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O CONCEITO DE POLIFONIA EM BAKHTIN O TRAJETO POLIFÓNICO DE UMA METÁFORA Artur Roberto Roman Queiramos ou não as metáforas seduzem a razão São imagens par ticulares e remotas que insensivelmente se convertem em esquemas gerais Bachelard194893 INTRODUÇÃO A polifonia é um conceito muito caro à lingüística contemporânea Utilizada metaforicamente por Bakhtin na análise da obra de Dostoiévski e por Lacan na caracterização do inconsciente participa hoje do acervo conceptual de diversos ramos da ciência da lin guagem A leitura de variados trabalhos que abordam a questão da polifonia em lingüística mostra que não há no entanto homogeneidade em sua aplicação Juntamente com a tendência redutora há aqueles que ampliam o conceito chegando a adulterálo O objetivo deste trabalho 6 recuperar o sentido da polifonia trazido da música medieval e mostrar a sua aplicação dentro do corpo teórico desenvolvido por Bakhtin bem como apontar improcedencias na tentativa de aproximação de linhas teóricas através da articulação dessa metáfora Aluno de PósGraduação Mestrado em Lingüística de Língua Portuguesa UFPR LetrasCuritiban4142p 195205199293Editora da UFPR 195 ROMAN AR O conceito de polifonia POLIFONIA NA MÚSICA Polifonia é o nome dado a um estilo de música que se desenvolveu na Idade Média Embora não haja unanimidade entre os estudiosos com respeito à origem da polifonia não parece haver dúvidas quanto às suas raízes populares e também quanto à sua oposição ao canto monódico da Igreja o canto gregoriano1 Os primeiros documentos descrevendo rudimentos de polifonia datam do século IX No Organum canto popular que começa a aparecer a partir desse periodo acrescentase ao canto monódico uníssono uma segunda voz Cantado portanto pelo menos por dois cantores cada nota da melodia principal é contracantada por uma única nota da voz superior Essas melodias eram escritas na época sob a forma de pontos daí o sentido original da palavra contraponto ponto contra ponto Datam do início do século XII os primeiros documentos de uma polifonia de duas vozes em que a independência rítmica duração das notas e acento das palavras vai aparecer A segunda voz passa a rebater nota por nota a melodia do cantochão em movimentos não apenas paralelos mas variados contrários oblíquos A partir da chamada Escola de NotreDame de Paris no período gótico passaram a desenvolverse várias outras formas musicais polifónicas com estruturas em que a contestação ao canto gregoriano é levada a um grau ainda muito mais radical A grande forma polifónica desse período é um gênero de composição em que as palavras determinam as linhas melódicas logo se chamou a este gênero de composição motero de mot palavra Pelos meados do século XIII as vozes dos motetos passam a se diferenciar tanto rítmica como melódicamente Essa independência das vozes vai permitir que não só uma melodia trovadoresca e um canto gregoriano apareçam simultaneamente numa mesma peça mas também que uma das vozes cante um hino em latim enquanto outra canta uma canção em francês Essa ausência de identidade entre as linhas melódicas que se cruzam constantemente permite formar um verdadeiro trançado de linhas 1 Tanto o canto gregoriano quanto a polifonia são cantos modais As müsicas modais são reiterativas repetitivas e monótonas Seu desenvolvimento é circular em tomo de uma tônica fixa Nessa circularidade estática em tomo de um eixo harmônico fixo a melodia modal caminha para o que Wisnik chama de um nãotempo ou seja um tempo circular do qual é difícil sair depois que se entra nele porque é sem fim Wisnik1989 p36 208 LelrasCuritiban41 12p207220199293Editora da UFPR ROMAN AR O conceito de polifonia independentes num claro contraste com a uniformidade e a planura do cantochão o canto gregoriano A individualização das partes no que se refere ao texto também vai se tomando mais acentuada Há motetos em que uma voz canta um louvor a Virgem Maria enquanto outra propaga as belezas de uma prostituta Nessa politextualidade linguagens diferentes se inter penetram confrontandose o erudito e o popular o sacro e o profano A politextualidade que é um aspecto essencial do moteto bem como a independência total tanto melódica como rítmica entre as vozes será uma constante através dos séculos da era gótica e uma característica definidora dessa modalidade de polifonia A polifonia era uma linguagem dinâmica e mutável flutuante e ativa apropriada portanto para expressar a percepção carnavalesca do mundo que possuía o homem medieval2 oposta a qualquer idéia de acabamento e perfeição que caracterizava o canto gregoriano HOMOFONIA NA MÚSICA A partir do século XIV Ars Nova a evolução do sistema de notação musical vai permitir uma maior complexidade nas composições polifónicas levando a um gradual afastamento de suas raízes populares O cada vez mais intrincado entrelaçamento das vozes vai tomar impossível o entendimento das palavras o que acaba por preocupar não só o Clero que incapaz de combatêla já havia incorporado a polifonia como também os com positores não ligados à Igreja desejosos de exprimir através de palavras inteligíveis o sentido emocional dos textos musicados O Concilio de Trento 1583 no bojo da ContraReforma dá as bases para que a Igreja passe a privilegiar na música o estilo homofônico ao invés da polifonia Isto porque na homofonia um mesmo texto é cantado simultaneamente por todas as vozes o que possibilita uma apresentação mais clara das palavras tocando mais os fiéis Wisnik 1989 pl 1719 A preocupação com a inteligibilidade do texto vai permitir a observação da relação vertical entre as vozes e essa percepção da combinação de sons simultâneos desenvolveria o sentimento de harmonia 2 Para uma melhor compreensão do pensamento do homem medieval e da cultura popular da Idade Média ver Bakhtin1987 LetrasCuritiban41 42p207220199293 Editora da UFPR 209 ROMAN AR O conceito de polifoná Enquanto polifonia é uma multiplicidade de vozes independentes imiscíveis e superpostas cantando textos variados homofonia são várias vozes cantando simultaneamente o mesmo texto subordinadas à harmonia que garante a unidade musical através dos acordes Incorporando paulatina mente a homofonia o sistema tonai vai se consolidar ao longo dos séculos XVI XVII estabelecendose definitivamente por volta de 17003 POLIFONIA NA LITERATURA Bakhtin desenvolve o conceito de polifonia em Problemas da Poética de Dostoiévski PPD Segundo Bakhtin é característica do romance ser plurivocal Estudando Dostoiévski Bakhtin observou que o seu discurso romanesco não é apenas plurivocal há algo mais além dessa plurivocidade as vozes dos personagens apresentam uma independência excepcional na estrutura da obra Como diz Bakhtin é como se soassem ao lado da palavra do autor Observou mais que as múltiplas consciências que aparecem no romance mantêmse equipolentes ou seja em pé de absoluta igualdade sem se subordinarem à consciência do autor Também os mundos que povoam os seus romances se combinam numa unidade de acontecimento porém mantendo a sua imiscibilidade Ao enfatizar o caráter dialógico aberto do universo artístico de Dostoiévski Bakhtin destaca outra característica de seu estilo a incon clusibilidade Na trama construída por Dostoiévski não há uma superação dialética entre a multiplicidade de consciência que povoa os seus romances os problemas e as contradições não se resolvem continuam irremediavel mente contraditórios Bakhtin1981 p24 O romance polifónico de Dostoiévski não tem uma apoteose Esses procedimentos artísticos especiais de construção do romance de Dostoiévski a inconclusibilidade temática a independência imis cibilidade e eqüipolência das vozes vão mostrar uma estreita similitude com as características da polifonia medieval daí a utilização da metáfora 3 A melodia tonal é elaborada em tomo de acordes não se fixa em uma tônica Contrapõe à tônica outras notas a dominante a subdominante existe uma hierarquia entre as notas que ensejam novos acordes com novas possibilidades melódicas Na müsica tonai há um movimento progressivo que vai evoluindo buscando uma resolução Ao contrário da música modal ela apresenta um fundamento dinâmico progressivo teleológico perspectivisticoWisnik1989 p 106 210 LctrasCuritiban4l42p207220199293Editora da UFPR ROMAN AR O conceito de polifonia Nessa obra Bakhtin discorda da comparação que Komaróvitch faz entre a polifonia de Dostoiévski e a combinação contrapontística de vozes da fuga4 Diz Komaróvitch citado por Bakhtin que a unidade artística do romance dostoievskiano se faz assim como as vozes da fuga mediante a subordinação teleológica dos elementos constitutivos da obra romance ou música Bakhtin diz ser incorreta essa interpretação Explica que a essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes permanecem independentes e como tais combinamse numa unidade de ordem superior à da homofonia sem a subordinação teleológica Leonid Grossman a quem Bakhtin faz referência em PPD crítico literário russo dedicado ao estudo de Dostoiévski no ensaio Dostoiévski Artista também ressaltava o caráter musical da composição de Dostoiévski A lei de composição da obra de Dostoiévski poderia ser repre sentada gráficamente como uma horizontal do entrecho em desenvolvimento interceptada pelas verticais dos episódios tumultuosos que erguem a ação para a altura e que parecem transportála para um novo plano onde a linha do argumento paralela à primeira em breve também se precipitará para o alto em virtude da explosão de uma nova ocorrência incomum Obtémse uma linha de composição em degraus que não cessa de elevar o entrecho até a sua conclusão definitiva na catástrofe final c na catarse concludente Grossman1967 p 36 Essa resolução catártica além da dinâmica progressiva são características do tonalismo o que afasta a comparação da polifonia gótica Grossman quando destaca a estrutura polifónica da obra de Dostoiévski com certeza não se refere à polifonia modal Tanto que sua análise do método composicional de Dostoiévski se fixa especialmente nos elementos constitutivos de sua obra sem enfatizar a relação entre as vozes no romance Komaróvitch Grossman e Bakhtin falam de polifonias diferentes A dos primeiros é a polifonia tonai que busca uma resolução final a de Bakhtin é a polifonia medieval gótica modal inconclusa 4 A fuga é polifónica também mas diferente do moteto Sua expressão maior foi Bach A polifonia de Bach é construída dentro do espaço tonalKiefer1976 Talvez Komaróvitch preferisse colocar ao lado de Dostoiévski um grande nome como Bach do que comparar a sua composição com os motetos populares da Idade Média LetrasCuritiban4 l42p207220199293 Editora da UFPR 211 ROMAN AR O conceito de polifonia POLIFONIA E C ARNAVALIZAÇÃO A polifonia de Dostoiévski vinculase mais fortemente à polifonia gótica quando analisados os aspectos de camavalização de seu romance5 A imagem carnavalesca tende a abranger os dois membros da antítese nascimentomorte mocidadevelhice altobaixo facetraseira elogio impropério afirmaçãonegação trágicocómico etc Segundo Bakhtin é assim que se pode definir o próprio princípio da obra de Dostoiévski Tudo em seu mundo vive em plena fronteira com o seu contrárioBakhtin1981 p 153 Vêse que é a polifonia gótica do moteto e não outra o estilo adequado para expressar esse princípio carnavalesco da obra de Dostoiévski ou seja essa multiplicidade dc vozes essas diferenças ambigüidades num franco processo de mixagem de vozes textos línguas ritmos e índices sociaisWisnik1989 p 112 HOMOFONIA NA LITERATURA Bakhtin coloca o gênero essencialmente novo do romance polifónico criado por Dostoiévski em oposição às formas já constituídas do romance europeu principalmente do romance monológico homofônico O exemplo que cita de romance homofônico é Tolstói6 Aqui a metáfora musical utilizada por Bakhtin é bem ilustrativa no romance homofônico ou monológico as vozes perdem a sua imiscibilidade e as consciências se tornam dependentes da consciência una do autor 5 Bakhtin denomina de camavalização da literatura a transposição para a literatura da linguagem simbólica concretosensorial das festas populares ritualísticas de base carnavalesca Estes festejos embora apresentem variações de natureza cultural e histórica caracterizamse fundamentalmente pela inversão da ordem habitual da vida quando as regras sociais e as proibições são suspensas e o mundo é virado às avessas Ver PPD p 105 a 155 e Bakhtin1987 6 Kothe 1981 afirma em sua critica à Bakhtin que o romance de Tolstói é tão polifónico quanto o de Dostoiévski Neste nosso trabalho não está em questão a análise literária feita por Bakhtin mas somente a aplicação que faz da metáfora musical 212 LetrasCuritiban41 42p207220199293Editora da UFPR ROMAN AR O conceito de polifonia POLIFONIA NA PSICANÁLISE A psicanálise vai buscar também na música o modelo para explicar a manifestação do inconsciente Se nós utilizarmos uma comparação de ordem musical o canto do inconsciente não é o contracanto de uma fuga ou os harmônicos de uma linha melódica o canto do inconsciente é a música de jazz ouvida tendo por detrás um quarteto de Haiden vindo de um rádio mal sintonizado SLeclairea réalité du désir Apud AuthierRevuz1987 p 135 E conclui Leclaire dentro do desenvolvimento de uma só cadeia material se escuta ao mesmo tempo diversos discursos sem que exista qualquer terreno de interpretação entre eles SLeclaire et D Levy Le port de Djakarta Apud AuthierRevuz1987 p 135 Embora a tenha tão bem caracterizado Leclaire não utiliza o termo polifonia É Lacan apoiado nos estudos de Saussure sobre os anagramas7 que vai explicitamente utilizar a metáfora a linearidade que F de Saussure considera como constituinte da cadeia do discurso conforme a sua emissão por uma única voz e na horizontal onde se inscreve em nossa escrita se ela c necessária de fato não é suficiente basta escutar a poesia o que era sem dúvida o caso de Saussure para que aí se faça ouvir uma polifonia e ver que todo discurso alinhase sobre as várias pautas de uma partitura 1978 p 2334 Lacan reforça a analogia com a noção do contraponto musical Não há com efeito nenhuma cadeia significante que não sus tente como pendendo na pontuação de cada uma de suas unidades tudo o que se articule de contextos atestados na vertical por assim dizer desse ponto p 234 7 Ver Starobinski1974 LetrasCuritiban41 42p207220199293Editora da UFPR 213 ROMAN AR o conceito de polifonia É possível portanto falarse em um uso metafórico da polifonia tanto por Bakhtin quanto por Lacan POLIFONIA NA LINGÜÍSTICA Quem tem o mérito de especificar o uso dessa polifonia lacaniana explorandoa com produtividade na lingüística é Jacqueline Authier Rcvuz quando busca a aproximação do dialogismo de Bakhtin com a abordagem psicanalítica do sujeito de Lacan AuthierRevuz1982 Se a construção dessa identidade está sujeita como ela própria reconhece a contradições não será devido ao uso indevido da metáfora Authier procura sustentar essa conexão no reconhecimento de ambos da heterogeneidade estrutural de toda formação discursiva consubstanciada na presença do outro na linguagem do sujeito Se pode ser questionado o seu esforço teórico devese reconhecerque tomou operativo o uso do conceito8 O trabalho de AuthierRevuz parece animar a argumentação teórica de Osvald Ducrot que lhe faz créditos na apresentação de sua própria teoria da polifonia A POLIFONIA EM DUCROT Ducrot no Esboço de uma Teoria Polifónica da Enunciação 1987 se propõe a questionar um pressuposto que segundo ele subjaz à chamada lingüística moderna qual seja a tese da unicidade do sujeito falante p 161 Ducrot vai distinguir num enunciado além do sujeito falante autor efetivo do enunciado ser empírico o locutor ser do discurso e o enun ciador o sujeito dos atos locutorios9 Para Ducrot o sentido do enunciado 8 Authier distingue a heterogeneidade constitutiva da heterogeneidade mostrada no discurso discriminando a polifonia dc todo discurso que necessariamente se alinha sobre os muitos planos dc uma partitura dos efeitos de polifonia que permitem certas formas dc heterogeneidade mostrada 1990 p 32 9 Maingueneau1990 no artigo Polyphonie discute didaticamente esses trois status do sujeito falante em Ducrot A única referência feita a Bakhtin está na introdução do trabalho quando o autor lembra que a noção de polifonia desenvolvida por Ducrot é emprestada do trabalho de Bakhtin 214 LclrasCuritiban41 42p207220199293Editora da UFPR ROMAN AR O conceito de polifonia é um conjunto de indicações sobre a enunciação e nessa descrição da enunciação o enunciado assinala além do locutor os enunciadores que ao ocupar papéis ilocucionais se expressam numa pluralidade de vozes p 172 Essa manifestação de diversas vozes presentes na enunciação está prevista no sistema da língua e se dá através de marcas lingüísticas Para os objetivos deste nosso artigo devese destacar que a caracterização dessa superposição de vozes que se manifesta na enunciação como polifonia não guarda correspondência adequada com a polifonia musical10 O atributo polifónico implicaria manifestada na enunciação uma multiplicidade de vozes que além de imiscíveis explicitassem pontos de vista não só diferentes mas eqüipolentes o que não se encontra na concepção polifónica do sentido da forma apresentada por Ducrot Não podemos descuidar de que a questão polifónica em Ducrot se insere no quadro maior de sua preocupação teórica com a questão da argumentatividade como um ato lingüístico fundamental inscrito na própria língua e estruturador do discurso Assumidos esses pressupostos Ducrot teve a preocupação de avisar que faria uma extensão bastante livre à lingüística dos trabalhos de Bakhtin e sobre a literatura Ducrot1987 p 163 Afinal enquanto Ducrot desenvolve uma concepção enunciativa do sentido no quadro do dialogismo bakhtiniano o sentido é trabalhado como um produto da interação entre os sujeitos falantes Não bastasse isso o estatuto teórico atribuído ao sujeito é diferente nos dois autores Na tipologia do sujeito de Ducrot não há qualquer consideração ideológica pois nela o indivíduo empírico é um sujeito lingüístico e não um ser da linguagem O objeto sobre o qual se debruça Ducrot é o enunciado isolado para Bakhtin o enunciado é um elo na cadeia interminável da comunicação verbal Isolar esse enunciado é na feliz imagem de Bakhtin como arrancar do solo uma planta Ducrot e Bakhtin a partir de uma produção teórica complexa produtiva e particular a cada um realizam coisas diferentes segundo critérios diferentes chegando obviamente a resultados diferentes 10 Reforçamos nossa posição sugerindo que haveria maior precisão se ao invés de polifonia fosse utilizado homofonia onde as várias vozes da enunciação estariam submetidas à do autor empírico u Para um aprofundamento dessa discussão ver Gardin1988 Le Sens comme production sociale LetrasCuritiban41 42p207220199293Editora da UFPR 215 ROMAN AR O conceito de polifonia A POLIFONIA NO BRASIL Como as tendencias lingüísticas no Brasil que discutem o discurso são pouco preconceituosas quanto à inspiração teórica que as anima o conceito de polifonia por elas utilizado invariavelmente deve tributos a uma dessas três matrizes analisadas quando não a todas elas12 Nas leituras tanto se vê polifonia como um outro termo para dialogis mo como também polifonia distinguida de dialogismo e confundida com camavalização13 Não é raro a aplicação de polifonia em seu mero sentido etimológico de muitas vozes como se encontra também polifonia como um fenômeno da intertextualidade que pode se manifestar de maneira ampla ou restrita Koth1986 p 4414 Quanto à monofonia que contraposta à polifonia compõe o ins trumental teórico de correntes lingüísticas surgidas sob o impulso da Análise do Discurso e que discute uma teoria da enunciação embora não se trate de um termo comum na música é possível correspondêla com a monodia Sendo a monodia um canto cm uníssono ficaria sacrificado o dialogismo constitutivo da linguagem Devemos neste caso esquecer a música ou reelaborar a metáfora pois polifoniamonofonia participam de uma reflexão sobre o discurso que pressupõe a natureza dialógica da palavra prevendo o seu mascaramento num processo denominado de monofonização da polifonia enunciativa Como se vê a pouca parcimônia no uso da metáfora lhe concedeu uma inconveniente maleabilidade que dificulta o estudo lingüístico pois o leitor se sente lançado num verdadeiro pântano conceptual É possível perceber mesmo assim permeando essas variadas formulações sobre a polifonia um desejo muito pouco explicitado do 12 Podese perceber que o longo salto de uma polifonia como mera sobreposição de vozes de um mesmo sujeito Ducrot para a polifonia como manifestação da contradição constitutiva do sujeito AD é tentado com a politização do sujeito ducroniano via metáfora bakhtiniana 13 Os Anais da ANPOLUSP de 1992 oferecem significativos exemplares de quão volúvel tomousc o conceito M Roulet também fala em polifonia no sentido restrito distinguindoa de diafonia Roulct1992 p 68 Como diz AuthierRevuz a metáfora musical está em toda parte diafonia é o nome atribuido às primeiras manifestações polifónicas de que se tem noticia também conhecidas como Organum primitivo 15 Quando Pahlen fala em melodia monofònica1965 p 92 referese a uma espécie de monodia com acompanhamento praticada no século XVIII 16 Ver Brandão1991 p 67 e Guimarães1985 216 LetrasCuritiban41 42p207220199293Editora da UFPR ROMAN AR O conceito de polifonia estabelecimento de um elo ainda que tênue com a gênese da metáfora localizada em Bakhtin e Lacan uma vez que a dificuldade do consórcio com Ducrot é mais evidente Porém a feliz utilização da metáfora pelos dois primeiros não garante por si só a solidariedade de seus pensamentos O conceito de polifonia em Bakhtin vinculase a uma concepção de sujeito própria de Bakhtin e que com certeza se afasta da noção de um sujeito dividido efeito da linguagem com uma fala fundamentalmente heterogênea O dialogismo bakhtiniano se constata a alteridade constitutiva do discurso descartando também uma concepção subjetivista de enunciado não implica o pressuposto psicanalítico da divisão do sujeito tampouco a submissão incondicional deste à linguagem17 o que significaria aceitar o sistema da língua se sobrepondo ao sujeito A psicanálise busca na polifonia não intencional da aparente linearidade de uma cadeia significante a manifestação do inconsciente Bakhtin vê na palavra o resultado polêmico de um embate social pois dada a dialética interna constitutiva do signo o ser não apenas se reflete na linguagem mas também nela se refrata A polifonia que Lacan percebe nas pautas de uma partitura discursiva e que permite acesso a uma infe rioridade subjetiva cindida Bakhtin vê no território carnavalizado da lin guagem onde individualidades imiscíveis se confrontam e se mesclam num jogo de interação sócioidcológica Enquanto para Lacan a linguagem com sua estrutura préexisté à entrada que nela faz cada sujeito a um dado momento dc seu desenvolvimento mental1978 p 225 para Bakhtin a linguagem está sendo construída c recriada a cada momento pelos falantes pois é o produto social coletivo e histórico de um processo vivo cm constante mutação que se desenvolve na interação comunicativa A lin guagem para Bakhtin não existe por si mesma como um objeto pronto e acabado Quando Lacan postula que o mundo das palavras cria o mundo das coisas coloca um vestal idealista neokantiano Isto vai situálo irremediavel mente em oposição à Bakhtin para quem a linguagem mais que or ganizadora é produto da atividade humana Não cabe neste artigo o aprofundamento dessa discussão sobre a compatibilidade entre diferentes correntes de pensamento Queremos sim chamar a atenção para a impropriedade de se tentar a aproximação de teorias lingüísticas dificilmente entrelaçáveis com a articulação de uma metáfora w Na expressão de Lacan o sujeito é servo da linguagem 1978 p 226 LerasCuritiban41 42p207220199293Editora da UFPR 217 ROMAN AR O conceito de polifonia como se fora um salvoconduto que permitisse o trânsito pelas mais diversas áreas da ciência da linguagem EPÍLOGO Dentre os vários e ricos ensinamentos de Bakhtin um dos que mais tem sido seguido é o que se refere à questão da autoria Bakhtin afirma que a construção do nosso discurso se dá a partir da apropriação da palavra alheia Com essa absolvição prévia concedida por Bakhtin permitiuse uma utilização exageradamente livre dos seus ensinamentos resultando muitas vezes em um distanciamento das premissas originais Acrescese a isso a própria natureza multifacetada da produção intelectual de Bakhtin que pouco contribuiu para a definição precisa de seus conceitos Em PPD como vimos Bakhtin opõe à polifonia indistintamente homofônico e monológico dando preferência a este Nas outras obras de Bakhtin inclusive naquelas assinadas por seus parceiros do Círculo monológico é contraposto a dialógico sem qualquer menção à polifonia Se a metáfora musical parece ter ficado reservada por Bakhtin para caracterizar o romance de Dostoiévski não significa que o conceito deva confinarse ao universo da teoria literária O importante é que fora desse domínio não se perca de vista que o conceito de polifonia de Bakhtin compõe a mesma perspectiva dialógica de sua concepção de linguagem ou seja o dialogismo bakhtiniano é polifónico e carnavalesco RESUMO O objetivo deste trabalho é recuperar o sentido da polifonia trazido da música medieval e mostrar a sua aplicação metafórica por Bakhtin na análise da obra de Dostoiévski e por Lacan na caracterização do incons ciente Sendo hoje a polifonia um conceito corrente entre várias correntes l i n g ü í s t i c a s b u s c a m o s t a m b é m neste a r t i g o a p o n t a r p o s s í v e i s improcedéncias na tentativa de aproximação de linhas teóricas através da articulação dessa metáfora 218 LctrasCuritiban4112p207220199293Editora da UFPR ROMAN AR O conceito de polifonia ABSTRACT The aim of this work is to clarify the meaning of poliphony brought about by medieval music and to show its metaphorical application by Bakhtin in his analysis of Dostoevskis work and by Lacan in its characterization of the unconscious Considering that poliphony is nowadays a current concept in various linguistic trends this article points at some groundless procedure detected in the attempt to bring different theoretical lines together by means of the articulation of this metaphor REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUTHIERREVUZ Jacqueline Hétérogénéité montree et herogencite constitutive elements pour une approche de lautre dans le discours In DRLAV Revue de linguistique Centre de recherche de luniversité de Paris VIII 1982 n26 p9l a 151 Heterogeneidades anunciativasIn Cadernos de Estudos Lingüísticos n 19 p25 a 42 Unicamp 1990 BACHELARD Gaston La formación del espíritu cientifico contribuición a un psicoamlises del conocimiento objetivo Buenos Aires Argos 1948 BAKHTIN MikhailProblemas da poética de Dostoiévski Rio de Janeiro EdForcnse Universitària 1981 A cultura popular na Idade Média e no Renascimento O contexto de François Rabelais Brasília Hucitec 1987 BRANDÃO Helena H Nagamine Introdução à análise do discurso Campinas Edit da Unicamp 1991 DUCROT Osvald Esboço de uma teoria polifónica da enunciação In O dizer e o dito Campinas Ponte Editores 1987 capVIII p161210 GARDIN B Le sens comme production sociale In LINX n 19 p 55 a 72 Université de Paris Ling Institute Nantcme X 1988 GROSSMAN Leonid Dostoiévski artista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1967 GUIMARÃES Eduardo Polifonia c tipologia textual In Cadernos PUC São Paulo n 22 p 7587 1985 KIEFER Bruno História e significado das formas musicais do moteto gótico à fuga do século XX Movimento Porto Alegre Instituto Estadual do Livro 1976 KOCH Ingcdorc Grunfcld Villaça A intertcxtualidade como fator da tcxtualidadc In Cadernos PUC São Paulo n 22 p 3946 1985 KOTHE Flávio René Literatura e sistemas intersemióticos São Paulo Cortez 1981 LACAN Jacques A instância da 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