braço de Lião apertando seu peito contra o banco como uma trave que estamos exatamente como eu tinha planejado duas amigas conduzindo uma terceira que bebeu e dormiu Não vão nos pegar querida E um cadáver de morte suspeita prosseguiu abrindo uma fresta na janela Você não estuda Direito Putz sabe que estamos ligeiramente ilegais não sabe Você pensa em tudo Pense numa resposta ao policial Guio devagar com a cara quase encostada no vidro ai meu Pai a neblina amigainimiga se cerrou mais tenho a impressão que penetro numa nebulosa os faróis tão pobres não permita que venha nenhum carro agora agora não eu peço e continuo falando Lião está de bom humor precisamos estar de bom humor Digo que Ana chegou péssima resolvemos levála a um Pronto Socorro e nos perdemos na madrugada quem é que não se perde numa madrugada dessas Você é imaginosa Lena Cabecinha privilegiada a sua Mas tem uma coisa que se chama autópsia o legista vai dizer que ela está morta há mais tempo do que você afirmou Ou não Quase me esqueço dessa palavra Autópsia O final fino como um estilete O mármore O rigor da mão profissional cortando tão profissionalmente ainda o perfume de sabonete ainda o talco De qualquer maneira ela está tão bonita não está doutor Tão bem maquilada tão limpa Eu sei que o senhor executa sua tarefa a frio mas desta vez vai recebêla com mãos diferentes a beleza ainda emociona Você me acha louca Lião Bastante Mas eu também entende E esta aqui do nosso lado Não se preocupe sei lá É longe Essa pracinha já estamos rodando há horas Depressa Lena afunde esse pé no acelerador estamos feito tartarugas Não quero lhe dizer que não posso correr mais do que estou correndo porque não enxergo nada Estamos chegando calma Você desce primeiro aqui do banco empurro o corpo que você vai receber e levantar fica com ela abraçada em pé Depois saímos eu de um lado você do outro está me compreendendo Lião Perfeitamente Então vem o guarda da pracinha e nos ajuda certo Não tem nenhum guarda Olha é aqui Ai meu Pai chegamos chegamos está vendo a árvore Vamos sair conversando bem naturais Desligo o motor Apago os faróis Beijo os pés de Deus santificado seja o vosso nome Olha primeiro do seu lado Ninguém Ela abre a porta Ninguém Depressa Fico de joelhos no banco e empurro Ana Clara para as mãos estendidas de Lião A cabeça tomba e me fere o lábio quase digo cuidado Aninha Quando desço Lião a enlaça como se fossem sair dançando as duas o braço estendido para a frente procurando agarrar lhe a mão Conseguiu palma contra palma Flexionouo e trouxeo para o ombro num movimento tão doce que por um instante tive a sensação de que Ana Turva comovida resolveu colaborar enlaçandoa A tarefa de Lião foi a mais dura avaliei seu esforço quando me coloquei do outro lado e sem dificuldade tomeilhe o braço pendente e passeio em volta do meu pescoço A pracinha redonda como a copa azulcinza da árvore me pareceu mais íntima mais secreta assim fechada pela neblina Quero me lembrar de um verso de Garcia Lorca e não me lembro mas cito ao acaso precisamos ir falando falando em voz baixa mas falando como duas delirantes amparando uma terceira a mais trôpega e a mais bonita onde foi a festa Intima como uma pequena praça a idéia é essa mas não lembro uma poesia de Lorca você conhece Não me lembro de nada acho que esqueci tudo e nunca mais vou lembrar entende nunca mais vou lembrar de nada nada Lião fica repetindo enquanto olha para os lados Os bicos dos sapatos de Ana Clara resvalam pela areia tão branca quanto a neblina Lião procura erguêla mais alto e não consegue Adivinho os sulcos que os bicos dos sapatos vão deixando na areia e penso que na volta preciso desfazer esse rastro Ouço um motor pesado caminhão passando próximo Se afasta Olha o banco Podíamos descansar ali um pouco hein Lião Quem sabe eu lembro da poesia fala de uma pracinha como esta Deserta não Que é aquilo lá adiante Lá É só um pinheirinho Deserta Mas e a poesia lembra Perfeitamente Lembro lembro Depressa Lena Você não quer sentar um minuto Sentouse arrastando Aninha que quase lhe desaba do colo A pedra do banco está gelada Mas seu rosto está igual ao banco Depois de sentada contra a árvore ela mesma tombou para o lado que quis e ali ficou equilibrada a face na pedra as mãos aconchegadas contra o peito Faço da bolsa o travesseiro tomando o cuidado de não marcarlhe o queixo com o fecho Cubro seu tornozelo com o vestido Arrumo a fivela do sapato que entortou na caminhada Limpo a poeira Lena vamos Vamos Aperto suas mãos geladas penso em abrilas mas se ela preferiu assim Nós te amamos muito Deus te guarde Lião me enlaça e me arrasta É de Lorca você tem razão é sobre uma praça Você disse íntima Não posso falar estou chorando e desfazendo nas solas das sandálias a marca que ela deixou Entramos no carro Ouço o queixo de Lião batendo Ou é o meu Contorno a pracinha mas já não vejo nem o banco nem a visitante só a copa da árvore no nevoeiro E a noite começou com estrelas Tão grandes digo Procuro a flanela Limpo o párabrisa O perfume de Ana Clara ainda está entre nós Mas Lião deve ter tido o mesmo pensamento abriu uma fresta na janela O bebezinho Lorena O bebezinho erótico putz Que bebezinho Aquele dependurado aí no espelho Fiz minha doutrinação e colou seu chofer sumiu com ele Perfeito perfeito São essas coisas que me dão esperança murmurou relaxando o corpo Acho que faz um mês que não durmo ô Lena Lena vai dar certo não vai Não sei se ela está falando de Ana Clara ou da viagem Da viagem lógico lógico Vai ser maravilhoso querida Tenho a intuição vai ser maravilhoso E sinto uma brutal vontade de alegria Vontade de rir falar com as pessoas dizer tolices escrever tolices Ai meu Pai a prova É tempo de entrar me enfiar num chuveiro tomar um copo de leite quente vontade de leite apagar as pistas no quarto de Aninha e ir correndo para a Faculdade É preciso sair antes que Antes Mas não é mesmo maravilhoso Lião Quando a gente está do lado de Deus digo e breco o carro Mas Deus está deste lado Beijoa de leve enxugo as últimas lágrimas não vou chorar mais e guardo meu lencinho no bolso Temos milhares de coisas que falar Lião Milhares Evidente Ficaríamos aqui falando até o fim dos tempos vamos saia Depressa Lena Descemos Estamos tremendo de frio Ouço o sininho da sua corrente fazer dlimdlim mas nesta noite ele já tocou outras vezes Olho a barra da sua calça E os cabelos que escapam do gorro esfiapados na ventania É a despedida mas não é para dizer que é a despedida Vamos Lena entra depressa Você vai na frente Mas não fique aí me olhando está quase amanhecendo A cruz lembro Ponho na sua janela no lado de fora não se esqueça de pegar Não vai esquecer Certo perfeito Não esqueço agora anda Abro o portão Quando me volto ela está no mesmo lugar rindo Levanta o braço na saudação de mão fechada Mandolhe beijos bem diáfanos nas pontas dos dedos Saio correndo subo a escada em três lances encolheu pego a cruz dentro da caixinha desço de novo atravesso o jardim e a deixo na janela Lião já está lá dentro e sei que me viu mas disfarçou Quando fecho a porta do meu quarto tenho que parar e ficar respirando Respirando Ligo a vitrola e ao acaso sem trapaça escolho um disco Fico sorrindo quando ouço o que escolhi Vou reto até a cama faço uma trouxa apertada de roupa abro o cesto e empurro a trouxa para dentro A tampa resiste resmunga salta duas vezes mas na terceira tentativa se acomoda e fica fechada A banheira ainda com a água do banho Um tênue caracol de espuma flutua na superfície já fria Volto a cara meto a mão na água e arranco a borracha do ralo Enquanto espero olho os sais do vidro nunca vi pepitas de ouro mas devem ser assim as tais pepitas Abro o jorro de água quente e quando me inclino de novo para a banheira o depósito que adivinhei no fundo já foi levado embora Escolho no armário a roupa de cama verde A toalha de banho pode ser branca Abro o chuveiro e sinto na boca o calor da fumaça A de fora já está se dissipando e aqui começa outra ah não esquecer de avisar à menina de Santarém que se aparecer um gatinho malhado atendendo pelo nome de Astronauta Gatinho Mas ele não cresceu Enfim um gato malhado Me avise e será fartamente recompensada E se uma voz meio velada me chamar no telefone voz de homem que prefere não deixar o nome Me vejo de perfil no espelho esfumaçado Fim Este livro foi confeccionado nas oficinas da Gráfica Editora Bisordi Ltda na Rua Santa Clara 54 Brás São Paulo para a Livraria José Olympio Editora na Rua Marquês de Olinda 12 Botafogo Rio em outubro de 1974 ano do SÉTIMO CENTENÁRIO DA MORTE DE Santo Tomás de Aquino 1225 1274 SEXTO CENTENÁRIO DA MORTE DE Francesco Petrarca 2071304 1971374 TRICENTENÁRIO DA MORTE DE John Milton 9121608 8111674 BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE Hipólito José da Costa 1381774 1191823 SESQUICENTENÁRIO DO JURAMENTO DA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Constituição Política do Império do Brasil 2531824 E DA MORTE DE Antônio de Morais Silva 181755 1141824 CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE Raul Pederneiras 1581874 1151953 CINQÜENTENÁRIO DA MORTE DE Vicente de Carvalho 541866 2241924 e 43 da fundação desta Casa httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros
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lygia fagundes telles 5ª edição ROMANCE AS MENINAS Lygia Fagundes Telles As Meninas httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras OBRAS DA AUTORA Praia Viva contos São Paulo Livraria Martins Editora 1944 O Cacto Vermelho contos Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras São Paulo Editora Mérito 1949 Ciranda de Pedra romance Rio de Janeiro Edições O Cruzeiro 1954 4a edição Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1973 Histórias do Desencontro contos Prêmio Instituto Nacional do Livro Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1958 Verão no Aquário romance São Paulo Livraria Martins Editora 1963 3a edição Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1973 Histórias Escolhidas contos Prêmio Boa Leitura São Paulo Livraria Martins Editora 1964 Gaby novela em Os Sete Pecados Capitais obra coletiva Rio de Janeiro Editora Civilização Brasileira 1964 O Jardim Selvagem contos Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro São Paulo Livraria Martins Editora 1965 Trilogia da Confissão em Os 18 Melhores Contos do Brasil trabalhos premiados no 1 Concurso Nacional de Contos promovido pelo Governo do Paraná Rio de Janeiro Bloch Editores 1968 Antes do Baile Verde contos Rio de Janeiro Bloch Editores 1970 2ª edição revista e aumentada prefácio de Fábio Lucas Rio de JaneiroBrasília Livraria José Olympio EditoraInstituto Nacional do Livro 1971 Prêmio Guimarães Rosa da Fundepar Paraná Seleta Organização estudo e notas da professora Nelly Novaes Coelho Rio de JaneiroBrasília Livraria José Olympio EditoraInstituto Nacional do Livro 1971 LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA apresenta o romance de LYGIA FAGUNDES TELLES As Meninas Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras 5ª EDIÇÃO 1974 RIO DE JANEIRO Capa Eugenio Hirsch Contracapa Foto Pirozelli Copyright 1973 by Lygia Fagundes Telles Direitos desta edição reservados à LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA SA Rua Marquês de Olinda 12 Rio de Janeiro República Federativa do Brasil Printed in Brazil Impresso no Brasil FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pelo Centro de Catalogaçãonafonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros GB Teles Lygia Fagundes 1923 T272m As Meninas por Lygia Fagundes Telles 5ª ed Rio de Janeiro J Olympio 1974 266 p 21 cm 1 Romance brasileiro I Título 740398 CDD 86993 CDU 8690 8131 NOTA DA EDITORA DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DA AUTORA Lygia Fagundes Telles é paulista filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário de Azevedo Fagundes Passou a infância no interior do Estado em pequenas cidades onde seu pai foi delegado e promotor público Areias Assis Apiaí Sertãozinho Voltando à capital cursou o ginásio do Instituto de Educação Caetano de Campos tendo sido aluna do professor Silveira Bueno de quem recebeu os primeiros incentivos para a carreira literária Durante o curso secundário escreveu suas primeiras histórias reunindo as num pequenino livro que viria a destruir anos depois porque em sua opinião a pouca idade não justifica o mau livro Hoje uma jovem de quinze anos fuma bebe lê Kafka discute sexo enfim ousa tudo Eu com essa idade era só ignorância e medo Diplomandose na Escola Superior de Educação Física ingressou então na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco estava ainda na Faculdade quando seu livro de contos Praia Viva foi publicado pela Martins em 1944 Foi publicado pela Martins em 1944 Em 1949 já casada e residindo no Rio de Janeiro publicou pela Editora Mérito O Cacto Vermelho contos Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras Seu primeiro romance Ciranda de Pedra saiu em 1954 nas Edições O Cruzeiro e alcança agora a quarta edição lançada por esta Casa Histórias do Desencontro Prêmio do Instituto Nacional do Livro foi editado por nós em 1958 Cinco anos depois a Martins publicou Verão no Aquário cuja terceira edição apresentamos em nossa Coleção Sagarana Histórias Escolhidas Prêmio Boa Leitura lançouo a Martins em 1964 No mesmo ano Lygia contribuiu com a novela Gaby para ilustrar o capitulo reservado à Preguiça na coletânea Os Sete Pecados Capitais pela Editora Civilização Brasileira e na qual colaboraram também João Guimarães Rosa Otto Lara Resende Carlos Heitor Cony Mário Donato Guilherme Figueiredo e José Condé Em 1965 seu livro de contos O Jardim Selvagem Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro foi editado pela Martins Trilogia da Confissão trabalho premiado no I Concurso Nacional de Contos promovido pelo Governo do Paraná figura hoje em Os 18 melhores contos do Brasil volume lançado em 1968 por Bloch Editores que também publicara em 1970 os contos enfeixados em Antes do Baile Verde cuja segunda edição revista e aumentada foi por nós publicada em 1971 em convênio com o INL Traduzido por Georgette Tavares Bastos o conto Antes do Baile Verde conquistou em 1969 em Cannes o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros em língua francesa ao qual concorreram 360 manuscritos de 21 países Em 1971 lançamos em nossa Coleção Brasil Moço e também em convênio com o INL uma Seleta de Lygia Fagundes Telles com organização estudo e notas da professora Nelly Novaes Coelho Lygia Fagundes Telles é procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo Casada com o crítico de cinema e professor universitário Paulo Emílio Salles Gomes mora atualmente na capital paulista Tem um filho adolescente Goffredo Telles Neto Integra o Corpo Deliberativo de Cultura do Estado de São Paulo A convite de instituições culturais tem pronunciado conferências em cidades brasileiras bem como nos Estados Unidos Também em Portugal onde tem diversos livros publicados Foi distinguida pela Fundepar do Paraná por seu conjunto de obra Premio Guimarães Rosa 1972 Rio de janeiro setembro de 1974 Ana Clara não envesga disse a irmã Clotilde na hora de bater a foto Enfia a blusa na calça Lia depressa E não faça careta Lorena você está fazendo caretaA pirâmide As Meninas um Sentei na cama Era cedo para tomar banho Tombei para trás abracei o travesseiro e pensei em MN a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar o tio da Lião disse isso mas ele não sabe a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que MN vai dizer e fazer quando cair meu último véu O último véu escreveria Lião ela fica sublime quando escreve começou o romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego Imagine pêssego Dezembro é tempo de pêssego está certo às vezes a gente encontra as carroças de frutas nas esquinas com o cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a cidade inteira fica perfumada já é sublimar demais Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte tudo em latim Imagine se entra latim no esquema guevariano Ou entra E se ele gostava de latim Eu não gosto Nas horas nobres deitava no chão cruzava as mãos debaixo da cabeça e ficava olhando as nuvens e latinando a morte combina muito com latim Não tem coisa que combine tanto com latim como a morte Mas aceitar que esta cidade cheira a pêssego exorbita Qué ciudad será esa ele perguntaria na maior perplexidade Tercer Mundo Terceiro Mundo Y huele a durazno Na opinião de Lia de Melo Schultz cheira Ele então fecharia os olhos onde eram os olhos e sorriria um sorriso onde era a boca Estoy bien listo con esas mis discípulas Enfim problema dela o meu é MN um MN nu em pêlo muito mais em pêlo do que eu ele é peludo à beca assim na base do macaco Mas um macaco lindo a cara tão intelectual tão rara o olho direito um pouco menor do que o esquerdo e tão triste todo um lado da sua cara é infinitamente mais triste do que o outro Infinitamente Eu poderia ficar repetindo infinitamente infinitamente Uma simples palavra que se estende por rios montes vales infinitamente compridos como os braços de Deus As palavras Os gestos se renovando como a pele da cobra rompendo lisa sob a pele velha E não é viscosa toquei nela na fazenda era verde e espessa mas não viscosa O gesto de MN também novo não é verdade que tudo será como das outras vezes ele virá de pele limpa inventando o inventado nas suas minúcias Se Deus está no pormenor o gozo mais agudo também está na miudeza ouviu isto MN Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços a cena do biquíni não tinha a menor importância mas assim que começava a tirar os cílios era a glória Os olhos nus Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo Pura convenção achar o sexo obsceno E a boca Inquietante a boca mordendo mastigando mordendo Mordendo um pêssego lembra Se eu escrevesse começaria uma história com esse nome O Homem do Pêssego Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite um homem completamente banal com um pêssego na mão Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos fechando um pouco os olhos como se quisesse decorarlhe o contorno Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vincos como riscos de carvão mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego Fiquei fascinada Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com as pontas dos dedos As narinas dilatadas os olhos estrábicos Eu queria que tudo acabasse de uma vez mas ele parecia não ter nenhuma pressa com raiva quase esfregou o pêssego no queixo enquanto com a ponta da língua rodando o nos dedos procurou o bico Achou Eu estava encarapitada no balcão do café mas via como num telescópio achou o bico rosado e começou a acariciálo com a ponta da língua num movimento circular intenso Pude ver que a ponta da língua era do mesmo rosado do bico do pêssego pude ver que passou a lambêlo com uma expressão que já era sofrimento Quando abriu o bocão e deu o bote que fez espirrar longe o sumo quase engasguei no meu leite Ainda me contraio inteira quando lembro oh Lorena Vaz Leme não tem vergonha Não diz em voz alta o Anjo Sedutor Acendo depressa um tablete de incenso oh mente pervertida Queria ser santa Pura como esse perfume de rosas que se enrola em mim e me dá sono Astronauta também sentia sono quando eu acendia o incenso E se espreguiçava como me espreguiço foi com ele que aprendi a me espreguiçar Gato à toa por onde você anda Hein Dava aulas diárias de preguiça e luxúria mas nunca repetia os movimentos todo bailarino devia ter um gato A astúcia Ao mesmo tempo o abandono O desprezo pelas coisas realmente desprezíveis E aquele cálculo e fixação Todo feito de delicadezas perigosas meu gato Ou Demônio Nas pausas das lições ficava me olhando tão mais consciente do que eu na minha inconsciência como é que eu podia saber Ainda nem conhecia MN não ficava horas e horas minhocando como tenho minhocado ai meu Pai Só Jesus compreende e perdoa só Ele que já curtiu como nós Jesus Jesus como eu te amo Vou pôr um disco em sua homenagem espera ofereço música assim como Abel oferecia ovelhas é lógico que ovelha é muito mais importante mas Jesus sabe que tenho horror de sangue minhas oferendas só podem ser musicais bem Hendrix Escuta meu amado escuta esta última musiquinha que ele fez antes de morrer morreu drogado o pobrezinho todos eles morreram drogados mas ouça e sei que você vai baixar a mão até sua carapinha cheia de suor e poeira dear Jimi Num salto elástico Lorena se atirou na cama de ferro dourado da cor do papel da parede Ensaiou alguns passos de dança levantou a perna até tocar com o pé descalço na barra de ferro e saltou para cair na estreita listra azul do tapete de juta Aprumouse sacudiu a cabeleira para trás e olhando em frente foi se equilibrando na listra até chegar ao tocadiscos Jimi Jimi onde você está perguntou ela examinando a pilha dos discos na prateleira da estante Vestia um leve pijama branco com florinhas amarelas e tinha no pescoço uma corrente com um coraçãozinho de ouro Segurou o disco nas pontas dos dedos E você Rômulo Onde agora Apertou os olhos úmidos e colocou o disco no prato Mansamente levantou a agulha e a conduziu como o bico de um pássaro cego até a vasilha dágua Deixoua tombar Lorena A voz vinha do jardim Rapidamente ela arrepanhou a cabeleira torceua na nuca e pôsse nas pontas dos pés Abriu os braços Foi andando na listra em caracol do tapete tensa como uma equilibrista num fio de arame Lorena bota a cabeça na janela quero falar com você Ela vacilou perigosamente o pé direito plantado na listra o esquerdo em suspenso no ar Descontraiuse quando conseguiu pousar o esquerdo na frente do outro sem perder o equilíbrio chegara ao fim da travessia Inclinouse para os lados numa profunda reverência os braços em arco para trás as mãos se tocando como pontas de asas entreabertas Agradeceu recuando um pouco o sorriso modesto posto no chão Mas empolgouse ao colher uma flor no ar beijoua atiroua triunfante para as galerias e voltou rodopiando à janela Acenou para a jovem que esperava de braços cruzados no meio da alameda Levou as mãos ao lado esquerdo do peito e suspirou com ênfase Minha amada seja bemvinda Veja que dia É primavera Lião primavera Vera é verdade prima naturalmente primeira a verdade primeira Hum Numa manhã assim tenho que me segurar senão saio voando olha as margaridinhas abriram todas Apontou o canteiro embaixo da janela Coisa mais jóia Bom dia minhas margaridinhas Lorena será que você podia me dar um pouco de atenção Fala Lia de Melo Schultz fala Com um movimento brusco Lia puxou as grossas meias brancas até os joelhos A sacola de couro resvalou para o chão mas ela se concentrava nas meias atenta como se esperasse vêlas escorregar em seguida Apanhou a sacola Será que amanhã sua mãe podia me emprestar o carro Depois do jantar Digamos às nove entende Lorena debruçouse na janela Sorriu Suas meias estão caindo Ou enforcam os joelhos ou ficam desabando Olha aí No começo este elástico apertava de deixar a perna roxa Mas que idéia querida usar meia com este calor E sapatões de alpinista por que não calçou a sandália Aquela marrom combina com a sacola Hoje tenho que camelar o dia inteiro putz E sem meia dá bolha no pé Provavelmente nas solas Cafonérrimo Pior do que bolhas só os tais joanetes de Irmã Bula Joanete deve vir de Joana houve uma antiga Joana com os primeiros pés deformados e os netos herdaram a deformação e viraram os joanetos Ai meu Pai Primavera eu apaixonada e Lião falando em bolha no pé Tenho umas meias tão bacanas ainda nem usei quer ir com elas Só se forem francesas entende São suíças minha queridinha Não gosto da Suíça é limpa demais E nem vão servir imagine ela deve calçar quarenta Que idéia usar meias que engrossam os tornozelos a coitadinha está com patas de elefante Ainda assim emagreceu subversão emagrece Lião Lião ando tão apaixonada Se MN não telefonar me mato Estou demais aperreada para ficar ouvindo sentimentos lorenenses ô Miguel como preciso de você Falo baixo mas devo estar botando fogo pelo nariz Lena escuta eu não estou brincando E eu estou Por que essa pressa Suba venha ouvir o último disco de Jimi Hendrix faço um chá tenho uns biscoitos maravilhosos Ingleses pergunto Prefiro nossos biscoitos e nossa música Chega de colonialismo cultural Mas nossa música não me comove querida Se os seus baianos dizem que estão desesperados acredito acho ótimo Mas se vem John Lennon e diz a mesma coisa então vibro fico mística Sou mística Você é fresca Fresca Lião Você disse fresca repete ela Debruçouse mais na janela e em meio do riso envesgou botou a língua pra fora e colou os polegares na cabeça Abanou as mãos como orelhas ô é preciso ter saco pra agüentar essa menina Loreninha é sério Preciso do carro amanhã digo Não me ouviu Ficou de repente angelical enquanto acena para alguém do casarão Madre Alix Madre Alix que abriu a janela e corresponde ao cumprimento a mão erguida no estilo da rainha da Inglaterra Mas assim que a freira foi embora fez a careta maior a que costuma reservar para o fim Ô Miguel segure as pontas você disse É o que procuro fazer Mas às vezes fico oca está vendo Não sei explicar mas e duro demais cumprir a rotina queria ser presa ficar no seu lugar por que não fui presa em seu lugar Queria morrer A Faculdade ainda está em greve gemeu Lorena bocejando Apontou para minha sacola Que é que você tem aí Metralhadora Aprumouse como se manejasse uma o olho cerrado na mira os ombros sacudidos pela descarga tequetequetequetequeteque Apontou para o casarão tequetequeteque Descarregou em Irmã Bula que finge que brinca com a Gata mas está atenta em nós Estou sorrindo porque sei que é exatamente assim que Miguel reagiria Loreninha não começa não gosto dessa brincadeira Vai pedir o carro Devolvo no dia seguinte como da outra vez Não tem problema Vocês deviam sequestrar o MN Lião Por que é que não seqüestram o MN Ele ficaria escondidinho debaixo da minha cama per omnia secula seculorum Amen Acendo um cigarro Que me importa dormir no meio dos bêbados das putas o cigarro aceso no meu peito dói sim mas se soubesse que você está livre dormindo na estrada ou debaixo da ponte Mas livre Não sei agüentar sofrimento dos outros entende o seu sofrimento Miguel O meu agüentaria bem sou dura Mas se penso em você fico uma droga quero chorar Morrer E estamos morrendo Dessa ou de outra maneira não estamos morrendo Nunca o povo esteve tão longe de nós não quer nem saber E se souber ainda fica com raiva o povo tem medo ô como o povo tem medo A burguesia aí toda esplendorosa Nunca os ricos foram tão ricos podem fazer as casas com as maçanetas de ouro não só os talheres mas as maçanetas das portas As torneiras dos banheiros Tudo de puro ouro como o gangster grego ensinou na sua ilha Intactos Assistindo da janela e achando graça Resta a massa dos delinqüentes urbanos Dos neuróticos urbanos E a meia dúzia de intelectuais Os simpáticos simpatizantes Não só explicar mas tenho mais nojo de intelectual do que de tira Esse ao menos não usa máscara ô Miguel Precisava tanto de você hoje esta vontade de chorar lá sei Mas não choro Nem tenho lenço Lorena não acharia fino limpar meu nariz na fralda da camisa Lorena me empresta um lenço estou resfriada digo tenho vontade de esfregar esta cara molhada de lágrimas Mas que lenço Não quero lenço quero o carro Quero o carro Lorena Posso contar com você Tenho branco rosa azul e verdemalva Ah e um turquesa olha que lindo este turquesa Então Lia de Melo Schultz que cor a senhora prefere Fico olhando a caixa de lenços que ela foi buscar Guarda tudo em caixinhas de pano florido essa é de papoulas vermelhas e azuis com fundo preto Tem ainda as de prata e couro que ficam nas prateleiras da estante E sinos Por onde o irmão Passa manda um sino Outros colecionam selos um outro coleciona gravatas e lá adiante um entra na fila de cinema Maurício aperta os dentes que se quebram Não quer gritar e então aperta os dentes quando o bastão elétrico afunda lá no fundo No desenho animado o gato leva um trompaço e dentes e ossos se trincam Mas na cena seguinte já se colam e o gato volta inteiro Seria bom se fosse como nos desenhos Silvinha da Flauta Gigi japona E você Maurício Quando o bastão entrar mais fundo desmaia Desmaia depressa morra Devíamos morrer Miguel Em sinal de protesto devíamos todos simplesmente morrer Morreríamos se adiantasse você disse Lembra Eu sei ninguém daria a mínima Arrancaríamos o coração do peito olha aqui meu sangue olha aqui meu coração Mas tem um tipo ao lado engraxando os sapatos que cor de graxa o cavalheiro prefere O verde Tiro da caixa o verdemalva que está em terceiro lugar na Pilha Tão delicados os lencinhos que Remo mandou de Istambul adeus meu lencinho Lião é capaz de limpar os sapatões em você mas pense no if dos lenços a poeira é tão digna quanto as lágrimas Não será uma poeira lunar tão branquinha tão fina a Poeira terrestre é da pesada principalmente essa dos sapatos da minha amiga Mas não se importe não seja lenço Soltoo no espaço Abriuse leve como um páraquedas que Lião apanha impaciente Você está deprimida Lião Angústia existencial Exato Existencial Está furiosa comigo ai meu Pai Mudou tanto coitadinha Quer dizer que Miguel continua preso E aquele japonês E Gigi E outros estão caindo quase todos que loucura E se de repente ela Ana Clara já viu um careta meio suspeito rondando o portão Aninha mente demais é lógico mas isso pode ser verdade Sim Pensionato Nossa Senhora de Fátima nome acima de qualquer investigação Mas quando aparece agora nome de padre e freira no horizonte já ficam todos de orelha em pé Devolvo amanhã diz ela dobrando o lenço Fique com ele imagine Quer levar mais um Atirolhe o lenço corderosa que não se abriu como o verde Por que meu coração também se fecha Rômulo nos braços de mãezinha procurei um lenço e não vi nenhum seria preciso um lenço para enxugar todo aquele sangue borbulhando Borbulhando Mas que foi isso Lorena Brincadeira mãezinha eles estavam brincando e então Remo foi buscar a espingarda corra senão atiro ele disse apontando Está bem não quero pensar nisso agora agora quero o sol Sento na janela e estendo as pernas para o sol Fico vermelha e queria ficar marrom olha que cor O Fabrizio disse que meu apelido na Faculdade é Magnólia Desmaiada já pensou E o velho Nada ainda Conto até dez antes de responder grrrrr Por que chamar MN de velho Primeiro ele não é velho Segundo ela sabe que sou do gênero enrolado as coisas comigo não se resolvem assim Terceiro qual é o terceiro Estou me esforçando para parecer inatingível Ficou de telefonar para jantarmos Você vem com a gente Estou precisada é de um banguebangue Cinema imagine Zona perigosa tem milhares de zonas perigosas onde a mulher dele ou a prima Acho que o melhor lugar para a gente se ver é o hospital porque se o mundo é grande aquele hospital ainda é maior Doutor Marcus Nemesius está eu pergunto e a enfermeira principal fala com a subordinada e a subordinada fala com a subordinada da subordinada que por sua vez fala com aquela lá longe a que escapou da corrente e o sapato branco a memória branca Por acaso é você que está esperando o doutor Melloni ela vem e pergunta depois de duas hora e meia Não esse não Por acaso estou esperando o doutor Marcus Nemesius ele está Acabou de sair ela diz Não serve outro médico Se ele não telefonar vamos nós Lião Tenho oriehnid até para caviar Russo Não querida do Irã O melhor caviar do mundo Remo meu irmão mandou uma lata Estou comovida Mas fico com minha empada da esquina Aqui tem a sopinha o picadinho com o jeito assexuado das freiras mas é sempre melhor do que essas coisas que ela come pela rua E nem toma mais banho coitadinha Antes enchia minha banheira e lá ficava tão feliz um dia até pediu os sais Você mudou Lião Pra pior perguntou ela abrindo o lenço e se assoando Bossa escapamento aberto Nesse ponto os bichos são tão mais bacanas nunca vi Astronauta se assoar em público Buracos demais secreções demais Ai meu Pai Comer empadas no café que loucura Mas se viesse com a gente acabava envenenando nosso encontro adora fazer ironias que MN finge que não entende tão sólido Tão seguro Mais vinho Lião O vinho ela aceita Também aceita a lagosta fala lagostim Mas precisa lembrar a estatística das criancinhas morrendo de fome no Nordeste esse assunto de Nordeste às vezes exorbita Não sei até quando a gente vai ter que carregar esse povo nas costas horrível pensar isso mas agora já pensei e estou pensando ainda que se Deus não está lá é porque deve ter suas razões Ah Sou um monstro Monstro Queria tanto ser diferente mas queria tanto E esta vocação para a mesquinharia Ai meu São Francisco minha Santa Teresa son tan escuras de entender estas cosas interiores Devolvo amanha diz Lião guardando o lenço na sacola Não vai devolver e lógico E nem eu aceitaria lenço é como escova de dentes não se pode emprestar Igualzinha a Ana Clara que até agora não aprendeu esta coisa tão simples não se emprestam objetos pessoais Lia Lia chama Irmã Bula da janela do casarão A voz é de um gnomo da floresta saindo de dentro de um tronco de árvore Quer gritar telefone para você Leva a mão ao ouvido como se virasse uma manivela nos telefones do seu tempo tinha que virar a manivela Ou nasceu antes ainda Deve ter uns duzentos anos Lião está com medo Ana Clara também posa de indiferente mas se não toma tranqüilizante recomeça naquele delírio ambulatório Com a maior semcerimônia do mundo abriu minha caixa de lençopapel e levou mais da metade anda com montes de folhas para se limpar depois do amor O certo seria tomar um banho em seguida é lógico higiênico e poético correr nua até o chuveiro No campo correr debaixo da cascata chuáaaaaa Mas fazer a toalete como uma doméstica apressada Certos gestos e palavras de Ana Clara coitadinha Tudo está nos detalhes as origens a fé a alegria Deus Principalmente as origens Lá sei das minhas me disse quando ficou de fogo Nem quero saber A margaridinha aí embaixo pode dizer a mesma coisa nada sei da minha raiz Mas e a gente Nem pai nem mãe Nem ao menos um primo Não tem ninguém Pelo visto a Bahia inteira deve ser da parentela de Lião mas Ana Clara é o avesso do quadro familiar Nem uma tiazinha para lhe ensinar que tudo que se faz antes e depois do amor deve ser harmonioso É antiestético masturbarse Não propriamente antiestético mas triste No tempo em que Lião fazia milhares de pesquisas fez uma entre as meninas da Faculdade quantas se masturbavam Incrível o resultado entre as virgens Incrível Estamos saindo da Idade Média disse ela examinando a pupilada Heranças das nossas mães e avós entende Somadas nos hábitos da adolescência dá essa porcentagem alarmante Você também se masturba perguntou cravando em mim o olho negro da inquisição Duas abelhinhas louras dessas que só fazem mel e amor pousaram no meu pé primeiro uma e depois a outra Afasto as brandamente o gesto tem que ser brando para que não se sintam rejeitadas viu MN Se você não me quiser é assim que deve fazer comigo vai minha abelhinha vai Antes de voar a maiorzinha delas esfregou as duas patinhas dianteiras como quando se lavam as mãos e em seguida esfregou uma das patas até a extremidade do abdômen listrado de amarelo Não deu Para ver onde exatamente a mão foi parar mas se Lião fosse pesquisar também entre as abelhas tu quoque bestiola Bestiola é inseto E abelha Enfim ela perguntou e se não respondi com maior nitidez foi porque nunca podia bem alcançar aquela tarde lá atrás Masturbação Aquilo Treze anos lição de piano O Camponês Alegre Participei tanto da alegria que a banqueta oscilava Para a frente e para trás o ritmo se acelerando acelerando A ânsia no peito o sexo pisoteando a almofada com a mesma veemência das mãos martelando o teclado sem vacilação sem erro Nunca toquei tão bem como naquela tarde o que hoje me parece complacente extraordinário Desci da banqueta como de um cavalo Na hora do jantar mãezinha me beijou toda comovida Ouvi seu piano enquanto mexia a goiabada você tocou divinamente Então fiquei sorrindo para o prato meu primeiro segredo Rômulo atirou em mim uma bolota de miolo de pão e Remo enfiou um besouro no meu cabelo mas quando fomos para a varanda me senti luminosa como uma estrela E se Rômulo não viesse me assustar com um lençol poderia ter permanecido mais de dois minutos em levitação A segunda vez também foi na fazenda enquanto tomava banho Ainda por acaso Entrei na banheira vazia deiteime no fundo e abri a torneira O jorro quente caiu no meu peito com tamanha violência que escorreguei e ofereci a barriga Da barriga já pisoteada o jato passou para o ventre e quando abri as pernas e ele me acertou em cheio senti num susto a antiga exaltação artística mais forte embora dessa vez não tivesse o piano Fechei os olhos quando Felipe cruzou e recruzou meu corpo com sua moto vermelha Felipe o do blusão preto e moto Escondi nas mãos a cara querendo fugir e ao mesmo tempo colada ao fundo da banheira com a água subindo destemperada já me cobria inteira as borbulhas rebentando no meu queixo por que não abri o ralo Saciada e insaciada ela ou eu pedia mais a boca Penetroume encachoeirada tapoume o nariz pronto vou morrer pensei num salto Fugi aos pulos Era o amor Era a morte Uma coisa só respondi num verso Nesse tempo escrevia versos A Gata aproximouse da sacola que Lia deixara no meio da alameda Cheirou o couro desconfiada Sentouse meio de lado por causa da barriga E ficou olhando para Lorena encarapitada na janela do quarto Esse quarto e o banheiro disso Lorena estava certa foram do motorista da família dona do casarão Embaixo a garagem do carro provavelmente antiquado Em cima senhor absoluto o chofer desordeiro e sensual amante da copeira que se chamava Neusa nome escrito muitas vezes com o bastão de barba ou desodorante branco na parede caiada de azul Dela ficaram alguns grampos apontando por entre as gretas do assoalho E o perfume de jasmim num frasco quebrado no ladrilho do banheiro Com uma pequena reforma sua menina poderá ficar muito bem aqui disse Irmã Priscila com um otimismo que contagiou Lorena agarrada ao braço da mãe que por sua vez segurava firme no de Mieux Voltou para ele a cara perplexa nessa época o consultava até para saber se devia ou não tomar uma aspirina Dê sua opinião querido Não vou gastar demais Isto está um horror queixouse repugnada com o perfume de jasmim misturado ao cheiro de urina Mieux piscou para Lorena Ficava eufórico quando podia mostrar seu prestígio Vai ficar a coisa mais jóia do mundo já estou com umas idéias Quero este banheiro todo corderosa é importante que ela se sinta num ninho quando se despir para o banho disse ele atirando a ponta de cigarro no vaso rachado Bateu a porta atrás de si e cheirou o lenço Este quarto imagino amarelo bem claro tenho o papel de parede a cama dourada ali naquele canto A estante e a mesa naquela parede Neste espaço o armário embutido Ali a minigeladeira e o barzinho hem Loreninha Apanhou no chão uma carta de baralho era uma damadeespadas Colocoua de pé na frincha da porta E como mãezinha ia na frente e Irmã Priscila se ocupava em fechar a janela ele aproveitou e passou a mão na minha bunda Aconteceu alguma coisa pergunto à Lião que voltou correndo Arfava Chutou uma bola de jornal que a Gata estraçalhou O chá que ofereceu ainda está valendo Agora aceito essa taça Mais um telefonema desses e entorto completamente Tiro depressa o pijama e visto a malha preta de bale Ouço Lião subindo a escada degrau por degrau Na alegria ela sobe em três saltos coitadinha O namorante preso o ano estourado por faltas a mesada estourada antes do tempo mais da metade dá ao tal grupo Ai meu Pai Posso baixar isto pergunta ela indo reta na direção do toca discos Baixou tanto que a voz de Jimi Hendrix virou voz de formiguinha debaixo da mesa Acendo o fogareiro elétrico faço mais dois movimentos para desenvolver o busto e abro na mesa a toalha Pego as xícaras Os pratos Trago a cestinha de pão com a fita vermelha entrelaçada por entre a tessitura da palha dando a volta toda até o encontro das pontas para o laço Fico admirando a graça do estampado da toalha com suas grandes folhas de uma tonalidade verdequente por entre as quais espia meio escondido o olho asiático de uma ou outra laranja O prazer que encontro neste simples ritual de preparar o chá é quase tão intenso quanto o de ouvir música Ou ler poesia Ou tomar banho Ou ou ou Há tantas pequeninas coisas que me dão prazer que morrerei de prazer quando chegar a coisa maior Será mesmo maior MN Me mato se ele não telefonar digo abrindo os braços e indo na ponta dos pés até a geladeira Tenho uvas e maçãs maravilhosas querida Lia sentouse no tapete e começou a roer um biscoito Está sombria como um náufrago comendo o último biscoito da ilha Catou os farelos que se entranharam nas pregas da saia mas por que essa saia hoje Apesar do popô de baiana exorbitar acho que ainda fica melhor de jeans Problemas Lena Problemas ô esqueça disse tentando aplacar com as mãos a cabeleira crespa Cravou em mim o olho objetivo Não deixe de pedir ouviu Atirolhe uma maçã Em sua honra botei na mesa uma toalha nova não é linda Diga que é você quem vai usar entende O quê O carro Lena pára de sonhar presta atenção você vai pedir o carro à mãezinha Deitome de costas e vou pedalando Posso chegar a duzentas pedaladas Este exercício é ótimo para engrossar as pernas incrível como minhas pernas são finas Você teria que pedalar ao contrário para afinar as suas digo e seguro o riso Ela mordeu a maçã com tanta fúria que senti o reflexo no meu joelho que estalou Depois do jantar Lorena Não esqueça depois do jantar está me ouvindo Diga que é pra você Carro carro A máquina está varrendo a beleza da terra ai meu Pai E vamos entrar na Era do Aquário quer dizer domínio da técnica mais máquinas O trânsito aéreo balões e jatinhos individuais o céu preto de gente Não quero nem saber fico lendo meus poetas em cima de uma árvore deve sobrar alguma Comprei ontem uma edição linda de Tagore digo me sentando no tapete Junto as palmas das mãos no peito Velo ao longo das noites por aquele que me roubou o sono Construiu as paredes daquele que derrubou as minhas Passo a vida colhendo espinhos e semeando flores Choro por beijar aquele que não me conhece mais Ela atiroume um olhar baixo Deu uma risadinha e falou de boca cheia Não precisa fazer tanto basta não querer roubar o homem da próxima aprendeu Madame Tagore Mas ele não gosta mais dela querida Acabou o amor acabou tudo Só se pertencem nos papéis Você acha pouco Eu me ficho com isso mas precisa ver se ele também se ficha E onde a novidade nesse poema Tudo isso está na Bíblia Lena Você não lê a Bíblia Pode procurar está tudo lá Recomeço a pedalar com mais energia Comprei Proust não é fino MN tem paixão por Proust Vou ter que ler mas confesso que acho um pouco sobre o chato Grrr Romance de grãfino e grãfino de antigamente é o fim Nunca tive sacola pra isso disse ela e tirou o cigarro da própria Vou correndo buscar um cinzeiro e na volta destapo a chaleirinha A água está quase fervendo não deixar nunca a água do chá ferver o paizinho ensinou Desligo o fogareiro e vou deixando cair o chá na água Aspiro de olhos fechados o perfume enquanto ponho o cinzeiro debaixo de Lião que não sabe onde jogar os restos da maçã Seguro o microfone invisível e me aproximo de joelhos Ela prendeu o cigarro entre os dentes Por obséquio queria sua opinião sobre alguns problemas importantes da nossa comunidade digo levantando mais o microfone Antes de mais nada pode declinar seu nome Lia de Melo Schultz Profissão Universitária Ciências Sociais E podese saber sua atual situação naquela casa de ensino Rodei este ano Faltas Tranquei a matrícula Muito bem muito bem E o livro Disseramme que tem um livro quase pronto Segundo a informação tratase de um romance não Rasguei tudo entende disse ela soprando a fumaça na minha cara O mar de livros inúteis já transbordou Ora ficção Quem é que está se importando com isso Deixei o microfone Rasgou Não tinha vocação coitadinha Mas gostava tanto de escrever suas histórias naqueles cadernões de capa engordurada para onde ia levava aqueles cadernos A cidade cheirando a pêssego imagine Ofereçolhe um cacho de uvas mas ela recusa Não sei o que dizer agora Tão lúcida quando fala mas quando escreve fica tão sentimental oh a lua o lago Sabe da novidade Lião Vai chegar uma poetisa do Amazonas já pensou Só pode ser índia Vai ficar no seu quarto querida Entregolhe a xícara de chá fumegante Pede mais açúcar e fica mexendo o chá e me olhando Por que no meu quarto Você aqui nesta mansarda e ainda com banheiro putz índio gosta de banho O quarto de Ana Clara também pode abrigar uma tribo Não lá não imagine A índia em estado natural Ana Clara vai buleversar a coitadinha Mas até janeiro ela já não está casada com o industrial Guiando um Jaguar preto com almofadas vermelhas Um diamante do tamanho de um pires no dedo E um casaco de onça até a ponta do pé Pooodre de chique Reviro os olhos e imito Aninha quando respira o ar de femme fatale Mas Lião continua sombria Vai mal a Ana Turva De manhã já está dopada E faz dívidas feito doida tem cobrador aos montes no portão As freirinhas estão em pânico E esse namorado dela o traficante O Max Ele é traficante Ora então você não sabe resmungou Lião arrancando um fiapo de unha do polegar E não é só bolinha e maconha cansei de ver a marca das picadas Devia ser internada imediatamente O que também não vai adiantar no ponto em que chegou Enfim uma caca Abro as mãos no tapete Examino minhas unhas Divinomaravilhoso se o noivo milionário se casar com ela Empresto o oriehnid para a plástica na zona sul ele só se casaria com uma virgem ela tem que ficar virgem Ai meu Pai Você acredita que casamento rico vai resolver perguntou Lia Teve um sorriso triste Devia se envergonhar de pensar assim Lorena E vai sair casamento O moço então não está sabendo de toda essa curtição Ao invés de ficar pensando num milagre do casamento você devia pensar num milagre de verdade entende Não sei explicar mas vocês cristãos têm uma mentalidade tão divertida Vou até a chaleira e encho novamente as xícaras Paro no meio do caminho Ele cantava drogado essa voz meio rouca não é de drogado Voz turbilhonada de quem pede socorro mas não quer ser socorrido Ontem ela estava tão lúcida Diz que Madre Alix ajuda vai recomeçar com a análise Quem sabe hein Lião Você acha que nessa altura uma análise vai funcionar Teria que ser um analista bossa São Sebastião aquele das flechas bonito e bom Então ela se apaixonava por ele e se salvava pelo amor como nas revistinhas que adora ler E mais o Jaguar e o tal casaco Lorena me entrega a xícara com seus fagueiros desenhos de pássaros e florinhas A toalha de linho combina com a xícara uma toalha com uma exuberante estamparia tropical As poltroninhas claras Os objetos raros Tudo aqui é muito fagueiro muito bonito Você ainda é rica Lorena Ela ficou séria Relaxou o exercício A tal agência de publicidade de Mieux deu em nada Com a loja de decoração mãezinha gastou à beça E continua gastando uma sede de novidades Parecem aqueles milionários americanos na Europa dos anos vinte sabe como é Sei lá Eu perguntei se você tem dinheiro Defendo minha parte Por quê Está precisando Lião Despejo mais chá na xícara Um chá danado de bom Pulo Lorena que parou de pedalar e agora faz exercício respiratório já me explicou que tem a respiração solar e a respiração lunar Acho que vou precisar Lena Para umas operações bem diferentes das de Ana Turva Ai meu Pai Morro de pena dela Morre de pena de todo mundo Vai ver morreu também de pena de mim quando disse que rasguei tudo Não é uma forma de esconder seu sentimento de superioridade Ter pena dos outros não é se sentir superior a esses outros Rasguei o romance eu disse E ela ficou quieta Bebo o chá morno Uma boa menina Ana Clara também é uma boa menina eu também sou uma boa menina Como vai a coleção pergunto examinando os sinos arrumadinhos na prateleira Meu irmão Remo prometeu um dos beduínos lá da Tunísia ele agora está em Túnis mora numa casa linda em Cartago já pensou Cartago ainda existe Lião Delenda delenda Mas ainda existe Outro dia me pediu toda excitada pra ir a uma das reuniões do grupo essa Lorena que está aí tocando seus sininhos tlimtlim tlem tlem tlomtlom Pensa que nossas reuniões são daquele estilo dos festivais de contestação iria com essa malha botas e um cachecol vermelho pra quebrar o pretume Os intelectuais com seus filminhos do Vietcong Há tanta fome e tanto sangue na tela de lençol Tão terrível ver tanta morte putz Como pode meu Deus como pode Revolta e náusea Náusea sartriana murmura uma convidada bisonha Que se cala quanto sente no escuro os olhares gelados na sua direção Silêncio novamente só o zunido exasperante do projetor a curtição é longa tem filme à beça esperando nas latinhas As luzes se acendem mas as caras demoram pra acender que horror Uísque e patê pra aliviar o ambiente Considerações sobre prováveis nomes nas próximas listas Voltam os filminhos de respectivas latas enquanto aos poucos voltam todos às respectivas casas Os que não têm carro pedem carona nos carros disponíveis que vão pro mesmo lado São bem humorados os intelectuais Até piadas Mas justiça seja feita estão vigilantes Sobretudo enturmados pudera se reunindo como se reúnem Sabem que você foi preso e torturado menino corajoso esse Miguel é preciso ter coragem bravo bravo Sabem que a Silvinha da Flauta foi estuprada com uma espiga de milho o tira soube do episódio do romance alguém contou e ele achou genial Milho cru ou cozido perguntou o outro e ele deu pormenores Milho esturricado aqueles grãos espinhudos Os intelectuais estão comovidos demais pra falar só ficam sacudindo a cabeça e bebendo A sorte é que o uísque não é nacional Um ou outro mais fanático se irrita com o tom dos encontros afinal não reuniu só pro queijo e vinho quando as notícias são as piores possíveis Eurico continua sumido foi preso assim que desembarcou e até agora ninguém sabe dele Desapareceu como personagem de ficção científica quando o homem metálico emite o raio e o tipo se dissolve com revólver e tudo e fica no lugar uma manchinha de gordura O Japona deixou uma maleta na casa do irmão avisou que ia buscar no dia seguinte Este é grego Lião Veja que som divino Contei que rasguei meu livro e foi como se dissesse que rasguei o jornal Não gosta do que eu escrevo Ninguém gesta deve ser uma bela merda Mas as pessoas sabem o que é bom O que é ruim Quem é que sabe E se for válido Não devia ter rasgado coisa nenhuma Mas sei de cor posso aproveitar o texto talvez num diário Gostaria de escrever um diário Estilo simples direto Dedicava a ele Perfeito Perfeito repetiu e apanhou a sacola Não vá esquecer Lena O carro Lia de Melo Schultz se você falar nisso mais uma vez me mato Olha fique com este sininho bota no pescoço Quando a gente se perder você faz blemblem e já sei onde está todo mundo devia andar com um sininho como as cabras Brandamente Lia sacudiu o pequeno sino de bronze Sorriu para a amiga enquanto procurava tirar do pescoço o cordão preto Baixou o olhar úmido Fica junto com este orixá presente da minha mãe Preciso escrever comprido pra mãe Outra carta pro pai eles são opostos Ao mesmo tempo iguais Quando não mando notícia cada qual vai chorar no seu canto um escondido do outro Queriam tanto ver a filha recebendo o diploma Noivando Noivado na sala e casamento na igreja com vestido de abajur Arroz na despedida Os netos se multiplicando embolados na mesma casa casa enorme tinha tanto quarto não tinha Aqui também chegou a praga dos apartamentos escreveu o pai na última carta Nosso bairro está sendo invadido mas resistiremos Quando você chegar e encontrar uma única casa em toda a cidade pode entrar que é a nossa Se meu amado telefonar você vem jantar com a gente Lia fica me olhando Está pensando em quê Lião Faz um agrado na minha cabeça e vai saindo com ar de quem carrega nos ombros o peso do mundo Subo o volume da vitrola Get out of here ele grita já rouco Espio pela janela Desceu a escada nos seus três saltos e agora está exatamente no lugar onde esteve antes de subir Hesita ainda como se tivesse esquecido de dizer algo importante não lembra Abriu a sacola espiou dentro Roeu sem maior interesse a unha do dedinho e apanhou um pedregulho Atirouo para o alto É o carro querida Fique tranqüila sabe que mãezinha já me deu um Nem fui buscar o cheque já pensou Você fica com uma chave detesto guiar ih as caras que as pessoas fazem quando guio Ela está concentrada inteira num ponto atrás de mim e que se distancia e se perde como a pedra que atirou no ar Faço caretas sei fazer caretas ótimas nem Remo nem Rômulo sabiam fazer caretas como eu mas Lião só se interessa pelo pontinho lá longe e que parece ter voltado e caído dentro dela A cara se buleveram como a superfície de um poço quando a pedra afunda Não estacione no portão pare na esquina Se sair deixe a chave na estante Aí numa dessas suas caixinhas Naquela de prata em forma de trevo querida Sabe que eu sei que anda num imbróglio dos demônios mas sabe também que respeito seu segredo A pedra repousa no fundo das águas complacente Requiescat in pace Faço sinal para que ela se aproxime mais Quem é que tinha um hímen complacente Ela agora ri como nos bons tempos ria Franziu a cara batida de sol Resolva logo Lena Mas não é o que estou querendo pergunto e lá no escuro me respondo acho que não estou querendo não A alegria que me dá a idéia de ver em torno a promiscuidade dos sexos se dando sem amor por aflição desespero E o meu Virgo et intacta Abro os braços Que dia maravilhoso Se Ana Clara aparecer diga que preciso daquele dinheiro que emprestei Oriehnid Lião oriehnid grito e levanto o braço direito o punho fechado na saudação antifascista Ela prende o cigarro nos dentes fecha a mão e torce a munheca Banana Lião Isso é uma banana Afastase a passos largos e pelo jeito de balançar a cabeça imagino que está sorrindo Atravessa o jardim como um soldado em dia de desfile a mochila ao lado as meias desabando podem desabar toque toque toquetoque Abriu o portão com um gesto desabrido heróico gesto de quem assume não o seu caminho prosaico demais imagine mas o próprio destino Antes mesmo de chegar à esquina as meias já desabaram completamente Ai meu Pai E justo a mãezinha fornecendo condução para o aparelho Pode ter um daqueles ataques se souber dois Coelha Ei Coelha você está dormindo perguntou ele Sacudiua pelos ombros Que é que você tem que não se mexe Ana Clara esforçouse por abrir mais os olhos Em torno do olho esquerdo desenharase uma orla de carvão na medida do aro negro de um soco Esfregou os olhos com os nós dos dedos e o delineador de pálpebras marcou também o outro olho Voltouse sono lenta para a fumaça espessa que o abajur projetava no cone de luz Beijou o ombro nu do jovem disfarçando o bocejo numa mordida Estou quase desmaiando amor Tão bom Max Então por que está assim gelada Ahn Parece que estou trepando num pingüim você já viu um pingüim Ela enrolou e desenrolou no dedo um anel de cabelo É que hoje não estou brilhante Queria que me dissesse o dia em que esta brilhante resmungou ele sentandose na cama Max eu te amo Eu te amo Ele coçou a cabeça com as mãos em garra Cocou o peito reluzente de suor Voltou a coçar a cabeça Mas não gosta de fazer amor Coelha É importante fazer amor ahn Ando meio travada Preciso falar com meu analista fiz uma puta confusão com essa análise Diga que você se contrai no amor feito ostra quando se pinga limão nela Ih vontade de comer umas ostras com vinho branco bem gelado disse ele estirando os braços Tenho nojo de ostra não posso nem ver Uma droga de bicho Ele procurou no chão as calças amontoadas ao lado da poltrona Tirou do bolso o maço de cigarros e sacudiuo fazendo cair na palma da mão um pequeno embrulho de papel de seda Uma dose adamada pra Coelha e outra pra mim ahn Com isto engrena Ela puxou o lençol até o pescoço Engrena nada Se ao menos engrenasse mesmo e eu subisse pelas paredes de tanto engrenar e a cabeça deixasse roqueroque de pensar só coisas chatas Mas por que minha cabeça tem que ser minha inimiga pomba Só penso pensamento que me faz sofrer Por que esta droga de cabeça tem tanto ódio de mim Isso nenhum analista me explicou isso da cabeça Só de porre me deixa em paz essa sacana E aquele besta me esperando enquanto descasca seu pãozinho descasca o pãozinho com a unha até ficar só o miolo feito rato É minha cabeça que ele descasca roqueroque Bastardo Hoje não posso demorar muito amor digo Ele apanha no chão os copos vazios pisca um olho e vai para a cozinha levando os copos e o balde gelo Abriu a geladeira Abraço o travesseiro Dormir dormir Dormir até rachar de dormir sem nenhum sonho que sonho só serve pra encher o saco Tem uns bons Aqueles Por que nunca posso dormir o quanto quero Por que tem sempre alguém me cutucando vamos fazer um amorzinho vamos fazer um amorzinho Mas que amorzinho que nada Max eu te amo Eu te amo mas não sinto nada nem com você nem com ninguém Faz tempo que já não sinto nada Travada Tinha outra palavra que ele gostava de dizer qual era mesmo Esse Hachibe Como vou sentir prazer com aquele escamoso se com este daqui que eu amo Já está lá sentadinho com o pãozinho na mão tem sempre um me cutucando pra fazer amor e outro me esperando em alguma mesa Vou da cama pra mesa e da mesa pra cama Bloqueada agora lembro bloqueada É só comigo que você é assim fria ele perguntou Aquele escamoso Anão pretensioso É que sou virgem meu bem Me desculpe mas sou virgem e virgem não pode vibrar como Ele então me olhou com aquele olho indecente e riu Tudo pivô pomba Pensa que só eu Também ele com dinheiro e tudo entrou bem em matéria de dente Infância pobre ombro pobre cabelo pobre Tenho um metro e setenta e sete Sou modelo Uma beleza de modelo O que mais você quer Bastardo Se esta cabeça me desse uma folga pomba Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona Contente Semente torrada com sal é bom pra lombriga ainda tenho o gosto e também daquele remédio nojento Não quero a semente mãe quero a história Então à meianoite a princesa virava abóbora Quem me contou isso Você não mãe que você não contava história contava dinheiro A carinha tão sem dinheiro contando o dinheiro que nunca dava pra nada Não dá ela dizia Nunca dava porque era uma tonta que não cobrava de ninguém Não dá não dá ela repetia mostrando o dinheirinho que não dava embolado na mão Mas dar mesmo até que ela deu bastante Pra meu gosto até que ela deu demais Uma corja de piolhentos pedindo e ela dando O mais importante foi o Doutor Algodãozinho Max você está aí Sabe como se chamava meu dentista Doutor Algodãozinho Max despejou uísque no copo Sacudiuo e o depósito de poeira esbranquiçada ameaçou subir Algodãozinho Doutor Algodãozinho Aperta o copo na mão Quando Lorena sacode a bola de vidro a neve sobe tão leve Rodopia flutuante e depois vem caindo no telhado na cerca e na menininha de capuz vermelho Então ela sacode de novo Assim tenho neve o ano inteiro Mas por que neve o ano inteiro Onde é que tem neve aqui Acha lindo neve Uma enjoada Trinco a pedra de gelo nos dentes Às vezes dorme com o Pato Donald Fica apertando a barriga dele coem coem Enjoada Com a ponta da língua empurro o pedaço de gelo até o céu da boca Na realidade o céu é lá em cima sem nenhuma dor O inferno começa em seguida com as raízes Tanta raiz se entrelaçando umas nas outras Solidárias Ele vivia trocando o algodão dos buracos dos dentes passava semana mês ano e ele vinha com aquele algodãozinho na pinça ficou sendo o Doutor Algodãozinho Mas você tem bons dentes ahn Não tem Coelha Meu lindo Meu inocente amor Tenho Então o Doutor Algodãozinho era bom Era Era ótimo Mudava o algodãozinho enquanto o buraco ia aumentando Aumentando Cresci naquela cadeira com os dentes apodrecendo e ele esperando apodrecer bastante e eu crescer mais pra então fazer a ponte Uma ponte pra mãe e outra pra filha Bastardo Sacana As duas pontes caindo na ordem de entrada em cena Primeiro da mãe que se deitou com ele em primeiro lugar e depois Fui passando pela ponte a ponte estremeceu água tem veneno maninha quem bebeu morreu Quem bebeu morreu Ela cantava pra me fazer dormir mas tão apressada que eu fingia que dormia pra ela poder ir embora duma vez No cinema tinha sempre uma mãe cantando romântica prós filhinhos abraçados nos bichinhos de pelúcia Avó também costuma contar histórias mas por onde andava minha avó era uma coisa que eu gostaria de saber Queria ter uma avó como Madre Alix Ter uma avó como Madre Alix é ter um reino Freira pode ser avó amor Responde pode Ele está de costas escolhendo os discos Podre de lindo assim nu Pomba tenho vontade de chorar de amor porque ele é lindo Um sol Acho que primeiro me apaixonei pelos dentes os dentes são perfeitos não pode haver uma boca mais perfeita Te amo Max Te amo mas em janeiro meu boneco Em janeiro vida nova Tirar o pé da lama Você já foi rico agora é minha vez não posso Ano que vem stop Um escamoso mas podre de rico Então Este é o meu corpo disse ele levantando o disco bem alto Beijouo Este é o meu sangue Tenho ódio de Deus digo virando a cara De Deus ou dessa música Dessa música Tenho ódio dessa música ódio ódio Lorena também tem mania Uns negros berrando o dia inteiro um berreiro desgraçado Tenho ódio de negro Mas Doutor Algodãozinho era branco Olho azul o sacana Esse era o apelido mas e o nome Doutor Hachibe disse que a gente expulsa tudo que foi ruim e se for assim esse maldito nome não vou lembrar nunca Mas lembro o apelido Que é que adianta apagar o nome se ficou o roqueroque das ratazanas gordas lá da construção dia e noite roqueroque no escuro Mas esses futos não deixam a gente formir gritava o Téo que era desdentado e trocava as letras pelo f Mas dormia A mãe também dormia Até que dormia bem aquela lá Mas eu ficava acordada pensando roqueroque A sala de espera com a negra de lenço amarrado na cara inchada A cestinha de flores artificiais cobertas de poeira A negra e eu éramos as clientes mais assíduas com nosso cheiro de Cera Doutor Lustosa quando doía demais a gente tirava o algodãozinho e enchia o buraco com a cera que espalhava na boca inteira aquele cheiro que era cheiro do céu Dona Inês falava tanto em céu céu Só experimentei no instante em que o nervo deixou de me fisgar e dormiu completamente encerado Então eu dormi junto O cheiro dessa cera misturado ao cheiro de creolina são os dois cheiros fortes que me empurram até a infância a cera queimando no dente e a creolina que vinha da lata branca onde o Doutor Algodãozinho ia jogando os algodões usados Outro cheiro que ficou fazendo parte dos cheiros é o de mijo Mijo mesmo e não pipi ouviu Lorena Cheiro de pipi até que fica perfumado quando é dito por você que abotoa a boquinha perfumada com pastilhas de hortelã SenSen Refresca tanto o hálito ela me disse com o hálito refrescado Masco meu chiclé para disfarçar o meu chiclé é mais forte mais fácil ah sim eu sei que não é fino O fino é o SenSen Não é por acaso que você tem sempre alguns sutilmente se diluindo na boca Então o pipi fica cheirando a SenSen mas aquele da construção era cheiro de mijo Outro que devia usar essas pastilhinhas era o Doutor Algodãozinho que cheirava a cerveja choca Até hoje não posso nem ver cerveja porque ele me atendia depois do jantar hora dos clientes mais miseráveis e no jantar naturalmente emborcava sua meia garrafinha Filhodaputa Queria botar a broca no dente dele zzzzzz e varar o dente assim bem no fundo zzzzzzzzzzzz e varar a carne e varar o osso zzzzzzzzzzzzzzzz Me abraça Coelha estou com frio me abraça depressa que de repente ficou o Pólo Norte com urso e tudo não quero o abraço dele quero o seu Coelha que gostoso ficar assim com você bem queridinha tenho vontade de chorar de tão bom Ouça essa música ouça Então ele disse que precisava arrancar os quatro dentinhos da frente porque estavam perdidos que é que adiantava ficar com aqueles dentinhos perdidos Comecei a chorar e ele me consolava alisando o guardanapo que prendeu no meu pescoço com a correntinha o melhor era botar ali uma ponte que ninguém ia notar porque ia fazer uma ponte na perfeição como fez a ponte de minha mãe e ia fazer a do Téo Enxuguei as lágrimas no guardanapo sentindo na nuca o frio da correntinha que me beliscava a pele não era uma correntinha igual a sua Max Ou igual a de Lorena com seu coraçãozinho de ouro Aquela era escura e prendia um guardanapo que tinha uma mancha de sangue numa das pontas O sangue endurecido O fecho machucava meu pescoço principalmente depois que ele começou a alisar o guardanapo com mais força enquanto repetia a beleza que a ponte ia ficar Mais perto o cheiro de cerveja e mais perto o olhinho azul como conta por detrás do vidro sujo dos óculos A mão gelada e fala quente mais rápida mais rápida a ponte A ponte Fechei a boca mas ficou aberta a memória do olfato A memória tem um olfato memorável Minha infância é inteira feita de cheiros O cheiro frio do cimento da construção mais o cheiro de enterro morno daquela floricultura onde trabalhei enfiando arame no rabo das flores até chegar à corola porque as flores quebradas tinham que ficar de cabeça levantada na cesta ou na coroa O vômito das bebedeiras daqueles homens e o suor e as privadas mais o cheiro do Doutor Algodãozinho Somados pomba Aprendi milhões com esses cheiros mais a raiva tanta raiva tudo era difícil só ela fácil Cabecinha de enfeite Comigo vai ser diferente Diferente repetia com os ratos que roqueroque roíam meu sono naquela construção embaratada diferente diferente repeti enquanto a mão arrebentava o botão da minha blusa Onde será que foi parar meu botão eu disse e de repente ficou tão importante aquele botão que saltou quando a mão procurava mais embaixo por que os seios já não interessavam mais Por que os seios já não interessavam mais por quê O botão eu repeti cravando as unhas no plástico da cadeira e fechando os olhos pra não ver o cilindro de luz fria do teto piscando numa das extremidades e o botão Não não é o botão que eu quero é a ponte a ponte A ponte me levaria pra longe da minha mãe e dos homens baratas tijolos longe longe Posso rir de novo e me emprego de dia e estudo num curso noturno fico manicure porque de repente vinha um homem e se apaixonava por mim enquanto eu fazia as unhas dele As unhas arrebentando o elástico da minha calça e arrebentando a calça e enfiando o dedo de barataaranha pelos buracos todos que ia encontrando tinha tantos lá na construção lembra As baratas cascudas eram pretas e se agachavam como a gente se agacha pra passar pelo vão Inteligentes essas baratas mas eu era mais inteligente ainda e como conhecia seus truques foi fácil agarrar a mãe delas pelas asas e abrir a panela e jogar ela lá dentro Tome agora sua sopa com a baratona eu disse chorando de medo enquanto ele sacudia minha mãe pelos cabelos e ia me sacudir também bêbado de não poder parar de pé Estou com fome gritava quebrando minha mãe e os móveis porque o imitar não estava pronto e o que aquelas vagabundas de mãe e Filha estavam pensando da vida Lugar de puta é na rua ele gritava É na rua e não no quarto que o engenheiro tinha dado só pra ele A barata abriu as asas e começou a nadar firme em cima do fubá com a folha de couve A sopa soltava bolhas de tão quente e até hoje não sei mesmo como ela conseguiu nadar o nado de peito num estilo tão olímpico vupt vupt vupt e já ia saindo da panela com as asas pingando gordura quando a empurrei de novo pro fundo Agarrouse na colher e ainda uma vez voltou à tona e juntou as patas e pedi pelo amor de Deus que não não Por que está gritando assim minha menininha Não grita que não pode estar doendo tanto só mais um pouquinho de paciência quieta Quieta A sopa está pronta gritei e o motor da broca ligado pra disfarçar o grito porque a preta do lenço já batia na porta nem vi a cara mas adivinhei que era ela Pronto Pronto pensei chorando de alegria Agora vai me soltar porque a preta conhecia a mulher dele e ele tinha medo da mulher Vai me soltar porque a sopa está pronta com a baratona inchada debaixo da folha de couve Mas ele arrumou o cabelo na testa e abrindo a porta falou muito calmo que não podia atender porque o tratamento da menina era demais demorado e ainda por cima dolorido ela não tinha escutado um grito Viesse de manhã que hoje não podia mesmo atender Compreendia ah sim compreendia muito bem o quanto ela estava sofrendo porque essa infecção dói pra cachorro mas hoje era impossível Levasse alguns comprimidos olha aqui leva este punhado de presente e tome dois agora Se a dor continuar mais dois e depois mais dois e assim por diante Ouvi o fecho da bolsa se abrindo pra guardar o punhado de envelopes que ele tirou do armário de vidro Ouvi o passo dela ir se afastando O portão se abrindo Quis ouvir seu andar na rua e só ouvi o passo dele por detrás da cadeira Usava sapatos de borracha e a borracha grudava e estalava no oleado do chão como se tivesse cola Baixou a cadeira A correntinha que prendia o guardanapo me beliscou o pescoço A mancha de sangue endurecido numa das pontas do guardanapo Quietinha Quietinha ele foi repetindo como fazia durante o tratamento Você vai ganhar uma ponte Não quer ganhar a ponte Depressa Max quero beber pediu ela fechando as mãos Onde está seu copo Ahn Mas que é isso não precisa chorar por que você está chorando Não chora amor senão choro junto Ela enxugou a cara no lençol Abraçouo e rolaram enlaçados como um só corpo por entre as cobertas O copo rolou e tombou quase silencioso no tapete Uma depressão disse ela descolandose dele Apoiouse nos cotovelos para beber E o Doutor Hachibe Sacana Não era oriehnid que ele queria Era dinheiro mesmo Bastardo Análise de grupo Imagine se vou me abrir com esses piolhentos pensou enrolando no dedo um anel de cabelo Ou se queixam o tempo todo das trepadas ou curtem aquelas dúvidas fico veado Não fico Ora danese Quem é que está se importando Encolheuse Fechou as mãos e escondeuas no peito Muito fácil atribuir tudo à infância tinha ombros largos essa daí Que merda o Doutor Batista ter viajado e aparecer aquele doido de pedra pior do que eu Como se chamava aquele feto Cara de feto Nome comprido mas perna curta A perna e o resto Porcaria de homem Piorei com ele pomba Sujeito mais doido Não cobrava mas como podia cobrar perguntou ela massageando a própria nuca Me tratei depois com um velho podre de velho que falava o tempo todo na mulher que estava com câncer e ia morrer E eu com isso Ia lá pra relaxar um pouco e ficava ouvindo a história do velho apaixonado pela mulher que ia morrer de câncer Tinha pena mas também ficava puta da vida porque cobrar isso ele cobrava Infância Na realidade tudo se simplifica quando se descobre lá longe uma tia querendo enfiar o dedo no olho da gente Em mim enfiaram em outro lugar mas não me manquei sozinha Então Ficaram todos no subsolo Só eu Deitouse de bruços Estava tomando coisas certo Mas quem podia se agüentar de pé sem viagem e sem analista Quem perguntou olhando fixamente o travesseiro Aquelas flores lá de cabo quebrado Elas não precisavam de morrer Então Duro sustentar Vergando de chateação Mas no ano que vem meu boneco vida nova Está me ouvindo amor Vida Nova Com dinheiro e casada não precisaria mais de nenhuma ajuda Nenhum problema mais à vista Livre Destrancaria a matrícula faria um curso brilhante Os livros que teria que ler As descobertas sobre si mesma Sobre os outros Mesmo essas coisas que a gente Me enriqueci com a experiência não enriqueci Intelectual burguesa Podre de chique E aquela terrorista subdesenvolvida ainda Papo furado minha boneca Liberdade é segurança Se me sinto segura sou livre Bebeu no copo de Max que dormia com uma expressão afável a mão erguida num gesto de quem convidava algum visitante para se aproximar Com um saco de ouro se curaria fácil Ou não E mesmo que curtisse uma ou outra crise que importância tinha se era dentro de um Jaguar O duro era se desbundar num ônibus E Lorena dizendo que era uma escritora menor a francesa que escreveu isso Mas por que menor Menor nada Não pode ser menor quem descobre uma coisa dessas pomba Nenhuma originalidade Concordo Mas é como a história do ovo que ninguém conseguiu botar de pé muito fácil muito fácil mas ninguém pensou só depois que o Galileu Foi Galileu Sacudiu o companheiro Responde Max Não é melhor curtir num carro de luxo do que num ônibus via marginal Os marginais dentro matando a gente a coronhadas Então Em dezembro me costuro e em janeiro Valdo faz o vestido Quero branco Estilo medieval Pérolas um fio de pérolas brancas Enormes Max que horas são Seu relógio Onde está seu relógio Comprei um suíço que tem até cineminha Aperto um botão e sai o horóscopo aperto outro e sai o aviso do banco e do dia em que vou ser corneado bacana ahn Que relógio As viagens Coelha O botão vermelho é dose de cinco horas o azul dá uma viagem de um dia com direito a baldeação desço e continuo noutro trem E o botão preto ai esse botãozinho Que medo A piruleta branca já vem de tarja preta no braço vem de luto a marota disse e riu se sacudindo frouxamente Pra quem você vendeu responde Max Pro vovozinho Doulhe murros no peito mas ele me morde o pescoço O pescoço não quero pedir mas estou rindo tanto que não consigo falar a única coisa que posso fazer é tapar sua boca e ele me morde a mão A mão pode não pode é o pescoço que o pescoço o escamoso vê na hora que mancha é essa Pergunta tudo quer saber tudo enquanto vai comendo a casquinha do pão nojento assim pelado Janto com a Nona e depois a gente pode cear no Zuza Como se eu fosse vibrar com a idéia Levar a noiva num inferninho desses Por que não me convidou pra jantar com a Nona por quê Bastardo Sempre me esfregando a família na cara Não tenho família eu disse Morreram todos num desastre de aviação Vôo internacional Voltavam da Escócia onde foram passar o Natal com meus tios Ah seus tios moram na Escócia Moravam Morreram todos quando aquele monstro do lago se levantou uma noite e engoliu meus tios e primos com casa e tudo Monstro escocês a Loreninha sabe o nome dele ela sabe tudo sobre esses monstros Podre de chique ser engolido por um monstro ao lago escocês Não sobrou ninguém ninguém ninguém repito e bebo no copo que Max me estendeu Bebo até o fim Até o amargo fim não foi uma fita Onde vi esse nome Queria comprar uma ilha Coelha Sabe que não é difícil comprar uma ilha Ahn Tem ilha por aí de dar com o pau E ele com essa família de encher um navio Danese Danese que o colete está se derretendo tinha um puto de um colete aqui me fechando o peito Posso agora respirar viver É bom viver pomba Quem foi que disse que Sou linda brilhante vou sair em dez capas Revistas importantérrimas Sucesso Deixa os piolhentos morrerem de inveja A nhem nhem tem razão é preciso respirar o tempo todo e então seria ótimo Podia me convidar o bastardo A Nona com seu chinelinho de pelúcia Os netos doidos pra esnobar e ela Podia me convidar Não sou a noiva dele Não tem importância o ano novo está perto Stop Miolo de libélulas ao molho verde ahn Restaurante fabuloso aquele Molho de luz de vagalume acendendo e apagando Tium Tium Ahn Viro maratona romana Respeito quero respeito É o que madre Alix não compreende Uma santa Faço tudo o que a senhora mandar minha santa Avó e santa Bastante leite está certo bastante leite e aquele remédio e bato no peito nunca mais nunca mais Amanhã a gente vê isso Se a senhora me ama Os santos são transparentes que nem água Tinha uma porção de agüinhas coloridas lá nos tubinhos de vidro Lá no laboratório de química Eu limpava e vinha o judeu velhinho que gostava de mim e me dava o avental para vestir e deixava eu lidar com as agüinhas Me explicava as coisas das cores azul vermelho verde As agüinhas mudavam de cor O cheiro Tenho aqui o cheiro mas esse era um cheiro que eu gostava porque não tinha nada a ver com gente Os vidrinhos mudando de cor que nem nós Olha amor bebo e viro arcoíris azul amarelo ai não me pega senão derramo Eu sabia a música como era Me ensinou a dançar A Madame Lamas A mamãe queria que a gente dançasse porque mais isso e mais aquilo Madame Lamas isso mesmo minha irmãzinha e eu aprendemos tudo Divertido ahn O dia inteiro tinha festinhas uma porrada de meninas e festinhas Dançava feito louco a Madame Lamas me ensinava a Madame Lamas Boas maneiras ih que garotão você precisava ver Te amo amor Posso urrar de gozo mas não Não tem importância deixa Eu vi numa vitrina de cristal sobre um soberbo pedestal Como é mesmo esse troço Paixão por esse troço fico histérico olha aí vai canta numa vitrina de cristal Uma boneca encantadora Não compreende porque é santa Na realidade fico limpa com ele aqui Limpa de todas aquelas coisas limpa limpa Está vendo que feliz que eu estou Nem quando fazia aquela análise lá com o turco como era o nome dele Não tem importância Mentia tudo Bem feito Boa noite que a gente fala a verdade Fala nada Histórias sujas de dentes podres não quero não quero Você é lindo amor O homem mais bonito que já vi Eu sou belo disse ele apoiandose na cômoda Vacilou Essa música está ouvindo Um anjo tocando não posso ouvir que começo a chorar feito uma besta meu olho já está aguado Você é igual ao David de Michelangelo Onde você viu o David de Michelangelo Ahn Onde perguntou ele rindo Apanhou a garrafa no chão Onde onde Minha amiga seu besta Tem um pôster dele deste tamanho a Loreninha Ela conhece a Europa inteira não é só você viu Besta fila é riquíssima Você foi rico Não é mais chega Não interessa Acho que é Milão O irmão dela o diplomata Acho que é lá Ele sacudiu o uísque com gelo Bebeu e enxugou a barbicha na mão A gente vai viajar ahn Ih Coelha a gente vai ganhar dinheiro de dar com o pau está bem assim Mamãe tinha paixão por viagem quanto navio Até no hotel a gente lia aqueles livros sabe aqueles livros com mapa Ahn Uma porrada de mapas Minha irmãzinha lá naquele colégio e então todo dia a gente viajava aquela coisa de visita Sentou se na cama Sorriu Eu colecionava postais A Lorena coleciona sinos Nhemnhem nhemnhem Sininhos Mas meu piupiu é maior do que o dele De quem Maior do que o piupiu de quem Do David Não é da estátua que você Ahn Ano que vem meu amor Você já foi rico viu tudo E eu Aí é que está Fico virgem pomba Caso com o escamoso destranco a matrícula e faço meu curso Brilhante Nas férias viajo pra comprar coisas ele já disse que adora viajar aquele Ah que coincidência porque eu também Operação fácil Loreninha me empresa Vai comigo Generosa a Lena Então Sempre me tira das trancadas E se eu estiver Não não Seria azar demais ih falei a palavra a gente não pode falar essa merda de palavra só no avesso que pode a Lena disse que no avesso da sorte Começando pelo fim como fica isso Espera calma tem o r tem o a E a outra Aquela outra Ah não interessa chega Grávida nada Estou é lúcida roque roque Cabeça podre de lúcida Bebo e não acontece nada Nada Essa música de pé frio Ele estendeu a mão para a pilha de disco que pendeu perigosamente alguns resvalando mansos para o chão Um quarteto de cordas Verdadeiros anjos ahn Quer este Coelha Vou botar este fabuloso Uma Certa Simpatia Pelo Diabo ahn Berreiro desgraçado Ora música de agressão Estou cheia de agressão que pra meu gosto já fui demais Agora quero agrados presentes Um dia compro um caminhão só de presentes tudo bobagem esbordoar o dinheiro só com bobagem quero ficar boba Uma louca aquela lá com as reivindicações E vem ainda com Deve me achar uma puta E daí Me forro de dinheiro faço meus cursos compro um laboratório que nem aquele As agüinhas escorrendo e eu verde amarela azul ah vou me tingindo num mar Um mar amor Vou boiando e as línguas verdes dos peixes me lambendo os pés Fico rindo porque as línguas verdes vão me lambendo as pernas não grito me cobrindo porque a língua maior lambe meu ventre e me penetra tão quente ah amor Te amo Podre de feliz que nem Podemos morar num troço assim besta como a Irlanda Por que a Irlanda A Irlanda também não sei ficou a Irlanda Ahn Vai entrar dinheiro Ela abriu os olhos e foi se voltando para o jovem Ele fumava e sorria vagamente Que horas são Que horas são Max A gente não veio pra se aporrinhar Jogar tudo fabuloso Uma ilha Ela tiroulhe o cigarro da boca e ficou fumando O mais curto ficaria chiquérrimo com a calça de veludo Podia pagar em cinco vezes Dez Bastardo Bicha Não perdoava porque era bonita e tinha seios aplaca esse peito aplaca esse peito ele berrou na prova e toda gente se torceu de rir Ódio era ódio porque queria ter e não tinha Não interessa O escamoso me dá um navio de casacos Três fábricas Vai querer E daí Me atocho de óleo Johnson e ele vai achar que não tem na cama Posso também desfilar pro Marcil e ele me da o terninho preto ou O Brando vai endoidar mas digo então me de o casaco Depressa Coelha Me da sua boca Dou a boca dou tudo Mas tensa roqueroque E se estiver Lena me paga a plástica mas não tem um saco de ouro tem Preciso de oriehnid oriehnid oriehnid A Madre disse que paga Tirar dinheiro de uma santa e dar pro turco ora análise de grupo Besouragens No ano que vem recomeço E posso pagar uma individual sim senhor Pensando que queria me deitar Turco pretensioso Sou casado e feliz no casamento Minha mulher é uma gueixa Gueixa gueixa Vai ver é corneado as vinte e quatro horas Bem feito Também não ia adiantar porque a gente perde o respeito como aconteceu com aquele besta Mais louco do que eu aquele lá Podia me ajudar Analista marca merda Até filho Vai ver estou de novo É justo isso da gente não sentir prazer nenhum e ainda por cima Que dia é hoje Vinte e seis Vinte e sete vinte e oito vinte e nove Este mês tem trinta e um Max este mês tem trinta e um Vem Coelha Quero sua boca Abro os braços Ele desaba no meu peito Te amo sim E então Ficar rica Ficar rica Você já foi a nhemnhem já foi Quero experimentar não posso Lena disse que empresta é boazinha a Lena Generosa Se ofereceu para ir comigo e segurar minha mão Quer virgem o escamoso Já andou com tudo quanto é vagabunda mas na hora Bastardo Está certo Se você faz mesmo questão eu sou a própria E se pedir o oriehnid pra ele Por que não Noiva não tem intimidade pra pedir dinheiro ao noivo Digo que é pra uma operação urgente e ele vai perguntar que operação é essa não tem no mundo um cara que faça mais perguntas Vai perguntar e digo que vou operar as amídalas minhas amídalas estão podres meu apêndice está podre ah que depressão E esse aí que não resolve Estou com frio Max me cubra Me cubra amor disse ela Debateuse fracamente sob o corpo do jovem Um frio Ele apalpou por entre as cobertas até encontrar a manta de lã Puxoua cobrindose até a cabeça As pontas da franja chegavam aos ombros de Ana Clara Fechou a abertura da barraca vacilando em corcoveios que se aceleraram até uma arremetida mais aguda Imobilizouse no alto e baixou em convulsões até se desmantelar em pregas rasas Veio de dentro um estertor fragmentado quase um choro Coelha Coelha Eu te amo Ela afastou as franjas da coberta e voltou a face para a parede Ficou enrolando no dedo um anel de cabelo Tão bom amor Vamos casar Coelha Vamos casar Quero casar imediatamente ahn Vamos Gostoso casar vamos Coelha Vamos Vamos Ele beijou repetidas vezes a boca de Ana Clara ajeitoulhe meigamente o cabelo em desordem e rolou sobre seu corpo como se rolasse sobre uma duna de areia Estendeuse de bruços a cara afundada no travesseiro Deixou pender o braço para fora A mão tocou no tapete pesquisando com a cautela de uma aranha os dos dedos cegos esticados num movimento de antenas Contornou o cinzeiro onde um toco queimava retraiuse e numa queda inspirada caiu certeiro sobre o copo Sacudiuse esfregando a cara na fronha Bebeu O uísque escorreulhe pelo pescoço Ih Coelha me molhei todo me enxuga depressa que me molhei Molhada estou eu Que horas são Só relógio Parece a Mademoiselle Germaine atrás da gente com o reloginho de ouro hora disto hora daquilo Maximiliano tu es en retard Tu es en retard Você se deitou com ela Era nossa governante Coelha E daí Ela era pavorosa só osso e sarda com aquele cabelo em pé sempre esvoaçando olha tudo assim fez ele abrindo as mãos em leque no alto da cabeça O andarzinho igual ao relógio tiquetaque tiquetaque O cabelo era assim olha Ana Clara tinha o olhar fixo no teto Alisava o ventre Já vi já vi A governante de Lorena era inglesa Nhemnhem nhemnhem Disse que chegou a escrever melhor em inglês porque a governante que morava na fazenda Parece um inseto Acabou não acabou Aí é que está Não acabou Não tem mais fazenda nem governante nem nada Acabou Do resto do oriehnid o moço da mãezinha se incumbe Bem feito Dinheiro de dar com o pau Descobri uma coisa é fácil ou ter muito dinheiro ou não ter nada ahn Não é fabuloso Huuuupi Quando bota aqueles óculos fica um inseto de óculos E nem precisa deles enjoamento Nnhemnhem nhemnhem Você se lembra dela Responde Max você se lembra Aquela bem magrinha As duas têm inveja de mim porque sou bonita elegante Capa de revista Então A nhemnhem compra milhares de vestidos a mãe manda malas de roupas E daí Não veste nenhum anda só com aquelas calças e blusinhas de nnhemnhem Fala assim fininho nhemnhemnhem O irmão é diplomata Manda milhares de coisas Adianta Pomba se eu tivesse a metade daquele guardaroupa Chiquérrimo É a comunista Você está trocando tudo comunista é a gorda bossa retirante Essa é a magrinha aquela meio cabeçuda Sobre o inseto Você está triste Coelha Fica contente amor fica contente Eu queria tanto que as pessoas todas fossem mais contentes é tão bom ficar contente A gente vê na rua todo mundo tão triste por que as pessoas estão tristes Ahn Queria tanto sair por aí alegrando as pessoas olha não fique triste segura minha mão e vem comigo que te mostro o jardim da alegria com Deus lá dentro vem Acho que estou grávida está me ouvindo Grávida Ahn Ela encostou a boca no ouvido dele Grávida grávida grávida Ele arqueou as sobrancelhas inocentes Metade do uísque que tinha no copo escorreulhe pelo peito Pousou o copo no chão e inclinouse sobre ela Procuroulhe as mãos debaixo do lençol Estavam fortemente fechadas Abriuas devagar e beijou a palma de uma mão Beijou a outra Vamos ter esse filho Coelha Vamos deixar ele nascer vamos ficar bem alegres e ele nasce alegre Alegríssimo Podiam ser gêmeos Isso mesmo gêmeos A gente cria eles naquele carrinho duplo ahn Os dois passeando no carrinho duplo a gente chama Mademoiselle e ela vem correndo tiquetaque tiquetaque et alors mon petit choux Se for menina vai se chamar Mecânica Celeste não é lindo Meu professor de Mecânica Celeste era Onde foi que aprendi isso Aprendi uma porrada de coisas mas agora esqueci tiquetaque tiquetaque Et alors Ana Clara sentouse na cama enlaçou as pernas e encostou o queixo nos joelhos Os olhos verdes se apertaram em meio do aro sombrio Voltouse bruscamente para o jovem que tentava acender o cigarro Sacudiuo Os palitos da caixa espalharamse no peito dele Você tinha que ficar assim duro Tinha Agora preciso casar com outro seu besta Quero oriehnid sabe o que é oriehnid A Lorena disse que falar ao contrário dá sorte Agora tenho que E ainda lúcida Estou lúcida feito uma cachorra acho que você me deu aspirina Por que não me dá essa medalhinha aí do seu pescoço Nosso filho vai querer essa medalhinha você dá Mamãe não deixava tirar só na hora de dormir tinha aí uma história de um nenê que morreu enforcado na correntinha A Ducha ganhou uma igual Sua irmã que endoidou Essa Ele esfregou a cara no travesseiro Gemeu Não fale assim da minha irmãzinha não quero Mas ela não está internada pomba Então Você mesmo disse Minha Ducha minha Duchinha Tão queridinha tão florzinha Mas ela não está desmemoriada Max Você disse Max você disse Isso é falar mal O pai da Lorena também perdeu a memória morreu no sanatório sem lembrar de mais nada a última vez que ela foi ele perguntou quem é essa mocinha Isso é falar mal Ele sacudiu a cabeça e virouse de bruços a cara afundada no travesseiro os ombros sacudidos por um soluço seco Tapou os ouvidos Não quero não quero soluçou e riu em seguida Voltou a face para o teto e riu por entre as lágrimas que começaram a correr Um dia a gente foi no zoológico ui que bicho aquele bicho que tem aquele chifre aqui ahn Ela é loura que nem você É loura responda Max eu quero saber como ela é responda A sua irmãzinha Mansamente ele foi estendendo o braço na direção da vitrola A mão foi se abrindo em ritmo de câmara lenta o dedo estendido para tocar em alguma coisa mas sem muito empenho à espera de que essa coisa viesse ao seu encontro O tapete Que tapete Estou falando da sua irmã sua irmã Então Ê assim loura Só dormia com a luz acesa tinha medo de sonhar feio Reza Duchinha reza que essa noite você vai sonhar bonito não quer sonhar bonito Reza comigo vamos me voici Seignew tout couvert de confusion et pénétré de douleur douleur ahn ahn ahn ahn ahn ahn davoir offensé un Dieu si bon si aimable et si digne dêtre aimé Foi a Mademoiselle que ensinou essa reza Responda Responda senão jogo essa água na sua cabeça ameaçou ela agarrando o balde de gelo Vamos acorda Responda Ele tentou se proteger com as mãos fazendo espirrar a água que lhe inundou a cara Debateuse rindo Duas pedrinhas de gelo deslizaram do balde para o seu peito Campeão olha aí campeão gritou num movimento desordenado de braçadas Cronometra Shimoto Japonês safado cronometra direito Você está roubando na contagem já dei tudo vigia aí mamãe Estou quase desmaiando estou na estafa safado Vigia mamãe estou chegando Ela enxugoulhe o peito a cara Deixou cair o cigarro molhado dentro do copo e acendeu outro Você ganhou Max Ele fechou os olhos Riu e cantarolou estendendo a mão Eu vi numa vitrina de cristal Sobre um soberbo Queria ser um puto dum cantor Enfim eu vi nessa boneca uma perfeita Vênus Um ídolo Se você nadar como está nadando no prazo de um ano pode Impressionante era meu colega A fumaça movediça se enovelava compacta em redor do abajur encasulando a luz que incidia sobre a cama apaziguada Ele estendeu a mão repetindo o convite para um vago alguém se aproximar A música do saxofone se integrara ao quarto como os dois corpos azuis de fumaça O tapete da mamãe O último que ela fez era verde com umas coisas assim tudo assim Eu deitava nele Musgo Era bonita Sua mãe Conta Max ela era bonita Ele fez um gesto evasivo e começou a chorar baixinho Assoouse no lençol Riu Bobi vinha correndo lá lá de longe e tibum na piscina Caía em cima de mim latindo feito louco queria me salvar todos os dias queria me salvar e salvar a Duchinha não tem ninguém se afogando seu tonto Shimoto prenda o Bobi que não posso treinar cachorro mais louco Arrastandose penosamente ela debruçouse sobre o corpo dele e apanhou a garrafa no chão Sacudiu o copo até a ponta de cigarro se descolar do fundo No tapete uma pedra de gelo derretia solitária como uma ilha em meio da poça dágua Colheu a pedra deixoua cair no copo e voltou ao seu lugar recuando de rastros como avançara Com você foi tudo alegre Rico Mas quando pomba Quero só o presente entrando no futuromaisqueperfeito existe futuromaisque perfeito Se pudesse lavar por dentro minha cabeça Com escova Esfregar esfregar até sair sangue Derrubaram a casa Derrubaram tudo Ducha disse que não sobrou nada só a árvore construíram um puto de edifício no lugar Mas também a árvore eles iam murmurou e recomeçou a chorar convulsivamente abraçado ao travesseiro A jabuticabeira Nunca fez mal pra ninguém só dava jabuticaba por quê Era nossa amiguinha só dava jabuticaba Fugiu do sanatório e foi correndo pra casa já tudo derrubado aquela tijolada no chão as portas As portas estavam encostadas num muro reconheci a porta do meu quarto As portas ali ainda de pé com as fechaduras Os trincos soluçou estendendo a mão como se fosse abrir o mais próximo Ela se agarrou no tronco e ficou gritando gritando eu também queria gritar junto quando vi ela gritando abraçada na nossa árvore que ia ser derrubada não gritei porque senão também me internavam internam tudo a gente não pode Não grita Ducha não grita Duchinha e eu queria gritar porque era uma coisa horrível ver tudo assim no meio dos tijolos E minha porta Não grita eu disse te dou todas olha esta grande pega é sua Pega Ducha este galho está preto pega Ele me estende as mãos vaziascheias as jabuticabas rolando em cima de nós olha que monte esconde esconde gritou e nos escondemos debaixo do lençol Beijo sua boca brilhante de sumo que escorre doce Max me dá sua infância Ele me dá sua língua Escorrego e fujo não é isso Queria A cabeça roqueroque Aquela massagem na nuca acalma tanto a Loreninha sabe Faz Max começa aqui aquela massagem Mais forte amor Queria saber as horas Digo que me atrasei Vai perguntar perguntinhas Anão pretensioso Aquele anão pretensioso Bastardo Um cara aí Conta Max O chinezinho sentado no pufe fazia que sim com a cabeça que sim que sim Eu tinha que subir no banco pra poder alcançar ele a Isabel gosta de mim chinezinho E botava o dedo na cabeça que fazia sim sim sim E sempre rindo sim sim sim Vou passar de ano chinezinho Sim sim sim ih que safado não minta senão te quebro responde direito Sim sim sim ria com aquela cabecinha de gorro preto Mamães vai sarar Vai Sim sim Mais forte amor Aí perto desse ossinho Não fica triste que eu te dou uma casa com porta jabuticabeira te dou deixa Vou ter dinheiro e reparto tudo milhares de jabuticabeiras ninguém mais vai derrubar viu Aí mais forte aí Digo que fui atropelada pomba Só o choque Esse sax Coelha Está ouvindo Uon uon uon uon Fabuloso Dane se esse saxofone E as jóias da família Um saco de jóias mas com quem ficou tudo isso Doidinha mas esperta E as jóias Os dentes perfeitos beleza de dentes Tradição de bom leite Frutas Loreninha bebia leite de cabra Eu bebia leite como um bezerrinho Ficou insetoanão mas os dentes Acredito Não deve ter bebido outra coisa Este também mamou na cabra Conta Max Conversa comigo conversa O pãozinho já está pelado Digo que fui com Loreninha por isso me atrasei Lá naquele lugar Não tem importância agora dorme Em janeiro meu boneco Agora dorme Seria capaz três Calar assim é fácil mas se um dia eu for provada Que isso não aconteça porque não resisto um pouco que me apertem o dedinho e já vou falando Sou da família dos delicados Dos sensitivos Prima da lagartixa estatelada na vidraça através da carne podia ver entalada na garganta a sombra da asa da mariposa que ela acabara de engolir Lião sabe que não pode contar comigo é lógico mas se me convidasse eu iria correndo na ponta dos cascos Bank of Boston Acho demais roubar um banco com esse nome Vestia o terninho da marinha americana com divisa e tudo Lião não pode nem ver essas divisas mas um detalhe desses não daria ao cenário um toque todo especial Notícia até no Time o banco não é de Boston Queria dizer ao menos isto é um assalto O tiroteio o chato é o tiroteio Morte E morte em violência Rômulo com o furo no peito borbulhando sangue um furo tão pequeno que se mãezinha tapasse com um dedo hein mãezinha Foi sem querer como Remo podia adivinhar que Diabo escondera a bala no cano da espingarda Uma espingarda quase maior do que ele Até hoje não sei como conseguiu correr com ela não sei Não chora meu irmãozinho não chora ninguém é culpado ninguém Papai tirou as balas todas não tirou Mas tem uma que o Diabo Remo querido passou tudo Passou Mas às vezes está vendo preciso lembrar Você montado em burro bravo pinoteando desgrenhado O olho intenso Você caçando mosca para jogar no suco de laranja de Rômulo Escondendo a mariposa na minha cama Diplomata Remo A voz bem impostada Os gestos A expressão sutil a palavra é mesmo esta não tem outra para a expressão oficial de Remo sutil Em festas de reis e rainhas do lado direito Ou esquerdo Os protocolos Mas como uma pessoa pode mudar tanto Rômulo e eu éramos os delicados lembra As pessoas tomavam tanto cuidado Como aquela plantinha DormeMaria DormeMaria a gente ordenava e antes mesmo de tocar nas folhinhas elas se fechavam como olhos DormeMaria Nasci num tempo de tamanha violência Orfeu chegou a comover as feras com sua lira e eu não consegui comover nem o Astronauta Enfim um gato é um gato mas como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio de amor ao mundo mas sem entrar nele é lógico Ficar de fora mantenha distância diz aquele ônibus bufando tanto pelo traseiro que não fico atrás nem um minuto Detesto guiar entrar nas engrenagens Nas besouragens diz a Aninha Enredos Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante as pessoas tão inofensivas na rotina Comem e não vejo o que comem Falam e não ouço o que dizem harmonia total sem barulho e sem braveza Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores Vozes Um pouco mais e já nem é espectador vira testemunha Se abre o bico para dizer boa noite passa de testemunha para participante E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janelaguilhotina fechou rápida Eram laços frouxos Viraram tentáculos Ah que alegria quando fico aqui sozinha Sozinha Como chupar escondida um cacho de uvas E a máquina do mundo repelida se foi miudamente recompondo ah preciso decorar isso CDA Minha poesia Minha música Às vezes os amigos podiam ser menos vezes ai meu Pai A presençaausência de MN Dos meus mortos Rômulo meu irmão Paizinho A lembrança de veludo de Astronauta Uvas deve ter ainda um cacho na geladeira eu não disse Rosadas Fico lavando minhas uvas mãezinha mandou uma caixa enorme Distribuí tudo Abandonei minha filhinha num pensionato de freiras pobres num quarto de chofer em cima da garagem e fui viver com um homem que me apunhala pelas costas disse à tia Luci num dos seus dias de punição que começam na segunda e vão até domingo Número um imaginar Mieux manejando punhais coitadinho Deixame rir Usa no máximo aqueles palitinhos plásticos de espetar azeitona Número dois isto não é mais o quarto do chofer O nome da Neusa ficou sepultado sob o azulejo corderosa o encardidume das paredes do quarto com a obscenidade escrita a lápis vermelho ficou para sempre debaixo do papel amarelodourado virou concha Lá fora as coisas podem estar pretas mas aqui tudo é rosa e ouro É preciso ter um peito de ferro pra agüentar esta cidade diz a Lião que cruza esta cidade com sua alpargata azul Mas não entro na transa e nem quero Faculdade cinema um pouco de clube clube fechado uma ou outra lanchonete compras nas minhas lojas especialíssimas O oriehnid vem num envelope Dia de comprar livros e discos dia de Deus me visitar oi Lorena Às vezes o medo não da cidade tão remota para mim como seu povo mas um medo que nasce debaixo da minha cama Imagine se lesse jornais como a Lião ela lê milhares de jornais por dia recorta artigos Mas seu cabelo já de natureza eriçável também sobe como o pêlo do Astronauta quando via fantasma houve um tempo de fantasma neste quarteirão Os olhos crescem as unhas diminuem na roeção não sei explicar ela começa E passa duas horas explicando que é preciso tratar o corpo como a um cavalo que se recusa a pular o obstáculo a chicote O medo mora nas pupilas A pupila de Astronauta tão negra invadindo o verde tinta transbordante até as pálpebras As pupilas de Ana Clara também dilatadas mas por outros motivos coitadinha a droga excita a pupila com a mesma força do medo Duas rodas pretas Um brilho A mentira vem brilhante mente ah tanta mentira seguida Fecha as mãos e começa a mentir com tamanho fervor esmerouse nesse mentir gratuito sem o menor objetivo As freiras também têm medo Madre Alix é o equilíbrio Mas aquela hora em que fecha a porta A luz Pensionato Nossa Senhora do Medo E você pergunto a Jimi Hendrix gritando e já rouco de tanto gritar Tiro o disco Lião fica um tigre com essa música diz que é desfibrante Mas quem devo ouvir Wagner Não tenho Wagner querida Tenho leite Serve leite murmurou Lorena indo até a pequena geladeira embutida na parede Olhou apática a jarra branca sob a luz fria Mordeu uma maçã A espuma morna do leite no estábulo Cheiro morno de bosta e feno As maçãzinhas da horta eram ácidas mas tinham tanto sumo Remo subiu no galho mais alto e rasgou o jeans no joelho se sujava e se rasgava com a mesma fúria com que colhia os frutos Ou brincava de xerife e bandido era sempre o bandido carregando a espingarda grande demais Tão grande Estudar convidou abrindo na mesa a pilha de apostilas e livros que trouxe da estante Colocou em cima os óculos a caneta e a régua de plástico transparente Apertou os olhos e através do plástico leu as linhas enreguadas Isso já sabia E sabia o resto Sabia tudo Se acabasse a greve e os exames começassem no dia seguinte mesmo seria a glória A música absorve o caos e o ordena disse e ficou atenta Mozart Musicália Examinou meio distraidamente o livro que Lia devolvera com várias páginas marcadas de vermelho tinha o hábito péssimo de assinalar o que a interessava não só nos próprios livros mas também nos alheios Detevese no trecho indicado por uma cruz mais veemente A Pátria prende o homem com um vínculo sagrado É preciso amála como se ama a religião obedecerlhe como se obedece a Deus É preciso darmonos inteiramente a ela tudo lhe entregar votarlhe tudo É preciso amála gloriosa ou obscura próspera ou desgraçada Obedecer a Pátria como se obedece a Deus estranhou Lorena Por que Lia grifara isso Não acreditava em Deus acreditava E a Pátria para ela não era o povo Abriu as torneiras da banheira e sentouse na borda a mão brincando com a água Riu baixinho Lembravase de Lia chegando com as duas malonas estourando de coisas E O Capital debaixo do braço metido num papel de pão que mais mostrava do que escondia A mãe é morena da Bahia casada com holandês pensou assim que a viu Era baiana com alemão Herr Paul exnazista que virou Seu Pô um tranqüilo comerciante apaixonado por música e por Dona Dionísia para os íntimos Diú com aquele u comprido que não acabava mais Diúuuuuuu Deu Lião Loucura imagine um nazista de águia no peito entende vir parar em Salvador e lá então não sei explicar mas se apaixona pela moça Diú e a soma é Lia de Melo Schultz que faz seu necessaire e vem terminar o curso no Pensionato Nossa Senhora de Fátima Um pé baiano o outro berlinense Alpargata Conga Quando meu pai que é distraído à beça viu de perto o que era realmente o nazismo arrancou a farda e veio trotando por aí afora até Salvador Difícil dificílimo entender uma fuga dessas não houvesse o cinema Através do cinema Lorena já não vira tantos atores atravessarem o Mar Vermelho aberto como braços ah loucura total desse alemão vir lá do inferno velho sem a farda E provando ainda um total desprezo a qualquer preconceito ao entrar de cabeça erguida na honradamente nativa e beata família Melo em disponibilidade a caçula Dionísia sua criada Eh Lião Como herança do pai tinha o vigor germânico andejo capaz de fome inverno e tortura com travessia em rio coalhado de jacaré Mas as proporções gloriosas herdou da mãe proporções e cabeleira de sol negro desferindo raios por todos os lados que fivela que pente consegue prendêla O açúcar da voz quando está nostálgica também é herança baiana Compota de jaca Mas o senhor Karl firme debaixo do braço escondido e exposto camuflado e exibido que ninguém saiba que esta é minha Bíblia Teria ido até o fim O pé alemão solidamente racionalista mas e o pé brasileiro Já li disse Lorena apontando o livro Não parece mas sou muito inteligente se quiser troco em miúdo para você Ela então riu dentes de alemão fanático mas risada com som tropical Tentou enfeixar a cabeleira irradiante no elástico Que estourou todos eles estouram não há no mundo elástico que resista a tamanha explosão Padrão afro Tem mulher hino e mulher balada pensou Lorena tirando o pijama Sentouse na borda da banheira e percorreu com as pontas dos dedos a superfície da água Eu sou uma balada medieval E Ana Clara E Lia Que gênero de música eram elas A única forma de ajudálas seria oferecerlhes coisas que não tinham Apresentarlhes coisas que não conheciam O espanto de Lia quando chegou de sandálias franciscanas a sacola de juta dependurada no ombro só mais tarde comprou a de couro na feira Genial entende Genial repetiu examinando os objetos de toalete no banheiro Abriu o frasco de sais Cheirou B em meio do enlevo bateu no piso a cinza do cigarro Disfarçadamente enquanto esticava o piso felpudo Lorena apanhou o rolinho de cinza como se apanhasse uma borboleta Quer tomar um banho Essa banheira é tão repousante sugeriu quando ao se inclinar viu de mais perto seu pés nas sandálias Posso ela perguntou atirando a ponta de cigarro no trono Apertei a descarga e prepareilhe um banho caprichadíssimo Oferecilhe águadecolônia para uma frição no corpo calçava sandálias mas fazia frio O talco O pente limpíssimo Chá com biscoitos Como apoteose poesia leio bem poesia Quando levantei a cabeça ela cochilava na poltrona Mais tarde descobri que não gosta nem de poesia nem de música Ainda assim liguei o tocadiscos e deilhe os patrícios Bethânia Caetano E se não dei televisão é porque acho aquilo o fim Embora esteja pensando numa mas só para ver os filmes antigos E os longametragem de vampiros e monstros Na saída fez sua primeira ironia Nem respondi Ainda ponho uma placa na minha concha Perdão pela ordem pela limpeza perdão pelo requinte e pelo supérfluo mas aqui reside uma cidadã civilizada da mais civilizada cidade do Brasil Vão me perdoar Ana Clara dá uma resposta ambígua e pede oriehnid emprestado Lião não responde mas pede o carro Pode levar querida Perdão ainda se empresto um Corcel e não um jipe cada qual dá o que tem entende Mergulho na banheira toda dourada de sais dourados O susto de Lião quando mergulhou e a água começou a transbordar de todos os lados eh Lião Eu tinha calculado um banho com a minha medida dágua Ela pedia desculpas pelo estrago enquanto eu salvava o piso na caudal Quando as coisas se acomodaram ficou sorrindo para a espuma Um banho assim diário desmonta qualquer coluna vertebral Vim preparada pra uma vida dura entende No povo propriamente começou a falar mais tarde Também amo esse povo Lião não precisa me olhar assim Amor cerebral reconheço que outro gênero de amor pode ser Se não me misturo na tal massa morro de medo dela pelo menos não fico esnobando como faz Aninha O que é natural ela deve ter sido paupérrima Se já estivesse guiando o famoso Jaguar pensa que emprestaria ao seu grupo sequer a bicicleta Imagine Vai passar por nós naquele andar de transatlântico os ossos dos quadris furando as águas E a cara oca de capa de figurino por acaso já nos vimos antes Turbante de cetim branco com uma esmeralda combinando com o verde dos olhos tão mais belos do que a esmeralda tem olhos lindos ela inteira é linda Ai meu Pai Eu podia ser menos insignificante não podia Pernas de palito Desbotadinha olha aí me torro no sol e o sol não cola em mim Magnólia Desmaiada O pior são estes peitinhos pobres oh Oh Inveja isto Não simples constatação é lógico Quero vêla curada casada com o tal milionário embora saiba que quando ficar divina maravilhosa não vai me perdoar Ampareia nos pilequinhos segurei sua mão nos abortos empresteilhe milhares de coisas a metade nem voltou E o monte de oriehnid que vou emprestar dar para o cerzido na zona sul Difícil me perdoar por isso Por acaso nos vimos antes vai perguntar batendo a cinza do cigarro na minha cabeça é altíssima Não pessoalmente Alteza Sou uma simples universitária em recesso Tirante a Faculdade vou a pouquíssimos lugares e todos sem importância Lembro que certo dia chegou ao Pensionato Nossa Senhora de Fátima uma vaga estudante e vago modelo cheia de malas e dívidas mas não era Vossa Alteza é lógico Tinha a cuca tão embrulhada que fiquei em pânico se entra na minha intimidade vai criar problemas Forçou a entrada Deus sabe que evitei mas agora é tarde no planeta Tarde no planeta dizia o paizinho trancando a porta que dava para a varanda Abre meus armários empresta minhas coisas usa minha esponja da zona norte na zona sul e só não leva meus livros porque na realidade gosta mesmo de romances supersonho E das histórias da Luluzinha Nega imagine sempre que pode passeia com um Herman Hesse ou um Kafka debaixo do braço ambos da minha estante digase de passagem Mas só para constar De resto instalouse no meu banheiro e em mim Obrigueime a verdadeiras práticas de caridade cristã para aceitála mas agora sinto falta dela quando some Ana a Deprimente Deprimida e deprimente Os amantes As angústias Ensineilhe a respirar profundamente Depois andar Respirando e andando quilômetros vem a vontade de trabalhar salvação pelo trabalho Jacaré aprendeu Análises amores e sapato de brilhante podem mudar alguém Acho que todo mundo segue igual até o fim Mãezinha fazia goiabada cuidava do jardim bordava toalhinhas e era glingueglongue Agora faz plástica massagem análise e principalmente faz amor com outro homem Mudou a circunstância E ela Igual Não fica à vontade com Mieux como ficava com paizinho é lógico Representa Mas continua insatisfeita e catastrófica Com mais medo da velhice porque já está na velhice coitadinha Glingueglongue Quero ser uma velhinha diferente gênero cara lavada e blusinha bem branca a cometa acústica no ouvido virgem acaba surda aquela história da Lião fechamse os orifícios Todos Vejo Lião uma mãe gordíssima e felicíssima sorrindo meio irônica para as passadas guerrilhas juvenilidades meu senhor juvenilidades Ana Clara pintadíssima e afetadíssima mentindo a idade e o resto as mãos sempre fechadas é do gênero de mentiroso que fecha as mãos Ficando de fogo no particular Oh O que aprendi com ela não bebo e posso escrever uma tese sobre alcoolismo e drogas Nunca tive nenhum homem e sei com pormenores a arte e desarte de amar Ni ange ni bête murmurou Lorena inclinando o corpo e afundando na banheira Esfregou os cabelos até fechálos num espesso capacete de espuma Olhouse no espelho Com as pontas dos dedos foi alargando a espuma branca até a altura dos olhos Assim de gorro e máscara MN operava As luvas amarelas quebrando a brancura ai que sensual Se pudesse ser amada na própria sala de cirurgia Entraria na padiola como Ana Clara No fundo a espera o Anjo Sedutor na sua roupa imaculada ainda imaculada E mascarado Lena me dá sua mão pediu Ana Clara Deulhe a mão constrangida sabia que ela transpirava demais na mão e tinha horror de suor Um suor frio como a sala frio como a luz do holofote Na estreita faixa entre o gorro e a máscara os olhos do médico eram frios A voz branca de Ana Clara parecia vir filtrada através dos algodões Um dois três quatro cinco seis ssss A luta metálica dos ferros se entrechocando O peso do sangue na gaze O hálito de éter se desfazendo no ar Not to be Ai meu Pai gemeu Lorena enrolandose na toalha Saltou no piso e ficou esfregando nele as solas dos pés Viuse irreal no espelho embaçado pelo vapor dágua Não era amada Não certamente não Mas continuaria amando amando amando até morrer não Até viver de amor Foi ao tocadiscos e aumentou o volume O som se fortaleceu áspero intratável Torceu mais o botão e a música se expandiu empurrando os móveis as paredes Recuou aturdida num acesso de riso oh vontade de sair pelada pela rua afora agarrar as pessoas e sair dançando com elas lutar boxe fazer amor comer ai que fome Que fome gritou E apertou o peito do patinho de feltro sentado na prateleira da estante Coém Coém fez juntamente com o pato Tomou um pequeno gole de leite e suspirou Gostaria de gostar de outras coisas bifes sangrentos sopas com peixes e polvos nadando por entre tranças de cebola em temperatura de vulcão plu plu plu Pousou o copo vestiu um biquíni branco uma camisa grande demais dobrou as mangas e depois de se perfumar com águadelavanda e polvilhar talco nos pés reuniu num prato o que lhe apeteceu uma maçã uma cenoura crua escrupulosamente lavada alguns biscoitos de água e sal e um triângulo de queijo Sentouse no degrau de pedra banhado de sol abriu no colo o guardanapo e colocou o prato ao lado Olhou o jardim através do gradil de ferro da escada e começou a roer a cenoura Será que o sexo ia lhe dar tanto prazer como o sol Fico tomando sol porque não posso tomar o homem que amo pensou mastigando mais energicamente E Ana Clara As coisas que tomava seriam para substituir o casaco de onça O Jaguar E se fosse simplesmente porque não conheceu o sol a infância Deus Tudo que tive e ainda tenho tão triste ir buscar lá fora o que devia estar aqui dentro Uma formiguinha ruiva passou a um centímetro do pé de Lorena Carregava um pedaço de folha recortada com certa simetria nas bordas ondulantes vela de veleiro equilibrandose a custo na travessia Inclinouse para ver melhor Agora a formiga tinha parado para conversar com outra formiga que vinha em sentido contrário Deixou de lado o pedacinho de folha pôs as mãos na cabeça gesticulou barroca procurou afobada a folha não achou mais desistiu e meio estonteada voltou pelo mesmo caminho de onde viera Que bicho correspondia à Aninha Raposa Fazia cálculos mentia queria ser sempre a mais esperta mas na realidade era inconsciente como a cigarra Por que teve que engravidar nas vésperas do tal casamento por quê Se ainda fosse do noivo E eu é que tenho de arrumar oriehnid E ir junto e dar a mão na hora Já disse mais de uma vez que a intimidade é inimiga da amizade essa intimidade que exorbita no cotidiano tão cotidiano Ela ouviu concordou e em seguida pediu meu maio emprestado Amar meu próximo como a mim mesma no caso amar Ana Turva Já não estou turva estou preta disse ela num dos seus raros momentos de bom humor São as ovelhas pretas as mais amadas respondi Madre Alix tem paixão por você Ela então me olhou em silêncio E seu olhar que em geral é oblíquo ficou reto Não fez nenhuma ironia ao contrário foi com a maior gravidade que apertou por cima da roupa o Agnus Dei ele devia estar no sutiã mas como ela não usa sutiã prendeuo com um alfinete de gancho no biquíni A Madre me deu disse É um pedaço das vestes de uma freira que ficou santa Perguntei lhe que freira era essa Sei Ia murmurou enquanto rolava o cílio postiço operação que exige atenção integral porque sua mão treme demais Ia a uma boate e foi me pedir um pouco de perfume Banhouse nele e de tal forma que tive que abril a janela apesar da noite fria A Gata entrou no meu quarto e espanou minha mesa com o rabo quebrou meu perfume meu espelho e o vidrinho de colírio posso levar o seu Tudo mentira No dia seguinte fui saber se queria ir ao cinema Não estava mas estava o vidro de perfume o espelho e o vidro de colírio vazio Um monte de roupa suja embolada debaixo da cama As jóias verdadeiras e falsas espalhadas por toda parte Um longo de cetim verde num cabide dependurado na porta do armário O caos dos sapatos escapando por entre a fresta do gavetão A peruca negra e o casaco de couro em cima da cadeira A caixa de maquilagem esvaziada na cama devia estar procurando alguma coisa que não encontrou Nas paredes retratos seus e de very important person Fiquei comovida quando vi que pregara na cabeceira da cama a gravura de Chagall que eu lhe dera na véspera um anjo verde abençoando o pecador roxo ajoelhado no azul O rosário de Madre Alix também estava ali exposto mas a presença do Anjo Sedutor pairava no quarto Vulgaridade e beleza se misturavam no pôster que tirou de biquíni colante e meias pretas pose mais agressiva do que sensual Chamei Sebastiana e lhe dei a trouxa de roupa para lavar Aproveita e varra um pouco este chão eu disse mas a mulher não despregava o olhar do pôster A beleza de Ana iluminoulhe a expressão A cara encardida clareou no impacto É artista quis saber Mais ou menos respondi e fiquei pensando que se tivesse metade dessa beleza MN já teria subido umas cem vezes esta escada Na minha concha como a pérola na ostra não é poético Precisamos pensar num outro esquema ele respondeu quando o convidei para tomar um chá comigo Por que outro esquema Mas meus amigos não estão sempre subindo A gente estuda ouve música discute qual é o problema Ele sorriu o sorriso MN É diferente Só por essa distinção fiquei mais consolada Lorena Carta do estrangeiro para você A letra é do seu irmão Com dois dedos Lorena abriu a úmida cortina de cabelo que lhe caía até os ombros Espiou a freira no jardim empenhada em arrancar do canteiro de margaridas o matinho rasteiro que brotava com a força da primavera Encostou a testa no gradil de ferro da escada sentarase no primeiro degrau Engoliu o biscoito antes de responder Estou esperando um telefonema minha Irmã Ninguém me telefonou Irmã Bula examinou desconfiada a pequena raiz que acabara de arrancar Deixoua cair limpou as mãos no avental e levantou a face franzida de sol Os olhos lacrimejaram abundantes Tirou o lenço do bolso enxugou os olhos e aproveitou a oportunidade para se assoar Ficou olhando pensativo o ranho esverdinhado no lenço Dobrouo inclinouse para o canteiro e arrancou um tufo maior que veio com um bloco de terra Está liquidando o canteirinho sussurrou Lorena enquanto dobrava o guardanapo com o mesmo cuidado com que a freira dobrara o lenço No guardanapo branco as iniciais do pensionato estavam bordadas com linha vermelha PNSF Ponto de cruz A letra P era a mais caprichada Já o N meio torto se aproximara demais do S que para compensar o defeito abandonara o F ilhado na auréola avermelhada da linha que desbotou Um mato duro de tirar resmungou a freira vergando o corpo para trás Sua Santidade o Papa disse que o vício aumentou no mundo como esse matinho a gente arranca arranca e daí a pouco nasce tudo outra vez A senhora faz jardinagem como borda digo passando o dedo no F tão mais pálido do que as outras letras a se esvair sanguinolento em meio da nódoa rosada Como um ferido de morte Ah Rômulo Rômulo O sangue escorrendo do furo que mãezinha procurava tapar com a palma da mão a camisa vermelha empalidecendo recuando diante do sangue tão mais forte Que foi isso meu filho ela perguntou e o som da sua voz era branco Respondi por ele e minha voz também saiu de uma paisagem de neve sem sol Fiquei me ouvindo repartida em duas o Remo deu um tiro nele mas foi sem querer aquela brincadeira de xerife estavam perto do paiol e Rômulo corria para o rio acho que ia mergulhar quando Remo fez pontaria e gritou para nessa hora ouvi o tiro Rômulo parou segurando o peito e veio vindo foi sem querer estavam só brincando foi sem querer Ela não me ouviu Que foi isso meu filho repetiu baixinho sentada no chão com a cabeça dele no colo Fazia um movimento de embalo para a frente o para trás cingindoo com delicadeza mas a mão que tapava o furo do peito tinha uma crispação enérgica E se eu fosse buscar uma rolha Uma rolha A cara de Rômulo era cera transparente O sorriso transparente úmido Os dentes ficaram pálidos Sorria como se pedisse desculpas por estar morrendo Encaro o sol até a cegueira não não quero agora não Estava tão contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo tão perigosas quando se juntam Mas na raiz são descomprometidas Umas crianças A B H M O Tão raro o X Em declínio o Z rei desmemoriado o irmão gêmeo S com a astúcia de um usurpador Ponho o dedo em cima do F desventrado que Irmã Bula bordou as letras também levam facadas no ventre tiros no peito socos agulhadas coices também as letras são atiradas ao mar aos abismos às latas de lixo aos esgotos falsificadas e decompostas torturadas e encarceradas Algumas morrem mas não importa voltam sob nova forma como os mortos Como os mortos digo em voz alta e meu coração se alegra de novo Aleluia grito à Bulinha Mas ela já se foi com as mãos sujas precisa laválas depressa Eram boas as plantas que andou arrancando Eram más Correu o risco do julgamento e agora tem medo Adora fazer jardinagem e bordar Madre Alix tinha que ser a maravilha que é para permitir que ela cuide do jardim e marque com essas iniciais vermelhas toda a roupa do pensionato Enrolo no dedo o fiapo de linha que está se soltando de uma das letras qual Pensionato Nossa Senhora de Fátima Falta o de mas está subentendido Mordo o último biscoito e respiro estimulada Aí está onde eu queria chegar milhares de coisas estão subentendidas Nas entrelinhas O lado omisso Quero a verdade MN meu amado escuta entenda isso quero a verdade E você sugere reticências Omissões A verdade de peito aberto digo de cara para o sol Estou a fim de ter um derrame sai fumaça da minha cabeça mas preciso ficar minhocando as minhocações debaixo do sol são sempre mais lógicas ah MN você ainda não sabe o horror que tenho da mentira Escrevi seis folhas sobre o delito da omissão tive dez em Penal e você agora Minha mulher não deve saber é claro Por que claro Sorriso evasivo Vaguidão Porque é uma megera devia responder Todas as esposas são megeras que antigamente eram fadas falavam e saíam da boca pérolas e rosas que no decorrer da decorrência foram ficando umas rosas ambíguas miasmas de mau hálito e maus bofes como é que MN pode fazer amor com uma mulher assim Obesa vesga dentadura postiça ai meu Pai seria a glória se ela usasse dentadura E irônica mais do que irônica sarcástica A voz rascante Como será voz rascante Ligações suspeitas com corujas gralhas grrrr Tia Luci fala assim Mãezinha disse que ela foi bonita milhares de apaixonados e fogos de artifícios enfim agora não é mais e continua como se fosse coitadinha Alguém teria que avisar mas quem Já fez plástica até no pé usa vestidos da jeunesse dorée lá do tempo dela e faz aquelas caras Até para o Fabrício insistiu no charminho estávamos no cinema e ela começou a mostrar pela abertura da bata oriental adora essas batas um pedaço do joelho e nesse pedaço tinha varizes Ficamos tão deprimidos e ela continuava tinha operado os seios e precisava mostrar como estavam bacanas ah quinze anos E os malvados dos médicos botando lenha na fogueira que tal agora a orelha Mas a voz que não fez plástica é aquela esponja de fel a voz tem a idade verdadeira e não esconde um botão E se a mulher de MN for como tia Luci Polidamente infeliz Se você pensa que vou lhe dar o desquite está muito enganado meu caro Era do gênero de dizer meu caro assim com o maxilar duro e nessa faixa também entra a mãezinha ih o avesso desse meu caro que ela fica repetindo no auge da discussão com Mieux Boas maneiras Sim boas maneiras família rica estudou em colégios fechados O que não significa que MN lenha se casado por interesse ele era pobre me deu a entender que era pobre mas infelizmente se casou mesmo por amor Com o tempo foi descobrindo os pecados maiores da amada vícios próprios da burguesia como diz Lião soberba e avareza A gula também entra Lião já provou nas suas pesquisas que burguesa de país subdesenvolvido é gulosíssimas aos trinta anos estão todas com uma papada e um popô do tamanho do Jaraguá Então meu amado foi se fechando com seu cachimbo e seu Proust solidão de bichodecaramujo pode bater que não abro Mas abriu algumas vezes não abriu Cinco filhos Por que tanto filho MN É o que me deixa meio invocada cinco filhos Um caso difícil disse Dona Guiomar logo na primeira volta quando apareceu aquele Reide Copas Apontou a DamadeEspadas com seu dedo preferido e avisou que ele estava muito enrolado na mulher olha aqui a mulher Olhei e devo ter caído de quatro porque ela teve tanta pena que quis me descomprimir Previu milhares de homens maravilhosos que vão me amar até o fim dos tempos todos chegando de avião com uma pasta preta bossa James Bond Homens maravilhosos imagine Só pensava no meu rei proibido He has a god in him though I do know which god oh poeta onde estiver proteja este meu pobre amor Sei que devia pedir proteção a Ogum e Iemanjá mas perdoa Lião só posso curtir com espíritos e duendes de outros bosques tão linda a palavra bosque Temos bosques Bosque aqui é mato He has a god in him Mas é proibido já entendi é o verboten que às vezes se crava em mim como um estilete Em baiano a gente dava um jeito mas em alemão não tem esperança verboten verboten oh língua definitiva Se a mulher morresse de leucemia Tenho filhos da sua idade Lorena Ainda assim aceita este viúvo para marido Teria que me ajoelhar aos pés de Lião seja minha madrinha Quem mais quer se casar Lorena Quem Só os padres e as prostitutas E um ou outro homossexual entende Quis dizer eu eu Adoraria me casar com MN não existe uma idéia mais jóia queria me casar com ele sou frágil insegura Preciso de um homem em tempo integral Com toda a papelada em ordem acredito demais em papel herdei isso da mamãezinha Agora ela esnoba a papelada antiga mas é tarde os arquivos não estão nas gavetas estão na cabeça O quanto ela quis o casamento com Mieux como vibrou com a idéia Chegou a desenhar o vestido veio me mostrar o desenho não é melhor me casar regularizar nossa situação Concordei com o coração apertadinho assim lógico Lógico E lembrava a conversa com tia Luci que começou contando a origem do apelido Mieux em tudo quanto era reunião ele contava a anedota do tipo que dormia com a própria mulher porque não tinha ninguém melhor na hora faute de mieux on couche avec sa femme E sempre se torcendo de rir como se tivesse dito a coisa mais divertida do mundo Estendeu o faute de mieux a outras circunstâncias ia a um restaurante pedia vinho francês Não tem francês Então um chileno mesmo faute de mieux Acabou o chileno Então traga um nacional faute de mieux Ficou sendo Mieux ela rematou repugnada E daí tia Que importância tem se é um simplório Se convém à mamãezinha não tem problema Sei é muito mais moço E daí Assunto deles Vestese bem adora festas faz o gênero dela Não se pode exigir que ainda por cima seja um pensador Então a tia me puxou para mais perto e fez a cara de mistério que mãezinha faz quando não há nenhum Aí é que está De inocente ele não tem nada é espertíssimo Tenho provas de que andou investigando em bancos teve a ousadia de ir até nosso advogado tudo com ar de quem queria proteger a Mana Ficou sabendo das casas dos terrenos ficou sabendo por quanto foi vendida a fazenda e onde ela empregou o dinheiro ficou sabendo de tudo Puro golpe do baú Se sua mãe não tomar cuidado vai acabar no asilo São Vicente de Paula Então fiquei um pouco sem voz quando mãezinha veio mostrar toda radiosa o modelo do vestido um longo rosapérola com aplicações de renda no peito e nas mangas Eu num modelo igual iríamos feito gêmeas ela viu o retrato de casamento aí de uma artista e achou a glória mãe e filha de laçarotes nos cabelos e mãos dadas vamos brincar na floresta enquanto Seu Lobo não vem E Mieux firme no altar escondendo o rabo no rabo do fraque Desistiu da idéia só porque se lembrou que na hora de preparar os papéis apareceria a verdadeira diferença de idade entre ambos Mieux fazendo pressão e ela inventando milhares de pretextos para não casar mais protelou fez a cínica mas comigo se abriu Tenho nojo dessa papelada amarela que a gente tem que desenterrar no cartório mania de brasileiro viver Talando cm documento em nenhum lugar do mundo existe isso Não nasci Nunca mais voltamos ao assunto mas um dia morri de pena quando encontrei todo dobradinho dentro de um romance de Charles Morgan o desenho dos vestidos que usaríamos na cerimônia Esse livro ela me emprestou queria demais que eu conhecesse seu autor amado Cheguei a decorar trechos inteiros de Morgan na minha primeira juventude ela disse Teve primeira segunda e até quarta juventude Que fúria quando num dia de mau humor Mieux lhe disse aos urros que a juventude é uma só Coitadinha Como ninguém toca nesse livro ficou sendo o guardião das cartas que escrevo para MN E que acabo não mandando ai meu Pai Escrevi que toda minha vida convergia para ele e que era só dele que iria se irradiar de hoje em diante Quero te dizer também que nós as criaturas humanas vivemos muito ou deixamos de viver em função das imaginações geradas pelo nosso medo Imaginamos conseqüências censuras sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital mais profundo mais vivo A verdade meu querido é que a vida o mundo dobrase sempre às nossas decisões Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte Nossa plenitude eis o que importa Elaboremos em nós as forças que nos farão plenos e verdadeiros Cuidado com o sol Lorena diz Irmã Priscila É a voz de Irmã Priscila Abro os olhos Irmã Priscila subindo alguns degraus da escada Avanço de joelhos para alcançar a carta que ela me estende A cara de porcelana se abre num sorriso rosadinho Do meu irmão digo Ela protege com as mãos os olhos que se derretem na luz O sol está forte demais filha Lavou a cabeça E já secou olha aí Dias inteiros tão azuis e essa moça aí escondida no quarto Madre Alix perguntou hoje se você está bem ela até estranhou Estou ótima minha Irmã A Faculdade está em greve não então nada que fazer lá Se meu amado telefonar vou jantar com ele Ninguém telefonou Seus dentinhos são redondos e brancos um pouco separados Sorriso de dentesdeleite Antes de sair com o namorado passe lá tem caramelos de mel E tem esperança Mandolhe um beijo As pessoas são boas sim o que ela disse não é lindo Ponto pacífico que ele vai telefonar e que vamos sair Pensamento positivo Faço minha respiração solar pela narina direita e volto para o meu degrau Apalpo a carta que não é carta é cartão Adio o instante de ler como adiava na fazenda a hora de comer as primeiras mangas Querido Remo A embaixada é em Túnis mas sua casa fica em Cartago ainda existe Cartago Remo Existe sim Um bairro lindo com casas lindas em meio das ruínas romanas No jardim por onde andou Salambô há jasmineiros iguais aos da fazenda ele escreveu às vezes fica poético Há oliveiras plantadas nos quintais as azeitonas são colhidas nas árvores E as tâmaras vêm em cachos Como os mendigos atalhou Lião quando li a carta para ela Lá os mendigos também andam em cachos como no Nordeste Nem respondi Adianta responder Não se pode dizer mais nada de coisas belas e amáveis que Lião já agride com o Nordeste Remo só convive com diplomatas e banqueiros amigos de Bourguiba ele lá sabe de mendigos Telefone pergunto me levantando Agarro o corrimão de ferro e me debruço na escada Telefone As largas janelas do casarão abertas para o jardim estavam vazias Nas alamedas que contornavam os canteiros os pedregulhos brilhavam como pedras de sal Lorena passeou o olhar perplexo pelas janelas Nunca a casa lhe pareceu tão oca como naquele instante Mas não foi o telefone A Gata veio vindo tranqüilamente até o cesto de jardinagem de Irmã Bula experimentou com a pata o avental embolado e deitou se nele Enrodilhouse formando um círculo perfeito Já se engatou a vontade e agora descansa pensou Lorena enfiando os dedos por entre o emaranhado úmido quente dos cabelos o vento trazia ao acaso alguns estilhaços de vozes Mas na retaguarda inteira densa a voz de Jimi Hendrix se repetindo na vitrola esta molhado de suor e desespero mas não para tem que dizer depressa Escutem todos antes que eu vá embora depressa Já sei disse ela apanhando no chão o prato e o copo Cobriu os com o guardanapo Na escuridão latejante do quarto abriu mais os olhos deslumbrados assim cega ouvia melhor a voz calada e repetindo como no disco por quê MN Por quê Se ao menos Fabrizio telefonasse Cinema das quatro às seis Hamburger com chope ele adorava chope Tu quoque Fabrici A cara barbuda O cabelo espetado um jeito de andar assim de homem das cavernas oi Lorena Era noite e chovia potes Chegou todo molhado rindo e se sacudindo inteiro como um cachorrão sem saber direito onde meter as patas os botinões pesados de lama As apostilas encharcadas Ela ameaçou carregálo para não sujar o tapete e acabou sendo carregada e rodopiada pelo quarto mas você é gente Lorena Não pesa nada olha aí Quando ela sentiu no rosto a aspereza da barba dele deixou de rir e se fez mais frágil aconchegandose entre seus braços musculosos como se aconchegava nos braços do pai A certeza de que ele tomara banho havia pouco enterneceua não era sabonete de feno Sentiu de novo aquele mesmo aturdimento bachiano abriu a boca debatendose fracamente me larga me larga pediu puxandolhe os cabelos e ao mesmo tempo pensando que iam acabar amantes naquela noite mesmo Amantes Foi a palavra amantes que a assustou até o pânico Desvencilhouse Vamos tomar um chá Sei fazer um chá delicioso Ele a puxou pela mão Perdera o ar de cachorrão alegre estava agora sombrio o olhar baixo A voz baixa Senta aqui Lorena senta aqui Ela correu para encher a chaleirinha dágua o chá não ia demorai nada nem cinco minutos Demorou quase uma hora Primeiro foi o fogareiro elétrico que não acendia chameio para me ajudai estuda eletrônica além de Direito Quando a transa dos fios começou a funcionar caiu um raio não sei onde e a luz do quarteirão inteiro pifou Milhares de freirinhas vieram trazer pacotes de velas gritos na vizinhança tombos de Irmã Priscila quando foi recolhei a Gata que miava feito doida na treva do jardim um guardachuva era da Bulinha que escapou aberto e saiu voando na ventania Quando voltou a luz houve em torno uma certa paz a paz da contagem da verificação No telhado a chuvinha modesta Apaziguadora Achei que o chá se fazia mesmo necessário para armai uma certa atmosfera de confiança condicionei o amor ao chá Mas não tem um saci que entra na chaleira e fica soprando a água Despejei o chá antes da fervura não que estivesse me afobando imagine mas já disse que o chá não fica bom em água fervida Quando afinal nos olhamos de frente sem chá e sem palavras adivinha quem chegou Nunca ela me pareceu tão grande como naquela noite com seu impermeável velhíssimo e cabeleira de tempestade Trazia debaixo do braço os jornais e uma pasta de estatísticas estava na fase das estatísticas Sentouse no seu lugar preferido que é o tapete pediu um uísque e tirou as alpargatas pesadas de água Deilhe uma toalha para enxugar os pés depois de oferecerlhe um banho Recusou o banho Adoro me enfiar num chuveiro bem quente depois da chuva ah a sensação de bemestar com o talco e colônia e roupa seca fico feliz até às lágrimas Mas Lião não toma banho nem antes nem depois Estava vibrando com a entrevista que fez com duas prostitutas Falou um pouco sobre o tema no seu tom discursivo e depois de ligeira abordagem sobre a decadência da burguesia incluindo a decomposição da nossa geração e a falsa virtude dos velhos rasgou um pedaço de jornal para forrar as alpargatas Quando começou a recolher os pertences que espalhara pelo tapete me deu tamanha alegria que lhe ofereci a garrafa de uísque ainda pela metade leva querida tenho mais Aceitou radiante porque ia ter um encontro com o grupo e naquela chuva no mínimo uns dois deviam ter se resfriado Estava em pleno amor com Miguel ele ainda solto coitadinho Depois tenho uma entrevista no particular ela disse fazendo uma cara muito especial Assim que desceu a escada nos seus três saltos fui à vitrola Bach tinha que ser Bach Fabrizio fumava sério o braço debaixo da cabeça estirado no chão aqui só as freirinhas usam as poltronas Então ouvi passos Me mato se for Ana Clara E tive o que os antigos chamam de sorriso pálido quando ela entrou de terninho preto muito digna ficou mais de duas semanas assim de cara lavada conversando horas com Madre Alix meditando e tomando leite Pediu um copo recusou o cigarro que Fabrizio lhe ofereceu e sentouse na poltroninha tinha me esquecido Aninha também prefere as poltronas Queria livros emprestados estava a fim de destrancar a matrícula no curso de Psicologia diz que está no segundo ano mas desconfio que não fez nem meio semestre do primeiro Estamos em exame eu disse apontando a pilha de apostilas que Fabrizio deixou secando perto do fogareiro Temos que ler aquilo tudo já pensou Ela pegou o copo de leite e foi para a cadeira ao lado da estante Acendeu o abajur tirou os óculos da bolsa todas as vezes que pára de beber volta a usar óculos Não vou perturbar vocês fico aqui vendo uns livros E sem a menor cerimônia foi desembrulhado o que eu tinha comprado naquela manhã Deus Existe Eu O Encontrei Fabrizio me olhou Desliguei a vitrola Quando viramos a última folha eram quatro e meia da madrugada Ana Clara se cobrira com meu xale e dormia profundamente toda enrolada na cadeira Tinha passado a chuva Volto amanhã ele disse quando montou na sua moto sem o menor entusiasmo Fechei o portão Amanhã conheci MN Aperto a barriga do Pato Donald presente de Fabrizio Coém Coém Beijolhe o bico Meu pobre cachorrão estabanado penso abraçada ao pato fica fiel e me guarda como aquele cachorro do anúncio policial guarda o cofre Antes de Astronauta eu preferia cachorro mas descobri agora se cachorro me comove o gato me fascina Não minha poeta não é a morte que é limpa mas cruel é o gato Eu voltava do cinema com Aninha sóbria quando vi aquele gatinho mijado abandonado na esquina Fiz mamadeira de um vidrinho de remédio que Irmã Bula trouxe dormiu no meu pulôver de cashmere fez pipi e etcétera no meu bidê até aprendei a fazer no jardim entrou na cama comigo mas pensa que ficou um gato sentimental deixame rir Passava o dia na almofada ou dormindo ou me olhando sem muito interesse Nem agrados nem concessões um egípcio Entrou na minha concha mas não entrei na dele Um dia sem uma palavra sem um gesto saiu por aquela porta e não voltou mais Ainda vai aparecer sei que vai aparecer todo sujo rasgado Cuido das suas feridas das suas doenças e quando ficar de novo um gato lustroso gordo vai fugir outra vez e ser livre Quem é que segura um gato Não a mulher que já está velha ou quase velha o filho do meio não regula comigo Deve ter a idade da mãezinha que já fez duas plásticas e está caminhando para a terceira Outras estruturas outras esferas Sou a mãe dos seus filhos ela deve lembrar as trezentas e sessenta e cinco horas do dia Chantagem Meu amado meu amado como é que você permite tamanha chantagem Estou fadada à solidão digo e desato a rir ouço isso de tia Luci todas as vezes que ela sai de um casamento um pouco antes de entrar noutro Ponho um disco da Bethânia ah como ela lembra as amenidades de Lião quando Lião bebe e fica amena Antes de MN eu achava que não podia viver sem música mas agora sei que não posso viver sem ele Morreria com música as horas os dias os meses e o disco aí girando para todo o sempre lá lá lá lá lá lá Um dia descobririam um esqueleto mais franzino do que os esqueletos em geral metido numa bata tão tênue que a brisa num sopro desfaz E o tocadiscos soterrado sob a poeira a música já sem disco e sem agulha girando na barriguinha de um camundongo li li li li O telefone Ai meu Pai o telefone quatro Tinha um relógio grande assim na torre e eu queria me agarrar nos ponteiros segurar as horas por que é que o tempo não parava um pouco Queria ficar lá dependurado segurando o tempo Então mamãe me deu a mão e me levou na praça era tudo tão verde foi em Londres Os músicos tocavam e a gente sentava nas cadeiras escuta Max é Mozart Presta atenção querido Mozart Descubro um biscoito debaixo do travesseiro Mastigo devagar porque é um biscoito adocicado e não queria que ele acabasse logo gosto tanto de açúcar posso comer açúcar à vontade meu corpo é elegantérrimo não engordo Posso comer açúcar aos montes e não acontece nada Lião não pode Ainda vai ficar obesa aquela lá mais uns quilos e já pode vestir roupas de MãedeSanto Lorena não conta é inseto Existe inseto com problema de engordar Um inseto Danese esse Mozart gosto de Chopin Chopin e Renoir quero artista doce A boca no lugar da boca tudo certo tudo feliz que de malditos já estou cheia Foi o que eu disse a Loreninha Adora ouvir esses piolhentos mas só usa geléia inglesa no pão Uma esnobe Deixa me rir diz e verga pra trás e faz ha ha ha Ele largou os ponteiros do relógio e deitouse de novo A gente não veio ao mundo pra se aporrinhar aí é que está a coisa Procuro mais biscoito e só encontro farelo Tiro o cigarro da sua mão e a fumaça é açucarada Seu beijo é açúcarcande Max você gosta de Renoir Renoir o pintor Você gosta Ele recebeu o cigarro de volta e estendeu o braço para o teto Bosch Hieronymus Bosch Ah só monstro só atormentação Pintura de louco pomba Tenho ódio de louco Sentandose na cama ele começou a movimentar os braços num giro de hélices Gemeu quando os punhos fechados se chocaram no ar Quebrei a mão Ui que dor Bastardos Quero coisas lindas Quero tudo que lembre dinheiro bastante fartura Adoro os Estados Unidos por que não Aquela subversiva tem raiva porque é uma dura nunca vai ter nada melhor que fique com os piolhentos mas eu O melhor hotel Quantas estrelas tem o melhor hotel do mundo Inventou a nave espacial está lá nos quadros tem uma porrada de naves quando ninguém ainda pensava Uma droga essa daí que está na lua Tudo voando vuuuuuu Gosta de viajar o escamoso Pois vai viajar olha aqui a companhia Os melhores hotéis Ano que vem recomeço meu inglês quero aulas de conversação com aquele cara como era o nome dele Aquele besta Pronúncia de Oxford Diabinho de asa veja só que sacana Tem um que agarrou a mulherzinha pelo pé isso Ferro na boneca Podia dormir três dias seguidos murmurou Ana Clara esgueirandose por entre as pernas do homem Foi subindo rastejante até atingirlhe o peito Onde está seu copo Estou lúcida Max Foi a aspirina que você me deu Estou lúcida nada mais faz efeito Sei lá Ih aquele bem pretinho Está com um penico olha olha depressa Que revoada ahn Sai sai pra lá gritou ele escondendose atrás dela Cingiua como um escudo Riu Querendo enfiar o penico na cabeça Num penico vivi eu Só atormentação só monstro Cansei Era que mais Agora quero dourados anjos coisas ricas Pintura bem quadrada isto é o que eu quero que abstracionismo já tive Na realidade a miséria é abstrata No auge ela é abstrata Sabe aquele abstrato no estômago Quero uma casa quadrada Flores quadradas quero rosas tenho ódio de flor excêntrica aquelas que A cara no lugar Ora Van Gogh A paixão de Lorena é Van Gogh e aquele outro louco Nhem nhem nhemnhem Pinta flores de carne sabe o que é carne Sangram Carne lixada o sangue poreja confessa confessa ele dizia afundando o pincel Lião contou que o piolhento foi lixado assim Se me convidassem para entrar nesse grupo quando era menina você sabe que eu entrava Enfiava mesmo porque pensava demais em justiça e coisas era uma menina muito especial viu Lorena Mas agora quero um grupo diferente Tira ele daqui Coelha Me abraça Ela cobriulhe o rosto com o travesseiro Ficou enrolando no dedo um anel de cabelo Bem feito Ora acabar com a burguesia Mas se é agora que eu Esperem um pouco também quero não posso Ano que vem vida nova meu santo Tranco a matrícula e depois Quero ser a primeira está me ouvindo Com dinheiro a gente aprende rápido com dinheiro fica fácil Sou inteligente não sou Psicóloga O escamoso me compra a clínica caixa alta tenho nojo de problema de mendigo Escolho a clientela Um saco de ouro Então Max torciase de rir Enrolavase agora nos lençóis Tem um querendo bicar o meu piupiu olha o bico dele gritou se descobrindo Fechou os olhos subitamente apaziguando Escondeu o sexo com as mãos Sorriu Mon chou O ano que vem ele vai ver quem é o petit chou Vida nova meu lindo Adeus Ana Clara Conceição filha de Judite Conceição mas e esse seu sobrenome Vaca Fez cara de espanto a vaca Mulher é mesmo inimiga Algum professor me esnobou por causa disso Quem é que se importa com nome Ela se importou Vaca Ciúme porque sou bonita Você tem uma incrível resistência para línguas Ana Se eu tivesse um saco de ouro ela teria notado essa resistência Vaca A nhemnhem também fez aquela carinha que conheço quando repetiu meu nome Ana Clara Conceição Conceição sim senhora E daí Quem mais nesta cidade se importa com nome Cidade formidável acabou tudo isso agora é só saber se a gente tem ou não um saco de ouro em casa Se tem pode ter o sobrenome de merda e as pessoas enchem a boca e dependuram no seu peito uma medalha Acabou isso de nome acabou tudo Tempos novos minha boneca Gosta de brincar me chamando pelo nome inteiro Ana Clara Conceição você está me ouvindo Estou Lorena Vaz Leme Descendente de bandeirantes Original pomba Estupravam as índias e metiam um tição aceso no rabo dos negros pra saber se não tinham escondido um ourinho lá no fundo Mas eram tão bacanas Os chapelões enormes e os nomes mais enormes ainda Quem é que está ligando hoje pra essa conversa de bandeirante Rasgo a certidão com o pai não sabido e ignorado e quero só ver Certidão nova pago uma certidão nova com pai conhecido e sabido Batizo meu pai pra me casar não posso Nome de imperador Então Quando o escamoso ler a certidão certinha vai babar de gozo Caio César Augusto Caio César Augusto Conceição Professor Ou físico Bacana ter um pai físico Cientista Melhor ainda professor universitário Não tem uma porrada de universidades espalhadas por tudo quanto é canto Por que meu pai não pode Uma débil Fazia amorzinho até em terreno baldio isso ela sabia fazer mas agarrar um daqueles vagabundos pelo cabelo e levar ao registro vamos você é o pai dela dê aí seu nome que você é o pai Porque morreu vou ficar sentimental Só alegria disse ele abrindo os braços Se a gente afundar vão se abrindo assim tão alegres A vida fica perfumada e doce Uma paz tão fabulosa A alegria Fico olhando Max dormir todo feliz segurando o pinto E tem coisa melhor pra segurar Muito lindo o meu amor E daí Ano que vem você vai ver Não fico sentimental só porque ela É isso que a senhora não compreende Não quero botar a culpa em ninguém não vou ficar o resto da vida acusando mas Sei lá Os tipos nojentos que levava pra cama Uma sorte não levar negro devia ler alguma coisa contra negro Vi de tudo menos negro Uma sorte não gostar de negro pomba O Jorge tinha aquele cabelo duro usava touca de meia Mas era branco lá à moda dele Como os outros Seu tipo é de italiana Você descende de italianos perguntou Lorena O escamoso também perguntou igual De italiano não De francês Podre de chique descender de francês Meu pai era francês Jean Pierre Lariboisière Lariboisière Sei lá na hora decido meto o nome que entender não estou pagando O Conceição e da mãe Assim que se separaram tomei o partido dela Boa filha Então Mas como é que Sei lá Chega de pergunta não está vendo meu cabelo ruivo Minha pele Tudo autêntico Branquíssima Bastante suspeita é a Lião E mesmo a Loreninha com seus bandeirantes Sacudo Max Você também é branco amor Não temos nada com esses subdesenvolvidos somos brancos está ouvindo Uma manhã tão contente A manhã de sol Dá a mão pro sol Dou a mão que ele segura e depois larga Na mão do Jóge tinha uma letra tatuada era um R Um anel de pedra vermelha no dedinho Ela falava Jóge A unha do dedinho mais comprida do que as outras por que era mais comprida A touca de meia pra alisar o cabelo caindo até o ombro Sabia dançar figurado ganhou até um troféu num programa de calouro Um Degrau Para A Glória Bicha Na certa deu o rabo pro animador Max estou lúcida acho que tomei aspirina Foi aspirina Procuro no chão um cigarro Bebo na garrafa e fico tragando até chegar à estratosfera mas por que essa barragem de pedra Preciso me desligar Madre Alix Queria tanto esquecer e não esqueço Fica às vezes na minha frente com aquele olho pingando de amor e dizendo pra gorda que o Jóge dança qualquer musica na perfeição e que no programa ganhou um troféu deste tamanho Madre Alix me ajuda Me ajuda me ajuda me ajuda Eu não quero mais lembrar e lembro Sei que a infância acabou tudo acabou e que ela era uma No ano que vem vai começar tudo novo e tudo bom e eu posso viver como se não tivesse atrás esse começo Mas ouço às vezes tão perto a bofetada que ele dava nela e que fazia funcionar o anel de pedra do dedinho O quarto gelado da construção que não acabava nunca e ainda bem que não acabava porque o dia que acabasse O Aldo Era o Aldo Tão bom o Audo ela dizia mas acho que pensava ainda no Jóge Quero voltar pro Recife assim que acabar essa maldita construção e me livro de você com sua maldita filha O cimento cinzento os ratos cinzentos sujos de cal as baratas cascudas sujas de cal e nas unhas nos cabelos na boca cal cal Entrava no pão nos olhos nos ouvidos e a gente precisava soprar o pão e a roupa Por que você está sempre sacudindo as coisas a Lorena me perguntou Tão fina a poeira de cal tão branca e fina Loreninha diria sutil Uma noite olhei pro Aldo com sua camisa nojenta e o boné de jornal Cal na cara nas gretas nas pestanas Ele era inteiro uma estátua no meio do quarto Minha mãe já tinha apanhado feito um cachorro e agora estava deitada e encolhida gemendo gemendo ai meu Jesus ai meu Jesus meu Jesusinho Mas o Jesusinho queria era distância da gente Então catei a primeira barata que passou pelo fogão e joguei dentro da panela de sopa Aí parei de chorar chorava de ódio e o choro de ódio é estimulante as minhas melhores idéias nasceram do ódio Fiquei olhando a barata atravessar num nado de peito toda a piscina de sopa e transpor a ilha enrugada que era a folha de couve e chegar na outra margem juntando as mãos e pedindo pra sair da panela fervente Chegou a subir até a borda com as asas compridas pingando pingando e me olhou sentimental como minha mãe me olhava ai meu Jesus meu Jesusinho Com a colher empurrei a baratona pro fundo não Madre Alix não quero mentir aporá Agora não Não tive pena nem nada quando ela veio me dizer que tinha que tirar mais um filho porque o Sérgio não queria nem saber nesse tempo era o Sérgio Não quero nem saber ele disse dandolhe um bom pontapé Uivou de desgosto o dia inteiro e nessa noite mesmo tomou formicida Morreu mais encolhidinha do que uma formiga numa pensei que ela fosse assim pequena Escureceu e encolheu como uma formiga e o formigueiro acabou Rua dos Guaianases fundos Não tinha cal mas tinha violão e futebol O gaúcho também cantava Chutou na perfeição Ou foi aquele outro Não interessa Ele matou seu irmãozinho ela choramingou apertando a barrigona Quando voltei de noitinha a primeira coisa que vi foi a lata aberta no chão Fiquei olhando Não chorei nem nada mas por que havia Não senti nada Tinha a cara no travesseiro manchado de preto e o corpo encolhido e retorcido como a formiga no rótulo da lata Apaguei a luz e saí pensando que se fosse trabalhar na manhã seguinte podia trazer lá da floricultura as flores de cabo quebrado Mas não vou voltar a trabalhar nessa floricultura porque tenho ódio dessa floricultura Não quero mais nada que odeio Nunca mais ninguém vai me ver Agora estou sozinha Noite estrelada com gente do cortiço se despencando pelas janelas pelos muros Sua mãe está lá A novela já começou Ela não vem perguntou a Mina que engravidava diasim dianão Ia vibrar com a pílula Minha mãe também ia mas às vezes falha Max estou grávida Que é que eu faço que é que eu faço Os diabinhos ainda voam por aqui e brincam comigo e eu dou beliscões em Max que nem sente nem sente É festa Esqueça esqueça Levanto a cabeça e entro na estratosfera podre de azul grito azul e deslizo azul até o chão rastro veludoeventre a gente devia andar só assim liquefeita e azul colada ao chão escorrendo os braços de rio sem nenhum perigo de cair nem nada Tanta coisa no chão olha aí A brasa trinca os dentes e se apaga na água mas o gafanhoto adulto vem vindo e me olha com seus óculos redondos e me estende as mãos juntas e fica na minha frente com seus sapatos pretos de amarrar e meias brancas Fico rindo dos seus sapatos mas ele está sério e suplica juntando as mãos verdes você me prometeu Ana Clara Beijo seus sapatos O ano que vem Madre Alix O ano que vem Já está tudo programado isto é só a despedida estou lúcida não estou A gente tem que conhecer as coisas todas chegar ao fundo do poço e depois dar aquela arrancada de avião uiiiiiiiiiii Meu noivo tem um aviãozinho só dele Dou uma casa pra senhora uma casa na praia tenho paixão pelo mar olha ai o mar Tinha a minha amiga vesga lembra Adriana Está vendo como estou lúcida Adriana Ela não sabia onde eu morava não sabia nada e pensou que eu também podia ser do grupo a gente se conheceu por acaso na fila do cinema e depois tomamos sorvetes juntas e intuí logo que ela era rica a Loreninha diz muito isso eu intuí Também eu pomba Fiquei sutil como a rataria em noite de lua sabiam que a lua clareava tudo e tomavam seus cuidados Inventava quilos e comecei a ficar tão esperta a intuição me dirigindo por aí não depressa fecha a boca agora dê risada Agora chorei Fecha a boca Aninha Fechei muito a boca porque a ponte estava cainãocai Então a velha quis saber por que eu andava assim quietinha A casa era enorme bem defronte do mar ninguém mais podia tomar banho naquela praia só a gente Então a velha quis saber Meu pai morreu num desastre de aviação e minha mãe está com câncer Ela então se benzeu meu Deus que horror Que horror ficou repetindo e sacudindo a cabeça e me consolando porque já comecei a chorar ah minha pobre menina minha pobre menina Vai acontecer que nem nas besouragens da mulher importante que adota a órfã pobre e bonita E vem um sobrinho orgulhoso e cruel porque me visto mal mas logo fica vidrado de amor e se atira em mim que nem E o Doutor Algodãozinho Digo que aconteceu num tombo que levei Tombo não um negro me agarrou no campo quando fui num piquenique e rasgou meu vestido e perdi os sentidos Doutor Hachibe sabe disso aquele meu analista A casa no alto de um penhasco e a mãe me detestando no começo porque queria que o filho se casasse com uma prima rica e vesga que nem a Adriana A verdade Madre Alix minha querida minha santa A verdade na miséria fica um lixo A nhemnhem é igual com essa mania Se um daqueles discípulos desse um saco de ouro pra Pilatos ele lá ia lavar as mãos Lavava nada Arrumava um cavalo e Jesus fugia pelos fundos e ainda por cima com uma escolta da cavalaria montada garantindo até a fronteira Mas isso tudo é mesmo verdade estranhou a mulher enquanto ia tecendo um tapete fazia um tapete e era exigentíssima tanto no trabalho como no questionário Antes de falar eu precisava pensar mas ela trabalhava tão depressa com a agulha que comecei a me enredar nos fios Aconteceu quando meu pai guiava um Opala e ela parou a agulha Opala Mas não foi num avião Recomecei a chorar pra ganhar tempo Primeiro foi com o Opala e depois Mas seu pai tinha um avião ela se espantou Ele era o aviador O avião era de um velho que lidava com petróleo Petróleo Petróleo sim senhora Como se chamava esse homem Esse patrão do seu pai Ah lá sei Sei que era um homem importantíssimo tinha avião tinha iate Ah Ah fez ela recomeçando o maldito tapete E depois Depois o avião se espatifou nas pedras tinha caído uma horrível tempestade e meu pai perdeu o controle foi isso Então minha mãe piorou lá do câncer dela e perdemos tudo e fomos morar com meu tio que é um grande médico Médico Qual é o nome dele Fui ficando com raiva então era só ir fazendo a vontade dela Um grande médico sim senhora importante à beca tio Clóvis Já ia perguntar o sobrenome dele quando entrou a vesguinha Tinha uma concha na mão Clóvis Conchal respondi sem pestanejar Clóvis Conchal repeti e antes que ela me cutucasse com mais perguntas como cutucava o pano dei um grito sacudindo a mão uma vespa Saí correndo ai que dor que dor Não se voltou a falar no meu pai não sabido e ignorado nem na minha mãe que tive a idéia de sentar na sala de espera da morte nada melhor do que a morte pra apagar as pegadas como a onda apaga toda a escrita da areia As noites cintilantes Noites cintilantes As pessoas cintilantes bebendo e rindo com o mar lá na frente não sei porque disso tudo me ficou uma lembrança assim de pedrarias e gelatinas azuis vermelhas verdes nas noites de copos na varanda O colorido dos vestidos alguns tão brancos como ovos batidos por quê por que essas pessoas me faziam pensar em coisas de comer Gelatinas e cremes parecidos entre si como fatias saindo da mesma massa Da mesma forma Minha boca se enchia dágua como diante diurna mesa posso A fome antiga tão antiga posso Não Ainda não Nenhum priminho pra me amar Nenhum casado pra me seduzir Deixame rir diz a nhemnhem O jogo era entre eles e jogo alto Sobrou a velha solitária que eu olhava com olho comprido quem sabe está querendo minha companhia no seu castelo Eu iria à festa com meus trapos mas quando o príncipe me visse entre as debilóides das princesas Na minha história nem faltava a amiga vesga e rica já se esquivando porque a comparação era inevitável Quando meu amor completar quinze anos vai ser operada da vista na Inglaterra não é amor E o amor envesgando ainda mais de pura alegria o bocão rindo rindo Eu vibrava É evidente que depois Adriana vai ficar uma boneca mas por dentro dava cambalhotas de gozo Porque nem operada por Deus aquela cara ia ter concerto Nenhuma será minha amiga Madre Alix nenhuma A senhora me ama mas a senhora é santa não conta Na realidade Como podem me perdoar Nem a Loreninha que me dá presentes e dinheiro e me pinta quando minha mão treme demais nem a Lorena que lava meus pentes Oriehnid Aquele arzinho superior que conheço bem Como se eu fosse uma agregada Me esfregando a família na cara o tal tronco de bandeirante de chapelão e bota Os senhores da terra que abriram cidades E o rabo da negrada Não é que não goste dela Gosto Mas me enerva com aquele jeitinho todo especial de dar conselhos sem aconselhar uns conselhos enroladinhos toda ela é enroladinha Nhemnhem Uma coleção de vestidos bacanérrimos uma coleção de perfumes bacanérrimos e Com aquela roupeta de menininha cheirando a sabonete Não gosto de muito perfume só uma gotinha às vezes Muito apurado o insetinho com sua minigotinha de Miss Dior Na realidade quer dizer que uso perfume demais que sou vulgar porque despejo perfume em mim Despejo mesmo pomba E então A outra da esquerda faz aquele sorriso da esquerda e também arreganha o nariz Sinto seu Perfume até no meu quarto Trabalhando pela pátria Ora danese Quem e que esta pedindo quem Fica me olhando com o olhão Parado Que é isso no seu braço Uma picada Picada sim e daí Paro com tudo quando bem entender Vou ser capa de revista Me casar com um milionário Fique aí embananada porque o ano que vem Como sou boa posso ainda ajudar você e seus piolhentos ajudo todos Dou uma casa pra suas reuniões Dou uma casa pra Loreninha que vai ficar sem nada com aquela mãezinha esbanjando a fortuna não tem importância não interessa Resolvo tudo Então fico verdadeira Só peço a Deus pra ser sempre verdadeira ela disse não sei quantas vezes naturalmente com intenção de Verdadeira Com dinheiro também fico pomba rico a própria boca da fonte jorrando a verdade É fácil dizer a verdade na riqueza Bacana os gloriosos contando nas entrevistas que na infância reviraram a lata com os ratos muito bacaninha tanta autenticidade Coragem não Bonito Mas é preciso ter quatro carros na garagem e caviar na geladeira e uma vila na putaquepariu pra confissão ficar interessante É preciso cuspir dólar pra ter graça a história do mascaradocurasgado é preciso Madre Alix minha santa santa Por enquanto ainda não Quando me estruturar conto tudo esconder onde Sabe o que é se estruturar Se forrar de oriehnid Antes me costuro e faço um enxoval que o escamoso gosta de me exibir prós meiacervejinhas dele Escolho um bom analista que agora sou eu que não quero mais aquele louco Bastardo Ganancioso Perguntei se tinha se casado por amor e me respondeu que era um amor que durava até hoje Casar por amor ora Se com este daqui que amo às raias não sinto nada imagine só como vai ser com aquele escamoso Me atocho de óleo e fico ganindo Está lá descascando o pãozinho dele por que se atrasou Fui assaltada pronto O tipo me levou pro mato e se não fosse o Agnus Dei da Madre Alix Estou sem dinheiro todo aquele que você me deu Ah Madre Alix diga que não vai acontecer nada me abençoa e bota a mão aqui na minha cabeça que está fazendo roqueroque passa sua mão e eu esqueço como quando vinha aquela onda e a espuma Aterrissar Aterrissar gritou Max abrindo os braços e desabando de bruços no travesseiro Eu vi numa vitrina de cristal sobre um soberbo pedestal ih Coelha essa música eu queria cantar tudo é uma boneca que ele ama uma boneca na vitrina uma puta de uma boneca mais linda que Vênus no bazar das Húmus no reino das fascinações cantou e se afogou no riso A estrada vermelha Estou contente porque a estrada é vermelha Passou um anão agora mesmo aqui no canto do meu olho mas precisamente A estrada é vermelha de sol Vou indo no sol e vou contente porque faz calor e o vento Lá longe vejo o cantor vem vindo com sua guitarra elétrica antes de ver sua cara vejo a guitarra brilhando no sol é como se tivesse um outro sol dependurado no ombro Um negro mas desse eu gosto Gosto de todos os negros gosto de todo mundo todo mundo é bom pra mim e estou contente de sol e de música ele vem cantando pela estrada e as coisas todas vem cantando junto uma alegria vermelha tão quente boa viagem grito e ele me cumprimenta rindo gosto desse daí com sua guitarra elétrica que brilha tanto que preciso fechar os olhos é um sol Boa viagem ele diz no meio da luz vermelha da estrada e agora ficou longe sua cara sua guitarra A guitarra Onde estou Que horas são Esfrego os olhos que ardem Sento no tapete E isto O pé de Max pende fora da cama Beijo seu pé Meu joelho está molhado Uísque Uísque é evidente Como pode ser baba Teria que ser um crocodilo Abro os braços de alegria ah aquela estrada Falar É preciso falar tudo é ir falando o tempo todo deixar correr a confissão como vai correndo o mijo Quero mijar vou de rastros até o banheiro agora sou vegetal se alastrando Trono alto tenho que fazer na banheira levantar a perna como o Lulu Vou ter daqueles cachorros bacanérrimos com pintinhas pretas e olho azul como é o nome Aquele Mas quero também um vagabundo com a cara do Lulu A única coisa decente que tive a única que me amou vem Lulu eu chamava Vem Lulu E ele vinha rindo e dando esguichadas de pura alegria Passear Lulu Passear Quando vi a praia pensei logo nele o Lulu vai contente correndo aqui na praia O mar No mar esqueci minha mãe inesquecível o rançoso da brilhantina do Jorge com a meia enfiada até a orelha nesse tempo era o Jorge Tempo do Doutor Algodãozinho a ponte já vacilava na minha boca mas vinha a espuma e me cobria e eu podia rir sem passado sem visgo uma onda atrás da outra e os algodõezinhos afundando na espuma No mar fiquei sozinha porque enfiei tudo num saco e fechei a boca com corda como a Mila fez com os gatinhos e joguei lá onde passam os barcos minha mãe o quarto os homens as baratas as roupas O Lulu não O Lulu eu enterrei num caixão de ouro branco ninguém vai jogar meu cachorrinho no lixo volta Lulu Volta Te dou um osso de ouro volta me lambe a cara a mão ai que dor Que frio quero o tapete Vem Aninha vem aqui no tapete eu chamo e obedeço Não chora que te dou Não chora vem A garrafa boiando na onda tem uma mensagem dentro se eu rastejar mais um pouco Estendo o braço e bebo a mensagem que diz Fico boiando e o sol brilha indo e vindo no mar de pedra verde em cada onda tantas pedras A pedraria verde uma imensa pedraria toda verde arranco um pedaço de mar e me enrolo nele Pomba quero saber agora quem tem um vestido igual Quem Estou acesa com um holofote aberto no ventre Deslizo e o ventreporto me leva às furnas onde me penetro e me escondo Cuidado A voz me avisa e abaixo a cabeça e vou remando agachada porque o teto é baixíssimo Ouço o plaqueplaque da água batendo solta nas paredes O escuro das gretas Borbulhos dos bichos de sombra colados às folhagens o maior deles me espiando por entre a mata de pêlos vivos grossos Barbatanas Levanto o remo e bato com força mas as ventosas se enrolam em minhas mãos e me puxam para o fundo mais fundo me larga Arrebento os fios nos dentes e fico batendo até a dor ficar insuportável Acordo Estou molhada de suor Fico olhando meu ventre latejante Limpo a cara no tapete Tinha que engravidar Tinha Debilóide Engravidando igualzinho Mas o ano que vem me arranco feito um jato a diferença é essa ela virou formiga e eu Me desgrudo desta pele e nasce outra sem tatuagem sem nada Empurro a garrafa e fico rindo toda dourada por dentro Depois do mar e do leite e sei lá Não interessa Digo que me atrasei porque aquele negro da estrada que era tão meu amigo de repente voltou e me agarrou rasgando meu vestido olha aí meu vestido rasgado Que é que o Doutor Algodãozinho tinha de negro A unha A unha Lião fica fumegando com a negrada Tem paixão pela negrada Corintiana Disse que era abominável falar assim e só não deixava de me cumprimentar porque era minha amiga mas se eu continuasse era capaz de Compreendo minha boneca compreendo mas quero só ver se você se casaria com um negro e ela ficou histérica é evidente que sim e só não casava porque não queria nem saber de casamento mas se um dia se apaixonasse por algum pensa então Penso sim Penso Então não sei Você e toda essa corja tem ódio de negro Que nem eu Todo mundo tem ódio Mas não tem coragem de dizer e faz aquele olho bonzinho O ano que vem Destranco a matrícula e faço meu curso fácil sou inteligente à beça Uma casa podre de chique na praia convido convido todos podem morar lá não sou mesquinha dou pra vocês também Quero jóias Tudo brilhando Jóias grito e sacudo Max que me olha mas continua dormindo Max vou me casar com um escamoso mas não te abandono nunca Está ouvindo Max Posso casar com mil escamosos e não te abandono nunca nunca Dorme ele diz e sua baba escorre fiodemel na barbicha Beijo sua mão seu peito Beijo a medalhinha de ouro que está toda enredada na corrente que santo será esse Beijo a medalha beijo seu pescoço Mas não te abandono Pra onde eu for te levo comigo e te protejo Protejo Compro uma casa linda fique com ela pomba A gente faz uma desintoxicação com leite a gente se cuida fique tranqüilo Quando o escamoso começar a encher o saco me desquito Metade das fábricas e livre livre Desabo no tapete e gemo de dor bati com as costas onde Foi aspirina que você me deu Max Acho que foi aspirina estou podre de lúcida olha aí Ele agora está com soluços Deve estar com os pés frios cubro seus pés tem pés de estátua com as unhas cortadas retas como nos pés das estátuas Se fosse jogado assim nu no meio de todos os bastardos da minha mãe se destacava na hora como se tivesse vindo Pode enfiar aquela meia na cabeça e usar a brilhantina e não fica rançoso nunca Mas esconder a minha marca A marca escatológica a Lião fala demais em escatologia tinha uma peça fomos ver e ela vibrou Diz que é a visão do fim do mundo escatológico sei lá Mundo deles que o meu e outro Me viro pra fazer sumir a marca mas pensa que Só no teatro no teatro fica muito bacana o cara ensinar à trapeira a fala nobre aquele cara de roupa xadrez como era o nome dele Tudo mentira Enquanto a gente não tiver aquele saco de ouro a pronúncia não funciona porque vem a Lorena e descobre Danese Um inseto O ano que vem Max O ano que vem stop está ouvindo Você só vai tomar leite Chega Acredita em mim Max nunca mais está ouvindo Max diga que acredita em mim pelo amor de Deus Ai Coelha está doendo Diga nunca mais vamos diga nunca mais Nunca mais Nunca ele repete e se sacode todo em meio a um soluço mais forte Colo minha boca na sua e assopro até passar o soluço Ele se debate e se aquieta sorrindo para mim ou para alguém que está atrás de mim acho que agora está vendo a mãe faz essa cara quando vê a mãe Começo a chorar mas não estou triste estou é estimulada como aquela barata que fez a travessia em cima da opa estourando no vulcão e chegou inteira do outro lado não chegou Também chego do outro lado e ainda volto pra te buscar Vamos ter dinheiro meu amor e você larga esse trabalho perigoso e sujo tenho tanto medo que te apanhem Max Se te apanham A Lião disse que estão apertando demais o cerco estou com muito medo Acorda Max estou com medo Não quero mais que se arriscando pros menininhos não Me ajude Madre Alix eu não quero mais assim não quero ouviu Max Vamos começar tudo de novo fazer esportes hora de esportes vamos começa ordeno agarrando seus tornozelos Mexa essas pernas vamos nadar um pouco olha aí o japonês cronometrando Faça motorzinho depressa umdois umdois mais força nisso Umdois Beijo seus pés e neles enxugo as lágrimas que não param de cair Comecei chorando baixinho e agora estou aqui aos berros tenho ódio de chorar porque me estraga a cara que tem que ficar em ordem apostei tudo nela está me ouvindo Mas agora tenho que berrar tem vento mas grito mais alto do que ele ô Ôooooo Rolo nas nuvens e caio num fio dental que me apara na gangorra tem uma moça de porcelana branca na outra ponta eu subo e ela desce Vestida de primavera em que jardim ela estava Tira flores do cesto que está no colo e as flores têm aquele arame que vara i comia não essas flores não Essas não eu digo e ela começa a cantar fui andando pela ponte a ponte estremeceu Seguro a minha com a ponta da língua água tem veneno maninha quem bebeu morreu Mas eu não bebo eu não que já sei eu não grito e ela saiu dançando pra se encontrar com as irmãs que descem o gramado de mãos dadas São tão brancas e leves com os vestidos de porcelana uma dizendo eu sou o verão A outra encapuzada dizendo A musiquinha é feita dos sinos de Lorena e fala na alegria de cada estação ah quero essas estátuas no jardim da minha casa somos as quatro estações as quatro irmãs Agora a encapuzada chegou bem pertinho de mim e arrancou o capuz Sorriu Não tem os quatro dentes Escondo a cara no lençol mas ouço o riso da formigona desdentada com sua boca de fenda Se eu pudesse Não tem importância Nenhuma importância diz o anão que passa Pisca pra mim Puxo sua barba e rolamos na maior alegria ô como te amo Arranco o cigarro da sua mão e subo com a fumaça pelo cone do abajur Felicidade é isso é se preparar calculando tudo ponto por ponto Depois jogar no lixo as muletas todas Boa essa palavra Estruturar Jogar tênis meu lindo Sempre quis aprender lembra Estou com fome gemeu ele Tinha os olhos fechados Que fome Ela encolheu as pernas e apoiou o queixo nos joelhos Bateu a cinza no lençol Quero montar também Saltar obstáculo acho demais aquela roupa vermelha caça a raposa ainda tem raposa Um espetáculo o controle sobre o cavalo controle de nervos Estendeu a mão que tremia Se desintoxicar numa clínica bacana a Lião fala desintochicar Riu Levaria as duas para a casa da praia até que gostava bastante daquelas duas bestas Gostava sim Estendeu a mão que segurava o cigarro Um bom tratamento e não teria problema Na realidade menos resiste a um Porsche na garagem A um Renoir na sala Heim Haveria ainda algum Renoir à venda Max tem Renoir à venda Punha um anuncio Pergunta de anuncio Riu Metade gozação metade pra esnobar Chocar esses bastardos Milionária sulamericana compra um Renoir de preferência com as demoiselles seiláoquê de cabelos da cor do meu colhendo flores no campo Banhistas de calcanhar corderosa existe pé com calcanhar assim Lorena disse que ele pintava a classe média francesa mas se classe média eram aqueles veludos e flores queria eu estar nessa classe A gente não veio pra se aporrinhar ahn disse ele estendendo a mão Traçou com o dedo um círculo no ar Veja a cor no avesso Onde vai esta louca Ana Clara distendeu as pernas Deslizou pelo corpo nu as mãos abertas Fechouas na altura do ventre e golpeouo com fúria O olhar intenso se fixou no púbis Deixou tombar sobre ele a mão fechada num último murro enfraquecido Mais despesa Mais chateação Engravidar de um duro desses E agora dorme como um anjo Pois agora não dorme Max acorda que eu quero conversar Quero conversar Cuidado Duchinha o verde é venenoso Vai no vento tão louca Quando menino ia com a irmã colher cogumelos mas onde Onde é que podia haver tanto cogumelo assim Guardachuva de sapo Tão úmida a construção que começaram a brotar por entre as pilhas de tijolos cobertos de limo O mato rasteiro E os cogumelos brancos lembra Era bom despedaçálos entre os dedos cravar as unhas naquelas copas penugentas que se deixavam esfrangalhar sem resistência E pisar nas formigas ruivas mas nas baratas não Faziam craquecraque debaixo do pé enquanto a massa silenciosa saía como de uma bisnaga que se aperta até o fim Eram peitudas e nadavam bem naquele bravo nado de peito vupt Vupt Mas tremiam de medo quando eram caçadas Também os cogumelos tremiam com suas calvas brancas Arrogante só a formigona de nariz arrebitado e fenda na boca rasgada de uma orelha à outra Ria ria com o bocão desdentado a bastarda Pensar que podia voltar de novo tão traiçoeira Às vezes era apenas uma bolinha de gude E de repente no vidro preto ia se desenhando uma cara que crescia com a rapidez do inferno e sob as ventas arrebitadas prestas Acho que estou precisando pomba Mas tenho que para todo mundo já está com o saco cheio só aporrinhações quem quer saber Quem Só Madre Alix que é santa Estou ouvindo filha pode falar o que quiser se isso lhe faz bem Mansamente Ana Clara foi enrolando e desenrolando no dedo uma ponta de cabelo Faz bem sim Faz bem A única desinteressada a única Até o Kléber Louco pra agarrar a gente o sacana Que respeito posso Que respeito perguntou ela golpeando o colchão Bestas Todos uns safados e bestas Melhor fluido de isqueiro que qualquer fluido é melhor do quê Caríssimos Mas precisava Quase endoidava às vezes de vontade de ficar falando das aporrinhações Dos sonhos E pagar com um cheque pela falação Puro masoquismo Porque fico falando tudo o que mais me feriu me ralando de novo com o que fiz e não fiz E pagando ouro em pó pela autoflagelação Os sonhos Alguns voltavam como aquele das flores Flores enormes se abrindo e se fechando de todas as cores as pétalasportas entre entre Mergulhara até o fundo do caule se apertando como um túnel lá onde corria um rio licoroso Bebeu o rio até chegar à cerejinha espetada num palito Mordeua e ela se contraiu dolorida sangrando licor vermelho Tirou o fio de arame era num fio de arame que o coração estava espetado Comi meu coração descobriu deslumbrada pronto não ia doer nunca mais Mas veio um copo transbordante de cerejinhas vermelhas milhares delas se multiplicando espetadas nas farpas Meu Sagrado Coração de Jesus Meu Coração de Jesus não era a mãe rezando Rezava e pedia a morte Me tire meu Coração de Jesus me tire Ou tire ele Tirou ela Que o Jorge ficou no melhor da saúde Era o Jorge ou o Bingo Podia também ser o Aldo Ou o velho do lábio leporino na época não sabia o que era lábio leporino Vendia bilhetes cobra Borboleta A gravura colorida estava numa moldura sem vidro Que vidro podia enquadrar aquele coração vermelhoescuro entalado nos espinhos gotejantes Tirou ela Os outros todos ficaram Ou morreram também Sei lá não interessa O velho de lábio leporino tinha um nome tatuado no peito Quero comer Coelha Está bem então dorme A agulha subiu tremelicando e pairou sobre o disco Veio da mesa uma vaga onda de ruídos filtrandose pastosa através das persianas fechadas Quando a agulha tombou de novo no prato Ana Clara relaxou a posição tensa odiava aquela música mas ainda assim era melhor do que ficar se ouvindo Voltou o olhar desinteressado para o abajur O cone de luz forcejava por entre a massa espessa da fumaça Em redor a penumbra atenuada pela cortina cinzaclaro tomando toda uma parede acetinada tela metálica defendendo estática a intimidade do quarto Ele tateou por entre o lençol Você está aí Coelha Sacudíamos tudo e a poeira voltava e cobria tudo e a gente sacudia a roupa o cabelo a vassoura a comida Pronta entrega em setembro próximo Dez apartamentos por andar falar com o guarda no subsolo Cal e cimento e o cheiro frio Também ela com seus sonhos também a cabecinha de alfinete sacudindo o pano de prato e dizendo que estava no sonho tão contentinha passeando e de repente caí num barril de cimento e fui afundando no cimento mole me entrando pela boca pelos ouvidos E de repente filha não era mais cimento era pior ainda era uma fossa Uma fossa Acordo e tenho que me lavar feito louca sentindo o cheiro ainda no nariz Adamastor Esse era o Adamastor As mãos ressequidas batendo os pregos Carregando as tábuas mexendo o cimento Apertava um tijolo em cima do outro e espremido pelo vão escapava Tenho que ir Ele está lá com o pãozinho todo roído me esperando Quem Aquele lá Já descascou um pãozinho inteiro ele gosta de ficar descascando o pãozinho Corintiano também Ele e a Lião O que é corintiano perguntou a Lorena ela nem sabe o que é futebol você já pensou em falar com a deusa Diana sobre futebol Então Também detesto só negro Mas sei essa coisa de corintiano Branco e preto que nem a Lião Está me esperando lá na mesa Esse meu noivo Você tem um noivo Coelha Tenho Meu noivo é um saco mas tem oriehnid Ele é bonito que nem eu É um anão O corpo é coberto de escamas as escamas começam aqui na barriga e vão subindo subindo e quando chegam aqui debaixo do braço está vendo prosseguiu ela avançando as mãos Aqui está vendo bem Aqui tem escama à beca Ele se sacudiu num acesso de riso Enlaçaramse rindo Tinha a história da morte que montou nas costas do velho e não desmontou mais o velho pescador ficou sendo o cavalo dela lembrou Max acariciandolhe de leve o bico do seio E daí Acabou A cozinheira lá de casa sabia tanta história Vamos Coelha vem comigo e te mostro um diamante da cor dos seus cabelos te mostro os jardins os templos Te mostro o sol e minha casa pintada de branco te mostro o Afeganistão te mostro Lá os preços são irrisórios Te compro coqueiros camelos Quer um camelo Coelha Te dou um camelo você passeia montada num camelo Ahn Você disse que montou um dia num cisne lembra Lembra Max Você disse que montou num cisne que cisne foi esse Hein Responde que cisne foi esse Responde senão leva um murro Montei num porco Ela desceu o punho fechado e golpeouo no queixo Uma gota de sangue escorreu lhe do lábio e se infiltrou na barbicha Quando ele passou a mão no queixo e viu o sangue voltou se de bruços os ombros sacudidos por soluços Você quebrou meu dente Quebrou meu dente Quebrei nada mentira Quebrou Quebrou Ela agora se equilibrava de joelhos na cama puxandoo pelos cabelos para verlhe o rosto que ele escondia nas mãos Max pára com isso abra a boca vamos Abre essa boca Apoiado nos cotovelos ele sacudia a cabeça a boca fortemente fechada os olhos fechados Negouse num grunhido humhum Mas não resistiu às cócegas Ela inclinouse sobre ele Seu cretino Você me assustou seu cretino Outra vez que me assustar assim quebro de verdade ouviu isso Com a ponta do lençol limpoulhe o lábio ferido Está doendo amor Juro que se tivesse quebrado algum dente seu nem sei Pode me bater vamos acerta aqui bem aqui Indicoulhe o ventre Ele uniu os polegares e abrindo as mãos como asas baixouas sobre Ana Clara A lua Pouso suave na lua Estou grávida Grávida Um filho Coelha Ah eu quero esse filho Me dá pelo amor de Deus me dá Eu quero esse filho ahn Ele disse que quer nascer ouvi agora a falinha dele está tão contente quero nascer ele disse Vamos ficar riquíssimos compro uma ilha é facílimo comprar uma ilha no Brasil Tem terra de dar com pau Por que você não se enturma com esses mafiosos Podia me dar um iate Um helicóptero Eu saía nas minhas besouragens Vamos fazer um cruzeiro pelo mundo Coelha Convidados fabulosos A Jackie vai aceitar o convite pergunto e ele fica me olhando inocente A Jacqueline Onassis seu bobo Ela vem A Onassis pomba Ele franziu as sobrancelhas Suspirou Fomos amantes É muito peluda tem pêlo até no peito segredou agarrando minha mão e me puxando para a confidencia maior Descobri uma coisa impressionante ela tem seis dedos em cada pé Quero rir mas lembro Que é que eu digo Nesta altura já depelou dez pãezinhos e agora pica em mil pedacinhos o palito com que pautou os dentes O olho virou uma pedrinha de gelo Tenho que contar uma história bem contada Sou a Gata Borralheira meu príncipe Chegou minha tia rica com minhas primas peitudas e me proibiram de sair de puro capricho a mais velha e mais nojenta fazendo beicinho mama mama a prima é mais bonita do que eu Uá uá Cobriram minha cabeça com tanta porcaria que quando chegou o cara da cometa aquele dos avisos só viu no borralho um monte de cinza Além das vossas bigodudas filhinhas não existe no vosso palácio nenhuma outra donzela que possa ser a dona deste sapatinho A tia então puxou as filhas para o meio do palco Nenhuma meu senhor Na realidade só temos na cozinha uma trapenta bastarda que jamais poderia calçar tal mimo Vamos meus tesouros cortem as pontas dos vossos dedinhos e o sapatinho vai servir como uma luva Que horas são As horas tenho de saber as horas Meu coração está tão cheio de alegria tão cheio Vou de cara lavada em dez minutos fico pronta E então Ele acha lindo cara lavada Bossa natureza Beleza despojada diz a Lorena Tudo pra ela tem que ser despojado mania com despojamento está certo certíssimo vou despojada Entro e ele olha o relógio Mas seu relógio não está adiantado amor Nem me responde só fica batendo no mostrador a ponta da unha tem unhas nojentas com aquela pele invadindo tudo Sardas nos dedos Um lixo Meu relógio não adianta nunca Alma de relojoeiro devia ter nascido na Suíça Aproveita e dá corda roqueroque Onde esteve Acontece que comi no Pensionato uns pastéis de camarão e fui parar no ProntoSocorro uma intoxicação monstro quase morri Vai querer saber em que ProntoSocorro estive Quem me atendeu Os remédios que tomei Detalhes Detalhinhos Vamos Todos Um desbunde resmungou ela deslizando para fora da cama Acendeu a luz do banheiro mas recuou diante do espelho Bateu as pálpebras aturdida Desviou da própria imagem o olhar enfurecido Afundou as mãos na cabeleira cinco Atenderam Ninguém na janela para me chamar Ninguém Perdão foi engano disse a voz opaca toda voz de engano fica opaca Imagine se Lião escrevesse nesse tom assim opaco Tão nítida Nítida demais os entendidos querem opacidade na linguagem uma certa névoa confundindo sutilmente a silhueta das palavras Biombos nas entrelinhas guarnecendo amo essa palavra guarnecendo o mistério das letras E as letras sem mistério em pleno coito com o Demônio Há orgasmo O Demônio vai e vem por linhas tortas trançando os cabelos das amadas em nós inextricáveis E quem vem trançar o meu cabelo Ai meu Pai Disse que rasgou tudo Melhor assim coitadinha Ninguém mais vai ler que em dezembro a cidade inteira cheira a pêssego Outra vez o telefone Algum terrorista perguntando por ela Algum noivo perguntando por Ana Turva impressionante como Aninha faz noivos Antes desses já teve uns três Noivos e dívidas abre conta em tudo quanto é butique montes de vestidos Quilos de quinquilharias Uma aflição de se cobrir de coisas que ficam bem nas vitrinas Nas revistas E não precisa disso uma cara maravilhosa Podia se vestir como as gregas apenas uma leve túnica Mais nada Nada murmurou Lorena tirando da prateleira um longo colar de âmbar Enfiouo no pescoço chegavalhe até quase os joelhos Deu corda na caixinha de música e ficou olhando a gravura da tampa Beatriz e Dante na ponte Ele se afastou um pouco para deixála passar o olhar incendiado a mão direita apertando o coração Sou Beatriz beata e bella arrastando a cauda do meu vestido de púrpura Na ponte não mais Dante mas MN trespassado de amor e rugas Lorena Acertou no canto do espelho o pequeno flagrante que Irmã Clotilde tirara diante do portão ela no meio de Ana Clara e Lia as três rindo um riso ardido de sol Não envesga Ana Clara E não faça careta Lorena você está fazendo careta A pirâmide A poeta HH descreveua Dentro do prisma a base o vértice de suas três pirâmides contínuas recitou E baixou o olhar para a própria imagem refletida Se emagrecesse mais um quilo ficaria com a idade da Beatrizinha uns nove anos e meio E MN com a mulher de ancas e peitos de encher as mãos Megera Bruxa sussurrou ela fechando os olhos Sacudiu a cabeça Cabecelha poluída pensou e correu até a gaveta onde guardava o incenso nada como um pouco de Jaipur Rose para purificar o ambiente Sou tonta e fresca Mas e se MN a levasse mais a sério Incrível mas quando nos levam a sério ficamos seriíssimos Aspirou até o fundo a fumaça com seu perfume de rosas Um perfume antiquíssimo Velórios A morte poderia ser apenas isto incenso e música Jazz é o jazz que combina com a morte em desespero Morte em pecado Foi até o tocadiscos e aumentou o volume que lhe coiceou os ouvidos com a força de um cavalo selvagem Não sei explicar diria Lião se entrasse agora E durante vinte minutos ficaria explicando porque esta música tira o caráter Mas o que ela queria que eu ouvisse A internacional Devia estar cantando aos gritos em algum aparelho grouponsnous et demaaaain Demain Amanhã o serviço meteorológico já anunciaria trinta e oito graus a sombra com trovoadas no fim da tarde Agrupar é conspirar e transpirar Tinha repugnância pelo suor Podia ser oca às vezes mais era com política que ia encher esse oco Não acreditava mesmo mu comunismo não acreditava em nada disso e como não sabia fingir o que em geral fazem as pessoas Detestava o jogo do fazdeconta Se mal tenho tempo e energia para cuidar de mim imagine Um jardim mínimo três ou quatro plantinhas Cercado de murro por todos os lados E as tarefas suplementares Como tirar o pó dos livros que a Dona Sebastiana não tirou Aumentou muito secundo a Bulinha O pó dos vivos e o pó dos mortos Muda a cor do pano amarelo para os vivos e roxo para os mortos vi o motorista do carro fúnebre limpando com um pano roxo o caixão que devia ter vindo de longe A família esperando e ele passando e repassando a flanela roxíssima na poeirinha da tampa O Demônio DosOlhosDeLua deve se vestir de preto mas a Morte se veste de roxo Com uma rosa de lamê dourado na peruca ah MN quando olhei através do vidro da porta e vi você passar inteiro de branco Luvas e máscara ai quase desmaiei Exorbita aquele pedaço em que vai se aproximando da mesa camuflado e silencioso O campo de batalha histérico de luzes os aparelhos Os ferros Milhares de preparativos tudo pronto E a Morte com sua rosa dourada sorrindo de braços cruzados Sua traidora sussurrou Lorena examinando o furinho na lombada do livro Abriuo e soprou o furo que prosseguia ondulante por entre as páginas Onde agora Onde perguntouse e apertou os olhos não não era em Rômulo que estava pensando era no caruncho Tão sutis os carunchos Labirintos galerias Voltouse para o calendário que pendia da parede flâmula com os meses estampados na seda Este era o Ano Solar Nunca o sol esteve tão perto pensou escancarando a janela Bom tempo para fazer amor mas não revolução que calor muito forte em subdesenvolvido amolece Desfibra Lião entendia bem disso quanto mais calor no Terceiro Mundo mais terceiro ele fica Nada gritou Lorena gesticulando em código para Irmã Priscila que apareceu na janela do casarão A freira abriu os braços e respondeu também perfilada como um marinheiro sinalizando no convés Nada E arrematou a mensagem levando as mãos ao peito para exprimir seu sentimento Com um gesto pálido Lorena agradeceu e ficou mordiscando a conta maior do fio de âmbar Se até agora não telefonou não telefona mais Era ir pensando na rotina do dia banho Ginástica O certo seria fazer a ginástica antes mas devia estar com a pressão baixa precisava da água quente para o estímulo inicial Embora passageiro Ai meu Pai Almoço com a mãe como estaria ela Péssima naturalmente Não esquecer de pedir a chave do carro diasim dianão Lia vinha pedir aquela chave por sorte a mãe era vagotônica não lembrava que já tinha emprestado na véspera Queira Deus que Lião não seja metralhada dentro dele Faculdade Fabrizio devia estar por lá atiçando a greve Laçálo para um cinema festival Greta Garbo ih paixão por essa mulher O sofrimento e o gozo por saber exatamente como é a mulher eterna ela que era efêmera Lorena a Breve pensou e franziu a testa Mas a poetinha neurótica devia estar desencadeada ah querido ame uma p mas não ame uma neurótica que a p pode virar santa mas a neurótica Montar naquela moto e se agarrar à sua cintura sentindo o cheiro de couro da jaqueta bichohomem trepidando na ventania vamos Fabrizio Minha mesada está inteira comeremos como príncipes bolinho de bacalhau e fado Choraria potes porque estaria o tempo todo pensando cm MN que por sua vez estaria pensando no filho mais velho com minhocações agudas ele tem cinco filhos Foi enrolando o colar em torno tia cabeça dando voltas até formar com o fio um diadema de contas na altura das sobrancelhas Se uma das freirinhas fosse à drogaria pediria que lhe comprasse um creme emoliente para as mãos e Modess Lião acabara com o estoque As duas acabavam com todos os estoques de tintas e vernizes e não repunham em seguida sabonete fio dental algodão e etcétera Então na hora que preciso não tenho E nenhuma das duas tem Com acetona a mesma coisa Ana levara o vidro cheio e o vidro voltou com duas gotas no fundo Também éter Que loucura Precisava fazer alguma coisa Mas o quê Ser compreensiva não era ser conivente Um tratamento rigoroso talvez ajudasse Mas jacaré quer ser tratado Só pensa no cerzido e no industrial Vaginoplastia Meu melhor ângulo murmurou voltandose de perfil O colar já lhe desabava sobre os olhos Prendeuo nas orelhas A estrutura social Segundo Lia a única responsável era a estrutura social Fez uma verdadeira conferência sobre essa estrutura Entendo querida entendo Estou de pleno acordo Mas e Ana Clara Fora do contexto das estruturas a piedade perplexa de Madre Alix E esse noivo Também não vai tomar providências espantouse Lorena Lá estava Ana devidamente classificada no reino da palavra e no reino de Deus Mas isso era suficiente O controle é meu paro quando quiser respondeu lhe Imagine Há muito que já não tinha mais as rédeas nas mãos Abriu as próprias Mas quem é que tem A própria Lia que falava sempre de cima de um caixote tinha ainda essas rédeas Perdeu o namorado perdeu o ano por faltas buleversou tudo Nem banho mais toma E com este calor pensou Lorena lembrandose em seguida de comprar um desodorante achava deprimente recorrer a desodorante o que resolvia era água e sabão Mas se ela não tem tempo entende Deitouse de costas no tapete Entendo Lia de Melo Schultz Entendo Ana Clara Conceição entendo tudo porque estou transbordando de amor Jesus salve minhas amigas Salve minha mãezinha tão glingueglongue Meu irmãozinho com seus carros suas mulheres e sua culpa sentase à direita de DeusPadre mas pensa que esquece Salva meu irmãozinho e salva MN no seu casamento buleversado se for para a alegria dele salva também esse casamento ai meu Pai Que o Fabrizio não se enrole nu poetinha que não trombe sua moto salva todo mundo pacíficos e delirantes executados e executores Salva meu gato Dominus vobiscum Et cum spiritu tuo Ite Missa est digo abrindo as mãos com as palmas voltadas para num Duas salvas vazias aparando a graça Que um dia háde vir Jesus eu te amo Ia esquecendo salve também os meninos Lião estão presos ou vão ser salve os meninos tão fortes e tão frágeis somos todos muito frágeis Vou até os lenços de papel e neles enxugo os olhos Lorena A jovem voltou engatinhando até a cama Estendeu os braços ao longo do corpo e foi levantando as pernas unidas e retas os pés em ponta Conduziu as pernas para trás os quadris apoiados nas mãos Assim que tocou os pés na cabeça com a cabeleira em leque aberta no colchão tirou as mãos dos quadris e pôsse a apalpar as nádegas Podiam ser maiores Incrível como homem gosta de mulher de bunda grande Lorena você está aí Trouxeste a chave Não não trouxe Irmã Bula tem nos bolsos bulas e lenços não chaves Agora deve ter encostado na porta o ouvido que ouve melhor quer saber com quem estou falando algum homem Curiosidade e medo Coragem minha irmãzinha coragem Os olhos de coelho velho lacrimejando no lençolençol Dou uma cambalhota e caio em cima da almofada que abraço com toda força de que não sou capaz Ria então resolveu bater As pancadinhas parecem fazer parte de um código vi no cinema antigo um gangster lustroso bater assim na porta do chefe as pontas das unhas provavelmente esmaltadas arranhando sutilíssimas Entre gritei Ela entrou toda encolhidinha sempre entra com esse ar de quem pede desculpas por ocupar um lugar no espaço Avisa que não vai demorar mas se instala e fica cinco horas Cheirou as rosas da caneca fez um gesto de enlevo ai que delícia Parou diante da gravura de Chagall Sabe que estou começando a gostar desse seu quadro É esquisito disse escondendo as mãozinhas nas mangas do hábito Um cavalo de véu e grinalda ora veja É a centésima vez que faz esse mesmo comentário e naturalmente vai acrescentar que o azul é bonito É um casamento Irmã Eu sei mas essa sereia Não é uma sereia Um casamento tem que ter de tudo O azul é bonito Levanto as pernas para o teto até tocar na lanterna Olha Irmã Bula posição de vela Bate o vento e a chama vai vergando para trás mais ainda está vendo No chão faço melhor O sangue vai todo para a cabeça filha Pode dar um derrame É ótimo para a circulação Deve ser bom para hemorróida murmurou nostálgica Suspirou A velhice é uma doença filha Dói tudo algumas partes mais do que as outras Deus sabe o que faz louvado seja Deus Louvado seja Do meu quarto vi que você acordou tão cedinho Pensei que precisasse de alguma coisa Preciso de solidão Hum E de umas carnes aqui não existe um popô menor existe Com roupa esporte ainda passa mas num longo já pensou Ela não ouviu Tem olhos membranosos Os olhos dos peixes daquela naturezamorta da nossa sala na fazenda Caçarolas peixes e coelhos tudo morto Uma trança de cebola pendia da mesa e só a trança dourada tinha um certo brilho A trança de Julieta dizia o paizinho Tanta insônia filha Não gosto da noite só do dia Acho tão bom o sol Queria morar num lugar onde só tivesse sol Um lugar sem noite sem dor Com a ponta do pé faço balançar a lanterna Se pudesse entrar o pé lá dentro até chegar à lâmpada Seria a glória Queria morar num lugar onde não houvesse a morte onde ninguém aborrecesse disse e teve um sorriso radiante como se acabasse de descobrir esse lugar Agora está examinando as unhas secas invadida até quase as pontas por uma película tão seca que se abre nos cantos em espigas sequíssimas Enxugou no lenço os olhos lacrimejantes Quer ser eterna Irmã Eterninha Mas um lugar assim já é a morte A sorte deixame rir ha ha Acho que foi essa sonsinha que escreveu a tal carta anônima com milhares de delações Lião uma comunista fabricante de bombas Ana Turva uma viciada em rápido processo de prostituição Eu uma amoral indolente parasita da mãe devassa velha corruptora de jovens O que se pode esperar de uma menina com uma mãe semelhante Tem mais mágoa da mãezinha do que de mim Mulher sem escrúpulos que internou o marido desmemoriado e foi torrar o dinheiro com o amante que podia ser seu neto O que não é verdade Mieux não é tão jovem assim ai se mãezinha soubesse E aquela outra carta que denuncia Irmã Clotilde como namorada de Irmã Priscila barra pesadíssima Ana foi falar com Madre Alix e viu a carta em cima da mesa Se é que não mentiu a carta exigia medidas drásticas para se pôr um paradeiro em tamanha abominação E Madre Alix Tranqüila Imagine se vai entrar num moinho desses No seu caderno não tem receita para insônia pergunto em meu ouvido Dezenas de receitas filha Mas me atacam o fígado Continue então com suas cartas maravilhosas minha querida Uma Para o gerente do supermercado outra para as divertidas senhoras do sobradinho azul outra para o homem do pão do leite milhares de cartas anônimas nas insônias inspiradíssimas o olho vertendo água o calo aumentando no dedo contraído de remorso e medo Mas escrevendo escrevendo sem parar a letra mascarada o estilo mascarado sai Satanás E Satanás sentado no rabão enrodilhado lambendo os selos Tem o Diabo principal rei de todos Os outros são diabinhos menores colaboradores nas tarefas secundárias alfinetes palitos de pecados São esses que transam dentro e fora de mim e preciso acreditar na atualidade do Diabo disse o Papa Mas Sua Santidade eu não acredito em outra coisa Antigamente eles moravam nos desertos rolavam debaixo do sol se esfregavam na areia escaldante montavam nos camelos mas agora a morada ideal é nosso corpo mesmo Nunca tanto capeta curtiu lauto corpo que é quente como o deserto Com a vantagem de ser macio O local preferido é o ventre quer dizer toda a zona sul com as ramificações nas partes Apertei as minhas Quando MN entrar eles vão sair aos pulos O exorcismo pelo amor Aquilo que pensamos se reflete em três espelhos do absurdo leio no poeta que abri ao acaso consulto poesia como o paizinho consultava O Velho Testamento sempre ao acaso Três espelhos do absurdo Esse é o meu E os dois outros Se MN não me amar urgente viro um livro Você fala tão baixo Lorena Que foi Ai meu Jesus por que ela não faz aquelas ligações maravilhosas Tem um fiozinho cinzento que sai de um botão no ouvido e vai para a rua como antena plastificada facilita tanto Mãezinha contou o crime com pormenores devia ter um álbum com recortes policiais como essa daí tem o álbum de bulas o pederasta velho enforcado pelo menino no fio do aparelhinho de surdez ouvindo a morte vir vindo pelo fio da pilha rouquejando tão rouca que e que você está fazendo amor E o amor apertando mais nó Enfim estão velhos demais Ela põe a mão na pequena saliência a que se reduziu a orelha sob a touca Crime digo Tem havido crime à beca Um despropósito filha É a bomba só pode ser a bomba No meu tempo não usava nem a parcela mínima dessa violência Até as bulas você precisa ler as coisas pavorosas que as bulas dizem agora Uma diferença Antes animavam eram delicadas uma delícia ler aquelas bulas Mas hoje Tão cheias de ameaças tão duras Irmão Mata O Outro Numa Brincadeira Irmão Mata O Outro podia ser assim a manchete do jornaleco de escândalo Em destaque o depoimento da irmã caçula só as iniciais por se tratar de menor Disse L V L que eles estavam brincando Rômulo corria perseguido pelo irmão Remo que de repente resolveu apanhar a espingarda que se encontrava no escritório onde o fazendeiro costuma deixála em geral descarregada De posse da arma gritou para o irmão fuja Rômulo que vou te matar E deu um único tiro certeiro e mortal no peito da vítima Embora houvesse grande número de empregados trabalhando na sede da fazenda nenhum presenciou ao acidente apenas a irmã caçula viu o menino cair sangrando e tomada então de grande susto correu para chamar a mãe que se achava nos fundos do imponente casarão em estilo colonial O fazendeiro viajara para a capital naquela manhã retornando ao anoitecer quando em meia de grande desespero tomou conhecimento da tragédia que se abateu sobre seu lar Houve retrato Não não houve Mas todo jornal tem seu desenhista e esse caprichou na composição da cena em traços veementes a mãe está sentada no chão com Rômulo no colo uma das mãos sustentandolhe o tronco a outra escondendo a ferida Está desgrenhada e em prantos mas no seu sofrimento há qualquer coisa da inexorável calma de quem chegou ao último degrau e sabe que daí por diante nada de pior poderá lhe acontecer O desenhista é elogiado não foi ocasional a relação do seu desenho com a Virgem amparando o Filho Morto Giovanni Bellini Museu de Milão Em Milão há uma pracinha dos surdosmudos lá eles se encontram todas as tardes Os gestos criam um som farfalhante como folhagem eu fechava os olhos e ouvia ssssssss O mais conhecido foi o crime de Dona Brunilda uma fazendeira encontrada sem cabeça disse Irmã Bula segurando a própria Foi pavoroso Durante meses e meses procuraram a cabeça da pobre senhora prosseguiu a freira voltando o olhar inquieto para as prateleiras da estante Acharam Que esperança Nem o assassino nem a cabeça Falouse muito que foi o marido parece que ela gostava do preceptor das filhas um moço muito bonito que tocava piano e usava flor na lapela Um cravo Serenata de Schubert Fumigações e perfumes Sons de violino e ninguém tocando violino Roçar de asas O Anjo Sedutor na sombra da cortina Alguém escreveu uma carta anônima ao marido digo Por que penso em meu pai Em Rômulo Perco a vontade de brincar Se ao menos MN me dissesse eu te amo Ou o Fabrizio A senhora se lembra do Fabrizio Fabrizio Aquele da motocicleta Corro até a janela o telefone As janelas vazias O jardim vazio Ela me interroga com seus olhos membranosos Virgem também nos olhos não não quero ficar assim eu não Ah MN meu amado Meu amado Aperto no pescoço o colar de âmbar Boto a língua para fora Se ele não me procurar me enforco Serei a primeira suicida canonizada Ela ri sua risadinha de gnomo uh uh uh ih ih ih Ah menina Casamento cura isso por que não casa com esse Fabrizio Não posso Ele tem uma perna mecânica Tem o quê Vou buscar um cálice de licor Uma perna mecânica Ela se sacudiu inteira na tosse e no riso Descobriuse a gengiva plástico rosado com os enormes dentes cor de areia em fila indiana mas por que os dentistas fazem dentaduras assim grandes Prodigalidades pelos dentes perdidos O Filho Pródigo voltou maltrapilha e sem dentes os anos tombam mas os dentes caem como os grãos de feijão que Joãozinho e Maria semearam no mato os coitadinhos queriam marcar o caminho de volta E vieram os passarinhos e comeram os grãos adeus lareira acesa adeus infância Por que meu amado por que tanto filho E se enfiar agora nesse cursilho o que você pretende com isso salvar o casamento Mas querido será que não percebe Seu casamento apodreceu salvar o que Naturalmente foi ela que teve essa idéia a bruxa Um homem lindo desses imagine se uma bruxa vai desistir assim fácil Cinco filhos Deve ser gordíssima Celulite nas coxas Os peitos caídos Enfim uma vaca Minha Irmã estou ficando preta preta Reza por mim É de damasco Gosto mais deste do que aquele de hortelã Um néctar Abro as narinas e aperto meu plexo solar O cheiro de Irmã Bula é mais forte do que os licores e charutos flor seca somada a uma vaga pincelada de desinfetante com qualquer coisa de mar se insinuando por entre escamas pálidas ah se respirar agora eu morro Suspendo a vida no ar e me escondo debaixo da almofada a morte está aqui com outra roupa e me olha com seu olho de salmoura Sou capaz de me matar mas não quero morrer Brincando de escondeesconde Menina menina Bebeu o último gole é louca Por um licor Retribuo seu sorriso licoroso Irmãzinha minha Irmãzinha promete que não vai me mandar uma carta denunciando o japonês da pastelaria que fez recheio de pastel com meu gatinho Ai meu Pai Mais um cálice querida Ria apóia as mãos na almofada da poltrona pronta para se levantar Já não sinto o cheiro de maresiaflor desapareceu a morte e em seu lugar está apenas unia velhinha surda e virgem que perdeu o céu por causa das cartas Amar o próximo como a mim mesma Estendolhe a mão Mas de repente ficou desconfiada quer ir embora bastou querer amála para se levantar em pânico tem medo de mim como tive dela Preciso ajudar Irmã Priscila a ralar o coco inventou de fazer cocada mas machucou o dedo preciso ir repetiu Prove antes esse biscoito esse a senhora ainda não conhece eu digo Quando volto com a lata ela está olhando muito interessada para os próprios pés Como tem pernas curtas não consegue tocar o chão e fica com os pés balançando no ar como as crianças sentadas na sala de visitas Tenho que ir filha Mas não vai Irmã Priscila já está ralando o outro dedo ah tão longe a fala do ato Se eu não falasse tanto em fazer amor se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer se Lião não falasse noite e dia em revolução É cedo Irmã Bula Essa revista chegou ontem digo oferecendo os biscoitos e a revista Ela passou os dedinhos na moça da capa Mas por que essas moças precisam tirar retrato sempre de perna assim aberta Por que as pernas têm que estar abertas desse jeito Afirmação querida Sexo em ângulo aberto Tanto tempo a mulher andou com ele fechado que agora precisa polemizar coitadinha Fala mais alto A Lião escreveu uns dez tratados explicando isso libertação pelo sexo minha querida A porta mais fácil é muito comprido grito enquanto mudo o disco Bach Encosto o disco na face MN meu amado queria tanto ser amada ouvindo este prelúdio Não peço nada em seguida vou me embora para sempre mas antes você precisa me amar tem que ser você está me ouvindo Não ouviu Apanho a pétala que caiu da rosa e levoa até a boca Façoa estalar num beijo e colandoa ao lábio enfio a ponta da língua pelo furo brincávamos assim com as flores da fazenda Quer ver como ela ouve Irmã minha irmãzinha acho que estou doente penso tanto em sexo Pensa mesmo O dia inteiro Se o Diabo quisesse ser simpático carregava agora a Bulinha na brisa e na brisa de volta me traria MN Ficaríamos trancados no meu banheiro que é tão jóia Se Lião ou Ana Turva chegasse eu diria não posso querida estou num banho de imersão que vai durar duas horas E abro a torneira A Ana Clara disse que ia sair na capa de uma porção de revistas Ainda não vi nada Você viu filha Levo para a cama minha caixa com petrechos de unha tenho esta caixa sempre ao alcance Assim que intuo as conversas inquietas e incertas vou pegando minha lixa e tesourinha para não perder tempo Com isso minhas unhas andam tratadíssimas Até as unhas dos pés cheguei a fazer outra noite enquanto Lião curtia Simone de Beauvoir De Simone de Beauvoir para o sexo foi um passo porque o primeiro sexo porque o terceiro sexo porque o segundo Como fatalmente acontece partimos para o próprio Então o sangue de Herr Karl pairou sobre todas as coisas Apertou meu braço com tanta força que até gemi Não vai me dizer que continua virgem putz Suspirei Vou querida vou Ela então arrancou nos dentes a última centelha de unha que lhe restava no dedo preferido A culpa era de MN claro Burguês incompetente resmungou recortando uma notícia de jornal guarda pastas e pastas transbordantes de recortes sobre política Só restava uma saída sutil não é todos os dias que se encontra um Guevara eu disse e seu olhar amenizou A águia nazista virou pomba coqueiro coqueiro de Itapoã coqueiro Dona Diú sorriu na rede Quando tudo me parece perdido quando nem Miguel consegue me levantar penso em Che e me vem a certeza de que vou resistir Penso às vezes Lena penso que ele tinha que morrer para que eu nascesse de novo Concordei Mas ficaria uma vara se lhe desse a fonte do renascimento Evangelho de São Marcos Não vos maravilheis se vos disser évos necessário nascer de novo Calei o bico e fui depressa buscar uísque para as saudações revolucionárias Sentime tão leve que poderia voar enfim MN já estava de lado E também esse drama da minha virgindade Confesso que de vez em quando preciso falar nisso provoco o assunto alimento as reações me exponho a todas as conseqüências numa necessidade tão aguda de ficar centrodemesa Mas de repente me vem um pudor não sei se será exatamente pudor e não suporto a menor referência problema meu friso e levanto a cerca de arame proibida a entrada de pessoas estranhas Uísque para ela e guaraná para mim tenho paixão por guaraná Quando Lião viu as duas garrafas juntas fez aquela cara de pensadora Marca President Lena Olha o vexame do nosso guaranazinho Adiantei rápida que foi um presente da mãezinha quando na realidade foi presente de MN essas mentirinhas que facilitam a convivência o Papa João XXIII não condenou um santo de Papa Sabendo que não bebo MN me ofereceu a garrafa suas amigas não gostam Não existe delicadeza maior A única coisa que esses calhordas sabem fazer disse ela servindose de uma boa dose O cinema deles também tem classe arrisquei mas nem me ouviu porque já enveredava para sua preleção principal que é provar a decadência da burguesia através do uso de drogas Não sei explicar mas é um erro pensar que a droga é uma atitude antiburguesa entende A última vez que estive em Salvador quase endoidei de aflição tem legiões acrescentou e seus olhos se encheram de lágrimas Os meus também ah era triste demais demais demais O baiano tão próximo do índio em seu estado de inocência Faleilhe justamente sobre isso mas devo ter sido gaúche porque ficou me olhando meio sentida e sacudindo a cabeça Esse seu tom Lorena O tom repetiu Encolheu os ombros Não sei explicar mas E durante horas explicou que a forma mais rápida de matar o índio brasileiro é tentar civilizálo Até certo ponto acompanhei seu discurso mas depois foi me dando assim um cansaço Pois é o índio Tenho paixão pelo índio Mas logo fico pensando em Gonçalves Dias com seus índios divinosmaravilhosos que é que eu posso fazer Ela agora falava nos vícios Aproveitei para encaixar o verso oh Tupã que mal te fiz que assim me colha do teu furor a seta envenenada Mas Lião não se emociona com poesia Inesperadamente desatou a falar sobre a queda do dólar e dessa vez teve razão em dizer que não sabia explicar porque não explicou nada mesmo Se era sobre esse tipo de problemas que escrevia no jornalzinho lá da esquerda os leitores estavam bem arrumados Mas seu trabalho na redação era coligir material Ainda bem Pergunteilhe o que estava fazendo nas horas vagas agora que Miguel estava preso Não tem horas vagas entende Distribuo panfletos oriento um grupo de estudos e traduzo livros Isso quando não aparece uma missão mais importante insinuou amarrando os cordões das alpargatas Senteime também no chão e fiquei fascinada pelas suas alpargatas A sujeira tinha se incorporado de tal forma à lona que nem a mais engenhosa operação química conseguiria separálas Mas os cordões estavam limpos misteriosamente limpos Não era mesmo estranho aqueles cordões assim brancos Pensando nos cordões pergunteilhe se seu amigo ainda estava incomunicável Qual deles Lena Tantos estão incomunicáveis Uma crise infernal Precisamos de dinheiro de gente de tudo Fico feito doida com os montes de coisas urgentíssimas que devem ser providenciadas Mas fazer o que sem oriehnid O quê Ainda assim pensa que perco a fé Pensa O programa da revolução está inteiro estruturado resta ligar o pequeno motor que somos nós com o motor principal Levantouse com cara de comício e andando de um lado para outro discursou sobre a dificuldade do operariado em se organizar a maior parte habituada à servidão à miséria herança transmitida por gerações de conformismo O medo Lena Medo de assumir um cagaço de fazer chorar Temos um bom grupo pra o que der e vier o problema é com os mais velhos os intelectuais Salvase uma meia dúzia Assinam os manifestozinhos fazem suas reuniões secretas o sorriso secreto da Gioconda o copinho na mão E daí Olhei para o copo que ela segurava com a energia de um atleta segurando o bastão na corrida de revezamento Quando Ana Clara pega no copo levanta o dedinho mínimo finuras de motorista de caminhão em festa de casamento mas Lião agarra tudo com dedos e unhas quer dizer com as zonas onde deviam estar as unhas Melhor mesmo roer todas imagine se podia pensar sequer em cortálas Voltei aos cordões mas por que só eles estão limpos Ela parou de falar e ficou me olhando com ar de quem se perdeu no mato e deu uma enorme volta e de repente descobriu que estava de novo no mesmo lugar Sentouse no tapete e apanhou um cigarro Rodouo entre os dedos Meus amigos estão todos presos eu mesma posso ser presa saindo daqui começou com brandura Manuela está intentada como louca e Jaguaribe está morto Então você se preocupa com o cordão da minha alpargata Dou importância ao que não tem importância começo e paro Não é Lião que está aqui mas a Bulinha lendo com o maior interesse mas o que esta lendo com tanto interesse Colocou seus óculos de lentes telescópicas e levantou a revista a um centímetro do nariz Não notou sequer que a puxei até ler o título Erotismo é Amor Ai meu Pai Que exagero murmurou ela sem tirar os olhos da pagina Por que às vezes firo Lião quando minha vontade é vêla contente Ficou tão triste ali no chão que fui buscar depressa a lata de biscoitos e a escova Ajoelheime e comecei a escovarlhe os cabelos Você parece a Angela Davis eu disse e ela sorriu mas senti que seu pensamento continuava lá longe lá onde Manuela enlouquecera Onde Jaguaribe fora baleado Que Manuela era essa E Jaguaribe Você nunca me falou nesse eu disse e ela passou a mão na alpargata acariciando a biqueira de borracha cheia de rabiscos Uma florzinha preta feita com capricho se destacava no emaranhado do desenho Era dele disse e agarrou com ambas as mãos os bicos das alpargatas Despejei mais uísque em seu copo Coragem Lião não fique comprimida tenho meus santos que me atendem você não acredita mas deixa comigo Se tiver que rezar reze por Che entende É só dele que preciso disse E passou o dedo precisamente na florzinha preta desenhada na borracha Lembrei que Rômulo também estava morto e comecei a chorar tão sentida que se viu obrigada a esquecer seus mortos para me consolar Disse que não há morte definitiva nem sequer para ela uma materialista Que morte e vida se integram e se completam tão perfeitas como um círculo e por isso meu irmão continuava vivo a vida precisa da morte para viver não sei explicar entende Explicou Inesperadamente ficou de novo alegre cantarolou com o disco do Vinícius e perguntou no melhor humor por MN E o velho Fiquei alegre também choro quando choram perto do mim mus se começam a voar saio voando junto Fui fazer um chá quente porque depois de beber feito esponja Lião adora um chá com biscoitos Tomamos um bule inteiro e se ela não tivesse ido fazer pipi e se eu não tivesse inventado de entrar num banho na certa teríamos ficado curtindo até as cinco da manha Tanta bobagem resmungou Irmã Bula fechando a revista Soprei a cutícula do meu polegar onde a ponta da tesourinha fizera nascer uma meia lua de sangue Escolhi um blue A senhora leu tudo Não sei porque gastar papel com tanta bobagem acrescentou guardando os óculos Enxugou os olhos no lençolençol que daria para enxugar as mucosidades de um batalhão Essa gente vive como se o sexo fosse a coisa mais importante do mundo E não é Ou uma das mais Só numa noite Ana Turva chegou a dúzias de orgasmos o que naturalmente é mentira Mas e as outras As conversas que ouço se fala tanto nisso Algumas um pouco sobre a loucura seria melhor conversar com o médico é lógico Não deve ser normal Um exagero Filha será que você podia pôr um pouco de Chopin Um daqueles Noturnos pode ser Esses seus cantores cansam um pouquinho não No começo eu pensava que vocês estavam brigando tamanha gritaria Agora acostumei Fico me perguntando essas letras fazem sentido E quanto As palavras triviais mas é no trivial que está o trágico Como pode não estar a grama do jardim é mesmo grama a sopa da sopeira não esconde nenhum símbolo e o beijaflor é a negação do mistério Mas se a gente estiver em estado de graça pode intuir todo um leque de direções que se abre tão rico quanto o baralho de Dona Guiomar o ValetedeEspadas é casamento se vem perto do Setede Ouro que é má notícia quando se junta ao CincodePaus que por sua vez é viagem se dá o braço ao ReideCopas Que vira sentença de morte sem apelação se dá o braço à DamadePaus oh as circunstâncias Lião fica uma vara se falo em cartomantes sou vidrada em cartomante Disse que não tem destino não tem nada porque somos livres completamente livres Não sei explicar mas se um dia eu for presa é essa prisão que vai inovar minha liberdade Não entendia fazia muito calor quase quarenta graus à sombra a cuca obumbrada e ela a fim de me expor a doutrina sartriana Ficou falando sozinha sobre o nojo que tem da literatura do século dezenove com todos aqueles personagens fadados ao bem e ao mal como trens correndo fatalmente nos trilhos onde foram colocados não tem trilhos Pois sim Deixame rir That Old Black Magic ele cantou na hora em que foi condenado à câmara de gás condenação antiga no dia em que nasceu já estava aquela marca se escapamos da fogueira não escapamos dos signos Ousei falar em signos e ela me acusou de cristã desbundada Como é que um cristão pode acreditar nisso Sou Peixe A freira olhou o teto Li que os jovens precisam da violência para canalizar os complexos Você viu Outro dia um menino de catorze anos tacou gasolina e fogo na cadeira de rodas da avó que virou um torresmo Diz que é preciso Então é esperar que esses jovens se cansem de tanta violência fazer o quê Quando se cansarem estarão velhos como nós Espertinha sussurrou Lorena esfregando as solas dos pés nos tapete enquanto procurava o disco de Chopin Riu Mais uma dose e vai me expor o conflito das gerações Trouxe a garrafa e de novo encheu o cálice que a freira lhe ofereceu em meio de um fraco protesto vou ficar tonta O protesto transformouse num ah de beatitude assim que começaram os primeiros acordes do Noturno A senhora prefere ler ou escrever Escrever diários por exemplo Cartas A freira bebeu delicadamente Cruzou os pés e balançouos no ar Nem uma coisa nem outra filha Minha vista piorou disse voando para Lorena o olhar de desbotada inocência E aquele seu irmão Está na Itália ainda África do Norte África do Norte Já ouvi Lorena Esse é o Rômulo Rômulo morreu esse é o Remo Se voltar lembra pensou Lorena abrindo as mãos com a palmas voltadas para cima num gesto de oferenda Fez análise fez cursos fez amor com mulheres lindas fez filhos lindos fez viagens mais mulheres mais carros mais filhos Se voltar lembra Basta olhar para a mãezinha que é transparente a dor é transparente A face gravada no véu de Verônica Attendite et videte exclamou estendendo os braços em frente e exibindo as mãos abertas como um livro Inclinouse até o ouvido da freira A senhora me acha louca Acha o quê Lorena sorriu Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas Como era possível isso Até os dedos de Remo pesados demais para o piano foram se afinando tão leves como seriam agora os dedos de Rômulo se Rômulo vivesse Sim melhor que continuasse lá no seu exílio mandando presentes cartões retratos Casas imensas nos gramados verdes de perder de vista As crianças nas suas malhas coloridas correndo sempre atrás de algum cachorro O carro brilhante estacionado por perto Ana Clara falava tanto em Jaguar coitadinha Tão superado o Jaguar Ela devia se atualizar no salão do automóvel onde Remo comprava sempre o último modelo tinha paixão por máquinas Se voltar lembra O encontro com ele devia ser lá fora lá longe como foi em Veneza Os museus as lojas Ruínas e vinho Mãezinha ainda acaba comprando uma gôndola ele disse enquanto ajudava a tirar os pacotes do porta mala E beijou a única compra de Lorena uma antiga bolsinha de miçangas que ela descobrira entre as velharias de um bazar Os dias e as noites estourando de compromissos sim era preciso outros países Outras gentes Aqui na primeira hora disponível ele começava a falar depressa e alto A mãe começava a rir estridente ambos tentando cobrir o murmurejar que vem subindo lá do fundo pardacento O rio No verão a água chegava a ficar tão quente que parecia impossível que no inverno ela esfriasse daquele jeito Assim mesmo os dois entravam roxos e bafejantes Remo ousava a travessia Está com friuu Lava o rabo no riuuu Enxuga na capa do tiuuu Debaixo dágua os cabelos pretos de Remo continuavam pretos mas os louros cabelos de Rômulo ficavam cinzentos Cinza cinza Seu irmão era bonito perguntou Lorena A freira enxugou no lenço os olhos vertentes Tomou o último gole Bonito não Mas era uma flor de menino Foi fazer um piquenique com os colegas do colégio já contei Se afogou no mar Quando tiraram o corpo eu estava perto Jesus que coisa pavorosa todos aqueles camarões amontoados se mexendo no buraco dos olhos Lorena fechou os seus e pensou em Rômulo os dentes pálidos como era possível Isso dos dentes empalidecerem E aumentando na camisa vermelha o vermelho mais poderoso do sangue A mão da mãe tapando o furo que borbulhava como uma garrafa de vinho empapando a toalha Achei que uma rolha podia resolver Anos e anos eu não queria nem enxergar a cara daquele bicho Depois fui esquecendo a gente esquece Ainda outra noite comi com tanto gosto a torta de camarão que Irmã Clotilde fez Palavra que nem lembrei Com gesto refletido lento Lorena arrolhou a garrafa de licor Não era mesmo de estranhar Um furinho insignificante e todo aquele sangue A mãe também não entendia que foi isso ficou repetindo É preciso tapar depressa um dedo que ela pusesse em cima melhor ainda a mão assim mãezinha assim Mãe cura tudo mãe sabe tudo tapa com força E continua saindo Debaixo da sua mão olha aí a camisa vermelha descorando tão mais forte esse outro vermelho meu Deus tão forte Desviei depressa o olhar porque ela escondeu a ferida com o mesmo pudor com que escondia os seios quando estava se vestindo e a gente entrava no quarto Não olhe que estou nua Dei lhe tempo de vestir a voz E a ferida Estava mais calma do que na tarde em que ele cortou o dedo abrindo a melancia Mas o que foi isso Lorena perguntou com voz rouca Apenas rouca Os dois estavam brincando acho que o Remo era o bandido no sei que trouxe a espingarda e apontou não foi por mal mãezinha não foi mesmo Imiteia falando baixo e quase num cochicho me ofereci para chamar o médico Ou o Lauro Queria que chamasse a Jandira Ela fez que não com a cabeça não não era preciso Fiquei ali pregada a boca abrindo e fechando ressequida sem nenhum som A boca do Rômulo também se abriu e se fechou silenciosa como a de um peixe atirado na areia que a água não alcança mais Foi ficando suave Se pudesse pediria desculpas por estar morrendo Sonhando filha Fecho Rômulo e a garrafa de licor na custódia de vidro do bar Cerro a cortina E MN que não telefona E esse Noturno tocando com esse sol ah queria agora mesmo montar na moto e correr sem corpo sem pensamento me busca Fabrizio Morrer deflagrada MN verá chegar um estilhaço ensangüentado Lorena Deflagrada e deflorada Estou me carbonizando de paixão minha Irmã Marcus Nemesius grito Abraçoa e colo a boca no seu ouvido O pai era latínista todos os filhos têm nomes declináveis a irmã é Rosa Rosae como bosta bostae Ela não entendeu mas riu Acompanhoa até a porta Seus ossos estalam Um dia vou ficar assim velha Me mato antes Baixo a cabeça Ela me abençoa e se prepara para descer a escada Desligo a vitrola Som de vozes The isle is full of noises Alguns miados se enrolando nas noises Como será miado em inglês Abro o dicionário seis Na saleta de teto baixo frouxamente iluminada havia duas pequenas mesas velhíssimas uma antiga máquina de escrever e algumas cadeiras de palha Duas tinham o assento furado No chão uma pilha de pastas e jornais com uma trouxa de roupa em cima Amarrados por uma cordinha dois travesseiros e um cobertor O chão enegrecido queimado por pontas de cigarro fora varrido conforme indicava o cesto transbordando de lixo com a vassoura plantada no meio Espetado no cabo da vassouramastro um rolo de papel higiênico Lia tirou a sacola do ombro e dependuroua na cadeira mais próxima Olhou a mesa recoberta de poeira o calendário enrolado apontando detrás da máquina o copo com um resto de café no fundo Desenrolou o calendário ocupando mais da metade da folha a gravura colorida de uma loura de biquíni a boca polpuda se entreabrindo para emborcar a garrafa de CocaCola Deixouo cair e ele se enrolou como se tivesse molas Voltouse para o teto pardacento pontilhado de moscas estateladas a maior parte morta em meio de fiapos de antigas teias Sorriu Lorena se divertiria muito aqui pensou No centro do globo de vidro leitoso a mancha espessa de um amontoado de insetos que lá entraram e lá morreram aprisionados Muito fraca pensou Lia desviando o olhar para o dedo indicador que examinou com severidade Voltouse para o jovem que acabava de entrar Precisamos de uma lâmpada mais forte Onde você estava Ele enxugou as mãos nos fundilhos do jeans Sacudiu a cabeça A privada é uma coisa Rosa você precisa ver Fica lá no fundo do corredor A gente tem que pensar na rainha e fechar os olhos Providencio um penico tenho uma amiga que tem um penico de porcelana com dourados e anjos Se ela tirar a samambaia de dentro peço o penico pra você entende Ele puxou a cadeira Cavalgoua Fiz a mudança sozinho todo mundo dando ordens mas só eu camelei Isto estava um lixo já despejei três cestos e ainda sobrou este Até rato olha só o túnel do maroto cochichou apontando para um buraco no ângulo do assoalho E é inteligente viu Me fez correr feito uma besta e depois se recolheu aos seus aposentos Vai ver é um tira disfarçado em rato Quando saí ontem do cinema me pediram os documentos Que medo Rosa Você não tem medo Lia passou a ponta da língua na unha roída Demorou para responder Perfeito Amanha trago uma lâmpada mais forte E uma folhinha sem anuncio de CocaCola De onde veio esta maravilha Não tenho idéia porra Aproximandose da janela a jovem tentou abrir as venezianas mas o fecho estava emperrado Espiou por um vão maior entre as tábuas carcomidas Putz o pátio interno Você sabe o que tem aí defronte Uma alfaiataria falei com o velho quando cheguei Legal Rosa Está vendo aqui embaixo a rede de arame Em caso de emergência dá perfeitamente pra pular e ir andando até a janela do velhinho Que é dedoduro da Oban A gente enfia a cabeça na janela e ele agarra a gente pelo pescoço assim fez ela puxando Pedro pela gola do pulôver Atracaramse aos safanões numa luta breve e feroz Separaramse rindo Ele examinou a mordida no pulso e ela prendeu na nuca a cabeleira que ele puxara Você tem força porra Acho que ia levar uma surra se continuasse resmungou ele examinando o braço Mas viu Pedro Conheço uma freirinha que você olha e diz bom não tem uma avozinha igual Precisa ler as cartas anônimas que escreve pra todo mundo Só espero que não ache o endereço do Dops está quase cega Carta anônima Que genial Você recebeu alguma Ela tamborilou no vidro rachado da janela Vamos tapar com jornal Tem cola Nem uma gota Nem durex nem papel não temos nada Amanhã trago alguma coisa O Bugre deixou dinheiro Diz que amanhã Todo mundo só fala em amanhã ele gemeu cocando a cabeça Não tenho nem pra cigarro Depois de oferecerlhe o maço Lia ficou olhando o globo de vidro com sua tímida aura de luz Uma armadilha Os bichinhos entram e não podem mais sair E mesmo que consigam tem as teias aí fora a morte e pior ainda Morte sem luta sem nada No papo da aranha Podiam sair como entraram não podiam Se pudessem não estavam aí mortos Mas os politizados escaparam Com o lenço de cambraia verde ela limpava agora o teclado da máquina Passou a limpar a mesa esfregando enérgicas as manchas mais resistentes Guardou na sacola o lenço enegrecido e procurou um cinzeiro Sorriu e bateu a cinza no chão Tenho uma amiga tão fanática com ordem que já estou pegando a mania Onde vou ela vem atrás com um cinzeirinho na mão acrescentou tirando um recorte de jornal de dentro do livro que trouxera Você lê francês Leio um pouco de inglês Ela percorreu o recorte Encarou Pedro E uma entrevista de André Malraux sobre Guevara Sabe quem é Malraux Um escritor não Parece que morreu faz pouco tempo Quem morreu foi André Maurois não interessa Esse é Malraux um cara muito importante entende O romance dele foi das coisas mais fabulosas que já li A Condição Humana Está traduzido Tomávamos uma média Misto quente A alegria que senti quando ele propôs vamos tomar uma média A gente está gelando Meus joelhos contra os seus nossos sanduíches tão juntos que eu podia morder o que ele soprava Da sua boca também saía fumaça Não sei explicar eu disse mas se você for preso vou e me entrego também Ele nem respondeu Tirou o livro do saco de lona e abriuo em cima da mesa Mas esse Malraux é muito bom o chato é que você marcou com essas cruzes o livro inteiro por que fez isso Você riscou tudo olha só Mas Miguel o livro não é meu perguntei e ele espalhou geléia na torrada Não fale como nazista meu bem Você tem que pensar nos outros que vão ler não pode impor seu gosto aos outros Atrapalhou minha leitura resmungou me beijando com a boca suja de geléia Geléia de laranja Fico olhando o cigarro que tombou da caixa de fósforo onde o deixei Rolou apagado pela mesa Chateada Rosa Vamos trabalhar Na desordem da gaveta tinha de tudo menos papel Cuidando ter achado um lápis Pedro tirou do fundo uma escova de dentes de cabo vermelho Fez pontaria e atirou a escova no cesto de lixo mas ela bateu na vassoura e desviou para a janela Nunca entendi esses efeitos do bilhar disse e me encarou Queria fazer uma pergunta Rosa Posso É uma coisa que eu queria saber Fala Você já teve experiência com mulher Já Que genial E então Não sei o que você quer saber digo e fico rindo por dentro porque sei muito bem o que ele quer saber Nada de extraordinário Pedro Tão simples Foi na minha cidade eu ainda estava no ginásio A gente estudava junto e como nos achávamos feias inventamos namorados Quando lembro Como era bom se sentir amada mesmo por meninos que não existiam Trocávamos bilhetes de amor ela ficou sendo Ofélia e eu era Richard de olhos verdes e um certo escárnio no olhar ô como ela sofria com esse escárnio Mas era preciso um pouco de sofrimento Não sei bem quando o nome de Richard foi desaparecendo e ficou o meu Acho que foi numa noite botei um disco sentimental e tirei a pra dançar me dá o prazer Saímos rindo e enquanto a gente rodopiava qualquer coisa foi mudando ficamos sérias tão sérias Éramos demais envergonhadas entende Nos abraçávamos e nos beijávamos com tanto medo Chorávamos de medo Você era feliz Rosa Passo a mão no seu queixo forte Foi um amor profundo e triste a gente sabia que se desconfiassem íamos sofrer mais Então era preciso esconder nosso segredo como um roubo um crime Tanto susto Começamos a falar igual Rir igual Tão íntimas como se tivesse me apaixonado por mim mesma Não sei explicar mas a primeira vez que me deitei com um homem tive então a sensação do amor do estranho Do outro Aquela boca aquele corpo não eu já não era uma só éramos dois um homem e eu Você achou isso bom Se a gente tem vontade tudo é bom E eu tinha vontade de saber como era pra poder escolher Escolhi Mas quando lembro ô por que as pessoas interferem tanto Ninguém sabe de nada e fica falando Fazendo julgamento tem juiz demais Uma noite ela me telefonou em prantos a família estava a fim de fazer um escândalo eu tinha que sumir quer dizer aparecer na pele de um namorado Reinventar urgente um namorado o namorado do início daquele nosso jogo Teria que lhe mandar cartas presentinhos assinados por um homem que não seria mais Richard que nome então Até o moço da padaria eu usei no telefone precisava da voz do Ricardo ficou sendo Ricardo Mentimos tanto em função dos outros que nos contaminamos com as mentiras Não éramos amantes mas cúmplices Ficamos cerimoniosas Desconfiadas O jogo perdeu a graça ficou amargo Do namorado de mentira ela passou pra um de verdade Do meu lado deixeime cortejar por um primo falouse em noivado E sua família Rosa Meu pai percebeu tudo e ficou calado Minha mãe teve suas adivinhações e ficou em pânico queria me casar urgente com o primo O vizinho também servia um viúvo que tocava violoncelo Fez tudo pra me agarrar pelo pé mas catei meu necessaire e vim Que é isso Necessaire Abro na mesa o recorte de jornal Olho o relógio Uma amiga fala muito em fazer o necessaire frescuras Fazer a maleta a frasqueira Vamos trabalhar um pouco Estou às ordens Rosa de Luxemburgo Tiro da sacola dois tabletes de chocolate um pra ele e outro E outro pra ele também decido Atirolhe o segundo tablete tenho que emagrecer uns cinco quilos não tenho Arrancolhe da mão a minha parte e agora não posso responder porque estou de boca cheia Miguel preso falta de dinheiro de pai de mãe meus amigos caindo Iodos e ainda vou me privar de açúcar Ficamos mastigando concentrados Quem falou nela Na Rosa Luxemburgo pergunto O Jango Uma mulher fabulosa Foi assassinada pela polícia alemã logo depois da Grande Guerra Há uma ponta de malícia no olhar de Pedro Ouvi dizer que seu pai era nazista Verdade Dou um tapa na mesa com uma irritação que estou longe de sentir Curtiu um pouco Mas Pedro não estamos brincando eu queria que você entendesse bem isto Aqui eu sou Rosa e você é Pedro Fim Só mais uma pergunta só mais uma e prometo Você pergunta demais entende Essa Rosa de Luxemburgo era bonita Não tinha esse de Feíssima Mas vamos lá Malraux foi um antigo revolucionário estava na China quando as coisas começaram Participou da Guerra Civil Espanhola da Resistência Francesa e etcétera etcétera Quando ficou velho começou a se apoltronar e acabou ministro do De Gaulle Mas foi muito bacana antes Veja que lúcido isto que ele diz sobre Guevara considera Che o maior homem do nosso tempo mas com uma técnica errada e a prova disso é que morreu numa armadilha mais cretina do que esse globo aí em cima Enganouse quando pensou que estava dominando aquelas aldeias em redor não sei explicar mas na verdade estavam todas controladas pelos norteamericanos Devagar deixa eu escrever isso Achou um lápis roxo e molha a ponta do lápis na língua a letra fica nítida mas os lábios vão se manchando de roxo Guardo o recorte Assim gostaria de guardálo também no fundo da sacola bem protegido Ô acho que estou ficando uma velha sentimental Veja Pedro ainda na opinião de Malraux a revolução na América Latina terá um caráter trotskista não será uma revolução das massas Também penso assim porra Acendo nosso último cigarro Ele traga Sua mão treme um pouco Pode incluir o testemunho de um sacerdote peruano Wenceslau Calderón de la Cruz não é um belo nome Wenceslau o que Calderón de la Cruz Considera homens como Guevara e Luther King verdadeiramente santos Não gosto de Luther King ele resmunga Deixa então só o Che mas repense sobre Luther King Antigamente a santidade era vista como o máximo da penitência caridade aquilo que você sabe Mudou tudo Hoje um cristão não pode alcançar a salvação da alma sem servir objetivamente à sociedade Não sei explicar mas todo aquele que luta com plena consciência para ajudar alguém em meio da ignorância e da miséria todo aquele que através dos seus instrumentos de trabalho do seu ofício der a mão ao vizinho é santo Os caminhos podem ser tortos não interessa É santo Nessa altura posso falar dos nossos padres hein Rosa Você precisava ver o Frei Cristóvão Estava ontem caindo de gripe e ainda assim foi debaixo de chuva falar com as pequenas lá da Casa Vermelha quase tivemos que dar uma porrada na dona A idade delas varia entre treze e dezesseis anos é só nessa faixa que são arrebanhadas Saiu de lá e foi conversar com a loirinha que faz ponto na porta do cemitério pega uma por uma um trabalho tão lento tem que gastar tanto cuspe E o que ouve em troca Romantismo Mas enfim um romantismo mais lógico que o pedido desse monte de padres enchendo o Vaticano Casar Padre tem que casar com a igreja Ou então não fica padre vai fazer outra coisa Padremaisoumenos é como políticomaisoumenos um lixo Padre não deve casar nem com a mãe que respeito a gente pode ter Não freqüento igreja nem nada mas se um dia quiser voltar quero encontrar um padre de mente limpa pra me dar a comunhão Ele riu Então o sexo suja Não sei explicar Pedro mas no caso atrapalha bastante Fragmenta E o padre tem que estar inteiro porque fragmentados já estamos nós Padre a fim de trepar não tem vocação é um equívoco e essa história de equívocos é abominável Focalizo também a esquerda maisoumenos Um cagaço que Deus me livre Sinto fome e frio Apanho no chão um pedaço de barbante e com ele amarro o cabelo Fico às vezes uma vara com esse grupo E agora com essa do embaixador putz É o medo Ele levantouse foi até a janela e ficou espiando a noite pelo buraco carcomido da veneziana Escondeu as mãos nos bolsos e me encarou Acho que tenho mais medo da gente lá de casa do que da polícia Meu irmão mais velho faz parte daquela onda de tradição e família você precisa ver como ficou histérico Morro de medo dele E seu pai Separado da minha mãe Ih Rosa como sofri com essa separação Eu chorava de noite mordendo o travesseiro chorava feito uma besta queria que eles morressem os dois mas não queria que ficassem separados Não é esquisito Por que sofri tanto assim Não dizia pra ninguém eles não souberam nem ninguém estou dizendo agora pra você Fiquei todo quebrado por dentro Feito o vidro da minha janela que levou uma pedrada olhava o vidro e me via igualzinho Nunca disse nada estou dizendo agora e já estou chorando de novo Por que tenho que chorar de novo porra Coisa mais imbecil Fico passando o lenço na mancha da minha malha Sei que não vai sair e continuo esfregando como se tirar essa mancha fosse a coisa mais importante do mundo Lorena ficaria radiante se me visse Ela se casou outra vez Sua mãe Vejo um tipo rondando e até que é simpático Não tenho mais nada com isso Leio muita ficção científica e como faço o desligado eles me consideram sobre o debilóide e me deixam em paz Montou de novo na cadeira apoiou os braços no espaldar e encostou o queixo no braço A boca e os dedos manchados de tinta como os dedos das crianças que começam a escrever Tenho vontade de aconchegar sua cabeça no meu colo dorme Pedro Família é mesmo um pé no saco A minha mora longe Relações perfeitas Perto também a gente não vivia na perfeição Mas é melhor ele se consolar comigo Molhou a ponta do lápis na língua e começou a desenhar no canto da folha Fez um passarinho voando Fez uma casa Reforçou o rolo de fumaça saindo da chaminé Assim que começar a trabalhar peço transferência para o curso noturno e vou morar com dois colegas Você tem preconceito com bicha Meu preconceito é contra o maucaráter Acho que um deles é bicha Tem ódio de menina diz que elas são a porta do Diabo Descalço as meias e faço com elas uma bola Quero rir mas ele está seríssimo Deixo as meias na gaveta o que me perturbaram essas meias com seus elásticos frouxos Como é possível um simples par de meias perturbar tanto Um dia guardei aqui no fundo um par de soquetes de lã preta E se ainda Fechoas na mão Empoeiradas mas quentes Olho Pedro e me vem não sei de onde tanta esperança Se não interessa diga antes de se mudar deixe tudo explicado certo Nada de enrolamentos isso é importante Você é virgem Virgem propriamente não É uma embrulhada Já sei virgem Podia fazer com Lorena uma boa parelha Tomo seu lápis e desenho um sol radioso ao lado da fumaça Não ficou mais quente Reaprender a sorrir Pedro Reaprender a aguçar os punhais E nitidez nada de fumaças Não faça o piedoso nem o sentimental porque aí você pode ferir muito mais Afirmação Mas são eles os sentimentais Você precisava ver quando meu amigo desbundou o cara só faltava morrer quando veio me dizer como estava infeliz como a família era cruel e se eu também ia fazer como os outros só porque ele não passava de um maldito Não se ajoelhou porque não deixei Mas por que maldito Não suporto nem o pânico a declaração de princípios nem acoelhamento nem provocação Minha tiaavó ficou tão avariada com o peso do sexo que se escondeu num convento virou freira Uma outra tia que gostava da polêmica fez tantas que acabou puta O mesmo medo o mesmo medo Se a gente não tivesse mais medo Nem dia nem noite sentenciou a Lorena Eles estão no crepúsculo e o crepúsculo será sempre incerto Inseguro Literatura bah As mulheres já estão encontrando sua medida Eles virão em seguida acho que no futuro só vai haver andróginos digo e fico rindo A Loreninha acrescentaria coitadinhos Mas quando fala em tom poético não usa diminutivos Você ama alguém Rosa Amo E agora tire esse pulôver que hoje preciso dele Vista o meu Alguma missão Com o Bugre Tomo sua mão entre as minhas Suja e áspera Não ouvi a pergunta Ele voltou a cavalgar a cadeira teria corado Corou Ih sou mesmo uma besta Ai Rosa pelo amor de Deus fica minha namorada Te dou meu coelhinho minha bicicleta meu ovinho de pomba tenho um ovinho de pomba murmurou e riu baixinho Fica Agarroo pelo cabelo Já tenho namorado Fim Agora preciso ir Espera quais as características de um país do Terceiro Mundo O nosso por exemplo Estou pensando em escrever um artigo Mas onde publicar E onde eu poderia publicar perguntei Miguel ficou me olhando com esse mesmo olhar com que estou olhando Pedro Acertou nas mãos o maçarote da minha novela e deu uma resposta ambígua ele que não é ambíguo Continuasse escrevendo sem pensar em publicar Um dia quem sabe se achasse que o texto ainda era válido Percebiase que fora escrito com amor Com honestidade Aperto a mão de Pedro como se apertasse a minha Os bons sentimentos o amor nada disso é suficiente hein Pedro Não se preocupe em publicar vai escrevendo Você não quer ser jornalista Então é praticar depois a gente vê Presta atenção falar em subdesenvolvimento não é só falar nas crianças depois dou o número exato das que morrem por dia Tem o analfabetismo A multiplicação das favelas Os retirantes dê um passeio pelas rodoviárias escute o que essa gente fala Vendedores ambulantes com pentes lápis giletes O lixo estourando nas ruas como se chamam essas bocas que se abrem entupidas nas calçadas A sujeira dos cafés restaurantes privadas a sujeira apoteótica dessas privadas a começar pelas da Faculdade ô Pedro Dê uma ligeira volta por aí e o artigo se fez sozinho no acessório e no principal como diz minha amiga em latim ela gosta de latim Amanhã a gente conversa sobre as causas Agora tenho que ir Ele me acompanha até a porta Remexo o fundo da sacola Fica com este oriehnid dinheiro de trás pra diante dá sorte guarde oriehnid Depois acertamos nossas contas Mas é muito Rosa Beijoo no rosto Entro na escuridão do corredor enquanto ele pergunta pelo meu romance Não quero que me veja quando respondo que rasguei tudo rasguei Pensei que tivesse vocação e me enganei como esses padres que estão aí se casando Mas como você sabe que se enganou A gente sabe Pedro A gente sabe Ele me abraça com tanta força que chego a me espantar não imaginava que fosse capaz de tanta força assim Sua boca tremente procura a minha Vou ao encontro dela nem sabe beijar putz Eu ensino por etapas espera por que tanta afobação Não me machuque não somos inimigos procuro lhe dizer com a língua que aplaca a sua e ensina o beijo demorado Profundo No começo e só desajeitamento não tem importância depois tudo se arruma tenho ainda uns quinze minutos murmuro ao seu ouvido Recuamos abraçados até a sala Ele estende a mão e apaga a luz quer que seja no escuro De acordo no escuro e de porta fechada decido empurrando a porta com o pé Seus dentes machucam meu lábio é dentuço ô não lute assim às tontas eu mostro o caminho É sofrimento sim mas também é gozo não se preocupe comigo entende Vamos sem medo estou do seu lado não contra você Não fique assim Pedro Descansa relaxa Temos tempo Ele me beija e soluça de aflição e raiva o sexo confundido Tenho que tomar a iniciativa vai fracassar de emoção e ficar desesperado Vamos Pedro Não é nenhuma porta do Diabo sussurro ao seu ouvido e rimos juntos Também não é de Deus é só uma porta entre Explodiu em esperma e choro agudo Perdão Rosa perdão Se me falar mais em perdão te mato agora já Foi tudo uma droga Droga coisa nenhuma Não foi bom Tiro o lenço da sacola e enxugo seu rosto Sintoo sorrir e fico sorrindo junto Você vai orientar o Pedro Bugre ordenou Olha aí orientação completa Uma boa ação ou simples vontade de amar ô lá sei lá sei Sei que amo Miguel mais ainda depois da traição Se é que isto pode se chamar de traição Puxo o cabelo de Pedro que está saindo da depressão com uma rapidez que me assusta Ri sozinho no auge Beija a palma da minha mão e depois a leva até sua cara esbraseada Te amo Rosa te amo Perfeito Mas vai agora procurar sua menina Espera Rosa Cato meus pertences Ele me agarra mas tenho mais força Deixoo estendido no chão completamente terno e bobo Quer saber se vamos nos ver no dia seguinte se meu namorado é mesmo Miguel faz perguntas perguntas Boa noite Pedro Trabalha bem nesse artigo certo A escada de caracol é escura Alguém tosse meio sufocado Levanto até as orelhas a gola do pulôver Pedro vai sentir frio com minha malha mas pode tomar uma média e amanha vai olhar a namorada de frente ô Miguel como preciso de você Como esse menino precisou de mim Quem sabe um dia ainda vou escrever bem Se isso acontecer Tenho pensado num diário diário deve ser mais simples uma coisa assim despojada a Lorena me aconselha a escrever despojado me acha barroca Sou barroca por dentro e por fora aceito Planejamentos e estrelas Genialidades sem gênio é isso Miguel Um diário honesto Enxuto contando meu trabalho sem glória sem nada Até ser presa e morrer obscura apenas com o nome que escolhi Rosa Preciso urgente de ar que estou me comovendo Abro a porta do edifício e uma rajada de chuva e vento me bate na cara a chuva vem em rajadas Rajada não é uma palavra boa mas de trás pra diante adajar Rosa levou uma adajar no peito fica menos grave Corro até a esquina chegamos juntos Bugre e eu O carro é da cor da noite Então Bugre Foi tudo adiado tem coisas mais importantes acontecendo E uma boa notícia para você Seu relógio está funcionando Perdi o meu pode me emprestar esse Deixa aí no portaluvas Ela tirou o relógiopulseira Boa notícia pra mim Fala Bugre Um momento não estou enxergando direito tem um lenço Emperrado o limpador do párabrisa não conseguia fazer escoar o chuvisco cerrado ia até a metade do leque demarcado no vidro o voltava tremelicando antena de um inseto moribundo sem forcas para cumprir sua tarefa A antena da direita apenas vibrava mas não saia sequer do lugar Quer que empurre Agora está melhor me acenda um cigarro está no portaluvas Ah esse gorro tira daí você ia usar hoje É seu Ela abriu nas mãos o gorro de malha preta sanfonada Meu Gorro mais lindo Bugre Ando doida com meu cabelo putz Ele recebeu o cigarro Olhoua através do espelho Ficou com cara de marinheiro Rosa Vai ser útil na viagem Que viagem Ele arrefeceu a marcha e voltouse para vêla Miguel está na lista dos que vão ser trocados Na lista Ela foi levantando a cabeça Miguel está na lista Seu namorado vai embarcar Argélia Um dos primeiros da lista queria estar no lugar dele A notícia sai amanhã pode ir arrumando o passaporte Argélia Ficou olhando o vidro do párabrisa por onde escorria o chuvisco até o dique da haste em convulsões mais espaçadas Argélia Argélia ficou repetindo Apertou demoradamente o lenço contra os olhos Fungou e limpou o nariz no dorso da mão O Miguel Na Argélia Vamos ficar juntos Demais Bugre demais Não sei explicar mas estou tão atordoada Vamos ficar juntos é isso Tenho que arrumar o dinheiro perdão oriehnid É cara a passagem Enfim não tem importância falo com minha gente a gens lorenensis também vai ajudar é evidente Argélia Sufocou o choro e o riso E cuida logo do passaporte que a operação vai ser rápida Agora vou deixar você em casa tenho um compromisso amanhã a gente se fala Contente marinheira Ela abriu a boca e respirou com cuidado com medo de receber uma dose maior de ar Com a ponta do dedo ao invés de Argélia escreveu Algéria pensando em Alger No vidro esbranquiçado pelo hálito de ambos se transferisse o e para junto do l Algéria ficaria sendo alegria Limpou depressa o vidro com o lenço Ô Bugre Me turbilhonou completamente Estava com pensamentos horríveis sei lá Mas como foi isso como foi É longo Rosa Fique por enquanto com a boa noticia Depois a gente conversa Vocês vão levar uma vida dura Eu sei Eu sei Muito trabalho Mas vão ter bons contactos Nenhum problema com sua família Depois de três dias de choro minha mãe vai ficar ocupada demais em arrumar dinheiro vai querer me forrar o pavor que eu passe fome no estrangeiro Meu pai é um alemão sentimental mas contido ele entende Sou capaz de mandar de lá uma foto com vestido de noiva pra efeito familiar obrigo Miguel a posar de noivo ô o sucesso da foto no portaretrato de prata da sala de visita Faria pose de estrela de cinema qual era o nome daquela que a mãe gostava tanto Rita Hayworth Ela dizia Raivorti O pai era distraído não guardava nomes mas de um não esquecia Claude Rains Um velho antipático resmungava a mãe Artista tem que ser moderno bonito Depois você conversa com Mineiro Sobre o passaporte É esta sua rua Não consigo ver a placa A próxima vai em frente E o Corcel Amanhã estará na sua porta Com os cumprimentos revolucionários Bugre Bugre esse gorro e essa notícia entende Mas onde você vai É neste portão avisou inclinandose para beijálo Pensou ainda em perguntar se Miguel falara sobre ela mas apanhou a sacola o livro e perguntou apenas se podia ficar com o maço do cigarro Leve também o fósforo E olha seu lenço isto não é seu lenço Entrou protegendo a cabeça com a sacola a chuva aumentara Que tempo resmungou se sacudindo no vestíbulo do casarão Lia É você Lia perguntou Madre Alix abrindo a porta do seu gabinete Entre um instante filha Sentese Aqui ao meu lado Quer tomar um café Foi leito há pouco vê se está bom de açúcar Lia deixou a sacola e o livro no chão Sorriu desamparada Queria ficar só pensando e repensando Insônia Madre Alix Não muito trabalho Mas que beleza de gorro Não é mesmo Presente de um amigo Prendendo assim o cabelo você fica com cara de marujo e marujo alemão você tem os olhos de seu pai Foi o que falou meu amigo cara de marinheiro digo tomando o café Quente demais Doce demais A senhora recebeu carta da minha mãe Uma longa carta Gosto muito da sua mãe Fico olhando o relógio em formato de oito dependurado na parede caiada de branco O som também é antigo Na minha casa tem um relógio igual Você tem saudade Lia Não sei explicar mas lá é como este café adocicado e quente Minha mãe chegava a me abafar com tanto amor preferia às vezes que me amasse menos O velho disfarçando com carrancas tios e tias estourando por todos os lados com os batalhões dos primos Aconchegos festinhas Lembro de todos amo todos mas não tenho vontade de voltar Isso é saudade Foi um período que se encerrou Aqui começou outro e agora vai começar um terceiro período e então fico com esses dois períodos pra lembrar Será saudade Acho que sim Quando noviça eu pensava muito na minha gente Sabia que não ia voltar mas continuava pensando com tanta força Como quando se tira um vestido velho do baú um vestido que não é para usar só para olhar Só para ver como ele era Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar Acho que saudade é isso Quebrei a cinza do cigarro no pires com rosinhas pintadas Irmã Priscila pinta na porcelana Tanta coisa que precisava de revisar ô essa notícia Argélia Mas que loucura Argélia Argélia putz E ouvindo aqui o caso do vestido Fico olhando os olhos de aço de Madre Alix Não é o caso do vestido Um poema que Loreninha já recitou pra mim Terei que dizer adeus à concha corderosa Mas pra onde quer que vá e passe o tempo que passar sei que não vou esquecer seus incensos Suas recitações Suas músicas Mil anos e posso vêla branquinha e magrinha na sua malha preta deitada de costas pedalando no ar Tomo mais uma xícara digo pegando a garrafa térmica Ela puxa sobre a orelha a touca branca A cabeça não é pequena para o corpo Procuro imaginála jovem e já vestindo o hábito uma vida cinzenta sobre os panos e sobre a touca que lhe cinge a cabeça a como um capacete Mas por que vida cinzenta Ela não pôs nesse trabalho de mais de meio século o maior amor Então não tem nada de cinzenta Soldado de Cristo como era mesmo o hino Levantaivos Soldados de Cristo Meio século curtindo um pensamento só E os estudos filha Você trancou a matrícula Bem as coisas tomaram outro rumo entende Vou viajar Madre Alix Exterior Por enquanto só posso adiantar isso dentro em breve levanto a âncora veja já estou com o gorro digo e não sei por que me emociono Não esqueço a paciência que a senhora teve comigo sei que sou agressiva Complicada Deve ter tido às vezes vontade de me botar na rua E me abria a porta Ela guardou os óculos no estojo de couro Pôs uma mão sobre a outra e ambas em cima da mesa Fiquei fixada na sua aliança de prata Vocês me parecem tão sem mistério tão descobertas chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto quando descubro que me enganei que sei pouquíssima coisa Quase nada exclamou e abriu as mãos no espanto O que sei afinal Que é da esquerda militante e que perdeu o ano por faltas Que tem um namorado preso que está trabalhando numa novela e que está pensando numa viagem que não tenho idéia para onde seja Que sei eu sobre Lorena Que gosta de latim que ouve música o dia inteiro e que está esperando o telefonema de um namorado que não telefona Ana Clara aí está Ana Clara Como me procura e faz confissões eu podia ficar com a impressão de que sei tudo a respeito dela Mas sei mesmo Como vou separar a realidade da invenção Quando ela se cala fico ouvindo o som do relógio As cadeiras de jacarandá com as toalhinhas de crochê na altura da cabeça estavam puídas as toalhinhas Mas se foram feitas por avó Diú Modéstia Madre Alix Na realidade a senhora sabe mais fundo do que aparenta Vocês são jovens Lia Eu não contava com uma aproximação maior Mas assim afastada como estou de que forma posso ser útil E eu queria ser útil repetiu O pano da touca foi se franzindo modelando as rugas que se aprofundaram na testa Ana Clara é a única que se deu sem reservas Pois diante dela me sinto tão inútil quanto diante de vocês reduzida como estou a um gravador gravo o que me diz aceito a carga mas quando procuro influir mudar o que deve ser mudado ela me escapa como uma enguia Peço exijo Um dia está arrependida até o fundo da alma promete faz planos Chego a acreditar numa recuperação você sabe tenho uma confiança ilimitada no milagre Está esperando que eu conteste mas não vou entrar nesse moinho Hoje não ô como eu queria curtir minha alegria sozinha na minha cama no escuro A senhora tem feito tanto Madre Alix Então não sei Ficou a confessora dela A enfermeira E agora delatora já conversei com meu primo que é diretor de um sanatório Ela não pode ser internada à força tem que estar de acordo e já me disse que concorda mas depois muda de idéia se acha curada mais promessas projetos mirabolantes Gostaria de conversar com esse noivo Vou até a janela e olho a noite brilhando de chuva Vontade de recomeçar a escrever mas quem decide Se tenho ou não vocação Lorena e Miguel não se entusiasmaram muito Não se entusiasmaram nada Mas não podem se enganar Não devia ter rasgado precipitação histeria Mas isso não tem problema reescrevo se quiser Lorena é sofisticada Miguel é um cerebral despreza ficção Você conhece filha Quem Esse noivo Parece que é muito rico mas não gosta dele gosta do outro do Max Fala muito nesse Max viciado também Um caos completo Assim de costas com seu avental cinzento e touca ela parece uma camponesa dessas bem antigas modelo limpo demais até para um pintor acadêmico Faço pontaria e acerto o cigarro no canteiro Foi Lorena que espiou lá na janela Se interna e se desintoxica Perfeito Depois de uma semana de um mês tem alta não pode ficar internada a vida inteira Então recomeça tudo igual a senhora sabe disso melhor do que eu Não vejo saída Queria fazer análise prometi pagar o tratamento ficou de ver o médico mas quando pergunto que médico escolheu ou quando vai começar vem com respostas vagas adia é incapaz de uma decisão Ontem chegaram as roupas que andou comprando Devolvi tudo nem a Pensão ela pode pagar e nem espero que pague Mais dívidas com o cobrador insolente exigindo um sinal Meus céus Este assoalho tão claro com suas tábuas largas quase brancas Na minha casa eu gostava de me deitar no chão enquanto os grande iam conversando pela noite adentro Bom dormir com aquele som das conversas Fico às vezes com vontade de sacudir Aninha bater nela tanta raiva me dá ô sei que está doente é lógico mas essa doença me deixa uma fúria Então a senhora acha que um analista vai resolver no ponto que está Já leve dezenas de analistas Madre Alix Dezenas Andou com uns os outros não pagou Recuperáveis são os casos recuperáveis Fim Os loucos menos loucos esses que nem a gente Uma neurose que não chama muita atenção porque faz parte enquanto o neurótico puder trabalhar e amar nessa loucura razoável qual é o problema Mas quando Ultrapassa aquela linha fininha como um fio de cabelo do cabelo da Lorena de tão fino Quando pisa um pouco para fora e mergulha nas águas amarelas Kaput Os olhos de aço estão prestes a se derreter ela gosta bastante dessa tonta E é lúcida o suficiente pra não ter muita esperança Desde ontem não aparece Telefonou dizendo que está na chácara do noivo Noivo A senhora me desculpe Madre Alix mas Ana é o produto desta nossa bela sociedade tem milhares de Anas por aí algumas agüentando a curtição Outras se despedaçando As intenções de socorro e etcétera são as melhores do mundo não é o inferno que está exorbitando de boas intenções é esta cidade Vejo a senhora sair com outras senhoras bondosas dando sopinha aos mendigos Bons conselhos cobertores Eles bebem a sopinha ouvem os conselhos e vão correndo trocar o cobertorzinbo pelo litro de cachaça porque o dia amanheceu mais quente pra que cobertor Tudo continua como na véspera com uma noite de demência a mais fornecida pelo donativo Um padre nosso amigo foi ensinar catecismo à menininha de nove anos que o pai vendeu pro bordel e quase morreu de tanto apanhar do agregado da proprietária Aprendeu a lição ô se aprendeu Caridade individual é romantismo cheguei a essa conclusão não faz muito tempo Agora ele funciona com a gente mas dentro de outra perspectiva Nos esquecemos nos descuidamos diz Bela Akmadulina E tudo caminha ao contrário Vou até à garrafa térmica e me sirvo de mais café mas queria um sanduíche Presunto e queijo Uma abelha se debate contra a vidraça e de repente seu zunido ficou mais importante do que nossa fala Mas de onde veio essa abelha numa noite dessas Gostaria de escrever como ela faz mel E quase me dobro num riso desatinado era bem doidona a cigarra da fábula com suas cantorias mas a formiga de vassoura na mão não ficava atrás Tinha tanta coisa que lhe dizer filha E já nem sei por onde começar Essa sua política por exemplo Me pergunto se você está em segurança Segurança Mas quem é que está em segurança Aparentemente a senhora pode parecer muito segura aí na sua redoma mas é bastante inteligente pra perceber do que essa redoma está lhe protegendo Alguns padres romperam o vidro como aquele de que falei Por acaso estão em segurança Não Nem estão pensando em segurança quando se deitam no colchão sem travesseiro ou quando rezam suas missas num caixote feito altar Ela sorriu Um sorriso triste que me arrependi de provocar Mas não estou na redoma Lia É nesse ponto que você se engana como se enganou também quando disse que eu queria lhe apontar a porta Deus sabe que meu desejo maior é protegêlas e guardá las para sempre como se isso fosse possível Se não interfiro se não me aproximo é porque não quero que pensem em vigilância fiscalização Vocês bateriam as asas mais depressa ainda Pronto magoouse Essa minha mania de discurso baiano com subversão pode dar noutra coisa Não sei explicar Madre Alix mas o que queria dizer é que embora resguardada a senhora luta a seu modo respeito sua luta Respeito até a luta dos que querem nos destruir respeito sim senhora eles estão na deles Como estamos na nossa enfraquecidos traídos divididos não calcula como estamos divididos Mas vamos agüentando Um que fique tem que correr como um cão danado pra passar o facho ao seguinte que recebe e sai correndo até o próximo que nem estava na corrida entende De mão em mão É demorado mas não estamos mais com tanta pressa Facho Lia Você fala em facho mas o que vejo é um levar ao outro violência morte Um rastro de sangue é o que vocês vão deixando por onde passam Temos um Condutor Supremo e do Seu esquema transcendente a violência foi riscada A espiritualidade Olha aí vitória da espiritualidade Arranco uma lasca da unha que vem com um fiapo de pele O sangue brota Chupo o dedo Uma bala dumdum no peito doeria menos O Bezerro de Ouro está instalado na praça e a senhora me fala em espiritualidade Os adoradores não são espirituais porque são adoradores entende O povo não é espiritual porque o povo quer fazer parte da adoração e não pode nem chegar perto está desesperado aquele brilho aquele exemplo de conforto gozo Esses desastres esses crimes tudo isso é desespero o povo está sem esperança e nem sabe Então fica subindo nos postes dando tiro àtoa bebendo querosene e gasolina de aflição Medo Eu estava mesmo desorientada Agora sei o que quero fazer Violência também Não consigo mais ficar sentada me levanto Assumo o risco Não Madre Alix Confesso que estou mudando a violência não funciona o que funciona é a união de todos nós para criar um diálogo Mas já que a senhora falou em violência vou lhe mostrar uma digo e procuro o depoimento que levei pra mostrar a Pedro e esqueci Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante a justiça ele ousou distribuir panfletos numa fábrica Foi preso e levado à caserna policial ouça aqui o que ele diz não vou ler tudo Ali interrogaramme durante vinte e cinco horas enquanto gritavam traidor da pátria traidor Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo Carregaramme em seguida para a chamada capela a câmara de torturas Iniciouse ali um cerimonial freqüentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político Neguei Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos iniciandose a tortura elétrica deram me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes Depois obrigaramme a tirar a roupa fiquei nu e desprotegido Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes principalmente nas mãos Molharamme todo para que os choques elétricos tivessem mais efeito Pensei que fosse então morrer Mas resistia e resisti também às surras que me abriram mu talho fundo em meu cotovelo Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio Obrigaramme a então a aplicar os choques em mim mesmo e em meus amigos Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca Outras vezes panos fedidos Após algumas horas a cerimônia atingiu seu ápice Penduraramme no paudearara amarraram minhas mãos diante dos joelhos atrás dos quais enfiaram uma vara cujas pontas eram colocadas em mesas Fiquei pairando no ar Enfiaramme então um fio no reto e fixaram outros fios na boca nas orelhas e mãos Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos mal ouvia Meus punhos estavam ralados devido às algemas minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas E etcétera etcétera Dobro a folha Madre Alix me encara Os olhos cinzentos têm uma expressão afável Conheço isso filha Esse moço chamase Bernardo Tenho estado muito com a mãe dele fomos juntas falar com o Cardeal Agora é que eu não sei mesmo o que pensar Muito especial diria a Lorena Nunca ninguém me deu tanto essa idéia de união de gelo e fogo como ela me dá Tinha empalidecido mas está de novo corada as veiazinhas se cruzando na superfície da face numa rede fina como se fosse feita de cabelos rompidos aqui e ali as pontas meio perdidas se buscando adiante e se dando as mãos até formar um só todo transcendente e indefinível como o ser único desse seu universo Um universo que é o da sua infância A própria infância da humanidade Boa noite Madre Alix Gostei muito de conversar com a senhora Toma cuidado Lia Não quero que você sofra toma cuidado eu peço Sou forte à beca Não Lia Vocês são frágeis filha Você Lorena Quase tão frágeis quanto Ana Clara Haja o que houver não deixe de me dar notícias Conte comigo Vou lhe mandar meu diário Madre Alix Ao invés de cartas um diário de viagem Ela me acompanha até a porta Posso lhe dar uma epígrafe É do Gênesis aceita pergunta e sorri Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei É o que você está fazendo acrescentou Hesitou um pouco É o que eu fiz sete Irmã Clotilde entrou triunfante com o ramo de margaridas e a sacola de frutas Trouxe laranja melão e maçã E também banana olha que beleza de cacho Interrompi meu exercício de bicicleta mas continuei deitada n chão Sopreilhe um beijo nas pontas dos dedos A senhora é uma santa Quem me dera Ela deixou pender os braços desamparados dentro das mangas do hábito inclinou a cabeça e ficou pensativa olhando para dentro de si mesma E o que vê não deve ser animador A senhora queria mesmo Abriu o sorriso amareloesverdinhado a dentadura tem um vago tom vegetal Cheirou as margaridas e a cara continuou parada inspirada Na adolescência eu quis ser Santa Teresinha Fiz tudo o que ela fez cheguei até a pintar um quadrinho óleo acredita Não consegui ter a febre minha saúde foi sempre excelente Depois quis ser Santa Teresa DÁvila Mais difícil realmente Fico olhando o teto Las Moradas Você leu ela perguntou juntando as mãos Animouse Eu sabia quase de cor menina No es pequeña lástima y confusión que por nuestra culpa no entendamos a nosotros mismos ni sepamos quién somos O avental cinzachumbo chega até seus tornozelos bem torneados Tem a cintura fina Pelada deve melhorar muito Muitas religiosas estão tirando essas roupas a senhora não está pensando nisso Suas pernas são bonitas Irmã Terribles son las ardiles y mañas del Demonio para que las almas no se conozcan ni entiendan sus caminos Espeto dois dedos na testa e faço uma careta que se perde porque agora ela está olhando de novo para si mesma Afundou ainda mais Confusión y lástima Abriu a boca e respirou já na tona Mas eu dizia que quis imitar as duas Teresas Não tive nem a candura da primeira nem a inteligência da segunda Aprendi a lição tolice copiar modelos O estado de graça de uma alma está mais num estado de inconsciência do que em outra coisa Gosto muito de pintor primitivo enquanto ele ainda não sabe que é primitivo acrescentou ela examinando a bolselha que Aninha esqueceu na mesa O fecho se abriu e pelo vão escapou um fino pincel delineador Essa sua amiga por exemplo E se estiver mais próxima de Deus do que nós que vivemos para isso Ai meu Pai Se ela continuar me mato Não é o telefone Irmã Estou esperando um chamado Ficou escutando Apertou contra o peito a bandeja que tinha ido buscar e fixou em mim o olhar de amêndoa nem amarga nem doce As mangas do seu hábito terminam em ponta como asas um passarinhão nem da terra nem do céu Crises de consciência coitadinha Sabe que é menos grave fazer amor com mulher mas ainda assim deve se queimar na curtição É no vizinho Tem um telefone que toca demais aí na vizinhança e ninguém atende Fecho o livro e nele apoio minha cabeça Mais guerra do que paz senhor Leon Nikolaievitch Tolstói Se somarmos as guerras todas do mundo já imaginou Ainda vou defender essa tese em Direito Internacional a anormalidade é a paz Foi assassinado Quem Lorena Esse vizinho que não atende o telefone Mãezinha adora historias de crime outro dia me contou um crime horrível que houve na França Um padre Padre Já faz tempo Ele assassinou no bosque a amante grávida i n ou o feto batizou o feto tudo direitinho e depois enterrou mãe e filho debaixo de um carvalho e ainda fincou em cima uma cruzinha de graveto já pensou Só fico me perguntando que nome ele botou no filho digo apanhando a laranja que rolou no chão ela está arrumando as frutas na bandeja Não foi um padre que cometeu o crime foi um demônio O demônio se apossou de sua alma Mas não totalmente Irmã Ele batizou o feto e depois fez a cruz na sepultura Acho que foi por causa de crimes assim que antigamente a igreja tolerava a pederastia Se ele tivesse um amante digo e já estou arrependida É tarde no planeta O silêncio ficou tão inteiriço que posso ouvir seus gestos compondo a pirâmide de frutas Estou exausta mas recomeço a pedalar é preciso fazer alguma coisa Seria maravilhoso cantar se eu tivesse voz Ai meu Pai Está bem assim Lorena Ela tenta equilibrar a maçã no alto da pirâmide Tenho vontade de alisar seus sapatões escalavrados estacionados em engulo reto Toda ela tão reta pobrezinha Mas quem inventou que é lésbica E por que eu acreditei Por que aceito sempre o pior Estico as pernas à moda oriental e fico sentada no tapete E não é o pior lógico Essa idéia que me veio acrescento depressa A senhora é de um tempo maisqueperfeito Que tempo será o meu Ainda não sabe filha Não Você é jovem demais não se encontrou Ih o blablabla clássico o que sou de onde venho pra onde vou Lião fica p da vida quando alguém começa com essas elucubrações Trabalhe entende Seja útil participe e quero ver se vai ter folga pra ficar admirando o próprio embigo Ela diz embigo eh Lia de Melo Schultz Concordo e tudo mas as milhares de horas que gastei olhando o meu O que sou Plenitude transbordante se ao menos por telefone ele me diz um alô Alôlorena A senhora já amou Irmã Antes dos votos é lógico Ela cata no chão as folhinhas das margaridas Não se esqueça das suas cenouras que estão na nossa geladeira Cenouras Queria comer beleza e me oferece cenouras Queria tanto ser bonita O silêncio Sempre que falo nisso há um certo silêncio E continuo falando ah preciso da piedade de todos vocês Ora filha Seu tipo é assim tão Especial Examino as palmas das minhas mãos Quando mãezinha era jovem teve uma amiga muito purinha que acordou um dia com as chagas de Cristo nas mãos não é extraordinário pergunto Mas não quero resposta quero ficar só Gosto muito das pessoas mas essa necessidade voraz que as vezes me vem de me libertar de todos Enriqueço na solidão fico inteligente graciosa e não esta fera ressentida que me olha do fundo do espelho Ouço duzentos e noventa e nove vezes o mesmo disco lembro poesias dou piruetas sonho invento aluo todos os portões e quando vejo a alegria esta instalada em mim Não e o primeiro caso Das chagas disse Irmã Clotilde endireitando o corpo e empunhando as flores tesas como um feixe de lanças Precipitou se para o banheiro Posso Pede licença para entrar como se corresse o risco de encontrar um homem lá dentro Digolhe que entre não precisa pedir licença Tombo de costas Este fruto tem fogo dentro dele ah que horrívelmaravilhoso é viver Fico ouvindo o jorro da torneira penetrando na caneca de cobre Um ato de amor Vai transbordar Isso de não comer carne menina Você está pálida Sou vegetariana querida Aspiro com fervor o ar recémnascido da manhã Abro as mãos estendidas para o teto e meu plexo solar também se abre e vai girando como um girassol Que sabe a flor da raiz pergunto em voz alta Os poetas pressentem mas não estão certos Consolatrix afflictorum grito por dentro A raiz está fechada na custódia de ouro coberta com um pano dourado A chave é a verdade só peço verdade e dou verdade em troca É um preço alto Pelo visto altíssimo Quem é que se interessa Todos me olham tão simpáticos me fazem um agradinho na cabeça e vão correndo comprar ingresso no Trem Fantasma com seus túneis de papelão pintado e viajantes de matéria plástica O trem corre por paisagens de flores e cascatas artificiais só farsa nos efeitos do jogo de espelhos Ana Clara então tem cor de coalhada disse Irmã Clotilde reaparecendo na porta Enxugou as mãos Até a Lia que parecia uma romã também está perdendo as cores Não sei o que está acontecendo com vocês Sabe muito bem pensou Lorena apanhando na estante o tratado de legislação social Agitouo fazendo farfalhar as longas tiras de papel que marcavam as páginas Leu as anotações na extremidade de uma das fitas Debruçouse na janela e ficou olhando o jardim O Direito nasceu espontâneo como aquelas florinhas brotando no meio do mato Mas vieram os homens cavilosos complicaram tudo com suas cavilosidades pensou arrancando outra fita de dentro do livro Leua com atenção e picoua em pedacinhos miúdos como confete Soproua na palma da mão Tesão era caviloso Imagine Os que vieram depois é que fizeram aquelas caras espertas e inventaram a sed lex E que no fundo não é tão dura assim Com Madre Alix aprendera essa palavra caviloso Esse seu gato é tão caviloso ela disse apontando Astronauta que nesse momento exato começou a fazer a toalete das partes Foi ao dicionário capcioso manhoso sofista A expressão era de origem nordestina tudo se ajustando Madre Alix era cearense A voz de barítono de Irmã Clotilde dominou o ruído embesourado de um helicóptero em vôo baixo Parece banheiro de cinema Nunca encontrei uma menina assim caprichosa como você A desordem me deprime Irmã Ah se eu pudesse me arrumar por dentro tudo calminho nas gavetas Minhocação demais Ela apanhou alguma coisa que deixou cair no chão Abriu o armário de roupas Lorena acompanhavalhe os movimentos pelos pequenos ruídos que os objetos emitiam quando eram violados Ficou curiosa Quer ver se minha roupa também é de cinema pensou examinando uma folha de caderno dobrada dentro do livro O rascunho de uma carta para MN Uma carta em verso que não mandara como tantas esboçadas e imaginadas O meu coração é que veio sangrando veleiro vermelho na crista da espuma leu e sorriu para a pequena zebra de flor na boca que desenhara no canto da folha Minha poesia é pouca porém ruim Que foi Ai meu Pai Também esta deve estar ficando surda Lia já tinha dito não tinha Os orifícios menores acabam se fechando solidários com o principal Res accessoria sequitur rem principolen murmurou voltandose para a freira A fisionomia se acendeu E se eu ficar repetindo sou divina maravilhosa e ele me ama perdidamente sou divinamaravilhosa e ele me ama perdidamente sou divinamaravilhosa E ele Assim filha Pensamento positivo Lorena aluiu o livro ao acaso leu um trecho sobre acidentes no trabalho e em seguida fechou os olhos podia repetir palavra por palavra o que acabara de ler Sorriu excitada E as coisas que via de olhos fechados Não existiriam realmente Por que o delírio não haveria de corresponder a uma realidade Ficou olhando as margaridas na caneca de cobre que a freira deixou em cima da mesa Agora estavam de cabeça baixa os cabos compridos sem forças de sustentar as corolas que pendiam com suas grinaldas de pétalas brancas Como noivas tímidas pensou comovida Levou a caneca até a prateleira da estante onde estava o retrato do pai Me ajuda paizinho Ele gosta de mim eu sei Mas o suficiente Mulher filhos é gente à beça Tenho horror do fazdeconta e ele vai querer assim ah meu paizinho querido posso dizer que vou resistir que vou renunciar Mas se ele me chama vou correndo pisando na ponta dos cascos chego duas horas antes meu amor Na casa dos meus avós tinha uma igualzinha disse Irmã Clotilde lustrando com a ponta do avental a barra dourada da cama Doulhe o pano de pó e ela exulta adora trabalhar Já avisei que a empregada da mãezinha vem vindo por aí com seus sapatos de ferro e eficiência daquelas fadinhas arrumadeiras Jacaré ouviu Precisa estar fazendo alguma coisa com as mãos mãos grandes e ossudas as unhas quadradas cortadas rente Está em meu redor há milhares de horas E se estiver apaixonada por mim Já pensou Mulher de padre vira mula semcabeça E mulher de freira As unhas cortadas rente Conhecete pelas unhas Precisam aparálas com cuidado instrumentos importantíssimos ô vexame Por que só coisas assim varam minha mente pervertida Quem me vê tão suave Uma criança Apenas um terço de nós é visível a senhora sabia o resto não se vê O avesso Só um terço visível Viro a página Ainda os acidentes blablablablabla Lá sei O resumo deve estar aqui adiante quer ver Pronto blablabla Encaroa Ela parou em suspenso segurando a flanela esticada entre as mãos pronta para recomeçar os movimentos de engraxate nas barras que brilham como ouro Só um terço querida Vejo seu manto seu rosto suas mãos segurando esse pano É pouco não E o resto Onde está o resto que não posso ver Deve ter ficado satisfeita com sua alta porcentagem de mistério O resto é tudo menina Mas esse pertence a Deus Seus sapatões de amarrar acabaram por tomar sua fisionomia sapatos de quem sabe o que faz E faz bem Pisa para fora os pés abertos no compasso de uma marreca sólida em direção à água plaqueplaque Virgem De um certo modo sim disse a Lião meio reticente ainda não fez suas pesquisas a esse respeito A corrida para o quarto de Irmã Priscila tem que ser descalça Os cochichos Os suspiros freira deve suspirar dobrado no amor Frases curtas Respiração curta no feitio dos livrinhos bandalhos do século dezoito onde uma abadessa de nome francês conta às noviças suas memórias secretíssimas Quando eu ficar velha vou escrever minhas memórias digo O chato é que o pensamento delirante tão lindamente desgrenhado acaba penteadíssimo Triunfo das normas de conduta Ela agora está no banheiro lavando as mãos depois de cada coisa que faz lava as mãos No meu tempo todas as mocinhas tinham seu diário Mas vocês agora podem dizer tudo aos namorados ao analista Até aos pais Por que o diário Também deve gostar de lavar os pés De noite antes da corrida da madrugada plaqueplaque os dedos em leque livres dos sapatões escolhendo as tabuas que rangem menos no chão rangente pela própria natureza Ai meu Pai Não admira que Irmã Bula viva com o olho pingando as coisas que vê ou adivinha pelo buraco da fechadura O desfile a Lião com suas alpargatas que carregam a poeira do mundo E que pacotes são esses panfletos Bombas Em seguida Ana Turva com seu sapato dourado e bêbado pisando na longa écharpe a la Isadora Duncan Não demora muito e essa daí aparece com sua camisola de algodão e rendinha os pés grandes demais para qualquer sutileza por entre as tábuas gementes ah a inspiração dos antigos conventos com as passagens subterrâneas Fechando o séquito a Gata de patinhas enluvadas a barrigona roçando o chão onde um ninho para despejar a gataria A ordem de entrada em cena sujeita a variações inalterado o produto Bulinha enxuga o olho no lençolençol e se debruça tremente na janela quer me ver casta e tranqüila esperança de salvação você está bem menina E a menina possuída pelos demônios escancarada na noite e pedindo socorro em código de navio dumdum dumdum Horror horror A solução é escrever urgente mais uma carta anônima que Madre Alix lê o rasga pairando magnífica sobre todas as coisas ostende nobis Domine misericordiam tuam Agora preciso ir Mais alguma coisa filha Queria pedirlhe perdão Leva algumas frutas minha Irmã Daqui a pouco vai chegar uma cesta da casa da mãezinha imagine se vou comer tudo Me jogue aí uma banana sim Ela examinou o cacho Franziu a testa Só estarão no ponto daqui a dois dias Toda fruta tem seu dia certo acrescentou e ao invés de olhar o cacho olhou a própria mão Não deve ser comida nem na véspera nem no dia seguinte Há uma ligeira nuvem na sua cara póstuma Nem antes nem depois coitadinha Desvio depressa sua atenção para mim Meu namorante me acha verde demais Verde Estendeume o figo que segurava pelo cabo Que idade ele tem Não é aquele menino o Fabrizio É outro Marcus Nemesius O pai era latinista todos os filhos têm nomes declináveis não é bacana Rosa rosae Servus servi Como bosta bostae Mordo o figo quase obsceno Ainda a nuvem Escondeu as mãos nos bolsos Ficou desocupada ficou triste Somos amantes Estou esperando um filho dele Menina fantasiosa exclamou rindo Ao menos consegui fazêla rir Corro e encho com frutas seus bolsos A senhora conhece algum remédio para o mal do amor Estou doente de amor Maravilha Curativa do Doutor Humphreys Cura tudo a gente põe compressas no peito no lado do coração Adeus Encontrouse com Lião no meio da escada Podese entrar ela perguntou já dentro do quarto Foi até o cacho de bananas e arrancou duas Estão verdes querida Lorena avisou Lia encolheu os ombros Era uma receita dela Ouvi falar em compressas entende Como se tivesse prendido uma borboleta pelas asas Lorena segurava no alto o cabo do figo Olhou em redor Onde deixálo Não no cinzeiro se misturaria à cinza destilando umidade Foi buscar um prato e nele recolheu também as cascas que Lia amontoara na concha da mão Ajoelhouse diante da amiga e cuidadosamente dobrou a bainha esfiapada do seu jeans Amarroulhe os cordões das alpargatas Examinoulhe o pulôver preto de gola alta esse eu não conhecia E se interessou pelo gorro Onde você arrumou isto Lia despejou no tapete uma parte do conteúdo da sacola Presente de um amigo O carro da sua mãezinha já está aí na frente achar a chave é que está meio difícil Foi tudo bem Perfeito disse Lia Empilhava com certo método alguns mimeografados políticos cigarros soltos uma escova de dentes e a metade de um sanduíche embrulhado em papelmanteiga Despejou o resto das miudezas algumas moedas um pente preto com fiapos de Fumo acumulado entre gretas um chaveiro de prata e uma bolinha de pano enegrecido Lorena reconheceu o lenço verde na bolinha que rolou até quase seus pés Ficou esperando pela saída do segundo lenço mas do fundo da sacola só saíram farelos de pão de mistura com papel picado Sentouse ao lado da amiga e ficou olhando o teto Lia de Melo Schultz estou triste mas você está contente Muito disse Lia pondo o chaveiro em cima da mesa Ajoelhouse na almofada arrancou o gorro e a cabeleira explodiu no maior entusiasmo Aconteceu uma coisa ótima entende O problema vai ser oriehnid mas se meu pai colaborar e se você também Quanto Ainda não sei digo depois É uma viagem Viagem para o exterior depois digo tudo Ô Lena ando fervendo por dentro Lorena aproximouse mais Sentouse no tapete dobrou as pernas e ficou olhando os próprios pés descalços Pega o microfone e me entrevista Lia segurou firme a banana e estendeua até a boca de Lorena Jura dizer a verdade só a verdade nada além da verdade Juro Nome por favor Lorena Vaz Leme Universitária Universitária Direito Pertence a algum grupo político Não Por acaso faz parte de algum desses movimentos de libertação da mulher Também não Só penso na minha condição Tratase então de uma jovem alienada Por favor não me julgue só me entrevista Não sei mentir estaria mentindo se dissesse que me preocupo com as mulheres em geral me preocupo só comigo estou apaixonada Ele é casado velho milhares de filhos Completamente apaixonada Uma pergunta indiscreta posso Você é virgem Virgem Depois de pedir licença Lia descascou metade da banana que empunhava Abocanhou um pedaço e respirou com ênfase Falou de boca cheia Quer dizer que não são amantes Será ousadia minha perguntar o motivo Ele não quer Nem me procura mais faz um montão de dias que nem me telefona Mas tratase de um impotente De um homossexual Se não me falha a memória ouvi qualquer coisa sobre filhos não ouvi Ele é um gentleman Ah Mas se me chamasse como a última das moicanas juro que eu iria correndo correndo você me chamou Ia morar com ele num porão debaixo da ponte na estrada no bordel Lião Lião choramingou ela afastando a banana Não quero mais brincar estou tão triste Lia contraiu as sobrancelhas grossas Mastigou concentrada Chegou a estender a mão para apanhar o lenço embolado entre o cinzeiro e o pente Limpou as mãos no tapete e fez uma carícia na cabeça da amiga Não sei explicar mas vai ver a culpa é sua Não andou falando em casamento Se falou o cara ficou apavorado essa mania de falar em casamento Virgindade Piorou muito depois que entrou num cursilho Entrou num cursilho Se entrou é porque está a fim de salvar o casamento Você não vai ter nem amante nem marido Fim Mas quem é que quer casar Você Quer casar sim senhora não pensa noutro assunto certo Pois então vamos partir pra um que seja livre putz E o Fabrizio Sei lá Sumiu Me viu com M N e então fui franca você sabe não gosto de enganai ninguém Lentamente Lia foi levando o polegar a boca Começou a roer a unha E de repente riu O Pedro e demais inexperiente não serve Tem então o nosso padre que também deve ser inexperiente mas com a vantagem da idade Um padre como você sonhou maravilhoso Louco pra casar Lorena riu silenciosamente sacudindo os ombros Quer mesmo Hein Lião Não quer outra coisa disse Lia apanhando na bandeja uma maçã Esfregoua no punho do pulôver antes de morder Agora que está provado que casamento não funciona a padraria toda se animou dezenas de pedidos de licença Será o golpe de misericórdia que vão dar na igreja Kaput Delicadamente com as pontas dos dedos Lorena foi juntando num montículo os detritos espalhados na pequena área do tapete onde Lia despejara a sacola Recolheu o montículo numa folha datilografada mas antes de despejálo no cinzeiro leu Jamais reencontramos a liberdade a não ser no dia em que foi posta por terra escreveu Marx em 1844 Infelizmente a continuidade de submissão e reacionarismo mantevese até nossos dias na história alemã Não tem sentido Lião Se você é da esquerda tem que aceitar essas renovações que fazem parte do quadro É a Igreja Nova que está nascendo dos escombros da outra vamos ter padres desreprimidos contentes América Latina precisa fazer mais amor do que as outras Américas Trópicos Não sei explicar Lorena mas a igreja abriu demais as pernas O que salva é esse monte de padres lutando por aí quase choro de emoção como lutam putz É o que está vivo em toda a engrenagem Desembrulhou o sanduíche deu uma dentada vigorosa e recolheu na sacola os objetos que espalhara Pegar em carabina pode Casar verboten É isso Ela enfiou na boca o pedaço de presunto que lhe caiu no peito e ali ficou preso na malha Não pode falar a boca está cheia demais Dobro de novo a barra das suas calças desbotadíssimas E essas meias de lã preta empoeiradas onde arrumou essas meias Eh Lia de Melo Schultz Puro preconceito de Dona Diú somado ao nazismo de Herr Schultz Padre fazendo amor Câmara de gás nele Como se estivéssemos na aurora dos tempos quando Jeová separou as águas das terras as trevas da luz o Bem de um lado e o Mal do outro E os crepúsculos No crepúsculo fica o amor que transgrediu querida A faixa que não é nem dia nem noite mas penumbra meias tintas Silêncio A faixa dos que preferem calar Entram aí os homossexuais os incestuosos os adúlteros os do amor tenebroso veja que classificação genial Da minha cabecelha Padre que está querendo mulher também se enturma com esses A ambigüidade O medo Vagarosamente Lia foi amarrotando o papelmanteiga e deixou a bolota ao lado do cinzeiro transbordante Arrancou o pulôver Lorena ficou olhando a camiseta de algodão que ela vestira no avesso Como você é quadrada resmungou Lia Quadrada e romântica o que dá no mesmo Está no avesso avisou Lorena E se arrependeu Era bem provável que o direito estivesse ainda mais encardido Esperou de olhos baixos que a amiga a desvestisse Mas veja Lena se eles se enrolam em mulher vão ter mais medo quer dizer mais problemas Por que casar Se não querem uma causa política tem milhares de outras pedindo aí tempo integral Acho que nunca se precisou de tanto padre como agora Gente endoidando morrendo quero confessar quero comungar gritou sacudindo pernas e braços em convulsão E os marotos arrepiando carreira Fantástico entende Isso é Chopin Muda isso quero uma coisa alegre Estou alegre Lena Mas o que você está fazendo Inclinada sobre o pescoço da amiga Lorena procurava desatar o nó do barbante com o pequeno peixe prateado e o sino Calma querida calma Tenho uma corrente de prata que não uso nunca este fio está feio espera vou trocar Mas os padres hein Nossos índios se sifilizando os meninos todos caindo de drogados favelados e ratos multiplicação das putas e diminuição dos pães E justo agora esses moços se preocupam com o nihil abstat pra trepar O nó desatouse afinal Lorena foi buscar a corrente e fez tilintar o sininho Ficou tão jóia Lião Espera ainda não mexa quero passar um pouco de colônia no seu pescoço aquele cordão horroroso deixou sua marca já pensou Uma delícia de perfume dá um frescor Sinta Com um certo conformismo Lia entregoulhe o pescoço e cocou o nariz tenho alergia por perfume Franziu a cara Você não pode calcular como fico entusiasmada com esses padres que estão lutando Ação Lena que contemplação já tivemos demais Sair por aí falar até secar o cuspe andar até o osso furar a pele levar xingos porta na cara pedrada e continuar sem desfalecimento continuar no meio da incompreensão da hostilidade continuar até a morte mas não foram eles que escolheram São soldados de Cristo ou o quê Cristo parava pra descansar na rede Vejo Cristo como um homem empoeirado e seco a sandália rota trotando pelas estradas feito um demente fome sede sarcasmo e lama até os discípulos duvidando enchendo E ele Não sei explicar Lena mas viro vidro moído quando ouço essa conversa de padre se apoltronar E vê se pára com isso tenho alergia estou ficando sem ar com tanto perfume Tenho que ir Olhou a corrente beijoua Beijou Lorena e enfiou o pulôver na sacola Dependurou a sacola no ombro E o nosso almoço Lião Não era hoje Queria tanto oferecer um almoço maravilhoso morangos com creme lembra Nunca mais a gente almoçou Outro dia Vem comigo até o portão Espera leva algum oriehnid estou riquíssima Mas isso é muito digo quando ela vem com a maçaroca que enfia na minha sacola Ofereça em meu nome um abajur lá para o grupo Abajur repito e fico rindo Tenho até vergonha de me sentir tão feliz Vou é comprar coisas na papelaria falta tudo no escritório uma pobreza transamazônica Descemos a escada de mãos dadas Parou no meio e deu um grito Olhei para seus pés descalços tinha se machucado Lião No fim da tarde que tal um cinema Fita de lobisomem querida Não hoje não posso entende Tenho trabalho à beça E tenho também que ver começo e paro no meio Irmã Clotilde vem vindo na nossa direção Enfim coiselhas Lorena Descalça nessas pedras ela se espanta As solas dos pés não estão doendo Apoiandose mais no meu braço ela volta para a Irmã a cara martirizada Horrivelmente Risinhos Comentários de ambas sobre a beleza do dia Lorena confessa que tem vontade de gritar num dia assim Apanho um pedregulho que aperto na palma da mão com tanta força ô ele resiste posso ficar apertando até o fim dos tempos e ele intacto Que alegria me dão as coisas que resistem assim Guardoo na sacola e agora sou eu que tenho de gritar para o sol Miguel Nós te salvaremos mundo Nós te salvaremos repito e meus olhos estão nadando em lágrimas Você sabe se saíram as notas pergunta Lorena com voz de palco É o sinal Inclino a cabeça para o segredo que ela vai contar Irmã Clotilde faz um adeuzinho discreto e se afasta com sua cesta de compras Pode dizer Ana Clara está grávida outra vez Do noivo Antes fosse Mas com o noivo é tudo platônico grávida do Max o outro Tem que fazer depressa o aborto e depois a plástica na zona sul já pensou Anda péssima a coitadinha Até heroína Lião Vi as marcas Essa madrugada ela se enganou de quarto entrou no meu Foi reto me sacudir na cama quase morri de susto pensei que fosse a polícia Lorena atracouse em mim Doem lhe os pés mas precisa se flagelar Temos que fazer alguma coisa Lião Uma loucura uma loucura Não e possível continuar desse jeito Lião olhando a mirrada pitangueira que nunca deu pitangas Parece morta Mas lá no cerne ainda está viva Lorena acompanhou a direção do seu olhar Colheu uma folhinha trituroua entre os dedos Cheiroua E inesperadamente deume as costas e subiu nos meus pés me leva Agarroa pela cintura e coladas e lentas vamos indo xifópagas pela alameda ela me guiando por que com sua cabeça na frente da minha não vejo o caminho Leve como o perfume de sabonete que sinto nos seus cabelos recémlavados Agora eles me cobrem a cara como um lenço aberto no vento Penso em Carla por que penso em Carla Apertoa mais Ela ri sente cócegas A gente se ama sim a gente se ama isto é amor Não sei explicar mas também amo Pedro E o Bugre e Ana Turva amo todos Sou capaz de todos Miguel principalmente Seus pés escorregam em cima dos meus desequilibrase Quase caio por cima dela Vamos desça Não obedece quer brincar mais Levantoa pela cintura e no ar ela se retesa e faz pose de bailarina Depositoa diante do portão Quando era criança andava quilômetros assim com Rômulo Esse é o diplomata Rômulo morreu O diplomata é Remo Sempre confundo Todo mundo confunde Sabe aquela arca que guardei na garagem Tem dentro um álbum de retratos antigos um dia te mostro Era linda a casa da fazenda aquele colonial bem purinho Tinha cento e vinte e tantos anos já pensou Abro o portão Mas tenho ainda que dizer alguma coisa o que mesmo Baixo a cabeça agora sei Estou completamente amarrada Lena não posso ajudar Ana Clara Se me enrolo com viciado Nem que fosse minha irmã não posso onde tem traficante e viciado tem tira aos montes estão querendo demais nos misturar Se facilito Sei que ela está doente mas essa é uma doença que me dá vontade de esganar o doente Vão submergindo com aquelas caras pasmadas vão afundando todos um por um você puxa eles pelo braço pelos cabelos grita ameaça faz tudo e eles afundando como um bloco de cimento atirado num pântano Nem os bichos Lena que os bichos reagem esperneiam Eles não Afundam com aquela cara parada morto por dentro Fazer o quê pergunto e sacudo o portão porque é difícil fazer o que a gente quer Já estou atrasada Lena A viagem milhares de preparativos Lorena se apóia nas barras do portão e geme não sei se de dor ou desânimo Fico morrendo de pena Me sinto cúmplice porque ajudo tem uma palavra em Direito Penal conivente Mas como me negar Mãezinha já depositou o cheque do meu carro entro com o oriehnid para as operações não tem problema Mas sei que não é oriehnid que vai resolver Não agora Vou precisar também Lena a viagem está aí estourando que duro tirar passaporte ô tanto papel Tanta exigência Outra noite ela me disse que viu Deus Não tem viciado que já não viu acho que Deus está se popularizando um bom sinal O Corcel vermelho fulgura debaixo do sol Um menino atravessa a rua na sua bicicleta Em algum jardim um cachorro late desatinado Há um homem de terno escuro parado debaixo da árvore da esquina Quando se sentiu observado tirou um jornal do bolso e começou a ler Que foi Lião Por que você está assim Aquele homem digo A mulher que está saindo da garagem abriu a porta do carro Ele entrou Respiro até o centro da terra Como uma criança Lorena enfia os dedos por entre a renda de ferro do portão e fica dependurada nas rosáceas amarelas de ferrugem E se for verdade Lião Isso que ela disse que viu Deus Você já viu Cansouse da posição e agora examina as mãos com as marcas vermelhas Mãezinha teve uma amiga que um dia amanheceu no colégio com as chagas de Cristo na palma da mão Rômulo meu irmão ouviu o caso e no dia seguinte foi me sacudir na cama estou com as chagas estou com as chagas E me mostrou as mãos marcadas Mas o outro o Remo era esperto mercurocromo já pensou Eu fazia umas bolhas de sabão enormes nem Rômulo nem Remo conseguiam fazer bolhas tão grandes como eu Um besourinho de pintas amarelas vai subindo pela manga da sua bata de cambraia Desde já lembro dela assim descalça com seu besourinho e sua virgindade perplexa como as bolhas que soprava Essa viagem putz Bahia Mais longe já disse vê se presta atenção Lena Exterior Depois dou os detalhes agora não quero perguntas A gente faz uma festa de despedida hein Lião O Guga vem com o violão bateria tenho bebida à beca vamos dar uma festa Você convida todos seus amigos Meus amigos Verboten ô die Zeit entrinnt digo e abro o portão Alemão mais louco O meu pai Às vezes bebia e cantava e quando cantava me parecia assim um deus embora o estranhasse porque cantava em língua estranha Então ficava um estranho com todo seu prestígio de guerra e exílio O vozeirão de soldado como era Wie einst Lilli Marleen Wie einst Lilli Marleen Lorena repete o estribilho marcando o compasso no maior entusiasmo mais Lião canta mais Tenta ainda me prender não quero mesmo almoçar E que tal uma volta no Corcel Um sorvete no clube Saio e bato o portão Vejoa como uma prisioneira através das grades do seu jardim Sinto uma certa tristeza mas logo tenho vontade de rir Pontos de vista para ela a prisioneira não sou eu Pergunte à mãezinha se tem algumas roupas que queira dai aceitamos qualquer roupelha camisa cueca pulôver tudo Ela estende o braço por entre a grade e enfia minha camisa para dentro da calça Lógico que tem Quem sabe resolve dar as roupas de Rômulo Tinha treze anos mas era tão desenvolvido sabe meu suéter de listras azuis Era dele Guardou tudo fica tão mórbida sussurrou tirando para fora minha corrente com o peixinho e as coisas de Mieux Compra navios de tecidos e depois muda de idéia vocês podem fazer até fardas De revolucionários sem revolução pergunto Lorena apoiou a cabeça no portão e seguiu a amiga com o olhar Levantou a bata e coçou vagamente o estômago os dedos descendo em giro até o umbigo Interessouse pela tênue sombra triangular do sexo que transparecia através da calça branca E sorriu para o passarinho que varou a copa do pinheiro e foi pousar no muro da casa vizinha Inclinou se para ele numa reverência de menina Good morning mister Brown Good morning mister Smith How is your father My father is very well thank you And your mother Oh my mother is a cat A very little cat So sorry No silêncio do jardim batido de sol ecoou o riso ensolarado de uma mulher Lorena foi andando penosamente sobre os pedregulhos as mãos em concha contornando os seios ai os peitos das estátuas Principalmente os peitos daquelas quatro mulheres de bronze montanhas seminuas sentadas em torno do pedestal com o velhote de capa de vampiro encarapitado lá em cima Praça das Rosas E os peitos de rosas desabrochadas pojados de leite quando for tempo de leite Leite da fazenda tão espumoso tão branco As noites de luar leitosas de tão brancas Mas quando a lua entra atrás da nuvem os caninos do velhote se aguçam e ele desce para acariciar os bicos intumescidos dos peitos expostos não devo Deve elas respondem caladas oferecendo o sangue em bronze dos pescoços Sorriu o sorriso que as estátuas deviam sorrir E acariciou os bicos recolhidos dos próprios seios quase inexistentes Suspirou Queria ser uma vaca Uma vaca de focinho úmido e tetas rosadas asseada como as vacas da fazenda Vacona malhada Veja o escudo desta dizia o pai alisando com amor o traseiro da Branquinha com suas manchas cor de mel Escudo sussurrou Lorena apoiando se na pitangueira Limpou a areia da sola dos pés Tão mais nobre escudo do que bunda Esta já foi coberta perguntava ele e a vaca respondia com um mugido terno ruminando verde a baba verde a bosta verde verde que te quiero verde Mugiria tão musgosa quando MN encostasse a cara no seu focinho escorrendo verdor Minha amada Amor pastoral de vaca cercada de touros por todos os lados E virgem um guizo no pescoço em caso de perigo blem blem blem Novilha noviça O primeiro homem de Ana Clara foi um alemão que bufou como um touro quando se atirou em cima dela era ver um SS caindo sobre o inimigo num assalto a baioneta calada Mas não contou depois que o primeiro tinha sido aquele professor de filosofia a barba negra e as mãos de plumas Enfim com Ana Turva é tudo sobre o delírio Pensou em Lia com seu primeiro amante olhando para o teto e fumando horrível horrível Não sei explicar começou ela E explicou com pormenores que escolheu seu parceiro assim a frio como se escolhe uma escova de dentes pronto vamos nos deitar E daí Lia o que foi que ele fez Lia pregava o zíper num jeans que há muito devia ter sido lavado Ora ficamos na cama olhando o teto e fumando Falamos sobre tanta coisa entende Incrível Mas é incrível Lião Logo na primeira vez tudo tão gelado explodiu Lia examinoua com uma expressão de cansaço Arrancou nos dentes o último fiapo disponível de unha Gelado por quê Fiquei com vontade de conhecer um homem e tomei as providências onde está o gelo Não é preciso fazer a histérica Um tipo legal estudante de medicina nosso companheiro Outro dia tomamos um lanche juntos vai se casar Fiquei olhando Lia pregar o zíper com seus pontões polêmicos costurava no mesmo tom com que falava em estado de exaltação Estranho não Arrisquei e ela me encarou irônica Simples como tomar um gole dágua De que jeito você queria que fosse Eu lavava meus pentes em água quente com algumas gotas de amoníaco já ensinei não sei quantas vezes que é assim que se lava pente mas jacaré aprendeu Ana Clara usa na bolsa de Dior um pente plástico encardidíssimo e Lião tem mania com pente preto sempre suspeito porque não se vê nele a sujeira A solução e pegar no quarto de cada uma seus pentes sinistros e laválos junto com os meus Dei um tão jóia para Lião tinha até incrustações de madre pérola Avisei que tinha sido de minha tiaavó Ela agradeceu muito e enfurnouo na sacola de achados e perdidos e numa mais botei os olhos nele Vai ver quebrou pelo meio na hora em que entrou naquela cabeleira baiano tem o cabelo muito duro Mas de que jeito você queria que fosse ela repetiu e eu respondi que esperava que fosse como nos romances que escrevia imagine se alguma das personagens da tal cidade cheirando a pêssego vai ter relações com um homem por puro ato de libertação E logo na primeira vez Vejo hoje que perdi uma boa oportunidade de calar o bico Acabou rasgando o romance coitadinha Sabe agora que não está em nenhum artigo do código que mulher inteligente precisa escrever livros Me acho inteligentíssima Continuei fazendo poesia Subo a escada devagar para sentir nos cascos a quentura da pedra Uma borboleta pousou no corrimão bem ao meu alcance Prendia pelas asas mas tremeu tanto que solteia Saiu voando buleversada como se tivesse ficado cem anos presa Nos meus dedos o pó prateado Tão breve tudo Prendi assim a alegria ainda há pouco foi minha mas se debateu tanto que abri os dedos antes que se ferisse não se pode forçar Um pouco mais que se aperte e não fica só o pó mas a alma Entro na minha concha Eh MN Escolhi você porque não vai me perguntar se é a primeira vez Nem vai fumar olhando para o teto sabe que sou sexo bobina cuidado cuidadinho Nem vai dizer que está grato por ter sido o escolhido Grato Abominável Ai meu Pai Me mato se MN falar em gratidão ou olhar para o teto mesmo de relance Quero fervor sabe o que é fervor Ele não tem manifestado muita sede mas não será porque se controla Controle é lógico um gentleman não pode mesmo se afobar Meu noivo morre de tesão por mim disse Ana Clara quando amarrou um dos seus pilequinhos solta o vocabulário tipo e nas ebulições Tenho especial má vontade por essa palavra mas aqui ela vai caber digamos que MN me deseja mas não tem tesão por mim that is the question Se eu tivesse aqueles peitos Deve me achar sem saúde suas mãos mais me protegem do que acariciam Como se eu fosse de biscuí Cuidado com esses objetos de biscuí recomendava mãezinha aos homens da mudança E os homens tão apressados e rudes inesperadamente perdiam toda a pressa e começavam alcochoar com algodão e palha as bailarinas transparentes da vitrina de bibelôs Sangue aguado de fim de raça Se tiver uni filho com um homem branco que nem eu o filho desapareceria na brancura dos lençóis olha aí meu filho eu diria e as pessoas procurando onde onde Teria que ser posto num lençol preto Estendo as mãos para o sol que bate na janela Unhas pobres Dedos pobres Os de MN são enérgicos mesmo quando em repouso as unhas quadradas escovadíssimas ginecologista lava as mãos muito mais do que os outros A sensibilidade nas pontas dos dedos que conhecem tão bem nossas partes Que lidam na perfeição com nossas raízes Me perturbo quando penso nisso mas é justamente esse pensamento que me dá a doce sensação de segurança estou em boas mãos oito Sento na cama e vejo o quarto rodando Estou parada sou o eixo O eixo do mundo Senta aqui que é o eixo do mundo dizia o Jorge mostrando o dedo espetado pra cima Bastardo Podre de sífilis agora eu sei que era sífilis Deve estar morto também Me acordava aos berros café quero café Minha mãe na cama vomitando na toalha Acho que você vai ter um irmãozinho Debilóide Ah muito boazinha todo debilóide é só bondade Me sacudia o sacana e eu tinha que fazer o café de madrugada porque a porcaria do serviço dele ficava na putaque pariu já vou já vou seu besta Nunca pude dormir o quanto quis porque tem sempre alguém me sacudindo acorda acorda Vontade de dormir cinco dias e acordar no consultório do turco como é o nome dele Aquele analista Esqueci pomba Enfim não interessa Queria falar do pântano com a cara da minha mãe na água preta Fujo feito doida nadando com forca não sei nadar mas continuo nadando arrancando do fundo lodo e plantas que se enroscam em mim e me tapam a boca me larga Sacudo as mãos e me livro das coisas gelatinosas peixes folhas Sei que logo adiante vai aparecer a piscina fica logo ali a piscina eu não disse Entro de cabeça na água limpa e me lavo inteira rindo com Lorena que está nadando ao lado Sei nadar digo e ela sacode a cabeça e faz caretas e vai dizendo azulpiscina azulpiscina Quero rir com as caretas mas tapo a boca Perdi minha ponte Minha ponte mãe Perdi minha ponte a ponte fico passando a língua e só gengiva escorregadia como lodo Ela viu ela viu Começo a me debater porque não consigo mais nadar afundo com as plantas enroladas nos meus pés me larga Doutor Hachibe O nome dele é Doutor Hachibe digo enxugando a cara molhada de suor Enxugo as mãos Aquele meu analista Max saltou da cama e ficou pulando num só pé gemendo e rindo Minha perna dormiu Coelha Dormiu completamente dormiu Bebo no seu copo Danese Outro anão de vermelho passou rápido rindo Ou era o mesmo Fico rindo também Não interessa Muda esse disco Max Uma negrada berrando Ele levanta nas pontas dos dedos outro disco da pilha O gesto de Lorena Também gosta de Bach A Mademoiselle do reloginho deve ter funcionado nas duas casas ensinando as mesmas coisas O coraçãozinho de ouro na corrente que deve ser tirada à noite pra não enforcar a menina Nem precisam falar e se reconhecem de longe como os cristãos das catacumbas se cruzando nas praças Podem se misturar com os outros e não se misturam Ela pode dizer indecências e não fica indecente pode ficar putinha e não fica putinha Anel de brasão Este aqui também tem seu anel que nem Deus sabe onde anda Mas tem O feudo familiar Sofri tanto porque não tive o meu e agora Sei lá acabou tudo a decadência vem de longe vi isso no álbum A nhemnhem tem um álbum de retratos na arca Capa de veludo Fecho de prata Toda a parentela antiga posando em sépia Finge que não liga mas não pensa noutra coisa Não sossegou enquanto não me mostrou todos Mas vieram os carunchos atacando tão sutis que atravessaram os tafetás das saias as flanelas inglesas das calças e chegaram às respectivas bundas Em sépia Então começaram a roer bem devagarinho os popôs a nhemnhem fala popô abotoando a boquinha Está certo Os sacanas roeram os popôs e chegaram aos ossos o apetite desses carunchos pomba A vez dos ossos Se ela encostasse o ouvidinho na arca podia ouvir o roqueroque da carunchada arrotando também em sépia A cor do tempo Dá uma fogueira disse ele catando os palitos da caixa de fósforos que se espalharam em seu peito A mãe dela vive com um gigolô Dessa Lorena aquela magrinha que fala nhemnhemnhem A viúva esbordoa a fortuna com meninos mas ainda assim Uma americana velha queria que eu vivesse com ela só viajando pelo mundo num iate de ouro mas tinha uma cara de meter medo o nariz era deste lado olha era assim A boca vinha pra cá tudo torto olha Coelha olha Está apaixonada por um médico Um velho Casado cheio de filho uma droga Mas quando ele desaparece ela entorta O irmão é diplomata Remo meu irmão ela diz de dois em dois minutos Manda presentes divinos tem gosto o cara Quando era criança matou o irmão menor Matou quem O irmão Estava com uma espingarda e apontou bum Liquidou o irmão na hora Que história sinistra Coelha Diz que é virgem O irmão Doulhe socos no peito Ele se defende cruzando os braços rolando de tanto rir Virgem é ela virgem é ela fico repetindo e para cada ela dou um soco mais forte Toda excitada com aquela vozinha de beijaflor meu namorante Meu namorante Liga de namorado com amante besteira Diz que é contemplativa passiva Gosta de mulher Não seja ignorante amor Contemplativo é o que contempla não sabe disso Tem o ativo e tem o passivo que é tão passivo que os passarinhos fazem ninho no cabelo dele Recita nua no quarto Mania com poesia e com latim Vocês não são amigas Quero dizer somos mas agora já não posso Ou posso Amigo não é pra isso Dizer as coisas todas Dureza Ana Clara sentouse na cama fechou o cigarro na concha das mãos e tragou concentrada Se não gostava dela Gostava sim Gostava muito Então Uma esnobe se acha especialíssima Mas é minha amiga como não Quem é que me tira das trancadas Não é você Nem aquele besta é ela Minha amiga Me acha linda a maior admiração por mim Acha meus olhos especialíssimos Você acha meus olhos especialíssimos Max estou falando presta atenção Ele beijoua demoradamente Olhos de pantera Quero essa pantera Não posso disse ela e se enrolou no lençol Cruzou os braços Fechou as mãos Agora sou múmia Ele inclinouse para o chão Procurou vagamente Pegou a garrafa deixoua Estou com fome Coelha quero comer vem comer comigo chamou correndo para a cozinha Abriu a geladeira Que genial Fabuloso estou encontrando coisas olha quanto queijo Vinho tem vinho ih Frio Coelha estou com frio quero me cobrir Que horas são Preciso ir embora já Que é que eu digo que é que eu digo Não interessa Uma depressão Ele vestiu o pulôver e esticouo até quase os joelhos Voltou correndo para a cozinha Vem Coelha Um sanduíche fabuloso Já descascou um pãozinho e agora está no segundo roqueroque com aquela unha indecente Unha nojenta E se eu telefonar Aqui é a noiva dele Avise que me atrasei porque sofri um ligeiro acidente e precisei prestar depoimento milhares de depoimentos Comigo não aconteceu nada mas o padre Por que padre Fica mais raro Não é toda hora que um padre tem a cabeça esmagada baixo da roda A batina preta Terno preto com aquela coisa na gola acho bacana aquela coisa branca na gola Mas gastou todo esse tempo Não Não é isso O caso é que minha amiga Lia foi baleada A guerrilheira Guerrilheira é assim facilitou leva um balaço Estou aqui no ProntoSocorro tenho que desligar porque milhares de pessoas Não sei que ProntoSocorro é não sei Como vou poder O endereço Você quer o endereço Ele quer o endereço E já desconfiado de que é mentira o escamoso não sabe de nada não viu nada e já está desconfiado Vem achei mais coisas avisou Max e a voz se perdeu em meio do barulho de louça se quebrando Ih caiu tudo Enfio a cabeça debaixo do travesseiro Estou com medo Max Estou com medo A Lião disse Não interessa Inveja dela Por que não dá conselho aos piolhentos do grupo Só serve pra abrir o bocão Guevara Guevara Quem é que está se importando Ano que vem Madre Alix será a madrinha me ama às raias esta fazendo montes pra todos vocês mas comigo Lorena também lua madrinha Vai com a mãe que é vip Alta burguesia rural sabe lá o que é isso Lião pode ir como bem entender uma intelectual de esquerda pode ir de cigana e fica interessante mas Lorena e a mãe Então As freirinhas com suas roupetas de festa O clero inteiro me prestigiando Tenho de entrar de braço com o padrinho Que padrinho O professor Langue pronto O professor Langue com aquela estampa de lorde pode ir até de terno escuro um lorde decadente mas com classe Que classe pomba Meu vestido simplérrimo mas podre de chique A corja vibrando o escamoso vibrando olha só a noiva que arranjei Foi capa de revista desfilou em Londres no mês passado Universitária Trancou a matricula mas no ano que vem Max o ano que vem vou destrancar a matrícula Ouviu Max Todo mundo trancou a matrícula uma porrada de meninas só me falam nisso tranquei a matrícula Noivo costuma dar presentes importantes Podia me dar o casaco de onça não podia Por que me dá dinheiro Pensa que e só pagar um pensionato de pobre e uns alfinetes Pensa Bastardo Tenho minhas dívidas vou operar as amídalas Viro na boca a garrafa e meus poros se abrem e meu peito se abre Vidão Não fosse esse negro aí berrando não gosto mesmo de negro Nem de branco Não gosto de ninguém Todos uns bons sacanas que não perdem a chance de mijar na cabeça da gente Agora quem vai mijar sou eu grito e fico rindo de feliz Max eu te amo eu te amo eu te amo Beijo seu sapato que está em cima do meu biquíni O sapato Amo o sapato dele amo tudo mas tenho que ir tenho que ir Quando me desbloquear a gente vai rolar de gozo quero rolar de gozo Beijo meu Agnus Dei que prendi no biquíni amo meu Agnus Dei amo Madre Alix minha santa não fique triste que em janeiro minha santa santa E minhas roupas pombas Sumiu tudo Queria ser invisível e sair como o cara dos quadrinhos como era o nome dele Ele sai e entra e ninguém vê Tenho que ir Max Caiu a gaveta Não interessa ele não faz perguntas Não é como escamoso que desconfia até da Nona Fiquei doente não posso Doença feminina sou muito feminina e então Então vem cá Aninha que meu irmão é ginecologista ele te examina vamos lá imediatamente vamos meu bem abra as perninhas um pouco mais sim Agora relaxa bem boazinha Pronto não foi rápido Pode botar a calcinha que você é a mais linda noivinha prenha que meu irmãozinho podia arrumar A Lorena está doente É a Lorena que teve que fazer um aborto Aborto Mas que raça de amiga vagabundas são essas Vagabunda é a irmãzinha Lorena é rica antiga Quando sua Nona comia banana podre no porão do navio a vela E mesmo Lião Guerrilheira e tudo mas o pai também foi um nazista importantíssimo Mãe usineira Minhas amigas E então Então vá se vestir sua cadelona Que é que está esperando ai pelada Estou fazendo umas comidas fabulosas Ana Clara apoiouse na banheira Olhouse no espelho Arregaça com o lábio e ficou olhando os dentes Examinou a língua Sentouse na banheira para urinar Apoiou a cabeça nas mãos e ficou enrolando no dedo um anel de cabelo Você acha que pareço ter mais de vinte anos Me acho uma velha Tem aí um cara disse ele voltando ao quarto Passou as pontas dos dedos no peito do pulôver manchado de vinho Meu amigo O maior cozinheiro do mundo a gente pode aí Deitouse encolhido e silencioso como se receasse acordar alguém que dormia ao lado E se de repente tive a eólica Não seria uma solução pensou ela esfregando a toalha molhada no vão das pernas no ventre Digo que fiquei com a cólica pronto Tomei analgésico forte demais e dormi e perdi a hora Esfregou a toalha na cara Não é próprio de noiva falar nisso mas se até Examinou no espelho a face brilhante E Lião ainda com suas teorias de superioridade da mulher Mas onde Papo furado Uma cólica e já avacalha tudo Se não é cólica é o filho dependurado no peito Pronto Mas que guerrilha pode sair disso Mulher tem que ser assim mesmo Se embonecar Vestir coisas lindas A única vantagem que vejo é essa da gente fazer amor sem se sujar A única Preciso dizer isso pra Lião repetir nas reuniõezinhas dela lembrou e riu enquanto despejava águadetoalete nos seios nas coxas Pulou num só pé gemendo e rindo Como arde pomba Apanhou o copo de prata que estava no armário de laca vermelha ao lado do talco Riscou caridosamente com a ponta da unha vermelha o nome gravado em meio do desenho compondo um buquê de espigas e flores Maximiliano Encheu o copo dágua pingou dentro um pouco da lavanda e gargarejou Cuspiu na pia agarrandose na cortina para não cair Tirou a bolsa dependurada no trinco da porta e fez rolar o copo para dentro dela Escovou os cabelos com energia renovada eriçandoos para o alto até formarem uma coroa de anéis Umedeceu na língua a ponta do lápis e acentuou a linha cor de ferrugem das sobrancelhas Pingou colírio nos olhos A mão tremia Segurou o pulso enquanto passava nas pestanas o bastão de rímel O bastão resvalou borrando a pálpebra Recomeçou o duro movimento de guindaste a mão esquerda sustentando a outra o braço colado ao corpo a boca entreaberta Cerrou os olhos Estou bêbada Abriu a torneira e molhou o peito Tirou do armário um envelope de aspirina trincoua nos dentes e enfiou a boca debaixo da água Sentouse no chão para calçar as meias e a malha de seda preta Foi enfiando no pescoço as correntes de prata espalhadas pelo tapete Da sua boca começou Max forcejando por abrir as pálpebras As pupilas dilatadas rodaram e desapareceram no fundo das órbitas Ela vestiu o casaco de veludo preto que lhe chegava ate quase os sapatos de verniz com uma antiquada fivela de prata lavrada Apertou a cabeça entre as mãos E essa dor Apanhou a calça que ele deixara ao lado da poltrona Examinoulhe os bolsos e num gesto automático tirou o maçarote de dinheiro e sem contar guardouo no bolso do casaco O maço de cigarro americano estava debaixo da poltrona Meteu dois dedos por entre os cigarros e pesquisou o fundo do maço Trouxe nos dedos em pinça uma fina tira de papel de seda cuidadosamente dobrada Apalpou o papel e fechouo na mão Voltouse eufórica para a cama Ele dormia tranqüilo com seu pulôver azul Cobriulhe as pernas Ajeiteilhe o travesseiro debaixo da cabeça Dorme amor Não demoro dorme Apanhou o cigarro queimando no cinzeiro fechou no peito a gola do casaco e saiu devagar pisando em ziguezague mas aprumada a cabeça erguida Na rua aceleravase o movimento sob a garoa engrossando em chuvisco Ela apertou os olhos contra o céu tumultuado Merda de noite Merda de cidade resmungou esboçando um gesto na direção dos carros que passavam com a velocidade da mão única os faróis altos as buzinas atropelando os mais vagarosos Acenou para um táxi que não parou Acenou mais vivamente para um segundo protegendo com a bolsa os olhos ofuscados Cretino Bastardo gritou para o motorista que fugia O homem calvo aproximouse com seu carro prelo também re luzente Fez um gesto que abrangia o norte e o sul Quer condução Vou para aqueles lados Ela somou o carro ao homem num cálculo rápido Inclinouse ofegante para a porta que se abriu Ao entrar perdeu o equilíbrio e tombou sobre a direção Puxou com violência a barra do casaco que a porta prendera Desde as oito e meia nessa esquina O senhor tem horas Desde as oito e meia o homem estranhou Apontou o dedo almofadado para o relógio embutido no painel do carro Mas são quase onze horas menina Aconteceu alguma coisa Ana Clara apertou a cabeça entre as mãos Que dor O senhor tem aí aspirina Me dá um cigarro Ele diminuiu a marcha do carro e baixou o volume do rádio que comentava uma partida de futebol Examinoua através do espelho de onde pendia um ursinho de veludo Você está aflita aconteceu alguma ciosa Tem tudo o que pediu aí no portaluva pode pegar Só não tenho água Nem uísque acrescentou com um sorriso Ela rasgou nos dentes o envelope de aspirina Sufocou um acesso de tosse Eu estava numa festa quando me avisaram Tenho medo que seja tarde demais nem sei se ele ainda está vivo Ele quem Penosamente ela engoliu as aspirinas Recostou a cabeça na almofada do banco Ficou enrolando no dedo a ponta do cabelo Meu pai Teve um enfarte no escritório Pode me deixar na São Luís Por favor me deixa na São Luís Mas vamos mais rápido sim Desculpe O homem acelerou a marcha do Mercedes Desligou o rádio Mas quando foi isso Perdi a noção do tempo tenho impressão de que estou horas nessa esquina Eu estava numa festa quando ah meu pobre pai meu pobre pai saía do escritório é advogado É o primeiro O quê Enfarte É o primeiro que sofreu Acho que é o segundo O primeiro foi quando meu irmão foi preso meu irmão é terrorista Até hoje não se sabe se está vivo ou não Sumiu O homem mordiscou as pontas do bigode que lhe chegava até o lábio Sou industrial não sou médico Mas se puder ajudar disponha Pode sim Fechando sua fábrica seu bastardo Assassino Joga os detritos todos na cabeça da gente e depois O ano que vem também vou jogar os meus Uma casa na praia e outra no campo A ralé que se desbunde Não tem coração que agüente este ar O senhor mora no centro Bem praticamente estou morando na minha chácara tenho uma chácara deliciosa Agora com o helicóptero é como ir daqui até a esquina Você já andou de helicóptero Não faço outra coisa pensou ela guardando o maço de cigarro que tirou do portaluvas Examinou rapidamente o isqueiro cromado É do quê Sua indústria Frigoríficos murmurou ele e brecou abrupto diante do sinal vermelho Está vendo É o cúmulo passou da luz verde para a vermelha E a amarela Bateu a cabecinha Ela procurou no regaço o cigarro aceso que lhe caíra da mão Cretino Porcóide Devia era aprender a guiar Não foi nada O senhor guia maravilhosamente A gente tem que desconfiar dos semáforos dos vizinhos Nem diga Tenho um Corcel mas evito a curtição O homem examinoua Agitouse inquieto O escritório é na Rua São Luís O escritório do seu pai Um andar inteiro Meu pai é um grande advogado Francisco de Paula Vaz Leme Mas será que ele ainda está lá menina Não pode estar lá fazendo o quê É natural que tenha sido levado ao hospital Ela desceu o vidro da janela e atirou fora a ponta do cigarro Dobrou o corpo para frente e apertou contra o peito as mãos fechadas Quer saber tudo esse merda Meu tio cardiologista tem a clínica no mesmo andar já da outra vez meu pai ficou na clínica mesmo disse Ana Clara apoiando a cabeça nos joelhos Enlaçou as pernas Que depressão O senhor tem um lenço Ele tirou o lenço do bolsinho do paletó Não está usado Mas que é isso Não chore tenha calma não chore Seu pai está bem cuidado não está Como é o nome do seu tio Esse médico Loreno Loreno Vaz Leme Me chamo Lorena por causa dele que é meu padrinho O homem acariciou de leve a cabeça de Ana Clara Conheço vários médicos dessa rua Esse não conheço Vaz Leme Não conheço Na realidade ele passou a maior parte do tempo nos Estados Unidos Digo que fui com Loreninha a uma conferência está decidido O cara falou duas horas sem parar e ainda assim porque derrubou a jarra dágua Conferência onde Na Faculdade querido Um jurista parente da Lorena todos os juristas são parentes dela Ficamos na primeira fila não se podia sair que em conferência e em trepada não se pode sair no meio que não fica fino E eu sou fina Você não quer se casar com uma moça fina Então Você andou bebendo menina Está me ouvindo Lorena Lorena Levanto a cabeça Dormi Não disse Sempre alguém me cutucando Agora é o homem da mãozinha olha só a mãozinha dele Vai perguntar mais Vai Dá carona mas cobra Parece o escamoso Não interessa Agora sou Lorena Você andou bebendo não andou E bastante Misturei bebida lá na festa Não estou acostumada mas já estou lúcida passou tudo Quer tomar um café Paramos aí num café você fica nova E não me chame de senhor não sou tão velho assim sou Vamos a um café Não não por favor estão me esperando fico aflita Desculpe mas Que é que você faz Lorena É uma menina encantadora subia Faço o último ano de Psicologia Na USP Outra vez a mãozinha agora no meu joelho Nem com meu pai morrendo esse porcóide me respeita Sorry ele gritou Esses insensatos Assustouse Sorry Quase entramos numa jamanta e me diz sorry Quem se assustou foi ele Vai guiar agora com as duas mãozinhas Vai Ou digo que tive um desastre Fui testemunha três carros trombados eu estava no terceiro Os motoristas presos nas ferragens Ah preciso Depressa depressa Podemos ir mais depressa Mas você está ruinzinha Lorena Como é que Estou ótima doutor foi só um susto pensei que tinha esquecido Me chame de Valdomiro Na realidade nunca estive tão bem não fosse isso do meu pai Olha me deixa ali na esquina depressa ali facilita O senhor é um santo E se ele não estiver mais lá Posso esperar Lorena não se afobe é naquele prédio Mas a porta está fechada não está Não não é ali é mais adiante Pára aqui quero andar O ar da noite é bom pra mim Mas está chovendo menina Toma fica com o meu cartão estou no escritório nesse telefone vai me telefonar Sem falta amanhã mesmo Amanhã Ele beija minha mão Abro a porta e caio de joelhos na calcada E ele ainda falando acho que vem vindo atrás Saio correndo Queria ter patins Sempre quis ter patins Sair patinando pela estrada patinando sozinha Passou a chuva mas estou gelada Podia ter pedido um empréstimo Ele dava E o cartão Lá sei jogue fora Valdomiro MercedesBenz Dava nada Um conhaque peço ao moço do balcão Ele fica me olhando Mas por que ele me olha assim Levanto a cabeça e vou tirando o dinheiro será que está pensando Nacional Estrangeiro O melhor que tiver Enfio a mão no bolso e estraçalho o papel de seda Bebo devagar Os olhos e a boca se enchem dágua Como a gente é escondida E como é livre Por que aquela tonta fala tanto em liberdade pomba A gente é livre olha aí ninguém sabe o que tenho no bolso Ninguém sabe o que estou engolindo Milhares de pessoas em redor e ninguém Só eu Agora mesmo neste minuto uma porrada de gente está matando outra porrada e quem é que está sabendo Neste prédio aqui em cima Milhares Genial isso Fazer as coisas na cara dos outros e os outros Boa noite Tem um velho na minha frente dizendo boa noite Mas o que quer esse velho Parece um mendigo com esse impermeável as pessoas estão ficando confiadas Quer minha companhia o vagabundo Está desacompanhado Eu também A noite dos desacompanhados Esvazio o cálice Estou serena como uma rainha é glorioso se sentir rainha Se sentir outra Chega de Ana Clara Sou Lorena Vou encontrar meu marido Ele quer dizer qualquer coisa e não diz Saiu esfregando no ladrilho sujo as solas dos sapatos sujos E se for meu pai Se de repente é meu pai Corro atrás dele Toco no seu ombro Fico me procurando na sua cara O senhor sabe que horas são Ele mostra o pulso de pelos grisalhos o homem que podia ser meu pai não tem relógio Preciso me segurar porque senão caio em prantos Que felicidade Estou tão feliz Talvez seja Talvez não Não interessa ele não sabe que é dois o que fica no bar e o que sai de braço comigo Perdoei tudo Eu tinha certeza que a gente ainda ia se encontrar Os homens na porta se multiplicam num jogo de espelhos Passo soberana entre as alas passo entre todos levando meu segredo como um navio Sou um navio passando lá longe todo iluminado me vejo passando lá longe e é um espetáculo me ver passando no mar Levanto a gola do casaco e fico um navio embuçado A voz a voz me chamando Me viro e ele está ali de braço dado comigo Meu pai e eu na noite do mar Ele não sabe de nada Sou menina e ele nem sabe Você é bela Bela Obrigada digo e fico sorrindo Jamais saberá porque agradeço Ele me enlaça Sinto seu desejo que pesa seu desejo é uma âncora mas a noite é leve pode haver uma noite mais leve O pai com a filha Se encontraram na noite Subo leve como a noite e tudo é silêncio onde estou Os astros passam passam e me iluminam posso pegar aquela estrela pelo rabo Táxi Táxi grito e os faróis me cegam Não é preciso táxi minha bela O apartamento é aqui pertinho um cantinho delicioso vem Se apóia em mim que eu ajudo Que foi que esta minha bela andou bebendo Levadinha Não vai me dizer Não vai Chuva Riu Dentes Tem bons dentes Não tem relógio mas tem dentes Relógio não interessa mas os dentes Bonito pomba Tinha que ser um homem bonito eu sabia Meu pai está comigo Estou protegida Protegida Meu uísque é de primeira a gente pode beber e ouvir um pouco de música Gosta de tango Tenho uma coleção de Gardel sou apaixonado por Gardel Mas meu Deus você é mesmo bela parece uma deusa disse ele me apertando mais Me visto assim displicente porque não ligo pra nada sou boêmio Mas se adivinhasse que ia ter uma deusa dessas punha até casaca Fiquei transparente Transparente Posso me ver porque estou transparente meus tecidos corderosa minhas veias entrelaçadas os órgãos organizados nos seus compartimentos estou inteira em ontem lá por dentro como o homem de plástico da vitrina tinha um homem no avesso de pé na vitrina Só ordem e luz Tanta luz que preciso fechar o casaco para que ninguém veja isto o Coração de Jesus está no meu peito O susto me atordoa tanto que tropeço e grito É Ele É Ele O homem também se assusta e me agarra Rolamos juntos Que foi que é que deu em você Que foi que você viu A gente podia quebrar a perna beleza Se machucou Se eu contar a senhora acredita Madre Alix escuta Ele está aqui dependurado no meu peito com a coroa de espinhos não rezo nem nada e Ele me escolheu está vendo Justo em mim Ele veio ficar quero gritar isso porque é uma puta de glória Ele ter me escolhido mas só pra senhora só pra senhora eu conto tenho que ir séria e digna com meu Coração Resplandecente Se ele me escolheu é porque mereço e Ele viu tanta humilhação tanto sofrimento lembra o que sofri com todos aqueles sacanas que Eu era criança e os sacanas nem podia me defender nem nada eu era criança Nem podia pomba Chorando minha Bela Está doendo alguma coisa Conta aqui pro hermano murmurou ele e cantarolou apanhando a bolsa que ela deixou cair Si precisas una ayuda si te hace falta un consejo Meu nome é Lorena Lorena Vaz Leme Pra mim é Bela só vou te chamar de Bela Ganhava fácil num concurso de beleza quando vejo aí esses bagulhos Você tem uma cara excepcional não estou vendo aí debaixo do casaco mas adivinho sou especialista no assunto Mas não chora assim não quer andar mais preguiçosinha Estamos chegando moro aqui pertinho um boêmio tem que morar na zona da boêmia exclamou e riu Você vai gostar do meu cantinho à moda antiga tem ale uma vitrola de manivela sabe como é Que pergunta besta você nasceu ontem Bela Bela Assim quero você rindo gosto de gente alegre E sou um triste Adoro tango vamos ouvir uns tangos Mas eu não estou sozinha Pois não mesmo que novidade é essa Cuidado Bela segura em mim torceu o pezinho Faço depois uma massagem já fui massagista Massagista cronista esportivo radialista corretor ai como vendi papel Fui tanta coisa menos rico Quando moço tive até uma escola de modelagem física até hoje faço minha ginástica bota a mão aqui está vendo Quarenta e seis anos e nem sinal de barriga Toureiro Me atrasei porque Meu pai e Jesus eu sei eu sei é difícil ninguém entende Tão simples Amassa o pãozinho e o rato é um rato que ele tem na mão Sustento seu olhar de raiva e medo Não tenho medo nunca mais Sou luz e ele é só escamas Escuridão e escamas Não interessa A mínima Então Olha aí minhas velharias só me cerco de velharias A cama larga coberta com uma colcha rendada ocupava quase todo o quarto aconchegante com suas almofadas de seda e paredes cobertas de retratos familiares misturados a flagrantes de homens seminus em poses atléticas Os retratos familiares eram antigos amarelados e convencionais com seus grupos de homens e mulheres de preto cercados de crianças de cachos e botinhas Na mesa de cabeceira o abajur com franja de miçangas coloridas e a pequena vitrola com uma toalhinha de crochê em cima Minha família disse ela abrindo os braços Minha família Ele tiroulhe o casaco dobrouo na cadeira de almofada acetinada e ajoelhouse diante dela que vacilava Correu de leve as pontas dos dedos pelas meias pretas Que físico Seu físico Bela Estas pernas Não quero que tire nem as meias nem os sapatos tenho paixão por meias pretas assim bem compridas estas vão até lá em cima Vão sim murmurou beijandolhe respeitoso as fivelas dos sapatos Bela Bela Os retratos disse Ana Clara apontando pródiga para as paredes O menino com o gato Meu irmão pomba meu irmão Sim Bela somos todos irmãos deixa o mundo lá fora e aqui no nosso cantinho Mas descansa vem deita aqui Bota a cabecinha aqui na almofada pura paina Não é macia Está confortável assim Bela Vamos tomar um uisquinho pra esquentar que tal um uisquinho Escocês minha Bela Meu amigo me abastece ele é da alfândega tenho amigos em toda parte Mas deixa te olhar Bela Meu gato sumiu Deixa te arranjo outros vamos beba Pode segurar o copo Vou botar um tango pra formar o ambiente mas aquele tango hum Também cantei aí numas bocas mas minha voz começou a ratear fumo demais Um veneno o fumo Tenho que ir gemeu ela se agitando Ameaçou levantarse Que horas são Que é isso que bobagem é essa A noite é uma criança Bela vamos bebe Cuidado não vai derramar na blusinha ah já derramou Não faz mal seca logo Bela O ano que vem O ano que vem Janeiro Eu já disse que Ele ajustava a manivela na vitrola Deu corda Os violões romperam fanhosos e veementes Em cada volta do disco a agulha saltava o obstáculo do arranhão profundo e se descontrolava na queda Para retomar em seguida a trilha Ele aproximouse Quero que fique bem quietinha assim mesmo como está inteira vestida murmurou com voz pesada Quero que fique bem quietinha enquanto vou ler uma coisa está confortável Me dá o copinho depois dou mais agora fique assim mesmo Não é belo esse tango Bien sabes que no hay envidia en mi pecho que soy un hombre derecho Espera um instante já volto Mansamente ela ficou rolando a cabeça na almofada Cruzou no peito as mãos fechadas Tenho que ir Meu pai Não interessa porque meu pai Com gestos contidos ele foi tirando a roupa Dobroua metódico empilhando peça por peça na cadeira Ficou nu Inspirou e expirou seguidamente dilatando o peito contraindo o estômago Avançou gravemente até a gaveta da mesa maior coberta com um velho xale espanhol Tirou de dentro uma revista já rota com o retrato de uma antiga artista de cinema na capa colada com pedaços de esparadrapo Deitouse ao lado de Ana Clara mas sem tocar nela Tremia inteiro Tirou os óculos debaixo de uma almofada de cetim vermelho com aplicações de filé cordechá Colocou os óculos A voz enrouquecida tropeçava nas palavras Quando na tarde lúgubre de Waterloo Napoleão desesperado ordenou a todas as baterias do seu exército em começo de derrota que despejassem seus balaços em compacta saraivada romperamse em dilúvio sobre o campo de batalha as comportas do firmamento Então ouvindo troar a artilharia enterrada na lama e ouvindo trovejar o espaço por entre cordas dágua o homem fenomenal cuja glória cesárea bruxuleava no crepúsculo definitivo dos Cem Dias teria exclamado com os olhos orgulhosos postos no céu Estamos de Acordo Fez uma pausa Respirava com esforço as narinas dilatadas silvando por entre os dentes brancos de saliva Virou de bruços e ajeitou a revista aberta na almofada Os músculos encordoados se retesaram rijos O pé esquerdo distendeuse e contraiuse em câimbras Mordeu a almofada levantou a cabeça os lábios repuxados num esgar Prosseguiu lendo num sopro Outros famosos conquistadores ao soltarem do peito heróico o suspiro último ouviram talvez desencadearse em fúria os elementos da natureza cósmica na solene solidariedade trovejante coriscante e pluviosa Os grandes capitães não sucumbem sem o trovão sem a chuva sem o vento sem o raio para que a sua glória temerosa ainda mais acresça o esplendor terrorista da cólera solidária dos espaços Ninguém contestará que Rudolph Valentino foi o maior conquistador do nosso tempo alucinante Gemendo ele rastejou até quase tocar a boca espumosa na face de Ana Clara que dormia Aspiroulhe o perfume os dentes apertados numa contração aguda de maxilares Colocou no seu ventre a revista ainda aberta e fincou os cotovelos no colchão Ajustou os óculos embaçados e respirou doloridamente Baixou para o texto o olhar esgazeado Sem dúvida ele não enviuvou a Andrômaca nem aceitou o duelo com Aquiles nem conquistou as Galias não destruiu Cartago nem tornou Constantinopla não pelejou nas Cruzadas nem esteve em Trafalgar não transpôs a Berezina nem trespassou com a lança o López do Paraguai Fez mais porém infinitamente mais rouquejou arrancando os óculos Arrepanhou a colcha com as mãos crispadas o corpo banhado em suor se sacudindo em contorções A voz saiu num silvo espesso Conquistou o coração de todas as mulheres que o viram na tela e mal o viram mal o viram experimentaram esse delíquio de platonismo amoroso que é segundo os fisiologistas a forma sutil da paixão mais temível que não encontra finito que não encontra finito no infinito da insaciedade Afundou de braços abertos na almofada Imobilizouse Na vitrola já sem corda o som esmorecia pastoso nove Ana Clara fazendo amor Lião fazendo comício Mãezinha fazendo análise As freirinhas fazendo doce sinto daqui o cheiro quente de doce de abóbora Faço filosofia Ser ou estar Não não é ser ou não ser essa já existe não confundir com a minha que acabei de inventar agora Originalíssima Se eu sou não estou porque para que eu seja é preciso que eu não esteja Mas não esteja onde Muito boa a pergunta não esteja onde Fora de mim é lógico Para que eu seja assim inteira essencial e essência é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra não há competição mas identificação dos elementos Apenas isso Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou eu estou estou competindo e como dentro das regras do jogo milhares de regras preciso competir bem tenho conseqüentemente de estar bem para competir o melhor possível Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser próprio ou alheio o que vem a dar no mesmo Ora se sacrifico o ser para apenas estar acabo me desintegrando essencial e essência até a pulverização total Vaidade das vaidades Apenas vaidade A conclusão é bíblica mas responde a todas as perguntas deste mundo desintegrado e confuso Os loucos reinando sobre os vivos e mortos Dominarão os poucos que conseguirem segurar as rédeas da loucura quais Pulmões e mentes poluídas Importante papel está reservado aos psiquiatras Aos profetas acre dito ainda mais nos profetas Acho que eu seria mais útil se estudasse Medicina de que vão adiantar no futuro as leis se agora já são o que se sabe Uma psiquiatra maravilhosa O chato é que quando leio um livro sobre doenças mentais descubro em mim os sintomas de quase todas uma psiquiatra por dentro demais da loucura Salva pelo amor Ai meu Pai Por que MN não me telefona ao menos para dizer Não sou bonita ponto pacífico Mas meu QI não é muito acima do normal E tenho algum charme Meio velado é certo mas se procurares encontrarás o ouro escondido na terra Lor cachê Fecho meu tratado já tratadíssimo queria entrar em provas ah esta greve Houve um tempo longe não em que estudávamos juntas Lião e eu Ana Clara não estava assim tão ambulatória delirante coitadinha Estudava com a gente um ou outro problema borboleteava sobre seus planos e depois ia experimentar meus vestidos mas não perturbava muito Tempo das pesquisas Lião ainda não estava curtindo a revolução estudava normalmente Estatísticas Formulários Chegou a fazer um trabalho para pesquisar o que leva o motorista a dependurar berloques no espelhinho do carro Dois grupos nítidos os que dependuram coiselhas e os que não dependuram nada Estes revelando evidente superioridade intelectual sobre os outros na conclusão lionina Para mim uniu simples questão de bom gosto ouviu MN Platão dependuraria o sapatinho do filho no espelho do seu Porsche se guiasse um Porsche Naturalmente foi a mulher ou a filha que dependurou aquele chapeuzinho E chapeuzinho mexicano ay ay ay ay Mieux não dependurou um bebezinho erótico no corcel da mãezinha Se Lião tivesse visto o sombrero no carro de MN apontaria o dedão para baixo kaput E Lião sabe Lião sabe tudo até quantas prostitutas sentem prazer e quantas não sentem pesquisou isso também Um mês inteiro transou pela zona com sua sacola e sua pasta fazia perguntas tão originais Quando começou a trabalhar na recuperado dos adolescentes maconhados entrou para o tal grupo Um pouco mais e já estaria de avental branco no seu consultório de psicologia infantil todas começam muito humildes e daí a pouco estão com consultas marcadas até novembro Os adultos já entraram nesse moinho até a medula Agora é a vez das crianças Uma psicóloga a menos o que é lamentável A tese seria Da importância do retrós preto na vida prénatal Consolatrix Afflictorum Entro no meu banheiro Se fechasse os olhos me veria entrando no bosque de eucaliptos Sebastiana usou o vaporizador à vontade Mas o perfume verdadeiro é diferente Sento na borda da banheira e junto o indicador ao polegar formando um anel para que o jorro dágua passe no meio Com o polegar e o indicador dois dedos importantíssimos MN desabotoará o soutien que não uso por absoluta desnecessidade mas que nessa hora é necessário Ana Clara contou que o alemão estraçalhou sua blusa o tal alemão maravilhoso o primeiro homem primeiro amor primeiro tudo mas a respiração de MN mal vai se alterar será como se ele tivesse subido uma escada um tanto longa dessas de caracol digamos Interrompoo porque quero beber estou com uma sede danada O que não é nenhuma novidade desde criança sou assim antes de sair de casa a Babá a mãezinha todo mundo perguntava se eu não queria fazer pipi e etcétera Não não queria Tomávamos o carro a fazenda ficava a uns quinze minutos da cidade e já no carro eu começava a me mexer Descíamos na porta da igreja Na hora exata em que a procissão ia saindo a fila de anjos lá na frente eu voltava correndo porque estava com sede ou apertada o que era mais complicado devido às asas amarradas no peito por dentro da camisola de cetim Até hoje não sei porque baixar minha calça acabava por deslocar as asas Um pouco de uísque na água ele pergunta Por enquanto tirou o paletó e afrouxou ligeiramente a gravata ainda bem Apesar do calor mas não calor excessivo minha pressão deve estar no subsolo a bebida é indispensável Peço com ênfase uma boa dose não costumo beber mas numa hora dessas só a bebida descontrai Viro o copo de uma só vez glugluglu O atordoamento que começa na nuca acaba na boca em meio do beijo mais lento mais sugado Em câmara lenta tudo assim sem muito empenho ele começa a tirar a roupa com um jeito de quem quer apenas ficar mais livre de movimentos está um pouco quente não está Apesar de toda lentidão é chegada a hora da cueca ai meu Pai O horror que tenho de cueca a começar pelo nome Por mais bacaninhas que elas sejam fico no maior constrangimento quando vejo no cinema um artista de cueca Não sei mesmo porque ele tem que passar a fita inteira com essa cueca branca queixeime à Lião a máquina dava um giro disfarçava um pouco e já vinha reta focalizar os elevados e a cueca Também quero ver a cara dele reclamei Enquanto comíamos um sanduíche Lião deu as explicações dela Não sei explicar mas parece que todos os diretores de cinema são agora bichas e bicha tem mais obsessão por pau do que mulher entende Faleilhe do meu complexo com cueca mas nesse ponto ela já ramificava a conversa para a política e quando chegamos ao pensionato o culpado de tudo era o imperialismo norteamericano A república sonhada seria uma praia nós dois de maiô tão mais poético uma praia Bom mas agora não adianta estamos num apartamento onde ele tem que tirar a cueca com uma habilidade tão hábil que quando eu der acordo de mim já está nu Mergulho na banheira Delícia delícia Abro a torneira de água fria Calma Lorena Vaz Leme calma Melhor começar pelo elevador você acabou de entrar no elevador Sozinha Lógico sozinha Mas por que ele não entra comigo Não se esqueça de que sou casado minha querida Não podemos nos arriscar Abro o fiasco e despejo sais na água Perfume de eucalipto ainda o falso bosque Espuma Mas não e deprimente esse medo que ele tem de ser pilhado Sugere a mascara e tenho horror de máscara Queria apenas ser verdadeira Honesta O mundo do burguês é o mundo das aparências Lião repetiu não sei quantas vezes Eu e MN pertencemos a burguesia logo estamos condenados a esse mundo Mas estamos mesmo Queria ser mas vou estar na engrenagem do fazdeconta Gosto tanto quando me chama de MN ele disse Sopro a espuma que chega até meu queixo Gosta ou acha prudente Só iniciais Quando na antehora do dilúvio ele perguntou ao secretário se por acaso precisava de condução fora a secretária da Faculdade tratar da transferência do filho e o secretário disse estava de carro e quando então ele se voltou mim e repetiu a pergunta quando rapidamente saímos da quase penumbra dos corredores para a noite escura guardei apenas a imagem de um homem moreno de cachimbo Mais nada No senti seu cheiro de homem bem cuidado com um leve toque de lavanda E fumo sempre amei esse cheiro de fumo Durante percurso reparei que tinha mãos fortes tranqüilas A aliança discreta aspireilhe o hálito de homem de meia idade e meia felicidade que é pior do que infelicidade inteira diz tia Luci que já casou um monte de vezes Fiquei à vontade ali com ele Seu estilo de guiar também me impressionou nunca me senti tão segura A tempestade aconteceu no meio da história que lhe contava sobre nossa fazenda Quando desci no portão desceu Junto e antes que pudesse impedir tirou a capa e me cobriu Corremos pelo jardim azul de relâmpagos acendendo o caminho seu braço direito contornando meu ombro enquanto com o outro braço sustentava a capa aberta sobre nossas cabeças pálio das procissões guardando o sacramento Pallium Incrível como num instante assim de desordem um por menor tão miúdo se destaca com essa forca trovões raios e meus dedos se fixando nas suas iniciais Pegueio pela cintura para conduzilo senti o bordado das iniciais na camisa Que letras são essas gritei quando me despreguei dele para subir a escada MN respondeu e sua voz ficou mais forte do que a tempestade MN Parei na escada e olhei continuava no mesmo lugar se protegendo com a capa Volte MN gritei Confessou no dia seguinte com seu meio sorriso que ficara na dúvida afinal a ordem era Para voltar ao carro ou voltar para me ver A espuma dos sais começou a se cristalizar na superfície da banheira Me abraço e me vejo correndo desatinada como a mulher dos Cânticos desfalecendo de amor e procurando o amado das pernas de coluna ele joga golfe deve ter pernas rijas Na hora certa ele intuirá essa hora vejoo estender as mãos sábias Aguçamentos requintes nas pontas dos dedos limados até a carne como os de um arrombador de cofre se esmerando no tacto tacto com e para impedir a precipitação certas palavras devem ter seu degrau medida contra afobados cuidado com o degrau Ele toma cuidado ah se toma E tanto que já está com ambas as mãos nos meus seios e nem percebi como foi que chegaram tão perto Um primeiro toque o torcer leve dos botões para a direita para a esquerda Uma pausa Mais um movimento que é quase só imobilidade e me abro de par em par sem segredo O tesouro de uma moça é a virgindade ouvi mãezinha dizer mais de uma vez às mocinhas que trabalhavam na casa da fazenda Como nunca mais fez essa advertência calculo que o tesouro só era válido para aquele tempo E para aquele gênero de mocinhas filhas de colonos ou órfãs Mas se chego e digo tenho um amante Vai escancarar os olhos e empalidecer num susto que pode durar algumas horas sempre demora um pouco para se acomodar às novas situações Um amante Procuro depressa um argumento decisivo Você não há de querer que eu fique virgem para o resto da vida certo Certíssimo isso não desejaria em nenhuma hipótese já fez milhares de alusões irônicas sobre as que morrem virgens e viram estrelas Não vai querer que eu fique lésbica se não ando com homem tenho que andar com mulher não tenho Ela sacode a cabeça apavorada não não Embora catastrófica nesse momento não está pensando no pior que possa me acontecer mas sim numa hipótese normal saudável por que um amante e não um noivo Me concentro para fazer desfilar todos os argumentos da Lião contra o casamento Argumentos fraquíssimos acho o casamento a melhor coisa do mundo eu me casaria com MN em vinte mil igrejas e registros Ai meu Pai Enfim faço a preleção com aquela sinceridade tão sincera que nos empolga quando as uvas estão verdes Ela desanda a fumar um cigarro depois do outro sinal de insegurança Para mostrar como está atualizada faz seu canto à juventude sem espartilhos libérrima mas não deixa do expor algumas das suas perplexidades Por exemplo não entendo esse abismo entre minha geração e a de vocês Foram séculos que se passaram ou alguns anos O escândalo quando minha prima teve um filho quatro meses depois do casamento parecia que o mundo vinha abaixo E que idade você pensa que ela tem hoje Quarenta e tantos anos Imagine se agora alguém vai sequer comentar se por acaso uma de suas amigas acrescem a e deixa a frase pela metade acabou de se lembrar que já falou nisso tudo não tem parceira de jogo que não vibrou com essas distâncias entre o próprio tempo e o tempo das filhas Netas Ou sobrinhas no caso de não haver descendência direta Fica calada pensando A expressão começa a pender sobre o dramático quando me visualiza na cama com um homem caras de gozo gemidos sem intenções matrimoniais O que tem qualquer coisa de devasso não tem Aperta os olhos A esponja de fel começa a pingar no sorriso lento Uma menina ainda me vê com uns doze anos e com um amante um fauno velho babando nela sua baba imunda A decepção vai se transformando em cólera anda de um lado para o outro de braços cruzados porque já não consegue nem ficar sentada nem ficar me olhando tem que andar Mea culpa Mea culpa Sou uma insensata uma leviana Deixar minha filhinha no meio de uma gente que nem sei direito quem é e ir viver com um homem que se ri de mim que me trai o quanto pode Se não tomasse chá amargo ele já teria me matado com doses de arsênico no açúcar Uma mãe não pode se separar assim da filha quase adolescente você até que tem tido muito juízo uma onda nessas circunstâncias A autopunição se ameniza quando anuncia que o romance com Mieux está mesmo liquidado Quer apóia vivei uma vida retirada sem mundanismos inteira voltada paia minha filhinha Deus me livre e guarde de um novo casamento dirá sem se lembrar que disse isso mesmo e com igual ênfase logo depois da internação de paizinho Divide um pouco a responsabilidade com minhas amigas Acho esquisitíssimas essas duas moças que moram lá A gordinha com cara de lésbica A outra tão vulgar Por acaso serão boas companhias para uma mocinha Aperta a mão da mocinha em sinal de reconhecimento por ter sido verdadeira e não vir com mentiras quanto a isso pode ficar tranqüila e sob o pretexto de me consolar por ele ser casado se consola nostálgica Mas se você está contente eu também estou diz e faz aquele sorriso tristíssimo para mostrar o contentamento Todas as vezes em que o presente a desgosta o que vem acontecendo com maior freqüência refugiase no passado As lembranças colhidas sem ordem no tempo são sempre as mesmas Lembra filhinha Brinco no chafariz da fazenda e tenho uma flanela vermelha amarrada no pescoço porque estou com dor de garganta paizinho tirou o retrato quando perdi o equilíbrio e caí sentada na água Alguém grita Ifigênia de dentro da casa Essa menina vai ter pneumonia Agora passeio na garupa de Remo tão nítida minha cara que aparece até a falha do canino arrancado na véspera O dente balança na extremidade de um fio num movimento de pêndulo cadê o dentinho que estava aqui O gato comeu Cadê o gato O primeiro banho na bacia de prata forrada de correntes e pulseiras de ouro através da água vejo o ouro destinado a me transmitir seu brilho Disselhe que me lembrava desse banho e ela riu impossível filha você tinha só oito dias Mas lembro Vejo a água e o emaranhado do ouro brilhando no fundo reconheceria essas jóias se não tivessem sido fundidas a que resistiu mais tempo foi a corrente que dava voltas e voltas e voltas e que numa volta Mieux levou Meu primeiro dia de escola quando atirei longe a lancheira e me agarrei aos pés da cama Ela usava um vestido de linho branco e prendera no decote um raminho de jasmins Eu gostava tanto daquele vestido repete e vejo que vai reconstituindo o vestido e o resto Continua me olhando agudo o processo punitivo Não devia nunca ter vendido a fazenda devia ter ficado lá Arranjava um enfermeiro ele não teria piorado como piorou se vivesse no meio das coisas que amava tanto suas plantinhas seus bichos Morrer sozinho num sanatório gelado sem ninguém para lhe segurar a mão Rômulo morto Reino tão longe que é como se tivesse morrido também Minha filhinha amante de um homem casado E eu na companhia de um cínico que me trai e explora oh que castigo Que castigo Afundo mais na banheira Estou com os olhos inundados fiquei comovida por que fui complicar assim o quadro Me comovi à beça e não estava no programa me comover Melhor não contar que ele é casado se não for casado ela pode ter esperança e tirar a esperança de mãezinha é a última coisa que eu faria no mundo Digo apenas que não tenho nenhuma vontade de casar Ela se anima Não tem agora mas vai ter todas vocês dizem isso mas quando vem a vontade de filhos vem junto a de casamento É fatal Tão mais prático Lorena Nas viagens nos hotéis Na vida mesmo em comum você tem bens filha Quem senão um marido para administrar os nossos bens Pensa nos próprios desadministrados confiar naquele fútil naquele irresponsável e toma minhas mãos entre as suas esse é seu gesto quando quer me falar de mulher para mulher Você já está estruturada filhinha diz solene incorporou a palavra estruturada ao seu vocabulário mas não sabe exatamente o que significa A decisão é sua Faça o que o seu coração quer O que o meu coração quer O que o meu coração quer Ih mãezinha Meu coração quer ficar com ele mesmo sem casamento sem nada Ela pisca duro por causa dos cílios postiços minha boneca piscava exatamente assim Mas se ele não quer se separar é porque está apaixonado pela mulher e não por você Fim diria a Lião Lavo os ouvidos nas reentrâncias onde o Anjo Sedutor de novo destilou seu visco de luxúria e inveja Como se não bastasse a preguiça Abro a torneira e fico vendo a espuma renascer sob o jorro quente Todo aquele que por ação ou omissão voluntária negligência ou imprudência causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar seu prejuízo Não cumprindo a obrigação responde o devedor por perdas e danos Perdas e danos repetiu Lorena procurando a própria imagem no espelho Através do denso vapor dágua só via a mancha escura da cabeça e uma parte rosada dos joelhos emergindo da espuma como vagas plantas esponjosas Isto é uma norma meu amado Norma jurídica Por negligência sua perdi a alegria pensou eu quanto se enrolava na toalha Esfregou as solas dos pés no piso e fez caretas para o espelho mas sem muita convicção Estou triste Polvilhou talco no corpo abriu a toalha no espaldar da cadeira e vestiu o chambre vermelho Sentiuse repentinamente fascinante ah se MN a visse agora Foi buscar correndo um livro na estante e de dentro tirou uma carta Sentouse no almofadão A fita da máquina devia estar tão gasta que as letras quase se diluíam no papel de seda azulado Loreninha Ela sorriu para o jovem que abrira silenciosamente a porta e espiava pela abertura Oi Guga Entra Acabei de sair do banho Estou vendo Quer tomar um Se quiser disponha Agora não disse ele se desvencilhando da sacola de lona Sentouse no tapete ao lado dela Você vai ouvir hoje o conjunto Lá no galpão Estou sem vontade Guga Você vai Ainda não sei Meu irmão toca o sax eu iria só por isso Mas também não sei murmurou ele cruzando as pernas e agarrando os bicos das sandálias Ela ficou olhando o sol amarelo bordado no peito da sua camiseta de algodão Foi você que bordou Foi Ficou bom Está muito tremido disse ela inclinandose para beijálo na face Com as pontas dos dedos alisoulhe a barba Sei bordar um patinho na perfeição traga uma camisa e eu bordo Esta é a única A única Ai meu Pai Que pobreza coitadinho do meu Guga Quer me adotar Estou procurando alguém que me adote E me ame Espera vou buscar um uísque avisou ela correndo até o toca discos Você conhece o último do Chico Acho que não estou por fora de tudo Loreninha Ou melhor por dentro Ela trouxe a garrafa e um copo Aproximou o cinzeiro da mão dele que segurava o palito ainda aceso Ficaram silenciosos sentados lado a lado ouvindo a música Por dentro como Ele sorriu Por dentro Parei de rodar por aí como um alucinado Eu estava feito um alucinado estudando sem vontade fazendo coisas sem vontade tudo sem vontade só pra provar Não quero provar mais nada Estou bem comigo mesmo É o que importa Ou não é Foi por isso que você sumiu da escola Deixei de estudar Loreninha Saí de casa deixei de estudar A gente alugou aí um porão cada um dá um tanto por mês Estamos vivendo numa comunidade Ih Por que ih Nunca dá certo querido vocês acabam brigando tem sempre um que é mais confuso do que os outros e turbilhona tudo Nem Jesus agüentava muito a comunidade que fundou lembra Até quando heide vos suportar ele explodiu um dia disse isso ou coisa parecida E era Jesus já imaginou Vamos então fundar uma comunidade a dois posso morar com você Ela tomoulhe a mão Beijoua Te amo mas estou apaixonada Aliás sem esperança acrescentou fazendo uma careta Suspirou E o teatro Deixei também Aquilo era teatro Tudo tão pobre sem sentido Quero viver em profundidade Ela desviou o olhar dos pés dele encardidos e magros dentro das sandálias frouxas Mas o que você chama de viver em profundidade Essa contestação Essa marginalização Tranqüilamente ele se serviu de mais uma dose Seus gestos eram suaves A voz branda Encaroua Mas quem é que disse que estou contestando Não estou contestando nada Loreninha Nem isso Contestar é tomar atitude Quem é que quer tomar atitude Quero fazer só as coisas que me dão alegria minha florzinha Leio converso ouço música laço música faço amor Tudo bem simples Aprendi a pensar essa uma descoberta importante Pensar Ela levantou7se e foi buscar uma tesourinha Estou adorando conversar com você mas enquanto a gente conversa deixa cortar sua unha Por favor Guga estou lhe pedindo implorou assim que o viu recuar de rastros escondendo a mão dentro da camiseta É um instante só Deitando a cabeça no regaço dela ele relaxou o corpo e entregou lhe a mão Riu baixinho Está bem Dalila se lhe dá tanto prazer Você parece minha mãe me vê e já pega a tesourinha Diz que quero agredir contestar Bah O que quero mesmo é tão diferente Assim que cortava a unha ela passava debaixo da unha cortada a ponta do bastãozinho de pau de laranjeira Acho que você está dentro da doutrina que inventei vê se não é bacana ser ou estar Ou você é ou você está Preferiu ser não está na Faculdade nem no palco nem nos grupinhos ativos de política ou arte ou lá sei mais o quê Está sendo você mesmo certo Mas Guga você pode ser livre E ao mesmo tempo cumprir o seu destino você tem um destino querido Ah minha Loreninha leia menos e viva mais Você é um livro Venha morar com a gente e vai esquecer um pouco a teoria Vocês fazem pipi no chão eu passaria o dia lavando os banheiros perfumando os tronos Trono riu ele puxandoa pela mão Beijoua no pescoço mas quando tentou beijarlhe a boca ela se desvencilhou rápida Não Guga Não quero Não quer por quê Porque estou apaixonada Fabrizio Antes fosse É um homem casado velho etcétera Estou me carbonizando nesse amor Olha aí a literatura dela Acabou perguntou examinando as unhas Quero esmalte rosa natural eu ia comprar pra minha mãe rosa natural Lorena juntou num pequeno montículo as unhas cortadas Queria ler para você a carta que ele me escreveu posso Apanhou as folhas que deixara no almofadão e voltou de joelhos Inclinou o tronco para trás e sentouse sobre os calcanhares Não vou ler tudo só um pedaço presta atenção Tenho vivido em dois planos o cotidiano o real com as obrigações de cada dia com os laços que me prendem às pessoas queridas que amo também e diante das quais sou um determinado com identidade certa com passado presente e futuro que me enleiam a um caminho pausado de responsabilidades conscientemente aceitas Desse mundo L você é afastada e quando também se ausenta esta emoção enorme que chego às vezes a negar sinto que esse é o mundo real verdadeiro e que não devemos não podemos não podemos Que é preciso parar logo e fugir guardando a lembrança amiga de um encantamento que poderia ter sido Chega Loreninha Não quero ouvir mais Espera querido tem aqui um pedaço importante espera Chega eu já disse Não me interessa esse cara me interesso por você Nem entendo o que ele está aí dizendo Só mais este pedacinho este é importante por favor Quando o seu frágil e tão belo mundo L inesperadamente irrompe e se instala desse modo em mim como agora em que esta emoção vai me tomando então é nisso que sobretudo acredito nessa alegria que me perturba de ter recebido uma doação tão milagrosa e alta É nesse tempo que sobretudo acredito um tempo feito à sua imagem e construído aparentemente com fatos pequenos e miúdos um telefonema hoje um encontro rápido amanhã uma esperança para Deus sabe quando Fatos tão incertos tão escasso e que constituem no entanto toda a nossa história visível Sinto que mesmo desse pouco eu poderia desistir se você quisesse Paro porque minha boca está completamente seca Corro até garrafa dágua bebo um gole e volto Guga está me olhando de boca meio aberta como se não tivesse entendido uma só palavra Mas por que ele escreve assim Assim como Tudo embrulhado Loreninha Avisei que ele é muito mais velho casado não avisei É o estilo querido Só a última frase escuta só a última Este carinho tão fundo e puro Secreto e altivo Que guardo como um bem raro Que nem você poderia mais atingir ainda que tudo acabasse amanhã Este carinho que me devolve e recria sua imagem já agora tão minha para sempre tão junto e amiga MN Dobro a carta Guga me olha intensamente O que quer dizer esse MN As iniciais do nome dele Marcus Nemesius É embrulhado demais Loreninha Me dá angústia Sopro o excesso do talco acumulado nos meus pés Mais uma lição por que ler a carta para ele É para me desesperar que atiro meu pobre amor aos leões Lião pois é a Lião Não sei explicar e explicou que era a carta de um velho apaixonado e com medo Mais medo do que paixão Mas por que o exponho assim Incrível Só Aninha foi maravilhosa quando poderia imaginar que justo ela Estava de fogo Devolveu o xale que lhe emprestei arrancou os sapatos e se sentou para um uísque Não lhe mostraria a carta se não confiasse no instinto subterrâneo dos loucos e dos bêbados paizinho me ensinou isso E depois coitadinho Mas então ela cruzou as belas pernas contou as mentirinhas ia ser capa de revista em Roma o Conde Cicogna a convidara para jantar e etcétera etcétera Chiando sossegou no seu poder e glória deilhe a carta Na metade parou Os olhos cheios de lágrimas Gostaria de ser amada por um homem como esse pomba Fiquei na maior alegria não é mesmo Aninha E a Lião dizendo Ela ajustou o cigarro na piteira andou uns tempos com uma piteira que depois não vi mais Uma materialista como ela não pode entender um amor que e só espírito Eu me apaixonaria por ele Quando saiu deilhe o xale muito lindo e tudo mas em mim as franjas se arrastariam pelo chão por que tia Luci pensa às vezes que sou altíssima Uma ana de xale arrastando Ai meu Pai Ficou triste Loreninha Não querido imagine Se encolheu aí feito uma florzinha Magnólia Desmaiada Sabe que é meu apelido na Faculdade pergunto e escondo a cara no chambre Loreninha não chora não chora Mas não estou chorando tento dizer Não me deu tempo se levantou e me segurou pelos ombros está me beijando a testa os cabelos Meu chambre se abre Luto por fechálo mas como Seu braço já dá voltas em torno de mim enquanto sua língua engrossa na minha boca que contra minha vontade por um momento um século se entrega Salto para o lado e ele salta junto puxo sua barba seu cabelo não Guga não Mordo a mão que se aplastrou no meu seio Ele me solta Ficamos nos medindo ofegantes Atribuo minha vermelhidão à cólera mas a bem da verdade não estou muito certa disso Ele apanha a sacola Guga querido estou apaixonada por outro digo amarrando o cinto Você já me disse Não tem problema Está de novo sorrindo Doulhe a garrafa de uísque e ele agora ri me olhando e alisando a barba com as pontas dos dedos tem mãos lindas Deume um beijo de borboleta é que esse seu namorado tem uma habilidade pra complicar as coisas parece meu pai Meu pai fala horas comigo e não sei o que ele quer dizer Acaricio o sol bordado no seu peito por que não quero mais que ele vá embora Limpo a cinza do seu jeans com três pontos quase brancos de tão descorados um em cada joelho O terceiro nos elevados Desvio o olhar para o sol Sei bordar venha buscar uma camisa com um pato bordado na manga na próxima semana já está pronta vai ficar lindo digo e vou atrás dele falo quase no seu ouvido Não está tomando porcarias hein Guga Não necessariamente Que é que você quer dizer com isso não necessariamente Ele arqueia as sobrancelhas calmas Isso que eu disse Loreninha Não necessariamente Meu coração se aperta Guga deixa eu tomar conta de você Que é que você entende por tomar conta Cortar minhas unhas Abraçoo por detrás No abraço descubro que tem os ombros larguíssimos Número um vou trancar sua matrícula seu tonto Se de repente você resolve voltar Hein Ah quer me ver com o diplominha Eu não disse que você parece minha mãe Antes de desaparecer na curva da alameda se volta e me manda beijos Retribuo e sinto os olhos úmidos não sei se de emoção não sei se por causa do sol desabrochado em raios como na sua camisa Enfio os pés nos caracóis de ferro da grade da escada e olho o casarão Não é o telefone Da janela Irmã Bula me dá um adeuzinho abrindo e fechando a mão como fazem as criancinhas Fico ouvindo o motor de um avião embananado na nuvem não Não é o telefone E mesmo que fosse só podia ser a mãezinha para contar como Mieux tem sido perverso prefiro tanto quando ela está glingueglongue Mas o glingueglongue é só na alegria na depressão a voz fica mais soturna do que um besouro preto caído de costas vuuuu E o Fabrizio Enredado na poetinha sinistra era assim que me amava Mas que espécie de amor era aquele Bastou me voltar um pouco para outro lado Aperto o corrimão até as pontas dos meus dedos ficarem esbranquiçadas Guga Guga se cuide Não me esqueceu Como a gente se divertia hein Guga Uma tarde ele se fez de aleijado e foi indo pela rua todo retorcido babando e eu do lado seriíssima andávamos quilômetros assim Todo mundo penalizado olhando Por aqui Guga por aqui eu dizia e ele se virando para o outro lado trombando nas pessoas Num outro dia bolou os óculos escuros mas não deu reação tem cego à beça na cidade Então eu tinha que pegar no seu braço e ir brigando horrores com ele e em voz alta que todos vissem que eu estava uma fúria porque queria ir ao cinema e não podia por que tenho que ser uma guia Estou cansada de ser cachorro de cego gritei quando duas velhinhas já indignadas se aproximaram mais de nós A do guardachuva quase me bateu Menina bruta Você não tem coração menina A outra mascava mascava mocidade mais selvagem mi Sua selvagem Quando elas se afastaram ele tirou os óculos e se torceu de rir mas em meio da risada notei qualquer coisa de dolorimento Na fila do cinema fez a queixa na maior mágoa Eu estava cego e você judiou de mim Ô Guga Que triste ficou tudo isso não é esquisito Depois que conheci MN Fabrizio e ele ficaram meninos como se tivessem feito parte da minha infância Com Remo Com Rômulo Paizinho me pegou pela mão para vermos no estábulo o bezerrinho que tinha nascido de madrugada Estendo minha mão e não vem mais ninguém eu fico com ela estendida até o fim dos tempos Ad seculum et secolurum Ninguém As mãos de Remo eram banais mas as de Rômulo eram douradas a penugem dourada do braço se estendia até elas Ficavam douradas As de paizinho eram morenas com uma vaga de pêlo bordejando o dorso eu me dependurava nelas paizinho tem mão de macaco Paizinho é um macaco Sonhando Quase desabo da escada de susto Lião está parada atrás de mim mas como é que ela chegou até aqui nesse silêncio Não faça mais isso Lião Você quase me matou olha como só como estou trememendo Ela riu Vim na ponta do pé entende Você estava aí tão estatelada pensando na morte do bezerro Agarreia Você disse bezerro Bezerro Lião Extraordinário Que tem de extraordinário Mas justamente eu tinha pensado em bezerro estava me lembrando que meu pai me pegava pela mão para ver o bezerrinho Tinha sempre um bezerrinho nascendo de madurada Incrível Então vamos tomar um chá que tenho coisas importantíssimas você está sozinha O Guga acabou de sair digo e baixo a voz Lião Lião ele me beijou na boca fiquei perturbadíssima E daí Daí acabou fechei depressa meu chambre e botei ele na rua mas não é estranho Todo crescido o cabelo a unha todo assim arrepiado sabe como é E eu que sonho com um homem limpíssimo me excitei a ponto dele perceber me deu assim uma vontade de rolar com ele pelo chão empoeirado suarento Mas pensei em MN e quebrouse o instante mágico Lião desabou no tapete Ria abraçando uma almofada Lorena Lorena como você é burra Desatei a rir também Mas não é mesmo Uma loucura Lião Loucura total Ela começou a tirar as coisas da sacola e fazer suas pilhas em redor Enchi a chaleirinha dágua É uma pena eu ter que ir embora porque senão ia provar por a mais b que você está apaixonada por um fantasma entende Que fantasma pergunto Esse MN putz Será que ainda não percebeu que ele ficou sendo seu pai Tiro as xícaras Me mato se ela recorrer aos seus analistas maravilhosos para repetir o que está em qualquer almanaque juvenil E em quadrinhos ih a história da secretária jovem identificando o patrão grisalho com o progenitor na história o pai é progenitor Pensando bem foi melhor ela ficar curtindo a subversão porque quando estava naquela onda de explicar autoidentificação e transferência Blablabla Qual era mesmo o nome daquele psiquiatra Lião Você falava demais nele o francês Lacan Ah Esse Era esse Lacan e uma outra doutora americana eu também sabia o nome Enfim não interessa Agora virou antiedipiana somos todos mais ou menos loucos bobagem trancar alguns entende A loucura vem do sistema Acabar com o sistema para acabar com a doença E com isso ela continua pinoteando por aí Telefonou ontem está numa chácara podre de rica Tintas e vernizes Avisei que ia conversar sério e você me vem com Aninha Estou tirando meu passaporte digo mas Lorena já se enfurnou no banheiro A coleção dos sinos está na prateleira ao alcance da minha mão Toco o maior Som de cabrinhas Tiro minha corrente fora da gola e fico sacudindo o sininho que me deu Já vou Lia de Melo Schultz Já vou Veio metida na malha preta de bale e traz nas mãos a caneca de margaridas Vem como se estivesse no palco carregando uma ânfora quando veste essa malha anda como as bailarinas Ou anda sempre assim Tenho paixão por margaridinhas diz pondo a caneca na estante ao lado do retrato do pai Tinha tantas na fazenda Foram as flores que cobriram o caixão de Rômulo meu irmão Preciso ir buscar as roupelhas que sua mãezinha prometeu e ainda nem tive tempo ô como tenho camelado Levo pra mim as coisas de lã vou precisar Lena Argélia Inverno africano mas inverno Milhares de vezes já me perguntou se você é lésbica Dou risada estou tão contente Tudo tem graça A situação fica mais preta porque agora não posso exibir Miguel ô como as pessoas se impressionam com o sexo do próximo Deviam se impressionar com outras coisas Você inclusive Ela pega uma margarida pelo caule e vem se ajoelhar na minha frente Estende a margarida até minha boca Lia de Melo Schultz poderia me conceder uma entrevista Por obséquio fique mais perto do microfone Queria sua abalizada opinião sobre o homossexualismo feminino e masculino Antes me dá esse chá A água não está fervendo Você disse que chá não presta com água fervida anda corra Perfeito Agora o dinheiro Oriehnid não é Lorena Estava quase fervendo disse ela deixando cair o chá na chaleira Fico olhando as marcas de talco que seus pés deixaram no tapete deve ter saído há pouco do banho Mas quantos banhos toma por dia Falei ontem com meu pai ele mesmo atendeu o telefone minha mãe tinha saído Ele é fabuloso entende Pai não me faça perguntas explico tudo depois mas agora quero avisar que vou para o exterior Ele não disse nada Perguntei está ouvindo pai e ele respondeu estou pode continuar Vou precisar de dinheiro pra passagem de avião continuei E a passagem é cara você sabe Pode me dar o dinheiro Ele ficou um instante calado Tão calado entende A ligação estava próxima como se estivéssemos falando um em cada esquina eu quase podia ouvir a batida do seu coração Responda pai você pode me dar esse dinheiro Procuro na sacola o lenço onde foi parar essa merda de lenço Enxugo os olhos na barra da camisa Daí ele disse conte com a gente filha Vendo aí uma coisa e dou o dinheiro não se preocupe Mas no fim do mês Você pode esperar até o fim do mês Mando não só a passagem mas também uma sobra razoável não sei onde vai Sei que é caro Lorena já vem trazendo a bandeja e pela sua cara percebo que não ouviu uma só palavra Equilibrou a bandeja no almofadão Estou com o pressentimento que MN não vai me procurar nunca mais Daí eu desliguei e beijei minha mão porque queria beijar a mão dele Você acha mesmo Lião O quê Que MN não vai me procurar mais Você acha isso Despejo chá na xícara Ela espera o olhão pregado em mim Respiro tão fundo que devo ter chegado até o calcanhar Você começa a falar em casamento Ele está com medo da mulher entende Ela contornou o bule com as mãos tem sempre as mãos frias pés frios Mas não estou querendo que ele case comigo estou querendo que ele me procure É a mesma coisa Lena Depois do telefone você vai querer o casamento você só pensa em casamento Com a mãezinha oferecendo o coquetel Ela empurrou o prato para mais perto porque estou comendo biscoito e os farelos Mas esta menina só pensa na cinza ou no farelo que pode sujar o tapete É só isso que preocupa essa cabeça E também esse MN que deve ser uma bela besta ô Tenho agora vontade de dar urros porque ela já começou a dobrar a barra da minha calça todas as vezes que visto esta calça ela vem correndo e começa a dobrar a bendita barra Daqui a pouco vai buscar o pentinho branco Começo a rir Acho que você é bastante louca Lena Mas presta atenção já falei um monte de vezes e você não ouviu meu passaporte está quase pronto vou viajar por esses dias Voume embora ouviu isto Estou de partida Mas Lião assim tão depressa Vejo você aí falando mas pensei que fosse uma coisa remota você disse que já tirou o passaporte Exterior O lugar ainda é segredo segredíssimo Nem ao meu pai eu disse ainda mando a carta de lá da Argélia Lá espero por ele Ele quem O Miguel O Miguel vai ser solto vamos nos encontrar na Argélia desembarco em Casablanca E não peça mais detalhes os detalhes dou depois fique com isto por enquanto vou pra Argélia Argélia Mas que coisa maravilhosa Lião Porque não me disse antes Argélia imagine Lia de Melo Schultz vai para a Argélia E diz isso assim com essa tranqüilidade que maravilha Vamos ver já no mapa Remo meu irmão conhece bem aquilo lá ele mora em Cartago na Tunísia Ouço você falando num blablabla de viagem mas jamais pensei Foi aos pulos buscar o mapa Abriuo no tapete Uma gota da minha xícara caiu na Ásia mas na excitação ela não viu Está aqui Alger apontou e afastou o cabelo que despencou molemente como uma fita sobre o mapa Vizinha da Tunísia está vendo E Marrocos deste lado Veja o Saara Areia areia Se fosse para esperar MN eu iria correndo na ponta dos cascos atravessava o deserto e batia aqui nesta portinha toquetoque Dobra o mapamúndi Encho a boca de biscoitos ô esses sentimentalismos O problema é o seguinte só no fim do mês meu pai vai poder me dar o dinheiro Oriehnid Oriehnid O oriehnid entende Eu disse que estava perfeito mas estou a fim de ir antes as coisas se precipitaram Você poderia me emprestar No momento em que meu pai putz Seria um adiantamento Mas é lógico Lião Mãezinha depositou em meu nome uma fortuna o famoso carro esporte Não quero carro pelo menos por enquanto não faço a menor questão imagine Não vou emprestar à Ana Clara para os negócios dela Quanto é a passagem Vou saber agora Leve um cheque só assinado e bote lá a quantia que for mas com margem Lião pelo amor de Deus bastante margem para o seu começo Me mato se souber que você está passando fome ai meu Pai uma loucura essa sua viagem Estou elétrica E eu então Não durmo faz dias deito e fico minhocando Abro o livro de cheques enquanto ouço Lião ir triturando os biscoitos Vou perdêla Não vai voltar nunca mais vou perdêla Como perdi o Astronauta Meus olhos ficam nadando e neles a letra submerge o Leme por último tão tremido Quem vai agora me entrevistar seu nome Lorena Vaz Leme Universitária Universitária Virgem Viro a folha e assino em outro talão As lágrimas voltam às suas fontes obscuras Quero que você leve uma cruz aí na sua corrente promete que vai levar Vamos promete senão Agarroa pelos pulsos Está quase rasgando o cheque Mas que chantagem é essa Lorena Levo levo até uma dúzia de cruzes se fizer questão não tem problema Promete que vai deixar aí na corrente Prometo Ela me beija Está radiante Com seus gestos de gueixa vai buscar o chá e enche de novo minha xícara Um dia de repente você vai apertar essa cruz na mão Vou Tenho certeza Lião Tenho certeza Sua cuca está totalmente buleversada com política etcétera você entrou num moinho querida Meu diagnóstico fé adormecida Em estado latente Guardo o cheque no fundo da sacola onde vão se acumulando os elos da corrente da viagem Onde fica esse banco Acho ainda uma unha pra roer Perto lá do despachante Certo Quando abro os olhos dou com Lorena me observando Façolhe um carinho na cabeça Ah sim Deus Também fui anjo de procissão papahóstia fui tudo Acreditava com aquela força da infância um fervor Justamente por isso uma reconciliação entende Não sei explicar Lena mas assim que comecei a ler os jornais a tomar consciência do que se passava na minha cidade no mundo me deu tamanho ódio Fiquei uma fúria Sem dúvida ele existe eu pensava mas e só maldade Desse estado passei para o da ironia fiquei irônica mas e um bricoleur sabe o que é um bricoleur Na minha rua morava um baiano santeiro que pegava sobras de objetos fragmentos meio ao acaso sem plano juntava as peças com jeito ele tinha muito jeito e acabava formando suas maquininhas Comecei a achar que Deus era simplesmente isso um bricoleur de gentes Calava uma sobra aqui outra lá adiante e assim ia formando suas engenhocas Por disponibilidade entende Capricho Quando uma bricolage começa a funcionar quando bem ou mal se põe em movimento ele se desinteressa e já pega outra milhares de maquininhas humanas sem destinação se arrebentando por aí feito doidas Kaput Agora Lorena se deitou de costas abriu os braços e desatou a pedalar Recolho na bandeja os farelos que deixei cair no tapete Bastou falar em máquina e já se atrela à sua bicicleta de vento e entra na engrenagem Maquininhas humanas Lião Maquininhas de pedalar comer cagar foder Ela tombou de lado rindo Que horror meu ouvido quase explodiu querida Vou usar então palavras mais sutis chier baiser Não fica fino Quero saber se essa idéia é sua Que idéia Essa das maquininhas Eu leio Filosofia francesa Ela fez hô hô encolheuse toda agarrou os pés e rolou sobre os quadris como uma bolinha preta Podiase contar suas costelas sob a malha colante Recomeça a música na vitrola e que faz parte disto como o chão as paredes O miado de um gato se aguça próximo como se viesse aqui debaixo do tapete Sua testa se franze na expectativa deve estar pensando no Astronauta Ou em Deus Levantou a carinha perplexa Pedalou rolou e nem transpira E as maquininhas de sonhar Me explica agora isto e as maquininhas de sonhar Eu sou uma maquininha de sonho já pensou Mãezinha meu irmão Remo minhas tias um monte de gente tudo é maquininha Já meu irmão Rômulo e eu sempre fomos diferentes Principalmente ele Era tão especial aquele meu irmãozinho Está tudo atrasado listas de coisas que providenciar ainda hoje e aqui estou em divagações metafísicas vendo Lorena se exibir na sua malha preta Mas já não é quase a despedida Quantas vezes mais vou subir até este quarto Pego um último biscoito Sei que vou me lembrar dela como está agora sem poeira e sem suor olhando lá dentro do seu vago mundo Depois a gente se vê digo Mas então você acredita nEle Como um bricoleur não interessa mas acredita Outra hora vamos discutir esse assunto hoje não dá mesmo pé Acho apenas que você nunca será como eu e eu nunca serei como você não é simples E não é complicado Lorena acompanhoua até a porta Arrumoulhe a fralda da camisa desabando sobre a calça Você mesmo disse que não tem nunca mais lembra Não estamos vivas E se um dia lá em Cananéia eu for metralhada a las cinco en punto de la tarde E se você entrar para um convento em Espanha Lia desceu a escada rindo Quando olhou para trás Lorena fazia caretas dez A Gata dorme entre dois canteiros de margaridas a barrigona estalando ao sol Vou ver ainda esses gatinhos Mimosa gostava de parir na rede lembra Os gatinhos pelados e cegos se despencando por entre as franjas e ela recolhendo um por um na boca que virava pluma Miguel não quer saber de filhos pelo menos por enquanto Concordei é evidente mas tenho às vezes tanta vontade de me deitar como essa gata plena até à saciedade tão penetrada e compenetrada da sua gravidez que não tem no corpo lotado espaço sequer pra um fiapo de palha Daria a ele o nome de Ernesto Bom dia Gata Ela levanta a cabeça pedindo um afago e volta a dormir Mais dois gatos malhados cruzam o jardim que se transformou no reino dos gatos eles sabem que aqui não serão assassinados Contudo o Astronauta de Lorena fez seu nécessaire Esquerda Independente com colorações anárquicas Chuto os pedregulhos A idéia de que não vou ver mais este jardim me dá uma certa tristeza Nunca mais Não tem nunca mais no presente presente quer dizer imprevisto tudo eu posso ver agora Ou daqui a pouco quando for agora de novo Argélia tenho vontade de gritar Bonito nome para uma filha Argélia chegou Argélia está chamando Pena é que na Bahia logo transformam em Gegê a mania dos apelidos Se não tivesse a passagem iria nadando andando Rios montes vales montanhas e um oásis Um mês um ano Chego coberta de pó e sangue meu sapato dei pro homem do jipe que me recolheu na estrada minha blusa dei pro homem do bar que me deu de beber teve outro que me quis nua e fiquei nua e depois ele repartiu comigo o seu arroz falta muito ainda Falta Tem um deserto e depois do deserto um rio Que santa se deu ao barqueiro em troca da condução Minha mãe contou essa história da santa que encontrou o barqueiro malvado exigindo que ela se despisse e se desse pra ele Daí ela tirou o manto descalçou a sandália e se deu pra poder atravessar o rio Atravessou o rio e entrou no paraíso Se você acredita no homem você acredita em Deus disse Madre Alix Não sei explicar mas o que quero dizer é que acreditar no homem não me deixa tão feliz como acreditar nessas histórias absurdas que os homens contam Quanto mais simples e inocentes forem mais me envolvem com suas façanhas de heróis e santos vem mãe vem me encher de superstições que não entram na minha rotina mas também não esqueço vem de noite me cocar as costas e depois abrir meu cabelo a Ivanilda aquela porcalhona passou piolho pra classe inteira O avental cor de cafécomleite tinha um sabiá bordado no bolso Abro o portão O Corcel vermelho da mãezinha está estacionado em frente com o motorista dentro Ele lê um jornal Esperando Lorena pergunto Faz mais de meia hora Ela pediu o carro mas saiu e não voltou esqueceu vive no mundo da lua Acho que vou embora Vai Posso ir junto Tenho que pegar lá umas roupas Sento ao lado dele É um mulato grisalho e com jeito de quem espera não há meia hora mas há meio século Mundo da lua Minha avó falava muito em gente que vive no mundo da lua Os lunáticos Lorena não viu só um disco voador mas um esquadrão deles em formação no céu O senhor trabalha há muito tempo na família Chi até perdi a conta Carreguei a Loreninha no colo eu trabalhava antes no trator da fazenda Este homem por exemplo Se interessaria em entrar pro grupo Apoltronouse é claro Numa poltrona bem mais modesta do que a dos patrões mas poltrona Não quer nem saber E o filho Por acaso se interessaria O senhor tem filhos Uma menina da idade de vocês E um mais velho Que é que ele faz Trabalha no escritório da MercedesBenz Vai muito bem viu Meu falecido patrão tem um primo que é funcionário lá e encaminhou meu rapaz é um filho que só me dá alegria No fim do ano vai ser promovido e então se casa está noivo Fico olhando o bebezinho de plástico dependurado no espelhinho A carinha ri tão safada que não consigo me desviar dele A filha também dá alegria Ele demora na resposta Vejo sua boca se entortar Essa moda que vocês têm essa de liberdade Cismou de andar solta demais e não topo isso Agora inventou de estudar de novo Entrou num curso de madureza E isso não é bom Só sei que antes de fechar os olhos quero ver a garota casada é só o que peço a Deus Ver ela casada Garantida o senhor quer dizer Mas ela pode estudar ter uma profissão e se casar também não é mais garantido assim Se casar errado fica desempregada Mais velha com filhos entende O bebezinho safado se sacudiu de rir com o solavanco do carro Descubro que não é sua masturbação que me enoja mas sua carinha lustrosa satisfeita A Loreninha também fala assim mas vocês são de família rica podem ter esses luxos Minha filha é moça pobre e lugar de moça pobre é em casa com o marido com os filhos Estudar só serve pra atrapalhar a cabeça dela quando estiver lavando roupa no tanque As poltronas da sala cobertas com plástico A televisão A novela de gente rica e a novela de gente pobre os pobres mais sinceros mas com muitos problemas Solucionados parcialmente nos últimos capítulos onde a virtude é recompensada Embora dois dos cínicos fiquem impunes tinha gente demais O conformismo só marcado pela ambição de um carro novo e de uma TV maior a cores ô mas não era um esquema parecido que desejei há pouco quando vi a Gata Minha cara se tinge de vermelho quando me imagino puxando Miguel pra vitrina na liquidação de inverno Fechandoo gastando sua força e paciência com as quinquilharias do cotidiano recusando a palavra de ânimo no seu dia de desencanto presença negativa não Se for pra falhar como tantos falharam que os ventos soprem meu avião com toda força das suas bochechas pro mais agudo pico dos penhascos todos os passageiros salvos menos uma jovem estudante baiana que se precipitou no abismo Fim E se ela se casar com uma droga de homem e depois virar aí uma qualquer porque não sabe fazer outra coisa Já pensou nisso Me desculpe falar assim duro mas vai ter que prestar contas a Deus se começar com essa história de dizer case depressa filhinha porque senão seu paizinho não morre contente Se acreditar nela aposto como vai querer merecer essa confiança vai ser responsável Se não for é porque não tem caráter casada ou solteira ia dar mesmo em nada Fiz o discurso Saio e bato a porta do carro Ele está meio aturdido Mas nunca pensei Pense digo enfiando a cabeça na janela Ainda uma coisa se não quiser se moer num desastre arranque esse bebezinho do espelho Quem pôs ele aí Não sei explicar mas isso tem péssimos fluidos dois conhecidos tinham um mascote igual no cano um se despencou de uma ponte caiu no rio o outro se desbundou entre dois caminhões Eles e os carros foram pulverizados incêndio naufrágio tudo Só os bebezinhos de plástico foram encontrados rindo Intactos Estou rindo também quando entro no edifício Sim disse o copeiro entreabrindo a porta Lia ajeitou a pilha de livros debaixo do braço Sou a amiga da Lorena Vim buscar uma mala de roupas Ela não vem Não tenho idéia entende A mãe está me esperando Com um gesto evasivo ele apontou uma cadeira no vestíbulo penumbroso O olhar voltou a boiar indiferente na superfície meio estagnada dos olhos Fechou a porta Examinou Lia mais demoradamente Hesitou Não sei se ela vai poder receber hoje Mas telefonei ontem cedo disse que eu viesse Seu nome Lia Lia de Melo Schultz Schultz Meu pai é alemão sei falar alemão Ele deulhe as costas e saiu num andar silencioso sobre o mármore forrado de tapetes Por que os escravos do rei acabam mais cacas do que o próprio pensou Lia enfiando a fralda da camisa dentro da calça Tateou à procura do cinto Com quem estaria Apaziguou a cabeleira com as mãos Examinou o polegar inflamado e com a ponta da língua umedeceu a unha roída Na parede os altos espelhos refletindoa em todos os ângulos Como tomar um porre de si mesma Inclinouse rápida até ficar abaixo do nível das molduras Sentouse no tapete Como Narciso podia ser livre escravizado como estava à própria imagem Sorriu Lorena também gostava de espelhos igualzinha à mãe Como era a filosofia lorenense O estar era a estagnação do ser Se eu quiser ser não posso estar sequer no espelho acrescentou interessada no tapete castanhoclaro e azul Os olhos acostumados à penumbra viam melhor o desenho enrodilhado mas nítido o tigre perseguia a gazela até montála nos dois lances seguintes cravando garras e dentes em seu flanco de onde escorria um filete de sangue aguadamente azul Outras gazelas perseguidas e abocanhadas se multiplicavam na lã e seda da miniatura oriental Por mais que corressem como corriam estavam todas condenadas Alisou a cabeça espavorida da que saltava na moita Procurou no intrincado dos arabescos de folhas um caminho diferente que ela pudesse fazer para escapar do tigre iminente teria que sair fora do tapete A volúpia com que os homens criam e descriam a fatalidade em tudo quanto tocam E depois atribuem a responsabilidade aos deuses Você é livre soprou no ouvido em pânico da gazela Agora era livre Ainda era livre Cobriu com o livro o tigre caçador e deitouse de costas O lustre de pingentes de cristal rosado era outra fatalidade no teto Também o relógio de parede dentro do longo esquife dourado e preto O pêndulo tinha a forma de uma lira mas os ponteiros eram setas agressivas Só valem os números que apontamos avisavam empoladas espetando o alvo O som enérgico do coração mecânico batendo dentro do esquife Que coisa mágica o tempo Tempo da Argélia De repente ficou o tempo da Argélia Como ia ser Imprevisão Aventura Certo só o desejo de luta De sobrevivência Certo o diário Quero que todos saibam que ninguém no mundo amou mais seu povo e sua pátria escreveria na introdução Palavras já sem sumo de tão chupadas pelos políticos nas campanhas Pois se serviria delas para exprimir o sentimento novo Vivo Conversar muito com Miguel sobre isto se a Nova Esquerda não se unisse aos outros grupos acabariam todos tão multiplicados e enfraquecidos que quando se tentasse uma linguagem comum ninguém mais se entenderia A igreja já está vivendo sua Torre de Babel lembrou ela batendo a cinza do cigarro nos olhos do tigre Vamos seguir o mesmo caminho Peço um tijolo e me atiram uma trave Fracionados repartidos Como organizar as massas assim perplexos Soprou o rolinho de cinza que foi se desfazendo no tapete até desaparecer Esmagou a brasa do cigarro na sola da alpargata azul Estavam como aquelas gazelas com destinação marcada pulava uma duas e a terceira era fisgada no pescoço mais duas e o sangue correndo azulado Não exclamou virandose de braços O diário Seria num estilo simples como o das notas e lembretes do caderno Abriuo ao acaso Teve dificuldade de ler a própria letra grande desarticulada Hoje dia 12 Lorena disse que era dia de banho Entrei no chuveiro dela que quase me pelou porque a torneira de água fria estava com defeito Em seguida me ofereceu almoço quer dizer cenouras cruas um ovo cozido e um copo de leite Se não me atirasse às bananas devo ter comido meia dúzia não poderia ter feito as milhares de coisas que fiz Na saída encontrei com Ana Deprimente que ia chegando deprimidíssima tinha tido uma conversa com Madre Alix que deve estar perdendo a paciência Falou baixo com Lorena queria dinheiro emprestado Depois pediu emprestado um suéter E me disse que estava com angústia o que não é novidade ou está empolgada ou a fossa Por que aquele seu olhar meio estrábico me dá vertigens Depois de pegar o passaporte Argélia Argélia fui escritório e lá encontrei Pedro e Elisabete de plantão Estão se amando quer dizer Pedro está apaixonadíssimo mas ela me parece muito cerebral E as pessoas assim cerebrais se apaixonam um modo diferente dos passionais como Pedro e eu Ela está liderando um movimento feminista e redigia um artigo sobre o trabalho da mulher no nosso mercado Por que me comovo quando penso que Pedro vai sofrer Tem que sofrer merda Beber querosene e gasolina porque é assim que se firma uma estrutura penso Mas no coração fico sentimental só me falta dizer como Lorena coitadinho De lá fim ao apartamento do Bugre Já estavam ouvindo música o Dil a Ivone e o Eliezer Chico Buarque e Caetano Chegou o Bugre e nosotros começamos o trabalho Quatro horas cerradas de estudo extremamente frutífero Do economicismo ao idealismo filosófico do idealismo filosófico à crise da física no início do século dela a Hegel tudo isso passando pelos turtuosos caminhos da insensatez da ignorância e do amor pelo Brasil Miguel é um cerebral pensou Lia fechando o caderno Mas isso não era bom Fazia média com ela que era dos acessos na hora vulcânica ao menos uma cabeça precisava ficar raciocinando Ou não Burra sou eu se me pegam com estas notas Que é que eu tenho que andar com isto Ela acabou de sair do banho já vai atender avisou a empregada de avental corderosa entrando no vestíbulo Aparou no cinzeiro o cigarro de Lia já apagado Entra aqui na sala Loreninha não vem Mas é só isso que todo mundo pergunta pensou Lia seguindo a empregada Empilhou os livros no tapete da sala mais espaçosa e mais clara Não vi Lorena hoje Volto outra hora não tem problema Mas ela quer ver você espera só um pouquinho É que hoje esta casa está tinindo A pobre chora sem parar o olho já está inchado assim Mas o que aconteceu Morreu o Doutor Francis Quem é o Doutor Francis Pois é o médico que trata dos nervos dela o enterro foi ontem ela nem sabia de nada Toma um refresco Ou prefere um uísque Um pouco de uísque Puro Mas escuta só vim buscar uma mala de roupas você não pode resolver Espera garota Você entra um pouco ela se distrai Sem muito entusiasmo Lia recebeu o copo No primeiro estágio o copeiro de cara estagnada e o vestíbulo penumbroso Agora a sala mais importante com a empregadinha descontraída a oferecer bebidas Sentia se uma visitante em ascensão Aproximouse do retrato a óleo dominando todo um lado da parede A mãezinha remoçada e revivida com o sangue de alguma jugular recente Lorena adora fitas de vampiro pois ali estava a mãe num esgazeante vestidocamisola a cara branquíssima os olhos sepulcros Até os cabelos eram densos como dois coágulos negros apertando a testa alta Condessa Drácula Você gosta a empregada quis saber sorrindo e escondendo nas mãos nos bolsos do avental corderosa Custou uma fortuna esse retrato É inquietante E faz dois dias que ele não aparece Ainda hoje três mulheres telefonaram perguntando o doutor está imitou a empregada aflautando a voz Também pode ser o filho dela Mas ele é doutor provoco A moça riu escondendo a boca no avental A cara tem qualquer coisa do bebezinho de plástico Doutor em gostosura menina Encho a boca de amêndoas No banquete das inconveniências essa serva fiel se sentará na cabeceira Experimento na ponta do dedo o canino azul do dragão de porcelana chinesa eriçado na mesa de mármore Na mesa menor a arvorezinha de prata com quatro miniaturas de esmalte pendendo dos galhos como frutos ovalados o retratinho de um homem moreno e pálido com a expressão de Lorena quando em fase mística No galho paralelo a mãe de chapelão de palha empunhando a tesoura de jardinagem um buquê de jasmins no peito Logo abaixo num galho menor o retratinho de Lorena menininha rindo sua risadinha hihihi No ramo vizinho carrancudo o rapazinho de topete Rômulo ou Remo Só os quatro na árvore E o outro menino Vamos ela está chamando avisou a empregada Formalizou se ao segundo toque de uma remota campainha Por aí não garota essa porta vai dar no escritório Você não esteve aqui antes Está tudo mudado lá sei Corredores e salas até o túnel ir se apertando mais secreto mais escuro O vestíbulo dava para um quarto trevoso Quarto Pela primeira vez entrava numa verdadeira alcova onde não vi janelas mas cortinas e planejamentos de um dossel lânguido sustentado por quatro colunetas Aproximeime Os panos desciam em pregas frouxas compondo uma espécie de casulo vaporoso envolvendo a cama com espaldar de palhinha dourada Mornidão de perfumes Meio sumida entre os lençóis e bordados ela descansava sobre os travesseiros altos dois tampões de algodão nos olhos A luz do abajur de cabeceira estava acesa O sol explodia lá fora mas ali era noite A voz meio úmida algodoada Senta filha E a Loreninha Vem vindo por aí Hoje preciso muito dela Hoje preciso de todos vocês sabe o que aconteceu não sabe Era meu amigo meu irmão Metade de mim mesma morreu com ele Oh Deus Posso voltar depois mãezinha Não tem problema Com a pontas dos dedos ela tirou os algodões dos olhos Deixouos na salva de prata ao lado do frasco de águaderosas Abriu as pálpebras com esforço Gosto tanto que me chame assim de mãezinha É que estou perdendo tudo as pessoas todas morrendo sumindo E você chega e diz mãezinha Sempre gostei de você Lia Eu dizia à Loreninha fico tranqüila quando lembro que você tem uma amiga assim por perto Fico rindo por dentro Tranqüila Fungo e espirro porque não posso enxugar o nariz no lenço que não trouxe ô esse perfume me dá alergia Peguei um resfriado monstro Que dor pensar que ele está morto que aquele riso aquele olhar tão forte e ao mesmo tempo tão doce Então ele me perguntava li eu respondia no mesmo tom então Doutor Francis Oh Deus meu amigo querido acima de tudo meu amigo Estou de novo sozinha Completamente sozinha Está chorando e eu procuro e não encontro nada o que dizer enquanto ela chora silenciosamente Estava de terninho branco quando nos vimos um terno de flanela que Lorena chamaria de impecável Era domingo fora levar metade de um peru assado com nozes e que Ana e eu devoramos Lorena beliscou uma asinha Saía de uma plástica eufórica Mas é esta aquela fagueira senhora Derreteuse como sorvete de chocolate e creme mais creme do que chocolate Recuo na banqueta agora ela procura ver a empregada que eslava atrás de mim e não esta mais A senhora quer alguma coisa A Bila sumiu Aperte ali aquela campainha quatro empregados e nenhum para atender quando chamo Ficam os quatro conversando lá dentro pode apertar mais não ouvem Oh Deus Ele me parecia tão firme tão certo está me ouvindo Tudo podia ruir desabar Ele não Como se fosse imortal Tão fino e ao mesmo tempo autoritário poderoso Áspero e ao mesmo tempo gentil Só uma vez vi um homem igual e assim mesmo num romance um romance de Cronin O personagem era como ele mas existe gente igual O Doutor Francis Nem vi ele morto ninguém me avisou Tinha jogado de tarde uma partida de tênis jogava tênis maravilhosamente chegou a disputar campeonatos Posso imaginá lo com a raquete na mão os movimentos tão enérgicos elásticos ele inteiro tinha tamanha energia e elasticidade Oh Deus oh Deus Meu querido amigo e então ele me perguntava E então Doutor Francis As lágrimas correm correm na cara esticada sem o menor vinco Mas as mãos são tortuosas como raízes expostas de uma planta arrancada da terra ô vontade de estar em qualquer outra parte menos aqui Pensar em Miguel Miguel rima com Argel rima pobre mas tão rica estou indo Mar Mediterrâneo República Argeliana Democrática e Popular O mar que cor tem esse mar A senhora vai arranjar outro analista não tem problema Com dinheiro a senhora pode se tratar com o maior analista do mundo Sete anos Sete anos Voltei à estaca zero tudo o que disse e fiz tudo se perdeu como num naufrágio Com a morte dele voltei à estaca zero como se oh Deus como posso me conformar Como posso me conformar Mais desconformado deve estar ele a esta hora penso e aproveito para enxugar o nariz na fralda ela fechou os olhos Não vai dar mais tempo o escritório fica pra amanhã Telefono pro Bugre explico e se ele puder deixar o recado com Mineiro Dom esse telefonema resolve Um dia embananado Loreninha podia lei vindo segurar uma ponta não podia Me dei inteira a ele numa bandeja passado presente Ficou com tudo Com a morte me devolve tudo outra vez Aquelas pedras fui tirando as pedras uma a uma tanta pedra amontoada em cima de mim aqui no meu peito fui tirando devagarinho ele me animava vamos dizia vamos moça Respira Às vezes me chamava assim moça Que é isso moça Moça repetiu tapando a boca que transbordou de lágrimas Agora as pedras caíram aqui de novo mais pesadas do que antes voltaram aumentadas Como posso procurar um estranho que não sabe de coisa nenhuma repetir tudo outra vez Sete anos Pelo meu andar já sabia como eu estava às vezes eu decidia hoje vou blefar quero me fazer de curada estou ótima Doutor Francis hoje estou ótima Ele só nu olhava aquele olhar penetrante que ia até lá no fundo Então eu caía em prantos porque era exatamente isso o que queria fazer chorar Voltei à estaca zero Queria só saber com quem está meu Grau Zero da Escritura que nem li Maiakovski e Lorca dou ao Bugre Malraux a Beauvoir e Satre dou ao Pedro ele vai vibrar Eliezer fica com os nacionais todos curtir o indianismo até a última pena é preciso é preciso A historia da filosofia e os dicionários ficam com Loreninha A psicologia com Ana Clara quem sabe ainda desencuca e faz esse curso Ana Turva Até Madre Alix que era o próprio fiel da balança já está meio neurotizada neurose é contagiante Como foco cm palha seca queima tudo Deus sabe que se não fosse ele eu já teria me atirado daquela janela Olhei na direção que apontou só agora conseguia visualizar uma janela por detrás dos panejamentos Lorena também faz o estilo concha mas gosta de ar Como uma cristã pode falar assim A senhora não é cristã As lágrimas recomeçaram mais espaçadas descendo dos cantos dos olhos e se infiltrando nos cabelos Foi meu pai meu irmão meu amante Amante espiritual está me compreendendo não Perfeitamente Tudo o que tive e perdi Fiquei pensando o terrível da vida é que as coisas acabam Todas as coisas acabam Na minha fazenda tinha um moedor de cana as crianças adoravam garapa Roberto meu marido gostava ele mesmo de escolher a cana estavam verdinha tão viçosa entrava viva e saía do outro lado aquele bagaço seco esfarelado Nem uma gota de suco só bagaço A vida faz assim com a gente minha querida Igualzinho E as pessoas ainda ajudam a nos triturar Me pergunto como é que ela pôde ser tão cruel Quem Quem foi cruel Aquele olho de víbora Víbora Quem mãezinha Tirou um lenço de debaixo do travesseiro e ficou com ele pendendo das pontas dos dedos Um lenço transparente e mole como os panos do dossel Você é baiana não Lia Acho que por isso é tão fina os baianos são sobretudo finos Também estuda Direito querida Ciências Sociais Ah é verdade Ciências Sociais Fico satisfeita de pensar que é amiga de Loreninha Minha filhinha querida Tão pura tão honesta e sensível Tão fina Não é por ser minha filha mas sei que é difícil encontrar uma menina assim Quando fiz essa loucura de me casar outra vez quando me apaixonei por esse homem que me tem feito chorar lágrimas de sangue perguntei a ela qual é sua opinião filhinha Então ela tomou minhas mãos entre as suas e com aquela doçura que você conhece respondeu o que mãezinha fizer está bem feito Não sabe nem a metade do que tem me acontecido não quero que se machuque que sofra Esse namorado dela o atual você conhece Ligeiramente Fiquei com a impressão de que ele é casado uma referência qualquer que Loreninha fez não sei bem Li na minha adolescência um livro encantador ninguém mais lê esse livro mas a geração da minha mãe se deliciou com ele As Meninas Exemplares da Condessa de Ségur você já ouviu falar Quando vejo Loreninha com seu jeito de menina antiga penso nesse livro suspirou e cobriu os olhos com o lenço Dessa outra amiga de vocês não gosto muito já que estamos na hora da verdade deixa que eu diga essa ruiva estava outro dia numa boate com uma roda esquisitíssima Bonita sem dúvida mas tão vulgar Como é que chama mesmo Ana Clara Isso Ana Clara É uma boa moça digo e sacudo minha perna que dormiu Me levanto me sento Mas por que a enfermeira foi cruel A senhora estava falando sobre a enfermeira lembra Ela arrepanhou o lençol A alça de renda da camisola resvalou e o seio se descobriu Uma orquídea preta e murcha ô será que ainda é dia lá fora A enfermeira dele a Estela Uma verdadeira víbora Cheguei tão animada no meu vestido azulturquesa ele adora essa cor cheguei antes da hora e pensando que essa seria uma sessão mais leve sem queixa sem choro Com vontade de fazêlo rir um pouco comigo de dizer coisas divertidas Você já fez análise Antes de entrar a gente pensa sempre nas coisas acumuladas que vai dizer e depois não diz aquelas diz outras muda tudo Mas dessa vez vai ser como planejei chega de lamúrias Tem a saleta onde a gente se arruma antes e depois da sessão principalmente depois Quantos lenços de papel não tirei daquela caixa para enxugar estes olhos quantos Sempre levo lenço na bolsa mas às vezes esqueço Perco Fico esperando que me conte essa história da enfermeira mas pelo visto vai ser como profetizava Dona Lã comadre da minha mãe e cartomante aposentada futuro longo e alegria distante Na mesa de toalete está o retrato dele de costeletas e cachimbo A pose é de galã soltando sua meia baforada de fumaça Que absurdo uma mulher assim velha se desbundar por um tipo desses O que adiantou essa análise Sete anos E ainda por cima se apaixona pelo médico que desencarnou e não resolveu o problema está inteiro aí Queria morrer Se pudesse morrer sem deixar o menor vestígio odeio a idéia de velório das pessoas nos pegarem assim despreparadas Só os caixões dos jovens deviam ficar abertos Dos jovens e dos vampiros digo querendo aliviar a atmosfera Não consegui O teto baixo não oferece a menor visibilidade Por motivos de ordem técnica começa a comissária de bordo com aquela voz sorridente na hora em que o avião perde metade da asa esquerda Então a gente aperta o cinto medo medo Sou bicho da terra e vou ter que subir naquilo Vou de fogo se o troço explode não quero nem saber Ora apertar o cinto Tenho horror das pessoas que entram sem bater que vêm por detrás para fazer surpresa horror de estar desprevenida e é isso que a morte faz não dá tempo Considero uma traição Tem qualquer coisa de sinistro essa cara sem vinco mas não parece uma daquelas cabeças reduzidas espetada num pau Uma múmia entende E a enfermeira Não tinha uma enfermeira Agora preciso saber o que aconteceu com essa enfermeira também a Lorena tem o costume de deixar o assunto pela metade Por que a enfermeira foi cruel Sempre teve ódio de mim sempre Uma mulher horrenda não sabe se vestir se pentear uma víbora que resolve ficar velha que culpa tenho se aparento menos idade Se gosto de me enfeitar Se mordia de ciúme de mim amava Doutor Francis agora tenho certeza amava Doutor Francis apaixonadamente acho que ficou radiante com a morte dele nem meu nem de ninguém mais Não é uma vitória Por entre as almofadas do canapé vislumbro uma caixa dourada bombons Estou quase babando quando estendo a mão Posso Cheguei de azulturquesa tão leve quase feliz Me olhei no espelho e achei que estava com a idade exata da minha cara fiz uma plástica mas sei que o importante é ter por dentro a idade que está fora ensaiei o que ia dizer Doutor Francis hoje amanheci tão bom Como se durante a noite tivesse vindo uma fada uma dessas fadas das histórias antigas fadinha boa com sua varinha de condão não sofra mais querida disse tocando com a varinha na minha cabeça não sofra mais não sofra mais ficou repetindo e nessa hora acordei e me senti diferente Estou diferente Doutor Francis diferente Nenhum ressentimento por Mieux que fique com suas traições suas mesquinharias não era melhor nos despedirmos simplesmente como duas pessoas educadas cuja convivência se tornou insuportável Apenas isso Nenhum rancor nenhuma mágoa não é melhor assim É mais moço que procure alguém da sua idade o que já fez antes de vivermos juntos Pois que prossiga e me deixe só estou me preparando para a solidão Olha nos meus olhos Doutor Francis juro que não estou blefando acordei respirando até o fundo o peito aberto e a cabeça erguida a cabeça que a fada tocou com sua varinha lembra Não sofra mais querida não sofra mais Não quero prometer nada Doutor Francis mas acho que hoje se inicia uma nova fase estou ótima Ou quase Ou quase repeti para mim mesma enquanto passava a escova no cabelo e rindo para o espelho fazendo a cara que ia fazer quando entrasse então Doutor Francis Ouvi o passo dela vindo por detrás dá sempre um jeito de contornar e ficar atrás da gente o passo de borracha aquele sapato de enfermeira Me assustei quando ouvi sua fala bem no meu ombro mas o que a senhora veio fazer aqui Fiquei olhando Mas como Será que ela enlouqueceu Como me pergunta uma coisa dessas o que eu vim fazer Mas a senhora esqueceu Pois hoje não tenho sessão Fiquei meio em pânico sou distraída quer ver que me enganei de dia Hoje não é terçafeira Foi aí que me olhou demorado e sorriu juro que sorriu quando botou a mão no meu ombro mas o Doutor Francis morreu a senhora ainda não sabe Ele morreu Foi enterrado ontem mesmo diz que teve uma parada cardíaca mas como a senhora não foi avisada O enterro foi de tardinha Peguei minha bolsa e fui saindo nem esperei pelo elevador fui descendo a escada com aquela voz me acompanhando o enterro foi de tardinha De tardinha oh Deus Me pergunto como é possível tanta crueldade Desembrulho o terceiro bombom que também é de licor além da invenção do durex que considero uma das mais importantes invenções do século tem esta do bombom com uma cereja dentro Não sei explicar mãezinha mas não vejo onde está a agressão Ele não morreu Se morreu ela precisava dizer Não foi hábil é evidente mas não vejo porque cruel Excelente ocasião para me esfregar na cara as amantes escolheu a ocasião a dedo ainda hoje minha copeira atendeu dois telefonemas a mais ousada disse o nome Karin Quer deixar recado perguntou e a prostitutazinha riu ah ah ah só pessoalmente Queria que ele me aparecesse agora para lhe pedir que laça Suas malas faça imediatamente suas malas e saia da minha casa Suma do meu horizonte seu cafajeste No começo presentinhos flores como me iludiu com suas gentilezas não podia haver um homem mais fino Quis abrir uma loja de decoração dei a loja Inventou depois aquela agência de publicidade mais dinheiro gastei o que podia e o que não podia Cínico Cafajeste Este ao invés da cereja tem uma uva atolada no creme rosado E não sei mesmo por que me vem a frase de um político genial governar é prender Muito fino como diria aí a mãezinha Faço uma bolota com os papéis dourados Respiro corajosamente Vamos lá Mas seus problemas são reais Se é uma dor de dente o que é que o analista pode fazer Quero estudar estruturalismo eu não entendo porque sou uma estúpida em que o médico vai me ajudar Quase digo se seu problema é a velhice e se a velhice é incurável entende Não entendeu Ficou me olhando lá do fundo dos seus travesseiros mas não vai entender nunca que está velha e nenhum analista do mundo vai fazêla rejuvenescer O papel desse Doutor Francis era ajudála a aceitar a velhice Ou manter acesa a tal chama deixandose amar inclusive como o personagem do romance espiritualidades Sei lá já estou ficando exausta Outro caminho A senhora não tem fé em Deus Se tem fé mais importante do que Doutor Francis acima de tudo está Deus Não sei explicar mas de que adianta ter Deus se numa hora difícil a senhora não se sustenta nele Ela sorriu Gostaria de entrar para um convento Acho que seria feliz num convento ficaria lá quietinha olhando o mundo lá longe envelhecendo em paz sem testemunhas tenho pavor das testemunhas descobri que o que mais me apavora tanto na vida como na morte são as testemunhas Sempre estou encontrando alguém que se lembra de mim nesta ou naquela data as testemunhas são tão atentas uma memória Por que as pessoas têm tanta memória Eu estava num jantar tão alegrinha e veio alguém que me olhou olhou e começou com aquela conversa que me arrepia inteira acho que você não está mais se lembrando de mim Oh Deus quando ouço esse começo já fico gelada começa assim aposto que você não está se lembrando Faço aquela cara vaga disfarço mas não adianta a testemunha é um bico voraz me arrancando os fiapos de carne tuquetuque não vai deixar a presa uma voracidade não foi em A data Antes de mais nada vem a bendita data completa Até a hora Esse queria que eu me lembrasse dele no meu baile de debutante que coincidiu com meu aniversário lembra Digo depressa que lembro ih como não Lembro de tudo já sei Mas ele estava insaciável foi reproduzindo a festa como se tivesse sido ontem dançamos de cara junta Siorm Weather na época essa música era obrigatória como era obrigatório a gente dançar de cara junta lembra Mieux ria de pura felicidade estava longe mas quando pressentiu o assunto veio correndo Tinha um enorme bolo na mesa um bolo todo branco está lembrada Nem sei mais desse bolo mas ele sabe um bolo com pombinhas de açúcarcande voando sobre um laço de cetim com as pontas caindo até o chão para cada convidado você ofereceu uma pombinha eram quinze você fazia quinze anos lembra Juro que eu podia ouvir o barulho das cabeças em redor fazendo os cálculos rápidos se nessa data ela fez quinze anos hoje então Oh Deus oh Deus Tive que beber quase meia garrafa de uísque para poder ficar na festa até o fim falando e rindo rindo para aquele monstro imbecil que ainda veio com cara de Mariaquequebrouopote me perguntar se por acaso não tinha cometido uma indiscrição você não ficou zangada ficou Absolutamente te adoro vamos dançar face to face como naquela noite eu disse e minha vontade era enfiar a cara dele na lareira que estava acesa ficasse face to face com o fogo oh Deus que horror que horror Me levanto Quero fazer pipi andar beber água comer sal ô a sessão comigo foi dupla Começo a perceber porque eles cobram tanto Kotig O banheiro Vou entrar um instante A sala de banho lilás resplandece como se a noite do quarto tivesse se estendido acesa até ali Tenho que deixar a porta aberta porque ela continua falando enquanto luto com o zíper que me belisca a pele Do vaso perdão Lorena do trono fico vendo os objetos cintilantes na mesa de mármore e que lembram os da concha rosada sais coloridos em frascos de cristal arminhos potes de creme argolas douradas onde estão as toalhas com um grande M bordado em roxo o L da Lena é corde rosa A voz continua mais pesada e rápida Me obrigava a sair quase todas as noites festas festas você não quer ir Então vou sozinho Eu não queria ir mas ia mais vestidos mais cabeleireiros desde cedo me enfiava no cabeleireiro andava com o couro cabeludo ardendo de tanta tintura tanto penteado descansei um pouco quando comprei cinco perucas era mudar a peruca pintar a cara e sair correndo atrás dele boates jantares coquetéis vernissages cismou de investir em quadros nunca teve a menor cultura mas se achava o máximo esteve a ponto de abrir uma galeria Nos intervalos as verdadeiras multidões de amigos dele conhecia hoje um casal e amanhã o casal já estava instalado aqui em casa drinquinhos programinhas Meu olho fechando minha cara caindo mas precisamos receber tanto assim Mieux Precisamos minha profissão não é decorador Depois a profissão de publicitário também exigia contactos contactos e naturalmente a profissão que viria em seguida de marchand oh Deus Oh Deus Mas o que tem você ele perguntava Está cansada Não absolutamente estou ótima eu respondia querendo me deitar em cima da mesa de exausta comecei a tomar estimulantes para agüentar de olho aberto as noitadas foi ótimo foi ótimo Ele dava aquele risinho como conheço aquele risinho foi bem divertido não foi Você não gostou Tudo de propósito Pura crueldade mental minha querida Sabe o que é crueldade mental Destapo o frasco com arminhos de pó Destapo o frasco de perfume todo espelhado coleciona perfumes como a filha coleciona caixinhas sinos Crueldade mental Era criança quando ouvi a avó contar do marido que insistia pra mulher que usava dentadura dupla comer goiabada de cascão dizendo que podia comer era molinha Hoje escrevo comprido lá pra casa quanto mais conheço os pais dos outros mais amo aqueles dois meu alemão com minha baiana ô mãe uma carta como você gosta bem ajuizada e pedindo a bênção Andam se moendo com minha militância não quero mais isso direi que serão andanças ulíssicas ele leu Ulisses e acha que as ciganagens dos jovens têm qualquer coisa de heroísmo na falta de cálculo no desprendimento ô pai te amo mas nada de amor mórbido um amor do peito pra cima Nazista como poderia ter sido comunista passional puro capaz de vibrar por uma farda um hino Um alemão bastante louco Quando descobriu que não era aquilo que imaginara correu tanto que veio parar em Salvador sarava meu irmão Ela ainda fala sobre crueldade mental com uma história onde entra uma taturana Preciso ir entende E a mala Espera querida toma antes um chá aperta outra vez a campainha mas o que eles fazem lá no fundo Quatro empregados suspirou pegando o espelho que estava encoberto pelo lençol Olhouse apertando os lábios como se fosse beijar a própria imagem E a Loreninha Tínhamos combinado ir na Dona Guiomar mas parece que está presa não sei porque a polícia persegue essa pobre gente Nunca falhou previu a ida de Remo meu filho para a África do Norte previu a morte do Doutor Francis a senhora vai perder uma pessoa muito querida me avisou Previu a tentação de Mieux previu tudo Se a Lucrécia ainda vivesse podia me benzer era uma espírita acho que foi escrava Quer dizer que a mala eu levo hoje Sem dúvida querida a Bila arrumou tudo tem muita roupa de inverno Mieux não presta mas a roupa dele é muito fina Você não sabe guiar Leva o carro e deixa lá com Loreninha quem sabe ela resolve vir Minha filhinha querida Foi uma criança tão educada tão gentil Colecionava pedrinhas folhas Estava sempre salvando algum bichinho que caía no rio Ela ainda é virgem Ainda Fico tão feliz por saber que continua pura murmurou com uma expressão de beatitude Mas logo a testa se franziu A voz ficou embuçada Você não acha que ela se interessa pouco por sexo Tenho às vezes tanto medo está me compreendendo Aumentou tanto ultimamente você sabe essas moças Mastigo mais um bombom Não quero ser rude mãezinha mas acho completamente absurdo se preocupar com isso A senhora falou em crueldade mental Olha aí a crueldade máxima a mãe ficar se preocupando se o filho ou filha é ou não homossexual Entendo que se aflija com droga e etcétera mas com o sexo do próximo Cuide do próprio e já faz muito me desculpe mas fico uma vara com qualquer intromissão na zona sul do outro Lorena chama de zona sul A norte já é tão atingida tão bombardeada mas por que as pessoas não se libertam e deixam as outras livres Um preconceito tão odiento quanto o racial ou religioso A gente tem que amar o próximo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse Digo e penso imediatamente em Ana Clara Tenho que amála Difícil sim fico impaciente irritada Mas sou eu a cristã Mulher sem homem acaba tão complexada tão infeliz Com homem também tenho ganas de dizerlhe e darlhe o capulho na mão Complexada porque todo mundo fica enchendo a sacola Não é o caso da Lorena não estou mais pensando nela estou pensando só nisto já é tão difícil crescer ser amado por aquele que a gente ama E tem que vir alguém determinar o sexo do amor Mas e você Lia Ama alguém Se não quiser não responda Estou rindo quando respondo estava demorando Não tem problema comigo entende Tenho um amante ele precisa de mim e eu dele agora está viajando mas logo a gente se encontra Ficou me olhando lá de longe sacudindo de leve o lenço como se espantasse moscas Passou águadetoalete na testa no pescoço Acho que morreria de desgosto se meu filho Remo ou Loreninha Quero um enterro bem despojado bem simples Ela sabe até o vestido que quero vestir A maquilagem que vai fazer combinamos até os pormenores O caixão só ficará aberto se eu tiver muito bem caso contrário ninguém terá o prazer de me ver morta Antes eu ficava em pânico com a idéia de morrer e ele ia bisbilhotar minha papelada aquela papelada amarela que odeio na certidão de óbito vem a idade vem tudo Só de imaginar a cara radiante que ele ia fazer quando descobrisse minha idade rondou sempre querendo saber não deixei Nunca deixei Na morte eu ficaria indefesa está me compreendendo Agora posso morrer sem medo minha filhinha querida cuidará de tudo aquele perverso não vai mais me humilhar Entrou a empregada numa lufada de ar Respirei como um condenado na câmara de gás Faz horas que estou chamando Está bem já sei já sei traga depressa um chá avisou sacudindo o lenço na direção da moça Voltouse para mim O novo flerte da Loreninha por acaso não é casado Não tenho a menor idéia É estranho vocês são tão amigas murmurou e cobriu os olhos com as mãos Tão estranho tudo não é mesmo Por que será que diante do Doutor Francis eu não tinha vergonha da velhice Não tinha nenhuma vergonha queria parecer bonita sim elegante mas não tinha essa vergonha esse pudor que tenho diante dos outros Com certas pessoas tenho vontade de me esconder como se tivesse cometido um crime escondo a velhice como um criminoso esconde a vítima tamanho pânico que descubram que espalhem Não é estranho Certas pessoas me fazem ter mais vergonha ainda como se estivesse nua numa vitrina Já com você fico completamente à vontade com você com Loreninha Minha filhinha querida Perdi tanta coisa mas ganhei minha filha agora posso voltar e morar com ela Mas ela vai morar com a senhora Voltar pra debaixo da sua casa Já sei a senhora é mãe perfeita a minha também mas por isso mesmo tem que cortar o cordão umbilical entende Senão ele enrola no pescoço da gente acaba estrangulando Castrando Me desculpe mas acho essa a idéia mais errada do mundo Se o filho está estruturado tem que voar fora do ninho o mais depressa possível pra não acabar aquela coisa que a gente conhece ô acho que estou gastando cuspe Desço as mangas da blusa Vai vampirizar a filha que já tem o sangue mais fraco do que o das gazelinhas do tapete Este apartamento é enorme querida Ficará numa ala só dela Por que não vem também morar aqui Eu teria a maior alegria Nem respondo Ai meu Pai como diz ela na aflição Olho com maior simpatia o retrato do galã com seu cachimbo e meia baforada Aquela arvorezinha de retratos o menino é Rômulo ou Remo Remo Rômulo não podia estar ali Não Morreu nenenzinho querida Nenenzinho Não tinha nem um mês não chegou nem a isso O médico disse que ele não tinha viabilidade Um sopro no coração Levanteime com uma vontade maluca de puxar aqueles panos arrancar tudo e fazer entrar a luz do dia Mas ainda era dia Um momento o Remo deu um tiro nele enquanto brincavam não foi isso Um tiro no peito teria uns doze anos não foi isso que aconteceu Milhares de vezes Lorena contou essa história com detalhes ele era alourado Vestia uma camisa vermelha vocês moravam na fazenda Ela está sorrindo dolorida olhando o teto Minha pobre filhinha Nem conheceu o irmão é a caçulaEra menininha ainda quando começou a inventar isso primeiro só aos empregados que vinham me perguntar eu nem negava disfarçava que mal tinha Continuou falando na escola nas festas o caso começou a ficar mais sério oh Deus o malestar que eu sentia quando queriam saber se Não queria que pensassem que ela estivesse mentindo foi sempre uma criança tão verdadeira Os médicos nos acalmaram que não tinha essa gravidade ia passar com o tempo imaginação infantil rica demais quem sabe na adolescência Não passou Roberto foi sempre tão confiante tão seguro me tranqüilizava não é nada Falei com Doutor Francis teve uma entrevista com Loreninha achoua inteligente sensível Está me compreendendo querida Não deu também maior importância Sinto um certo enjôo será do chocolate Aperto o estômago e fico olhando o tapete este é liso Cordemel Mas o que é isso Então toda aquela história que me contava tanta dor ô Lorena Ô Lorena Que coisa mais sem sentido por quê Por que fico repetindo e me aproximo do casulo onde ela dorme acordada as pálpebras mal escondendo o olho aceso E se estiver mentindo E se a versão verdadeira for a de Lorena Pois não disse Nem os médicos nem o marido ninguém deu maior importância ao caso Por que não deram Porque a doente era ela a doente era a mãe escamoteando a tragédia por defesa muito mais fácil imaginar que o filho morreu bebê devolvêlo ao limbo não tinha viabilidade O rapazinho de camisa vermelha e peito varado por um tiro disparado pelo irmão é subtraído da morte e reduzido a um nenenzinho com um sopro no coração Hein Procuro uma unha mas não vão mais crescer Mordisco uma espiga que se descola aguda como um espinho Ao mesmo tempo Lorena com tamanha fixação pela verdade armando enredos até em torno de um botão E as maquininhas de sonho perguntou E a carinha ficou secreta como esta alcova O pulôver de listras era dele não era Mas tem que ter existido eu sabia tanto a seu respeito como se tivesse sido meu irmão E agora Preciso ver urgente seu álbum de retratos lá deve estar a gens lorenensis do começo ao fim Seja como for que triste Quem sabe a mãezinha vai lhe dar as roupas que foram dele Estaca zero minha querida Fiz plástica mas chorando como tenho chorado devo ter estragado tudo Minha irmã Luci descobriu um creme escandinavo feito com óleo de tartaruga deve ser ótimo as tartarugas se conservam séculos murmurou erguendose sobre os cotovelos Oh Deus o terrível é isso é que as coisas acabam Todas as coisas acabam onze Com um gesto suave Ana Clara afastou os anéis de cabelo empastados na testa Fechou no alto do pescoço a gola do casaco e com a bolsa fortemente apertada contra o peito começou a subir a escada Tropeçou no degrau e caiu de joelhos Gritou quando foi se apoiar o chão fervilhava de baratas A maior delas se levantou nas patas traseiras o peito engomado na túnica de esgrima o florete na mão en garde Inclinouse rindo porque a barata também ria atrás da tela de arame da máscara era uma brincadeira Olhou mais de perto e escondeu o peito mas era tarde o florete a varou de lado a lado Quis respirar e o sangue jorrou do coração coroado de espinhos espirrando em sua boca com tamanha violência que se engasgou nele Dobrouse na tosse Não quero mais gemeu Calma querida Se apóia aqui em mim pediu Lorena agarrandolhe o braço O cavalo Lá atrás ficou a barata mergulhando em parafuso na folha de couve Apanhou o florete caído no chão fechou com ele a gola e montou no cavalo branco Riu no galope pela campina estrelada tanta estrela que podia ver os cristais brilhando nas prateleiras Fez um afago no pescoço do cavalo Ele sorriu Lorena Era Lorena Relaxou o corpo Aqui está tão bom Eu não disse que você ia gostar Vou abrir mais a água quente avisou Lorena Levanta a cabeça vamos Ela obedeceu Riu frouxamente encolhendose no fundo da banheira Se você soubesse pomba Com um braço Lorena sustentavalhe o tronco enquanto com a outra mão foi lhe esfregando nos seios a esponja ensaboada Onde se sujou tanto assim Aninha Incrível Você estava um tatu de suja querida Tinha lama até no seu ouvido já pensou Ana Clara falava com dificuldade a voz espessa o maxilar travado Abriu os olhos Recomeçou a rir Um banho Você está me dando banho Vamos agora lave a zona sul Aqui ordenou Lorena conduzindolhe a mão Vamos esfregue aí com força Não não largue a esponja Ai meu Pai Tenho que ir Que horas são Sossega Aninha Não me espirra água fica quieta ainda é cedo querida Vamos esfrega Me dá um uísque Eu dou mas então esfrega aí a esponja Assim Lúcida Roqueroque estou completamente lúcida fico puta da vida porque a cabeça Roqueroque Perfume de eucalipto está sentindo Sinta que delícia de perfume é eucalipto Eucalipto Agora Lorena lhe ensaboava os cabelos Fecha os olhos e não abra enquanto eu não mandar Quero minha bolsa Eu dou mas então fecha os olhos vamos obedece Por onde você andou é uma coisa que eu gostaria de saber Onde você esteve onde Uma festa Que festa Espera deixa tirar o sabão Levanta vamos segura em mim disse Lorena enlaçandoa pela cintura Cuidado Aninha Enroloua na toalha e conduziua ao quarto Ana Clara estremeceu Apontou a janela Quem é que está ali espiando Ali É a cortina querida Sossega não tem ninguém estamos só nós duas As freirinhas todas já foram dormir sossega Madre Alix Madre Alix Ela já vem então deita não foi uma delícia de banho Esfregou lhe a toalha nos cabelos E ficou olhando as nódoas roxas que tinha nos seios No braço Trouxe a lata de talco Aninha Aninha Onde será que você andou Ele foi preso murmurou Ana Clara abrindo os olhos Fechou as mãos e cruzouas no peito Foi preso Quem Quem foi preso Caiu num pranto seco sem lágrimas A fala ficou mais difícil Roqueroque Está bem digo que Levantouse E tombou novamente de costas na cama Veio Deus e ficou no meu peito bem aqui bem aqui Saiu voando o passarinho era Deus Ele veio e então Visto nela meu chambre vermelho Passo a escova nos seus cabelos acesos como brasa curtinhos assim vão secar logo mais que loucura Loucura Imagine se Madre Alix Cato no chão sua roupa imunda como se tivesse rolado num pântano E as manchas roxas E o cheiro medonho de vômito misturado com perfume amanhecido ai meu Pai meu Pai meu Pai Chácara imagine Levo a trouxa de roupa até a cesta ainda bem que amanhã é dia da Sebastiana O casaco mando ao tintureiro Ponho seu sapato um ao lado do outro não é curioso Os sapatos não estão quase sujos Como se tivesse andado de cabeça para baixo Coitadinha Ana quem foi preso Você disse que não sei quem foi preso Ela rolou a cabeça no travesseiro agarrou os cabelos Puxouos As palavras saíram pedregosas O Max sumiu sumiu Loreninha me ajuda o Max Ana fala mais baixo quer que as freirinhas acordem Quer que Madre Alix venha aqui e veja você desse jeito É isso que você quer O Max sumiu Não está lá fiquei esperando Viajou ora Ele não viaja Viaja Então viajou sua boba Fiquei esperando Ficou é pinoteando por aí Onde você andou hein Agora ela ria a face corada os olhos brilhantes ligeiramente estrábicos Se você soubesse pomba Soubesse o quê Não sei mas adivinho Vão acabar essas curtições ouviu isso Você vai ter juízo Não quero juízo Vai querer na marra agora você vai na marra querida Madre Alix já cansou todo mundo já cansou A formigona ria aquela bastarda Depois a barata veio e começou o campeonato Max chegou na frente o japonês Aquele Como é que se chama o japonês Aquele O japonês Não sei queridinha Só sei que eu estava lendo sobre as estrelas quando Dona Ana Deprimida e Deprimente se despencou nos meus braços Andei com Deus Ele estava aqui Não interessa mais as coisas que depois eu disse não não e ele veio e tinha uma luz assim tudo assim na minha cabeça e ele me deixou voar tão alto com a mão dele segurando a minha Chiquérrimo Chega Max Max é você Sou Lorena querida Seus pés estão duas pedras de gelo deixa eu fazer uma massagem Sossega Ana Agora seu nome é Ana Bacante Bacante e Bacana Sabe o que é uma bacante Aquelas ninfetas dos cortejos de Baco vou te coroar com folhas de parreira Podre de chique hein Me dá um uísque Quero um uísque Lorena massageoulhe os pés Cobriuos com a manta Lorena Lorena Vaz Leme Nhemnhemnhem Ana sossega senão chamo Madre Alix Pára de rir não tem graça nenhuma Quero um uísque Leninha Só um me dá Prometo prometo Despejo no chá vou fazer um chá bem quente disse Lorena cobrindoa com a manta que ela atirava no chão Se um dia eu precisar trabalhar vou ser femme de chambre Acho que é a única coisa que faço na perfeição na outra vida devo ter trabalhado num castelo com uma cortesã parecida com Ana Clara Conceição Quero minha bolsa Minha bolsa Doulhe a bolsa e vou encher a chaleirinha Mas por que tudo tem que acontecer ao mesmo tempo Fim da greve os exames começando amanhã mãezinha louquinha Doutor Francis morrendo justo agora que Mieux resolve se mandar mas não é mesmo uma dose de iguanodon Como será que se traduz iguanodon Lião nos seus urros de impaciência discursos e outros sentimentos Eu aqui com Ana Clara Devia estar estudando não devia Devia O abismo entre o ser e o estar Estou com Aninha e estar com Aninha e estar com os ventos arrecifes e tempestades ah MN por que não me dá um emprego de enfermeira no seu hospital Recebeu o bilhete E não vai responder Está no teto O que está no teto pergunto Sinto meu olhar tão triste que me comovo com ele estou me comovendo comido mesma e isso não é saudável As horas Preciso saber depressa ela diz voltada ainda para o mesmo ponto perto da lanterna Não interessa O ano que vem sem falta O ano que vem Deve estar prometendo a Deus o mesmo blablabla que promete a Madre Alix Nenhum dos dois acredita e contudo por ser a mais preta do rebanho Miserere Nobis digo e abro a mãos sobre a chaleira que retribui meu gesto bafejando quente Ana Clara soltou um gemido e diz qualquer coisa de tão enrolado que foi Aninha Obrigoa a deitarse de novo alguma dor Que deve ter passado porque agora está rindo às gargalhadas A cabeleira de caracóis vai ganhando brilho à medida que seca os olhos estrábicos de gozo escureceram na malícia Abriu a gola do chambre e seu pescoço engrossa na risada tenso encordoado As nódoas no peito A mancha no braço calcando como um dedo a veia principal Res accessoria digo vagamente Estou fascinada olhando A língua se enrola obscena Uma figura dionisíaca e possessa se revolvendo no chambre vermelho Cubroa com a manta até o pescoço e seguroa Ela se acalma O olhar entortado vai esmorecendo Que frio Lena Que frio Aconchego seu corpo nas almofadas Você vai tomar um chá bem quente Digo que Fechou os olhos Fechou as mãos Virou anjo dormindo Apanho no chão a toalha de banho vermelha e dobro sua camisa suja de sangue não vi o sangue mas senti a umidade na minha mão e dobreia depressa porque achei que mãezinha não gostaria que vissem a camisa manchada já que o sangue do peito estava sendo lavado na banheira Fechouse com Rômulo e não deixou que ninguém ajudasse eu lavo meu filho Rômulo Rômulo Sinto às vezes que você continuou em mim seus gestos nos meus A fala Depois fico sozinha e então você me avisa que é preciso ficar só que vou ser feliz assim ah Rômulo Como você cresceu Me dá sua mão ela pede Doulhe a mão que ela aperta e depois larga Com o que estará sonhando Deixo sua mão debaixo da manta e corro até a água fervente Apago o fogareiro O perfume do chá me tranqüiliza como o incenso preciso queimar um pouco Afastar os espíritos Aninha veio carregada deles como se tivesse descido aos infernos você esta bem Aninha perguntei no maior susto quando ela quase se despencou da escada Sorriu estrábica O cavalo Fecho as mãos em torno da xícara e bebo o chá Tinha a expressão do Anjo Sedutor quando a despi um fulgor nos olhos que fugiam e voltavam Você Lena Que é que você vai fazer comigo Abro a janela Como no casarão ninguém ouviu ela gritar Chegou gritando E nenhuma freirinha nem a Bula Uma sorte essas novelas de TV soltas pela vizinhança têm sempre entreveros ranger de dentes choros Os gatos engatados urrando em correria no meio das flores Se fôssemos uma sociedade calminha Ana chamaria a atenção dos presentes mas nesta sociedade erótica os presentes também estão ocupados demais com erotismo Poucos pouquíssimos estão rezando Ou pensando Eu lendo sobre as estrelas imagine Nascem e morrem como nós a visão do cosmos é a mesma do mundo você sabe disso MN Olho a Via Láctea As estrelas maiores são as estrelas jovens da minha geração As outras velhinhas vão diminuindo diminuindo assim como a Bulinha Até que se diluem somem não é lindo Queria tanto envelhecer sossegada parar com as escamoteações disse mãezinha com tamanha sinceridade Estou exausta filhinha Quero as rugas todas os cabelos brancos as sardas os netos estou com nojo do sexo O nojo dura pouco O corpo começa a ficar tristinho e então reage com uma energia Que energia Basta um convite mais especial que nem precisa ser de homem uma amiga do gênero estimulante e já levanta a cabeça e sai correndo na ponta dos cascos Agora vamos morar juntas filhinha Como nos bons tempos lembrou Mas quando estávamos nesses bons tempos ela se queixava tanto aqueles bons tempos eram bons Abandonar minha concha Meu delicado mundo que amo tanto Se ao menos fosse para ir com MN Por que ele não me convida nessas suas viagens Esses altos congressos internacionais que vive curtindo eu caberia no seu necessaire você Fabrizio Uma poetinha neurótica me pergunte o que é curtir um neurótico e eu respondo Se ao menos o Guga aparecesse para buscar a camisa que ainda não comprei Bordo um patinho mas não é no pato que estou pensando é na sua barba na sua boca Cheiro de fumo suor e poeira E a língua de cetim e punhal que eu tive que expulsar mas por que expulsar Ai meu Pai nunca imaginei que aqueles pés caprinos mal escondidos nas sandálias e aquele jeans puído bem nos elevados ilha branca desviei o olhar e o olhar acumulado naquele desbotamento que tive tanta vontade de MN MN só você não vai mesmo ter coragem Por que sou virgem é isso Faz tanta diferença assim Poderíamos morar no campo adoro o campo Uma casa de tijolos nus Um gramado Livros música Quero ler para você todos os poetas que amo minha voz não é bonita mas aprendi ao menos a fazêla grave este natural esganiçado posso corrigir quando me esforço Vão dizer alienação fuga Diremos integração retorno A nós mesmos Ao sol A Deus Meu bilhete é decisivo responda escrevi um bilhete decisivo Os bilhetes decisivos Tudo somado isto eu te amo Não uma simples amizade entre um homem e uma mulher mas uma espécie de unificação absoluta unidade harmônica neste mundo caótico O sentido profundo Profundo repito e olho para Ana Clara Dormindo Lião vive pregando que a sociedade expulsa o que não pode assimilar Ana foi expulsa pela espada flamejante disse que tinha um florete no peito mas não era um florete era uma espada O que dá no mesmo Coexistência pacífica ensinam os ensinantes E na prática Lia de Melo Schultz digo Chegou A janela do seu quarto acabou de se acender ah Lião acho que nunca sua presença foi tão desejada Se não fosse tão tarde e se Aninha não estivesse nesse estado gritaria com todas as minhas forças Lia de Melo Schultz E você responderia Presente Calço a sandália troco de camisa e depois de cobrir o pé de Ana Clara que se descobriu saio como aprendi com Astro nauta deixando o corpo físico e só levando o corpo sutil Nau vejo a lua só um céu chamuscado de estrelas As maiores estão decotadas palpitantes Virgens Deixame rir Até as margaridinhas estão agitadas com suas grinaldas expostas se sacudindo no vento Arranho a veneziana Ela abre e enquanto pulo meu coração se fecha a última vez que estou pulando esta janela e entrando neste quarto Quase caio em cima da mala de couro amarelo Levanto n Pesadíssima Pronta Já Lião fechou o caderno na mesa estava escrevendo O diário Ai meu Pai Não está reconhecendo a mala da mãezinha Fiquei horas com ela Morte do analista que era muito fino rompimento com o amado que era muito grosso tanto drama disse Lião e de repente me encarou Por que está me olhando assim Nada entende Foi uma sessão de desbundar até um profissional resmungou e riu Gosto dela Muito fina muito fina Tiro a pastilha de hortelã da boca para poder falar Se você soubesse Lião Imagine que eu estava muito poética lendo sobre estrelas quando ouvi aquele turbilhão na escada e um grito tão agudo que meu livro foi parar no teto adivinha quem era Estava dependurada na escada berrando tinham enterrado um florete no peito dela enfim podre de drogas Loucura completa E tão imunda Na roupa tinha lama carvão umas manchas suspeitíssimas E aquele cheiro Dei lhe um banho de imersão até na cabeça tinha sujeira Não continuo porque Lião está rindo sem parar Espero Foi até a sacola tirou um rolo de barbante e começou a amarrar pequenas pilhas de livros alinhados no chão Acendeu um cigarro e com a brasa queimava o barbante depois de fazer o nó E daí Agora está dormindo na minha cama Ah e nódoas roxas no peito no braço Um hálito pavoroso coitadinha deve ter vomitado antes Mas não estava numa chácara de very important person Chácara imagine Perguntei mas aqueles delírios que você conhece me confundiu com o namorado chorou riu E amanha as oito tenho exame acabou a greve exame de legislação social lá sei tudo mas tinha que dar ao menos mais uma espiada em alguns pontos jacaré deu Os problemas vieram hoje em cachos a gente passa dias num lago e de repente Lião amarrou mais uma pilha de livros e começou a andar no seu passo enjaulado Vim com o carro da mãezinha idéia fabulosa porque adiantei demais minha lista fiz coisas à beça providencias despedidas de amigos disse e parou na minha frente Tudo se precipitou de tal jeito Miguel já embarcou Embarcou Já deve estar lá Isso quer dizer que vou antecipar minha viagem quero entrar na primeira vaga que tiver tenho tudo pronto estou tinindo Faltava só um saco de viagem e mãezinha me dá essa mala viajo com mala de milionário ô Lena Mais uns dois dias e desembarco em Casablanca Depois Argel Lião Lião você está brincando E nossa festa de despedida A gente tinha combinado uma festa Não dá pé Um dia a gente festeja que vai chegar o tempo de festa agora é arrumar a mala e tocar pro aeroporto ô que medo Não sou nem passarinho nem nada resmungou levantando a mala Colocoua na mesa Quando vim de Salvador a comissária de bordo uma moça muito fina como diria a mãezinha avisou pelo microfone que por motivos de ordem técnica ia acontecer não sei quê e por isso a gente devia apagar o cigarro e apertar o cinto não entendi o que ia acontecer mas depois dos motivos de ordem técnica o avião desbundou até a alma Tive o maior cagaço do mundo Lorena fez uma careta de pânico riu e sentouse nos jornais que amontoei no chão Suspirou ao tirar do bolso uma pastilha de hortelã Então vai mesmo Ouvia você falar a viagem a viagem mus me parecia uma coisa meio vaga um pouco sobre a piada Ah Lião murmurou Animouse Quero ir ao aeroporto é lógico Melhor não Lorena Nada de despedidas digo e olho suas sandálias branquíssimas como se tivessem vindo neste instante da loja Vou embarcar na maior discrição até meu casaco é preto mãezinha me deu um casaco fabuloso diz que viajou com ele pela Europa um cachemisère explicou Não é genial Só que no meu caso ele está escondendo de fato uma miséria muito maior do que sonham todas as mães filosofias ô Lena Se não endoidar antes de lá mando cartas cartões diários Acho que você não vai escrever Nem vai voltar Não não fale que nem a mãezinha se você ouvisse putz Apesar da dor e tudo quis saber se eu tinha alguém Falei em homem e essa palavra mágica resolveu pronto não ia mais te poluir Quis saber depois se você era virgem Infelizmente eu quase disse Ficou contente e ao mesmo tempo não ficou a coisa é mais complicada do que parece mas por que será que até hoje sendo você essa maravilha que é por quê Agora Lorena ri tapando a boca e eu fico rindo também o mesmo riso escondido dos inconfidentes no auge da inconfidência Conta Ela tocou em Ana Clara Ora Acredita nas más companhias se duvida muito até as freirinhas podem exercer suas influências entende Virou a página o homem que você estava rondando por acaso não era casado Por acaso respondi que não sabia e ela ficou espantadíssima como é que eu não sei Mais lágrimas e etcétera e depois do chá e dos presentes me despedi na maior gratidão Fim Federico Garcia Lorca murmurou Lorena olhando o pôster em branco e preto pregado com tachas na porta do meu armário Triturou a pastilha nos dentes Respirou de boca aberta Que cara maravilhosa ele tinha É seu Vai herdar livros também estou deixando todos só levo uns três ou quatro Vem cá seu despertador está funcionando Tenho que acordar de madrugada e o meu emprestei e não voltou digo me aproximando da estante Mas afinal por que não foi ver a mãezinha Segurei a corda como pude fui muito fina mas a filhinha querida fez falta Lorena inclinouse para examinar os montículos de livros que transbordavam das prateleiras para o chão formando uma trilha sinuosa até a cama Olhou debaixo da cama e puxou uma malha verde e mais dois livrões desgarrados Eu podia dizer que Ana atrapalhou mas não e verdade tive a noite toda para ir e não fui porque esperava uni telefonema de MN deixei no hospital um bilhete decisivo Telefonou Não Só mãezinha que falou umas cinco horas comido logo depois que você saiu Quer que me mude ainda esta semana já pensou Você vai Prudentemente Lorena cheirou a malha que abriu no chão Enroloua com as meias que estavam entre os jornais Tenho que ir Lião O analista Mieux e mais o drama da velhice Sinistro esse drama de repente ela ficou com cem anos Precisa de mim Perfeito vai mas salte fora assim que puder entende Diga que está precisada da sua concha de umas férias na concha e se mande Ela não vai casar outra vez Depende querida Já sei como vai ser com minha avó foi igual a avozinha se embonecava e tudo mas quando acontecia uma chateação muito forte assumia a velhice até que o desgosto ia passando e ela ia resolvendo ficar em forma de novo e assim um monte de vezes caía levantava caía levantava Numa dessas quedas suspirou Lorena Ah agora me lembro tinha uma cantiguinha que minha pajem cantava escuta escuta Aprumouse pigarreou e depois de tirar a pastilha da boca cantou com sua voz fraca Polida Teresinha de Jesus de uma queda foi ao chão acudiu três cavaleiros todos três chapéu na mão Me abaixo e canto junto com ela no tom mais grave que consigo O primeiro era seu pai o segundo seu irmão O terceiro foi aquele a quem deu seu coração Rimos baixinho agachadas Minhas tias achavam essa cantiga um sacrilégio por causa desse terceiro digo e me alegro ô o gorro que pensei que tivesse perdido Enterroo na cabeça Mas vem cá a mãezinha Queria tanto que ela se banhasse naqueles perfumes e amanhã já saísse correndo Na ponta dos cascos Isso Na ponta Lorena voltou a mascar sua pastilha Começou a amontoar os jornais Já vi mãezinha se estatelar e se levantar umas três vezes coitadinha A primeira quando Rômulo meu irmão morreu A segunda quando paizinho foi internado ela sofreu mais no dia da internação do que no dia da morte A terceira estatelação foi quando precisou vender a fazenda Levantouse das três é lógico Esta é a quarta querida Então se levanta decido e me ajoelho diante dela Sacudoa pelos ombros parece que ficou criança de novo ô se volta com a mãe vai ficar mais criança ainda Você tem que viver sua vida ao seu modo e não do modo que os outros decidirem ô Lena Lena não sei explicar mas aquela história do Tempo devorando os filhos não é o deus Cronos Ele mesmo ia parindo e ele mesmo ia devorando tudo Mas de verdade não é o Tempo que engole a gente é um tipo de mãe como a sua Um pouco como a minha também Presta atenção salta fora e ela vai se dedicar a outra causa a caridade Deus quem sabe até vai querer adotar uma criança Minha mãe adotou uma está radiosa lá com a garotinha que beija e castiga à vontade Em todo o caso ontem já tomei minhas providências posso embarcar tranqüila Providências Que providências Lião Está na maior excitação deve estar pensando em MN Agarroa como se agarra um inseto pelas orelhas Esqueça esse cara esqueça Só vejo vocês trocarem bilhetinhos cartas como se um morasse em Vênus e o outro em Marte ridículo Isso é medo ele morre de medo Agora mesmo estou tremendo só de pensar em subir num avião mas medo de avião é saúde a gente é bicho da terra tudo perfeito Mas medo de amar Ele não suporta a idéia do sofrimento alheio querida A mulher os filhos montes de filhos A problemática do remorso Mas que remorso Mansamente Lorena tombou para o lado a cabeça apoiada na roupa que juntou Numa das cartas começou ela Implorou paciência quando levantei os braços Espera deixa eu falar numa das cartas ele contou que quando menino achou um dia um caramujo na praia um caramujo muito lindo daqueles de madrepérola o bojo se fechando em caracol até acabar assim numa coroinha sabe como é Com um pedaço de arame arrancou lá do fundo o bicho que veio em pedaços Daí lavou o caramujo despejou no buraco álcool amoníaco perfume e deixou secando no sol Dois dias depois começou aquele cheiro medonho como se o bicho continuasse morto lá dentro Cutucou de novo mais água mais sabão acetona gasolina experimentou tudo No dia seguinte o cheiro no fundo da acetona da gasolina do álcool o cheiro Acabou jogando o caramujo no mar sabia que nunca mais ia encontrar outro igual mas jogouo no mar Agora Lorena desenfurnou algumas pontas de cigarro que juntou em redor e levantou os jornais deve estar procurando algo Achou uma caixa de fósforos vazia Continuou seu ritual de limpeza enfiando os tocos dentro da caixa Fico esperando E a metáfora do caramujo Não é uma metáfora E daí Lena O caramujo Pois o cheiro do caramujo é como o cheiro da memória O resto da vida ele sentiria esse cheiro já pensou Sofrimento da mulher dos filhos Sofrimento também dele não foi Tolstói que disse Só há dois sofrimentos no homem a dor física e a dor do remorso Perfeito Se é que entendi o caramujo é você o que não é nenhum elogio metáfora muito vagabunda essa Mas se esse caramujo era assim raro com coroinha e etcétera ele podia ter lutado um pouco mais não podia Se não fosse o comodista que é Muito mais fácil jogar o caramujo no mar nesta altura você já está em pleno Atlântico Kaput Então não se fala mais nesse homem chega Você vai amar o Guga conversamos muito já sabe dos dramas todos e está a fim de te salvar Divinomaravilhoso Mas onde você encontrou o Guga Passei no teatro estava curtindo o violãozinho dele fez uma música fabulosa ficou entusiasmado com a idéia Entusiasmado Ficou Lógico Se mãezinha comprimir muito se casa até de fraque faz qualquer negócio Hábil como você é depois de seis meses ele está tomando dois banhos por dia Lião que loucura riu Lorena Você deu assim esperança Evidente Às vezes puxa suas fumaças mas com uma menina mais ou menos equilibrada como você não vai tomar mais nem aspirina Mais ou menos Lião Você disse mais ou menos equilibrada repetiu Lorena rolando sobre os jornais Lentamente Lia foi tirando a roupa da mala aberta na mesa Sorriu Tinha o mesmo cheiro dos armários de Lorena Muito fino muito especial pensou desdobrando um pulôver de cashmere cinza ô esse não ia servir direitinho em Miguel Esfregou nele a cara Riu Um pouco mais em contato com a gens lorenensis e sairia tatuada no nariz ouvido e garganta Voltouse para Lorena que se imobilizara sonhando entre os jornais Teria mesmo existido Esse Rômulo Esmoreceu o ruído do jato varando a noite Os miados dos gatos mais próximos foram se esticando até se juntarem aos uivos de um cachorro Uma pedrada e o cachorro se afastou ganindo Ficaram os gatos Durante uns vinte anos vou ser elegante no inverno disse Lia vestindo o cashmere vermelho Abraçouse Estou me sentindo um gato ô mãezinha meus melhores votos que se levante e dê outra arremetida Amém Ah ia me esquecendo disse Lorena embolando dois jeans que encontrou debaixo da cadeira Irmã Bula veio me dizer toda contentinha que a nova pensionista está para chegar a estudante de Medicina A menina é sobre o gênio Vem do Pará Já pensou Pará Santarém Já avisei que pode ficar na minha concha murmurou e uma leve sombra baixou sobre seus olhos Sacudiu se Minha empregada lava isto amanha você tem que viajar com tudo em ordem Mas esses jeans estão limpos Lena Não estão querida Deixa por minha conta ela lava divinamente Olha o cachemisère Não é suntuoso perguntou Lia vestindo o casaco que estava no fundo da mala E o cheiro Lorena Cheiro de riqueza putz Mais baixo Lião elas vão acordar estamos gritando Que acordem estou excitada demais não consigo falar mais baixo disse e aproximouse de Lorena Estive hoje com Madre Alix É uma mulher bastante estranha Estranha como Bastante estranha repetiu Lia olhando para o jardim Levou a mão à boca e repassou as unhas na ponta da língua Ela me faz pensar no mar de Amaralina conheço aquele mar melhor do que esta mão a cor da água em qualquer hora do dia Os peixes todos as conchas as pedras nenhuma surpresa entende Mas uma tarde enquanto mergulhava uma planta se enrolou no meu pé trouxe ela pra praia Uma planta assim meio azul eu nunca tinha visto antes essa planta de folhinhas lisas como peixinhos azuis e raiz cor de carne mas então devia ter outras como essa planta lá embaixo Comecei a olhar o mar com mais respeito Sobre o que vocês conversaram Biscoitos sortidos Faz às vezes a ingênua mas está tão por dentro como nós Ou mais sei lá a mulher é fogo O prato principal foi Ana Clara Ai meu Pai Tenho que ir imediatamente até me esqueci E amanhã a prova logo às oito Mas que foi Lião Porque me olha assim Os álbuns de retratos da família estão na arca da garagem Ana disse que viu o mais antigo o de capa de veludo Em cima da arca cobrindoa cadeiras velhas rolos de tapetes caixas molduras Os polvos guardam o mistério do naufrágio Não dá mais tempo entende De fazer o quê Pesquisas digo e fico olhando Lorena saltar a janela com a elasticidade de uma bailarina Apanhou a trouxa de jeans e equilibroua na cabeça Teve um olhar para a janela do seu quarto O que vamos fazer Lião Com ela Se ao menos esse famoso noivo aparecesse Acho que esse famoso noivo não existe Ela fixa em mim o olhar assombrado Desvio o meu Não Lá sei confusões Posso usar cedo o carro da mãezinha Vou levar minha mala pra casa de um amigo perto do aeroporto E outras coiselhas Lógico querida Mãezinha deve ter tomado quilos de calmantes só vai acordar tarde Vejoa atravessar o jardim com todo o cuidado escolhendo onde pisar com a prudência de um gato de luvas Parou no meio da alameda e ficou escutando Prosseguiu Apenas uma silhueta esgarçada na névoa baixou uma névoa branca como suas sandálias Debruço na janela Mais algumas horas Eu devia avisar Lorena que não ficarei aqui nem o tempo de secar a roupa que está levando Lembro da ampulheta quebrada entrei no escritório do pai pra pegar o lápis vermelho e esbarrei no vidro do tempo Fiquei em pânico vendo o tempo estacionado no chão dois punhados de areia e os cacos Passado e futuro E eu Onde ficava eu agora que o era e o será se despedaçara Só o funil da ampulheta resistira e no funil o grão de areia em trânsito sem se comprometer com os extremos Livre Sou digo e tenho vontade de correr até Lorena e avisála que nesse andar de minhocações poderemos participar do próximo congresso de filosofia com as corujinhas de prata na gola ô respiro e olho em frente Na janela iluminada Lorena me faz sinais frenéticos está me chamando com as mãos com a cabeça Quando me vê ir ao seu encontro desaparece Atropelo dois gatos que fogem em direção ao muro piso nas margaridas e chego até metade da escada Estou sem fôlego Minhas pernas se vergam quando ela se debruça na janela escancarada Os olhos também estão escancarados Inclinase Nossas caras ficam tão próximas que nem preciso me erguer no degrau para ouvir Ela está morta Estendo a mão querendo agarrar sua voz através do nevoeiro O que Lorena O que você está dizendo O sussurro é álgido como o hálito de hortelã Ana Clara está morta doze Uma síncope perguntou Lia Foi isso Esperou a resposta imóvel ainda no degrau da escada Não é possível não tem sentido Nenhum nenhum sussurrou para o jardim lá embaixo e que lhe pareceu um jardim já visto num outro tempo numa circunstância assim igual com uma voz debruçada na janela lhe avisando baixinho da morte de alguém A mesma névoa O mesmo oco no peito Mas agora a noite cheirava a pastilha de hortelã Voltouse para a janela Vazia Não é possível disse quando entrou no quarto Lorena estava montada em Ana Clara massageando seu coração Ainda o cheiro frio de hortelã Ou cânfora Fiz uma massagem com álcool e nada Vamos ver agora ai meu Pai Cruzando os braços contra o corpo Lia procurou segurar o tremor que a sacudiu dos pés à cabeça Enrijeceu os maxilares para poder falar Você não sabe Lena vamos chamar um médico O Pronto Socorro chama o ProntoSocorro Madre Alix tem o número Você não sabe fazer isso Sei Estou fazendo exatamente o que deve ser feito disse Lorena empenhandose mais nos movimentos Encarou Lia sem interromper a massagem E baixou a voz como se receasse que Ana Clara a ouvisse Ela está morta Estou apenas tentando não vê Ai meu Pai meu Pai meu Pai Mas não parecia uma piada O menor sentido pensou Lia deixandose conduzir pelo olhar aparvalhado Os sapatos de fivela prateada colocados lado a lado na porta do banheiro A bolsa de verniz no chão junto à cabeceira da cama A manta de xadrez vermelho e verde cobrindo só os pés de Ana Clara melhor mesmo que a manta estivesse ali porque não queria ver seus pés Demorouse em Lorena que lhe cavalgava a cintura sem fazer o menor peso os joelhos fincados na cama a fisionomia endurecida no esforço mais agudo da concentração Uma xícara com um resto de chá no fundo Contornou a caixa de talco com a esponja amarela Lorena ainda não tivera tempo de limpar o talco que caíra na mesa Mais uma vez a bolsa estava entreaberta De novo a xícara e sem resistência o olhar se abateu sobre a face da morta Morta Mas ela não está morta Lia quis gritar Aproximouse mais Ana Clara as espionava pela fresta verde dos olhos Brincadeira não é Aninha A meialua de vidro estrábico estava prestes a se abrir o meio sorriso da boca pronto a se declarar ensaiando dizer qualquer coisa divertida mas por que não dizia Como se de repente achasse mais divertido não dizer Tomoulhe a mão Abriua Na palma um pouco de talco entranhado nas gretas E a lembrança do calor como o ferro de engomar desligado há quanto tempo guarda na chapa uma certa tepidez Dormia na mesma posição que deixei disse Lorena aos arrancos ofegante Fiquei contente porque tinha medo que acordasse e inventasse de sair devia ter um compromisso Guardei sua roupa suja no cesto e botei a mão na testa dela um frio esquisito Então chamei sacudi dei um soco no seu peito um soco às vezes Nada nada Fiz até a prova do espelho peguei meu espelhinho de bolsa ah Lião Mas foi antes de você sair Você acha que foi antes Como posso saber Chegou aqui gritando que estava com um florete enterrado no peito era o coração que devia estar doendo não sei também não sei Lião pelo amor de Deus querida não fale agora comigo Lia aproximouse Dedilhou o pulso estático numa busca tão intensa que acabou por transferir para o pulso da morta o latejar do próprio dedo inflamado Disse da morta Cravou o olhar no corpo seminu sobre o chambre vermelho como estava magra Só agora reparava como tinha emagrecido prestavalhe tão pouca atenção As nódoas roxas na altura dos seios No braço Mas o que foi que lhe fizeram O que foi que ela fez Espera não estava respirando Aquele arfar não vinha lá de dentro Continua Lena não pára acho que ela respirou A voz de Lorena era um murmúrio de mãe que fala já cansada à filha brincando de esconder em algum canto escuro Ana Aninha você está me ouvindo Ana volta Volta Ana obedece eu sei que você ainda está aí eu sei que está Vamos volta Firmavase nos joelhos apertandolhe os flancos entre os pés em ponta voltados para dentro calcando com força na altura dos rins cavalgava leve num galope sem tocar a sela só as mãos subindo e descendo no ritmo que era o da própria respiração Milhares de vezes ela chegou drogada entende Mas o que aconteceu hoje perguntou Lia Milhares de vezes Mas que foi que ela tomou Sob a cortina cega de cabelos a voz de Lorena baixava e subia com o movimento das mãos reduzida a um sopro em certa altura Eia pois Advogada nossa Os vossos misericordiosos olhos a nós volvei A nós volvei exclamou atirando a cabeleira para as costas Estavam doidas essas duas Que brincadeira mais sinistra era essa pensou Lia Quis falar mas não pôde porque agora acompanhava as variações da massagem Lorena era criativa inventava movimentos como esse de lagarta os pulsos colados ao peito de Ana Clara só os dedos se distendendo e se contraindo como lagartas cavando a terra contornando lentamente o coração obstinado Lena e se a gente chamasse As freiras têm experiência Elas não fariam melhor do que estou fazendo Fecha a janela Mas por que fechar a janela e não o tocadiscos tocando e retocando aquele saxofone Arrancou o gorro e a cabeleira subiu elétrica Enfiou de novo o gorro puxandoo furiosamente até o pescoço e girou sobre os calcanhares Abraçouse com força porque o tremor voltara ô o absurdo do saxofone ganindo feito um cão danado Ao mesmo tempo Não sabia explicar mas não era aquela música que criava assim um ambiente de expectativa Enquanto houvesse saxofone e enquanto Lorena continuasse encarapitada lá em cima lutando O silêncio esse era pior do que tudo Despejou uísque no copo e bebeu de olhos fechados se pudesse gritar como se grita na montanha Ou no mar mas gritar até ficar sem voz se exaurir gritando e derrotada gritar ainda enquanto só a voz do outro continua igual Merda disse entre os dentes fechando o copo na mão Eu devia ter feito alguma coisa por ela e o que fiz Discurso Essa puta vocação pra discurso Ninguém podia fazer nada querida Nada E Lorena dominando a situação tensa mas contida ô Lena chega mais perto faça ele funcionar como o relógio o miserável tinha corda e parava de caprichoso mas se a gente com mão ligeira segurasse o pêndulo e fizesse aquele balanço uma duas vezes continue agora sozinho vamos Golpeou a parede com o punho fechado Assim de costas resfolegando sobre o corpo ela parecia empenhada não em fazê lo respirar mas gozar num jogo erótico tão desesperado que Lia precisou morder o lábio para não gritar chega Aproximouse Uma gota de suor escorreu da testa de Lorena e pingou no peito de Ana Clara montaria doce e mole num abandono que contrastava com a tensão da cavaleira firme no seu galope alto Nada Lena Deixa eu ver Com esforço Lorena endireitou o corpo e levantou as mãos para que Lia pudesse encostar o ouvido no peito exposto O frio odor de cânfora Mais no fundo o talco quase tão íntimo quanto o sono Achei que ela estava reagindo hein Ana Clara Não vai mesmo voltar gemeu Lorena torcendo as mãos Madre Alix vai ficar tão triste ai meu Pai me inspire pelo amor de Deus me dê uma inspiração pediu e saltou para o chão Vamos ver com o espelhinho Não adianta chega pensou Lia tapando a cara com as mãos ô a maldita cena do espelhinho refletindo luminoso a boca da boneca aprendera com o tio ele fizera assim na avó Diú e depois não veio aquela resposta sem olhar nos olhos a vovó viajou comprido Dobrou o corpo sacudido por soluços É tão estúpido Cuidado Lião assim você acorda as freirinhas E daí Não posso chorar alto Ela está morta Lena ela está morta Por que você está aí cochichando Por que esse mistério Tenho uma idéia digo depois mas por enquanto não grite pelo amor de Deus calma Calma Mas não vamos acordar Madre Alix Acordar imediatamente todo mundo Não é isso que vamos fazer Espera Lião Por enquanto não vamos acordar ninguém já disse tenho uma idéia Calma sim Esfrego a cara na almofada mas antes que os olhos fiquem outra vez transbordantes vejo Lorena apanhar o missal largou o espelhinho e abriu o missal preto Enquanto durou a massagem esteve corada mas agora está de novo pálida os cabelos detrás das orelhas os lábios crispados Ana Clara também já está numa posição formal o chambre fechado os braços dobrados na altura dos seios Simplesmente repousando depois do banho e do talco Lorena devia estar satisfeita conseguiu darlhe um banho completo antes da morte Quer dizer que a gente vai ficar aqui esperando as freirinhas A polícia É isso que você quer Curtindo aqui a morte com uísque e biscoitos Temos que acordar Madre Alix menina Explicar que não teve nenhum milagre ela esperava um milagre não é bacaninha Um pequeno milagre digo e abafo a boca na almofada ô se pudesse grunhir de dor e raiva Um momento sim fez Lorena com aquele seu gesto que conheço bem Rezava no missal empertigada os lábios se movendo quase silenciosos os olhos transparentes Total beatitude Espero comendo desesperadamente os biscoitos da lata eu explodiria se não tivesse neste instante alguma coisa pra mastigar Em meio da leitura imperturbável pousou a mão na testa de Ana Clara Agnus Dei qui tollis peccata mundi dona ei requiem sempiternam Tenho ganas de lhe atirar a almofada na cabeça agora está brincando de missa Viro mais uísque na goela e quase arrebento de tosse A voz me sai da garganta como uma labareda Lorena tenha juízo e pára com esse teatro entende Você vai chamar Madre Alix e eu vou desaparecer me dê o tempo de fazer a mala e sair não posso ficar nem nas imediações quando essa morte explodir e a polícia se instalar nesta mansarda Conforme os jornais ela morreu devido a uma dose excessiva de barbitúricos sabe o que isso significa não sabe Preciso ir embora digo e enxugo os olhos na manga da camisa não quero chorar e os olhos continuam jorrando feito cascatas Você é perfeita as freiras são santas mas e eu Deixamos o corpo lá no quarto não chamamos ninguém melhor ainda carregamos o corpo Não posso continuar Arranco o gorro e enxugo a cara Ana Clara já virou corpo Nomes apelidos tudo desapareceu e ficou só o corpo Eu disse o corpo Aceitei sua morte E Lorena tomando providências sem maior aflição se chorou foram lágrimas escassas que nem percebi a Loreninha toda composta acendendo seu incenso e pedindo calma Lógico que você precisa sumir querida Deixa o resto por minha conta Que resto Ela sopra a brasa O incenso começa a escapar em fios tênues pelos furos da ânfora dourada Estou com uma idéia já disse Deixa por minha conta Mas quero ajudar putz Melhor que ela fique no próprio quarto podemos levála agora depois você volta e se fecha aqui amanhã vai fazer seu exame não sabe de nada E eu já viajei ontem você nem me viu mais fui pra Bahia pro Alto do Xingu não estava nesta cidade quando ela morreu Fim Não é isso que vamos fazer Chuto a almofada Não não é A idéia é outra Vai Lião não se preocupe comigo pode ir Mas quero saber antes o que você está planejando não vou sair por aí correndo feito rato quero ajudar Que idéia maravilhosa é essa Abriu o armário e está escolhendo um vestido Então a idéia maravilhosa é vestila Evidente que não deve vir mais coisa por aí o modo como me olhou com aquele ar de sacerdotisa A voz de vitral Aperto a mão de Ana Clara Está mais fria ou é apenas impressão Faço um afago nos seus cabelos que se desenroscam entre meus dedos Bem vivo o cheiro de sabonete Puxolhe a orelha e a cabeça resvala obediente para o lado que puxei ô Aninha que confusão menina E na véspera da minha viagem Mas como foi isso Lena Você não disse que ela melhorou depois do banho Que conversou riu Ela não estava melhor Lorena estendeu na cadeira um longo preto com bordados prateados que começam na gola alta e descem com a fileira de botõezinhos até a barra Conversou riu chorou aqueles delírios alguma coisa lúcida no meio ah como é que eu podia saber Viu Deus da outra vez também viu Chamou Madre Alix o namorado achou que ele estava preso acalmeia Pediu uísque prometi que dava no chá Pediu a bolsa dei a bolsa Depois pediu minha mão a última coisa que pediu foi minha mão queria segurar minha mão Inclinouse para procurar alguma coisa na gaveta os ombros sacudidos por um choro silencioso o mesmo choro manso da mãezinha Uísque queria uísque E a bolsa Vejo a cabeça como se ao invés da bolsa estivesse ali no chão uma cobra Entreaberta exatamente entreaberta Enquanto Lorena fazia seus chazinhos enquanto trocava o disco Estava dentro da bolsa foi ali que ela enfiou a mão e trouxe do fundo entende Minha cabeça estala de dor Lorena enxuga os olhos com um daqueles seus lencinhos me deu dois onde foram parar Não quer que a veja chorando precisa ser o bom exemplo chora escondido fingindo que ainda procura coisas na gaveta mas já separou a meiacolante cor de fumaça e o biquíni de renda Apertolhe o ombro por detrás Lena fui rude à beca me perdoa Vai me perdoar Fiquei maluca a viagem essa morte Tudo do melhor e do pior acontecendo junto estou como se tivesse levado uma porretada Tive a intuição Disso que aconteceu digo mais murmurou ela pondo as mãos sobre o vestido Está lívida Meu irmão Remo me mandou este kaftan de Marrocos eu juro que pensei é Aninha que vai vestir isto não vou usar nunca nem me serve imagine Quem vai usar é Aninha Para sempre intuí Tive um estremecimento enquanto fechava a porta do armário era como se estivesse fechando seu caixão Pronto começaram as iluminações Desvio o olhar de Lorena Podre de chique hein Ana Turva Marrocos E combina com os sapatos dela pobrezinha Pena que não tenho umas argolas de prata Ela disse argolas Argolas Vai fazerdeconta que Ana está viva Melhor ainda se lhe vestirmos um cachemort do gênero do cachemisère que mãezinha me deu mais importante do que enfeitar a morte seria escondêla Mas os jovens não precisam baixar a tampa Estou sem cigarro digo e despejo no tapete o conteúdo da bolsa que me espera aberta Rapidamente espalho as milhares de miudezas e procuro E estes envelopes Aspirinas Tem de tudo na bolsa de Ana desde bolotas de algodão usado ate um carretel de linha preta com uma agulha espetada Tem até um relógio de homem Até um pequeno copo de prata com um nome desenhado Maximiliano É esse o amado Não é estranho que ele ainda não saiba Neste instante mesmo deve esperála num bar numa boate Ou no apartamento onde se encontravam Olho o relógio parado na meianoite Também pode ser no meiodia não tem mais o tempo não tem mais a morte ele apenas estranha que ela esteja tão atrasada mas costuma mesmo se atrasar Abro o zíper da bolsinha de plástico estourando de batons lápis de várias cores esponjinhas pincéis Salta como um caroço um vidrinho de delineador verde Nada Mais nada A bolsa voltou ao seu estado de inocência fútil apenas fútil A carteira de estudante é ainda da época em que fez os vestibulares O retrato de cabelos compridos As sobrancelhas mais densas A assinatura numa letra de desafio Ana Clara Conceição Entre o cartão e o plástico o retratinho dele muito risonho e louro radiante na sua malha preta Max o Max do copo etcétera Rasgo o retrato em pedacinhos Aviso Lorena Pegue antes da polícia aquele caderninho de endereços aquele caderninho preto lembra E rasgue os retratos dos cavalheiros que encontrar Pensei que quisesse ver este careta trancafiado mas não Sei lá Não vou deixar nenhuma pista querida Passei minha meninice lendo romances policiais lido bem com os alfinetes disse enquanto abotoa os botõezinhos prateados do vestido Que é que você procura Lião Nada digo apanhando um cigarro Fico olhando o pente que mais de uma vez vi Lorena lavar nos seus preparados cheirando a amoníaco Cubroo com um lenço quando ela se aproxima Tem este relógio e este copo guarda Dou o copo à Madre Alix coitadinha O relógio fica com você não perdeu o seu Fica com ele querida Vai servir muito na viagem decidiu ajustandoo no meu braço É um relógio fino ia ficar com a polícia já pensou Mas não é mesmo impressionante Ana Clara não ter nenhum parente ninguém no mundo ninguém Pensava nisso há pouco não tem uma pessoa sequer a quem avisar nenhuma amiga falava aí nuns nomes mas tudo assim meio no ar Só as freirinhas Nós Nem vou avisar Max o mais prudente é que ele nem apareça coitadinho E esse noivo Esse noivo repito e não tenho forças de encarar Lorena prefiro ficar olhando Ana Clara no seu traje de noite mas é uma festa Cubro o relógio com a mão De tudo ainda me ficou um relógio Incrível Isso dela não ter mais ninguém no mundo Tem outras coisas mais incríveis ainda digo e me aproximo quando a vejo abrir o saquinho plástico que estava na bolsa Mas o que você vai fazer Não era preciso perguntar seus gestos são nítidos Ordenados Tirou o cremebase rosado e começou a maquilar Ana Clara Usa apenas dois dedos na operação mais precisamente apenas a ponta do indicador e do dedo médio espalhando em movimentos circulares a pasta que vai espremendo do tubo Seus movimentos são rápidos De uma eficiência exemplar Muitas vezes ajudei Aninha quando a mão dela tremia demais E ultimamente a mão tremia tanto aparecia aqui completamente turbilhonada não conseguia nem acertar com o pincel na boca do vidrinho já pensou Ai meu Pai Que loucura Diz que loucura tão superficialmente a palavra não correspondendo à ordem que existe neste quarto Nesta morte A importância da aparência mãezinha frisou A náusea me sobe numa golfada até a boca Vou ao banheiro Se metesse o dedo na garganta Mas Lorena já avisou nada de barulho Música pode lá está o disco rodando rodando um pouco mais e a agulha vara o plástico mas choros e vômitos não Por quê Lá sei é ela quem está liderando a noite tem motivos Idéias Foi médico padre e agora está sendo a mais perfeita funcionária da agência fúnebre inspirada em moldes norteamericanos Sem cansaço sem desfalecimento prepara a freguesa como se não tivesse feito outra coisa na vida O apelido na Faculdade é Magnólia Desmaiada Queria ficar de porre entende E não posso ficar de porre Venha Lião venha ver Ah como ela está ficando bonita Lavo a boca e vou ver como ela está ficando bonita Ajoelhada na cabeceira da cama Lorena está sombreando de verde a pálpebra de Ana Clara Às vezes se afasta um pouco para ver melhor o efeito Parece satisfeita o pincel na mão esquerda e a caixinha na direita é canhota Luminosa sob a base rosada a face me parece agora mais distante Desinteressada Será só impressão minha ou a meialua dos olhos diminuiu Está ligeiramente encoberta como se a névoa da noite tivesse chegado até ali Não me lembro de têla visto tão bem vestida e tão bem maquilada como nesta hora Na poltrona as correntes de prata E os colares pergunto O vestido já tem muito bordado fica mais fino assim suspirou ela apanhando a escova Já estão secos pensou Os cabelos Atenção especial para os cabelos Vou buscar o frasco de perfume faço questão de trazer o perfume Este Lena pergunto e não me seguro mais Respiro bem fundo antes de falar Você está exagerando entende Você sabe que está exagerando não sabe Estamos aqui feito duas dementes completas presta atenção Lena vão botar ela numa padiola ou sei lá o que e daqui vai reto pra autópsia sabe o que é autópsia O médico vem e retalha tudo e depois costura Fim Tudo isso que você está fazendo vai ser desfeito na mesa de mármore não tem sentido Lena Não tem sentido Tem sentido sim Me solta querida estamos atrasadas Mas ela não vai pra festa Apanhou no chão os sapatos de fivela e delicadamente calçouos na morta Alisou uma ruga que a meia fizera no tornozelo e sorriu através das lágrimas É aí que você se engana Não querida não estou louca não é nada disso é aquela minha idéia Enquanto rezava lembra Pedi a Deus que me desse uma inspiração e Ele me inspirou A chave do carro não está no seu bolso Eu vi no seu bolso Excelente Um momento deixa eu calçar minha sandália Em duas largas passadas Lia foi até a janela Escancaroua e respirou de boca aberta alisando com as mãos a cabeleira Procurou o gorro no bolso e vagarosamente enterrouo até as orelhas Olhou o casarão Nenhuma estrela Nenhum gato A neblina estava tão densa que chegou a estender a mão como se esperasse encontrar resistência Fechou a janela Lorena já tinha calçado as sandálias e agora dobrava o chambre vermelho Seguroua pelos ombros Lena daqui a pouco amanhece tenho que ir embora antes que amanheça certo Mas não quero te deixar sozinha diga logo qual é essa sua idéia e eu ajudo mas depressa depressinha que no seu relógio já passa das três Sim vamos imediatamente murmurou ela entrando no banheiro o chambre vermelho apertado contra o peito Deve estar se lembrando do irmão com sua camisa vermelha ô que noite Que noite pensou Lia fechando os olhos Ouviu Lorena abrir e fechar o cesto de roupa suja Imagine que tinha esquecido o Agnus Dei na blusa dela estava preso no avesso da blusa coitadinha Foi Madre Alix que deu deixa eu prender vai com ele Por favor querida pegue a bolsa A caderneta está dentro A de estudante Está tudo aqui Ela está tão magra acho que sozinha eu podia carregar mas faz confusão melhor você pegar num braço e eu pego no outro Vamos disse e parou Por que Lorena lhe perguntara se a chave do carro estava no seu bolso Apalpouo Vamos Lena Essa bolsa atrapalha você leva depois Mas a bolsa tem que estar com ela querida Na cama Mas ela não vai ficar na cama disse Lorena Encarou a amiga Ana Clara não vai ficar na cama Não Lógico que não Ela não vai ser encontrada no quarto ela não morreu no quarto morreu noutro lugar Onde Numa pracinha Mas por que você pensa então que fiz esses preparativos todos Vai ficar numa pracinha já passei milhares de vezes por essa pracinha tem um banco debaixo de uma árvore é a praça mais linda que existe É naquele banco que ela vai ficar depois da festa foi a uma festa e na volta sentouse lá Ou foi deixada não interessa Vão encontrála chamam a polícia avisam Madre Alix aquela coisa toda Está entendendo por que a bolsa tem que ir com a caderneta dentro Deus fez com que mãezinha mandasse o carro murmurou Lorena prendendo a relíquia no avesso da gola do vestido Veja que as coisas todas vão se ajustando o carro a neblina Nunca vi uma neblina mais providencial a noite estava claríssima lembra Lia sentouse no chão Fechou a boca perplexa Fungou sacudindo a cabeça repetidamente as duas mãos na cara Riu Lorena você está brincando não está Quer dizer que vamos levar Ana Clara pra rua ou melhor deixála sentada numa pracinha muito jóia e voltarmos É essa sua idéia maravilhosa Lena É essa Foi por isso que me perguntou da chave Do carro da mãezinha Hein Por favor Lião não começa com ironia pense um pouco Ana Clara não pode morrer drogada num quarto do Pensionato Nossa Senhora de Fátima Não pode Sabe o que isso pode significar para as freirinhas Para Madre Alix Ela amava tanto Madre Alix não havia de querer comprometêla num escândalo desses estou fazendo tudo como Aninha gostaria que fosse feito Deus me inspirou pedi inspiração e Ele me deu depois que tive essa idéia cheguei a sentir uma certa paz Posso mudar querida Se a morte não tem remédio posso ao menos salvar as circunstâncias Você quer dizer as aparências Lião querida compreendo perfeitamente é um risco grande para você não estou pedindo que me ajude é lógico Mas eu vou fazer tudo exatamente como calculei não adianta discutir mais disse e voltou a olhar para o relógio Tenho meia hora para ir e voltar já pensou Me ajude só na escada e depois faço tudo sozinha me dá a chave Deixo na sua janela quando voltar Com passos decididos Lia aproximouse da morta Prendeu a alça da bolsa na cintura e coçou com força o nariz os olhos Estou com uma puta alergia quando fico nervosa começa essa coceira Tenho um antialérgico quer Não agora quero é pegar esta moça Vamos Não esquecemos nada Lorena correu e desligou o tocadiscos A luz fica acesa que pensem que passei a noite estudando com um colega elas devem ter ouvido algum movimento Irmã Bula principalmente Por isso o saxofone gemendo a noite inteira Ela pensa em tudo murmurou Lia esfregando o nariz na manga Teve um sorriso Pegou Ana Clara nos braços Deixa pediu quando Lorena foi ao seu encontro Na escada você me ajuda Leve sim Eu sabia que ela é leve eu já sabia Abro a janela para que a luz ilumine mais a escada Dividimos o peso agora Lião vai na frente segurandoa pelas pernas e eu vou atrás sustentandolhe o tronco Seu corpo verga docemente como uma rede Sinto seu perfume Bom terlhe dado aquele banho Bom ter baixado essa névoa Não deixe cair o sapato digo quando o pé de Ana Clara se enrosca no gradil Também tinha pensado nisso que a escada seria a prova mais difícil é estreita demais e nem podemos ofegar Aninha é leve quando transportada numa superfície plana Nestes degraus todos tão estreitos Também sabia que Lião é mais desajeitada tem força mas se afoba quase cai se me descuido rolamos as três pela escada abaixo Está arfando e para compensar respiro o mais silenciosamente possível ai meu Pai nos ajude agora nos ajude que está demais difícil Não Ana não escorregue querida por que de repente você está resistindo Facilite não fique se jogando assim a pracinha é linda você vai gostar de ficar lá no banco a árvore tem passarinhos já pensou Depois Madre Alix fala com o Max quem sabe sua morte vai ajudálo O milagre que não aconteceu com você já pensou Me ajude meu Pai Me ajude Cuidado Lião Mais devagar querida Vamos parar um segundo Paramos Sustento a cabeça de Aninha no meu joelho enquanto enfio as mãos por dentro das suas mangas para segurála melhor pelos braços Sinto nos dedos suas axilas ainda outro dia lhe emprestei o aparelho está no quarto dela Uma gilete novinha E me lembro da tarde quando foi em que estávamos as três no meu quarto eu passava a lixa na perna Aninha pinçava as sobrancelhas com minha pinça e Lião recortava qualquer coisa num jornal Quando levantou o braço usava um camiseta sem mangas me levantei e fui correndo buscar a gilete pelo amor de Deus Lião passa a gilete nessa axila Ela obedeceu e fez sua distinção Axila é quando está raspado entende Sovaco é quando não se raspou disse e eu agora me lembrando de uma tolice dessas Com vontade de rir como naquele dia Vamos Lena Já descansou Sim vamos Vamos Como não reparei antes nesta escada Mas é compridíssima Não acenderam uma luz perguntou Lião Aquilo não é uma luz Não tem importância elas não podem nos ver sussurro mais no ouvido de Ana Clara do que no de Lião Estamos no finzinho só mais um pouco Quase corremos quando chegamos na alameda Um gato começou a miar desatinado ótimo mia mais meu gatinho cubra com seus miados nossos passos que parecem moer os pedregulhos outra coisa que eu não tinha reparado na indiscrição desses pedregulhos O barulho que eles fazem Não chuta assim querida Mas quem é que está chutando Fecha esse bico Lena Não fecho quero falar falar o tempo todo agora que estamos chegando quase no portão a primeira etapa já passou aleluia Olhamos A rua está deserta pelo menos até o limite onde podemos enxergar porque além é só um muro esfumaçado O Corcel opaco sem contorno Sustento o corpo de Ana contra o portão enquanto ela abre a porta ah bendita seja mãezinha com sua generosidade bendita seja a noite e as casas com seus olhos fechados Agora pode ir querida eu digo Daqui por diante me arrumo sozinha o pedaço mais complicado já passou Ela me ajuda a sentar Ana Clara no banco da frente Em seguida entrou Sentouse ao lado enlaçoua e bateu a porta Eu seguro você guia disse sem me encarar Mas vamos Enxugo os olhos Acendo os faróis Ah Lião Ela está sorrindo de dentes cerrados Você é demente mas não vou te deixar sozinha nisso Vai ser muito divertido se nos pegarem transportando um cadáver ô que divertido disse e sacudiu a cabeça rindo abertamente Transportando um cadáver em plena madrugada eu de passaporte na mão Mas não é original Começo a rir também quando vejo através do espelho seu gorro preto enterrado até as sobrancelhas Recostada na almofada a cabeça de Ana Clara parece descansar tão naturalmente não vejo o braço de Lião apertando seu peito contra o banco como uma trave que estamos exatamente como eu tinha planejado duas amigas conduzindo uma terceira que bebeu e dormiu Não vão nos pegar querida E um cadáver de morte suspeita prosseguiu abrindo uma fresta na janela Você não estuda Direito Putz sabe que estamos ligeiramente ilegais não sabe Você pensa em tudo Pense numa resposta ao policial Guio devagar com a cara quase encostada no vidro ai meu Pai a neblina amigainimiga se cerrou mais tenho a impressão que penetro numa nebulosa os faróis tão pobres não permita que venha nenhum carro agora agora não eu peço e continuo falando Lião está de bom humor precisamos estar de bom humor Digo que Ana chegou péssima resolvemos levála a um Pronto Socorro e nos perdemos na madrugada quem é que não se perde numa madrugada dessas Você é imaginosa Lena Cabecinha privilegiada a sua Mas tem uma coisa que se chama autópsia o legista vai dizer que ela está morta há mais tempo do que você afirmou Ou não Quase me esqueço dessa palavra Autópsia O final fino como um estilete O mármore O rigor da mão profissional cortando tão profissionalmente ainda o perfume de sabonete ainda o talco De qualquer maneira ela está tão bonita não está doutor Tão bem maquilada tão limpa Eu sei que o senhor executa sua tarefa a frio mas desta vez vai recebêla com mãos diferentes a beleza ainda emociona Você me acha louca Lião Bastante Mas eu também entende E esta aqui do nosso lado Não se preocupe sei lá É longe Essa pracinha já estamos rodando há horas Depressa Lena afunde esse pé no acelerador estamos feito tartarugas Não quero lhe dizer que não posso correr mais do que estou correndo porque não enxergo nada Estamos chegando calma Você desce primeiro aqui do banco empurro o corpo que você vai receber e levantar fica com ela abraçada em pé Depois saímos eu de um lado você do outro está me compreendendo Lião Perfeitamente Então vem o guarda da pracinha e nos ajuda certo Não tem nenhum guarda Olha é aqui Ai meu Pai chegamos chegamos está vendo a árvore Vamos sair conversando bem naturais Desligo o motor Apago os faróis Beijo os pés de Deus santificado seja o vosso nome Olha primeiro do seu lado Ninguém Ela abre a porta Ninguém Depressa Fico de joelhos no banco e empurro Ana Clara para as mãos estendidas de Lião A cabeça tomba e me fere o lábio quase digo cuidado Aninha Quando desço Lião a enlaça como se fossem sair dançando as duas o braço estendido para a frente procurando agarrar lhe a mão Conseguiu palma contra palma Flexionouo e trouxeo para o ombro num movimento tão doce que por um instante tive a sensação de que Ana Turva comovida resolveu colaborar enlaçandoa A tarefa de Lião foi a mais dura avaliei seu esforço quando me coloquei do outro lado e sem dificuldade tomeilhe o braço pendente e passeio em volta do meu pescoço A pracinha redonda como a copa azulcinza da árvore me pareceu mais íntima mais secreta assim fechada pela neblina Quero me lembrar de um verso de Garcia Lorca e não me lembro mas cito ao acaso precisamos ir falando falando em voz baixa mas falando como duas delirantes amparando uma terceira a mais trôpega e a mais bonita onde foi a festa Intima como uma pequena praça a idéia é essa mas não lembro uma poesia de Lorca você conhece Não me lembro de nada acho que esqueci tudo e nunca mais vou lembrar entende nunca mais vou lembrar de nada nada Lião fica repetindo enquanto olha para os lados Os bicos dos sapatos de Ana Clara resvalam pela areia tão branca quanto a neblina Lião procura erguêla mais alto e não consegue Adivinho os sulcos que os bicos dos sapatos vão deixando na areia e penso que na volta preciso desfazer esse rastro Ouço um motor pesado caminhão passando próximo Se afasta Olha o banco Podíamos descansar ali um pouco hein Lião Quem sabe eu lembro da poesia fala de uma pracinha como esta Deserta não Que é aquilo lá adiante Lá É só um pinheirinho Deserta Mas e a poesia lembra Perfeitamente Lembro lembro Depressa Lena Você não quer sentar um minuto Sentouse arrastando Aninha que quase lhe desaba do colo A pedra do banco está gelada Mas seu rosto está igual ao banco Depois de sentada contra a árvore ela mesma tombou para o lado que quis e ali ficou equilibrada a face na pedra as mãos aconchegadas contra o peito Faço da bolsa o travesseiro tomando o cuidado de não marcarlhe o queixo com o fecho Cubro seu tornozelo com o vestido Arrumo a fivela do sapato que entortou na caminhada Limpo a poeira Lena vamos Vamos Aperto suas mãos geladas penso em abrilas mas se ela preferiu assim Nós te amamos muito Deus te guarde Lião me enlaça e me arrasta É de Lorca você tem razão é sobre uma praça Você disse íntima Não posso falar estou chorando e desfazendo nas solas das sandálias a marca que ela deixou Entramos no carro Ouço o queixo de Lião batendo Ou é o meu Contorno a pracinha mas já não vejo nem o banco nem a visitante só a copa da árvore no nevoeiro E a noite começou com estrelas Tão grandes digo Procuro a flanela Limpo o párabrisa O perfume de Ana Clara ainda está entre nós Mas Lião deve ter tido o mesmo pensamento abriu uma fresta na janela O bebezinho Lorena O bebezinho erótico putz Que bebezinho Aquele dependurado aí no espelho Fiz minha doutrinação e colou seu chofer sumiu com ele Perfeito perfeito São essas coisas que me dão esperança murmurou relaxando o corpo Acho que faz um mês que não durmo ô Lena Lena vai dar certo não vai Não sei se ela está falando de Ana Clara ou da viagem Da viagem lógico lógico Vai ser maravilhoso querida Tenho a intuição vai ser maravilhoso E sinto uma brutal vontade de alegria Vontade de rir falar com as pessoas dizer tolices escrever tolices Ai meu Pai a prova É tempo de entrar me enfiar num chuveiro tomar um copo de leite quente vontade de leite apagar as pistas no quarto de Aninha e ir correndo para a Faculdade É preciso sair antes que Antes Mas não é mesmo maravilhoso Lião Quando a gente está do lado de Deus digo e breco o carro Mas Deus está deste lado Beijoa de leve enxugo as últimas lágrimas não vou chorar mais e guardo meu lencinho no bolso Temos milhares de coisas que falar Lião Milhares Evidente Ficaríamos aqui falando até o fim dos tempos vamos saia Depressa Lena Descemos Estamos tremendo de frio Ouço o sininho da sua corrente fazer dlimdlim mas nesta noite ele já tocou outras vezes Olho a barra da sua calça E os cabelos que escapam do gorro esfiapados na ventania É a despedida mas não é para dizer que é a despedida Vamos Lena entra depressa Você vai na frente Mas não fique aí me olhando está quase amanhecendo A cruz lembro Ponho na sua janela no lado de fora não se esqueça de pegar Não vai esquecer Certo perfeito Não esqueço agora anda Abro o portão Quando me volto ela está no mesmo lugar rindo Levanta o braço na saudação de mão fechada Mandolhe beijos bem diáfanos nas pontas dos dedos Saio correndo subo a escada em três lances encolheu pego a cruz dentro da caixinha desço de novo atravesso o jardim e a deixo na janela Lião já está lá dentro e sei que me viu mas disfarçou Quando fecho a porta do meu quarto tenho que parar e ficar respirando Respirando Ligo a vitrola e ao acaso sem trapaça escolho um disco Fico sorrindo quando ouço o que escolhi Vou reto até a cama faço uma trouxa apertada de roupa abro o cesto e empurro a trouxa para dentro A tampa resiste resmunga salta duas vezes mas na terceira tentativa se acomoda e fica fechada A banheira ainda com a água do banho Um tênue caracol de espuma flutua na superfície já fria Volto a cara meto a mão na água e arranco a borracha do ralo Enquanto espero olho os sais do vidro nunca vi pepitas de ouro mas devem ser assim as tais pepitas Abro o jorro de água quente e quando me inclino de novo para a banheira o depósito que adivinhei no fundo já foi levado embora Escolho no armário a roupa de cama verde A toalha de banho pode ser branca Abro o chuveiro e sinto na boca o calor da fumaça A de fora já está se dissipando e aqui começa outra ah não esquecer de avisar à menina de Santarém que se aparecer um gatinho malhado atendendo pelo nome de Astronauta Gatinho Mas ele não cresceu Enfim um gato malhado Me avise e será fartamente recompensada E se uma voz meio velada me chamar no telefone voz de homem que prefere não deixar o nome Me vejo de perfil no espelho esfumaçado Fim Este livro foi confeccionado nas oficinas da Gráfica Editora Bisordi Ltda na Rua Santa Clara 54 Brás São Paulo para a Livraria José Olympio Editora na Rua Marquês de Olinda 12 Botafogo Rio em outubro de 1974 ano do SÉTIMO CENTENÁRIO DA MORTE DE Santo Tomás de Aquino 1225 1274 SEXTO CENTENÁRIO DA MORTE DE Francesco Petrarca 2071304 1971374 TRICENTENÁRIO DA MORTE DE John Milton 9121608 8111674 BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE Hipólito José da Costa 1381774 1191823 SESQUICENTENÁRIO DO JURAMENTO DA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Constituição Política do Império do Brasil 2531824 E DA MORTE DE Antônio de Morais Silva 181755 1141824 CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE Raul Pederneiras 1581874 1151953 CINQÜENTENÁRIO DA MORTE DE Vicente de Carvalho 541866 2241924 e 43 da fundação desta Casa httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros