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Filosofia

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Michel Foucault Em Defesa da Sociedade Curso no College de France 19751976 Edi9GO estabelecida no ambito da Associa9iio para 0 Centro Michel Foucault sob a dire9GO de Franfois Ewald e Alessandro Fontana por Mauro Bertani e Alessandro Fontana Tradwao MARIA ERMANTlNA GALVAo Martins Fontes sao Paulo 200S ESla obra oi publicada originalmnt Im fionch cm Iftlo lL FAUT DtFENDRE LA SOCIETE par Edlllon ell Copyriiht Edilions du 51111997 Copyrighl 1999 Lilraria Manins FonkEdlora Ltda Silo Paulo pura a psenle edao I edio 1999 4 tiragem 2005 SUMARIO Traduo MARIA ERMANTlNA GALVAO Revisiio da traduo Eduardo Brandao Revisiio gnifica Marcia da em N6boa Leme Andria Swhe M da Slim Produtiio graficli Gaaldo AeI PaginatiiolFotolitos Studio 3 Desenvolrimenlo EdilOrial re du rogramme de panicipation iJ la publication benijici dl eel ouwuge publie dans Ie cad p IAmbassade de France au Bresil eI d fran ai des Affaire Etrangeres de outin du Minisl re 0 Maison ranlaise de Rio de Jamiro ro rarruJ de pOricipmiio da pubiealao conwu om 0 ap Esle lilro publicado no ombao o p Emhaiwoo da Franra no Brasil e da Malson do Minilhio ramI das Relae ExlerOres a ranlalse do Rw de JafllIo PreaCiD Curso anos 19751976 IX Dados Internacionais de Catalogallio na Pub CIP camara Brasileira do Livro SP Brasil d rodos os direilos desra e irao para oBrail resenados a L d Livraria Martins Fontes Edl10ra t a lh 330 D1P5000 Suo Paulo SP BlGsl R l Consehelro Rama o 4 u Tel 1132413677 FaxJlJ3J01JO h hrrpwWlImartmlonleIOmhl mail infodmalllnsfonlswm I Foucault Michel 19261984 C II de France 1975 Em dcfesa da ocicdade euo oa rtina Galvao Sao 1976 Michel Foucauh lradutao Man Paulo Martins Fonles 1999 ColCtao t6pieos Titulo original II raUl dcfendre la sociclI Centro Editao labclecida no ambito da AsetadParlssandro Michcl Foucault sob a direlao de FrantOIS w e Fontana por Mluro Bcnani e Alesandro Fontana ISBN 8533610041 I Floofia 2 Guerra Filosofla 3 Podcr Fi I Cicncia po lllca losofia I Titulo II Sric 3 27 Aula de 7 de janeiro de 1976 Que e urn curso Os saberes sujeitados 0 sa ber historico das lutas as genealogias e 0 discurso cientifico 0 poder 0 que esta em jogo nas ge nealogias Concep9ao juridica e economica do poder 0 poder como repressao e como guerra Inversao do aforismo de Clausewitz Aula de 14 dejaneiro de 1976 Guerra e poder A filosofia e os limites do po der Direito e poder regio Lei domina9ao e sujei9ao Analitica do poder questoes de meto do Teoria da soberania 0 poder disciplinar A regra e a norma CDD194 indices para eatatoosistemalico l Foucault Obras filos6ficls 194 990084 Aula de 21 dejaneiro de 1976 49 A teoria da soberania e os operadores de domina Cao A guerra como analisador das reacoes de poder Estrutura binaria da sociedade 0 dis curso hist6ricopolitico 0 discurso da guerra per petua A dialetica e suas codificacoes 0 dis curso da luta das racas e suas transcricoes Aula de 28 de janeiro de 1976 75 o discurso hist6rico e seus partidarios A con trahist6ria da luta das racas Hist6ria romana e hist6ria biblica 0 discurso revolucionirio Nas cimento e transforrnacoes do racismo A pureza da raca e 0 racismo de Estado transforrnacao na zista e transformacao sovietica Aula de 4 defevereiro de 1976 99 Resposta sobre 0 antisemitismo Guerra e so berania em Hobbes 0 discurso da conquista na Inglaterra entre os monarquistas os parlamenta ristas e os Levellers 0 esquema binirio e 0 his toricismo politico 0 que Hobbes queria eli minar Aula de 11 defevereiro de 1976 135 A narrativa das origens 0 mito troiano A he reditariedade da Franca FrancoGallia A in vasao a hist6ria e 0 direito publico 0 dualismo nacional 0 saber do principe Estado da Fran ca de Boulainvilliers 0 cart6rio a reparticao publica e 0 saber da nobreza Urn novo sujeito da hist6ria Hist6ria e constituicao Aula de 18 defevereiro de 1976 167 Nacao e nacoes A conquista romana Gran deza e decadencia dos romanos Da liberdade dos germanos segundo Boulainvilliers 0 vaso de Soissons Origens do feudalismo A Igreja o OOeito a lingua do Estado As tres generaliza coes da guerra em Boulainvilliers a lei da hist6 ria e a lei da natureza as instituicoes da guerra 0 caculo das forcas Observacoes sobre a guerra Aula de 25 defevereiro de 1976 199 Boulainvilliers e a constituicao de urn continuo his t6ricopolitico 0 historicismo Tragedia e di reito publico A administracao central da hist6ria Problemitica das Luzes e genealogia dos sabe res As quatro operacoes do saber disciplinar e seus efeitos A filosofia e a ciencia 0 discipli namento dos saberes Aula de 3 de mar90 de 1976 225 Generalizacao titica do saber hist6rico Consti tuiao Revolucao e hist6ria ciclica 0 selvagem e 0 barbaro Tres filtragens do barbaro titicas do discurso hist6rico Questoes de metodo 0 cam po epistemico e 0 antihistoricismo da burguesia Reativacao do discurso hist6rico na Revolucao Feudalismo e romance g6tico Aula de 10 de mar90 de 1976 257 Reelaboracao politica da ideia de nacao na Revo luao Sieyes Conseqiiencias te6ricas e efeitos sobre 0 discurso hist6rico Os dois gabaritos de inteligibilidade da nova teoria dominacao e tota lizacao Montlosier e Augustin Thierry Nas cimento da diaJetica Aula de 17 de marro de 1976 Do poder de soberania ao poder sobre a vida Fa zer viver e deixar morrer Do homemcorpo ao homemespecie nascimento do biopoder Cam pos de aplicaiio do biopoder A populaiio Da morte e da morte de Franco em especIal ArtI cUla5es da disciplina e da regulamentaiio a cida de operitria a sexualidade a norma BlOpoder e racismo Funoes e areas de aplicaiio do raCIS mo 0 nazismo 0 socialismo Resurno do curso Situariio do curso indice das noroes e dos conceitos lndice onomastico 285 317 327 353 379 PREFAcIO Este volume inaugura a ediiio dos cursos de Michel Foucault no College de France Michel Foucault lecionou no College de France de ja neiro de 1971 ate sua morte emjunho de 1984 com exce iio do ano de 1977 em que pOde beneficiarse de um ano sabatico 0 titulo de sua citedra era Historia dos sistemas de pensamento Ela foi criada em 30 de novembro de 1969 proposta por Jules Vuillemin pela assembleia geral dos professores do College de France em substituiiio it citedra de Hist6ria do pensamento filos6fico ocupada por Jean Hippolyte ate sua morte A mesma assembleia elegeu Michel Foucault em 12 de abril de 1970 titular da nova citedraI Ele tinha 43 anos 1 Michel Foucault havia concluido urn opusculo redigido para sua can didatura com esta frase Cumpriria empreender a historia dos sistemas de pensamento Titres et travaux in Dits et ecrits 19541988 ed por D De fert F Ewald col J Lagrange Paris Gallimard 1944 vol I p 846 x EM DEFESA DA SOClEDADE PREFAcIO XI Michel Foucault proferiu sua aula inaugural em 2 de dezembro de 19702 o ensino no College de France obedece a regras espe cificas Os professores tem a obrigaao de cumprir 26 horas de ensino por ano podendo a metade no maximo ser dada sob a forma de seminarios3 Devem expor todos os anos uma pesquisa original 0 que os fora a estar sempre reno vando 0 conteudo de seu ensino A assistencia aos cursos e aos semimirios e inteiramente livre nao requer inscriao nem diploma E 0 professor nao emite nenhum4 No voc bulitrio do College de France dizse que os professores nao tern alunos e sim ollvintes Os cursos de Michel Foucault eram dados as quartas feiras do inicio de janeiro ao fim de maro A assistencia muito numerosa composta de estudantes universitarios de professores de pesquisadores de curiosos muits dos qUaIS estrangeiros mobilizava dois anfiteatros do College de ran ce Michel Foucault queixouse muitas vezes da dlstancla que podia haver entre ele e seu publico e do pouco inter cambio possibilitado pela forma do curso Sonhava com um seminario que fosse a ocasiao de urn verdadelro trabaho coletivo Fez diferentes tentativas Nos ultimos anos na salda das aulas consagrava um bom momento para responder as perguntas dos ouvintes 2 Sera publicada pelas Editions Gallimard em maro de 1971 com 0 titulo Lordre du discours 3 0 que Michel Foucault fez ate 0 inicio dos anos 1980 4 No ambito do College de France 5 Em 1976 na esperan9a va de rarefazer a assistencia Michel Fou cault mudou a hora do curso que passou de 17h45 no final da tare para as 9h da manha cr oeste volume 0 inicio da primeira aula 7 de JaneIro de 1976 Eis como em 1975 urnjornalista no Nouvel Observa leur Gerard Petitjean podia transcrever seu clima Quan do Foucault entra na arena rapido dinamico como alguem que se lana na agua passa por cima dos corpos para atingir sua catedra repele os gravadores para colocar seus papeis retira 0 paleto acende uma lampada e comea a cem por hora Voz forte eficaz retransmitida por altofalantes unica concessao ao modernismo de uma sala mal iluminada por uma luz que sobe de arandelas de estuque Ha trezentos lu gares e quinhentas pessoas apinhadas tapando 0 menor espao livre Nenhum efeito oratorio Elimpido e terri velmente eficaz Sem a menor concessao a improvisaao Foucault tem doze horas por ano para explicar em curso pu blico a direao de sua pesquisa durante 0 ano que acabou de findar Entao comprime ao maximo e preenche as mar gens como os correspondentes que ainda tem muito 0 que dizer quando chegaraIn ao fim de sua folha 19h45 Foucault para Os estudantes COrrem para a sua escrivaninha Nao para falarlhe mas para desligar os gravadores Sem perguntas Na confusao Foucault esta sozinho E Foucault comenta Seria preciso poder discutir 0 que propus Algumas vezes quando 0 curso nao foi born sena precise pouca coisa uma pergunta para reordenar tudo Mas essa pergunta nunca vem Na Frana 0 efeito de grupo toma qualquer discussao real impossive E como nao hit canal de retorno 0 curso fica teatra Tenho uma relaao de ator ou de acrobata com as pessoas que estao presentes E quando acabei de falar urna sensaao de solidao tota6 Michel Foucault abordava seu ensino como urn pesquisa dor exploraoes para um livre vindouro taInbem desbrava 6 Gerard Petitjean Les Grands Pretres de luniversite franlaise Le Nouvel Observateur 7 de abril de 1975 XII EM DEFESA DA SOCIEDADE PREFAcIO XIII mento de campos de problematiza9ao que se formulavam antes como um convite lan9ado a eventuais pesquisadores Assim e que os cursos no College de France nao aumentam os livros publicados Nao sao 0 esb090 deles mesmo que uns temas possam ser comuns a livros e cursos Eles tern seu proprio estatuto Relacionamse com um regime discur sivo especifico no conjunto dos atos filosOficos efetua dos por Michel Foucault Neles desenvolve em particular 0 programa de uma genealogia das rela90es saberpoder em fun9ao do qual a partir do inicio dos anos 1970 ele refleti ra sobre seu trabalho em oposi9ao ao de uma arqueologia das forma90es discursivas que ate entao 0 havia dominad07 Os cursos tinham tambem uma fun9ao na atualidade 0 ouvinte que vinha seguilos nao ficava somente cativado pela narrativa que se construia semana apos semana nao ficava somente seduzido pelo rigor da exposi9ao nelas encontrava tambem um aclaramento da atualidade A arle de Michel Fou cault era de percorrer rapidamente a atualidade mediante a historia Podia falar de Nietzsche ou de Aristoteles da pericia psiquiatrica no seculo XIX ou da pastoral crism 0 ouvinte sempre tirava dai uma luz sobre 0 presente e os acontecimen tos de que era contemporaneo A for9a propria de Michel Fou cault em seus cursos se devia a esse sutil cruzamento entre uma erudi9ao cientifica um engajamento pessoal e um traba lho baseado no acontecimento Tendo os anos 1970 visto 0 desenvolvimento e 0 aperfei 90amento dos gravadores cassetes a escrivaninha de Michel 7 Cf em especial Nietzsche la genealogie lhistoire in Dits et ecrils II p 137 Foucault logo foi invadida por eles Os cursos e certos se minarios foram assim conservados Esta edi9ao toma como referencia a palavra pronuncia da publicamente por Michel Foucault DaIhe a transcri9ao mais literal possivel8 Gostariamos de poder apresentala tal qual Mas a passagem do oral para 0 escrito impoe uma in terven9ao do editor cumpre no minima introduzir uma pon tua9ao e fazer os paragrafos 0 principio sempre foi 0 de ficar 0 mais proximo possivel do curso efetivamente pro nunciado Quando parecia indispenstlvel as reitera90es e as repe ti90es foram suprimidas as frases interrompidas foram res tabelecidas e as constru90es incorretas retificadas Os pontos de suspensao assinalam que a grava9ao e inau dive Quando a frase esta obscura figura entre coIchetes uma integra9ao conjetural ou urn acrescimo Urn asterisco no rodape indica as variantes significati vas das notas utilizadas por Michel Foucault em rela9ao ao que foi pronunciado As cita90es foram verificadas e as referencias dos tex tos utilizados indicadas 0 aparelho critico se limita a eluci dar os pontos obscuros a explicitar certas alusoes e a precisar os pontos criticos Para facilitar a leitura cada aula foi precedida de urn breve sumario que indica suas articula90es principais o texto do curso e seguido do resumo publicado no Annuaire du College de France Michel Foucault 0 redigia geralmente no mes de junho portanto algum tempo depois do fim do curso Era para ele uma ocasiao de deixar claros 8 Foram utilizadas em especial as grava90es realizadas por Gilbert Buret e Jacques Lagrange conservadas no College de France e na Biblioteca do Saulchoir XIV EM DEFESA DA SOCIEDADE retrospectivamente sua inten9ao e seus objetivos Constitui a melhor apresent9ao deles Cada volwne acaba com wna situaao cuja responsa bilidade e do editor do curso tratase de dar ao leitor elemen tos contextuais de ordem biognifica ideologica e politica que situam 0 curso na obra publicada e fomecem indica6es referentes ao seu lugar no seio do corpus utilizado a fim de facilitar seu entendimento e de evitar os contrasensos que poderiam ser devidos ao esquecimento das circunstancias nas quais cada wn dos cursos foi elaborado e pronunciado Com esta ediao dos cursos no College de France uma nova face da obra de Michel Foucault e publicada Nao se trata no sentido proprio de ineditosja que esta ediao reproduz a palavra proferida publicamente por Michel Foucault com a exclusao do suporte escrito que ele utiliza va e que podia ser muito elaborado Daniel Defert que possui as notas de Michel Foucault permitiu aos editores consulta las Agradecemolhe vivamente Esta ediao dos cursos no College de France foi autori zada pelos herdeiros de Michel Foucault que desejaram satisfazer a imensa demanda de que eram objeto tanto na Fran9a como no exterior E isto em incontestaveis condiyoes de seriedade Os editores procuraram estar aaltura da con fiana que lhes concederam FRANCOIS EWALD e ALESSANDRO FONTANA Curso Anos 19751976 AULA DE 7 DE JANEIRO DE 1976 Que e urn curso Os saberes sujeitados 0 saber his6rieo das lUfas as genealogias e 0 discurso cienifieo o pader 0 que esta em jogo nas genealogias Concepfiio juridica e economica do pader 0 pader como repressiio e como guerra lnversiio do aforismo de Clausewitz Eu gostaria que ficasse urn pouquinho claro 0 que se passa aqui nestes cursos Voces sabem que a institui9ao onde estao e onde eu estou nao e exatamente urna institui9ao de ensino Enfim seja qual tenha side 0 significado que quise ram darIhe quando foi criado faz muito tempo atualmente o College de France funciona essencialmente como urna especie de organismo de pesquisa ese pago para fazer pes quisa E eu acho que a atividade de ensino no limite nao teria sentido se nao he dessemos ou se nao Ihe atribuisse mos em todo caso 0 significado que aqui vai ou pelo me nos que sugiro ja que se e pago para fazer pesquisa 0 que pode controlar a pesquisa que se faz De que maneira se po de manter a par aqueles que podem se interessar por ela e aqueles que tern alguns motivos de estar ligados a essa pes quisa Como e que se pode fazer senao finalmente pelo en sino isto e pela declara9ao publica a presta9ao de contas publica e relativamente regular do trabalho que se esta fazen do Portanto nao considero estas reuniOes de quartafeira como atividades de ensino mas antes como especies de pres ta90es de contas publicas de urn trabaho que por outro lado 4 EM DEFESA DA SOClEDADE AULA DE 7DEJANEIRODE 1976 5 deixamme fazer quase como eu quero Nesta medida con siderome absolutamente obrigado de fato a dizerlhes apro ximadamente 0 que estou fazendo em que ponto estou em que dire9ao vai este trabalho e nessa medida igual mente consideroos inteiramente livres para fazer com 0 que eu digo 0 que quiserem Sao pistas de pesquisa ideias esquemas pontilhados instrumentos fa9am com isso 0 que quiserem No limite isso me interessa e isso nao me diz res peito Isso nao me diz respeito na medida em que nao tenho de estabelecer leis para a utiliza9ao que voces lhes dao E isso me interessa na medida em que de uma maneira ou de outra isso se relaciona isso esta ligado ao que eu fa90 Dito isso voces sabem 0 que aconteceu no decorrer dos anOS anteriores por uma especie de infla9ao cujas razoes nao compreendemos bern chegamos acho eu a algo que estava meio travado Voces eram obrigados a chegar as quatro e meia e eu me encontrava diante de urn auditorio com posto de pessoas com as quais nao tinha no sentido estrito nenhum contato ja que uma parte se nao a metade do audi torio tinha de ficar em outra sala de escutar por microfone o que eu estava dizendo Nao era mais nem sequer urn espe taculo ja que nao nos viamos Mas estava travado por uma outra razao Eque para mim aqui entre nos 0 fato de ter de armar todas as quartasfeiras a tarde essa especie de cir ca era urn verdadeiro como dizer suplicio eurn exagero aborrecimento e urn pouquinho fraco Enfim era urn pouco entre os dois De modo que eu acabava efetivamente prepa rando estes cursos com muito cuidado e aten9ao e consa grava muito menos tempo digamos a pesquisa propria mente dita as coisas ao meSilla tempo interessantes e urn pouco incoerentes que eu poderia ter dito do que a colocar me a questao como e que eu you poder em urna hora uma hora e meia fazer este ou aquele negocio funcionar de ma neira que nao aborre9a demais as pessoas e que afinal de ontasa boa vontade que tiveram em vir tao cedo me olivir por tao pouco tempo seja urn pouco recompensada etc De rrodo que eu passava meses nisso e acho que 0 que faz a razao de ser ao mesmo tmpo de minha presen9a aqui e mesmo da presen9a de voces ou seja fazer pesquisa esca rafuncar ventllar certo numero de coisas ter ideias tudo ISSO nao era efelIvamente a recompensa do trabalho cum pndo As coisas ficavam muito no ar Entao eu disse comi go mesmo em todo caso nao seria ruim se a gente pudes se so encontrar entre trinta ou quarenta numa sala eu pode na dlzer aproxlmadamente 0 que fiz e ao mesmo tempo ter cantatas com voces fala responder as suas perguntas etc para recuperar urn pOUqUlnhO as possibilidades de intercam blO e de contato que sao ligadas a uma prMica normal de pesql1sa ou de ensino Entao como proceder Legalmente eu nao posso estabelecer condi90es formais de acesso a est sala Adotel portanto 0 metodo selvagem que consiste em marcar cursa para as nove e meia da manha pensando cmo dlZla ontem meu correspondente que os estudantes no sabe malS acrdr as nove e meia Voces diriio que e amda aSSlm urn cnteno de sele9ao que nao e justo os que acordam e os ue nilo acordam E este ou outro De qual quer forma ha sempre uns microfonezinhos uns gravado res aSSlrn as COlsas clfculam depois em certos casas fica em flta em tros casos eencontrado datilografado algu mas vezes ate e encontrado nas livrarias entao disse comi go mesmo sempre vai circular Vamos entilo tentar Des culpemme entao de teIos feito acordar cedo e transmitam mmhas desculpas aos que nao podem vir e de at t I 0 para razer urn pOUqUlnhO estas conversas e estes encontros de quartafeIra d volta ao fio normal de uma pesquisa de urn trabalho que 0 felto 0 que e de prestar contas de si mesmo em mtervalos mstltuclOnais e regulares 6 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 7DE JANEIRO DE 1976 7 Entao 0 que e que eu queria lhes dizer este ano E que eu estou urn pouco cheio quer dizer eu gosana de tentar encerrar de por ate certo ponto flm a urna sene de pesqm sas enfim pesquisa e urna palavra que se emprega de qualquer jeito 0 que e que ela quer dizer aO certo que vimos fazendo ha quatro ou cinco anos pratIcamente desde que estou aqui e que me dou conta que acurnularam incon venientes tanto para voces como para mlm Eram pesqmsas muito proximas urnas das outras sem chegar a formar urn conjunto coerente nem urna continuidade eram pesqmsas fragmentarias nenhurna das quais chegou finalmente a seu termo e que nem sequer tinham seqiiencia pesqmsas dlS persas e aomesma tempo muito repetitivas que caiam no meSilla ramerrao nos mesmos temas nos mesmos concel tos Eram pequenas conversas sobre a historia do processo penal alguns capitulos referentes 11 evoluao 11 istituciona lizaao da psiquiatria no seculo XIX conslderaoes sore a sofistica ou sobre a moeda grega ou sobre a Inqmslao na Idade Media 0 esboo de uma historia da sexualidade ou em todo caso de urna historia do saber da sexualidade atraves das prillicas de conflssao no seculo XVII ou dos control da sexualidade infantil nos seculos XVIIIXIX a locahzaao da genese de urna teoria e de urn saber da anomalia com todas as tecnicas que the sao vinculadas Tudo ISS0 marca passo nao avana tudo isso se repete e nao esta amarrado No fundo tudo isso nao para de dizer a mesma COlsa e con tudo talvez nao diga nada tudo isso se entrecruza nurna embrulhada pouco decifravel que nao se organiza muito em suma como se diz nao da resultado Eu poderia lhes dizer afinal de contas eram pistas para seguir pouco importava para onde iam importav mesmo que nao levassem a parte algurna em todo caso nao numa direao determinada de antemiio eram como que pontIlhados Compete a voces continualas ou mudar a direao delas a mim eventualmente prosseguiIas ou darlhes uma outra con figuraao Enfim veremos bern voces e eu 0 que se pode fazer com esses fragmentos Eu me sentia urn pouco como urn cachalote que salta por cima da superficie da agua dei xando nela urn pequeno rastro provis6rio de espuma e que delxa acredItar faz acreditar ou quer acreditar ou talvez ele acredite efetivamente que embaixo onde nao 0 vemos mais onde nao e mais percebido nem controlado por ninguem ele segue uma trajet6ria profunda coerente e refletida Ai esta qual era mais ou menos a situaao tal como a percebo nao sei 0 que ela era do Iado de voces AfinaI de contas 0 fato de que 0 trabalho que Ihes apresentei tenha tido esse andamento fragmentario repetitivo e descontinuo cor responderia bern a algo que se poderia chamar de preguia febri a que afeta 0 cariller dos que adoram as bibliotecas os documentos as referencias as escrituras empoeiradas o textos que jamais sao lidos os livros que mal sao impres sos sao fechados de novo e dormem depois em prateleiras das quais s6 sao tirados alguns seculos mais tarde Tudo isso conviria bern a inercia atarefada daqueles que professam urn saber para nada uma especie de saber suntwirio uma ri queza de novorico cujos sinais exteriores voces sabem muito bern encontramos dispostos nos rodapes das paginas Isso conviria a todos aqueles que se sentem solidarios de uma das sociedades secretas por certo as mais antigas as mais caracteristicas tambem do Ocidente uma dessas sociedades secretas estranhamente indestrutiveis desconhecidas pare ceme na Antiguidade que se formaram cedo no cristianis mo na epoca dos primeiros conventos sem duvida nos con fins das invas6es dos incendios e das florestas Quero falar da grande terna e calorosa francomaonaria da erudiao intiti S6 que nao foi simplesmente 0 gosto por essa franco maonaria que me impeliu a fazer 0 que fiz Pareceme que 8 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 7 DE JANEIRO DE 1976 9 esse trabalho que foi feito e que passou de urna maneira um pouquinho empirica e instavel de voces para mim e de mim para voces poderiamos justificalo dizendo que ele convi nha bastante bem para urn certo periodo muito limitado que e aquele que acabamos de viver os dez ou quinze no maxi mo vinte ultimos anos quero dizer um periodo no qual se podem notar dois fenomenos que foram se nao realmente importantes pelo menos pareceme bastante interessantes De urn lado foi urn periodo caracterizado por aquilo que po deriamos chamar de eficacia das ofensivas dispersas e des continuas Penso em varias coisas na estranha eficacia por exemplo quando se trata de travar 0 funcionamento da ins tituiao psiquiatrica do discurso dos discursos muito loca lizados na verdade da antipsiquiatria discursos que voces bem sabem nao eram sustentados e que ainda nao saO sus tentados por nenhurna sistematizaao de conjunto quaisquer que possam ter sido quaisquer que ainda possam ser suas referencias Penso na referencia de origem na analise existen ciall ou nas referencias atuais tiradas grosso modo do mar 1 Aqui Michel Foucault remete ao movimento psiquiitrico definido sucessivamente como antropofenomenoI6gico ou Daseinanalyse que havia procurado na filosofia de Husser e de Heidegger novos instrumentos concei tuais Michel Foucault se interessara por eles ji em seus primeiros escritos Cf La maladie et lexistence in Maladie mentale et personnalite Paris Presses Universitaires de France 1954 cap IV Introdulao a 1 Binswanger Le reve et lexistence Paris Desclee de Brouwer 1954 La psychologie de 1850it 1950 in A Weber D Huisman Tableau de fa philosophie contemporaine Paris Fischbacher 1957 La recherche en psycho1ogie in Des chercheurs s interrogent estudos apresentados por JE Morere Paris PUF 1957 os tres ultimos textos estao publicados in Dits et ecrils 19541988 ed par D Defert F Ewald colab 1 Lagrange Paris GallimardfBibliotheque des sciences hu maines 19944 vol I 19541969 II 19701975 III 19761979 IV 1980 1988 cf I nos 123 e voltara a ele nos ultimos anos cf Colloqui con Fou cault Salerno 1981 trad fr in Dits et ecrits IV n 281 xismo ou da teoria de Reich Penso igualmente na estranha eflcacia dos ataques que ocorreram contra digamos a moral ou a hierarquia sexual tradicional ataques que tam bem eles se referiam apenas de urna maneira vaga e bastante remota bem nebulosa em todo caso a Reich ou a Marcuse3 Penso ainda na eficacia dos ataques contra 0 aparelho judi ciario e penal alguns dos quais eram muito remotamente relacionados com a noao geral e alias bastante duvidosa de ustiya de classe enquanto outros eram vinculados s6 urn pouco mais precisamente no fundo a urna temittica anar quista Penso igualmente e mais precisamente ainda na efi cacia de algurna coisa nem sequer me atrevo a dizer de um livro como 0 AntiCEdipe4 AntiEdipo que nao se referia que praticamente nao se referiu a nada mais que a sua pr6 2 De W Reich vee Die Funktion des Orgasmus zur Psychopatho ogie und zur Sozigie des Geschlechtslebens Viena Internationaler tischr psychoanalytischer Verlag 1927 trad fr Lafonction de lorgasme Paris LArche 2971 Der Einbruch der Sexualmoral Berlim Verlag flit Sexual politik 1932 tract fr L irruption de fa morale sexuelle Paris Payot 1972 Charakteranalyse Viena Selbstverlag des Verfassers 1933 trad fr L ana lyse caracterielle Paris Payot 1971 Massenpsychologie des Faschismus zur Sexualokonomie der politischen Reaktion und zur proletarischen Se xualpolitik CopenhaguePragaiZurique Verlag ftir Sexualpolitik 1933 trad fr La psychologie de masse du fascisme Paris Payot 1974 Die Sexualitdt im Kulturkamp Copenhague Sexpol Verlag 1936 3 Michel Foucault se refere aqui claro a H Marcuse autor de Eros and Civilisation A Philosophical Inquiry into Freud Boston Ma Beacon Press 1955 trad fr Eros et civilisation Paris Seuil 1971 e de Onedimensional Man Studies in the Ideology ofAdvanced Industrial Society Boston Ma Bea con Press 1964 trad fr L homme unidimensionnel Paris Seuil 1970 4 G Deleuze F Guattari L AntiCEdipe Capitalisme et schizophre nie Paris Ed de Minuit 1972 Vale 1embrar que Michel Foucault desenvol veu essa interpretalao do AntiCEdipe como livroacontecimento no prefacio para a tradulao inglesa do texto AntiOedipus Nova York Viking Press 1977 cf trad fro desse prefacio in Dits et ecrits III n 189 10 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 7 DE JANEIRO DE 976 II pria e prodigiosa inventividade te6rica livro ou melhor coisa acontecimento que conseguiu deixar rouco ate na pratica mais cotidiana esse murmUrio por tanto tempo inin terrupto que passou do diva para a poltrona Portanto eu diria isto nos ultimos dez ou quinze anos a imensa e prolifera criticabilidade das coisas das institui oes das pn icas dos discursos urna especie de friabilida de geral dos solos mesmo talvez sobretudo os mais fami liares os mais s6lidos e mais pr6ximos de n6s de nosso cor po de nossos gestos de todos os dias e isso que aparece Mas ao mesmo tempo que essa friabilidade e essa espanto sa eficacia das criticas descontinuas e particulares locais descobrese por isso mesmo nos fatos algo que talvez nao estivesse previsto no inicio seria 0 que se poderia chamar de efeito inibidor pr6prio das teorias totalitirias quero dizer em todo caso das teorias envolventes e globais Nao que es sas teorias envolventes e globais nao tenham fomecido e nao fomeam ainda de urna maneira bastante constante ins trumentos localmente utilizaveis 0 marxismo a psicanalise estao precisamente ai para provaIo Mas elas s6 fomeceram acho eu esses instrumentos localmente utilizaveis com a condiao justamente de que a unidade te6rica do discurso fique como que suspensa em todo caso recortada cindida picada remexida deslocada caricaturada representada tea tralizada etc Em todo caso inteiramente retomada nos pr6 prios termos da totalidade levou de fato a urn efeito de freada Portanto se quiserem primeiro ponto primeira caracteristi ca do que aconteceu durante estes quinze anos cariter local da critica 0 que nao quer dizer creio eu empirismo obtuso ingenuo ou simpl6rio 0 que tambem nao quer dizer ecletis mo frouxo oportunismo permeabilidade a urn empreendi mento te6rico qualquer nem tampouco ascetismo urn pouco voluntirio que se reduziria ele pr6prio it maior magreza te6 rica possive Creio que esse cariter essencialmente local da cticaindica d fato alo que seria urna especie de produ ao teonca autonoma nao centralizada OU seja que para estabelecer sua vahdade nao necessita da chancela de urn reglme comurn E e Pr ai que chegamos a urna segunda caracteristica do que esta acontecendo faz algum tempo essa critica local se efetuou pareceme por aquilo atraves daquilo que se po dena chamar de reviravoltas de saber Por reviravoltas de saber quero dizer 0 seguinte se everdade que nesses anos que acabaram de passar era comum encontrar pelo menos num mvel superflclal toda uma temitica niiol chega de sa ber 0 que mtressa e a vida chega de conhecimentos 0 que mteressa e 0 rel nada de livros e siro grana etc pareceme que dealXO de toda essa tematica atraves dela nessa mesma tematca 0 que se viu acontecer foi 0 que se podla chamar de surreiao dos saberes sujeitados E por saber sUjeltado entendo duas coisas De uma parte quero deslgnar em surna conteudos hist6ricos que foram spultads ascarados em coerencias funcionais au em sltemahzaoes formais Concretamente se preferirem nao f01 certamente uma semiologia da vida em hospicio nao foi tampouco uma socllogla da delinqiiencia mas sim 0 apa reClmento de conteudos hist6ricos 0 que permitiu fazer tanto do hOSP1ClO como da pnsao a critica efetiva E pura e slmplesmente porque apenas os conteudos hist6ricos podem permltlr descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenaoesfuncionais ou as organizaoes siste mahcas teram COO objetivo justamente mascarar Por tanto os saberes sUjeltados sao blocos de saberes hist6ri cos que estavam presentes e disfarados no interior dos conjuntos funClOnalS e sistematicos e que a critica pode fa zer reaparecer pelos meios e claro da erudiao M anuscnto no lugar de grana viagem 12 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 7DE JANEIRO DE 1976 13 Em segundo lugar por saberes sujeitados acho que se deve entender outra coisa e em cecto sentido urna coisa totalmente diferente Por saberes sujeitados eu entendo igualmente toda uma serie de saberes que estavam des qualificados como saberes nao conceituais como saberes in suficientemente elaborados saberes ingenuos saberes hie rarquicamente inferiores saberes abaixo do nivel do conhe cimento ou da cientificidade requeridos E foi pelo reapa recimento desses saberes de baixo desses saberes nao qua lificados desses saberes desqualificados mesmo foi pelo reaparecimento desses saberes 0 do psiquiatrizado 0 do doente 0 do enfermeiro 0 do medico mas paralelo e mar ginal em compara9ao com 0 saber medico 0 saber do de linqiiente etc esse saber que denominarei se quiserem o saber das pessoas e que nao e de modo algurn urn saber comum urn born senso mas ao contnirio urn saber parti cular urn saber local regional urn saber diferencial inca paz de unanimidade e que deve sua for9a apenas acontun dencia que opoe a todos aqueles que 0 rodeiam foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas desses saberes desqualificados que foi feita a critica Voces me dido M ainda assim ai como que urn estra nho paradoxo em querer agrupar acoplar na mesma catego ria dos saberes sujeitados de urn lado esses conteudos do conhecimento hist6rico meticuloso erudito exato ttcnico e depois esses saberes locais singulares esses saberes das pessoas que sao saberes sem senso comum e que foram de cecto modo deixados em repouso quando nao foram efeti va e explicitamente mantidos sob tutela Pois bern acho que foi nesse acoplamento entre os saberes sepultados da erudi 9aO e os saberes desqualificados pela hierarquia dos conhe cimentos e das ciencias que se decidiu efetivamente 0 que fomeceu acritica dos discursos destes ultimos quinze anos a sua for9a essencia Tanto nurn caso como no outro de fato nesse saber da erudi9ao como nesses saberes desqualifica dos nessas duas fonnas de saberes sujeitados ou sepultados de que se lratava Tratavase do saber hist6rico das lutas No dominio especializado da erudi9ao tanto como no saber des qualificado das pessoas jazia a mem6ria dos combates aque la precisamente que ate entio tinha sido mantida sob tutela E assim se delineou 0 que se poderia chamar urna genealogia ou antes assim se delinearam pesquisas geneal6gicas multi plas a urn s6 tempo redescoberta exata das lutas e mem6ria bruta dos combates e essas genealogias como acoplamento desse saber erudito e desse saber das pessoas s6 foram pos siveis e inclusive s6 puderam ser tentadas com uma condi 9aO que fosse revogada a tirania dos discursos englobadores com sua hierarquia e com todos os privilegios das vanguar das te6ricas Chamemos se quiserem de genealogia 0 aco plamento dos conhecimentos eruditos e das mem6rias locais acoplamento que pennite a constitui9aO de urn saber hist6ri co das lutas e a utiliza9aO desse saber nas tMicas atuais Sera essa portanto a defini9aO provis6ria dessas genealogias que tentei fazer com voces no decoITer dos ultimos anos Nessa atividade que se pode pois dizer geneal6gica voces veem que na verdade nao se trata de forma alguma de opor aunidade abstrata da teoria a multiplicidade con creta dos fatos nao se trata de fonna alguma de desqualifi car 0 especulativo para the opor na fonna de urn cientificis mo qualquer 0 rigor dos conhecimentos bern estabelecidos Portanto nao e urn empirismo que perpassa 0 projeto ge neal6gico nao e tampouco urn positivismo no sentido comum do tenno que 0 segue Tratase na verdade de fazer que intervenham saberes locais descontinuos desqualificados nao legitimados contra a instancia te6rica unitaria que pre tenderia filtraIos hierarquizaIos ordenaIos em nome de urn conhecimento verdadeiro em nome dos direitos de urna ciencia que seria possuida par alguns As genealogias nao 14 EM DEFESA DA SOClEDADE AULA DE 7DEJANEJRODE 1976 15 saO portanto retornos positivistas a uma forma de ciencia mais atenta ou mais exata As genealogias sao muito exata mente anticiencias Nao que elas reivindiquem 0 direito lirico a ignorilncia e ao naosaber nao que se tratasse da re cusa de saber ou do por em jogo do por em destaque os prestigios de uma experiencia imediata ainda nao captada pelo saber Nao e disso que se trata Tratase da insurrei9ao dos saberes Nao tanto contra os conteudos os metodos ou os conceitos de uma cienciamas de urna insurreiao sobre tudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que sao vinculados a institui9ao e ao funcionamento de urn discurso cientifico organizado no interior de uma socie dade como a nossa E se essa institucionaliza9ao do discurso cientifico toma corpo numa universidade ou de urn modo geral num aparelho pedagogico se essa institucionaliza9ao dos discursos cientificos toma corpo numa rede teorico comercial como a psicanalise ou num apareiho politico com todas as suas aferencias como no caso do marxismo no fun do pouco importa Eexatamente contra os efeitos de poder proprios de um discurso considerado cientifico que a genea logia deve travar 0 combate De uma forma mais precisa ou em todo caso que tal vez lhes soe melhor eu diria isto desde M muitos anos desde mais de um seculo por certo voces sabem quaD nu merosos tern side os que se perguntaram se 0 marxismo era ou nao uma ciencia Poderiamos dizer que a mesma pergun ta foi formulada e nao para de ser a proposito da psicana lise ou pior ainda da semiologia dos textos litenirios Mas a esta pergunta E ou nao e ciencia as genealogias ou os genealogistas responderiam Pois bern precisamente 0 que criticamos em voces e fazer do marxismo ou da psicanalise ou desta ou daquela coisa uma ciencia E se temos uma obje9ao a fazer ao marxismo e que ele poderia efetivamente ser urna ciencia Em termos urn poueo mais se nao elabo rados pelo menos diluidos eu diria 0 seguinte antes mes mo de saber em que medida uma coisa como 0 marxismo ou a psicanalise e analoga a uma priltica cientifica em seu desenrolar cotidiano em suas regras de constru9ao nos con ceitos utilizados antes mesmo de se fazer essa pergunta da analogia formal ou estrutural de um discurso marxista ou psicanalitico com um discurso cientifico nao e necessario primeiro levantar a questao se interrogar sobre a ambi9ao de poder que a pretensao de ser uma ciencia traz consigo A questao as questiles que e preciso formular nao serao estas Quais tipos de saber voces querem desqualificar no momenta em que voces dizem ser esse saber uma ciencia Qual sujeito falante qual sujeito discorrente qual sujeito de experiencia e de saber voces querem minimizar quando di zem eu que fa90 esse discurso fa90 um discurso cientifico e sou cientista Qual vanguarda teoricopolitica voces que rem entronizar para destacala de todas as formas maci9as circulantes e descontinuas de saber E eu diria Quando eu vejo voces se esfor9arem para estabelecer que 0 marxis rna e uma ciencia nao os vejo para dizer a verdade de monstrando de uma vez por todas que 0 marxismo tern uma estrutura racional e que suas proposi95es dependem por conseguinte de procedimentos de verifica9ao Eu os vejo sobretudo e acima de tudo fazendo outra coisa Eu os vejo vinculando ao discurso marxista e eu os vejo atribuindo aos que fazem esse discurso efeitos de poder que 0 Oci dente desde a Idade Media atribuiu a ciencia e reservou aos que fazem urn discurso cientifico A genealogia seria pois relativamente ao projeto de uma inser9ao dos saberes na hierarquia do poder proprio da ciencia uma especie de empreendimento para dessujeitar os saberes historicos e tornaIos livres isto e capazes de opo si9ao e de luta contra a coer9ao de urn discurso teorico uni tario formal e cientifico A reativa9ao dos saberes locais 16 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 7 DE JANEIRO DE 1976 17 menores talvez dissesse Deleuzes contra a hierarquiza ao cientifica do conhecimento e seus efeitos de poder intrinsecos esse e 0 projeto dessas genealogias em desor dem e picadinhas Eu diria em duas palavras 0 seguinte a arqueologia seria 0 metodo pr6prio da analise das discursi vidades locais e a genealogia a tatica que faz intervir a partir dessas discursividades locais assim descritas os sabe res dessujeitados que dai se desprendem Isso para reconsti luir 0 projeto de conjunto Voces estao vendo que todos os fragmentos de pesqui sa todas essas consideraoes a urn s6 tempo entrecruzadas e pendentes que repeti com obstinaao nos ultimos quatro ou cinco anos poderiam ser consideradas elementos dessas genealogias que eu nao fui longe disso 0 unico a fazer ao longo destes ultimos quinze anos Questao entao por que naG se continuaria com uma teoria tao bonita e provavel mente tao pouco verificavel da descontinuidade Por que 5 Os conceitos de menor e de minoria antes acontecimentos sin gulares do que essencias individuais antes individuaoes por ecceidade do que substancialidade foram elaborados por G Deleuze com F Guattari in Kafka Pour une litterature mineure Paris Ed de Minuit 1975 retomados por Deleuze no artigo Philosophie et minorite Critique fevereira de 1978 e desenvolvidos ulteriormente em especial em G Deleuze F Guattari MjlJe plateaux Capitalisme et schizophrimie Paris Ed De Minuit 1980 A minoria remete tambem ao conceito de molecular elaborado por F Guattari em Psychanalyse et transversalite Essai danalyse institutionnelle Paris Maspero 1972 cuja 16gica ea do devir e das intensidades 6 Michel Foucault se refere aqui ao debate que se iniciara sobretudo de pois da publicaao de Les mots et les choses Une archeologie des sciences humaines Paris Gallimard 1966 aprop6sito do conceito de episteme e do esta tuto da descontinuidade A todas as criticas Foucault respondera com uma serie de precisCes te6ricas e metodo16gicas notadamente Reponse aune question Esprit maio de 1968 pp 85074 e Reponse au Cercle depistemologie Cahiers pour Ianalyse 9 1968 pp 940 in Dits et ecrits I no 58 e 59 reta mados mais tarde em Larcheologie du savoir Paris Gallimard 1969 e que eu nao continuo e por que e que nao pego tambem alguma coisa pequena que estaria no campo da psiquiatria no campo da teoria da sexualidade etc Poderiamos continuar e verdade e ate certo ponto eu tentarei continuar nao fosse talvez urn certo numero de mu danas e de mudanas na conjuntura Quero dizer que em comparaao com a siluaao que conhecemos cinco dez ou ate quinze anos atras as coisas talvez tenham mudado a batalha talvez nao tenha inteiramente a mesma cara sera que estamos mesmo em todo caso neSsa mesma relaao de fora que nos permitiria valorizar de certo modo em estado vivo e fora de qualquer sujeiao esses saberes desencava dos Que fora eles tern por si mesmos E afinal de contas a partir do momento em que se resgatam assim fragmentos de genealogia a partir do momenta em que se valorizam em que se poem em circulaao essas especies de elementos de saber que tentamos desencavar nao correro eles 0 risco de ser recodificados recolonizados por esses discursos unitarios que depois de oS ter a principio desqualificado e posterior mente ignorado quando eles reapareceram talvez estejam agora prontos para anexaIos e para retomaIos em seu pr6 prio discurso e em seus pr6prios efeitos de saber e de poder E se quisermos proteger esses fragmentos assim res gatados nao nos exporemos a construir nos mesmos com nossas proprias maos esse discurso unitario a que nos con vidam talvez como para uma armadilha os que nos dizem Tudo isso e muito simpatico mas leva aonde Em que direao A qual unidade A tentaao ate certo ponto e de dizer pois bern continuemos acurnulemos Afinal de con tas ainda nao chegou 0 momento em que corremos 0 risco de ser colonizados Eu lhes dizia agora ha pouco que esses fragmentos geneal6gicos talvez corram 0 risco de ser recodi ficados mas poderiamos afinal de contas lanar 0 desafio e dizer Tentem entao Poderiamos dizer por exemplo 18 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 7 DE JANEIRO DE 1976 19 desde 0 tempo em que a antipsiquiatria ou a genealogia das instituioes psiquiatricas foram empreendidas faz bem uns quinze anos agora por acaso apareceu urn s6 marxis ta urn so psicanalista urn so psiquiatra para refazer isso em seus proprios termos e para mostrar que essas genealogias eram falsas mal elaboradas mal articuladas mal funda mentadas De fato as coisas sao tais que esses fragmentos de genealogia que foram feitos continuam ai cercados de urn silencio prudente 0 maximo que lhes opoem sao propo sioes como as que acabamos de ouvir recentemente na boca acho eu do Sr Juquin Tudo isso e muito simpatico Mas ainda assim a psiquiatria sovietica e a primeira do mundo Eu ditia Claro a psiquiatria sovi6tica 0 senhor tem razao e a primeira do mundo e e precisamente isso que the reprovam 0 silencio ou melhor a prudencia com que as teorias unitanas evitam a genealogia dos saberes tal vez fosse pois uma razao para continuar Poderiamos em todo caso multiplicar assim os fragmentos genealogicos como outras tantas armadilhas questOes desafios como voces quiserem Mas sem duvida eotimista demais a par tir do momenta em que se trata afinal de contas de urna batalha de urna batalha dos saberes contra os efeitos de poder do discurso cientifico tomar 0 silencio do adversa rio como prova de que the metemos medo 0 silencio do adversario e e este urn principio metodologico ou urn principio tatico que sempre se deve ter em mente talvez seja da mesma forma 0 sinal de que nao the metemos medo algum E devemos agir acho eu como se justamente nao the metessemos medo E portanto 0 problema nao e dar um solo teorico continuo e solido a todas as genealogias dispersas nao quero de modo algum Ihes dar Ihes sobre 7 Na epoca deputado do Partido Comunista Frances por um tipo de coroamento teorico que as unificaria mas tentar nos cursos seguintes e por certo ja este anD precisar ou delinear 0 que esta em jogo nesse por em oposiao nesse por em luta nesse por em insurreiao os saberes con tra a instituiao e os efeitos de saber e de poder do discurso cientifico o que esta em jogo em todas essas genealogias voces sabem mal tenho necessidade de precisar e isto 0 que e esse poder cuja irrupao cuja fOf9a cuja contundencia cujo absurdo apareceram concretamente no decorrer destes ulti mos quarenta anos ao mesmo tempo na linha de desmoro namento do nazismo e na linha de recuo do stalinismo 0 que e 0 poder Ou melhor porque a pergunta 0 que e 0 poder seria justamente uma questao teorica que coroaria o conjunto 0 que eu nao quero 0 que esta em jogo e de terminar quais sao em seus mecanismos em seliS efeitos em suas relaoes esses diferentes dispositivos de poder que se exercem em niveis diferentes da sociedade em campos e com extensoes tao variadas Grosso modo acho que 0 que esta em jogo em tudo isso e 0 seguinte a analise do poder ou a analise dos poderes pode de urna maneira ou de outra ser deduzida da economia Eis por que formulo esta questao e eis 0 que quero dizer com isso Nao quero de modo algum suprimir diferen as inumeniveis gigantescas mas apesar e atraves dessas diferenas pareceme que Ita um certo ponto em comum entre a concepao juridica e digamos liberal do poder poli tico a que encontramos nos filosofos do seculo XVIII e tambem a concepao marxista ou em todo caso uma certa concepao corrente que vale como sendo a concepao do marxismo Esse ponto comum seria aquilo que eu chamaria de economismo na teoria do poder E com isso quero di zer 0 seguinte no caso da teoria juridica classica do poder o poder e considerado urn direito do qual se seria possuidor 20 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 7 DEJANERODE 976 21 como de wn bern e que se poderia em conseqiiencia trans ferir ou alienar de urna forma total ou parcial mediante urn ato juridico ou urn ato fundador de direito pouco importa por ora que seria da ordem da cessao ou do contrato 0 poder e aquele concreto que todo individuo detem e que viria a ceder total ou parcialmente para constituir urn po der urna soberania pOlitica A constituiao do poder politi co se faz portanto nessa serie nesse conjunto tearieD aque me refiro com base no modelo de urna operaao juridica que seria da ordem da troca contratua Analogia por con seguinte manifesta e que corre ao longo de todas essas teo rias entre 0 poder e os bens 0 poder e a riqueza No outro caso claro eu penso na concepyao marxista geral do poder nada disso e evidente Mas voces tern nessa concepyao marxista algo diferente que se poderia chamar de funcionalidade economica do poder Funcionalidade economica na medida em que 0 pape essencial do poder seria manter rela6es de produyao e ao mesmo tempo re conduzir urna dominayao de classe que 0 desenvolvimento e as modalidades pr6prias da apropriaao das foryas produ tivas tornaram possive Neste caso 0 poder politico encon traria na economia sua razao de ser hist6rica Em linbas ge rais se preferirem nurn caso temse urn poder politico que encontraria no procedimento da troca na economia da cir culayao dos bens seu modelo formal e no outro caso 0 poder politico teria na economia sua razao de ser hist6rica e 0 principio de sua forma concreta e de seu funcionamento atuao problema que e 0 mobil das pesquisas de que estou falando pode creio eu ser decomposto da seguinte maneira Primeiramente 0 poder esUi sempre nurna posiao secunda ria em relayao it economia E sempre finalizado e como que funcionalizado pela economia 0 poder tern essencial mente como razao de ser e como finalidade servir it econo mia Esta destinado a fazeIa funcionar a solidificar a man ter a reconduzir relac5es que sao caracteristicas dessa eco nomia e essenciais ao seu funcionamento Segunda questaa o poder e modelado com base na mercadoria 0 poder e algo que se possui que se adquire que se cede por contra to ou por fora que se aliena ou se recupera que circula que irriga esta regiao que evita aquela Ou entao epreciso ao contrario para analisalo tentar lanar mao de instrurnen tos diferentes mesmo que as relay6es de poder sejam pro fundamente intricadas nas e com as rea6es economicas mesmo que efetivamente as relay6es de poder constituam sempre uma especie de feixe ou de anel com as relay6es economicas E nesse casa a indissociabilidade entre a eco nomia e 0 politico nao seria da ordem da subordinayao fun cional nem tampouco da ordem da isomorfia formal mas de uma outra ordem que se trataria precisamente de revelar Para fazer uma analise nao economica do poder de que atualmente dispomos Acho que se pode dizer que dispo mos realmente de muito pouca coisa Dispomos primeiro da afirmaao de que 0 poder nao se da nem se troca nem se retorna mas que ele se exerce e s6 existe em ata Dispomos igualmente desta outra afirmaao de que 0 poder nao e pri meiramente manutenyao e reconduyao das relay6es econo micas mas em si mesma primariamente uma relaao de fora Algumas quest6es ou melhor duas quest6es se 0 po der se exerce 0 que e esse exercicio Em que consiste Qual e sua mednica Temos aqui algo que eu diria era uma res postaocasiao enfim urna resposta imediata que me pare ce descartada finalmente pelo fato concreto de muitas ana lises atuais 0 poder e essencialmente 0 que reprime E 0 que reprime a natureza os instintos uma classe individuos E quando nO discurso contemporaneo encontramos essa definiao repisada do poder como 0 que reprime afinal de 22 EM DEFESA DA SOC1EDADE AULA DE 7DEJANE1RO DE 1976 23 contas 0 discurso contemporaneo nao faz uma invenlao Hegel fora 0 primeiro a dizer depois Freud depois Reich Em todo caso esse orgao de repressao e no vocabulario de hoje 0 qualificativo quase homerico do poder Entao a ana lise do poder nao deve ser antes de mais nada e essencial mente a analise dos mecanismos de repressao Em segundo lugar segunda respostaocasiao se qui serem se 0 poderemesmo em si emprego e manifestacao de uma relaao de fora em vez de analisalo em termos de cessao contrato alienacao em vez mesma de analisaIo em termos funcionais de reconduao das relaoes de produao nao se deve analisalo antes e acima de tudo em termos de combate de enfrentamento ou de guerra Teriamos pois diante da primeira hipotese que e 0 mecanismo do poder e fundamental e essencialmente a repressao uma segun da hipotese que seria 0 poder e a guerra e a guerra conti nuada por Qutros meios E oeste momento inverteriamos a proposiao de Clausewitz e diriamos que a politica e a guer ra continuada por outros meios 0 que significaria tres coi sas Primeiro isto que as relaoes de poder tais como fun cionam numa sociedade como a nossa tern essencialmente 8 Cf G w F Hegel Grundlinien der Philosophie des Rechts Berlim 1821 182340 trad fr Principes de fa philosophie du droit Paris Vrin 1975 S Freud Das Unbewussten in Internationale Zeitschriftfiir iirtzli che Psychoanalyse vol 3 4 e 51915 e Die ZukunJt einer Illusion LeipziglVienaZurique Internationaler Psychoanalytischer Verlag 1927 trad fr L Qvenir dune illusion Paris Denoel 1932 reed Paris PUF 1995 10 tocante a Reich cf supra nota 2 9 Michel Foucault alude aformularao bern conhecida do principio de Carl von Clausewitz Vorn Kriege ivI cap I XXIV in Hinterlassene Werke Bd 123 Berlim 1832 trad fro De fa guerre Paris Ed de Minuit 1955 segundo a qual A guerra nao emais que a continuarao da politica por outros meios ela nao esomente urn ato politico mas urn verdadeiro instrumento da politica seu prosseguimento por outros meios ibid p 28 Ver tambem iv II cap III III e liv VIII cap VI como ponto de ancoragem uma certa relaao de fora esta beleclda em dado momenta historicamente precisavel na guerra e pela guerra E se e verdade que 0 poder politico para a guerra faz remar ou tenta fazer reinar uma paz na socie dade civil nao e de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar 0 desequilibrio que se mani festou na batalha final da guerra 0 poder pOlitico nessa hi potese tena como funao reinserir perpetuamente essa re laao de fora mediante uma especie de guerra silenciosa e de reinserila nas instituioes nas desigualdades econ6 mIcas na lmguagem ate nos corpos de uns e de outros Seria pois 0 primeiro sentido a dar a esta inversao do aforismo d Clausewitz a politica e a guerra continuada por outros meios isto e a politica e a sanao e a reconduao do desequilibri dasforas manifestado na guerra E a inversao dessa propo Slao slgmflcana outra cOlsa tambem a saber no interior dssa paz civil as lutas politicas os enfrentamentos a pro pOSHo do poder com 0 poder pelo poder as modificaoes das relaoes de fora acentuaoes de urn lado reviravol tas etc tudo isso num sistema pOlitico deveria ser inter pretado apenas como as continuaoes da guerra E seria para declfrar como eplsodlOS fragmentaoes deslocamentos da propria guerra Sempre se escreveria a historia dessa mes rna guerra mesmo quando se escrevesse a historia da paz e de suas instituioes A inversao do aforismo de Clausewitz significaria ainda uma terceira coisa a decisao final so pode vir da guerra ou seJa de uma prova de fora em que as armas finalmente deverao ser juizes 0 fim do politico seria a derradeira bata lha isto e a derradeira batalha suspenderia afinal e afinal somente 0 exercicio do poder como guerra continuada Voces estao venda portanto que a partir do momenta em que tentamos libertarnos dos esquemas econ6micos para anahsar 0 poder encontramonos imediatamente em face de duas hipoteses macias de uma parte 0 mecanismo do poder 24 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 7 DE JANEIRO DE 1976 25 seria a repressao hipotese que se voces concordarem chamarei comodamente hipotese de Reich e em segundo lugar 0 fundamento da relaao de poder e 0 enfrentamento belicoso das foras hipotese que chamarei tambem aqui por comodidade hipotese de Nietzsche Essas duas hipote ses DaO sao inconciliaveis ao contnirio parecem ate se en cadear com bastante verossimilhana afinal de contas a re pressao nao e a conseqiiencia politica da guerra um pouco como a opressao na teoria cbissica do direito politico era 0 abuso da soberania na ordem juridica Poderiamos pois contrapor dois grandes sistemas de analise do poder Um que seria 0 velho sistema que voces encontram nos filosofos do seculo XVIII se articularia em tome do poder como direito original que se cede constitu tivo da soberania e tendo 0 contrato como matriz do poder politico E haveria 0 risco de esse poder assim constituido quando ultrapassa a si mesmo ou seja quando vai alem dos proprios termos do contrato tomarse opressao Podercon trato tendo como limite ou melhor como ultrapassagem do limite a opressao E voces teriam 0 outro sistema que ten taria pelo contrario analisar 0 poder politico nao mais de acordo com 0 esquema contratoopressao mas de acordo com 0 esquema guerrarepressao E nesse momento a re pressao naD e0 que era a opressao em relayao ao contrato ou seja urn abuso mas ao contnirio 0 simples efeito e 0 simples prosseguimento de uma relaao de dominaao A repressao nada mais sena que 0 emprego no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra continua de uma rela ao de fora perpetua Portanto dois esquemas de analise do pader 0 esquema contratoopressao que e se voces pre ferirem 0 esquema juridico e 0 esquema guerrarepressao ou dominaaorepressao no qual a oposiao pertinente nao e a do legitime e do ilegitimo como no esquema preceden te mas a oposiao entre luta e submissao Eevidente que tudo 0 que eu Ihes disse ao lange dos anos anteriores se insere do lado do esquema lutarepressao Foi este esquema que de fato eu tentei aplicar Ora it medida que eu 0 aplicava fui levado mesmo assim a reconsideraIo ao mesmo tempo claro porque numa porao de pontos ele ainda esta insuficientemente elaborado eu diria mesmo que esta totalmente inelaborado e tambem porque creio que as duas n090es de repressao e de guerra devem ser consideravel mente modificadas quando nao talvez no limite abandona das Em todo caso e precise olhar de perto essas duas noiies repressao e guerra OU se preferirem 0100 urn pOlleD mais de perto a hipotese de que os mecanismos de poder se riam essencialmente mecanismos de repressao e a outra hipo tese de que sob 0 poder politico 0 que paira e 0 que funciona e essencialmente e acima de tudo urna relaao belicosa Acho e nao digo isso para me gabar que ja faz bastante tempo que desconfio dessa noao de repressao e tentei mostrar a voces justamente a proposito das genealogias de que eu falava agora ha pouco a proposito da historia do direito penal do poder psiquiatrico do controle da sexuali dade infantil etc que os mecanismos empregados nessas formaiies de poder eram algo muito diferente da repressao em todo caso eram bem mais que ela Eu nao posso conti nuar sem retomar um pouquinho justamente essa analise da repressao sem juntar um pouco tudo 0 que pude dizer de uma forma sem duvida um pouco desconexa Por conse guinte a proxima aula OU eventualmente as duas pr6ximas serao dedicadas it retomada critica da noao de repressao a tentar mostrar em que e como essa noao de repressao tao corrente agora para caracterizar os mecanismos e os efeitos do poder e totalmente insuficiente para demarcalos1o lO Promessa nao cumprida Existe nao obstante intercalado no manus crito urn curso sobre a repressao dado pOT certo nurna universidade estran geira A questiio sera retomada em La volonte de savoir Paris Gallimard 1976 26 EM DEFESA DA SOCIEDADE Mas 0 essencial do curso sem dedicado ao outro item ou seja ao problema da guerra Eu gostaria de tentar ver em que medida 0 esquema binirrio da guerra da luta do enfrentamen to das foras pode ser efetivamente identificado como 0 fun damento da sociedade civil a urn s6 tempo 0 principio e 0 motor do exercicio do poder politico Emesmo exatamente da guerra que se deve falar para analisar 0 funcionamento do poder Sao validas as nooes de tittica de estrategia de relaao de fora Em que medida 0 sao 0 poder pura e simplesmente e urna guerra continuada por meios que nao as armas ou as batalhas Sob 0 tema agora tornado corrente te ma alias relativamente recente de que 0 poder tem a incurn bencia de defender a sociedade devese ou nao entender que a sociedade em sua estrutura politica e organizada de maneira que alguns possam se defender contra os outros ou defender sua dominaao contra a revolta dos outros ou simplesmente ainda defender sua vit6ria e perenizaIa na sujeiao Portanto 0 esquema do curso deste ano sera 0 seguinte primeiro urna ou duas aulas consagradas a retomada da no ao de repressao depois comearei a tratar eventualmen te prosseguirei nos anos seguintes sei la esse problema da guerra na sociedade civil Comearei por deixar de lado justamente aqueles que passam por te6ricos da guerra na sociedade civil e que nao 0 sao absolutamente em minha opi niao isto e Maquiavel e Hobbes Depois tentarei retomar a teoria da guerra como principio hist6rico de funcionamento do poder em torno do problema da raa ja que e no bina rismo das raas que foi percebida pela primeira vez no Ocidente a possibilidade de analisar 0 poder politico como guerra E tentarei conduzir isso ate 0 momento em que luta de raas e luta de classes se tornam no final do seculo XIX os dois grandes esquemas segundo os quais se tenta situar o fenomeno da guerra e as relaoes de fora no interior da sociedade politica AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 Guerra e poder A filosofia e os limites do poder Diretto e poder regia Lei dominaryQo e sujeiryQo Anai fica do poder questoes de metodo Teoria da soberania 0 poder disciplinar A regra e a norma Este ano eu gostaria de comear mas comear somen te uma serie de pesquisas sobre a guerra como principio eventual de analise das relaoes de poder sera no aspecto da relaao belicosa do lado do modelo da guerra do lado do esquema da luta das lutas que se podera encontrar um principio de inteligibilidade e de analise do poder politico do poder politico decifrado pois em termos de guerra de lutas de enfrentamentos Eu gostaria de comear forosa mente como contraponto com a anillise da instituiao militar das instituioes militares em seu funcionamento real efeti vo hist6rico em nossas sociedades desde 0 seculo XVII ate os nossos dias Ate agora durante os cinco ultimos anos em linhas ge rais as disciplinas nos cinco anos seguintes a guerra a luta o exercito Gostaria ainda assim de fazer urn balano do que tentei dizer no decorrer dos anos anteriores porque isso me fara ganhar tempo para as minhas pesquisas sobre a guerra que nao estao muito avanadas e porque eventualmente pode servir de ponto de referencia para aqueles dentre voces que nao estavam aqui nos anos anteriores Em todo caso de 28 EMDEFESA DA SOC1EDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 29 sejaria fazer 0 balano para mim mesmo do que tentei per correro que eu tentei percorrer desde 19701971 era 0 co mo do poder Estudar 0 como do poder isto e tentar apreender seus mecanismos entre dois pontos de referencia ou dois limites de urn lado as regras de direito que delimi tam formalmente 0 poder de outro lado a outra extremida de 0 outro limite seriam os efeitos de verdade que esse poder produz que esse poder conduz e que por sua vez reconduzem esse poder Portanto triangulo poder direito verdade Digamos esquematicamente isto existe urna ques tao tradicional que e aquela acho eu da filosofia politica e que se poderia formular assim como 0 discurso da verdade ou pura e simplesmente como a filosofia entendida como o discurso por excelencia da verdade podem fixar os limi tes de direito do poder Essa e a questao tradicional Ora a que eu queria formular e uma questao abaixo desta urna questao muito factual em comparaao a essa questao tradi cional nobre e filos6fica Meu problema seria de certo modo este quais sao as regras de direito de que lanam mao as re la5es de poder para produzir discursos de verdade Ou ainda qual e esse tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que sao nurna sociedade como a nossa dotados de efeitos tao potentes Quero dizer 0 seguinte numa sociedade como a nossa mas afinal de contas em qualquer sociedade multiplas rela5es de poder perpassam caracterizam constituem 0 corpo social elas nao podem dissociarse nem estabelecerse nem funcionar sem urna produao uma acurnulaao uma circulaao urn funcionamento do discurso verdadeiro Nao hit exercicio do poder sem uma certa economia dos discur sos de verdade que funcionam nesse poder a partir e atra yeS dele Somos submetidos pelo poder a produao da ver dade e so podemos exercer 0 poder mediante a produao da verdade Isso e verdadeiro em toda sociedade mas acho que na nossa essa relaao entre poder direito e verdade se orga mza de urn modo muito particular Para assinalar simplesmente nao 0 proprio mecanismo da relaao entre poder direito e verdade mas a intensidade da relaao e sua constancia digamos isto somos forados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar temos de dizer a verdade so mos coagidos somos condenados a confessar a verdade ou a encontraIa 0 poder nao para de questionar de nos ques tIonar nao para de inquirir de registrar ele institucionaliza a busca da verdade ele a profissionaliza ele a recompensa Temos de produzir a verdade como afinal de contas temos de produzir riquezas e temos de produzir a verdade para po der produzir riquezas E de outro lado somos igualmente submetidos a verdade no sentido de que a verdade e a norma e 0 discurso verdadeiro que ao menos em parte decide el veicula ele proprio propulsa efeitos de poder Afinal de con tas somos julgados condenados classificados obrigados a tarefas destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer em funao de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos especificos de poder Portanto regras de direito mecanismos de poder efeitos de verdade Ou ainda regras de poder e poder dos discursos verdadeiros Foi mais ou menos esse 0 dominio geral do percurso que eu qUls fazer percurso que segui sei bern de urna maneira par clal e com muitos ziguezagues Sobre esse percurso eu agora gostaria de dizer algu mas palavras Que principio geral me guiou e quais foram as instru5es imperativas ou as precau5es de metodo que eu qUls tomar Urn principio geral no que se refere as rela 5es entre 0 direito e 0 poder pareceme que hit urn fato que 30 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 31 nao se pode esquecer nas sociedades ocidentais e isto desde a Idade Media a elaboraao do pensamento juridico se fez essencialmente em tomo do poder regio Foi a pedido do po der regio foi igualmente em seu proveito foi para servir lhe de instrumento ou de justificaao que se elaborou 0 edi ficio juridico de nossas sociedades 0 direito no Ocidente e urn direito de encomenda regia Todos conhecem claro 0 pa pel famoso celebre repetido repisado dos juristas na orga nizaao do poder regio Nao convem esquecer que a reativa ao do direito romano em meados da Idade Media que foi o grande fenameno ao redor e a partir do qual se reconsti tuiu 0 edificio juridico dissociado depois da queda do Impe rio Romano foi urn dos instrumentos tecnicos constitutivos do poder monarquico autoritirio administrativo e finalmen te absoluto Formaao pois do edificio juridico ao redor da personagem regia a pedido mesmo e em proveito do poder regio Quando esse edificio juridico nos seculos seguintes escapar ao controle regio quando se tiver voltado contra 0 poder regio 0 que sera discutido serao sempre os limites des se poder a questao referente as suas prerrogativas Em outras palavras creio que a personagem central em todo 0 edificio juridico ocidental e 0 rei Edo rei que se trata e do rei de seus direitos de seu poder dos eventuais limites de seu po der e disso que se trata fundamentalmente no sistema geral na organizaao geral em todo caso do sistema juridico oci dental Que os juristas tenham sido os servidores do rei ou tenham sido seus adversarios de qualquer modo sempre se trata do poder regio nesses grandes edificios do pensamen to e do saber juridicos E do poder regio tratase de duas maneiras seja para mostrar em que armadura juridica 0 poder real se investia como 0 monarca era efetivamente 0 corpo vivo da sobera nia como seu pader mesma absoluto era exatamente ade quado a urn direito fundamental seja ao contrario para mos trar como se devia limitar esse poder do soberano a quais regras de direito ele devia submeterse segundo e no inte rior de que limites ele deveria exercer seu poder para que esse poder conservasse sua legitimidade 0 papel essencial da teo ria do direito desde a Idade Media e 0 de fixar a legitimi dade do poder 0 problema maior central em tomo do qual se organiza toda a teoria do direito e 0 problema da soberania Dizer que 0 problema da soberania e 0 problema central do direito nas sociedades ocidentais significa que 0 discurso e a tecnica do direito tiveram essencialmente como funao dis solver no interior do poder 0 fato da dominaao para fazer que aparecessem no lugar dessa dominaao que se queria reduzir ou mascarar duas coisas de urn lado os direitos legitimos da soberania do outro a obrigaao legal da obe diencia 0 sistema do direito e inteiramente centrado no rei o que quer dizer que e em ultima analise a evicao do fato da dominaao e de suas conseqiiencias Nos anos precedentes ao falar das diferentes pequenas coisas que evoquei 0 projeto geral era no fundo inverter essa direao geral da analise que e aquela creio eu do dis curso do direito por inteiro desde a Idade Media Eu tentei fazer 0 inverso ou seja deixar ao contnirio valer como urn fato tanto em seu segredo como em sua brutalidade a do minar3o e depois mostrar a partir dai naG s6 como 0 direi to e de uma maneira geral 0 instrumento dessa dominaao isso e 6bvio mas tambem como ate onde e sob que for ma 0 direito e quando digo 0 direito nao penso somente na lei mas no conjunto dos aparelhos institui5es regulamentos que aplicam 0 direito veicula e aplica rela5es que nao sao rela5es de soberania mas rela5es de dominaao E com dominaao nao quero dizer 0 fato macio de uma domi naao global de urn sobre os outros ou de urn grupo sobre o outro mas as multiplas formas de dominaao que podem se exercer no interior da sociedade nao portanto 0 rei em sua posiao central mas os suditos em suas relaoes reci procas naD a soberania em seu edificio tinieD mas as mul tiplas sujeioes que ocorreram e funcionam no interior do corpo social o sistema do direito e 0 campo judiciario sao 0 veiculo permanente de relaoes de dominaao de tecnicas de sujeiao polimorfas 0 direito e preciso examimiIo creio eu nao sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada mas sob 0 as pecto dos procedimentos de sujeiao que ele poe em pdtica Logo a questao para mim ecurtocircuitar ou evitar esse problema central para 0 direito da soberania e da obedien cia dos individuos submetidos a essa soberania e fazer que aparea no lugar da soberania e da obediencia 0 problema da dominaao e da sujeiao Assim sendo era necessario certo numero de precauoes de metodo para procurar seguir essa linha que tentava curtocircuitar a linha geral da anali se juridica ou se desviar dela Precauoes de metodo esta primeiro nao se trata de analisar as formas regulamentadas e legitimas do poder em seu centro no que podem ser seus mecanismos gerais ou seus efeitos de conjunto Tratase de apreender ao contrario o poder em suas extremidades em seus ultimos lineamentos onde ele se toma capilar ou seja tomar 0 poder em suas formas e em suas instituioes mais regionais mais locais sobretudo no ponto em que esse poder indo alem das regras de direito que 0 organizam e 0 delimitam se prolonga em conseqiiencia mais alem dessas regras investese em insti tuioes consolidase nas tecnicas e fomece instrumentos de intervenao materiais eventualmente ate violentos Urn exem plo se voces quiserem em vez de procurar saber onde e como na soberania tal como ela e apresentada pela filoso fia seja do direito monarquico seja do direito democdtico se fundamenta 0 poder de punir tentei ver como efetiva mente a puniao 0 poder de punir consolidavamse nurn cer to nlimero de instituioes locais regionais materiais seja 0 suplicio ou seja 0 aprisionamento e isto no mundo a urn s6 tempo institucional fisico regulamentar e violento dos apa relhos efetivos da puniao Em outras palavras apreender 0 poder sob 0 aspecto da extremidade cada vez menos juridi ca de seu exercicio era a primeira instruao dada Segunda instruao tratavase de nao analisar 0 poder no nivel da intenao ou da decisao de nao procurar consi deraIo do lado de dentro de nao formular a questao que acho labirintica e sem saida que consiste em dizer quem tern 0 poder afinal 0 que tern na cabea e 0 que procura aquele que tern 0 poder Mas sim de estudar 0 poder ao contrario do lado em que sua intenao se intenao houver esta inteiramente concentrada no interior de pdticas reais e efetivas estudar 0 poder de certo modo do lado de sua face extema no ponto em que ele esta em relaao direta e imediata com 0 que se pode denominar muito provisoria mente seu objeto seu alvo seu campo de aplicaao no pon to em outras palavras em que ele se implanta e produz seus efeitos reais Portanto nao por que certas pessoas querem dominar 0 que elas procuram Qual e sua estrategia de conjooto E siro como as coisas acontecem no momento mes mo no nivel na altura do procedimento de sujeiao ou nes ses processos continuos e ininterruptos que sujeitam os cor pos dirigem os gestos regem os comportamentos Noutros termos em vez de perguntarse como 0 soberano aparece no alto procurar saber como se constituiram pouco a pouco progressivamente realmente materialmente os suditos 0 sudito a partir da multiplicidade dos corpos das foras das energias das materias dos desejos dos pensamentos etc Apreender a instancia material da sujeiao enquanto consti tui9ao dos suditos seria se voces quiserem exatamente 0 32 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 33 1 Th Hobbes Leviathan or the Matter Forme and Power ofa Common Wealth Ecclesiastical and Civill Londres 1651 trad fr Leviathan Traite de fa matiere de fa forme et du pouvoir de fa republique ecclesiastique et civile Paris Sirey 1971 A tradwao latina do texto que era de fato uma nova versao sua foi publicada em Amsterdam em 1668 2 Michel Foucault alude aqui ao celebre frontispicio da ediyao do Leviathan chamada head edition citarla na nota 1 publicada por Andrew Crooke que representa 0 coepo do Estado constituido pelos suditos ao passo que a cabe9a representa 0 soberano que com uma mao segura a espada e com a outra 0 baculo Embaixo os atributos fundamentais dos dois poderes civil e ec1esiastico contrario do que Hobbes tinba pretendido fazer no Leviatii 1 e acho eu afinal de contas todos os juristas quando 0 pro blema deles e saber como a partir da multiplicidade dos in dividuos e das vontades pode se formar urna vontade ou ainda urn corpo Unicos mas animados por urna alma que seria a soberania Lembremse do esquema do Leviatii nesse esquema 0 Leviata enquanto homem fabricado nao e mais do que a coagula9ao de urn certo numero de indivi dualidades separadas que se encontram reunidas por certo numero de elementos constitutivos do Estado Mas no co ra9ao ou melhor na cabe9a do Estado existe alguma coisa que 0 constitui como tal e essa alguma coisa e a soberania da qual Hobbes diz que e precisamente a alma do Leviata Pois bern em vez de formular esse problema da alma cen tral eu acho que conviria tentar 0 que eu tentei fazer es tudar os corpos perifericos e multiplos esses corpos consti tuidos pelos efeitos do poder como suditos Terceira precau9ao de metodo nao tomar 0 poder como urn fenomeno de domina9ao maci90 e homogeneo domi na9ao de urn individuo sobre os outros de urn grupo sobre os outros de uma c1asse sabre as outras ter bern em mente que 0 poder exceto ao consideraIo de muito alto e de mui to longe nao e algo que se partilhe entre aqueles que 0 tern e que 0 detem exclusivamente e aqueles que nao 0 tern e que sao submetidos a ele 0 poder acho eu deve ser analisado como uma coisa que circula ou melhor como uma coisa que so funciona em cadeia Jamais ele esta localizado aqui ou ali jamais esui entre as maos de alguns jamais e apossa do como uma riqueza ou urn bern 0 poder funciona 0 poder se exerce em rede e nessa rede nao so os individuos circulam mas esmo sempre em posi9ao de ser submetidos a esse poder e tambem de exerceIo Jamais eles sao 0 alvo inerte ou consentidor do poder sao sempre seus intermedia rios Em outras palavras 0 poder transita pelos individuos nao se aplica a eles Nao se deve acho eu conceber 0 individuo como urna especie de nuc1eo elementar itomo primitivo materia mul tipla e muda na qual viria aplicarse contra a qual viria bater 0 poder que submeteria os individuos ou os quebran taria Na realidade 0 que faz que urn corpo gestos discur sos desejos sejam identificados e constituidos como indivi duos e precisamente isso urn dos efeitos primeiros do poder Quer dizer 0 individuo nao e 0 visavis do poder e acho eu urn de seus efeitos primeiros 0 individuo e urn efeito do poder e e ao mesmo tempo na mesma medida em que e urn efeito seu seu intermediario 0 poder transita pelo indivi duo que ele constituiu Quarta conseqiiencia no plano das precau90es de meto do quando eu digo 0 poder e algo que se exerce que cir cula que forma rede talvez seja verdade ate certo ponto Podese igualmente dizer Todos nos temos fascismo na cabe9a e mais fundamentalmente ainda todos nos temos poder no corpo E 0 poder pelo menos em certa medida transita ou transuma por nosso corpo Tudo isso de fato pode ser dito mas nao creio que seja precise concluir a par tir dai que 0 poder seria se voces quiserem a coisa mais 35 AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 34 36 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 37 bern distribuida do mundo a mais distribuida se bern que ate certo ponto ele 0 seja Nao e uma especie de distribui ao democnitica ou amirquica do poder atraves do corpo Quero dizer 0 seguinte pareceme que essa seria entao a quarta precauao de metodo 0 importante e que nao se deve fazer uma especie de deduao do poder que partiria do centro e que tentaria ver ate onde ele se prolonga por baixo em que medida ele se reproduz ele se reconduz ate os ele mentos mais atomisticos da sociedade Creio que e preciso ao contrario que seria preciso e uma precauaode metodo a seguir fazer uma amlise ascendente do poder ou seja partir dos mecanismos infinitesimais os quais tern sua pro pria historia seu proprio trajeto sua propria tecnica e tMi ca e depois ver como esses mecanismos de poder que tern pois sua solidez e de certo modo sua tecnologia propria fo ram e ainda sao investidos colonizados utilizados inflecti dos transformados deslocados estendidos etc por meca nismos cada vez mais gerais e por formas de dominaao global Nao e a dominaao global que se pluraliza e reper cute ate em baixo Creio que e preciso examinar 0 modo como nos niveis mais baixos os fen6menos as tecnicas as procedimentos de poder atuam mostrar como esses proce dimentos e claro se deslocam se estendem se modificam mas sobretudo como eles sao investidos anexados por fen6 menos globais e como poderes mais gerais ou lucros de eco nomia podem introduzirse no jogo dessas tecnologias ao mesmo tempo relativamente aut6nomas e infinitesimais de poder Urn exemplo para que isso fique mais claro a respeito da loucura Poderiam dizer 0 seguinte e seria essa a analise descendente da qual acho eu devemos desconfiar a bur guesia tomouse a partir do fim do seculo XVI e no seculo XVII a classe dominante Dito isso como se pode deduzir dai 0 intemamento dos loucos A deduao voces a farao sempre elae sempre facil e e precisamente isso que eu Ihe reprovarei E de fato facil mostrar como 0 louco sendo pre cisamente aquele que e imitil na produao industrial como se e ate mesmo obrigado a descartarse deles Poderiamos fazer a mesma caisa se voces quiserem nao mais a respeito do louco mas a respeito da sexualidade infantil foi 0 que fez certo nillnero de pessoas ate certo ponto Wilhelm Reichl Reimut Reiche4 certamente e dizer a partir da dominaao da classe burguesa como se pode compreender a repressao da sexualidade infantil Pois bern simplesmente como 0 corpo humano se tomou essencialmente fora produtiva a partir dos seculos XVII XVIII todas as formas de dispen dio irredutiveis a essas rela6es it constituiao das foras produtivas todas as formas de dispendio assim manifesta das em sua inutilidade foram banidas excluidas reprimidas Estas dedu6es sempre sao possiveis sao ao mesmo tempo verdadeiras e falsas Sao essencialmente faceis demais por que se poderia fazer exatamente 0 contrario e precisamen te a partir do principio de que a burguesia se tomou uma classe dominante deduzir que os controles da sexualidade e da sexualidade infantil nao sao absolutamente desejaveis ora ao contnirio 0 que se necessitaria seria uma aprendiza gem sexual um treinamento sexual uma precocidade sexual na medida em que se trata afinal de contas de reconstituir pela sexualidade uma fora de trabalho a qual como se sabe consideravase no inicio do seculo XIX pelo menos que seu estatuto otimo seria ser infinita quanto mais foras de trabalho houvesse mais plena e corretamente 0 sistema da produao capitalista poderia funcionar 3 W Reich Der Einbruch der Sexualmoral op cit 4 R Reiche Sexualitiit und Klassenkampf zur Abwehr repressiver Entsublimierung Frankfurt Verlag Neue Kritik 1968 trad fr Sexualitd et lutte de classes Paris Maspero 1969 Creio que se pode deduzir qualquer coisa do fenomeno geral da domina9iio da classe burguesa Pareceme que 0 que se deve fazer e0 inverso au seja ver como historicamente partindo de baixo os mecanismos de controle puderam in tervir no tocante a exclusiio da loucura a repressiio a proi bi9iio da sexualidade como no nivel efetivo da familia do circulo imediato das celulas ou nos niveis mais baixos da sociedade estes fenomenos de repressiio ou de exclusiio ti veram seus instrurnentos sua logica corresponderam a urn certo nUmero de necessidades mostrar quais foram os seus agentes e procurar esses agentes niio de modo algum no ambito da burguesia em geral mas dos agentes reais que podem ter sido 0 circulo imediato a familia os pais os me dicos 0 escaHio mais baixo da policia etc e como esses mecanismos de poder em dado momento numa conjuntura precisa e mediante certo numero de transforma90es come 9aram a tomarse economicamente lucrativos e politicamen te uteis E conseguiriamos acho eu mostrar facilmente enfim foi 0 que eu quis fazer antigamente vanas vezes em todo caso que no fundo aquilo de que a burguesia neces sitou aquilo em que finalmente 0 sistema encontrou seu in teresse niio foi que os loucos fossem excluidos ou que a masturba9iio das cnan9as fosse vigiada e proibida mais uma vez 0 sistema burgues pode suportar perfeitamente 0 contnirio 0 ponto em que ele encontrou seu interesse e pelo qual ele se mobilizou niio foi no fato de eles serem excluidos mas na tecnica e no proprio procedimento da exclusiio Foram os mecanismos de exclusiio foi a aparelha gem de vigiliincia foi a medicaliza9iio da sexualidade da loucura da delinqiiencia foi tudo isso isto e a micromeca nica do poder que representou constituido pela burguesia a partir de certo momento urn interesse e foi por isso que a burguesia se interessou Digamos ainda na medida em que as n090es de bur guesia e de interesse da burguesia nao tern verossimil mente conteudo real ao menos para os problemas que aca bamos de levantar agora 0 que se deve ver e justamente que niio houve a burguesia que pensou que a loucura deveria ser excluida ou que a sexualidade infantil devena ser repnmi da mas os mecanismos de exclusiio da loucura os mecanis mos de vigiliincia da sexualidade infantil a partir de urn cer to momento e por razoes que e preciso estudar produziram certo lucro economico certa utilidade politica e por essa raziio se viram naturalmente colonizados e sustentados por mecanismos globais e finalmente pelo sistema do Estado inteiro E e fixandose nessas tecnicas de poder partindo delas e mostrando 0 lucro economico ou as utilidades poli ticas que delas denvam em certo contexto e por certas ra zoes que se pode compreender como efetivamente esses mecanismos acabam por fazer parte do conjunto Em outras palavras a burguesia niio da a menor importiincia aos lou cos mas os procedimentos de exclusiio dos loucos produzi ram liberaram a partir do seculo XIX e mais uma vez se gundo certas transforma90es urn lucro politico eventual mente ate certa utilidade economica que solidificaram 0 sistema e 0 fizeram funcionar no conjunto A burguesia niio se interessa pelos loucos mas pelo poder que incide sobre os loucos a burguesia niio se interessa pela sexualidade da cnan9a mas pelo sistema de poder que controla a sexuali dade da cnan9a A burguesia niio da a menor importancia aos delinqiientes a Puni9iio ou a reinser9iio deles que niio tern economicamente muita interesse Em compensa9ao do conjunto dos mecanismos pelos quais 0 delinqiiente e con trolado seguido punido reformado resulta para a burgue sia urn interesse que funciona no interior do sistema econo micopolitico gera Eis a quarta precau9iio a quarta linha de metodo que eu quena seguir Quinta precau9iio e bern possivel que as grandes ma quinas do poder sejam acompanhadas de produ90es ideolo 38 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 39 40 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE I976 41 gicas Houve sem duvida por exemplo urna ideologia da edu caao uma ideologia do poder monarquico urna ideologia da democracia parlamentar etc Mas na base no ponto em que terminam as redes de poder 0 que se forma nao acho que se jam ideologias E muito menOS e acho eu muito mais Sao instrumentos efetivos de formaao e de aCUmulo de saber sao metodos de observaao tecnicas de registro procedimentos de investigaao e de pesquisa sao aparelhos de verificaao Isto quer dizer que 0 poder quando se exerce em seus meca nismos finos nao pode fazelo sem a formaao a organizaao e sem por em circuIaao urn saber ou melhor aparelhos de saber que nao sao acompanhamentos ou edificios ideol6gicos Para resurnir essas cinco precauoes de metodo eu di ria isto em vez de orientar a pesquisa sobre 0 poder para 0 ambito do edificio juridico da soberania para 0 ambito dos aparelhos de Estado para 0 ambito das ideologias que 0 acompanham creio que se deve orientar a analise do poder para 0 ambito da dominaao e nao da soberania para 0 ambito dos operadores materiais para 0 ambito das formas de sujeiao para 0 ambito das conexoes e utilizaoes dos sistemas locais dessa sujeiao e para 0 ambito enfim dos dis positivos de saber Em suma e preciso desvencilharse do modelo do Le viata desse modelo de urn homem artificial a urn s6 tempo automato fabricado e unitario igualmente que envolveria todos os individuos reais e cujo corpo seriam os cidadaos mas cuja alma seria a soberania Epreciso estudar 0 poder fora do modelo do Leviata fora do campo delimitado pela soberania juridica e pela instituiao do Estado tratase de analisalo a partir das tecnicas e tMicas de dominaao Eis a linha met6dica que acho eu se deve seguir e que tentei se guir nessas diferentes pesquisas que realizamos nos anos anteriores a prop6sito do poder psiquiMrico da sexualidade das crianas do sistema punitivo etc Ora percorrendo esse dominio tomando essas precau oes de metodo eu acho que aparece um fato hist6rico ma cio que vai afinal nos introduzir um pouco ao problema de que eu queria falar a partir de hoje Esse fato hist6rico macio e 0 seguinte a teoria juridicopolitica da soberania teoria de que devemos nos desligar se quisermos analisar o poder data da Idade Media ela data da reativaao do direito romano ela constituiuse em torno do problema da monarquia e do monarca E acho que historicamente essa teoria da soberania que e a grande esparrela em que cor remos 0 risco de cair quando queremos analisar 0 poder desempenhou quatro papeis Primeiro ela se referiu a urn mecanismo de poder efe tivo que era 0 da monarquia feudal Segundo ela serviu de instrumento e tambem de justificaao para a constituiao das grandes monarquias administrativas Depois a partir do seculo XVI sobretudo do seculo XVII ja no momento das guerras de Religiao a teoria da soberania foi uma arma que circulou num campo e no outro que foi utilizada num senti do ou no outro seja para limitar seja ao contrario para for talecer 0 poder regio Voces a encontram do lado dos cat6 licos monarquistas ou dos protestantes antimonarquistas voces a encontram do lado dos protestantes monarquistas e mais ou menos liberais voces a encontram tambem do lado dos cat6licos partidarios do regicidio ou da mudana de di nastia Voces encontram essa teoria da soberania que atua entre as maos dos aristocratas ou entre as maos dos parla mentares do lado dos representantes do poder regio ou do lado dos ultimos senhores feudais Em resumo ela foi 0 grande instrumento da luta politica e te6rica em torno dos sistemas de poder dos seculos XVI e XVII Enfim no seculo XVIII e sempre essa mesma teoria da soberania reativada do direito romano que voces vao encontrar em Rousseau e em seus contemporaneos com urn outro papel urn quarto papel tratase naquele momento de construir contra as monarquias administrativas autoritanas ou absolutas urn modelo alter nativo 0 das democracias parlamentares E e este papel que ea ainda representa no momento da Revolu9aO Pareceme que se seguimos esses quatro papeis per cebemos que enquanto durou a sociedade de tipo feudal os problemas de que tratava a teoria da soberania aqueles aos quais ela se referia cobriam efetivamente a meciinica geral do poder 0 modo como ele se exercia desde os niveis mais elevados ate os niveis mais baixos Em outras palavras a rela9aO de soberania seja ela entendida de forma lata ou estrita cobria em suma a totalidade do corpo social E efe tivamente 0 modo como 0 poder se exercia podia bern ser transcrito quanta ao essencial em todo caso em termos de rela9aO soberanosudito Ora nos seculos XVII e XVlII ocorreu urn fen6meno importante 0 aparecimento deveriamos dizer a inven9aO de urna nova mecanica do poder que tern procedimentos bern particulares instrumentos totalmente novos uma apa relhagem muito diferente e que acho eu e absolutamente incompativel com as rela90es de soberania Essa nova me ciinica de poder incide primeiro sobre os corpos e sobre 0 que ees fazem mais do que sobre a terra e sobre 0 seu pro duto E urn mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza Eurn tipo de poder que se exerce continuamente por vigilancia e nao de forma descontinua por sistemas de tributos e de obri ga90es cr6nicas Eurn tipo de poder que pressupoe muito mais uma trama cerrada de coer90es materiais do que a existencia fisica de urn soberano e define urna nova econo mia de poder cujo principio e 0 de que se deve ao mesmo tempo fazer que cres9am as for9as sujeitadas e a for9a e a eficacia daquilo que as sujeita 5 Tratase dos c6digos napole6nicos 0 Codigo civil 1804 0 CO digo de instntaO criminal 1808 e 0 C6digo penal 1810 Pareceme que este tipo de poder se opoe exatamente termo a termo a mecanica de poder que a teoria da sobera nia descrevia ou procurava transcrever A teoria da sobe rania e vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra e os produtos da terra muito mais do que sobre os corpos e sobre 0 que ees fazem Essa teoria diz respeito ao deslocamento e aapropria9aO pelo poder nao do tempo e do trabalho mas dos bens e da riqueza E ela que permite transcrever em termos juridicos obriga90es descontinuas e cr6nicas de tributos e nao codificar uma vigilancia conti nua e uma teoria que permite fundamentar 0 poder em tor no e a partir da existencia fisica do soberano e nao dos sis temas continuos e permanentes de vigiliincia A teoria da soberania e se voces quiserem 0 que permite fundamentar o poder absoluto no dispendio absoluto do poder e nao cal cular 0 poder com 0 minimo de dispendio e 0 maximo de eficacia Esse novo tipo de poder que ja nao e pois de modo algurn transcritivel nos termos de soberania e acho eu uma das grandes inven90es da sociedade burguesa Ele foi urn dos instrumentos fundamentais da impianta9aO do capitalis mo industrial e do tipo de sociedade que the e correlativo Esse poder nao soberano alheio portanto aforma da sobe rania e 0 poder disciplinar Poder indescritivel injustifi cave nos termos da teoria da soberania radicalmente hete rogeneo e que deveria ter levado normalmente ao proprio desaparecimento desse grande edificio juridico da teoria da soberania Ora de fato a teoria da soberania nao s6 conti nuou a existir se voces quiserem como ideologia do direito mas tambem continuou a organizar os codigos juridicos que a Europa do seculo XIX elaborou para si a partir dos codi gos napole6nicos5 Por que a teoria da soberania persistiu 43 AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 42 assim como ideologia e como principio organizador dos gran des codigos juridicos Eu creio que ha para isso duas raz5es De urn lado a teoria da soberania foi no seculo XVIII e ainda no seculo XIX urn instrumento critico permanente contra a monar quia e contra todos os obstaculos que podiam oporse ao de senvolvimento da sociedade disciplinar Mas de outro essa teoria e a organizaao de urn cOdigo juridico centrado nela permitiram sobrepor aos mecanismos da disciplina urn sis tema de direito que mascarava os procedimentos dela que apagava 0 que podia haver de dominaao e de tecnicas de dominaao na disciplina e enfim que garantia a cada qual que ele exercia atraves da soberania do Estado seus proprios direitos soberanos Em outras palavras os sistemas juridi cos sejam as teorias sejam os c6digos permitiram uma democratizaao da soberania a implantaao de urn direito publico articulado a partir da soberania coletiva no mesmo momento na medida em que e porque essa democratizaao da soberania se encontrava lastrada em profundidade pelos mecanismos da coerao disciplinar De urna forma mais densa poderiamos dizer 0 seguinte urna vez que as coer5es disciplinares deviam ao mesmo tempo exercerse como me canismos de dominaao e ser escondidas como exercicio efetivo do poder era preciso que fosse apresentada no apa relho juridico e reativada concluida pelos codigos judicia rios a teoria da soberania Ternos pais nas sociedades modernas a partir do se culo XIX ate os nossos dias de urn lado urna legislaao urn discurso urna organizaao do direito publico articulados em tomo do principio da soberania do corpo social e da delega ao por cada qual de sua soberania ao Estado e depois te mos ao mesmo tempo urna trama cerrada de coer5es dis ciplinares que garante de fato a coesao desse mesmo corpo social Ora essa trama nao pode de modo algurn ser trans crita nesse direito que e porem seu acompanhamento ne cessaria Urn direito da soberania e uma mecanica da disci plina e entre esses dois limites creio eu que se pratica 0 exercicio do poder Mas esses dois limites sao de tal forma e sao ilio heterogeneos que nunca se pode fazer que urn coin cida com 0 outro 0 poder se exerce nas sociedades moder nas atraves a partir do e no proprio jogo dessa heterogenei dade entre urn direito publico da soberania e urna meciinica polimorfa da disciplina Isto nao quer dizer que voces tern de urn lado urn sistema de direito tagarela e explicito que seria 0 da soberania e depois disciplinas obscuras e mudas que trabalhariam em profundidade na sombra e que cons tituiriam 0 subsolo silencioso da grande meciinica do poder De fato as disciplinas tern seu discurso proprio Elas mes mas sao pelas raz5es que eu Ihes dizia agora ha pouco criadoras de aparelhos de saber de saberes e de campos mul tiplos de conhecimento Elas sao extraordinariamente inven tivas na ordem desses aparelhos de formar saber e conheci mentos e sao portadoras de urn discurso mas de urn discurso que nao pode ser 0 discurso do direito 0 discurso juridico o discurso da disciplina e alheio ao da lei e alheio ao da regra como efeito da vontade soberana Portanto as disci plinas vao trazer urn discurso que sera 0 da regra nao 0 da regra juridica derivada da soberania mas 0 da regra natural isto e da norma Elas definirao urn codigo que sera aquele nao da lei mas da normalizaao e elas se referirao necessa riamente a urn horizonte teorico que nao sera 0 edificio do direito mas 0 campo das ciencias humanas E sua jurispru dencia para essas disciplinas sera a de urn saber clinico Em suma 0 que quis mostrar no decorrer destes ulti mos anos nao foi de modo algum como na frente avanada das ciencias exatas pouco a pouco a area incerta dificil confusa da conduta humana foi anexada it ciencia nao foi atraves de urn progresso da racionalidade das ciencias exa 44 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 45 tas que se foram constituindo aos poucos as ciencias hurna nas Eu creio que 0 processo que tomou fundamentalmente possivel 0 discurso das ciencias humanas foi a justaposiao o enfrentamento de dois mecanismos e de dois tipos de dis cursos absolutamente heterogeneos de urn lado a organiza ao do direito em tomo da soberania do outro a mecanica das coeroes exercidas pelas disciplinas Que atualmente 0 poder se exera ao mesmo tempo atraves desse direito e dessas tecnicas que essas tecnicas da disciplina que esses discursos nascidos da disciplina invadam 0 direito que os procedimentos da normalizaao colonizem cada vez mais os procedimentos da lei e isso acho eu que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma so ciedade de normalizaao Quero dizer mais precisamente ista eu creio que a normalizaao as normalizayoes disciplinares vern cada vez mais esbarrar contra 0 sistema juridico da soberania cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com 0 outro carla vez mais enecessaria uma especie de dis curso arbitro uma especie de poder e de saber que sua sa cralizaao cientifica tomaria neutros E e precisamente do lado da extensao da medicina que se ve de certo modo nao quero dizer cambinarse mas reduzirse au intercambiar se ou enfrentarse perpetuamente a mecanica da disciplina e 0 principio do direito 0 desenvolvimento da medicina a medicalizaao geral do comportamento das condutas dos discursos dos desejos etc se dao na frente onde vern en contrarse os dois lenois heterogeneos da disciplina e da soberania Epor isso que contra as usurpaoes da mecanica dis ciplinar contra essa ascensao de urn poder que e vinculado ao saber cientifico nos nos encontramos atualmente numa situa9ao tal que 0 Unico recurso existente aparentemente solido que temos eprecisamente 0 recurso OU a volta a urn direito organizado em tomo da soberania articulado sobre esse velho principio sso faz com que concretamente quan do se quer objetar alguma coisa contra as disciplinas e con tra todos os efeitos de saber e de poder que lhes sao vincula dos que se faz concretamente Que se faz na vida Que fazem 0 sindicato da magistratura ou outras instituioes co mo esta Que se faz senao precisamente invocar esse direi to esse famoso direito formal e burgues que na realidade e o direito da soberania E eu creio que nos encontramos aqui numa especie de ponto de estrangulamento que nao pode mos continuar a fazer que funcione indefinidamente dessa maneira nao e recorrendo a soberania contra a disciplina que poderemos limitar os proprios efeitos do poder disciplinar De fato soberania e disciplina legislaao direito da soberania e mecanicas disciplinares sao duas peas absolu tamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade Para dizer a verdade para lutar contra as dis ciplinas ou melhor contra 0 poder disciplinar na busca de urn poder nao disciplinar nao e na direao do antigo direito da soberania que se deveria ir seria antes na dire9ao de urn direito novo que sena antidisciplinar mas que estaria ao mesmo tempo liberto do principio da soberania E e ai entao que nos aproximamos da noao de repres sao de que talvez lhes fale na proxima vez a nao ser que eu esteja urn tanto farlo de repisar coisas ja ditas e que pas se de imediato para outras coisas referentes a guerra Se eu tiver desejo e coragem eu lhes falarei da noao de repres sao que creio eu justamente tern 0 duplo inconveniente no uso que dela se faz de se referir obscuramente a uma certa teoria da soberania que seria a teoria dos direitos soberanos do individuo e de par em jogo quando e utilizada toda uma referencia psicologica tirada das ciencias humanas ou seja dos discursos e das praticas que dependem do dominio 46 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 14 DE JANEIRO DE 1976 47 disciplinar Eu creio que a n09ao de repressao e tambem urna n09ao juridicodisciplinar seja qual for 0 uso critico que dela se pretende fazer e nessa medida 0 uso critico da noao de repressao se acha viciado estragado corrompi do de inicio pela dupla referencia juridica e disciplinar a soberania e a normaliza9ao que ela implica Eu lhes falarei da repressao na pr6xima vez senao passarei para 0 proble ma da guerra 48 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 A teoria da soberania e as operadores de domina9iio A guerra como analisador das relafoes de pader Estrntura binaria da sociedade a discurso historicopolitico 0 dis curso da guerra perpefua A dialetica e suas codificafoes o discurso da luta das ra9as e SUGS transcri90es Da ultima vez foi uma especie de adeus a teoria da soberania na medida em que ela pode na medida em que pOde se apresentar como metodo de analise das rela90es de poder Eu queria lhes mostrar que 0 modelo juridico da soberania nao era ereio eu adaptado a uma amilise concre ta da multiplicidade das rela90es de poder Pareceme de fato resurnindo tudo isso em algumas palavras tres pala vras exatamente que a teoria da soberania tenta necessa riamente constituir 0 que eu chamaria de urn cicIo 0 cicio do sujeito ao sujeito mostrar como urn sujeito entendido como individuo dotado naturalmente ou por natureza de direitos de capacidades etc pode e deve se tornar sujei to mas entendido desta vez como elemento sujeitado nurna rela9ao de poder A soberania e a teoria que vai do sujeito para 0 sujeito que estabelece a rela9ao politica do sujei to com 0 sujeito Em segundo lugar pareceme que a teoria da soberania se confere no inicio urna multiplicidade de po deres que nao sao poderes no sentido politico do termo mas sao capacidades possibilidades potencias e que ela s6 pode constituilos como poderes no sentido politico do termo com a condi9ao de ter entrementes estabelecido entre as possibilidades e os poderes urn momenta de unidade fun damental e fundadora que e a unidade do poder Que essa unidade do poder assurna a fisionomia do monarca ou a for ma do Estado pouco importa e dessa unidade do poder que vao derivar as diferentes formas os aspectos mecanismos e institui90es de poder A multiplicidade dos poderes enten didos como poderes politicos so pode ser estabelecida e so pode funcionar a partir dessa unidade do poder fundamen tada pela teoria da soberania Enfim em terceiro lugar pa receme que a teoria da soberania mostra tenta mostrar como urn poder pode constituirse nao exatamente segundo a lei mas segundo uma certa legitimidade fundamental mais fundamental do que todas as leis que 0 urn tipo de lei geral de todas as leis e pode permitir as diferentes leis fun cionarem como leis Em outras palavras a teoria da sobera nia 0 0 ciclo do sujeito ao sujeito 0 cicIo do poder e dos poderes 0 cicio da legitimidade e da lei Digamos que de uma maneira au de autra e conforme evidentemente as diferentes esquemas teoricos nos quais ela se desenvolve a teoria da soberania pressupoe 0 sujeito ela visa funda mentar a unidade essencial do poder e se desenvolve sem pre no elemento preliminar da lei Triplice primitivismo pois 0 do sujeito que deve ser sujeitado 0 da unidade do poder que deve ser fundamentada e 0 da legitimidade que deve ser respeitada Sujeito unidade do poder e lei ai estao creio eu os elementos entre os quais atua a teoria da sobe rania que a urn so tempo os confere a si e procura funda mentalos Meu projeto mas eu 0 abandono logo em se guida era mostrar a voces como esse instrumento que a anitlise politicopsicologica se proporcionou ha tres ou qua tro soculos ja ou seja a n09ao de repressao que mais pa rece copiada do freudismo ou do freudomarxismo se inse ria de fato numa decifra9ao do poder que se fazia em termos de soberania Mas isto nos teria levado a retomar a coisas ja ditas entao sigo em frente admitindo a possibilidade de no fmal do ano voltar a esse ponto se sobrar tempo o projeto geral 0 dos anos anteriores e 0 deste ano 0 tentar desamarrar ou livrar essa analise do poder dessa tri plice preliminar do sujeito da unidade e da lei e ressal tar em vez desse elemento fundamental da soberania aquilo que eu denominaria as rela90es e os operadores de domina 9ao Em vez de fazer os poderes derivarem da soberania se trataria fiuito mais de extrair hist6rica e empiricamente das rela90es de poder os operadores de domina9ao Teoria da domina9ao das domina90es muito mais do que teoria da so berania 0 que quer dizer em vez de partir do sujeito ou mesmo dos sujeitos e desses elementos que seriam preli minares a rela9ao e que poderiamos localizar se trataria de partir da propria rela9ao de poder da rela9ao de domina9ao no que ela tern de factual de efetivo e de ver como e essa propria rela9ao que determina os elementos sobre os quais ela incide Portanto nao perguntar aos sujeitos como por que em nome de que direito eles podem aceitar deixarse sujeitar mas mostrar como sao as rela90es de sujei9ao efe tivas que fabricam sujeitos Em segundo lugar tratarseia de ressaltar as rela90es de domina9ao e de deixalas valer em sua multiplicidade em sua diferen9a em sua especifici dade ou em sua reversibilidade nao procurar por conse guinte uma especie de soberania fonte dos poderes ao con trario mostrar como os diferentes operadores de domina9ao se ap6iam uns nos outros remetem uns aos outros em certo nlimero de casas se fortalecem e convergem noutros casas se negam ou tendem a anularse En nao quero dizer e claro que nao ha ou que nao se pode atingir nem descrever os grandes aparelhos do poder Mas en creio que estes funcio nam sempre sobre a base desses dispositivos de domina9ao Concretamente podemos eclaro descrever 0 aparelho esco 50 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 51 52 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 2 DE JANEIRO DE 976 53 lar ou 0 conjunto dos aparelhos de aprendizagem em dada sociedade mas eu creio que s6 podemos analisaIos eficaz mente se niio os tomarmos como urna unidade global se niio tentarmos derivalos diretamente de algurna coisa que seria a unidade estatal de soberania mas se tentarmos ver como atuam como se ap6iam como esse aparelho define certo n1mero de estrategias globais a partir de urna multi plicidade de sujeioes a da criana ao adulto da prole aos pais do ignorante ao erudito do aprendiz ao mestre da familia Ii administraao publica etc Sao todos esses mecanismos e todos esses aparelhos de dominaao que constituem 0 pedestal efetivo do aparelho global constituido pelo aparelho escolar Portanto se voces quiserem encarar as estruturas de poder como estrategias globais que perpas sam e utilizam tMicas locais de dominaiio Enfim em terceiro lugar ressaltar as relaoes de domi naiio muito mais do que a fonte de soberania quer dizer isto niio tentar seguiIas naquilo que constitui sua legitimi dade fundamental mas tentar ao contmno procurar os ins trumentos tecnicos que permitem garantilas Portanto para resurnir e para que a coisa fique pelo menos provisoria mente nao encerrada mas relativamente clara em vez da triplice preliminar da lei da unidade e do sujeito que faz da soberania a fonte do poder e 0 fundamento das institui oes eu acho que temos de adotar 0 ponto de vista triplice das tecnicas da heterogeneidade das tecnicas e de seus efei tos de sujeiiio que fazem dos procedimentos de domina ao a trama efetiva das relaoes de poder e dos grandes apa relhos de poder A fabricaao dos sujeitos muito mais do que a genese do soberano ai esta 0 tema gera Mas se esta bern claro que as relaoes de dominaiio e que devem ser 0 cami nho de acesso Ii analise do poder como se pode realizar es sa analise das relaoes de dominaiio Se e verdade que e a dominaiio e niio a soberania ou melhor as dominaoes os operadores de dominaiio que devemos estudar pois bern como se pode avanar nesse caminho das relaoes de domi naiio Em que urna relaiio de dominaiio pode se resumir it noiio de relaiio de fora ou coincidir com ela Em que e como a relaao de fora pode se resurnir a uma relaao de guerra Eis a especie de questiio preliminar que eu gostaria de focalizar urn pouquinho este ano a guerra pode valer efeti vamente como analise das relaoes de poder e como matriz das tecnicas de dominaao Voces me diriio que niio se pode logo de saida confundir relaoes de fora e relaoes de guer ra Eclaro Mas tomarei isso simplesmente como urn caso extremo na medida em que a guerra pode passar por ponto de tensao maxima pela nudez mesma das relaoes de fora A relaiio de poder sera em seu fundo urna relaiio de en frentamento de luta de morte de guerra Sob a paz a ordem a riqueza a autoridade sob a ordem calma das subordina oes sob 0 Estado sob os aparelhos do Estado sob as leis etc devemos entender e redescobrir urna especie de guerra primitiva e permanente Eesta questao que eu gostaria de formular logo de saida sem ignorar toda a serie das outras questiies que sera necessario formular e que eu tentarei abordar nos anos seguintes e dentre as quais podemos sim plesmente citar a titulo de primeira referencia as seguintes o fato da guerra pode e deve ser efetivamente considerado primeiro em comparaao a outras relaoes as relaoes de desigualdade as dissimetrias as divisoes de trabalho as re laoes de exploraiio etc as fen6menos de antagonismo de rivalidade de enfrentamento de luta entre individuos ou entre grupos ou entre classes podem e devem ser agrupa dos nesse mecanismo geral nessa forma geral que e a guerra E ainda as nooes que sao derivadas daquilo que se deno minava no seculo XVIII e ainda no seculo XIX a arte da guerra a estrategia a tMica etc podem constituir em si 54 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 55 mesmas um instrurnento valida e suficiente para analisar as relaoes de poder Poderiamos perguntarnos sera preciso perguntarnos tambem as instituioes militares e as prati cas que as cercam e de um modo geral todos os procedi mentos que foram empregados para travar a guerra sao de perto ou de longe direta ou indiretamente 0 nucleo das ins tituioes politicas Enfim a questao principal que eu gosta ria de estudar este ana seria esta como desde quando e por que se comeou a perceber ou a imaginar que e a guerra que funciona sob e nas relaoes de poder Desde quando como por que se imaginou que urna especie de combate ininter rupto perturba a paz e que finalmente a ordem civil em seu fundo em sua essencia em seus mecanismos essenciais e uma ordem de batalha Quem imaginou que a ordem civil era urna ordem de batalha Quem enxergou a guer ra como filigrana da paz quem procurou no barulho da confusao da guerra quem procurou na lama das batalhas 0 principio de inteligibilidade da ordem do Estado de suas instituioes e de sua historia 13 portanto esta questao que eu you tentar seguir um pouco nas proximas aulas e talvez ate 0 fim deste ano No fundo poderiamos formular a questao de modo muito sim ples e de inicio foi assim que eu a formulei para mim mes rna Quem no fundo teve a ideia de inverter 0 principia de Clausewitz quem teve a ideia de dizer e bem possivel que a guerra seja a politica praticada por outros meios mas a propria politica nao sera a guerra travada por outros meios Ora eu creio que 0 problema nao e tanto saber quem inver teu 0 principio de Clausewitz mas antes saber qual era 0 principio que Clausewitz inverteu ou melhor quem formu lou esse principio que Clausewitz inverteu quando disse Mas afinal de contas a guerra nao passa da politica con tinuada Eu creio de fato e tentarei demonstraIo que o principio segundo 0 qual a politica e a guerra continuada por outros meios era urn principio bem anterior a Clause witz que simplesmente inverteu uma especie de tese a urn so tempo difusa e precisa que circulava desde os seculos XVII e XVIII Portanto a politica e a guerra continuada por outros meios Hi nessa tese na propria existencia dessa tese pre liminar a Clausewitz urn tipo de paradoxo historico Com efeito podese dizer de modo esquemMico e urn pouco gros seiro que com 0 crescimento com 0 desenvolvimento dos Estados aolongo de toda a dade Media e no limiar da epo ca moderna viramse as praticas e as instituioes de guerra passarem por urna evoluao muito acentuada muito visivel que se pode caracterizar assim as praticas e as instituiDes de guerra de inicio se concentraram cada vez mais nas IDaOS de urn poder central pouco a pouco sucedeu que de fato e de direito apenas os poderes estatais podiam iniciar as guerras e manipular os instrumentos da guerra estatizaao em con sequencia da guerra Com isso pelo fato dessa estatizaao encontrouse apagado do corpo social da relaao de homem com homem de grupo com grupo aquilo que se poderia chamar de guerra cotidiana aquela que chamavam efetiva mente de guerra privada Cada vez mais as guerras as praticas de guerra as instituiDes de guerra tendem a nao rnais existir de certo modo senao nas fronteiras nos limi tes exteriores das grandes unidades estatais como uma rela ao de violencia efetiva ou ameaadora entre Estados Mas pouco a pouco 0 corpo social inteiro ficou limpo dessas re laDes belicosas que 0 perpassavam integralmente durante 0 periodo medieval Enfim com essa estatizaao pelo fato de que a guerra foi de certo modo urna prMica que ja nao funcionava senao nos limites exteriores do Estado ela tendeu a se tornar urna atribuiao profissional e tecnica de um aparelho militar cio samente definido e controlado Foi em linhas gerais 0 apa recimento do exercito como institui9ao que no funda naD existia como tal na Idade Media Esomente na saida da Ida de Media que se vii emergir urn Estado dotado de institui y6es militares que vieram Se substituir a prMica cotidiana global da guerra e a uma sociedade eterna perpassada per relay6es guerreiras A essa evoluyao teremos de voltar mas eu acho que podemos admitila ao menos a titulo de primei ra hip6tese hist6rica Ora onde esta 0 paradoxo 0 paradoxo surge no mo mento mesmo dessa transformayao ou talvez logo depois Quando a guerra se viu expulsa para os limites do Estado ao mesmo tempo centralizada em sua pratica e recuada para a sua fronteira eis que apareceu urn certo discurso urn dis curso estranho urn discurso novo Novo sobretudo porque creio que e 0 primeiro discurso hist6ricopolitico sobre a sociedade e que foi muito diferente do discurso filos6fico juridico que se costumava fazer ate entao E esse discurso hist6ricopolitico que aparece nesse momento e ao mesmo tempo urn discurso sobre a guerra entendida como relayao social permanente como fundamento indelevel de todas as relay6es e de todas as instituiy6es de poder Equal e a data de nascimento desse discurso historicopolitico sobre a guerra como fundamento das relay6es sociais De uma forma sin tomMica ele aparece creio eu you tentar mostrarlhes isso depois do fim das guerras civis e religiosas do seculo XVI Nao e portanto de modo algum como registro OU analise das guerras civis do seculo XVI que aparece esse discurso Em compensayao ele ji esti se nao constituido pelo menos claramente formulado no inicio das grandes lutas politicas inglesas do seculo XVII no momento da revoluyao burgue sa inglesa E n6s 0 veremos aparecer em seguida na Franya no fim do seculo XVII no fim do reinado de Luis XlV nou tras lutas politicas digamos as lutas de retaguarda da aristo cracia francesa contra 0 estabelecimento da grande monar quia absoluta e administrativa Discurso pais voces estao vendo imediatamente ambiguo ji que de urn lado na Ingla terra ele foi urn dos instrumentos de luta de poliimica e de organizayao politica dos grupos politicos burgueses peque noburgueses e eventualmente mesmo populares contra a monarquia absoluta Ele foi tambem urn discurso aristocri tico contra essa mesma monarquia Discurso cujos titulares tiveram nomes em geral obscuros e ao mesmo tempo hete rogeneos ji que encontramos na Inglaterra homens como Edward Coke ou John Lilburne representantes dos movi mentos populares na Franya encontramos igualmente nomes como 0 de Boulainvilliers3 de Frere ou daquele fidalgo do Maciyo Central que se chamava conde dEstaings Ele foi retomado depois por Sieyes6 mas igualmente por Buonar 1 As obras fundamentais de E Coke sao A Book ofEntries Londres 1614 Commentaries on Littleton Londres 1628 A treatise of Bail and Mainprize Londres 1635 Institutes ofthe Laws ofEngland Londres I 1628 II 1642 IIIIV 1644 Reports Londres IXI 16001615 XII 1656 XIII 1659 Sabre Coke cf infra aula de 4 de fevereiro 2 Sabre 1 Lilbume cf ibid 3 Sabre H de Boulainvilliers cf infra aula de II 18 e 25 de fevereiro 4 A maioria das obras de N Freret sao inicialmente publicadas nas Me moires de Academie des Sciences Serna depois reunidas em suas tEuvres completes Paris 1796179920 vol Ver entre outras De lorigine des Franfais et de leur etablissement dans la Gaule t V Recherches historiques sur les mceurs et le gouvernement des Franfais dans les divers temps de la monar chie t VI Reflexions sur etude des anciennes histoires et sur Ie degre de certitude de leurs preuves t VI Vues generales sur Iorigine et sur Ie melan ge des anciennes nations et sur la maniere den etudier histoire t XVIII Observations sur les Merovingiens t XX Sobre Freret cf infra aula de 18 de fevereiro 5 Joachim conde dEstaing Dissertation sur la noblesse dextraction et sur es origines des fiefs des surnoms et des armoiries Paris 1690 6 Michel Foucault se ap6ia essencialmente em sua aula de 10 de mar lO infra na obra de EJ Sieyes Qu estce que Ie TiersEtat sl 1789 ver as reediloes desse texto Paris PDF 1982 e Flammarion 1988 57 AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 56 58 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 59 roti Augustin ThierryS ou Courtet9 E por fim voces vao encontnilo entre os biologos racistas e eugenistas etc do fim do seculo XIX Discurso sofisticado discurso cientifico discurso erudito feito por pessoas com olhos e com dedos empoeirados mas igualmente discurso voces verao que teve certamente urn numero imenso de locutores populares e anonimos Esse discurso 0 que e que ele diz Pois bern eu creio que diz isto contrariamente ao que diz a teoria fi 10sOficojuridica 0 poder politico nao come9a quando cessa a guerra A organiza9ao a estrutura juridica do poder dos Estados das monarquias das sociedades nao tern seu prin cipio no ponto em que cessa 0 ruido das armas A guerra nao econjurada No inicio claro a guerra presidiu ao nas cimento dos Estados 0 direito a paz as leis nasceram no sangue e na lama das batalhas Mas com isso nao se deve entender batalhas ideais rivalidades tais como as imaginam os filosofos ou os juristas nao se trata de uma especie de selvageria teorica A lei nao nasce da natureza junto das fontes freqiientadas pelos primeiros pastores a lei nasce das batalhas reais das vitorias dos massacres das conquis tas que tern sua data e seu herois de horror a lei nasce das cidades incendiadas das terras devastadas ela nasce com 7 Cf F Buonarroti Conspiration pour Iegalite dUe de Babeuf suivie du praces auquel elie donna lieu et des piecesjustificatives Bruxelas 18282 vol 8 As obras hist6ricas de A Thierry a que M Foucault se refere sobre tudo na aula de 10 de mania infra sao as seguintes Vues des revolutions dAngleterre Paris 1817 Histoire de fa conqUte de Angleterre par les Nor mands de ses causes et de ses suitesjusqu d nosjours Paris 1825 Lettres sur lhistoire de France pour servir dintroduction a litude de cette histoire Paris 1827 Dix ans detudes historiques Paris 1834 Recits des temps mero vingiens prticedes de Considerations sur histoire de France Paris 1840 Essai sur lhistoire de laormation et des progres du TiersEtat Paris 1853 9 De A V Courtet de lIs1e cf sobretudo La science politiquefondee sur fa science de lhomme Paris 1837 os famosos inocentes que agonizam no dia que esta ama nhecendo Mas isto nao quer dizer que a sociedade a lei e 0 Es tado sejam como que 0 armisticio nessas guerras ou a san 9ao definitiva das vitorias A lei nao e pacifica9ao pois sob a lei a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder mesmo os mais regulares A guer ra e que e 0 motor das institui90es e da ordem a paz na menor de suas engrenagens faz surdamente a guerra Em outras palavras cumpre decifrar a guerra sob a paz a guer ra e a cifra mesma da paz Portanto estamos em guerra uns contra os outros uma frente de batalha perpassa a socieda de inteira continua e permanentemente e e essa frente de batalha que coloca cada urn de nos num campo ou no outro Nao hi sujeito neutro Somos for90samente adversanos de alguem Uma estrutura binana perpassa a sociedade E voces veem aparecer ai algo a que eu tentarei voltar e que e muito importante Agrande descri9ao piramidal que a Idade Media ou as teorias filosOficopoliticas faziam do corpo social a grande imagem do organismo ou do corpo hurnano que Hobbes apresentara ou ainda il organiza9ao ternaria em tres ordens que vale para a Fran9a e ate certo ponto para certo numero de paises da Europa e que continuara a arti cular certo nfunero de discursos e em todo caso a maioria das institui90es opoese MO exatamente pela primeira vez mas pela primeira vez com urna articula91io historica preci sa urna concep9ao binaria da sociedade Ha dois grupos duas categorias de individuos dois exercitos em confronto E sob os esquecimentos as ilusoes as mentiras que tenta yam fazernos acreditar justamente que hi urna ordem ter naria urna piriimide de subordina90es ou urn organismo sob essas mentiras que tentavam fazernos acreditar que 0 corpo social e comandado seja por necessidades de natureza seja por exigencias funcionais temos de redescobrir a guerra que continua a guerra com seus acasos e suas peripecias Ternos de redescobrir a guerra por que Pois bern porque essa guerra antiga e uma guerra permanente Temos de fato de ser os eruditos das batalhas porque a guerra nao termi nou as batalhas decisivas ainda estao se preparando a pro pria batalha decisiva temos de venceIa Isto quer dizer que os inimigos que estao I nossa frente continuam a ameaar nos e nao poderemos chegar ao termo da guerra por algo como uma reconciliacao au uma pacifica9ao mas somente na medida em que formos efetivamente vencedores Ai estl uma primeira caracterizaao muito nebulosa e certo dessa especie de discurso Eu creio que mesmo a par tir dai podese compreender por que ele e importante por que e pareceme 0 primeiro discurso na sociedade ocidental desde a Idade Media que se pode dizer rigorosamente histo ricopolitico Primeiro par causa disto 0 sujeito que fala nesse discurso que diz eu au que diz nos nao pode e alias nao procura ocupar a posiao do jurista ou do filoso fo isto e a posiao do sujeito universal totalizador ou neu tro Nessa luta geral de que ele fala aquele que fala aquele que diz a verdade aquele que narra a historia aquele que recobra a memoria e conjura os esquecimentos pais bern este esta forosamente de urn lado ou do outro ele esta na batalha ele tern adversarios ele trabalha para urna vitoria particular Claro sem duvida ele faz 0 discurso do direito e faz valer 0 direito reclamao Mas 0 que ele reclama e 0 que faz valer sao os seus direitos sao os nossos direitos diz ele direitos singulares fortemente marcados por uma relaao de propriedade de conquista de vitoria de nature za Sera 0 direito de sua familia ou de sua raa 0 direito de sua superioridade ou 0 direito da anterioridade 0 direito das invasoes triunfantes ou 0 direito das ocupaoes recentes ou milenares De todo modo e urn direito a urn so tempo arrai 10 Cf JP Vemant Les origines de fa pensee grecque Paris PDF 1965 em especial caps VII e VIII Mythe et pensee chez les Grecs Etudes de psychologie historique Paris La Decouverte 1965 em especial caps III IV VII Mythe et societe en Grece ancienne Paris Seuil 1974 JP Vemant P VidalNaquet Mythe et tragMie en Grece ancienne Paris La Decouverte 1972 em especial cap III gada numa historia e descentralizado em relaao a uma uni versalidade juridica E se esse sujeito que fala do direito ou melhor de seus direitos fala da verdade essa verdade nao e tampouco a verdade universal do filosofo Everdade que esse discurso sobre a guerra geral esse discurso que tenta decifrar a guerra sob a paz esse discurso bern que tenta ex pressar tal como ele e 0 conjunto da batalha e restituir 0 percurso global da guerra Mas nem por isso ele e urn dis curso da totalidade ou da neutralidade e sempre urn discurso de perspectiva Ele so visa I totalidade entrevendoa atra vessandoa traspassandoa de seu ponto de vista proprio Isto quer dizer que a verdade e uma verdade que so pode se manifestar a partir de sua posiao de combate a partir da vitoria buscada de certo modo no limite da propria sobre vivencia do sujeito que esta falando Entre relaoes de fora e relaoes de verdade esse dis curso estabelece urn vinculo fundamental Isto quer dizer ainda que 0 pertencer da verdade I paz I neutralidade Ique la posiao mediana que JeanPierre Vernant lO mostrou a que ponto era constitutiva da filosofia grega ao menos a partir de certo momento se desfaz Num discurso como aquele de uma parte se dira tanto melhor a verdade porque se esta num campo E0 fato de pertencer a urn campo a posiao descentralizada que vai permitir decifrar a verda de denunciar as ilusoes e os erros pelos quais fazem que voce acredite os adversarios fazem voce acreditar que esta mos nurn mundo ordenado e pacificado Quanto mais eu me 61 AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 r EM DEFESA DA SOCIEDADE 60 11 No que se refere a Solon ver em especial 0 fragmento 16 ed Diehl remetemos aamUise da medida que M Foucault havia desenvolvido em seu curso no College de France anos de 19701971 sabre A vontade de saber Quanta a Kant limitamonos a remeter a Vhat Is Enlightenment a descentro mais vejo a verdade quanta mais eu acentuo a rela9ao de for9a quanta mais eu me bato mais efetivamente a verdade vai se manifestar it minba frente e nessa perspec tiva do combate da sobrevivencia ou da vitoria E inversa mente se a rela9ao de for9a libera a verdade a verdade por sua vez vai atuar e em ultima analise s6 e procurada na medida em que puder efetivamente se tomar uma arma na rela9ao de for9a Ou a verdade fomece a for9a ou a verda de desequilibra acentua as dissimetrias e finalmente faz a vitoria pender mais para urn lado do que para 0 outro a ver dade e urn mais de for9a assim como ela so se manifesta a partir de urna rela9ao de for9a 0 pertencer essencial da ver dade it rela9ao de for9a it dissimetria it descentraliza9ao ao combate it guerra estit inserido neste tipo de discurso Essa universalidade pacificada pode supor sempre desde a filo sofia grega 0 discurso filosMicojuridico mas ela e pro fundamente ou questionada ou simplesmente cinicamente ignorada Temos urn discurso historico e politico e e nisso que ele e historicamente arraigado e politicamente descentrali zado que tern pretensao it verdade e ao justo direito a par tir de urna rela9ao de for9a para 0 proprio desenvolvimento dessa rela9ao de for9a excluindo por conseguinte 0 sujei to que esti falando 0 sujeito que esti falando do direito e esti procurando a verdade da universalidade juridicofilo sMica 0 papel de quem esti falando nao e pois 0 papel do legislador ou do filosofo entre os campos personagem da paz e do armisticio na posi9ao que ji Solon e ainda Kant haviam sonhado Estabelecerse entre os adversirios no Questce que les Lumieres in Dits et ecrits IV nO 339 e 351 e a sua conferencia de 27 de maio de 1978 na Societe Franlaise de Philosophie publicada com 0 titulo Questce que la critique Bulletin de la Sociite franraise de Philosophie abriljun de 1990 pp 3563 De Kant cf Zum ewigen Frieden ein philosophischer EnwurfKonigsberg J795 ver em espe cial a segunda edirao de 1796 in Werke in zwolf Siinden Frankfurt Insel Verlag 1968 voL XI pp 191251 Der Streit der Fakultiiten in drei Abschnitten Konigsberg 1798 ibid pp 261393 trad fr Projet de paix perpetuelle e Le conjlit des facultes in E Kant CEuvres philosophiques Paris Gallimard Bibliotheque de la Pleiade voL Ill 1986 Foucault pos suia as obras completas de Kant na edirao de Ernst Cassirer Berlim Bruno Cassirer 19121922 e 0 volume de Ernst Cassirer Kants Leben und Lehre Berlim 1921 63 AULA DE 21 DEJANE1RO DE 1976 centro e acima impor urna lei geral a cada urn e fundar urna ordem que reconcilie nao e disso de modo algurn que se trata Tratase antes de impor urn direito marcado pela dis simetria de fundar urna verdade vinculada a uma rela9ao de for9a urna verdadearma e urn direito singular 0 sujeito que esti falando e urn sujeito eu nao diria polemico guerrea dor Esse e urn dos primeiros pontos pelos quais este tipo de discurso e importante e introduz decerto uma fissura no discurso da verdade e da lei tal como ele era feito faz mile nios faz mais de urn milenio Segundo eurn discurso que inverte os valores os equi librios as polaridades tradicionais da inteligibilidade e que postula chama a explica9ao por baixo Mas a parte de bai XO nessa explicacao naG e forcosamente nem por isso a mais clara e a mais simples A explica9ao por baixo e tam bern uma explica9ao pelo mais confuso pelo mais obscuro pelo mais desordenado 0 mais condenado ao acaso pois 0 que deve valer como principio de decifra9ao da sociedade e de sua ordem visivel e a confusao da violencia das paixoes dos Odios das coleras dos rancores dos amargores e tam bern a obscuridade dos acasos das contingencias de todas EM DEFESA DA SOC1EDADE 62 Manuscrito depois da hist6ria e do ctireito as circunstancias miudas que produzem as derrotas e garan tern as vit6rias 0 que esse discurso pede no fundo ao deus eliptico das batalhas e esclarecer os longos dias da ordem do trabalho da paz da justia Cabe ao furor justificar a calma e a ordem Que e que isso introduz entao no principio da hist6 ria Primeiro uma serie de fatos brutos fatos que poderia mos dizer ja fisicobioI6gicos vigor fisico fora energia proliferaao de uma raa fraqueza da outra etc uma serie de acasos de contingencias em todo caso derrotas vitorias fracassos ou exitos das revoltas sucessos ou insucessos das conjuraoes ou das alianas enfim urn feixe de elementos psicol6gicos e morais coragem medo desprezo 6dio es quecimento etc Urn entrecruzamento de corpos de pai xoes e de acasos eisso que nesse discurso vai constituir a trama permanente da hist6ria e das sociedades E e simples mente acima dessa trama de corpos de acasos e de paixoes dessa massa e desse burburinho sombrio e as vezes sangren to que se vai construir algo de fragil e de superficial uma racionalidade crescente ados calculos das estrategias das asrucias ados procedimentos tecnicos para manter a vit6ria para fazer calar aparentemente a guerra para conservar ou inverter as relaoes de fora Portanto e urna racionalidade que a medida que se vai subindo e que ela se vai desenvol vendo vai ser no fundo cada vez mais abstrata cada vez mais vinculada a fragilidade e a ilusao cada vez mais vinculada tambem a asrucia e a maldade daqueles que tendo por ora a vit6riae estando favorecidos na relaao de dominaao tern todo 0 mteresse de nao as por de novo em jogo Temos pois nesse esquema de explicaao urn eixo ascendente que e acho eu muito diferente nos valores que ele distribui daquele que temos tradicionalmente Temos urn eixo que possui na base uma irracionalidade fundamen tal e permanente uma irracionalidade bruta e nua mas na qual irrompe a verdade e depois na direao das partes altas temos urna racionalidade fragil transit6ria sempre com prometida com a ilusao e a maldade e vinculada a elas A razao esta do lado da quimera da asrucia dos maldosos do outro lado na outra extremidade do eixo voces tern uma brutalidade elementar 0 conjunto dos gestos dos atos das paixoes das raivas cinicas e nuas voces tern a brutalidade mas a brutalidade que esta tambem do lado da verdade Por tanto a verdade vai estar do lado da desrazao e da brutalida de a razao em compensaao do lado da quimera e da mal dade totalmente 0 contrario por conseguinte do discurso explicativo do direito e da hist6ria ate entao 0 esforo ex plicativo desse discurso consistia em destacar uma raciona lidade fundamental e permanente que seria por essencia vinculada ao justo e ao bern de todos os acasos superficiais e violentos que sao vinculados ao erro Inversao pais acho eu do eixo explicativo da lei e da hist6ria Terceira importancia desse tipo de discurso que eu gos taria de analisar urn pouquinho este ano e que voces estao vendo e urn discurso que se desenvolve por inteiro na di mensao hist6rica Ele se manifesta nurna hist6ria que nao tern bordas que nao tern fins nem limites Nurn discurso co mo esse nao se trata de tomar a monotonia da hist6ria como urn dado superficial que se deveria reordenar em alguns principios estaveis e fundamentais nao se trata de julgar os governos injustos os abusos e as violencias reportandoos a certo esquema ideal que seria a lei natural a vontade de Deus os principios fundamentais etc Tratase ao contra rio de definir e de descobrir sob as formas do justo tal como ele e instituido de ordenaIo tal como ele e imposto do ins titucional tal como ele e admitido 0 passado esquecido das 65 AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 64 12 Segundo 0 Resumo do Curso no College de France desses anas 1975 1976 in Dits etecrits III n 187 e infra lutas reais das vitorias efetivas das derrotas que talvez te nham sido disfar9adas mas que continuam profundamente inseridas Tratase de redescobrir 0 sangue que secou nos co digos e por conseguinte nao sob a fugacidade da historia o absoluto do direito nao reportar a relatividade da historia ao absoluto da lei ou da verdade mas sob a estabilidade do direito redescobrir 0 infinito da historia sob a formula da lei os gritos de guerra sob 0 equilibrio da justi9a a dissi metria das for9as Nurn campo historico que nem sequer se pode dizer urn campo relativo pois ele nao se relaciona com nenhurn absoluto e urn infinito da historia que e de certo modo irrelativizado 0 da etema dissolu9ao em me canismos e acontecimentos que sao os da for9a do poder e da guerra Voces me dirao e essa e acho eu mais uma razao pela qual esse discurso e importante voces me dirao que esse e sem duvida urn discurso triste e negro urn discurso talvez para aristocratas nostalgicos ou para eruditos de bi blioteca De fato ja em sua origem e ate mais tarde no se culo XIX e ainda no seculo XX e urn discurso que se apoia e que em geral se envolve em formas miticas muito tradi cionais Nesse discurso se encontram associados ao mesma tempo saberes sutis e mitos eu nao diria grosseiros mas fun damentais pesados e sobrecarregados Pois afinal de contas vemos bern como urn discurso como esse pode se articular e voces veriio como de fato ele se articulou com base em toda urna grande mitologia a era perdida dos grandes ances trais a iminencia dos tempos novos e das desforras milena res a vinda do novo reino que apagara as antigas derrotas1 Nessa mitologia contase que as grandes vitorias dos gi gantes foram sendo aos pOUCOS esquecidas e encobertas que houve 0 crepusculo dos deuses que herois foram feri dos ou morreram e que reis adormeceram dentro de caver nas inacessiveis Etambem 0 tema dos direitos e dos bens da primeira ra9a que foram achincalhados por invasores as tutos 0 tema da guerra secreta que continua 0 tema do com plo que e preciso restabelecer para reanimar essa guerra e escorraar os invasores ou os inimigos 0 tema da famasa batalha da manha do dia seguinte que vai afinal inverter as for9as e que dos vencidos seculares vai fazer enfim vence dores mas vencedores que nao conheceriio e nao praticarao o perdao E e assim que durante toda a Idade Media porem mais tarde ainda vaise revigorar incessantemente vinculada a esse tema da guerra perpetua a grande esperan9a do dia da desforra a espera do imperador dos ultimos dias do dux novus do novo chefe do novo guia do novo Fuhrer a ideia da quinta monarquia ou do terceiro imperio ou do terceiro Reich aquele que sera ao mesmo tempo a besta do Apoca lipse ou 0 salvador dos pobres Ea volta de Alexandre per dido nas indias e a volta por tanto tempo esperada na Ingla terra de Eduardo 0 Confessor e Carlos Magno adormeci do em seu tUmulo que despertara para reanimar a guerra justa sao os dois Frederico BarbaRoxa e Frederico II que esperam em sua caverna 0 despertar de seu povo e de seu imperio e 0 rei de Portugal perdido nos areais da Africa que retomara para urna nova batalha para urna nova guerra e para uma vitoria que sera dessa vez definitiva Esse discurso da guerra perpetua nao e pois somente a inven9ao triste de alguns intelectuais que foram por muito tempo mantidos sob tutela Pareceme que para alem dos grandes sistemas filosoficojuridicos que ele curtocircuita de lado esse discurso junta de fato a urn saber que por ve zes e 0 dos aristocratas desarvorados as grandes pulsaes mi ticas e tambem 0 ardor das desforras populares Em suma 67 AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 66 esse discurso talvez seja 0 primeiro discurso exclusivamen te hist6ricojuridico do Ocidente em contraste com 0 dis curso filos6ficojuridico e urn discurso em que a verdade funciona explicitamente como arma para uma vit6ria exclu sivamente partidaria Eurn discurso sombriamente critico mas e tambem urn discurso intensamente mitico e 0 dos amargores mas e tambem 0 das mais loucas esperan as Portanto ele e alheio por seus elementos fundamentais a grande tradiao dos discursos filosOficojuridicos Para os fil6sofos e os juristas ele e forosamente 0 discurso exte rior estrangeiro Nao e sequer 0 discurso do adversario pois eles nao discutem com ele E0 discurso forosamente desqualificado que se pode e que se deve manter a mar gem precisamente porque e preciso como uma preliminar anulalo para que possa enfim comear no meio entre os adversarios acima deles como lei 0 discurso justa e ver dadeiro Em conseqiiencia esse discurso de que estou fa lando esse discurso partidario esse discurso da guerra e da hist6ria talvez va figurar na epoca grega sob a forma do sofista astuto Em todo caso ele sera denunciado como 0 do historiador partidario e ingenuo comO 0 do politico fer fenho como 0 do aristocrata decaido ou como 0 discurso tacanho que contem reivindicaoes nao elaboradas Ora esse discurso mantido fundamental e estrutural mente sob tutela por aquele dos fil6sofos e dos juristas co mecou creio eu sua carreira ou talvez uma nova carreira no Ocidente em condioes muito precisas entre 0 fim do seculo XVI e meados do seculo XVII a prop6sito da dupla contestaao popular e aristocratica do poder regio A par tir dai eu creio que ele proliferou consideravelmente e que sua superficie de alargamento ate 0 final do seculo XIX e no seculo XX foi consideravel e rapida Mas nao se deve ria acreditar que a dialetica pudesse funcionar como a gran de reciclagem enfim filosOfica desse discurso A dialetica bern pode parecer it primeira vista ser 0 discurso do movi mento universal e hist6rico da contradiao e da guerra mas creio que na verdade ela nao e de modo algum sua valida ao filosOfica Ao contrario pareceme que ela atuou mais como sua retomada e sua mutaao na velha forma do dis curso filosOficojuridico No fundo a dialetica codifica a luta a guerra e os enfrentamentos dentro de uma 16gica ou pre tensa l6gica da contradiao ela os retoma no duplo proces so da totalizaao e da atualizaao de uma racionalidade que e a urn s6 tempo final mas fundamental e em todo caso irreversivel Enfim a dialetica assegura a constitui9ao atra yes da hist6ria de urn sujeito universal de urna verdade reconciliada de urn direito em que todas as particularidades teriam enfim seu lugar ordenado A dialetica hegeliana e todas aquelas penso eu que a seguiram devem ser com preendidas 0 que tentarei lhes mostrar como a coloniza ao e a pacificaao autoritaria pela filosofia e pelo direito de urn discurso hist6ricopolitico que foi ao mesmo tempo uma constataao uma proclamaao e uma pritica da guer ra social A dialetica colonizou esse discurso hist6ricopoli tico que fazia as vezes com estardalhao em geral na pe numbra as vezes na erudicao e as vezes no sangue seu ca minho durante seculos na Europa A dialetica e a pacifica ao pela ordem filosOfica e talvez pela ordem politica desse discurso amargo e partidario da guerra fundamental Eis pois uma especie de quadro de referencia geral nO qual eu gostaria de situarme este ano para refazer urn pouco a hist6ria desse discurso Eu gostaria agora de Ihes dizer como realizar esse estu do e de que ponto partir Primeiramente descartar certo nilmero de falsas paternidades que se tern 0 habito de atri buir a esse discurso hist6ricopolitico Pois assim que se pen sa na relaao poderguerra poderrelaoes de for imedia tamente dois nomes vern a mente pensase em Maquiavel 68 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 69 13 Sabre Maquiavel ver no Curso no College de France anas 1977 1978 Securite Territoire et Population 0 de I de fevereiro de 1978 La gouvemementalite cf tambem Omnes et singuatim Toward a Criti cism of Political Reason 1981 e The Political Technology of Individuals 1982 in Dits et Jails III n 239 IV n 291 e 364 pensase em Hobbes Eu gostaria de lhes mostrar que nao e nada disso e que de fato esse discurso historicopolitico nao e e nao pode ser 0 da politica do Principe ou aquele claro da soberania absoluta que de fato e urn discurso que so pode considerar 0 Principe urna ilusao urn instrumento ou melhor urn inimigo Eurn discurso que no fundo corta a cabea do rei que dispensa em todo caso 0 soberano e 0 denuncia Em seguida depois de ter descartado essas falsas patemidades eu gostaria de lhes mostrar qual foi 0 ponto de emergencia desse discurso E pareceme que temos de tentar sitmiIo no seculo XVII com suas caracteristicas im portantes Primeiro duplo nascimento desse discurso de urna parte vamos veIo emergir por volta dos anos 1630 aproximadarnente nas reivindicaoes populares ou peque noburguesas na Inglaterra prerevolucionaria e revolucio miria sera 0 discurso dos puritanos sera 0 discurso dos Levellers Niveladores E depois voces vao reencontraIo cinqiienta anos depois do lado inverso mas sempre como discurso de luta contra 0 rei do lado do amargor aristocra tico na Frana no fim do reinado de Luis XIV E depois e este e urn ponto importante ja naquela epoca ou seja ja no seculo XVII vese que a ideia segundo a qual a guerra constitui a trama ininterrupta da historia aparece sob uma forma precisa a guerra que se desenrola assim sob a ordem e sob a paz a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de urn modo binario e no fundo a guerra das raas Muito cedo encontrarnos os elementos fundamentais que consti tuem a possibilidade da guerra e que Ihe garantem a manu 14 Sabre Augustin Thierry cf supra nota 8 No tocante a Amedee Thierry cf Histoire des Gaulois depuis les temps les plus recules jusqu d lentiere soumission de la Gaule d la domination romaine Paris 1828 His toire de la Gaule sous ladministration romaine Paris 18401847 71 AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 tenao 0 prosseguimento e 0 desenvo1vimento diferenas etnicas diferenas das linguas diferenas de fora de vigor de energia e de violencia diferenas de selvageria e de barMries conquista e servimo de urna raa por urna outra 0 corpo social e no fundo articulado a partir de duas raas Ea ideia segundo a qual a sociedade e de urn extre mo a outro percorrida por esse enfrentarnento das raas que encontramos formulado ja no seculo XVII e como que matriz de todas as formas sob as quais em seguida investi garemos a fisionomia e os mecanismos da guerra social A partir dessa teoria das raas ou melhor dessa teoria da guerra das raas eu gostaria de seguir a sua historia sob a Revoluao Francesa e sobretudo no inicio do seculo XIX com Augustin e Amedee Thierry ever como ela passou por duas transcrioes De urn lado uma transcriao franca mente biologica aquela que se opera aMs bern antes de Darwin e que copia seu discurso com todos os seus ele mentos seus conceitos seu vocabulario de uma amitomo fisiologia materialista Ela vai se apoiar igualmente numa filologia e sera 0 nascimento da teoria das raas no sentido historicobiologico do termo E urna teoria mais uma vez muito arnbigua urn pouco como no seculo XVII que vai se articular de urn lado com base nos movimentos das nacio nalidades na Europa e na luta das nacionalidades contra os grandes aparelhos de Estado essencialmente austriaco e russo e voces a verao tarnbem articularse a partir da poli tica da colonizaao europeia Ai esta a primeira transcriao biologica dessa teoria da luta permanente e da luta das raas E depois voces encontrarao uma segunda transcriao EM DEFESA DA SOCIEDADE 70 aquela que vai se operar a partir do grande tema e da teoria da guerra social que se desenvolve ja nos primeiros arros do seculo XIX e que vai tender a apagar todos os vestigios do conllito de raa para definirse como uma luta de classe Portanto temos ai uma especie de entroncamento essenclal que tentarei tornar a situar e que vai corresponder a uma retomada da analise dessas lutas na forma da dialetica e a uma retomada do tema dos enfrentamentos das raas na teo ria do evolucionismo e da luta pela vida A partir dai se guindo de uma forma privilegiada esse segundo ramo a transcriao na biologia eu tentarei mostrar todo 0 desen volvimento de um racismo biologicosocial com a ideia que e absolutamente nova e que vai fazer 0 discurso funcio nar de modo muito diferente de que a outra raa no fundo nao e aquela que veio de outro lugar nao e aquela que par uns tempos triunfou e dominou mas e aquela que perma nente e continuamente se infiltra no corpo social ou me lhor se recria permanentemente no tecido social e a partir dele Em outras palavras 0 que vemos como polandade como fratura binaria na sociedade nao e 0 enfrentamento de duas raas exteriores uma a outra e 0 desdobramento de uma Unica e mesma raca em urna superraca e uma subraca Ou ainda 0 reaparecimento a partir de uma raa de seu proprio passado Em resumo 0 avesso e a parte de baixo da raa que aparece nela Desse modo vamos ver essa conseqiiencia fundamen tal esse discurso da luta das raas que no momento em que apareceu e comeou a funcionar no seculo XVII era essencialmente um instrumento de luta para campos des centralizados vai ser recentralizado e tomarse justamen te 0 discurso do poder de um poder centrado centralizado e centralizador 0 discurso de um combate que deve ser tra vado nao entre duas raas mas a partir de uma raa conslde rada como sendo a verdadeira e a unica aquela que detem o poder e aquela que e titular da norma contra aqueles que estao fora dessa norma contra aqueles que constituem ou tros lantos perigos para 0 patrim6nio biologico E vamos ver nesse momenta todos os discursos biologicoracistas sobre a degenerescencia mas tambem todas as instituioes que no interior do corpo social vao fazer 0 discurso da luta das raas funcionar como principio de eliminaao de segregaao e finalmente de normalizaao da sociedade Em conseqiien cia 0 discurso cuja hist6ria eu gostaria de fazer abandonara a formulaao fundamental do inicio que era esta Temos de nos defender contra os nossos inimigos porque de fato os aparelhos do Estado a lei as estruturas do poder nao s6 nao nos defendem contra os nossos inimigos mas sao tambem instrumentos com os quais os nossos inimigos nos perse guem enos sujeitam Esse discurso agora vai desaparecer Nao sera Temos de nos defender contra a sociedade mas Temos de defender a sociedade contra todos os perigos biol6gicos dessa outra raa dessa subraa dessa contra raa que estamos sem querer constituindo Nesse momento a temMica racista nao vai mais parecer ser 0 instrumento de luta de um grupo social contra um outro mas vai servir il estrategia global dos conservadorismos sociais Aparece nesse momenta 0 que e um paradoxo em comparaao aos proprios fins e il forma primeira desse discurso de que eu Ihes falava um racismo de Estado um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma sobre os seus pr6 prios elementos sobre os seus proprios produtos um racis mo interno 0 da purificaao permanente que sera uma das dimensoes fundamentais da normalizaao social Este ano eu gostaria entao de percorrer um pouquinho a hist6ria do discurso da luta e da guerra das ras a partir do seculo XVII levandoa ate 0 aparecimento do racismo de Estado no inicio do seculo XX 73 AULA DE 21 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 72 AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 o discurso hisDrieo e seus partidtirios A contrahis loria da luta das ra9Qs Historia romana e historia biblica 0 discurso revolucionario Nascimento e transfonnafoes do racismo A pureza da rarQ e 0 racismo de Estado trans formariio nazista e transformariio sovietica Voces podem ter achado que eu empreendi da ultima vez fazerlhes a historia e 0 elogio do discurso racista Voces nao estavam totalmente errados todavia com este senao nao foi em absoluto do discurso racista que eu quis fazer 0 elo gio e a historia mas antes do discurso da guerra ou da luta das racas Eu creio que convem reservar a expressao racis mo ou discurso racista a algo que no fundo nao passou de urn episOdio particular e localizado desse grande dis curso da guerra ou da luta das raas Para dizer a verdade 0 discurso racista foi apenas urn episodio uma fase a varia ao a retomada em todo caso no final do soculo XIX do discurso da guerra das raas uma retomada desse velho dis curso ji secular naquele momento em termos sociobiolo gicos com finalidades essencialmente de conservadorismo social e pelo menos em certo ntimero de casos de domina ao colonial Tendo dito isto para situar a urn so tempo 0 vinculo e a diferena entre discurso racista e discurso da guer ra das raas era mesmo 0 elogio desse discurso da guerra das raas que eu queria fazer 0 elogio no sentido de que eu queria terIhes mostrado como durante urn tempo pela 1 A palavra anais designava para as escritores romanos antes de Tito Livia as antigas hist6rias que eles consultavam Os anais sao a forma primiti va da hist6ria oeles as acontecimentos sao relatados ana a ana Os Annales maximi redigidos pelo Grande Pontifice foram editados em 80 livros no in cia do seculo II antes de nossa era menos isto e ate 0 fim do seculo XIX ate 0 momenta em que se converte num discurso racista esse discurso da guerra das raas funcionou como uma contrahist6ria E e dessa funao de contrahist6ria que eu gostaria de lhes falar urn pouquinho hoje Pareceme que se pode dizer de uma maneira talvez urn tanto apressada ou esquemitica mas em suma bastante justa quanta ao essencial que 0 discurso hist6rico 0 dis curso dos historiadores essa pritica que consiste em narrar a hist6ria permaneceu por muito tempo 0 que ela era decerto na Antiguidade e 0 que era ainda na Idade Media ela per maneceu por muito tempo aparentada com os rituais de po der Pareceme que se pode compreender 0 discurso do his toriador como urna especie de cerimonia falada ou escrita que deve produzir na realidade urna justificaao do poder e ao mesmo tempo urn fortalecimento desse poder Parece me tamhem que a funao tradicional da hist6ria desde os primeiros analistas romanos l ate tarde na Idade Media e talvez no seculo XVII e mais tardiamente ainda foi a de ex pressar 0 direito do poder e de intensificar seu brilho Duplo papel de uma parte ao narrar a hist6ria a hist6ria dos reis dos poderosos dos soberanos e de suas vit6rias ou even tualmente de suas derrotas provis6rias tratase de vincular juridicamente os homens ao poder mediante a continuidade da lei que se faz aparecer no interior desse poder e em seu funcionamento de vincular pois juridicamente os homens il continuidade do poder e mediante a continuidade do po der De outra parte tratase tamhem de fascimilos pela in tensidade apenas suportivel da gl6ria de seus exemplos e de suas faanhas 0 jugo da lei e 0 brilho da gl6ria essas me parecem ser as duas faces pelas quais 0 discurso hist6rico visa a certo efeito de fortalecimento do poder A hist6ria como os rituais como as sagra90es como os funerais como as cerimonias como os relatos legendirios e urn operador urn intensificador de poder Pareceme que podemos reencontrar essa dupla funao do discurso hist6rico em seus tres eixos tradicionais na Idade Media 0 eixo geneal6gico narrava a antiguidade dos reinos ressuscitava os grandes ancestrais reconhecia as faanhas dos her6is fundadores dos imperios ou das dinastias Nesse tipo de tarefa genea16gica tratase de fazer com que a gran deza dos acontecimentos ou dos homens passados possa cau cionar 0 valor do presente transformar sua pequenez e sua cotidianidade em algo igualmente her6ico e justo Esse eixo geneal6gico da hist6ria que encontramos essencialmente nas formas de narrativa hist6rica sobre os antigos reinos sobre os grandes ancestrais deve expressar a ancianidade do direito deve mostrar 0 carater ininterrupto do direito do soberano e por conseguinte mostrar com isso a fona inex tirpivel que ele ainda possui no presente e enfim a genea logia deve elevar 0 valor do nome dos reis e dos principes com todos os renomes que os precederam Os grandes reis fundamentam pois 0 direito dos soberanos que lhes sucedem e transmitem assim seu brilho para a pequenez de seus su cessores Ai esti 0 que se poderia chamar a funao genea16 gica da narrativa hist6rica Hi tamhem a funao de memorizaao que vamos en contrar pelo contririo nao nas narrativas de antiguidade e na ressurreilao dos antigos reis e her6is mas pelo contnirio nos anais e nas cronicas realizadas dia a dia de ano em ano no curso mesmo da hist6ria Esse registro permanente da hist6ria praticado pelos analistas serve tamhem ele para 77 AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 76 78 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 79 fortalecer 0 poder Ele e tambem uma especie de ritual do poder mostra que 0 que os soberanos e os reis fazem jamais e vao jamais inutil ou pequeno jamais abaixo da dignidade da narrativa Tudo quanta eles fazem pode e merece ser dito e e preciso guardar perpetuamente sua lembran9a 0 que significa que do menor feito e gesto de urn rei se pode e se deve fazer uma a9ao brilhante e uma fa9anha e ao mesmo tempo inscrevese carla uma de suas decisoes como uma especie de lei para seus suditos e de obriga9ao para seus sucessores A hist6ria portanto toma memonivel e ao tor nar memoravel insere os gestos num discurso que coage e imobiliza os menores feitos em monumentos que vao petri ficalos e deixaIos de certo modo eternamente presentes Enfim a terceira fun9ao dessa historia como intensifica9ao do poder e por em circula9ao exemplos 0 exemplo e a lei viva ou ressuscitada ele pennite julgar 0 presente subme teIo a uma lei mais forte do que ele 0 exemplo e de certo modo a gloria feita lei e a lei funcionando no brilho de urn nome Eno ajustamento da lei e do brilho a urn nome que 0 exemplo tern for9a de e funciona como urna especie de ponto de elemento pelos quais 0 poder vai ficar fortalecido Vincular e deslumbrar subjugar valorizando obriga 90es e intensificando 0 brilho da sua for9a pareceme es quematicamente que sao essas as duas fun90es que encon tramos sob as diferentes formas da historia tal como era praticada tanto na civiliza900 romana quanta nas socieda des da Idade Media Ora essas duas fun90es correspondem com muita exatidao aos dois aspectos do poder tal como era representado nas religi5es nos rituais nos mitos nas lendas romanas e de urn modo geral indoeuropeias No sistema indoeuropeu de representa9ao do poder hi sempre esses 2 Michel Foucault aqui se refere naturalmente aos trabalhos de G Dumezil em especial a MitraVaruna Essai sur deux representations indo dois aspectos essas dnas faces que estao perpetuamente con jugadas De urn lado 0 aspecto juridico 0 poder vincula pela obriga9ao pelo juramento pelo compromisso pela lei e do outro 0 poder tern urna fun9ao urn papel urna eficacia magicos 0 poder deslurnbra 0 poder petrifica Jupiter deus altamente representativo do poder deus por excelencia da primeira fun9ao e da primeira ordem na triparti9ao indo europeia e a urn s6 tempo 0 deus com vinculos e 0 deus com raios Pois bern eu creio que a historia tal como fun ciona ainda na Idade Media com suas pesquisas de antigui dade suas cronicas do diaadia suas coletaneas de exem plos postas em circula9ao e ainda e sempre essa representa 900 do poder de que nao e simplesmente a imagem mas tambem 0 processo de revigoramento A historia e 0 discur so do poder 0 discurso das obriga90es pelas quais 0 poder submete e tambem 0 discurso do brilho pelo qual 0 poder fascina aterroriza imobiliza Em resumo vinculando e imobilizando 0 poder e fundador e fiador da ordem e a historia e precisamente 0 discurso pelo qual essas duas fun 90eS que asseguram a ordem vao ser intensificadas e torna das mais eficazes De urn modo geral podese portanto dizer que a historia ate tarde ainda em nossa sociedade foi uma historia da soberania urna historia que se desenvolve na dimensao e na fun9ao da soberania Euma historia jupi teriana Nesse sentido a hist6ria tal como a praticavam na Idade Media estava ainda em continuidade direta com a historia dos romanos a historia tal como a narravam os remanos a de Tito Livio3 ou ados primeiros analistas E europeennes de fa souverainete Paris Gallimard 1940 Mythe et epopee Paris Gallimard I L ideologie des trois jonctions dans les epopees des peu pies indoeuropeens 1968 II Types epiques indoeuropeens un heros un sorcier un roi 1971 III Histoires romaines 1973 3 Tito Livio Ab Urbe condita libri dos quais nos restam os 1ivros IX XXIXLV e a mctade da quinta decada 80 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 81 isto nao s6 na pr6pria forma da narrativa nao s6 pelo fato de que os historiadores da Idade Media jamais viram dife renas descontinuidades rupturas entre a hist6ria ramana e a deles aquela que narravam A continuidade entre a hist6 ria tal como a praticavam na Idade Media e a hist6ria tal como a praticavam na sociedade romana era mais profunda ainda na medida em que a narrativa hist6rica dos rornanos comO aquela da Idade Media tinha certa fun9ao politica que era precisamente a de ser um ritual de fortalecimento da soberania Se bem que esb09ado grosseiramente e este creio eu o pano de fundo a partir do qual se pode tentar situar e ca racterizar no que ela pode ter de especifico essa nova for ma de discurso que aparece justamente no extremo 1m da Idade Media para dizer a verdade mesmo no seculo XVI e no inicio do seculo XVII a discurso hist6rico nao vai ser mais 0 discurso da soberania nem sequer da ra9a mas sen o discurso das ra9as do enfrentamento das ra9as da luta das ra9as atraves das na90es e das leis Nesta medida eu creio que e uma hist6ria absolutamente antitetica da hist6ria da soberania tal como era constituida ate entao Ea primeira hist6ria nao romana antiromana que 0 acidente tenha co nhecido Por que antiromana e por que contrahist6ria em rela9ao a esse ritual de soberania de que eu lhes falava agora hit pouco Por certo numero de razoes que aparecem acho eu facilmente Primeiro porque nessa hist6ria das ra9as e do enfrentamento permanente das ra9as sob as leis e atraves delas aparece ou melhor desaparece a identifica 9ao implicita entre 0 povo e seu monarca entre a na9ao e seu soberano que a hist6ria da soberania das soberanias fazia aparecer Doravante nesse novo tipo de discurso e de priltica hist6rica a soberania jil nao vai unir 0 conjunto em uma unidade que seril precisamente a unidade da cidade da na9ao do Estado A soberania tem uma fun9ao particular ela nao une ela subjuga E 0 postulado de que a hist6ria dos grandes contem a fortiori a hist6ria dos pequenos 0 postu lado de que a hist6ria dos fortes traz consigo a hist6ria dos fracos vai ser substituido por um principio de heterogenei dade a hist6ria de uns nao e a hist6ria dos outros Vai se des cobrir ou em todo caso afirmar que a hist6ria dos saxoes vencidos depois da batalha de Hastings nao e ados norman dos que foram vencedores nessa mesma batalha Vai se aprender que 0 que e vit6ria para uns e derrota para outros aque foi a vit6ria dos francos e de Cl6vis cumpre ler tam bem inversamente como a derrota 0 inicio da subjuga9ao e da escravidao dos galoromanos a que e direito lei ou obriga9ao se olhamos a coisa do lado do poder 0 novo dis curso mostrani como abuso como violencia como extor sao se nos colocamos do outro lado Afinal de contas a posse da terra pelos grandes senhores feudais e 0 conjunto dos tributos que eles reclamam vao ser vistos e vao ser denunciados como atos de violencia confiscos pilhagens tributos de guerra coletados violentamente de popula90es submissas Em conseqiiencia a grande forma da obriga9ao geral cuja for9a a hist6ria intensificava ao cantar a gl6ria do soberano se desfaz e vemos ao contririo a lei aparecer como uma realidade de dupla face triunfo de uns submis sao de outros Nisso a hist6ria que aparece enta a hist6ria da luta das ra9as e uma contrahist6ria Mas eu creio que ela 0 e igual mente de uma outra forma mais importante ainda Nao somente de fato essa contrahist6ria dissocia a unidade da lei soberana que obriga mas ainda por cima quebra a con tinuidade da gl6ria Ela deixa patente que a luz 0 famoso deslumbramento do poder nao e algo que petrifica solidi fica imobiliza 0 corpo social por inteiro e por conseguin te 0 mantem na ordem mas e de fato uma luz que divide que adara de um lado mas deixa na sombra ou lan9a para 82 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 83 r a noite urna outra parte do corpo social E precisamente a historia a contrahistoria que nasce com a narrativa da luta das raas vai falar do lado da sombra a partir dessa som bra Ela vai ser 0 discurso daqueles que nao tern a gloria ou daqueles que a perderam e se encontram agora por uns tempos talvez mas por muito tempo decerto na obscurida de e no silencio Isso faz com que esse discurso diferente mente do canto ininterrupto pelo qual 0 poder se perpetuava se fortalecia ao mostrar sua antiguidade e sua genealogia va ser uma tomada de palavra irruptiva urn apelo Nao te mos atras de nos continuidade nao temos atds de nos a grande e gloriosa genealogia em que a lei e 0 poder se mos tram em sua fora e em seu brilho Saimos da sombra nao tinhamos direitos e nao tinhamos gloria e e precisamente por isso que tomamos a palavra e comeamos a contar nos sa historia Essa tomada de palavra aparenta esse tipo de discurso nao tanto com a pesquisa da grande jurisprudencia ininterrupta de urn poder fundado de hi muito mas com urna especie de ruptura profetica 0 que faz igualmente com que esse novo discurso va se aproximar de certo nfunero de fomlas epicas ou miticas ou religiosas que em vez de nar rar a gloria sem macula e sem interrup5es do soberano se empenham ao contrario em contar em formular a infelici dade dos ancestrais os exilios e as servid5es Ele vai enu merar menos as vit6rias do que as derrotas sob as quais se curvaram durante todo 0 tempo em que ainda e necessario esperar a terra prometida e 0 curnprimento das velhas promes sas que restabeleceriio justamente tanto os antigos direitos quando a gloria perdida Com esse novo discurso da guerra das raas vemos delinearse algo que no fundo se aproxima bern mais da historia miticoreligiosa dos judeus do que da historia poli ticoIegendaria dos romanos Estamos muito mais do lado da Biblia do que do lado de Tito Livio muito mais numa forma hebraicobiblica do que nurna forma do analista que nana no diaadia a historia e a gloria ininterrupta do poder Eu creio que de urn modo geral jamais se deve esquecer de que a Biblia foi a partir da segunda metade da Idade Media pelo menos a grande forma na qual se articularam as obje 5es religiosas morais politicas ao poder dos reis e ao des potismo da Igreja Essa forma assim como alias muito amiUde a propria referencia aos textos biblicos funcionou na maior parte dos casos como objeao critica discurso de oposiao Jerusalem na Idade Media sempre foi objetada a todas as Babilonias ressuscitadas sempre foi objetada it Roma etema it Roma dos Cesares aquela que derramava 0 sangue dos justos nos circos Jerusalem e a objeao religiosa e poli tica it Idade Media A Biblia foi a arma da miseria e da insur reiao foi a palavra que subleva contra a lei e contra a glo ria contra a lei injusta dos reis e contra a bela gloria da Igreja Nessa medida eu creio que nao e pois surpreen dente ver surgir no final da Idade Media nO seculo XVI na epoca da Reforma e tambem na epoca da Revoluao Inglesa uma forma de historia que e estritamente oposta it historia da soberania e dos reis it historia romana ever essa nova historia articulada a partir da grande reforma biblica da pro fecia e da promessa o discurso historico que aparece nesse momento pode pois ser considerado urna contrahistoria oposta it historia romana por esta razao nesse novo discurso historico a funao da memoria vai mudar totalmente de sentido Na hist6ria de tipo romano a memoria tinha essencialmente de garantir 0 naoesquecimento ou seja a manutenao da lei e 0 aumento perpetuo do brilho do poder it medida que ele dura Pelo contrario a nova historia que aparece vai ter de desenterrar alguma coisa que foi escondida e que foi escondida nao somente porque menosprezada mas tambem porque ciosa deliberada maldosamente deturpada e dis l 84 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 85 far9ada No fundo 0 que a nova historia quer mostrar e que o poder os poderosos os reis as leis esconderam que nas ceram no acaso e na injusti9a das batalhas Afinal de con tas Guilherme 0 Conquistador DaD queria com razao ser chamado 0 Conquistador pois queria disfar9ar que os direi tos que ele exercia ou as violencias que ele exercia sobre a Inglaterra eram direitos conquistados Ele queria mostrarse como 0 sucessor dinastico legitimo disfar9ar pois 0 nome de conquistador assim como afinal de contas Clovis pas seava com urn pergaminho para fazer que acreditassem que ele devia sua realeza ao reconhecimento de urn Cesar roma no e incerto Eles tentavam esses reis injustos e parciais valorizarse para todos e em nome de todos eles aceitam que falem de suas vitorias mas nao querem que saibam que suas vit6rias eram a derrota dos Qutros era a nossa derro ta Portanto 0 papel da historia sera 0 de mostrar que as leis enganam que os reis se mascaram que 0 poder ilude e que os historiadores mentem Nao sera portanto urna his toria da continuidade mas urna historia da decifra9ao da de tec9ao do segredo da devolu9ao da astucia da reapropria 9ao de urn saber afastado ou enterrado Seri a decifra9ao de uma verdade selada Enfim eu creio que essa historia da luta das ra9as que aparece nos seculos XVIXVII e urna contrahist6ria noutro sentido ao mesma tempo mais simples e mais elementar po rem mais forte tamhem Eque longe de ser urn ritual ine rente ao exercicio a exibi9ao ao fortalecimento do poder ela e nao somente a critica mas ataque a ele e a reivindica 9ao dele 0 poder einjusto nao porque decaiu de seus mais elevados exemplos mas pura e simplesmente porque nao nos pertence Em certo sentido podese dizer que essa nova hist6ria como a antiga busca expressar 0 direito atraves das peripecias do tempo Mas nao se trata de estabelecer a gran de a longa jurisprudencia de urn poder que sempre conser you seus direitos nem de mostrar que 0 poder esta onde ele esta e que sempre esteve onde esta ainda Tratase de reivin dicar direitos ignorados ou seja declarar guerra declarando direitos 0 discurso historico de tipo romano pacifica a so ciedade justifica 0 poder fundamenta a ordem ou a ordem das tres ordens que constitui 0 corpo social Ao contririo o discurso de que eu Ihes estou falando aquele que se mani festa no final do seculo XVI e que se pode dizer urn discur so historico de tipo biblico dilacera a sociedade e so fala de direito justo para declarar guerra as leis Eu gostaria entao de resumir tudo isso fazendo a se guinte especie de proposi9aO Nao se poderia dizer que ate o final da Idade Media e talvez mais alem ainda houve uma historia urn discurso e uma pritica historicos que era urn dos grandes rituais discursivos da soberania de uma soberania que se mostrava e se constituia atraves dele como uma soberania unitaria legitima ininterrupta e brilhante A essa historia come90u a se opor uma outra urna contrahis loria que e aquela da servidao sombria da degrada9ao aquela da profecia e da promessa aquela tamhem do saber secreto que deve ser reencontrado e decifrado aquela en fim da declara9ao conjunta e simultanea dos direitos e da guerra A historia de tipo romano era no fundo uma hist6ria profundamente inserida no sistema indoeuropeu de repre senta9ao e de funcionamento do poder ela era vinculada com toda a certeza a organiza9ao das Ires ordens no topo das quais se encontrava a ordem da soberania e por conse guinte ela ficou for90samente vinculada a certo dominio de objetos e a cerlo tipo de personagens a lenda dos herois e dos reis porque era 0 discurso do duplo aspecto magi co e juridico da soberania Essa historia de modelo roma no e com fun90es indoeuropeias se viu constrangida por uma historia de tipo biblico quase hebraico que foi desde o fim da Idade Media 0 discurso da revolta e da profecia i 4 Quid est enim aliud omnis historia quam ramana Jaus Petrarca lnvectiva contra eum qui maledixit Italiae 1373 Assinalamos que essa Frase de Petrarca e citada pOT E Panofsky in Renaissance and Renascenses in Western An Estocolmo Almqvist Wiksell 1960 trad fr La Renaissance et ses avantcourriers dans art dOccident Paris Flammarion 1976 p 26 do saber e do apelo il subversao violenta da ordem das coi sas Esse novo discurso evinculado nao mais a uma orga nizacao temilria como 0 discurso hist6rico das sociedades indoeuropeias mas a uma percepcao e a uma reparticao bi nilria da sociedade e dos homens de urn lado uns do outro os outros os injustos e os justos os senhores e aqueles que Ihes sao submissos os ricos e os pobres os poderosos e aqueles que s6 tern seus bracos os invasores das terras e aque les que tremem diante deles os despotas e 0 povo ameaca dor os homens da lei presente e aqueles da piltria futura Foi em meados da ldade Media que Petrarca formulou esta questao que acho bastante surpreendente e em todo caso fundamental Ele dizia 0 seguinte Que hil entao na hist6ria que nao seja a louvacao de Roma Eu creio que com essa unica pergunta ele caracterizava com uma palavra a hist6ria tal como efetivamente ela sempre fora praticada nao somente na sociedade ramana mas nessa sociedade me dieval il qual ele pr6prio Petrarca pertencia Alguns seculos depois de Petrarca aparecia nascia no Ocidente uma hist6 ria que precisamente compreendia coisa muito diferente que a louvacao de Roma uma hist6ria em que se tratava muito pelo contnirio de desmascarar Roma como uma nova Babi16nia e em que se tratava de reivindicar contra Roma os direitos perdidos de Jerusalem Nasciarn uma forma to talmente diferente de hist6ria urna funcao totalmente dife rente do discurso hist6rico Poderiamos dizer que essa his t6ria e 0 comeco do fun da historicidade indoeuropeia quero dizer de urn certo modo indoeuropeu de contar e de perce ber a hist6ria No limite poderiarnos dizer que quando nas ce 0 grande discurso sobre a hist6ria da luta das racas acaba a Antiguidade e com Antiguidade quero dizer essa cons ciencia de continuidade que se tinha ainda tarde na Idade Media em relacao it Antiguidade A ldade Media ignorava claro que era a ldade Media Mas ignorava lambem se assim podemos dizer que nao era que nao era mais a Antiguida de Roma ainda estava presente funcionava como uma es pecie de presenca hist6rica permanente e atual no interior da Idade Media Roma era percebida como dividida em mil canais que atravessavarn a Europa mas supunhase que todos esses canais remontavam aRoma Nao convem esquecer que todas as hist6rias politicas nacionais ou prenacionais que se escreviam naquele momento sempre se conferiam como ponto inicial urn certo mito troiano Todas as nac5es da Europa reivindicavarn ter nascido da queda de Tr6ia Ter nascido da queda de Tr6ia queria dizer que todas as nac5es todos os Estados todas as monarquias da Europa reivindi cavam ser irmas de Roma Assim e que a monarquia france sa derivava pretensamente de Franco a monarquia inglesa de urn certo Bruto Cada uma das grandes dinastias se con feria nos fllhos de Priamo ancestrais que asseguravam urn laco de parentesco geneal6gico com Roma antiga E ainda no seculo Xv urn sultilo de Constantinopla escrevia ao doge de Veneza Mas por que fariamos a guerra se somos irmaos Os turcos todos sabem nascerarn sairam do incendio de Tr6ia e tambem sao descendentes de Priamo Os turcos dizia ele todos sabem que sao descendentes de Turco filho de Priamo como Eneias e como Franco Roma estil pois presente no interior mesmo dessa consciencia hist6rica da Idade Media e nao hil ruptura entre Roma e esses inurne raveis reinos que vemos aparecer a partir dos seculos VVI 87 AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 86 Ora 0 que 0 discurso da luta das rayas vai fazer apare cer e precisamente essa especie de ruptura que vai mandar para urn outro mundo algo que vai aparecer desde entao como uma antiguidade aparecimento de urna consciencia de rup tura que nao havia sido reconhecida ate entao Surgem na consciencia da Europa acontecimentos que ate entao eram apenas vagas peripecias que nao tinham no fundo arranha do a grande unidade a grande legitimidade a grande forya fulgurante de Roma Aparecem acontecimentos que vao en ta constituir os verdadeiros primordios da Europa pri mordlOs de sangue primordios de conquista sao as inva soes dos francos as invasoes dos normandos Aparece algo que Val preclsamente individualizarse como a Idade Me dia e sera preciso esperar 0 inicio do seculo XVIII para que na consciencia historica seja isolado 0 fenomeno a que se chamara feudalismo Aparecem novas personagens os francos os gauleses os celtas aparecem tambem outras per sonagens mais genericas que Sao a gente do Norte e a gente do SuI aparecem os dominadores e as submissos os vence dores e os vencidos Sao estes agora que entram no teatro do discurso historico e que dai em diante constituem seu prin cIpal referenclal A Europa se povoa de recordayoes e de ancestrais cuja genealogia ela ate entao nunca fizera Ela se fissura sobretudo numa divisao binaria que ate entao igno rava Uma consciencia historica totalmente diferente se cons titui e se formula ao mesmo tempo atraves desse discurso sobre a guerra das rayas e desse apelo a sua ressurreiyao Nessa medida podese identificar 0 aparecimento dos dis cursos sobre a guerra das rayas com uma organizayao do tempo totalmente diferente na consciencia na pratica e na propria politica da Europa A partir dai eu gostaria de fazer certo numero de observayoes Primeiramente eu gostaria de insistir no fato de que esse dlscurso da luta das rayas seria erroneo considerar que 5 De Mignet a Michelet passando pelos autores que M Foucault exa minara nos cursos seguintes pertence de pleno direito e totalmente aos oprimidos que ele fai ao menos em sua origem essencialmente 0 discurso dos subjugados 0 discurso do povo uma historia reivindi cada e falada pelo povo De fato curnpre ver imediatamen te que e urn discurso que foi dotado de urn grande poder de circulayao de urna grande aptidao para a metamorfose de uma especie de polivalencia estrategica E verdade que 0 vemos primeiro talvez esboyarse em temas escatologicos ou em mitos que acompanharam movimentos populares na segunda metade da Idade Media Mas e preciso assinalar que 0 reencontramos muito depressa logo em seguida na forma da erudiyao historica do romance popular ou das es peculayoes cosmobiologicas Ele foi por muito tempo urn discurso das oposiyoes dos diferentes grupos de oposiyao foi circulando muito depressa de urn a outro urn instru mento de cntica e de luta contra urna forma de poder divi dido todavia entre os diferentes inimigos ou as diferentes formas de oposiyao a esse poder VemoIo de fato servir sob suas diferentes formas ao pensamento radical ingles no momenta da revoluyao do seculo XVII mas alguns anos depois apenas transformado vemoIo servir areayao aris tocratica francesa contra 0 poder de Luis XlV No inicio do seculo XIX ele foi vinculado com toda a certeza ao projeto posrevolucionario de escrever por fim uma historia cujo verdadeiro sujeito seria 0 povol Mas alguns anos depois vo ces 0 veem servir adesqualificayao das subrayas coloniza das Portanto mobilidade polivalencia desse discurso sua origem no final da Idade Media nao 0 marcou suficiente mente para que so funcione politicamente nurn sentido Segunda observayao nesse discurso em que se trata da guerra das rayas e em que 0 termo raya aparece bastante 89 AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 88 Manuscrito no Jugar de oficial e rustico cientifico e ingenuo cedo fica bern claro que essa palavra mesma ra9a nao e pregada a urn sentido biol6gico estave No entanto essa palavra niio e absolutarnente variave Ela designa final mente urna certa clivagem hist6ricopolitica arnpla sem du vida mas relativarnente fixa Diriio e nesse discurso dizem que ha duas ra9as quando se faz a hist6ria de dois grupos que niio tern a mesma origem local dois grupos que niio tern pelo menos na origem a mesma lingua e em geral a mesma reli giiio dois grupos que s6 formararn urna unidade e urn todo politico acusta de guerras de invasoes de conquistas de batalhas de vit6rias e de derrotas em surna de vioJencias urn vinculo que s6 se estabeleceu atraves da violencia da guerra Enfim diriio que ha duas ra9as quando ha dois gru pos que apesar de sua coabita9iio niio se misturararn por causa de diferen9as de dissimetrias de barragens devidas aos privilegios aos costumes e aos direitos adistribui9iio das fortunas e ao modo de exercicio do poder Terceira observa9iio podemos pois reconhecer duas grandes morfologias dois grandes focos principais duas fun 90eS politicas do discurso hist6rico De urn lado a hist6ria romana da soberania do outro a hist6ria biblica da servidiio e dos exilios Eu niio creio que a diferen9a entre essas duas hist6rias seja exatarnente a diferen9a entre urn discurso ofi cial e digamos urn discurso rUstico urn discurso tao con dicionado pelos imperativos politicos que niio era capaz de produzir urn saber De fato essa hist6ria que se conferia como tarefa a decifra9iio dos segredos e a desmistifica9iio do poder produziu ao menos tanto saber quanto aquela que tentava reconstituir a grande jurisprudencia ininterrupta do poder Eu acho mesmo que se poderia dizer que os grandes desbloqueios os momentos fecundos na constitui9iio do saber hist6rico na Europa podemos situalos aproximadamente no momento de urna especie de interferencia de choque entre a hist6ria da soberania e a hist6ria da guerra das ra9as por exemplo no inicio do seculo XVII na Inglaterra quando o discurso que narrava as invasoes e a grande injusti9a dos normandos contra os saxoes veio interferir em todo urn tra balho hist6rico que os juristas monarquistas estavam em preendendo para narrar a hist6ria ininterrupta do poder dos reis da Inglaterra Foi 0 cruzamento dessas duas prliticas his t6ricas que trouxe a explosiio de todo urn campo de saber Da mesma forma quando no fim do seculo XVII e no ini cio do seculo XVIII a nobreza francesa come90u a fazer sua genealogia niio na forma da continuidade mas ao con trario na forma de privilegios que ela teria tido outrora e que depois teria perdido e que se trataria de recuperar todas as pesquisas hist6ricas que se fizerarn a partir desse eixo vieram interferir na historiografia da monarquia francesa tal como Luis XIV a havia constituido a havia feito constituirse dai ainda urna formidavel extensiio do saber hist6rico Assim tambem no inicio do seculo XIX outro momento fecundo quando 0 discurso sobre a hist6ria do povo de sua servidiio e de suas sujei90es a hist6ria dos gauleses e dos francos dos camponeses do terceiro estado veio interferir na hist6 ria juridica dos regimes Portanto interferencias perpetuas e produ9iio de campos e de conteudos de saber a partir desse choque entre a hist6ria da soberania e a hist6ria da luta das ra9as Ultima observa9iio atraves ou apesar de todas essas in terferencias foi evidentemente do lado da hist6ria eu ia dizer biblica em todo caso do lado da hist6riareivindica 9iiO da hist6riainsurrei9iio que se colocou 0 discurso revo lucionlirio 0 da Inglaterra do seculo XVII e 0 da Fran9a e da Europa no seculo XIX Essa ideia da revolu9iio que per 91 AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 90 92 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 93 J passa todo 0 funcionamento politico e toda a hist6ria do Ocidente faz mais de dois seculos e que e alias em sua ori gem e em seu conteudo finalmente muito enigmatica eu creio que nao se pode dissociaIa do aparecimento e da exis tencia dessa pratica de uma contrahist6ria Afinal de con tas que significariam que poderiam ser a ideia e 0 projeto revoluciommos sem primeiro essa decifrayao das dissime trias dos desequilibrios das injustias e das violencias que funcionam apesar da ordem das leis sob a ordem das leis atraves da ordem das leis e graas a ela Que seriam a ideia a pn ica 0 projeto revoluciomirios sem a vontade de tornar Dutra vez visivel uma guerra real que se desenvolveu e con tinua a se desenvolver mas que precisamente a ordem si lenciosa do poder tern por funao e por interesse sufocar e mascarar Que seriam a pratica 0 projeto e 0 discurso revo lucionitrios sem a vontade de reativar essa guerra atraves de urn saber hist6rico preciso e sem a utilizaao desse saber como instrumento nessa guerra e como elemento tatico no interior da guerra real que se trava Que quereriam dizer 0 projeto e 0 discurso revolucionitrios sem 0 objetivo de uma certa inversao final da relaao das foras e 0 deslocamento definitivo no exercicio do poder Decifraao das dissimetrias tomar outra vez visivel a guerra reativaao da guerra nao foi 0 todo do discurso revo lucionitrio que nao parou de agitar a Europa desde pelo menos o fim do seculo XVIII mas foi mesmo assim uma trama importante sua precisamente aquela que havia sido forma da definida instituida e organizada nessa grande contra hist6ria que narrava desde 0 fim da Idade Media a luta das raas Nao convem esquecer afinal de contas que Marx no fim de sua vida em 1882 escrevia a Engels dizendoIhe Mas nossa luta de classes tu sabes muito bern onde a en contramos nos a encontramos nos historiadores franceses quando eles narravam a luta das raas6 A hist6ria do pro jeto e da pnitica revoluciomirios nao e ereio eu dissociavel dessa contrahist6ria que rompeu com a forma indoeuro peia de praticas hist6ricas vinculadas ao exercicio da sobe rania ela nao e dissociavel do aparecimento dessa contra hist6ria que e a hist6ria das raas e da importancia que seus enfrentamentos tiveram no Ocidente Poderiamos dizer com uma palavra que se abandonou que se comeou a abando nar no fim da Idade Media nos seculos XVI e XVII uma sociedade cuja consciencia hist6rica ainda era de tipo roma no au seja ainda centrada em rituais da soberania enos seus mitos e que depois se entrou numa sociedade de tipo digamos modemo urna vez que nao temos outras palavras e a palavra modemo e evidentemente vazia de sentido sociedade cuja consciencia hist6rica nao e centrada na sobe rania e no problema de sua fundaao mas na revoluao em suas promessas e em suas profecias de liberta6es futuras 6 Deveria se tratar na realidade da carta de K Marx a J Weydemeyer de 5 de marlo de 1852 na qual Marx escreve notadamente Enfim se eu Fosse tu Faria os senhores democratas em geral notarem que melhor fariam se eles pr6prios se familiarizassem com a literatura burguesa antes de se perrniti rem ladrar contra 0 que e0 seu contrmo Esses senhores deveriam por exem plo estudar as obras hist6ricas de Thierry Guizot John Wade etc e adquirir algumas luzes sobre a hist6ria das classes no passado Karl Marx Friedrich Engels Gesamtausgabe Dritte Abteilung Briefwechsel Bedim iez t 51987 p 75 trad fr K Marx F Engels Correspondance Paris Editions Sociales 1959 t III p 79 Cf tambem a carta de Marx a Engels de 27 de julho de 1854 na qual Thierry e definido como 0 pai da luta das classes na historiografia francesa Gesamtausgabe t 7 1989 pp 12932 cita9ao p 130 trad fr in Correspondance t IV 1975 pp 14852 No manuscrito M Foucault escreve Em 1882 ainda Marx dizia a Engels a his t6ria do projeto e da pnitica revolucionarios nao e dissociave1 dessa contra hist6ria das raGas e da importancia que ela teve no Ocidente nas lutas politicas citado manifestamente de memoria 94 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 95 Compreendese entao a partir dai creio eu como e por que 0 discurso p6de se tomar em meados do seculo XIX um novo objeto de disputa Com efeito no momento em que esse discurso J estava se deslocando ou se traduzin do ou se convertendo num discurso revoluciomirio em que a noao de luta das raas ia ser substituida por aquela de luta de classes e ainda quando digo meados do seculo XIX e tarde demais era a primeira metade do seculo XIX uma vez que essa transformaao da luta das raas em luta das classes foi operada por ThiersF portanto no momen to em que se faz essa conversao era normal que de outro lado tentassem recodificar em termos nao de luta das clas ses mas de luta das raas das raas no sentido biol6gico e medico do termo essa velha contrahist6ria E e assim que no momento em que se forma uma contrahist6ria de tipo revoluciommo vaise formar uma Dutra contrahist6ria mas que sera contrahist6ria na medida em que esmagara numa perspectiva bioI6gicomedica a dimensao hist6rica que estava presente nesse discurso Eassim que voces veem aparecer algo que vai ser justamente 0 racismo Retomando reciclando a forma 0 alvo e a pr6pria funao do discurso sobre a luta das raas mas deturpandoos esse racismo se caracterizara pelo fato de que 0 tema da guerra hist6rica com suas batalhas suas invas6es suas pilhagens suas vit6rias e suas derrotas sera substituido pelo tema biol6gico p6s evolucionista da luta pela vida Nao mais batalha no sentido guerreiro mas luta no sentido bio16gico diferenciaao das especies seleao do mais forte manutenao das raas mais bern adaptadas etc Assim tambem 0 tema da sociedade bi nana dividida entre dnas raas dois grupos estrangeiros pela 7 Cf sobretudo A Thiers Histoire de la Revolutionfranfaise Paris 1823182710 yol e Histoire du Cansuat et de Empire Paris 18451862 20 val lingua pelo direito etc vai ser substituido pelo de uma so ciedade que sera ao contrano biologicamente monistica Ela sera evidentemente ameaada por certo numero de elemen tos heterogeneos mas que nao the sao essenciais que nao dividem 0 corpo social 0 corpo vivo da sociedade em duas partes mas que sao de certo modo acidentais sera a icteia de estrangeiros que se infiltraram sera 0 tema dos transvia dos que sao os subprodutos dessa sociedade Enfim 0 tema do Estado que era necessariamente injusto na contrahist6 ria das ra9as vai se transfonnar em tema inverso 0 Estado nao e0 instrumento de uma ra9a contra uma autra mas e e deve ser 0 protetor da integridade da superioridade e da pu reza da raa A icteia da pureza da raa com tudo 0 que com porta a urn s6 tempo de monistico de estatal e de biol6gico sera aquela que vai substituir a icteia da luta das raas Quando 0 tema da pureza da raa toma 0 lugar do da luta das raas eu acho que nasce 0 racismo ou que esta se ope rando a conversao da contrahist6ria em urn racismo biol6 gico 0 racismo nao e pois vinculado por acidente ao dis curso e il politica antirevolucionana do Ocidente nao e sim plesmente urn edificio ideol6gico adicional que teria apare cido em dado momento numa especie de grande projeto anti revolucionario No momenta em que 0 discurso da luta das racas se transformou em discurso revoluciomirio 0 racismo foi 0 pensamento 0 projeto 0 profetismo revolucionarios virados noutro sentido a partir da mesma raiz que era 0 dis curso da luta das raas 0 racismo e literalmente 0 discur so revoluciomuio mas pelo avesso Ou ainda poderiamos dizer isto se 0 discurso das raas das raas em luta foi mes rno a arma utilizada contra 0 discurso hist6ricopolitico da soberania romana 0 discurso da raa a raa no singular foi uma maneira de inverter essa arma de utilizar seu gume em proveito da soberania conservada do Estado de uma soberania cujo brilho e cujo vigor nao sao agora assegura dos por rituais magicojuridicos mas por tecnicas medico normalizadoras A custa de urna transferencia que foi a da lei para a norma do juridico para 0 biol6gico it custa de urna passagem que foi a do plural das ra9as para 0 singular da ra9a it custa de uma transforma9ao que fez do projeto de liberta9ao a preocupa9ao da pureza a soberania do Estado as sumiu tornau a levar em considera9ao reutilizou em sua estrategia pr6pria 0 discurso da luta das ra9as A soberania do Estado transformouo assim no imperativo da prote9ao da ra9a como urna alternativa e uma barragem para 0 apelo revolucionario que derivava ele pr6prio desse velho dis curso das lutas das decifra90es das reivindica90es e das pro messas Enfim eu gostaria de acrescentar a isso mais urna coisa Esse racismo assim constituido como a transforma9ao al ternativa ao discurso revolucionario do velho discurso da luta das ra9as passou ainda no seculo xx por duas trans forma90es Aparecimento portanto no fim do seculo XIX daquilo que poderiamos chamar de racismo de Estado racis mo biol6gico e centralizado E esse tema e que foi se nao profundamente modificado pelo menos transformado e uti lizado nas estrategias especificas do seculo XX Podemos assinalar essencialmente dois deles De uma parte a trans forma9ao nazista que retoma 0 tema instituido no final do seculo XIX de urn racismo de Estado encarregado de pro teger biologicamente a ra9a Mas esse tema eretomado con vertido de certa forma em modo regressivo de maneira que seja reimplantado e que funcione no interior de urn discurso profetico que era justamente aquele em que aparecera an tigamente 0 tema da luta das ra9as Eassim que 0 nazismo vai reutilizar toda uma mitologia popular e quase medieval para fazer 0 racismo de Estado funcionar numa paisagem ideol6gicomitica que se aproxima daquela das lutas popu lares que puderam em dado momento sustentar e permitir a formula9ao do tema da luta das ra9as E e assim que 0 ra cismo de Estado na epoca nazista vai ser acompanhado de uma por9ao de elementos e de conota90es como por exem plo os da luta da ra9a germiinica subjugada durante urn tem po pelos vencedores provis6rios que sempre foram para a Alemanha as potencias europeias os eslavos 0 Tratado de Versalhes etc Ele tambem foi acompanhado pelo tema da volta do her6i dos her6is 0 despertar de Frederico e de to dos os que foram os guias e os Fuhrer da na9ao do tema da retomada de urna guerra ancestral do tema do advento de urn novo Reich que e 0 imperio dos ultimos dias que deve garantir 0 triunfo milenar da ra9a mas que e tambem de urna forma necessaria a iminencia do apocalipse e do ultimo dia Reciclagem pois ou reimplanta9ao reinser9ao nazista do racismo de Estado na lenda das ra9as em guerra Em face dessa transforma9ao nazista voces tern a trans forma9ao de tipo sovietico que consiste em fazer de certo modo 0 inverso nao uma transforma9ao dramlitica e tea tral mas uma transforma9ao subrepticia sem dramaturgia legendaria mas difusamente cientista Ela consiste em retomar 0 discurso revolucionario das lutas sociais justa mente aquele que era oriundo por muitos de seus elementos do velho discurso da luta das ra9as e em fazeIo coincidir com a gestao de uma policia que assegura a higiene silen ciosa de uma sociedade ordenada 0 que 0 discurso revolu cionario designava como inimigo de classe vai se tomar no racismo de Estado sovietico urna especie de perigo biol6gi co 0 inimigo de classe que e agora Pois bern e 0 doente e o transviado e 0 IOlleo Em conseqiiencia a arma que Qll trora devia lutar contra 0 inimigo de classe arma que era a da guerra ou eventualmente a da dialetica e da convic9ao agora nao pode ser mais do que uma policia medica que eli mina como urn inimigo de ra9a 0 inimigo de classe Por tanto temos de urn lado a reinser9ao nazista do racismo de 96 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 28 DE JANEIRO DE 1976 97 98 EM DEFESA DA SOClEDADE Estado na velha lenda das raas em guerra e do outro a rein serao sovietica da luta das classes nos mecanismos mudos de urn racismo de Estado E e assim que 0 canto rouco das raas que se enfrentam atraves das mentiras das leis e dos reis esse canto que afinal de contas produziu a primeira forma do discurso revolucionario tomouse a prosa admi nistrativa de urn Estado que se protege em nome de urn pa trimonio social que deve ser guardado puro Portanto gloria e infilmia do discurso das raas em luta o que eu quis lhes mostrar foi esse discurso que nos apar tou com toda a certeza de urna consciencia historicojuridica centrada na soberania e que nos fez entrar numa forma de historia nurna forma de tempo ao mesmo tempo sonhado e sabido sonhado e conhecido em que a questao do poder ja nao pode ser dissociada da questao das servidoes das liber taoes e das alforrias Petrarca se perguntava Que ha na historia que nao seja louvaao de Roma Pois bern nos e e isso que decerto caracteriza a nossa consciencia histori ca e que esta vinculado ao aparecimento dessa contrahisto ria nos nos perguntamos Que ha na historia que nao seja 0 apelo arevoluao ou 0 medo dela E acrescentamos simplesmente esta pergunta E se Roma de novo conquis tasse a revolwao Entiio depois dessas tropelias eu tentarei a partir da proxima vez retomar urn pOlleD essa hist6ria do discurso das raas em alguns de seus pontos no seculo XVII no ini cio do seculo XIX e no seculo XX AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 Resposta sabre 0 antisemitismo Guerra e soberania em Hobbes 0 discurso da conquista na lnglaterra entre as monarqulstas as parlamentaristas e as Levellers 0 esquema bimirio e 0 historicismo paNtica 0 que Hobbes queria eliminar Vma ou duas semanas atras comunicaramme certo numero de perguntas e de objeoes orais e escritas Gosta na mUlto de discutir com voces mas e diftcil neste espao e neste chma De qualquer forma depois da aula voces podem VIr me ver em meu escritorio se tiverem perguntas para me fazer Mas ha urna aqual eu gostaria ainda assim d responder urn pouquinho primeiro porque me foi feita vnas vezes depois porque eu havia achado poder respon dela de antemao e devo acreditar que as explicaoes nao estavam sufIclentemente claras Disseramme 0 que sig mfIca fazer 0 raClsmo ter inicio no seculo XVI ou no XVII reportar 0 racismo apenas aos problemas da soberania e d Estado quando se sabe bern afinal de contas que 0 racis mo rehglOso 0 racismo antisemita em especial eostia desde a Idade Media Eu gostaria entao de voltar ao que nao ex phqueI portanto suficiente e claramente Para mim nao se trata aqui de fazer por ora uma his tona do raClsmo no sentido geral e tradicional do termo Nao quero fazer a historia daquilo que pode ser no Ocidente a consciencia de pertencer a uma raa nem hist6ria dos ri 100 EM DEFESA DA SOC1EDADE AULA DE 4 DE FEVERE1RO DE 1976 101 tos e mecanismos pelos quais se tentou excluir desqualifi car destruir fisicamente urna raya 0 problema que eu quis calocar eDutro e DaD diz respeito ao racismo nem em pri meira instiincia ao problema das rayas Tratavase e con tinua sempre se tratando para mim de tentar ver como apa receu no Ocidente uma certa analise critica hist6rica e political do Estado de suas instituiyoes e de seus mecanis mos de poder Essa analise e feita em termos binaTIos 0 cor po social nao e composto por uma piramide de ordens ou por uma hierarquia naD constitui urn organismo coerente e unitario mas e composto por dois conjuntos nao s6 perfei tamente distintos mas tambem opostos E essa relayao de oposiyao existente entre esses dois conjuntos que constituem o corpo social e que trabalham 0 Estado e de fato urna re layao de guerra de guerra permanente pois 0 Estado nada mais e que a maneira mesma pela qual continua a travarse essa guerra sob formas aparentemente pacificas entre os dois conjuntos em questao A partir dai eu gostaria de mos trar como se articula urna analise desse tipo evidentemente com base a urn s6 tempo numa esperanfa nun imperativo e numa politica de revolta ou de revoluyao E esse 0 fundo de meu problema nao e 0 racismo o que me parece historicamente bern justificado e que essa forma de analise politica das relayoes de poder como relayoes de guerra entre duas rayas no interior de urna so ciedade nao interfere pelo menos em primeira instiincia no problema religioso Essa analise voces a encontram efeti vamente formulada formulandose no final do seculo XVI e no principio do seculo XVII Em outras palavras a divisao a percepyao da guerra das rayas se antecipa as nOyoes de luta social ou de luta de classe mas nao se identifica de modo algum com urn racismo do tipo se voces quiserem religioso Nao falei do antisemitismo e verdade Eu queria fazer urn pouco isso da ultima vez quando fiz uma especie de exame superficial do tema da luta das rayas mas nao tive tempo Creio que 0 que se pode dizer mas voltarei a isso mais tarde e 0 seguinte 0 antisemitismo com efeito como ati tude religiosa e racial nao interveio de urna forma suficien temente direta para que se possa levalo em conta na hist6 ria que lhes you fazer antes do seculo XIX 0 velho anti semitismo do tipo religioso foi reutilizado num racismo de Estado somente no seculo XIX a partir do momenta em que se constituiu urn racismo de Estado no momenta em que o Estado teve de aparecer de funcionar e de se mostrar como o que assegura a integridade e a pureza da raya contra a raya ou as rayas que 0 infiltram que introduzem em seu corpo elementos nocivos e que epreciso conseqiientemente ex pulsar por razoes que sao de ordem politica e biol6gica ao mesmo tempo Foi nesse momenta que 0 antisemitismo se desenvolveu retomando utilizando extraindo da velha for ya do antisemitismo toda uma energia e toda uma mitolo gia que nao haviam sido ate entao utilizadas na analise politica da guerra intema da guerra social Naquele momen to os judeus pareceram ser e foram descritos como a urn s6 tempo a raya presente no meio de todas as rayas e aquela cujo carater biologicamente perigoso reclama da parte do Estado certo numero de mecanismos de recusa e de exclusao Foi P0rlanto a reutilizayao no racismo de Esta do de urn antisemitismo que tinha ereio eu outras razoes que provocou os fen6menos do seculo XIX que acabam por fazer os velhos mecanismos do antisemitismo sobre porse a essa analise critica e politica da luta das rayas no interior de uma sociedade Foi por isso que nao apresentei nem 0 problema do racismo religioso nem 0 problema do antisemitismo na Idade Media Tentarei falar dele em com pensayao quando abordar 0 seculo XIX Mais urna vez estou as ordens para responder a perguntas mais precisas 1 Fora dos Estados civis ha sempre uma guerra de carla qual contra cada quaL Com isso fica claro que enquanto os homens vivem sem urn pa rler em comUIU que rnantenha a todos respeitosos eles estao na condilao que se denomina guerra e essa guerra e guerra de cada qual contra cada qual Th Hobbes Leviathan op cit primeira parte cap XIII p 62 trad fro citada p 124 Sabre 0 bellum omnium contra omnes cf tamMm Elementorum phi losophiae seelio tertia de Give Paris 1642 I 1 XIII trad fr Le citoyen QU les fondements de la politique Paris Flammanon 1982 2 Th Hobbes Leviathan loco cit 3 Ibid p 63 trad fr citada p 124 Hoje eu gostaria de tentar ver como a guerra come90u a aparecer como analisador das rela90es de poder no fm do seculo XVI e no inicio do seculo XVII Ha claro urn nome que a gente logo encontra 0 de Hobbes que aparece como a primeira vista quem pos a rela9ao de guerra no fundamento e no principio das rela90es de poder No fundo da ordem por tras da paz abaixo da lei no nascimento do grande automato que constitui 0 Estado 0 soberano 0 Le viata nao ha somente para Hobbes a guerra mas a malS geral de todas as guerras aquela que se manifesta em todos os instantes e em todas as dimensoes a guerra de todos con tra todos E essa guerra de todos contra todos Hobbes nao a situa simplesmente no nascimento do Estado na ma nba real e ficticia do Leviata ele a segue ele a ve amea 9ar e manar depois mesmo da constitui9ao do Estado em seus intersticios nOS limites e nas fronteiras do Estado Voces se lembram dos tres exemplos de guerra permanente que ele cita Primeiramente ele diz isto mesmo quando nurn Estado civilizado urn viajante deixa seu domicilio nun ca se esquece de fechar com cuidado a fechadura da porta pois bern sabe que h urna guerra permanente que e travada entre os ladroes e os roubados2 Dutro exemplo que ele clta nas florestas da America encontramse ainda tribos cujo regime e 0 da guerra de todos contra todos E de qualquer 4 Ibid loco cit 103 forma nos Estados da Europa quais sao as rela90es entre urn Estado e outro senao as de dois homens que estao de pe urn na frente do outro a espada na mao e os olhos fixos urn no outrO4 De qualquer forma portanto mesmo depois da constitui9ao do Estado a guerra amea9a a guerra esta pre sente Dai esse problema em primeiro lugar 0 que e essa guerra preliminar ao Estado e que 0 Estado esta destinado em principio a fazer cessar essa guerra que 0 Estado repele em sua prehist6ria na selvageria para suas fronteiras mis teriosas e que no entanto esta presente Em segundo lugar como essa guerra engendra 0 Estado Qual e 0 efeito na constitui9ao do Estado do fato de que foi a guerra que 0 en gendrou Qual e 0 estigma da guerra no corpo do Estado uma vez constituido Ai estao as duas questoes que eu gos taria de considerar urn pouquinbo Qual e entiio essa guerra a guerra que Hobbes descreve antes mesmo e no principio da constitui9ao do Estado Sera a guerra dos fortes contra os fracos dos violentos contra os timidos dos corajosos contra os covardes dos grandes con tra os pequenos dos selvagens arrogantes contra os pasto res timidos sera urna guerra que earticulada com Iiase em diferen9as naturais imediatas Voces sabem que de modo algum e esse 0 caso em Hobbes A guerra primitiva a guer ra de todos contra todos e urna guerra de igualdade nascida da igualdade e que se desenrola no elemento dessa igualdade A guerra e 0 efeito imediato de urna naodiferen9a ou em tado caso de diferen9as insuficientes De fato diz Hobbes se tivesse havido grandes diferen9as se houvesse efetivamen te entre os homens desigualdades que se veem e se manifes tam que sao muito claramente irreversiveis e evidente que a guerra seria por isso mesmo imediatamente brecada Se AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 102 5 Ibid pp 602 tract fro citada pp 1234 houvesse diferencas naturais marcantes visiveis macicas das duas urna ou haveria efetivamente enfrentamento entre 0 forte e 0 fraco mas esse enfrentamento e essa guerra real se resolveria imediatamente com a vitoria do forte sobre 0 fraco vitoria que seria definitiva por causa da propria fora do forte ou entao nao haveria enfrentamento real 0 que quer dizer pura e simplesmente que 0 fraco sabendo percebendo constatando sua propria fraqueza renunciaria antes mesmo do enfrentamento De sorte que diz Hobbes se houves se diferencas naturais marcantes nao haveria guerra pois ou a relaao de fora seria fixada logo de saida por urna guerra inicial que excluiria que ela continuasse au entao ao contrano essa relaao de fora perrnaneceria virtual dada a propria timidez dos fracos Portanto se houvesse diferena nao haveria guerra A diferena pacifica5 Em compensa ao no estado de naodiferena de diferena insuficiente no estado em que se pode dizer que ha diferenas mas me diocres fugidias minusculas instaveis sem ardem e sem distinao nessa anarquia das pequenas diferenas que ca racteriza 0 estado de natureza 0 que acontece Mesmo quem e um pouquinho mais fraco do que os outros do que urn outro meSilla esse ainda assim esta suficientemente pro ximo do mais forte para perceberse forte 0 bastante para nao ter de ceder Portanto 0 fraco jamais renuncia Quanto ao forte quem e simplesmente um pouquinho mais forte do que os outros nunca e forte 0 bastante para nao ficar inquie to e por conseguinte para nao ter de tomar cautela Portanto a naodiferenciacao natural cria incertezas riscos acasos e por conseguinte a vontade de ambas as partes de enfren tarse e 0 aleatorio na relaao primitiva das foras que cria esse estado de guerra Mas esse estado de guerra 0 que ele e exatamente Mesmo 0 fraco sabe ou acredita em todo caso que nao esta longe de ser tao forte quanta 0 seu vizinho Portanto ele nao vai renunciar aguerra Entretanto 0 mais forte en fim aquele que e urn pouquinho mais forte do que os ou tros sabe que apesar de tudo ele pode ser mais fraco do que 0 outro sobretudo se 0 outro utiliza a asmcia a surpresa a alianca etc Portanto urn nao vai renunciar it guerra mas o outro 0 mais forte vai procurar apesar de tudo evimla Ora aquele que quer evitar a guerra so podera evimIa Com uma condiao que mostre que esta pronto para fazer a guer ra e que nao esta pronto para renunciar a ela E ele mostra ra que nao esta pronto para renunciar aguerra fazendo 0 que Pois bem agindo de tal maneira que 0 outro que esm a ponto de fazer a guerra vai ficar com davidas sobre a sua propria fona e por conseguinte renunciani a ela e renun ciara esse outro simplesmente na medida em que sabe que o primeiro por sua vez nao esta pronto para renunciar a ela Em resumo no tipo de relaoes que se encadeiam a partir dessas diferenas mediocres e desses enfrentamentos alea t6rios cujo resultado nao e conhecido essa relaao de fora efeita do que E feita do jogo entre tres series de elementos Primeiro das representaoes calculadas eu me represento a fora do outro representome que 0 outro se representa mi nha fora etc Segundo das manifestaoes enfMicas e acen tuadas de vontade demonstrase que se quer a guerra mos trase que nao se renuncia aguerra Terceiro enfim utili zamse taticas de intimidaao entrecruzadas receio tanto fazer a guerra que so ficarei tranqiiilo se voce recear a guer ra pelo menos tanto quanta eu e mesmo na medida do possivel um pouco mais Isto quer dizer em suma que esse estado que Hobbes descreve nao e em absoluto um estado natural e brutal no qual as foras viriam se enfrentar dire tamente nao se esta na ordem das relaoes diretas das for 105 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 104 6 Ibid p 62 trad fro citada p 124 9aS reais 0 que se encontra 0 que se enfrenta 0 que se en trecruza no estado de guerra primitiva de Hobbes nao sao armas nao sao punhos nao sao foras selvagens e desen freadas Nao M batalhas na guerra primitiva de Hobbes nao M sangue nao M cadaveres Ha representaoes manifesta 90es sinais express5es enfaticas astuciosas mentirosas M engodos vontades que sao disfaradas em seu contrario inquietudes que sao camufladas em certezas Estase no tea tro das representaoes trocadas estase nurna relaao de medo que e uma relaao temporalmente indefinida nao se esta realmente na guerra Isto quer dizer finalmente que 0 estado de selvageria bestial em que os individuos vivos se devorariam uns aos outros nao pode de forma alguma apa recer como a caracterizaao primeira do estado de guerra segundo Hobbes 0 que caracteriza 0 estado de guerra e uma especie de diplomacia infinita de rivalidades que sao naturalmente igualitarias Nao se esta na guerra estase no que Hobbes denomina precisamente 0 estado de guer ra Ha urn texto em que ele diz A guerra nao consiste somente na batalba enos combates efetivos mas nurn espa 0 de tempo e 0 estado de guerra em que a vontade de se enfrentar em batalhas e suficientemente demonstrada6 0 espao de tempo designa pois 0 estado e nao a batalha em que 0 que esta em jogo nao sao as proprias foras mas a von tade urna vontade que e suficientemente demonstrada ou seja dotada de urn sistema de representaoes e de manifes taoes que e operante nesse campo da diplomacia primana Portanto vese bern por que e como esse estado que nao e a batalha 0 enfrentamento direto das foras mas certo estado dos jogos das representaoes urnas contra as outras nao e urna fase que 0 homem abandonaria definitivamente 7 Em toda a discussao que se segue M Foucault se refere ao Leviathan segunda parte trad fr De la repubIique caps XVII XVIII XIX XX r I i 107 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 no dia em que nascesse 0 Estado tratase de fato de urna especie de pano de fundo permanente que M de funcionar com suas asmcias elaboradas com seus calculos mesclados assim que algo nao de a segurana nao fixe a diferena e nao coloque a fora enfim de urn certo lado Portanto nao M guerra no inicio em Hobbes Mas como esse estado que nao ea guerra mas sim os jogos das representaoes pelos quais justamente nao se faz a guerra vai engendrar 0 Estado com uma maiuscula 0 Leviata a soberania A esta segunda pergunta Hobbes rs ponde distinguindo duas categorias de soberania a sobera nia de instituiao e a soberania de aquisia07 Falase muito da soberania de instituiao e em gera e a esta que se reduz que se resume a anaIise de Hobbes Na verdade as coisas sao mais complicadas Voces tern urna republica de instituiao e urna republica de aquisiao e no proprio interior desta duas formas de soberania de sorte que no total os Estados de instituiao os Estados de aquisiao e tres tipos tres for mas de soberania vern de certo modo trabalhar essas formas de poder Tomemos primeiramente as republicas de insti tuiao as que sao mais conhecidas nao me demoro nelas Que e que ocorre no estado de guerra para fazer cessar esse estado de guerra em que mais urna vez nao e a guerra mas a representaao e a ameaa da guerra que intervem Pois bern alguns homens vao decidir Mas 0 que Nao tanto trans ferir a alguem ou a varios uma parte de seus direitos e de seus poderes Eles nem sequer decidem no fundo trans mitir todos os seus direitos Decidem ao contrario conceder a alguem que tambem podem ser vanos ou urna assembleia 0 direito de representalos total e integralmente Nao se EM DEFESA DA SOCIEDADE 106 8 Cf ibid p 88 cap XVIII trad fro citada p 180 9 Ibid cap XX trata de uma relaao de cessao ou de delegaao de algo per tencente aos individuos mas de uma representaao dos pr6 prios individuos Isto quer dizer que 0 soberano assim cons tituido valera integralmente para os individuos Ele nao teni pura e simplesmente uma parte do direito deles estari ver dadeiramente no lugar deles com a totalidade do poder deles Como diz Hobbes a soberania assim constituida assume a personalidade de todoS8 E com a condiao desse desloca mento os individuos assim representados estarao presentes em seu representante e 0 que 0 representante ou seja 0 soberano fizer cada um deles por isso mesmo estari fa zendo Enquanto representante dos individuos 0 soberano e modelado exatamente com base nos individuos mesmos E pois uma individualidade fabricada mas e uma individua lidade real Quando 0 soberano e um monarca naturalmente individual isso nao 0 impede de ser fabricado como sobera no e quando se trata de uma assembleia embora se trate de um grupo de individuos nao deixa de se tratar de uma individualidade Eisso portanto no que concerne as repu blicas de instituiao Voces veem que nesse mecanismo bi somente 0 jogo da vontade do pacto da representaao Olhemos agora a outra forma de constituiao das repu blicas a outra coisa que pode acontecer a uma republica ou a outra 0 mecanismo da aquisia09 Aparentemente e total mente diferente e mesmo justamente 0 contririo No caso das republicas de aquisiao parece que lidamos com uma soberania que seria fundamentada nas relaoes de fora a um s6 tempo reais hist6ricas e imediatas Para compreender esse mecanismo cumpre supor nao um estado primitivo de guerra mas realmente uma batalha Vejamos um Estado ji constituido a partir do modelo de que acabei de falar 0 mo deJa da instituiao Suponbamos agora que esse Estado seja atacado por outro numa guerra com batalhas reais e deci saes armadas Suponbamos que um dos dois Estados assim constituidos seja vencido pelo outro seu exercito e vencido dispersado sua soberania destruida 0 inimigo ocupa a terra Estamos portanto enfim naquilo que procurivamos desde o comeo isto e numa verdadeira guerra com uma verda deira batalha uma verdadeira relaao de fora Hi vencedo res e vencidos e os vencidos estao amerce dos vencedores a sua disposiao Olhemos agora 0 que vai acontecer os ven cidos estao a disposiao dos vencedores isto e estes podem matar os vencidos Se eles os matam ji nao bi e evidente problema a soberania do Estado desaparece pura e simples mente porque os individuos desse Estado desapareceram Mas se os vencedores deixam a vida aDS vencidos 0 que e que vai acontecer Deixando a vida aDS vencidos OU melhor tendo os vencidos 0 beneficia provis6rio da vida das duas uma ou eles VaG revoltarse contra os vencedores ou seja recomear efetivamente a guerra tentar inverter relaa de fora e estamos de novo naquela guerra real que a der rota acabava pelo menos provisoriamente de suspender ou eles correro efetivamente 0 risco de morrer ou naG recome am a guerra aceitam obedecer trabalhar para os outros ceder a terra aos vencedores pagarIhes tributos estamos aqui e evidente numa relaao de dominaao totalmente fundamentada na guerra e no prolongamento na paz dos efeitos da guerra Dominaao dirao voces e nao soberania Pois bern nao diz Hobbes estamos ainda e sempre na rela ao de soberania Por que Porque uma vez que os vencidos preferiram a vida e a obediencia por isso mesmo reconstitui ram uma soberania fizeram de seus vencedores os seus representantes restauraram urn soberano no lugar daquele que a guerra havia derrubado Nao e pois a derrota que fun 109 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 108 to Ibid Cf tambem De Cive II IX damenta urna sociedade de dominaao de escravidao de ser vidao de urna maneira brutal e fora do direito mas 0 que se passou nessa derrota depois mesmo da batalha depois mesmo da derrota e de certa maneira independentemente dela e algo que e 0 medo a renUncia ao medo a renUncia aos riscos da vida Eisso que faz entrar na ordem da sobe rania e nurn regime juridico que e 0 do poder absoluto A vontade de preferir a vida it morte e isso que vai fundamen tar a soberania urna soberania que e tao juridica e legitima quanta aquela que foi constituida a partir do modo da insti tuiao e do acordo mutuo De urna forma bern estrarrha Hobbes acrescenta a essas duas formas de soberania a da aquisiao e a da instituiao uma terceira da qual diz que e muito proxima daquela da aquisiao daquela que aparece no crepusculo da guerra e apos a derrota Esse outro tipo de soberania e aquela diz ele que liga uma crian9a aos pais au mais exatamente a mae lO Suponbamos diz ele urna criana que nasce Seus pais 0 pai numa sociedade civil a mae no estado de natu reza podem perfeitamente deixiIa morrer ou mesmo fazela pura e simplesmente morrer Ela nao pode em nenburn caso viver sem os pais sem a mae E durante aIlOS espontanea mente sem que tenba de formular sua vontade de outra ma neira senao pela manifestaao de suas necessidades de seus berros de seu medo etc a criana vai obedecer aos pais it mae vai fazer exatamente 0 que ela Ihe mandar fazer por que e dela e dela somente que depende sua vida Portanto a mae vai exercer sobre ela sua soberania Ora diz Hobbes entre esse consentimento da criana consentimento que nem sequer passa por urna vontade expressa ou por urn contrato it soberania da mae para conservar sua propria vida e 0 dos III AULA DE 4 DE FEVEREJRODE 1976 vencido no crepusculo da derrota nao hi diferena de na tureza E que de fato Hobbes quer mostrar que 0 que e decisivo na constituiao da soberania nao e a qualidade da vontade nem mesmo sua forma de expressao ou seu nivel No fundo pouco importa que se esteja com a faca na gar ganta pouco imporya que se possa ou nao formular explici tamente a vontade E preciso e basta para que haja soberania que esteja efetivamente presente urna certa vontade radical que faz que se queira viver mesmo quando nao se pode viver sem a vontade de urn outro Portanto a soberania se constitui a partir de uma forma radical de vontade forma que importa poucO Esta vontade e vinculada ao medo e a soberania nunca se forma por cima ou seja por uma decisao do mais forte do vencedor ou dos pais A soberania se forma sempre por baixo pela vontade daqueles que tern medo De sorte que apesar do corte que pode aparecer entre as duas grandes formas de republica a da instituiao nascida atraves de relaao mutua e a de aqui siao nascida da batalha aparece entre ambas uma identi dade profunda de mecanismos Nao importa se se trata de urn acordo de uma batalha de uma relaao paisfilhos de qualquer forma encontramos a mesma serie vontade medo e soberania E pouco importa que essa serie seja desenca deada por urn cilculo implicito por uma relaao de violen cia por urn fato natural pouco importa que seja 0 medo que engendre uma diplomacia infinita que seja 0 medo de urna faca na garganta ou 0 choro de uma criana De qualquer forma a soberania esti fundada No fundo tudo se passa como se Hobbes longe de ser 0 teorico das relaoes entre a guerra e 0 poder politico tivesse desejado eliminar a guerra como realidade historica como se ele tivesse desejado eli minar a genese da soberania Hi no Leviatii todo urn inicio do discurso que consiste em dizer pouco importa que nos tenba mos combatido ou nao pouco importa que voces tenham EM DEFESA DA SOCIEDADE liD sido vencidos au oao de qualquer forma e0 meSilla meca nismo que intervem para voces os vencidos 0 meSilla que encontramos no estado natural na constituiao do Estado ou que encontramos ainda com toda a naturalidade na relaao mais terna e mais natural que ha ou seja aquela entre os pais e os filhos Hobbes torna a guerra 0 fato da guerra a relaao de fora efetivamente manifestada na batalha indiferentes a constituiao da soberania A constituiao da soberania igno ra a guerra E haja ou nao guerra essa constituiao se faz da mesma forroa No fundo 0 discurso de Hobbes 0 urn certo nao a guerra nao 0 ela realmente que engendra os Esta dos nao 0 ela que se ve transcrita nas rela5es de soberania ou que reconduz ao poder civil e as suas desigualdades dissimetrias anteriores de uma relaao de fora que teriam side manifestadas no proprio fato da batalha Dai 0 problema a quem ao que se dirige essa elimina ao da guerra ficando entendido que nunca nas teorias ju ridicas do poder anteriormente formuladas nunca a guerra havia desempenhado esse papel que Hobbes Ihe recusa com teimosia A que adversano no fundo Hobbes se dirige quan do em todo urn estrato em toda uma linha em toda urna frente de seu discurso ele repete obstinadamente mas de qualquer forma nao tern importiincia que haja ou nao uma guerra nao 0 de guerra que se trata na constituiao das so beranias Eu acho que aquilo a que se dirige 0 discurso de Hobbes nao 0 se voces quiserem urna teoria precisa e deter minada algo que seria como que seu adversario seu parcei ro polemico nao 0 tampouco algo que seria como que 0 naodito 0 incontornavel do discurso de Hobbes e que Hobbes tentaria apesar de tudo contornar De fato na epo ca em que Hobbes escrevia havia algo que se poderia cha mar nao de seu adversario polemica mas de seu visavis estrategico Ou seja menos certo contelido do discurso que se deveria refutar do que certo jogo discursivo certa estra tegia teorica e politica que Hobbes queria precisamente eli minar e tornar impossive 0 que Hobbes queria pois nao refutar mas tamar impossivel esse visavis estrategico era uma certa maneira de fazer 0 saber historico funcionar na luta politica Mais precisamente 0 visavis estrategico do Leviata 0 acho eu a utilizaao politica nas lutas contem poriioeas de certo saber historico referente as guerras as in vas5es as pilhagens as espoliacoes aos confiscos as rapinas as extors5es e os efeitos de tudo isso os efeitos de todos esses comportamentos de guerra de todos os feitos de bata lhas e das lutas reais nas leis e nas institui5es que aparen temente regulamentam 0 poder Nurna palavra 0 que Hobbes quer eliminar 0 a con quista ou ainda a utilizaao no discurso historico e na pri tica politica desse problema que 0 0 da conquista 0 adver sano invisivel do Leviata 0 a conquista Esse enorroe homem artificial que tanto fez estremecer todos os partidarios da ordem estabelecida do direito e da filosofia 0 ogro estatal a enorroe silhueta que se destaca na vinheta que abre 0 Le viatii e que representa 0 rei com a espada erguida e 0 baculo na mao no fundo ele pensava bern E 0 por isso que final mente mesmo os filosofos que tanto 0 censuraram no fundo o amaro e por isso que seu cinismo encantou meSilla os mais timoratos Parecendo proclamar a guerra em toda par te do inicio ate 0 fim 0 discurso de Hobbes dizia na reali dade justo 0 contrario Dizia que guerra ou nao guerra derrota ou nao conquista ou acordo 0 tudo a mesma coisa V6s a quisestes sois vos os suditos que constituistes a 80 berania que vos representa Nao nos aborreceis mais por tanto com vossos repisamentos historicos ao cabo da con quista se quiserdes realmente que tenha havido urna conquis tal encontrareis ainda 0 contrato a vontade amedrontada dos sliditos 0 problema da conquista esta portanto assim resolvido no inicio por essa noao de guerra de todos con 112 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 113 tra todos e no final pela vontade juridicamente ate valida desses vencidos amedrontados no crepusculo da batalha Logo creio que Hobbes pode mesmo parecer escandalizar Na verdade ele tranqiiiliza enuncia sempre 0 discurso do contrato e da soberania ou seja 0 discurso do Estado Eo claro censuraramIhe e VaG censurarlhe ruidosamente dar demais a esse Estado Mas afinal de conlas e preferivel para a filosofia e para 0 direito para 0 discurso filosofico juridico dar demais ao Estado a nao the dar 0 suficiente E mesmo criticandoo por ter dado demais ao Estado em sur dina saolhe reconhecidos por ter conjurado certo inimigo insidioso e barbaro o inimigo ou melhor 0 discurso inimigo ao qual se dirige Hobbes e aquele que se ouvia nas lutas civis que fissuravam 0 Estado naquele momento na Inglaterra Eo urn discurso com duas vozes Vma dizia Somos os conquista dores e sois os vencidos Talvez sejamos estrangeiros mas vos sois domesticos Ao que a outra voz respondia Talvez te nhamos sido conquistados mas nao 0 permaneceremos Estamos em nosso pais e vos saireis dele Foi esse discurso da luta e da guerra civil permanente que Hobbes conjurou ao repor 0 contrato atras de toda guerra e de toda conquista e salvando assim a teoria do Estado Oai 0 fato e claro de a filosofia do direito ter dado depois como recompensa a Hobbes 0 titulo senatorial de pai da filosofia politica Quan do 0 capitolio do ESlado foi ameaado urn ganso despertou os filosofos que dormiam Foi Hobbes Esse discurso ou melhor eSsa prlitica contra 0 qual Hobbes erguia todo urn muro do Leviatii pareceme que surgiu se nao pela primeira vez pelo menos com suas di mensoes essenciais e sua virulencia politica na Inglaterra e sem duvida pelo efeito da conjunao de dois fenomenos primeiro claro a precocidade da luta politica da burguesia contra a monarquia absoluta de urn lado e a aristocracia do outro e depois 0 outro fenomeno que veio juntarse a este a consciencia que era muito viva fazia seculos e ate nas camadas populares mais amplas do fato historico da velha clivagem da conquista Essa presena da conquista normanda de Guilherme a de 1066 em Hastings manifestarase manifeslavase de mui tas formas ao mesmo tempo nas instituioes e na experiencia historica dos suditos politicos na Inglaterra Ela se manifes tava sobretudo muito explicitamente nos rituais de poder urna vez que ate Henrique VII ou seja no inicio do seculo XVI os atos reais precisavam bern que 0 rei da Inglaterra exercia sua soberania em virtude do direito de conquista Ele se apresentava como sucessor do direito de conquiSla dos normandos Portanto a formula desapareceu com Henrique VII Essa presena da conquista tambem se manifestava na pratica do direito cujos atos e processos se faziam em lin gua francesa e na qual tambem os conflitos entre jurisdi oes inferiores e tribunais regios eram absolutamente cons lantes Formulado de cima e em idioma estrangeiro 0 direito era na Inglaterra urn estigma da presena estrangeira era a marca de outra naao Nessa prlitica do direito nesse direito formulado noutra lingua vinham juntarse de urna parte aquilo a que eu chamaria 0 sofrimento lingiiistico daque les que nao podem se defender juridicamente em seu pro prio idioma e da outra uma certa figura estrangeira da lei Nessa dupla medida a pratica do direito era inacessivel Oai a reivindicaao que se encontra muito cedo na Idade Media inglesa Queremos urn direito que seja nosso urn direito que se formule em nossa lingua que seja unificado por baixo a partir da lei comum que se opoe aos estatutos regios A conquista eu tome as coisas urn pOlleD ao acaso mani festavase tambem na presena na sobreposiao e no en frentamento de dois conjuntos legendarios heterogeneos de urn lado 0 conjunto das narrativas saxas que no fundo 114 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 115 EM DEFESA DA SOCIEDADE 14 Geoffrey of Monmouth conta a historia da na9ao breta a partir do primeiro conquistador 0 troiano Bruto historia que depois das conquistas romanas redundou na resistencia dos bretoes contra os invasores saxiSes e na decadencia do reino bretao Tratase de uma das obras mais populares da Idade Media que introduziu a lenda arturiana nas literaturas europeias 15 M Foucault no manuscrito menciona a Cronica de Gloucester mandos em proveito da aristocracia e da monarquia norman das por causa das multiplas rela90es que havia entre os nor mandos em seu pais de origem e a Bretanha e os bretoes logo dois conjuntos mitol6gicos fortes em tomo dos quais a Inglaterra sonhava em modos absolutamente diferentes seu passado e sua hist6ria Bem mais importante do que tudo isso 0 que marcava a presen9a e os efeitos da conquista na Inglaterra era toda urna mem6ria hist6rica das revotas que tinham cada urna delas efeitos politicos bem precisos Algumas dessas revol tas tinham alias um carater racial sem duvida muito acen tuado como a primeira delas as de Monmouth por exem plol4 Outras como aquela ao fim da qual fora concedida a Magna Carta haviam ocasionado a limita9ao do poder regio e medidas precisas de expulsao dos estrangeiros no caso menos normandos do que poitevinos angevinos etc Mas tratavase de urn direito do povo ingles que estava vincula do anecessidade de expulsar estrangeiros Havia portanto toda uma serie de elementos que permitiam codificar as grandes oposi90es sociais nas formas hist6ricas da conquista e da domina9ao de wna raa sobre a outra Tal codifica9ao ou em todo caso os elementos que permitiam tal codifica 9ao eram antigos Encontramos ja na Idade Media nas cro nicas frases como estas Dos normandos descendem as atas personalidades deste pais os homens de baixa condi ao sao filhos dos saxoes15 Isto quer dizer que os confIitos politicos economicos juridicos eram por causa destes 117 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 Sf E MarxAveling Karl Marx 11 Sabre K Marx lettor de W co c ur das Jakr 1895 pp Lose Blatter in Osterreichischer Arbelteralender fi L Leipziger 4 F M hri Karl Marx Geschichte semes Lebens etpzlg 51 eng Buchdruckerei Actlengesellschaft 1918 XV I trad fr Karl Marx HLStOlre M L dres T d Pans Editions Sociales 1983 I Berhn Karl arx on e sa VIe Butterworth 1939 cap XI In 1 t rra de Ricardo Corayao de Leaa 12 A ayao de Ivanhoe se situa na g a e d L XI Co do plano a Franla e UlS Quentin Durward 823 temhcoo e Thierry e sabre a teoria dos con nhecese a influencla de Ivan oe so re quistadores e dos eonquistas 1 dan e das narrativas centradas em tomo 13 E0 eiclo das traduoes tn chefe cia resistencia ainvasao dos da figura mitiea do soero taa do seulo V Essas tradi90es e essas nar saxoes por volta cia pnmerra I XII por Geoffrey of das la pnmerra vez no seeu 0 rativas serao reum e gum Britanniae libri XII Heidelberg Monmouth em De orzgme et ges IS re d B t 1155 e Roman de Rou 1687 e depois por Robert Wae eR0ma etii remanejacia por Chretien 11601174eoquesedenommaa matenab d ul XII I cia segunda metade 0 sec 0 de Troyes em Lancelot e em Perceva no curso 116 eram narrativas populares cren9as miticas a olta dOdrei Haroldo cultos dos reis santos como 0 do rl Eduar 0 narrativapopulares do tipo Robin Hood e sera dedssa mlto b Walter Scott urn os gran logia como voces sa em que d des msplra oresdeMarxllextrainilvanhoeecertonurne t a a ro de romancesl2 que foram historicamente capl als par consciencia hist6rica do seculo XIX Olante desse conJun I t os ao contrano urn can to mitol6gico e popu ar encon ram junto de lendas aristocniticas e quase monarqlcas quee desenvolvem na corte dos reis normandos e que sao reatlVa s I XVI no momenta do desenvolvlmento do abso no secu 0 Imente da ico dos Tudor Tratase essenCla lutlsmo monarqu t a len lenda do ciclo arturiano l3 Claro nao e exaamen e um da normanda mas uma lenda naosaxa E a reatlva9ao de Ih lenda celticas que foram redescobertas pelos nr veans sob a camada saxa das popula90es Essas lendas cel m m com toda a naturalidade reatlvadas pelos nor tlcas lora 16 Monarchae proprie sunt judices quibus juris dicendi potestatem proprie commisit Deus Nam in throno Dei sedent unde omnis ea facultas elementos que acabo de enumerar com muita facilidade ar ticulados codificados e transformados nurn discurso em dis cursos que eram os da oposiao das raas E de urna maneira bern logica no final do seculo XVI e no inicio do seculo XVII quando apareceram novas formas politicas de luta entre a burguesia de urn lado e a aristocracia e a monarquia do ou tro foi ainda nesse vocabulario da luta racial que esses con flitos se expressaram Essa especie de codificaao ou pelo menos os elementos que estavam prontos para a codifica ao intervieram muito naturalmente E se eu digo codificaao e porque a teoria das raas nao funcionou como urna tese particular de urn gropo contra 0 outro De fato nessa cliva gem das raas e em seus sistemas de oposiao tratouse de urna especie de instrumento a urn so tempo discursivo e po litico que permitia a ambos os lados formularem suas pro prias teses A discussao juridicopolitica dos direitos do so berano e dos direitos do povo deuse na Inglaterra no se culo XVII a partir dessa especie de vocabulario engendrado pelo fato da conquista pela relaao de dominaao de uma raa sobre a outra e pela revolta ou pela ameaa perma nente da revolta dos vencidos contra os vencedores E en tao voces vao encontrar a teoria das raas ou 0 tema das raas tanto nas posioes do absolutismo monirrquico quan to nas dos parlamentares ou parlamentaristas quanto nas posioes mais extremas dos Levellers ou dos Diggers A primazia da conquista e da dominaao voces a encontram efetivamente formulada naquilo a que chamarei com uma palavra 0 discurso do rei Quando Jaime I de clarava a Camara Estrelada que os reis sentamse no trono de Deus16 ele se referia claro a teoria teologicopolitica do direito divino Mas para ele essa eleiao divina que fazia 119 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 derivata est Jaime I Oratio habita in camera stellata 1616J in Opera edita a Jacobo Montacuto Francofurti ad Moenum et Lipsiae 1689 p 253 Nihil est in terris quod non sit infra Monarchiae fastigium Nee eoim solum Dei Vicarii sunt Reges deique throno insident sed ab ipso Dea Deorum nomine honorantur Oratio habita in comitis regni ad omnes ordines in paatio albaulae 1609 in Opera edita p 245 sabre 0 Divine Right of Kings ver tambem 0 Basilikon doron sive De Institutione principis in Opera edita pp 6385 17 Et quamquam in aliis regionibus ingentes regii sanguinis factae sint mutationes sceptri jure ad novos Dominos jure belli translato eadem tamen illic cernitur in terram et subditos potestatis regiae vis quae apud nos qui Dominos numquam mutavimus Quum spurius iIle Nonnandicus validissimo cum exercitu in Angliam transiisset quo obsecro nisi annorum et belli jure Rex factus est At ille leges dedit non accepit et vetus jus et consuetudinem regni antiquavit et avitis possessionibus eversis homines novas et peregrinos impo suit suae militiae comites quemadmodum hodie pleraque Angliae nobilitas Nonnannicam prae se fert originem et leges Nonnannico scriptae idiomatem facilem testantur auctorem Nihilominus posteri ejus sceptrum illud hactenus faciliter tenuerunt Nee hoc soli Nonnanno licuit idem jus omnibus fuit qui ante illum vietae Angliae leges dederunt Jaime I Jus liberae Monarchiae sive De mutuis Regis liberi et populi nascendi conditione illi subditi officiis 1598 in Opera edita op cit p 91 que ele fosse efetivamente 0 proprietario da Inglaterra ti nha urn sinal e urna cauao historicos na vitoria normanda E quando ainda era apenas rei da Escocia Jaime I dizia que como os normandos tomaram posse da Inglaterra as leis do reino sao estabelecidas por eles 17 0 que tinba duas conseqiiencias Primeiro que a Inglaterra fora tomada e por tanto que todas as terras inglesas pertenciam aos norman dos e ao chefe dos normandos ou seja ao rei E enquanto chefe dos normandos que 0 rei tern efetivamente a posse da terra inglesa eseu proprietario Segundo 0 direito nao tern de ser 0 direito comurn as diferentes populaoes sobre as quais se exerce a soberania 0 direito e a propria marca da soberania normanda foi estabelecido pelos normandos e e evidente para eles E com uma habilidade que devia inco EM DEFESA DA SOCIEDADE 118 120 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 121 iI madar razoavelmente os adversfuios 0 rei au pelo menos os partidarios do discurso do rei faziam valer uma estra nhissima mas importantissima analogia Eu creio que foi Blackwood que a formulou pela primeira vez em 1581 num texto que se chama Apologia pro regibus onde se diz isto que e muito curioso Ele diz De fato devese compreen der a situa9aO da Inglaterra na epoca da invasao normanda como se compreende agora a situa9ao da America perante as potencias que ainda nao se denominavam coloniais Os nor mandos foram na lnglaterra 0 que a gente da Europa e atual mente na America Blackwood fazia urn paralelo entre Guilherme 0 Conquistador e Carlos V Dizia a proposito de Carlos V Ele submeteu pela for9a uma parte das jndias Oddentais deixou aos vencidos seus bens nao em proprie dade nua mas simplesmente em usufruto e mediante uma presta9aO Pois bern 0 que Carlos V fez na America e que achamos perfeitamente legitimo ja que fazemos a mesma coisa nao nos enganemos os normandos fizeram na 10 glaterra Os normandos estao na lnglaterra com 0 mesmo direito que nos na America ou seja com 0 direito que e 0 da coloniza9aO18 E temos nesse final no seculo XVI se nao pela primeira vez pelo menos uma primeira vez acho eu uma especie de repercussao sobre as estruturas juridicopoliticas do Ociden te da pratica colonial Nunca se deve esquecer que a coloni zaao com suas tecnicas e suas armas politicas e juridicas 18 Carolus quintus imperator nostra memoria partem quandam occi dentalium insularum veteribus ignotam nobis Americae vocabulo non ita pridem auditam vi subegit victis sua reliquit non mancipio sed U511 nee eo quidem perpetua nee gratuito ac immuni quod Anglis obtgit Vilielmi Dothi beneficia sed in vitae tempus annuae prestationi certa lege locationis obliga tal A Blackwood Adversus Georgii Buchanani dialogum de jure regni apud ScoloS pro regibus apologia Pictavis apud Pagaeum 1581 p 69 transportou claro modelos europeus para outros continentes mas que ela tambem teve numerosas repercussoes sobre o mecsms de poder no Ocidente sobre os aparelhos insti tw90es e tecmcas de pader Houve toda urna serie de modelos colomms que foram trazidos para 0 Ocidente e que fez com que 0 OCldente pudesse praticar tambem em si mesmo ago como uma coloniza9iio um colonialismo intemo Ai esta como 0 tema da oposi9ao das ra9as funcionava no dlscurso d rei Foi esse mesmo tema da conquista nor manda que artlculou a propria replica que os parlamentares opunham a esse dlSCurSO do rei 0 modo como os parla mentares refutavam as pretensoes do absolutismo monarqui co se artlculava tambem ele com base nesse dualismo das ra9as e no fato da conquista A analise dos parlamentares e dos parlamentanstas come9ava de maneira paradoxa com urn tIpo de nega9ao da conquista ou melhor de envolvimen to da conqulsta num elogio de Guilherme 0 Conquistador e de sua IegltImldade Ai esta como eles realizavam sua ana lise DlZl inguem deve se enganar a esse respeito e msto voces veem quanta estamos proximos de Hobbes HastIngs a batalha a propria guerra nao e isso 0 importante No fundo GIherme era mesmo 0 rei legitimo E era mes mo 0 rei legltIm pura e simplesmente porque e entao se exumava certo numero de fatos historicos verdadeiros ou falsos Haroldo antes mesmo da morte de Eduardo 0 Con fessor que havla realmente designado Guilherme como seu sucessor prestara 0 juramento de que nao se tomaria rei da lnglaterra mas cederia 0 trono ou aceitaria que Guilherme sublsseao trono da lnglaterra De qualquer forma isso nao oorrena tendo Harolo morrido na batalha de Hastings ja nao havla sucessor legrtImo se se admitisse a legitimidade de Haroldo e por conseguinte a coroa devia pura e sim plsmente caber a GUilherme De sorte que Guilherme nao vew a ser oconquistador da lnglaterra mas veio a ser herdei ro dos dlreltos dos direitos nao de uma conquista mas do 19 Argumentum AntiNormannicum or an Argument proving from ancient histories and records that William Duke of Normandy made no absolute conquest ofEngland by the word in the sense of our modern wri ters Londres 1682 Esta obra foi erroneamente atribuida a E Coke reino da Inglaterra tal como ele existia Veio a ser herdeiro de um reino que era vinculado por certo nillnero de leis e herdeiro de uma soberania que era limitada pelas leis mes mas do regime saxao Isso faz que 0 que legitima nessa analise a monarquia de Guilherme seja igualmente 0 que lhe limita 0 poder Alias acrescentam os parlamentaristas se se tivesse tratado de uma conquista se realmente a batalha de Hastings tivesse acarretado uma rela9ao de pura domina 9ao dos normandos sobre os saxoes a conquista nao pode ria terse mantido Como voces quereriam dizem eles que algumas dezenas de milhares de infelizes normandos per didos nas terras da Inglaterra possam terse mantido nelas e assegurado efetivamente um poder permanente Teriam sido de qualquer forma assassinados em suas camas no cre puscuIo da batalha Ora ao menos num primeiro tempo nao houve grandes revoltas 0 que prova bem que no fundo os vencidos nao se consideravam tanto como vencidos e ocu pados por vencedores mas reconheciam efetivamente nos normandos homens que podiam exercer 0 poder Assim com essa aceitalao com esse naomassacre dos normandos e com essa naorevolta eles validavam a monarquia de Gui Iherme E Guilherme alias prestara juramento fora coroa do pelo arcebispo de York haviamIhe dado a coroa e ele se comprometera no decorrer dessa cerimonia a respeitar as leis das quais os cronistas diziam que eram leis boas antigas aceitas e aprovadas Logo ele estava vinculado ao sistema da monarquia saxa que 0 havia precedido Num texto que se chama Argumentum AntiNormanni cum 19 e que erepresentativo dessa tese vese uma especie 20 The excellent and most famous Laws of St Edward 21 Coronation Oath Para a ilustra9ao dessa vinheta ver An Ex planation of the Frontispiece in Argumentum AntiNomannicum op cit 4 p s fo 22 W S Churchill Divi Britannici being a remark upon the lives ofall the Kings ofthis Isle from the year ofthe world 2855 unto the year ofgrace 1660 Londres 1675 fols 18990 123 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 de vinheta que se pode por em paralelo com a do Leviatii disposta assim numa faiJm urna bataIha duas tropas armadas tratase evidentemente dos normandos e dos saxoes em Hastings e no meio das duas tropas 0 cadaver do rei Ha roldo logo a monarquia Iegitima dos saxoes desapareceu efetivamente Embaixo uma cena em formato maior repre senta Guilherme sendo coroado Mas esse coroamento e en cenado da seguinte maneira uma estalua chamada Britiinia estende a Guilherme um papel no qual se Ie Leis da Ingla terra20 0 rei Guilherme recebe sua coroa de um arcebispo de York enquanto outro eclesiastico estendeIhe um papel no qual hi Juramento do rei21 De sorte que com isso repre sentase que Guilherme nao e efetivamente 0 conquistador que pretendia ser mas e 0 herdeiro legitimo um herdeiro cuja soberania esta limitada pelas leis da Inglaterra pelo re conhecimento da Igreja e pelo juramento que ele prestou Winston Churchill 0 do seculo XVII escrevia em 1675 No fundo Guilherme nao conquistou a Inglaterra foram os ingleses que conquistaram Guilherme22 E foi simplesmen te depois dessa transferencia perfeitamente legitima do poder saxao para 0 rei normando dizem os parlamentaristas que come90u realmente a conquista isto e todo um jogo de espolia90es de desmandos de abuso de direito A conquista foi essa longa deturpa9ao que seguiu a instala9ao dos nor mandos e que organizou na Inglaterra aquilo que se chama com razao naquele momento 0 normandismo au 0 juga EMDEFESA DA SOCIEDADE 122 124 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 125 nonnando23 isto e urn regime politico sistematicamente dissimetrico e sistematicamente favoravel it aristocracia e it monarquia normandas E foi contra esse nonnandismo e nilo contra Guilherme que ocorreram todas as revoltas da Idade Media foi contra esses abusos atrelados it monarquia normanda que foram impostos os direitos do Parlamento verdadeiro herdeiro da tradi9ilo saxil foi contra esse nor mandismo posterior a Hastings e ao advento de Guilher me que lutaram os tribunais inferiores quando queriam abso lutamente impor a lei comurn contra os estatutos regios Econtra ele tambem que a luta atual a do seculo XVII esta desenrolandose Ora 0 que e esse velho direito saxilo que vemos foi aceito de fato e de direito por Guilherme que vemos tam bern que os normandos quiseram sufocar ou deturpar nos anos que se seguiram it conquista e que com a Magna Carta com a institui9ilO do Parlamento e com a revolu9ilo do se culo XVII tentouse restabelecer Pois bern tratase de urna certa lei saxa E nesse ponto interveio de uma forma im portante a influencia de urn jurista que se chamava Coke e que pretendia ter descoberto que efetivamente havia desco berto urn manuscrito do seculo XIII que ele pretendia que era a formula9ilo das velhas leis saxils4 quando na realida 23 A teoria do Norman yoke Oil do Norman bondage fora difun dicta ao longo dos seculos XVI e XVII por escritores politicos Blackwood etc pelos Elizabethan Chroniclers Holinshed Speed Daniel etc pela Society of Antiquarians Detden Harrison Nowell pelos juristas Coke etc com 0 objetivo de glorify the preNorman past antes da invasao e da conquista Manuscrito Common Law 24 I have a very auntient and learned treatise of the Lawes of this kingdome whereby this Realme was governed about 1100 years past of the title and subject ofwhich booke the Author shaltel you himself in these words Which Summary I have intituled The Mirrors oflustice according to the ver de sob 0 titulo de Miroirs de justice se lratava de urna ex posi9ao de certo nfunero de priticas de jurisprudencia de direito privado e publico da Idade Media Coke 0 fez funcio nar como a exposi9ao do direito saxilo Representavam esse direito saxilo como a lei original e ao mesmo tempo histo ricamente aut1mtica dai a importilocia desse manuscrito do povo saxilo que elegia seus chefes que tinha seus pr6prios juizes e s6 reconhecia 0 poder do rei em tempos de guer ra como chefe de guerra e nilo em absoluto como exercendo uma soberania absoluta e incontrolada sobre 0 corpo social Tratavase pois de urna figura hist6rica que tentavam me diante as pesquisas sobre a antiguidade do direito fixar sob uma forma historicamente precisa Mas ao mesmo tempo esse direito saxao se mostrava e era caracterizado como a ex pressilo mesma da razilo humana no estado natural Juristas tues and substances embellies which I have observed and which have been used by holy customs since the time of King Arthur and C In this booke in effect appeareth the whole frame of the auntient common Lawes of this Realme E Coke La Neufme Part des Reports de S Edv Coke Londres 1613 Prefacio LectoriTo the Reader fols 132 pp ss Cf tambem La Tierce Part des Reports de S Edv Coke Londres 1602 Prefacio fols 917 La Huictfeme Part des Reports de S Edv Coke Londres 1611 Prefacio La Dixme Part des Reports de S Edv Coke Londres 1614 Prefacio fols 148 quanto aexposi9ao da historia ofthe nationall Lawes oftheir native country Hi que assinalar que Coke se referira a Mirrors ofiustice igualmente em seus institutes Ver em especial The Fourth Part of the Institutes of the Laws of England Londres 1644 caps VIII XI XIII XXXV mas sobretudo The Second Part ofthe institutes ofthe Laws ofEngland Londres 1642 pp 578 25 The Mirror ofJustice e urn texto escrito originariamente em frances no tim do seculo XIVprovavelmente por Andrew Hom Vma tradu9ao ingle sa de 1646 fani desse texto uma das referencias fundamentais para todos os partidirios tanto parlamentaristas quanto radicais revolucionanos do Common Law Manuscrito no lugar de que tinha seus pr6prios juizes que eram seus pr6prios juizes 126 EM DEFESA DA SOClEDADE AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 127 como Selden26 por exemplo ressaltavam que era um direi to maravilhoso e bem proximo da razao hurnana urna vez que era na ordem civil quase igual ao de Atenas e na ordem militar quase igual ao de Esparta Quanto ao conteudo das leis religiosas e morais 0 Estado saxao teria sido muito pro ximo das leis de Moises Atenas Esparta Moises 0 saxao era e claro 0 Estado perfeito Os saxoes se tomaram e nurn texto de 1647 que se diz isto urn pouco como os judeus distintos de qualquer outro povo suas leis eram dig nas enquanto leis e seu govemo era como 0 reino de Deus cujo jugo e comodo e cujo fardo e leve De sorte que co mo voces veem 0 historicismo que opunbam ao absolutismo dos Stuart tendia para urna utopia fundadora em que se mesclavam a urn so tempo a teoria dos direitos naturais um modelo historico valorizado e 0 sonbo de uma especie de reino de Deus E foi essa utopia do direito saxao suposta mente reconbecido pela monarquia normanda que deveria tomarse a base juridica da republica nova que os parlamen tares queriam estabelecer 26 M Foucault se refere provavelmente a An Historical Discourse of the uniformity of Government of England The First Part Londres 1647 2 tomas redigido por Nathaniel Bacon com base nos manuscritos de John Selden ver An Historical and Political Discourse of the Laws and Government of England collectedfrom some manuscript notes ofJohn Selden by Nathaniel Bacon Landres 1689 A prop6sito dos saxoes Selden diz que their judicial were very suitable to the Athenian but their military more like the Lacede monian p 15 ver caps IVXLIII De J Selden cf tambem Analecton An globritannicon libri duo Francofurti 1615 Jani Anglornm in Opera omnia latina et anglica Landini 1726 vol II 27 Thus the Saxons become somewhat like the Jewes divers from all other people their lawes honourable for the King easie for the subject and their government above all other likest unto that of Christs Kingdome whose yoke is easie and burthen light but their motion proved so irregular as God was pleased to reduce them by another way An Historical Discourse op cit pp 1123 Esse mesmo fato da conquista voces vaG encontralo uma terceira vez mas desta vez na posi9ao radical daqueles que foram os mais contranos nao somente amonarquia mas ate aos parlamentaristas ou seja nos discursos mais peque noburgueses ou se voces preferirem mais populares dos Levellers dos Diggers etc Mas dessa vez 0 historicismo so no limite extremo vai cair nessa especie de utopia dos direi tos naturais de que eu falava M pouco No fundo entre os Levellers vamos encontrar de certo modo ao pe da letra a propria tese do absolutismo monarquico Os Levellers vaG dizer isto Efetivamente a monarquia tem razao quando diz que houve invasao derrota e conquista E verdade houve urna conquista e e disso que se deve partir Mas a monar quia absoluta se serve do fato da conquista para nele ver 0 fundamento legitimo de seus direitos Para nos ao contnirio ja que vemos que M conquista ja que houve efetivamen te derrota dos sax5es perante os normandos cumpre consi derar que essa derrota e essa conquista nao sao de modo algum 0 ponto inicial do direito do direito absoluto mas sim de um estado de naodireito que invalida todas as leis e todas as diferen9as sociais que marcam a aristocracia 0 re gime da propriedade etc Todas as leis tais como funcio nam na Inglaterra e um texto de John Warr A corrupiio e a deficiencia das leis inglesas que diz isto devem ser consideradas como tricks armadilhas maldades28 As leis 28 The laws ofEngland are full of tricks doubts and contrary to them selves for they were invented and established by the Nonnans which were of all nations the most quarrelsome and most fallacious in contriving of contro versies and suits J WaIT The Corrnption and Deficiency of the Laws of England Londres 1649 p 1 cf em especial caps II e III Ver tambem Administration Civil and Spiritual in Two Treatises Londres 1648 I XXXVII Assina1arnos que a frase de Warr e citada em parte par Ch Hill in Puritanism and Revolution Londres Seeker and Warburg 1958 p 78 29 Ver em especial J Lilbume The Just Mans Justification Londres 1646 pp 113 ver tambem A Discourse betwixt John Liburne close priso ner in the Tower ofLondon and Mr Hugh Peters Landres 1649 Englands Birthright Justified against all arbitrary usurpation Landres 1645 Regal Tyrannie Discovered Londres 1647 Englands New Chains Discovered Londres 1648 A maioria dos panfletos dos Levellers foram reunidos in W Haller G Davies eds The Levellers Tracts 16471653 Nova York Co lumbia University Press 1944 30 Guilhenne 0 Conquistador e seus sucessores made Dukes Earles Barrons and Lords of their fellow Robbers Rogues and Thieves Regall Ty rannie op cit p 86 A atribuiyao desse panfleto a 1 Lilbume nao esegura R Overton provavelmente colaborou em sua redayao sao armadilhas nao sao de modo algum limites de poder mas instrumentos de poder nao sao meios de fazer reinar a jus ti9a mas meios de fazer servir aos interesses Em conse qiiencia 0 objeto principal da revolu9ao deve ser a supres sao de todas as leis p6snormandas na medida em que de maneira direta ou indireta elas asseguram 0 Norman yoke o jugo normando As leis dizia Lilburne sao feitas pelos con quistadores29 Supressao por conseguinte do aparelho legal inteiro Em segundo lugar supressao tamhem de todas as dife ren9as que opoem a aristocracia e nao s6 a aristocracia mas a aristocracia e 0 rei 0 rei como senda urn dos aristo cratas ao resto do povo pois os nobres e 0 rei nao tern com 0 povo uma rela9ao de prote9ao mas uma simples e constante rela9ao de rapina e de roubo Nao e a prote9ao re gia que se estende sobre 0 povo e a extorsao nobiliaria de que 0 rei se beneficia e que 0 rei garante Guilherme e seus sucessores dizia Lilburne fizeram de seus companheiros de banditismo de pilhagem e de roubo duques baroes e 10rdesJO Em conseqiiencia 0 regime da propriedade ainda e atualmente 0 regime guerreiro da ocupa9ao do confisco e da pilhagem Todas as rela90es de propriedade bern como todo o conjunto do sistema legal devem ser reconsideradas re tomadas na base As rela90es de propriedade sao inteiramen te invalidadas pelo fato da conquista Em terceiro lugar temse dizem os Diggers a prova de que 0 governo as leis 0 estatuto da propriedade sao no fundo apenas a continua9ao da guerra da invasao e da der rota no fato de que 0 povo sempre compreendeu como efei tos da conquista seus govemos suas leis e suas rela90es de propriedade 0 povo de certo modo denunciou sem cessar o caritter de pilhagem da propriedade de extorsao das leis e de domina9ao do governo E ele 0 mostrou pura e simples mente porque nao parou de se revoltar e a revolta nada mais e para os Diggers que essa outra face da guerra cuja face permanente e a lei 0 poder e 0 governo Lei poder e governo significam a guerra a guerra de uns contra os ou tros Portanto a revolta nao vai ser a ruptura de urn sistema pacifico de leis por urna causa qualquer A revolta vai ser 0 reverso de urna guerra que 0 govemo nao para de travar 0 governo e a guerra de uns contra os outros a revolta vai sig nificar a guerra dos outros contra uns Eclaro as revoltas ate agora nao obtiveram resultado nao s6 porque os normandos ganharam mas tamhem porque as pessoas ricas se benefi ciaram por conseguinte do sistema normando e deram por trai9ao sua ajuda ao normandismo Houve trai9aO dos ricos houve trai9ao da Igreja E mesmo aqueles elementos que os parlamentares valorizavam como sendo uma limita9ao ao direito romano mesmo a Magna Carta 0 Parlamento a pnitica dos tribunais tudo isso no fundo e ainda e sempre o sistema normando e suas extorsoes que intervem sim plesmente com a ajuda de uma parte da popula9ao a mais favorecida e a mais rica que traiu a causa saxa e passou para 0 lado normando De fato tudo que e aparente conces sao nao passa de trai9ao e astucia de guerra Por conseguin te longe de dizer com os parlamentares que e preciso con 129 AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 128 130 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 4 DE FEVEREIRO DE 1976 131 tinuar as leis e impedir que 0 absolutismo monirrquico pre vale9a contra elas os Levellers e os Diggers vao dizer que e preciso se livrar das leis atraves de uma guerra que respon ded a guerra Curnpre travar a guerra civil ate 0 fim contra 0 poder normando Ea partir dai que 0 discurso dos Levellers vai desagre garse em virrias dire90es que flcaram em sua maioria pouco elaboradas Uma foi urna dire9ao propriarnente teo 16gicoracial isto e urn pouco a maneira dos parlarnentaris tas Volta as leis saxas que sao as nossas e sao justas porque sao tambem leis naturais E depois vese aparecer uma ou tra forma de discurso que fica urn pouquinbo em suspenso e que diz isto 0 regime normando e urn regime de pilbagem e de extorsao e a san9ao de uma guerra e sob esse regime que encontramos Encontramos historicamente as leis saxas Entao nao se poderia fazer a mesma analise a respeito das leis saxas As leis saxas nao erarn tambem elas a san9ao de urna guerra urna forma de pilhagem e de extorsao 0 re gime saxao nao era em ultima analise urn regime de domi na9iio da mesma forma que 0 normando Nao se deve por conseguinte remontar a mais longe ainda e dizer e isso que encontramos em certos textos dos Diggers3l que no fundo a domina9ao come9a com toda forma de poder isto e que nao hil formas hist6ricas de poder sejam elas quais 31 Os textos mais conhecidos dos Diggers aos quais M Foucault po dena estar se referindo aqui sao aS dais manifestos anonimos Light Shining in Buckinghamshire sl 1648 More Light Shining in Buckinghamshire sl 1649 cr tambem G Winstanley et aZ To his Excellency the Lord Fairfax and the Counsell of Warre the brotherly request of those that are called Diggers sheweth Londres 1650 G Winstanley Fire in the Bush Landres 1650 The Law ofFreedom in a Platform or True Magistracy Restored Lan dres 1652 cf GH Sabine ed The Works of Gerrard Winstanley with an appendix ofdocuments relating to the Digger Movement Ithaca N Y Cornell University Press 1941 forem que nao se possarnanalisar em termos de domina9ao de uns sobre os outros E claro essa formula9ao fica em suspenso Encontrarnola a titulo de frases conc1usivas elas nunca ocasionararn efetivamente urna analise historica nem uma priltica politica coerente Ainda assim voces veem for mularse ai pela primeira vez a ideia de que toda lei seja ela qual for toda forma de soberania seja ela qual for todo tipo de poder seja ele qual for devem ser analisados nao nos termos do direito natural e da constitui9ao da soberania mas como 0 movimento indefinido e indefinidamente his torico das rela90es de domina9ao de uns sobre os outros Se eu insisti muito sobre esse discurso Ingles em torno da guerra das ra9as foi porque creio que nele se ve funcio nar pela primeira vez no modo politico e no modo hist6ri co ao mesmo tempo como prograrna de a9ao politica e como busca de saber historico 0 esquema bimrio urn certo es quema binirrio Esse esquema da oposi9ao entre os ricos e os pobres decerto ja existia e havia pontuado a percep9ao da sociedade tanto na Idade Media como nas cidades gregas Mas era a primeira vez que urn esquema binario nao era sim plesmente uma maneira de articular urna queixa urna rei vindica9ao de constatar urn perigo Era a primeira vez que esse esquema binilrio que pontuava a sociedade podia arti cularse sobretudo a partir dos fatos de nacionalidade lingua pais de origem hibitos ancestrais espessura de urn passado comum existencia de urn direito arcaico redescoberta das velhas leis Urn esquema binilrio que permitia de outra par te decifrar em toda a sua extensao hist6rica todo urn con junto de institui90es com a sua evolu9ao Permitia tarnbem analisar as institui90es atuais em termos de enfrentamento e de guerra a urn so tempo cientificarnente hipocritamente mas violentamente travada entre as ra9as Enfim urn esque ma binario que fundamentava a revolta nao apenas no fato de que a situa9ao dos mais infelizes se havia tornado intole 132 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 4 DE FEVERERO DE 976 133 ravel e que curnpria mesmo que eles se revoltassem ja que niio podiam fazerse ouvir era se voces quiserem 0 discurso das revoltas da Idade Media Ai agora temos urna revolta que vai se formular como urn tipo de direito absoluto tem se 0 direito Ii revolta niio porque niio foi possivel fazerse ouvir e porque e necessario romper a ordem se se quiser restabelecer urna justi9a mais justa A revolta agora se jus tifica como urna especie de necessidade da hist6ria corres ponde a certa ordem social que e a da guerra Ii qual ela dara fim como uma derradeira peripecia Em conseqiiencia a necessidade 16gica e hist6rica da revolta vern inserirse no interior de toda urna analise hist6 rica que poe a nu a guerra como tra90 permanente das rela 90es sociais como trama e segredo das institui90es e dos sistemas de poder E eu creio que esse era 0 grande adver sario de Hobbes Foi contra isso que e 0 adversario de todo discurso filos6ficojuridico que fundamenta a soberania do Estado que ele disp6s toda urna frente de batalha do Leviatii Era contra isso que Hobbes dirigia portanto sua analise do nascimento da soberania E se ele quis tanto eliminar a guer ra era porque queria de urna forma precisa e pontual eli minar esse temvel problema da conquista inglesa categoria hist6rica dolorosa categoria juridica dificil Era preciso evi tar esse problema da conquista em tomo do qual em ultima analise se haviam dispersado todos os discursos e todos os programas politicos da primeira metade do seculo XVII Era isso que se devia eliminar e de urn modo mais geral e a mais longo prazo 0 que se devia eliminar era 0 que eu denominaria 0 historicismo politico au seja essa especie de discurso que se ve delinearse atraves das discussoes de que eu Ihes faiei que se formula em algumas das fases mais radicais e que consiste em dizer assim que se lida com rela 90es de poder niio se esta no direito e niio se eslit na sobe rania estase na dominay8o estase nessa re1ayao historica mente indefinida indefinidamente espessa e multipla de do mina9iio Niio se sai da domina9iio portanto niio se sai da hist6ria 0 discurso filos6ficojuridico de Hobbes foi urna maneira de brecar esse historicismo politico que era pois 0 dscurso e 0 saber efetivamente ativos nas lutas politicas do seculo XVII Tratavase de brecaIo exatamente como no se culo XIX 0 materialismo dialetico brecara tambem ele 0 discurso do historicismo politico 0 historicismo politico encontrou dois obstaculos no seculo XVII 0 obstaculo do dscurso filos6ficojuridico que tentou desqualificitIo no seculo XIX sera 0 materialismo dialetico A opera9iio de Hobbes consistiu em explorar todas as possibilidades mes mo as mais extremas do discurso filos6ficojuridic para fazer calar 0 dlSCurSO do historicismo politico Pois bern e desse discurso do historicismo politico que eu gostaria de fazer tanto a hist6ria quanta 0 elogio AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 A narrativa das origem 0 milo troiano A heredita riedade da Franra FrancoGalta A invasiio a historia e 0 direito publico 0 dualismo nacional 0 saber do prin cipe Estado da Franra de Boulainviliers 0 cartorio a repartiriio publica e 0 saber da nobreza Urn novo sujeito da historia Hisaria e constituiriio Eu you come9ar com uma narrativa que circulou na Fran9a desde 0 inicio da Idade Media ou quase ate 0 Re nascimento ainda ou seja a historia dos franceses que des cendiam dos francos e dos francos que eram por sua vez troianos que conduzidos pelo rei Franco filho de Priamo haviam deixado Troia no momenta do incendio da cidade se refugiado inicialmente nas margens do Danubio depois na Germinia nas margens do Reno e finalmente encontrado ou melhor fundado na Fran9a a sua pitria Essa narrativa niio quero tentar saber 0 que ela podia significar na Idade Media ou 0 papel que podia ter essa lenda tanto do periplo quanta da funda9iiO da pitria Quero simplesmente interro garme sobre este ponto e surpreendente afinal que essa narrativa possa ter sido retomada possa ter continuado a cir cular numa epoca como 0 Renascimento 1 Niio em absolu 1 Conhecemse desde a Hisaria Francorum do pseudo Fredegario 727 ate a Franciade de Ronsard 1572 pelo menos uns cinqiienta testemu nhas sabre a lenda da origem troiana dos francos Ou M Foucault se refere a essa tradilao ou se apoia num texto precise que poderia ser aquele de que A Thierry fala em Recits des temps merovingiens precedes de Consierations sur lhistoire de France Paris 1840 au seja Les grandes chromques de SaintDenis redigidas na segunda metade do seculo XII e publicadas por Paulin Paris em 1836 reed J Viard em 1920 Podese ler grande parte des sas narrativas em Dam M Bouquet Recueil des historiens des Gaules et de fa France Paris 17391752 tIl e Ill to por causa do carater fantastico das dinastias ou dos fatos hist6ricos aos quais ela se refena mas antes porque nssa lenda no fundo ha urna elisao completa de Roma e da Gaha da Glia a principio inimiga de Roma da Galia invasora da Iralia e sitiadora de Roma elisao tambem da Galia enquanto colonia romana elisao de Cesar e da Roma imperial E eli sao por conseguinte de toda urna liteatura romana que era porem perfeitamente conheclda na epoca Eu creio que se pode compreender a ehsao de Roma dessa narrativa troiana somente se se renuncla a conslderar essa narrativa das origens como urna especie de tentativa de historia que ainda estatia envolvida com velhas crenas Pa receme ao contrario que e urn discurso que tem urna fun ao precisa que nao e tanto de narrar 0 passado ou contar as origens quanto de dizer 0 direito dizer 0 dreto do poder e no fundo urna liao de direito publico Foi enquanto h o de direito publico creio eu que essa narrtiva circulou E e porque se trata de urna liao de dreto pubhco que no fundo Roma esra ausente dela Mas esra igualmente presente sob urna forma de certo modo desdobrada deslocada gemea Roma esta la mas em espelho e em imagem Dizer com efeito que os francos tambem sao como os romanos fugl tivos de Troia dizer que a Frana e de certo modo em rela 90 ao troneD troiano 0 Dutro ramo em face de m ro que seria 0 ramo romano significa dizer duas ou tres COlsas que sao politica e juridicamente acho eu unportantes Dizer que os francos tambem sao como as roanos fugitivos de Troia significa primeiramente que no da em 2 Sabei que eIe e imperador em seu reino e que pode fazer tudo e tanto quanto ao direito imperial pertence 1 Boutillier Somme rorale ou Ie Grand coutumier general de pratiques civiles seculo XIV Bruges 1479 Esse texto na edi9ao de 1611 ecitado por A Thierry em Considerations sur lhistoire de France op cit 137 AULA DE 11 DE FEVEREIRODE 1976 que 0 Estado Romano que era apenas afinal de contas um irrnao quando muito urn irmao mais velho desaparece os Qutros Innaos os irmaos mais m090S naturalmente por causa do direito mesmo das gentes 0 herdaram A Frana por urna especie de direito natural e reconhecido por todos sucede ao Imperio E isto quer dizer duas coisas Primeiro que 0 reI da Frana herda sobre seus suditos direitos e po deres que eram os do imperador romano sobre os seus a soberania do rei da Frana acaba sendo do mesmo tipo da so beranla do lmperador romano 0 direito do rei e 0 direito romano E a lenda de Troia e urna maneira de narrar com imagens ou de por em imagens 0 principio que fora for mulado na Idade Media em especial por Boutillier quando dlZla que 0 rei da Frana e imperador em seu reino Tese importante voces compreendem ja que se trata em suma do acompanhamento historicomitico ao longo de toda a Ida de Media do desenvolvimento do poder monarquico que se formou baseado no modo do imperium romano e reativando os direitos imperiais que haviam sido codificados na epoca de Justiniano Mas dizer que a Frana herda 0 Imperio e dizer tambem que a Fraa irma ou prima de Roma tem direitos iguais aos da propna Roma E dzer que a Frana nao depende de urna monarquia universal que quisesse depois do Imperio ressuscitar 0 Imperio Romano A Frana e tao imperial quan to todos os outros descendentes do Imperio Romano e tao imperial quanto 0 Imperio Alemao nao e em nada sUbordi nada aos Cesares germanicos Nenhurn lao de vassalismo pode vinculala legitimamente it monarquia dos Habsburgo EM DEFESA DA SOCIEDADE 136 3 A Thierry ibid p 41 ed de 1868 e subordimiIa por conseguinte aos grandes sonbos de mo narquia universal que eram acalentados naquele momento por ela Ai esm portanto por que nessas condi90es era pre ciso que Roma fosse elidida Mas era preciso que fosse eli dida tambem a Galia romana a de Cesar e ada coloniza9ao para que de maneira alguma a Galia e os sucessores dos gau leses pudessem parecer estar ainda e sempre sob a subor dina9ao de urn imperio E curnpria iguaJrnente que as invasoes francas que rompiam no interior a continuidade com 0 Im perio Romano fossem elididas A continuidade interior do imperium romano ate a monarquia francesa excluia a ruptura das invasoes Mas a naosubordina9ao da Fran9a ao Impe rio aos herdeiros do Imperio e em especial a monarquia universal dos Habsburgo implicava que nao aparecesse a subordina9ao da Fran9a a antiga Roma portanto que a Galia romana desaparecesse noutras palavras que a Fran9a fosse urna especie de outra Roma outra querendo dizer inde pendente de Roma mas ainda assim Roma 0 absolutismo do rei valia pois como em Roma mesma Ai esm em linbas gerais a fun9ao das aulas de direito publico que se podem encontrar na reativa9aO ou no prosseguimento dessa mito logia troiana ate tarde no Renascimento e isso nurna epoca em que os textos romanos sobre a GaIia a GaIia romana eram bern conbecidos Dizem as vezes que foram as Guerras de Religiao que permitiram derrubar essas velhas mitologias que acho eu eram urna li9ao de direito publico e que introduziram pela primeira vez 0 tema daquilo que Augustin Thierry denomi nanl mais tarde a dualidade nacional3 0 tema se voces quiserem de dois grupos hostis que constituem a estrutura permanente do Estado mas eu nao creio contudo que isso 4 F Hotman FrancoGallia Genebra 1573 trad fr La GauZefran 90ise Colonia 1574 reed La Gaulefranraise Paris Fayard 1981 5 Cf Reali Rhenani Rerum Germanicarum ibri res Basileia 1531 Cumpre todavia referirse a edilao de Dim de 1693 para encontrar no co mentario e nas notas redigidas pelos membros do Colegio Hist6rico Imperial a genealogia e 0 elogio da Europae Corona dos Habsburgo cf Beati Rhena 139 AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 seja absolutamente exato A referencia quando se diz que foram as Guerras de Religiao que permitiram pensar a dua lidade nacional e urn texto de Fran90is Hotman Franco Gallia4 datado de 1573 cujo proprio titulo parece indicar que era nurna especie de dualidade que 0 autor pensava Com efeito nesse texto Hotman retoma a tese germanica que cir culava naquele momento no Imperio dos Habsburgo e que era no fundo 0 equivalente 0 frente a frente 0 visiivis da tese troiana que circulava na Fran9a Essa tese germanica que fora formulada certo ntimero de vezes em especial por alguem que se chamava Beatus Rhenanus diz isto Nos nao somos romanos nos alemaes somos germanos Mas par causa da forma imperial que herdamos somos os sucesso res naturais e juridicos de Roma Ora os francos que inva diram a GaIia sao germanos como nos Quando eles invadi ram a Galia por certo deixaram sua Germania natal mas de urn lado na medida em que eram germanos continuaram germanos Permanecem em conseqiiencia no interior de nosso imperium e como de Dutro lado e1es invadiram e ocuparam a Galia venceram os gauleses eles proprios exer cern necessariamente sobre essa terra de conquista e de coloniza9ao 0 imperium 0 poder imperial de que sao en quanto germanos eminentemente revestidos Por conseguin te a Galia a terra gaulesa a Fran9a agora devem por uma dupla razao tanto por urn direito de conquista e de vitoria quanto pela origem germanica dos francos subordina9ao a monarquia universal dos Habsburgo5 EM DEFESA DA SOCIEDADE 138 ni libri Ires Institutionum Rerum Germanicarum novantiquarum historico geographicarum juxta primarium Collegi Historici Imperiais scopum illus tralarum Vim 1693 em especial pp 569600 Ver tambem os comentarios em anexo aedi8o de Estrasburgo Argentoratii 1610 6 Cf F Hatman FrancoGallia op cit cap N De ortu Francorum qui Gallia occupata eius nomen in Franciam vel FrancogaUiam mutarunt pp 4052 ed de 1576 7 E Pasquier Recherches de la France Paris 156015673 vol Pas quier foi aluno de Hotman Eessa tese que curiosamente ate certo ponto natural mente Fran90is Hotman vai retomar reintroduzir na Fran9a em 1573 A partir daquele momento e pelo menos ate 0 ini cio do seculo XVII ela vai ter urn sucesso considenivel Hotman retoma a tese alema e diz Com efeito os francos que em dado momento invadiram a Galia e constituiram uma nova monarquia nao sao troianos sao germanos Eles venceram os romanas e as expulsaram Reproduao quase literal da tese germilnica de Rhenanus Eu disse quase pois ha todavia urna diferen9a que e fundamental Hotman nao diz que os francos venceram os gauleses diz que ven ceram os romanos6 A tese de Hotman e com toda a certeza importante porque introduz quase na mesma epoca em que 0 vemos aparecer na Inglaterra 0 tema fundamenlil da invasao que e ao mesmo tempo a cruz dos juristas e a noite dos reis no curso da qual desaparecem uns Estados e nascem outros E de fato em tome disso que vao entabularse todos os deba tes juridicopoliticos Dai em diante a partir dessa descon tinuidade fundamental e evidente que ja nao se podera ex por urna aula de direito publico que teria como fun9ao ga rantir 0 carater ininterrupto da genealogia dos reis e de seu poder Dai em diante 0 grande problema do direito publico vai ser 0 problema daquilo a que urn sucessor de Hotman Etienne Pasquier chama a outra continuatao7 ou seja Manuscrito no 1ugar de 0 problema das duas naoes estrangciras 0 problema de que houve na Frana duas na6es estrangeiras 141 o que acontece quando urn Estado sucede a outro Estado 0 que acontece e como fica 0 direito publico e 0 poder dos reis quando os Estados nao se sucedem pelo efeito de uma especie de continuidade que nada interrompe mas nascem tern sua fase de poderio depois sua decadencia e por fim desaparecem inteiramente Hotman formulou de fato esse problema mas eu nao penso que tenha formulado urn pro blema diferente muito diferente daquele se voces quiserem da natureza ciclica e da vida precaria dos Estados 0 pro blema das duas na90es estrangeiras no interior do Estado De urn modo geral alias nenhum dos autores contemporii neos das Guerras de Religiao admitiu a ideia de que urna dualidade de ra9a de origem de na9ao viria perpassar a monarquia Era impossivel porque de urna parte os parti danos de urna religiao unica que evidentemente expunham a principia uma fe urna lei urn rei naa padiam reivin dicar a unidade de religiao admitindo uma dualidade intema na na9ao de outra parte aqueles que ao contrario reclama yam a possibilidade de 0P9aO religiosa a liberdade de cons ciencia so podiam fazer que admitissem sua tese com a condi9ao de dizer Nem a liberdade de consciencia nem a possibilidade de 0P9ao religiosa nem a propria existencia de duas religioes num corpo de na9ao podem de forma algu rna comprometer a unidade do Estado A unidade do Estado nao e ferida pela liberdade de consciencia Logo que se adote a tese da unidade religiosa ou ao contrano que se sus tente a possibilidade de uma liberdade de consciel1cia a tese da unidade do Estado foi fortalecida ao longo de todas as Guerras de Religiao Quando Hotman contou sua historia 0 que quis dizer foi coisa muito diferente Foi uma maneira de propor urn AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 140 8 Semper reges Franci habuerunt j non tyrannos aut camefices sed libertatis suae custodes praefectos tutores sibi constituerunt F Hotman FrancoGallia ed citada p 54 9 Cr ibid p 62 lO Julio Cesar Commentarii de bello gallica cf em especiallivros VI VII VIII 11 F Hotman FrancoGallia ed citada pp 55 M 62 modelo juridico de governo oposto ao absolutismo romano que a monarquia francesa queria reconstituir A historia da origem germiinica da invasao e urna forma de dizer Nao nao e verdade 0 rei da Fran9a nao tern 0 direito de exercer sobre seus suditos urn imperium de tipo romano 0 proble ma de Hotman nilo e pois a disjun9ao de dois elementos he terogeneos no povo e a delimita9ao interna do poder mo narquic08 Dai 0 modo como ele conta a fabula quando diz Os gauleses e os germanos eram de fato originalmente povos irmaos Estabeleceramse em dnas regioes vizinhas deste lado e do lado de la do Reno Portanto nao havera ne nhurna caracteristica de invasao estrangeira quando os ger manos forem it Galia Na realidade irao quase it casa deles em todo caso it casa de seus irmaos9 Mas entao quem era estrangeiro para os gauleses Os estrangeiros sao os romanos que impuseram com a invasao e com a guerra a guerra nar rada por CesarIO urn regime politico que e 0 do absolutis mo eles estabeleceram eles os estrangeiros algo estra nho it Galia 0 imperium romano Os gauleses resistiram du rante seculos mas de urna forma que nao teve muito sucesso Foram por fim seus irmaos germiinicos que la pelos secu los IV e V come9aram a empreender em favor dos irmaos gauleses uma guerra que foi urna guerra de liberta9ao E os germanos vieram pais naD como invasores mas como urn povo irmao que ajuda urn povo irmao a libertarse dos inva sores e dos invasores romanos11 Eis portanto expulsos 12 Ibid pp 65 e 55 oode Hotman descreve em particular a continui dade dos poderes do conselho publico atraves das diferentes dinastias 143 AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 os romanos os gauleses eiIos libertados e com os irmaos germiinicos eies nao formam mais do que urna linica e mes rna na9ao cujas constitui90es e leis fundamentais como come9am a dizer os juristas da epoca sao as leis funda mentais da sociedade germiinica Isto e soberania do povo que se reline regularmente no Campo de Marte ou nas as sembleias de maio soberania do povo que elege seu rei como quer e que 0 depoe quando e necessario soberania de urn povo que so e regido por magistrados cujas fun90eS sao temporarias e sempre it disposi9ao do conselho E foi essa constitui9ao germamca que os reis depois violaram para con seguir construir 0 absolutismo de que a monarquia francesa do seculo XV12 e urn testemunho Everdade que na histo ria contada por Hotman nao se trata absolutamente de esta belecer urna dualidade Mas ao contrario de atar firmemen te uma unidade de certo modo germanofrancesa franco gaulesa francogaliana como ele diz Tratase de estabelecer urna unidade profunda e ao mesmo tempo de contar de certo modo sob a forma de historia 0 desdobramento do pre sente E claro que aqueles romanos invasores de que fala Hotman sao 0 equivalente transposto para 0 passado da Roma do papa e de seu clero Os germanos fraternais e li bertadores sao evidentemente a religiao reformada vinda de aJemReno a unidade do reino com a soberania do povo e 0 projeto politico de urna monarquia constitucional sus tentado por nurnerosos circulos protestantes da epoca Esse discurso de Hotman e importante porque organi za de urna forma que decerto vai ser definitiva 0 projeto de limitar 0 absolutismo monarquico it redescoberta no passa do de certo modelo historico preciso que em dado momento EM DEFESA DA SOCIEDADE 142 13 Jean du Tillet Les memoires et recherches Rauen 1578 Recueil des Rays de France Paris 1580 Remonstrance ou Advertissement d fa noblesse tant du parti du Roy que des rebelles Paris 1585 Jean de Serres Memoires de fa troisierne guerre civile et des demiers troubles de fa France Paris 1570 Inventaire general de lhistoire de France Paris 1597 teria fixado os direitos reciprocos do rei e de seu povo e que teria sido mais tarde esquecido e violado 0 vinculo que vai existir desde 0 seculo XVI entre a delirnita9ao do direito da monarquia a reconstitui9ao de urn modelo passado e de certo modo a revolu9ao enquanto exuma9ao de uma cons titui9ao fundamental e esquecida e isso que e organizado acho eu no discurso de Hotman e de forma algurna urn dualismo Essa tese germanica no inicio tinha origem pro testante Na verdade ela circulou muito depressa nao so mente nos meios protestantes mas tambem nos meios cat6 licos a partir do momenta em que sob 0 reinado de Henri que III e sobretudo no momento da conquista do poder por Hennque IV os cat6licos ao contrario tiveram interesse em procurar urna limita9ao do poder monarquico e brusca mente voltaramse contra 0 absolutismo monarquico De sor te que essa tese protestante da origem germiinica voces a encontram nos historiadores cat6licos como Jean du Tillet Jean de Serres l3 etc A partir do final do primeiro ter90 do seculo XVII essa tese vai ser objeto de urn empreendirnento que visa se nao exatamente desqualificala pelo menos con tamar essa origem germanica 0 elemento gennanieD com o que ele comportava de duplamente inaceitavel para 0 poder monarquico inaceitavel quanta ao exercicio do poder e aos principios do direito publico inaceitavel igualmente com rela9ao a politica europeia de Richelieu e de Luis XIV Para contomar essa ideia da funda9ao germanica da Fran9a foram empregados vanos meios sobretudo dois urn 14 P Audigier De lorigine des Franois et de leur empire Paris 1676 15 JE Tarault Annales de France avec les alliances genealogies conquetes fondations ecclisiastiques et civiles en un et lautre empire et dans es royaumes etrangers depuis Pharamondjusquau roi Louis treizieme Paris 1635 145 AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 urna especie de volta ao mito troiano que de fato se reati va em meados do seculo XVII mas sobretudo a funda9ao e a introdu9ao de urn tema absolutamente novo e que vai ser fundamental Tratase do tema daquilo a que eu chamaria urn galocentrismo radical Os gauleses que Hotman mos trara como parceiros importantes na prehist6ria da monar quia francesa eram de certa forma urna materia inerte urn substrato gente que fora vencida ocupada e que precisou ser libertada do exterior Mas a partir do seculo XVII esses gauleses vao se tomar 0 principio capital motor de certo modo da hist6ria E por urna especie de inversao das pola ridades e dos valores os gauleses e que serao 0 elemento primeiro fundamental e os germanos ao contnirio vao ser apresentados apenas como urna especie de prolongamento dos gauleses Os germanos sao somente urn epis6dio na his t6ria dos gauleses Essa e a tese que voces encontram em gente como Audigierl4 ou TarauJt15 etc Audigier conta por exempl0 que os gauleses foram os pais de todos os povos da Europa Certo rei da Galia que se chamava Ambigato viuse diante de urna na9ao tao rica tao plena tao plet6rica com urna popula9ao tao exuberante que precisou liquidar uma parte dela Ele enviou assim urn de seus sobrinhos aItalia e outro urn certo Sigovegio aGermania E foi a partir dai dessa especie de expansao e de coloniza9ao que os gaule ses e a na9ao francesa teriam sido de certo modo a matriz de todos os outros povos da Europa e mesmo mais alem da Europa Foi assim diz Audigier que a na9ao francesa teve EM DEFESA DA SOCIEDADE 144 16 P Audigier De lorigine des Franojs op cit p 3 Manuscrito no lugar de seculos IV e V seculos V e VI 0 que corresponde aepoca da conquista uma mesma origem com tudo 0 que 0 mundo jamais teve de mais terrivel de mais bravo e de mais glorioso ou seja os viindalos os godos os borguinhoes os ingleses os hern los os silingos os hunos os gepidas os alanos os quados os ur6es os rufienos os turingios os lombardos as turcos os tartaros os persas e mesma os normandos16 Logo os francos que nos seculos IV e V vao invadir a Galia nao passavam de descendentes dessa especie de Ga lia primitiva eram simplesmente gauleses avidos de rever seu pais Nao se tratava em absoluto para eles de libertar urna Galia escravizada de libertar irmaos vencidos Tratava se meramente de urna saudade profunda e tambem do desejo de beneficiarse de urna civiliza9ao galoromana prospera Os primos os filhos prodigos retornavam Mas ao retornar nao derrubaram de modo algum 0 direito romano implantado na GaJia mas ao contnmo 0 reabsorveram Reabsorveram a Galia romana ou deixaramse reabsorver nessa GaJia A conversao de Clovis e a manifesta9ao do fato de que os antigos gauleses tornados germanos e francos readotavam os valores e 0 sistema politico e religioso do Imperio Ro mano Ese no momenta do retorno os francos tiveram de lutar nao foi contra os gauleses nem sequer contra os roma nos cujos valores eles absorviam foi contra os burglindios e os godos que eram hereges enquanto arianos ou contra os sarracenos increus Foi contra estes que travaram a guerra E para recompensar os guerreiros que haviam lutado assim contra godos burglindios e sarracenos os reis Ihes deram os feudos A origem daquilo que ainda nao se chama naque la epoca feudalismo foi assim estabelecida numa guerra 17 Cf Cesar De bello galUco liv I 1 18 Na realidade e0 bispo Ragvaldsson que no concilio de Basihia em 1434 a proposito da questiio sabre a fibrica do genera humano indica a Escandimivia como beo original da humanidade fundamentandose numa crOnica de Jordanis do seculo VI Hac igitur Scandza insula quasi officina gentium aut certe velut vagina natianum Gothi quondam memorantur egressi De arigine actibusque Getarum in Manumenta Germaniae Hista rica Auctarum antiquissimorum tami V pars I Berolini 1882 pp 53138 citaliia p 60 Em tomo dessa questiio vai abrirse um amplo debate depois da redescoberta do texto de Tacita De origine et situ Germaniae editado em 1472 147 AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 Essa fabula permitia afirmar 0 carMer autoctone da po pula9ao gaulesa Permitia tambem afirmar a existencia de fronteiras naturais da GUia as descritas por Cesar e que eram igualmente 0 objetivo politico de Richelieu e de Luis XIV em sua politica exterior Tratavase igualmente nessa narrativa nao so de apagar qualquer diferen9a racial mas sobretudo de apagar qualquer heterogeneidade entre urn di reito germanico e urn direito romano Era necessario mos trar que os germanos haviam renunciado ao seu proprio direito para adotar 0 sistema juridicopolitico dos romanos E enfim era necessario fazer os feudos e as prerrogativas da nobreza derivarem nao dos direitos fundamentais e arcaicos dessa mesma nobreza mas simplesmente de urna vontade do rei cujos poder e absolutismo seriam anteriores a propria or ganiza9ao do feudalismo Tratavase Ultimo ponto de fazer a pretensao a monarquia universal passar para 0 lado frances Desde que a Galia era 0 que Tacito denominava a prop6sito alias sobretudo da Germiinia a vagina nationum 18 e desde que a Galia era mesmo com efeito a matriz de todas as na 90eS a quem deveria caber a monarquia universal senao aque Ie ao monarca que herdava essa terra da Galia Claro em torno desse esquema houve muitas varia90es nas quais nao me detenho Se fiz essa narrativa um tanto EM DEFESA DA SOCIEDADE 146 longa foi porque eu queria reportala ao que se passava na Inglaterra na mesma epoca Entre 0 que se dizia na Ingla terra sobre a origem e a fundaao da monarquia inglesa e 0 que se diz em meados do seculo XVII sobre a fundaao da monarquia francesa M pelo menos urn ponto em comum e uma diferena fundamental 0 ponto em comum e eu acho que ele e importante e 0 fato de que a invasao com suas formas seus motivos suas conseqiiencias tornouse um problema historico na medida em que esta em jogo um fato juridicopolitico importante compete it invasao dizer 0 que sao a natureza os direitos os limites do poder monitrquico compete de fato it historia da invasao dizer 0 que sao os conselhos do rei as assembleias as cortes soberanas com pete it invasao dizer 0 que e a nobreza quais sao os direitos da nobreza perante 0 rei os conselhos do rei e 0 povo Em resumo e it invasao que se pede que formule os proprios principios do direito publico Na epoca em que Grotius Pufendorf Hobbes procura yam no direito natural as regras de constituiao de um Esta do justo comeava em contraponto e em oposiao uma enorme investigaao historica sobre a origem e a validade dos direitos efetivamente exercidos e isto no ambito de urn fato historico ou se voces preferirem de uma certa fatia de historiaque vai ser a regiao juridica politicamente mais sensivel de toda a historia da Frana E 0 periodo que val grosso modo de Meroveu a Carlos Magno do seculo V ao seculo IX do qual se disse sem parar repetiam isso desde o seculo XVII que era 0 periodo mais desconhecido Des conhecido Talvez Mas certamente 0 mais percorrido Em todo caso entram agora pela primeira vez acho eu no horizonte de uma historia da Frana que fora destinada ate entao a estabelecer a continuidade do poder do imperium regio e so relatava historias de troianos e de francos novas personagens novos textos novos problemas as personagens 19 Gregoire de Tours Histaria Francornm 575592 Paris 1512 sao Meroveu Clovis Carlos Martelo Carlos Magno Pepino os textos sao 0 de Gregoire de Toursl9 os cartulitrios de Car los Magno Aparecem os costumes como 0 Campo de Marte as assembleias de maio 0 ritual dos reis elevados ao poder etc Aparecem acontecimentos como 0 batismo de Clovis a batalha de Poitiers a coroaao de Carlos Magno ou anedo tas simbolicas como a do vaso de Soissons em que se ve 0 rei Clovis renunciar a uma pretensao diante do direito de seus guerreiros e vingarse disso em seguida Tudo isso nos fornece uma nova paisagem historica urn referencial novo que so se compreende na medida em que existe uma correlaao muito forte entre esse material novo e as discussoes politicas sobre 0 direito publico De fato a historia e 0 direito publico vao de par Os problemas levan tados pelo direito publico e a delimitaao do campo histori co tern uma correlaao fundamental e alias historia e direito publico sen uma expressao consagrada ate 0 final do seculo XVIII Se voces olharem como de fato e bern depois do final do seculo XVIII e no seculo XX ensinase a historia a pedagogia da historia voces verao e 0 direito publico que lhes contam Ja nao sei 0 que se tornaram os livros escolares atualmente mas nao faz tanto tempo ainda a historia da Frana comeava com a historia dos gauleses E a frase nossos ancestrais os gauleses que faz rir porque a ensinavam aos argelinos aos africanos tern urn sentido muito preciso Dizer nossos ancestrais os gauleses e no fundo formular uma proposiao que tern urn sentido na teoria do direito constitucional e nos problemas levantados pelo direito publico Quando se conta com detalhes a bata lha de Poitiers isto igualmente tern um sentido muito preci so na medida em que eefetivamente essa guerra nao entre 149 AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 148 os francos e os gauleses mas entre os francos os gauleses e invasores de outra ra9a e de outra religiao que permite fixar a origem do feudalismo em algo diferente de urn con flito interno entre francos e gauleses E a histeria do vaso de Soissons que acho eu povoou todos os livros de histeria e que talvez se ensine ainda hoje foi certamente urna das mais seriamente estudadas durante todo 0 seculo XVIII A histeria do vasa de Soissons e a histeria de urn problema de direito constitucional na origem quando se partilhavam as riquezas quais eram efetivamente os direitos do rei perante os direitos de seus guerreiros e eventualmente da nobreza na medida em que tais guerreiros estao na origem da no breza Acreditouse que se ensinava a histeria mas no se culo XIX e ainda no seculo XX os manuais de histeria eram de fato manuais de direito publico Ensinavase 0 direi to publico e 0 direito constitucional sob as especies cheias de imagens da histeria Primeiro ponto pois 0 aparecimento na Fran9a desse novo campo histerico que e alias totalmente semelhante quanto ao seu material ao que se passa na Inglaterra no momenta em que em torno do problema da monarquia se reativa 0 tema da invasao No entanto hi urna diferen9a fundamental em compara9ao aInglaterra Se na Inglaterra a conquista e a dualidade racial normandossaxoes eram 0 ponto de articula9ao essencial da histeria na Fran9a em com pensa9ao ate 0 fim do seculo XVII nao hi nenhuma hete rogeneidade no corpo da na9ao e todo 0 sistema de paren tesco fabuloso entre gauleses e troianos depois entre gauleses e germanos depois entre gauleses e ramanas etc permite assegurar uma continuidade na transmissao do poder e uma homogeneidade sem problemas no corpo da na9ao Ora e justamente essa homogeneidade que vai ser quebrada no fi nal do seculo XVII e nao por urn edificio teerico ou teeri comitolegico suplementar ou diferente do qual acabo de lhes falar mas por urn discurso que e creio eu de tipo abso lutamente novo por suas fun90es por seus objetos por suas conseqihncias Nao foram as guerras civis ou sociais nem as lutas re ligiosas do Renascimento nem os conflitos da Fronda que introduziram 0 tema do dualismo nacional como 0 reflexo ou a expressao deles foi urn conflito foi urn problema apa rentemente lateral algo que 50 quaiifica em geral como com bate de retaguarda e que nao 0 e acho eu voces verao que permitiu pensar duas coisas capitais ainda nao inscritas na histeria nem no direito publico E de urna parte 0 pro blema de saber se efetivamente a guerra de grupos hostis constitui a subestrutura do Estado e de outra 0 problema de saber se 0 poder politico pode ser considerado ao mesmo tempo 0 produto 0 arbitro ate certo ponto porem 0 mais das vezes 0 instrurnento 0 aproveitador 0 elemento desequili brante e partidarista nessa guerra Eurn problema preciso e limitado mas essencial todavia creio eu a partir do qual a tese implicita da homogeneidade do corpo social que nem sequer necessita ser formulada de tanto que e aceita vai ser quebrada Mas como Pois bern a partir de urn problema que eu diria de pedagogia politica que deve saber 0 princi pe de onde e de quem ele deve receber seu saber 0 que esta habilitado para constituir 0 saber do principe De uma for ma precisa tratavase pura e simplesmente da famosa edu ca9ao do duque de Borgonha que voces sabem como criou problemas por urna por9ao de razoes nao penso aqui so mente em seu aprendizado elementar pois na epoca em que se passam os acontecimentos de que vou falar ele ja era adulto Tratase do conjunto dos conhecimentos sobre 0 Estado 0 governo 0 pais necessarios a quem vai ser cha mado dentro de alguns anos quando Luis XIV tiver morri do a dirigir esse Estado esse governo e esse pais Portanto 150 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 151 20 Fenelon Les aventures de Tefemaque Paris 1695 21 Tratase de Eta de fa France dans lequel on voit tout ce qui regarde le gouvernement eccIesiastique Ie militaire fa justice Ies finances Ie commerce les manufactures Ie nombre des habitants et en general tout ce qui peut Jaire cannairre afond cette monarchie extrait des memoires dresses par les inten dants du royaume par ordre du roy Louis XIVafa sollieitation de Monseigneur Ie due de Bourgogne pere de Louis XV apresent regnant Avec des Memoires historiques sur lancien gouvernement de cette monarchie jusqua Hugues Capet par Ie comte de Boulainvilliers Londres 1727 2 vol infolio No ano se guinte sai urn terceiro volume com 0 titulo Etat de la France contenant XIV let naO edo Telemaque20 que se trata mas desse enorme rela torio sobre 0 estado da Frana que Luis XIV encomendou it sua administraao e a seus intendentes destinado ao neto 0 duque de Borgonba que ia ser seu herdeiro Balano da Fran a estudo geral da situaao da economia das institui5es dos costumes da Frana na medida em que ele deve cons tituir 0 saber do rei saber com 0 qual ele vai poder reinar Luis XIV pede pois esses relatorios aos seus inten dentes Depois de varios meses eles sao juntados e reunidos o circulo do duque de Borgonba circulo que era constitui do de todo urn nucleo da oposiao nobiliaria de uma nobre za que reprovava ao regime de Luis XIV ter ferido seu poderio econ6mico e seu poder politico recebe esse rea torio e encarrega alguem que se chama Boulainvilliers de apresentaIo ao duque de Borgonba de tomaIo mais leve pois era enorme e depois de explidlo de interpretaIo de recodificaIo se voces preferirem Boulainvilliers de fato faz a triagem faz a depuraao daqueles enormes relatorios resumeos em dois grossos volumes Enfim redige a apre sentaao que ele acompanba com certo nUmero de reflex5es criticas e com urn discurso 0 acompanhamento necessaria pois daquele enorme trabalho administrativo de descriao e de analise do Estado Esse discurso e assaz curioso uma vez que se trata para esclarecer 0 estado atual da Frana de urn ensaio sobre 0 antigo governo da Frana ate Hugo Capeto Nesse texto de Boulainvilliers mas aqueles que se se guiram tambem vao retomar 0 problema tratase de valorizar as teses favoritveis it nobreza Criticase pois a ve nalidade dos cargos que sao desfavoriveis it nobreza empo brecida protestase contra 0 fato de que a nobreza foi espo liada de seu direito de jurisdiao e dos lucros que eram vin culados a este reclamase urn lugar de direito no Conselho do rei para a nobreza criticase 0 papel desempenbado pelos intendentes na administraao das provincias Mas sobretu do no texto de Boulainvilliers e nesse empreendimento de recodificaao dos relatorios apresentados ao rei tratase de protestar contra 0 fato de que 0 saber dado ao rei e de 153 AULA DE 11 DE FEVEREIRO DE 1976 tres sur les anciens Parlemens de France avec lhistoire de ce royaume depuis Ie commencement de la monarchie jusqu a Charles VIII On y a joint des Me moires presentes aM Ie due dOreans Londres 1728 22 M Foucault faz alusao as obras historicas de Boulainvilliers relacio nadas com as institui90es politicas francesas Tratase sobretudo de Memoire sur la noblesse du roiaume de France fait par M Ie comte de Boulainvilliers 1719 trechos publicados in A Devyver Le sang epure Les prejuges de race chez les gentilhommes franrais de I Ancien Regime Bruxelas Editions de lUniversite 1973 pp 50048 Memoire pour la noblesse de France con tre les Dues et Pairs s1 1717 Memoires presentes aMgr Ie duc dOreans Regent de France HaiaAmsterdam 1727 Histoire de Iancien gouvernement de la France avec quatorze lettres historiques sur les Parlements ou Etats Generaux HaiaAmsterdam 1727 3 vol versao reduzida e modificada das Memoires Traite sur lorigine et les droits de la noblesse 1700 in Conti nuation des memoires de litterature et d histoire Paris 1730 t IX pp 3106 republicado com numerosas modifica90es com 0 titulo Essais sur la nobles se contenant une dissertation sur son origine et ahaissement par Ie feu M Ie comte de Boulainvilliers avec des notes historiques critiques et politiques Amsterdam 1732 Abrege chronologique de Ihistoire de France Paris 1733 3 vol HLtoire des anciens Parlements de France ou Etats Generaux du royaume Londres 1737 EM DEFESA DA SOCIEDADE 152 23 Dentre as obras de carater hist6rico de L G conde de BuatNanlay cf Les origines au Ancien gouvernement de la France de ltatie de lAlemagne Paris 1757 Histoire ancienne des peuples de Europe Paris 1772 12 vol Elements de fa politique au Recherche sur les vrais principes pois ao principe seja urn saber fabricado pela propria ma quina administrativa Tratase de protestar contra 0 fato de que 0 saber do rei acerca dos seus suditos seja inteiramente colonizado ocupado prescrito definido pelo saber do Esta do acerca do Estado 0 problema e este 0 saber do rei acer ca de seu reino e acerca de seus suditos devera ser isomorfo ao saber do Estado acerca do Estado Os conhecimentos bu rocniticos fiscais economicos juridicos que sao necessa rios ao funcionarnento da monarquia administrativa deve rno ser reinjetados no principe pelo conjunto das informa 90es que the sao dadas e que the permitirao governar Em surna 0 problema e este a administra9ao 0 grande apare lho administrativo que 0 rei deu amonarquia e de certa for ma grudada ao proprio principe forma urn so todo com 0 principe pela vontade arbitraria e ilimitada que este exerce sobre urna administra9ao publica que esta com efeito intei ramente em suas maos e it sua disposiCao e epor isso que niio se pode resistir a ela Mas 0 principe e a administra9ao forma urn so todo com ele pelo poder do proprio principe por bern ou por mal vai ser levado a formar urn so todo com sua administra9ao publica a ser grudado a ela pelo saber que essa administra9ao publica the retransmite dessa feita de baixo para cima A administra9ao publica permite ao rei fazer que reine sobre 0 pais uma vontade sem limites Mas inversamente a administra9ao publica reina sobre 0 rei pela qualidade e pela natureza do saber que ela the impoe Eu creio que 0 alvo de Boulainvilliers e daqueles que 0 rodeavarn na epoca 0 alvo igualmente de seus sucessores em meados do seculo XVllI como 0 conde du BuatNan9ay23 de leconomie sociae Londres 1773 Les maximes du gouvernement monar chique pour servir de suite ala elements de la politique Londres 1778 24 As obras de carater hist6rico de F de Reynaud conde de Mon tlosier sao muito numerosas Limitamonos a assinalar aquelas que estao rela cionadas com os problemas levantados por M Foucault nos cursos De la mo narchie fran9aise depuis son etablissement jusqu il nos jours Paris 1814 3 vol Memoires sur la Revolutionfran9aise Ie Consulat IEmpire la Restauration et Ies principaux evenements qui lont suivie Paris 1830 Sobre Montlosier cf infra aula de lOde maryo 155 AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 ou de Montlosier24 cujo problema sera bern mais complica do uma vez que escreveni no inicio da Restauracao contra a administra9ao publica imperial 0 verdadeiro alvo de todos esses historiadores ligados area9ao nobiliiria sera 0 meca nismo de saberpoder que desde 0 seculo XVII vincula 0 aparelho administrativo ao absolutismo do Estado Eu creio que as coisas se passaram urn pouco como se a nobreza em pobrecida repelida em parte do exercicio do poder tivesse adotado como objetivo principal de sua ofensiva e de sua contraofensiva nao tanto a reconquista direta e imediata de seus poderes nem tampouco a recupera9ao de suas rique zas que por certo se haviarn tornado definitivarnente ina cesslveis mas urn elo importante no sistema do poder que a nobreza havia menosprezado desde sempre mesmo na epoca em que estava contudo no auge de seu poderio essa pe9a estrategica menosprezada pela nobreza fora em seu lugar ocupada pela 19reja pelos c1erigos pelos magistra dos depois pela burguesia pelos administradores publicos pelos proprios financistas A posi9ao que deveria ser reo cupada em primeirissimo lugar 0 objetivo estrategico que Boulainvilliers vai fixar dal em diante para a nobreza a con di9aO de todas as desforras nao e como se dizia no vocabu lario da corte 0 favor do principe 0 que se tern de recon quistar e 0 que se tern de ocupar agora e 0 saber do rei 0 EM DEFESA DA SOCIEDADE 154 saber do rei ou urn certo saber comum aos reis e aos nobres lei implicita compromisso reciproco do rei para com sua aristocracia Tratase de despertar a memoria que foi atur didamente distraida dos nobres e as recordaoes ciosa e talvez maldosamente sepultadas do monarca para recons tituir 0 justo saber do rei que sera 0 justo fundamento de urn govemo justo Tratase por conseguinte de urn contra saber de todo urn trabalho que vai assumir a forma de pes quisas historicas absolutamente novas Eu digo contrasaber porque esse saber novo e esses metodos novos para investir o saber do rei se definem primeiro para Boulainvilliers e seus sucessores de uma maneira negativa em comparacao a dois saberes eruditos dois saberes que sao as duas faces e talvez as duas fases tambem do saber adrninistrativo Nesse momento 0 grande inimigo desse saber novo pelo qual a nobreza quer voltar a tomar pe no saber do rei 0 saber que e preciso descartar e 0 saber juridico aquele do tribunal do procurador do jurisconsulto e do escrivao Saber claro odia vel para os nobres urna vez que foi esse saber que os pos na arapuca que os espoliou mediante argilcias que eles nao com preendiam que os despojou sem que eles sequer pudessem darse bern conta disso de seus direitos de jurisdiao e depois ate de seus bens Mas e urn saber que e odiavel tam bern porque e urn saber de certo modo circular que remete do saber ao saber Quando 0 rei para conbecer seus direi tos interroga os escrivaes e os jurisconsultos qual resposta podera obter senao urn saber estabelecido do ponto de vista do juiz e do procurador que ele 0 proprio rei criou e em que por conseguinte nao esurpreendente que 0 rei encon tre naturalmente os louvores de seu proprio poder louvores que alias talvez mascarem os sutis desvios de poder opera dos pelos procuradores pelos escrivaes etc Saber circular em todo caso Saber em que 0 rei so pode encontrar a imagem mesma de seu proprio absolutismo que Ihe remete sob a forma do direito 0 conjunto das usurpaoes que ele 0 rei cometeu para com sua nobreza E contra esse saber dos escrivaes que a nobreza quer valorizar urna outra forma de saber que sera a historia Uma historia que tera como caracteristica passar para 0 exterior do direito para tras do direito para dentro dos intersticios desse direito urna historia que nao sera simplesmente como havia sido ate entao 0 desenrolar cheio de imagens drama tizado do direito publico Ao contrario ela vai tentar retomar o direito publico em sua raiz recolocar as instituioes do direito publico nurna rede mais antiga de outros compromis sos mais profundos mais solenes mais essenciais Contra 0 saber do escrivao em que 0 rei so pode encontrar 0 louvor de seu absolutismo isto e ainda e sempre 0 louvor de Roma tratase de valorizar urn fundo de eqiiidade historica Por tras da historia do direito tratase de despertar compro missos nao escritos fidelidades que nao tiveram cartas nem textos sem duvida Tratase de reativar teses esquecidas e 0 sangue derramado pela nobreza pelo rei Tratase tambem de fazer que 0 proprio edificio do direito se mostre inclu sive em suas instituioes mais validas inclusive naquelas ordenaoes mais explicitas e mais reconhecidas como 0 resultado de toda uma serie de iniqiiidades de injustias de abusos de espoliaoes de traioes de infidelidades come tidos pelo poder monarquico que renegou seus compromis sos para com a nobreza e igualmente pelos homens de lei que usurparam ao mesmo tempo 0 poder da nobreza e tal vez sem se darem conta disso tambem 0 poder monarqui co A historia do direito sera pois a denuncia das traioes e de todas as traioes que estavam relacionadas com as trai oes Tratase nessa historia que vai se opor em sua pro pria forma ao saber do escrivao e do juiz de abrir os olhos do principe para as usurpaoes de que ele nao teve cons ciencia e de the restituir as foras a lembrana dos vinculos 156 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 157 que decerto ele pr6prio teve interesse de esquecer e de fa zer que esquecessem Contra 0 saber dos escrivaes que re mete sempre de urna atualidade para outra do poder para 0 poder do texto da lei para a vontade do rei e inversarnente a hist6ria sera a arma da nobreza traida e hurnilhada urna hist6ria cuja forma profundamente antijuridica sera por tras da escrita a decifraiio a rememoraiio para alem de todos os desusos e a denilncia daquilo que 0 saber ocultava de hostilidade aparente Ai esta 0 primeiro grande adversario desse saber hist6rico que a nobreza quer lanarpara reocupar o saber do rei a outro grande adversano e 0 saber niio mais do juiz ou do escrivao mas do intendente nao mais 0 cartorie mas a repartiiio publica Saber tambem ele odiavel E por ra zoes simetricas ja que foi 0 saber dos intendentes que per mitiu restringir as riquezas e 0 poder dos nobres Eurn saber que tambem ele pode fascinar 0 rei e iludiIo urna vez que e graas a ele que 0 rei pode fazer que aceitem seu poderio obter a obediencia assegurar 0 fisco etc Eurn saber admi nistrativo sobretudo economico quantitativo saber das ri quezas atuais ou virtuais saber dos impostos suportaveis das taxas uteis Contra esse saber dos intendentes e da reparti iio publica a nobreza quer valorizar urna outra forma de conhecimento urna hist6ria dessa feita das riquezas e niio mais uma hist6ria econ6mica ou seja uma histeria dos des locarnentos das riquezas das extorsoes dos roubos dos pas ses de magica dos desvios dos empobrecimentos das minas Vma hist6ria por conseguinte que passa por tras do proble ma da produiiodas riquezas para mostrar atraves de que mi nas dividas acumulaoes abusivas se constituiu de fato certo estado das riquezas que niio passa afinal de contas de urna mescia de desonestidades realizadas pelo rei com a bur guesia Sera pois contra a analise das riquezas urna hist6ria da maneira pela qual os nobres se arruinaram nas guerras 25 Cf L G conde de BuatNan9ay Remarques dun Fran9ais ou Examen impartial du livre de M Necker sur lesfinances Genebra 1785 infindaveis urna hist6ria da maneira pela qual a Igreja com asmcia fez que Ihe dessem terras e rendas urna hist6ria da maneira pela qual a burguesia endividou a nobreza uma hist6ria da maneira pela quai 0 fisco regio corroeu as ren das dos nobres etc Esses dois grandes discursos 0 do escriviio e 0 do in tendente 0 do tribunal e 0 da repartiiiopublica aos quais quer se opor a hist6ria da nobreza niio tiveram a mesma cronologia a luta contra 0 saber juridico e decerto mais forte mais ativa e mais intensa na epoca de Boulainvilliers isto e entre 0 fim do seculo XVII e 0 inicio do seculo XVIII a luta contra 0 saber economico decerto tomouse muito mais violenta em meados do seculo XVIII na epoca dos fisiocratas 0 grande adversano de du BuatNanaysera a fi siocracia25 De qualquer forma tratese do saber dos in tendentes das repartioes publicas do saber economico tratese do saber do escriviio e do tribunal 0 que esrn em questiio e 0 saber que se constitui do Estado ao Estado 0 qual foi substituido por outra forma de saber cujo perfil geral e a hist6ria Mas a hist6ria de que Ate entiio a hist6ria sempre fora apenas a hist6ria que o poder contava sobre si mesmo a historia que 0 poder mandava que contassem sobre ele era a hist6ria do poder pe 10 poder Agora a hist6ria que a nobreza comea a contar contra 0 discurso do Estado sobre 0 Estado do poder sobre o poder e urn discurso que vai fazer creio eu explodir 0 proprio funcionamento do saber hist6rico Eai que se des faz creio eu e isso e importante a dependencia entre de urn lado a narrativa da hist6ria e do outro 0 exercicio do poder seu fortalecimento ritual a formulaiio cheia de ima 159 AULA DE lJ DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 158 gens do direito publico Com Boulainvilliers com esse dis curso da nobreza reaciomiria do final do seculo XVII apa rece urn novo sujeito da hist6ria Isso quer dizer duas coisas De uma parte urn novo sujeito que fala 10 alguem diferente que vai tomar a palavra na hist6ria que vai contar a hist6ria alguem diferente vai dizer eu e nos quando narrar a his t6ria alguem diferente vai fazer 0 relato de sua pr6pria hist6 ria alguem diferente vai reorientar 0 passado os aconteci mentos as direitos as injustias as derrotas e as vitorias em torno de si mesmo e de seu pr6prio destino Deslocamento em conseqiiencia do sujeito que fala na hist6ria mas deslo camento do sujeito da hist6ria no sentido de que houve uma modificaao no objeto mesmo da narrativa em seu sujeito entendido como tema objeto se voces preferirem ou seja modificaao do elemento primeiro anterior mais profundo que vai permitir definir em comparaao a ele os direitos as institui5es a monarquia e a propria terra Em resumo do que se falara sera das peripecias de alguma coisa que passa sob 0 Estado que perpassa 0 direito que 10 a urn s6 tempo mais antigo e mais profunda do que as instituioes Esse novo sujeito da hist6ria que 10 ao mesmo tempo quem fala na narrativa hist6rica e aquilo de que fala essa narrativa hist6rica esse novo sujeito que aparece quando se descarta 0 discurso administrativo OU juridico do Estado so bre 0 Estado 0 que e E 0 que urn historiador daquela Opoca denomina uma sociedade uma sociedade mas entendida como associaao grupo conjunto de individuos reunidos por um estatuto uma sociedade composta de certo n1mero de individuos que tern seus costumes seus uscs e ate sua lei particular Essa alguma coisa que fala doravante na hist6ria que toma a palavra na hist6ria e da qual vai se falar na his t6ria 10 0 que 0 vocabulario da epoca designa com a palavra naao A naao nessa epoca nao 10 em absoluto algo que se definiria pela unidade dos territ6rios por uma morfologia politica definida ou por um sistema de sujeioes a urn impe rium qualquer A naao nao tern fronteiras nao tern sistema de poder definido nao tern Estado A naao circula por tras das fronteiras e das instituioes A naao ou melhor as na oes ou seja os conjuntos as sociedades os agrupamentos de pessoas de individuos que tern em COmum urn estatuto costumes usos uma certa lei particular mas lei entendida muito mais como regularidade estatutaria do que como lei estatal Edisto destes elementos que se trata na hist6ria E sao estes elementos 10 a naao que vai tomar a palavra A nobreza 10 uma naao em face de muitas outras naoes que circulam no Estado e se opoem umas as outras E dessa noao desse conceito de naao que vai sair 0 famoso pro blema revolucionirio da naao edai que VaG sair eclaro os conceitos fundamentais do nacionalismo do seculo XIX 10 dai tambem que vai sair a noao de raa 10 dai por fim que vai sair a noao de classe Com esse novo sujeito da hist6ria sujeito que fala na hist6ria e sujeito falado na hist6ria aparece tambem 10 cla ro toda uma nova morfologia do saber hist6rico que dai em diante vai ter urn novo dominio de objetos um referencial novo todo urn campo de processos ate entao nao somente obscuros mas tambem totalmente menosprezados Remon tam a superficie como temMica capital da hist6ria todos esses processos sombrios que se passam no nivel dos gru pos que se enfrentam sob 0 Estado e atraves das leis E a hist6ria sombria das alianas das rivalidades dos grupos dos interesses disfarados ou traidos a hist6ria das reversoes dos direitos das transferencias das fortunas a hist6ria das fidelidades e das traioes a hist6ria das despesas das ex torsoes das dividas das velhacarias dos esquecimentos das inconsciencias etc E de Dutro lado urn saber que ted como 160 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 161 metodo niio a reativaiio ritual dos atos fundamentais do po der mas ao contnmo uma decifraao sistematica de suas intenDes maldosas e a rememoraiio de tudo quanto ele tiver sistematicamente esquecido Eurn metodo de denun cia perpetua daquele que foi 0 mal na hist6ria III niio se trata da hist6ria gloriosa do poder e a hist6ria de seus submun dos de suas maldades de suas traiDes Por isso mesmo esse discurso novo que tern pois urn sujeito novo e urn referencial novo e acompanbado tam bern por aquilo a que se poderia chamar urn pathos novo inteiramente diferente do grande ritual cerimonial que acom panbava ainda obscuramente 0 discurso da hist6ria quando se narravam as hist6rias de troianos de germanos etc Ja niio e 0 carater cerimonial do fortalecimento do poder mas urn pathos novo que vai marcar com seu esplendor urn pen samento que sera em grande parte 0 pensamento de direi ta na Frana ou seja a paixiio quase er6tica pelo saber his t6rico segundo a perversiio sistematica de uma inteligen cia interpretativa terceiro a obstinaiio da denUncia quarto por fim a articulaiio da hist6ria baseada em algo que sera urn conluio urn ataque contra 0 Estado urn golpe de Estado ou urn golpe no Estado ou contra 0 Estado o que eu quis Ihes mostrar niio foi deveras 0 que deno minam a hist6ria das ideias Niio quis tanto Ihes mostrar como a nobreza havia representado quer suas reivindicaDes quer seus inforttinios atraves do discurso hist6rico mas realmente como em torno dos funcionamentos do poder se produzira se formara certo instrumento de luta no poder e contra 0 poder e esse instrumento e urn saber urn saber novo ou em todo caso parcialmente novo que e essa no va forma da hist6ria A evocaiio da hist6ria sob essa forma vai ser no fundo creio eu a cunha que a nobreza tentou cravar entre 0 saber do soberano e os conbecimentos da administraiio e isto a fim de poder desconectar a vontade 26 L G conde de BuatNamay Les maximes du gouvernement monarchique op cit t II pp 2867 absoluta do soberano da absoluta docilidade de sua admi nistraiio Niio e portanto tanto como caniio das velhas Ii berdades quanto como desconectador do saberpoder admi nistrativo que 0 discurso da hist6ria que essa velha hist6ria dos gauleses e dos germanos que a longa narrativa de C16 vis e de Carlos Magno viio ser instrumentos de luta contra o absolutismo Epor isso que esse tipo de discurso que e portanto de origem nobiliaria e reacionaria vai circular sobretudo com muitas modificaDes e conflitos de forma justamente cada vez que urn grupo politico quiser por uma ou outra raziio atacar esse ponto de articulaiio entre 0 po der e 0 saber no funcionamento do Estado absoluto da mo narquia administrativa E e por isso que naturalmente esse mesmo tipo de discurso ate em snas formulaDes voces viio encontraIo tanto no que se poderia chamar a direita quanto na esquerda na reaiio nobiliaria ou nos textos dos revolu cionarios de antes ou depois de 1789 Eu Ihes cito simples mente urn texto a prop6sito do rei injusto do rei das malda des e das traiDes Qual castigo diz 0 autor que se dirige naquele momento a Luis XVI cres que merece urn homem tiio barbaro infeliz herdeiro de urn magote de rapinas Cres que a lei de Deus niio foi feita para ti Ou es mais que urn homem para que tudo deva ser relacionado com tua gl6ria e subordinado it tua satisfaiio Quem es entiio Pois se niio es urn deus es urn monstro Esta frase niio e de Marat e do conde de BuatNanay que a escrevia em 1778 a Luis XVF6 E ela sera repetida textualmente pelos revolucionarios dez anos depois Voces compreendem por que se efetivamente este novo tipo de saber hist6rico esse novo tipo de discurso desem 163 AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 162 27 Sabre essa questac cf JN Moreau Plan des travaux litteraires ordonnes par sa Majeste pour fa recherche fa collection et Zemploi des monu ments de lhistoire et du droit public de fa monarchiefrantaise Paris 1782 penha esse papel politico maior nO ponto de articulaao en tre 0 poder e 0 saber da monarquia administrativa 0 poder regio nao pode deixar de tentar retomar por sua vez 0 con trole dele Da mesma forma que esse discurso circulava assim da direita para a esquerda da reaao nobiliaria para urn projeta revoluciomirio burgues do mesmo modo 0 poder regio tentau apropriarse dele ou controlaIo E e assim que a partir de 1760 vemos 0 poder regio 0 que prova 0 valor politico a parada politica capital que havia nesse saber his torico tentar organizar esse saber historico de certo modo recolocaIo em seu jogo de saber e de poder entre 0 poder administrativo e os conhecimentos que se formavam a par tir dele E assim que a partir de 1760 vemos esboarse instituioes que seriam grosso modo uma especie de Mi nisterio da Historia Primeiro por volta de 1760 criaao de uma Biblioteca das Finanas que deve fornecer a todos os ministros de Sua Majestade os memoriais informaoes e es clarecimentos necessarios em 1763 criaao de urn Arquivo de Documentos para aqueles que quisessem estudar a histo ria e 0 direito publico na Frana Enfim essas duas institui oes sao reunidas em 1781 numa Biblioteca de Legislaiio notem bern os termos de Administraiio Histaria e Direi to Publico E urn texto urn pouco posterior diz que essa bi blioteca e destinada aos ministros de Sua Majestade itque les que sao encarregados de alguma parte da administraao publica geral e a eruditos e jurisconsultos que encarrega dos pelo Chanceler ou pelo Ministro da Justia de trabalhos e de obras uteis a legislaao it historia e ao publico serao pagos it custa de Sua Majestade27 28 Cf lN Moreau Principes de morale de politique et de droit publique pUlses dans hisoire de notre monarchie au Discours sur Ihistoire deFrance Paris 1777178921 voL 165 AULA DE II DE FEVEREIRO DE 1976 Esse Ministerio da Historia tinha urn titular JacobNi colas Moreau e foi ele quem junto com muitos outros reuniu a imensa coleao de documentos medievais e premedie vais a partir dos quais no inicio do seculo XIX historiado res como Augustin Thierry e Guizot poderao trabalhar Em todo caso na epoca em que se ve aparecer essa instituiao esse verdadeiro Ministerio da Historia seu sentido e bern claro portanto no momento em que os enfrentamentos po liticos do secuIo XVIII passavam por urn discurso historico na epoca em que mais precisamente mais profundamente o saber historico era mesmo urna arma politica contra 0 saber do tipo administrativo da monarquia absoluta a monarquia quis recolonizar de certo modo esse saber Se voces preferi rem a criacao do Ministerio da Hist6ria parece ser uma con cessao a primeira aceitaao implicita pelo rei de que exis te mesmo urna materia historica que pode deixar claras tal vez as leis fundamentais do reino Ja e dez anos antes dos EstadosGerais a primeira aceitaao implicita de uma espe cie de constituiao E alias e a partir desses materiais reu nidos que os EstadosGerais vao ser projetados e organiza dos em 1789 logo primeira concessao do poder monarquico primeira aceitaao implicita de que algo pode imiscuirse entre seu poder e sua administraao e que sem a constituiao as leis fundamentais a representaao do povo etc mas tam bern reimplantaao desse saber historico sob uma forma autoritaria no proprio lugar em que quiseram utilizalo contra 0 absolutismo ja que esse saber era urna arma para reocupar 0 saber do principe entre seu poder os conheci mentos e 0 exercicio da administra1io publica Foi ai entre EM DEFESA DA SOCIEDADE 164 o principe e a administra9ao publica que se pos urn Minis terio da Historia para restabelecer de certo modo 0 vinculo para fazer a historia funcionar no jogo do poder monarquico e de sua administra9iio Entre 0 saber do principe e os conhe cimentos de sua administra9ao publica criouse urn Minis terio da Historia que deveria entre 0 rei e sua administra9ao estabelecer de urna forma controlada a tradi9ao ininterrupta da monarquia Eis urn pouco 0 que eu queria lhes dizer sobre a intro dU9ao desse novo tipo de saber histOrico Tentarei em seguida ver como a partir dele e nesse elemento aparece a luta en tre as na90es isto e algo que vai tomarse luta das ra9as e luta das classes 166 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 Nariio e nafOes A conquista romana Grandeza e decadencia dos romanos Da liberdade dos germanos segundo Boulainvilliers 0 vasa de Soissons Origens do feudalismo A Igreja 0 direito a lingua do Estado As Ires generalizQroes da guerra em Boulainvilliers a lei da hist6 ria e a lei da natureza as instituiroes da guerra 0 calculo das larras bservafoes sabre a guerra Da ultima vez tentei mostrarlbes como em tome da rea9ao nobiliana houvera nao exatamente inven9ao do dis curso historico mas antes desagrega9ao de urn discurso his torico preliminar que ate entao tivera COmo fun9ao como dizia Petrarca1 cantar a louva9ao de Roma que ate entiio fora interior ao discurso do Estado sobre si mesmo que tive ra como fun9aO manifestar 0 direito do Estado fundamentar sua soberania contar sua genealogia ininterrupta e ilustrar com herois fa9anhas dinastias a legitimidade do direito pu blico Essa desagrega9ao da louva9ao de Roma no final do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII deuse de duas maneiras De urna parte pela evoca9ao pela reativa9ao do fato da invasao que ja voces se lembram a historiografia do seculo XVI havia objetado ao absolutismo monarquico Recordase entao a invasao introduzse essa grande ruptu ra no tempo a invasao dos germanos nos seculos VVI e a preteri9ao e 0 momenta da ruptura do direito publico 0 1 Cf supra aula de 28 de janeiro cf tambem aula de 11 de fevereiro 168 EM DEFESA DA SOC1EDADE AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 169 momenta em que as hordas que afluem da Germania poem termo ao absolutismo romano De outra parte a outra ruptu ra 0 outro principio de desagrega9ao que e acho eu mais importante e a introdu9ao de urn novo sujeito da histaria no duplo sentido de que se trata de uma nova area de obje tos para a narrativa histarica e ao mesmo tempo de urn novo sujeito que fala na histaria 18 nao e 0 Estado falando de si mesmo e algo diferente falando de si e esse algo dife rente que fala na histaria e que se toma por objeto de sua narrativa histarica e essa especie de entidade nova que e a na9ao A na9ao entendida claro no sentido lato da palavra Eu tratarei de voltar a isso pois e dessa n09ao de na9ao que vaG irradiarse ou derivar n090es como as de nacionalidade de ra9a de classe No seculo XVIII essa n09ao deve ser en tendida ainda nurn sentido muito ample Everdade que na EncyclopMie voces encontrarn uma defini9ao que eu diria estatal da na9ao porque os enciclo pedistas dao quatro criterios a existencia da naa02 Primei ro deve ser urna grande multidao de homens segundo deve ser urna multidao de homens que habitam urn pais definido terceiro esse pais definido deve ser circunscrito por frontei ras e quarto essa multidao de homens assim estabelecida no interior de fronteiras deve obedecer a leis e a urn governo micos Portanto voces tern ai uma defini9ao de certo modo urna fixa9ao da naao de uma parte nas fronteiras do Es tado de outra na prapria forma do Estado Eu creio que essa e uma defini9ao polemica que visava se nao refutar pelo menos excluir a defini9ao arnpla que reinava naquele mo mento que encontramos tanto nos textos oriundos da nobre 2 Palavra coletiva que se usa para exprimir uma quantidade conside favel de pove que habita certa area de pais encerrada em certos limites e que obedece ao mesmo govemo art Naiiio in Encyclopedie au Dictionnaire raisonne des sciences des arts et des metiers Lucca 17581 XI pp 2930 za quanta naqueles oriundos da burguesia e que fazia dizer que a nobreza era uma na9ao que a burguesia tarnbem era urna na9ao Tudo isto teni urna importancia capital sob a Re volU9aO em especial no texto de Sieyes sobre 0 terceiro esta do3 que tentarei comentar para voces Mas essa noao vaga imprecisa mavel de na9ao essa ideia de urna na9ao que nao e detida no interior das fronteiras mas e ao contrario uma especie de massa de individuos maveis de urna fronteira it outra atraves dos Estados sob os Estados num nivel infra estatal voces a encontrariio ainda par muito tempo no seculo XIX em Augustin Thierry4 em Guizot5 etc Portanto temos urn novo sujeito da histaria e eu vou tentar mostrarlhes como e por que era a nobreza que havia introduzido assim na grande organiza9ao estatal do discur so histarico esse principio de desagregaao que era a na9ao como sujeitoobjeto da nova histaria Mas que e essa nova historia em que ela consistia como a vemos instaurarse no inicio do seculo XVIII Eu creio que a razao pela qual e nesse discurso da nobreza francesa que vemos desenvolver se esse novo tipo de histaria aparece clararnente quando 0 comparamos com 0 que era no seculo XVII urn seculo antes ou quase 0 problema Ingles A oposi9ao parlamentar e a OPOSi9ao popular inglesa entre 0 fim do seculo XVI e 0 inicio do seculo XVII ti nham no fundo de resolver urn problema relativarnente simples Tratavase para elas de mostrar que havia na mo narquia inglesa dois sistemas de direito opostos e ao mes mo tempo duas naoes De urn lado 0 sistema de direito cor 3 EJ Sieyes Questce que Ie TiersEtat ed cit Sabre Sieyes ef infra aula de 10 de mania 4 Sabre Augustin Thierry ver a mesma aula 5 Sabre Framois Guizot ver a mesma aula respondente a naao normanda nesse sistema de direito encontramos bloqueadas de certo modo urna com a outra a aristocracia e a monarquia Essa naao traz em si urn siste ma de direito que e 0 do absolutismo e ela 0 imp6s pela violencia da invasao Logo monarquia e aristocracia Qirei to de tipo absolutista e invasao E tratavase de valorizar contra esse conjunto urn outro 0 do direito saxao 0 direi to das liberdades fundamentais e que acabava sendo a urn so tempo 0 direito dos habitantes mais antigos de urn lado e ao mesmo tempo 0 direito reivindicado pelos mais pobres em todo caso por aqueles que nao pertenciam nem a fami lia real nem as familias aristocraticas Portanto dois gran des conjuntos e tratavase de valorizar 0 mais antigo e mais liberal em detrimento do mais novo que trouxera com a invasao 0 absolutismo Era urn problema simples o problema da nobreza francesa urn seculo depois no final do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII era evi dentemente muito mais complicado ja que se tratava para ela de lutar em duas frentes De urna parte contra a monar quia e suas usurpaoes do poder de outra contra 0 terceiro estado que se aproveita justamente da monarquia absoluta para invadir por sua vez e em seu proveito os direitos da nobreza Logo luta em duas frentes que nao pode ser tra vada da mesma forma nurna e na outra Contra 0 absolutis mo da monarquia a nobreza vai valorizar as liberdades fun damentais que se pretende sejam as do povo germano ou franco que invadiu a Galia em dado momento Logo contra a monarquia valorizar as liberdades Mas contra 0 terceiro estado vao valorizar ao contrario os direitos ilimitados de vidos Ainvasao Isto quer dizer que de urn lado contra 0 terceiro estado sera preciso ser de certo modo os vencedo res absolutos cujos direitos nao sao limitados mas do outro lado contra a monarquia sera preciso valorizar urn direi to quase constitucional que e 0 das liberdades fundamentais 6 Conde Joachim dEstaing Dissertation sur fa noblesse dextraction op cit 7 Sabre du BuatNanay cf supra aula de 10 de mar90 8 Sabre Montlosier ver a mesma aula 9 A analise do trabalho hist6rico de Boulainvilliers que M Foucault de senvolve nesta aula e na seguinte Ii fundamentada nos textos ja assinalados nas notas 2122 da aula de 11 de fevereiro em especial Memoires sur lhis toire du gouvernement de fa France in Etat de fa France op cit Histoire de lancien gouvernement de fa France op cit Dissertation sur fa nobfes sefranfoise servant de Preface aux Memoires de fa maison de eroi et de Bou fainvilliers in A Devyver Le sang epure op cit Memoires presentes a Mgr Ie due dOrfeans op cit Dai a complexidade do problema e dai acho eu 0 carater infinitamente mais elaborado da analise que voces encon tram em Boulainvilliers se comparada com aquela que en contravamos varias decadas antes Mas eu yOU considerar Boulainvilliers simplesmente a titulo de exemplo ja que de fato se trata de todo urn nueleo de toda urna constelaao de historiadores da nobreza que comeam a formular suas teorias na segunda metade do se culo XVII 0 conde dEstaing em cerca de 16601670 por exempl06 e isso ira ate 0 conde du BuatNanay7 no limi te ate 0 conde de Montlosier8 no momento da Revoluao do Imperio e da Restauraao 0 papel de Boulainvilliers e importante ja que foi ele quem tentou retranscrever os rela torios dos intendentes feitos para 0 duque de Borgonba e ele pode assim servirnos de ponto de referencia e de per fil geral valido provisoriamente para todo 0 mund09 Como Boulainvilliers faz sua analise Primeira questao quando os francos penetram na Galia que encontram a sua frente Nao encontram evidentemente aquela patria perdida para onde queriam ter voltado por causa de sua riqueza e de sua civi lizaao como queria a velha narrativa hist6ricoIendaria do seculo XVII segundo a qual os francos gauleses que haviam 170 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 171 I II J 172 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 173 deixado a patria teriam almejado em dado momento voltar para ela A Galia que Boulainvilliers descreve nao e em abso luto uma Galia feliz urn tanto arcadica que teria esquecido as violencias de Cesar na fusao feliz de urna unidade nova mente constituida 0 que os francos encontrarn quando en tram na Galia e urna terra de conquista E terra de conquista quer dizer que 0 absolutismo romano 0 direito regio ou im perial instaurado pelos romanos nao era de modo algum nessa Galia urn direito aclimatado aceito acatado que for maya urn so corpo com a terra e 0 povo Esse direito era urn fato de conquista a Galia esta sujeitada 0 direito que nela reina nao e em absoluto urna soberania consentida e um fato de domina9ao E e 0 proprio mecanismo dessa domina9ao que durou ao longo de toda a ocupa9ao romana que Bou lainvilliers tenta situar valorizando certo numero de fases De inicio os romanos entrando na Galia teriam tido como primeiro cuidado desannar eclaro aquela aristocra cia guerreira que fora a unica for9a militar a se opor real mente a eles desarmar a nobreza rebaixala tambem poli tica e economicamente e isto mediante ou em todo caso em correla9ao com uma eleva9ao artificial da rale a quem lisonjeiarn diz Boulainvilliers com a ideia de igualdade Isto quer dizer que mediante um procedimento proprio de todos os despotismos e que se vira alias desenvolverse na repu blica romana desde Mario ate Cesar fazse os inferiores acreditarem que um pouco mais de igualdade em seu pro veito dara muito mais liberdade a todos E de fato gra9as a essa igualitariza9ao chegase a um governo despotico Da mesma forma os romanos tomararn a sociedade gaulesa igua litaria ao rebaixar a nobreza ao elevar a rale e puderam assim estabelecer seu proprio cesarismo Essa e a primeira fase que se conclui sob Caligula com 0 massacre sistemati co dos antigos nobres gauleses que resistiarn tanto aos roma nos quanto a esse rebaixarnento que caracterizava a politica deles A partir dai vemos os romanos constituirem para si uma certa nobreza de que necessitavam uma nobreza nao militar que poderia terse oposto a eles mas uma nobre za ailininistrativa destinada a ajudaIos em sua organiza9ao da Gaha romana e sobretudo em todos os procedimentos pelos quais vao servirse da riqueza da Galia e garantir um sistema fiscal proveitoso para eles Criase assim uma nova nobreza urna nobreza civil juridica administrativa que tem como caracteristica em primeiro lugar urna pratica agu9ada fina e habil do direito romano em segundo lugar 0 co nheclmento da lingua romana E em torno desse conheci mento da lingua e da pralica do direito que aparece uma nova nobreza Essa descri9ao permite dissipar 0 velho milo do seculo XVII da Galia romana feliz e arcadica A refuta9ao desse mlto e eVldentemente uma maneira de dizer ao rei da Fran ca se reivindicais 0 ahsolutismo romano na verdade nao reivindicais um direito fundamental e essencial na terra da Galia mas uma historia precisa e particular cujos procedi mentos nao sao particularmente honrosos Em todo caso e no interior de urn mecanismo de sujeicao que vas vas ine ris E alias esse absolutismo romano que foi implantado por certo numero de mecanismos de domina9ao foi final mente derrubado varrido vencido pelos germanos me nos alias pelos acasos de uma derrota militar do que pela necssldade de urna degrada9ao interna E af que comep entao a segunda parte da analise de Boulainvilliers 0 mo mento em que ele analisa os efeitos reais da domina9ao ro mana sobre a Galia Ao entrar na Galia os germanos ou os francos encontraram uma terra de conquista que era a es trutura militar da Galia Dai em diante os romanos nao ti que era a estrutura militar da Galia nao figura no manuscrito em seu lugar e urn pais arruinado pelo absolutismo nham mais nada para poder defender a Galia contra as inva soes que vinham do outro lado do Reno E urna vez que ja nao tinham urna nobreza para defender a terra gaulesa que ocupavam foram obrigados a recorrer a mercenarios ou seja a homens que nao combatiam por si mesmos ou para defender sua terra mas por urn soldo A existencia de urn exercito mercenano de urn exercito paga implica claro urn fisco enorrne Portanto vai ser preciso extrair da Galia nao s6 os mercenarios mas tambem com que pagalos Dai duas coisas Primeiro aurnento consideravel dos impostos em moeda Segundo eleva9ao exagerada dessas moedas ou ainda como diriamos hoje desvaloriza9ao Dai urn feno meno duplo de urn lado a moeda perde 0 valor por causa dessa desvaloriza9ao e mais curiosamente ainda depois disso ela fica cada vez mais rara Essa ausencia de moeda vai acarretar urn arrefecimento dos neg6cios e urn empo brecimento geral Enesse estado de desola9ao global que a conquista franca vai ocorrer ou melhor vai ser possivel A permeabilidade da Galia ainvasao franca esta ligada a essa ruina do pais cujo principia era pois a existencia de trapas mercemirias Voltarei mais tarde a esse tipo de analise Mas 0 que e interessante e se pode assinalar de imediato e que a analise de Boulainvilliers ja nao e em absoluto do mesmo tipo da quela que ainda se podia encontrar algurnas decadas antes quando a questao forrnulada era essencialmente a do direito publico ou seja esta 0 absolutismo romano com seu siste ma de direito subsiste de direito mesmo depois da invasao franca Os francos aboliram legitimamente ou nao 0 tipo de soberania romana Tal era 0 prpblema hist6rico que se forrnulava em linhas gerais no seculo XVII Agora 0 pro blema para Boulainvilliers ja nao e em absoluto saber se 0 direito permanece ou nao permanece se pertence ao direito 10 Essa literatura comeoa com Maquiavel CDiscorsi sopra fa prima deca di Tita Livia 15131517 Florena 1531 prossegue com Bossuet Discours sur Histoire universelle Paris 1681 com E W Montagu Reflections on the Rise and Fall of the Ancient Republics Londres 1759 com A Ferguson The History ofthe Progress and Termination ofthe Roman Republic Londres 1783 e termina com a obra de Edward Gibbon History of the Decline and Fall ofthe Roman Empire Londres 177617886 vol 11 CharlesLouis de Montesquieu Considerations sur fes causes de fa grandeur des Romain et de leur decadence Amsterdam 1734 de urn direito substituirse a outro direito Ja nao sao em absoluto estes os problemas forrnulados 0 problema nao e o de saber se no fundo 0 regime romano ou 0 regime fran co eram legitimos ou nao 0 problema e saber quais foram as causas intemas da derrota ou seja em que 0 governo roma no legitimo ou nao afinal de contas nao e esse 0 proble ma era logicamente absurdo ou politicamente contradit6rio Esse famoso problema das causas da grandeza e da deca dencia dos romanos que vai ser urn dos grandes lugares comuns da literatura hist6rica ou politica do seculo XVIIIIO e que Montesquieull retomara depois de Boulainvilliers tern urn sentido muito preciso Eque se lan9a ai pela pri meira vez urna analise de tipo economicopolitico quando s6 houvera ate entao 0 problema da preteri9ao da mudan 9a do direito da mudan9a de urn direito absolutista para urn direito de tipo gerrnanico isto e de urn modelo totalmente diferente Eai que 0 problema das causas da decadencia dos romanos se torna 0 modelo mesmo de urn novo tipo de ana lise hist6rica Isso e tudo quanto a urn primeiro conjunto de analises que podemos encontrar em Boulainvilliers Eu sis tematizo urn pOlleD tudo i880 mas epara tentar ir urn pOlleD mais depressa Depois do problema da Galia e dos romanos 0 segundo problema ou grupo de problemas que tomarei como exem 175 AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 174 plo das amilises de Boulainvilliers e 0 que ele propoe a res peito dos francos quem sao esses francos que entram na Ga lia Esse e 0 problema redproco daquele de que acabo de Ihes falar 0 que faz a fora desses homens ao mesmo tempo incultos barbaros relativamente poueo numerosos e que puderam assim efetivamente entrar na Galia e destruir 0 mais formidavel dos imperios que a historia conhecera ate entao Portanto tratase de mostrar a fora dos francos em face da fraqueza dos romanos A fora dos francos primei ro e que eles se beneficiam daquilo que os romanos haviam acreditado dever dispensar isto e da existencia de urna aris tocracia guerreira A sodedade franca e inteiramente orga nizada em torno de seus guerreiros que embora tenham atras de si toda uma serie de homens que sao servos ou em todo caso servidores que dependem dos clientes sao no fundo 0 linico povo franco uma vez que 0 povo germano e composto essencialmente de Leue de leudes de homens que sao todos eles homens de armas 0 contrario pois dos mercemirios De Dutro lado esses homens de armas essas aristocracias guerreiras atribuemse urn rei mas que s6 tern como funao solucionar contendas ou problemas de justia em tempo de paz Os reis nao passam de magistrados civis nada mais Alem disso os reis sao escolhidos mediante urn consentimento comum pelos grupos dos leudes pelos gru pos dos homens de armas So no momenta das guerras quando se necessita de urna organizaao forte e de urn po der unico e que se atribuem urn chefe cuja chefia obede ce a prindpios totalmente diferentes e e absoluta 0 chefe e urn chefe de guerra que nao e forosamente 0 rei da socie dade civil mas que em certos casos pode selo Alguem co mo Clovis de uma importfmcia historica era a urn so tempo 0 irbitro civil 0 magistrado civil escolhido para so lucionar as contendas e depois tambem 0 chefe de guerra 12 Cf N Freret De lorigine des Franrais et de leur etablissement dans fa Gaule in Euvres completes Paris 17961799 t V Paris ano VII p 202 Em todo caso temos portanto uma sociedade em que 0 po rler eminima ao menos em tempo de paz e por conseguin te a liberdade maxima Ora 0 que e essa liberdade de que se beneficiam as pessoas dessa aristocracia guerreira Essa liberdade nao e em absoluto uma liberdade de independencia nao e em absoluto essa liberdade pela qual fundamentalmente urn respeita os outros A liberdade de que se beneficiam os guer reiros germanos era essencialmente a liberdade do egoismo da avidez do gosto pela batalha do gosto pela conquista e pela rapina A liberdade desses guerreiros nao e a da tole rauda e da igualdade para todos e uma liberdade que so pode se exercer mediante a dominaao Isto quer dizer que longe de ser uma liberdade do respeito e uma liberdade da ferocidade E urn dos sucessores de Boulainvilliers Freret fazendo a etimologia da palavra franco dira que ela nao quer absolutamente dizer livre no sentido em que a en tendemos agora mas essencialmente ferozjerox A pala vra franco tern exatamente as mesmas conotaoes que a palavra latina ferox tern todos os sentidos dela diz Freret favoraveis e desfavoraveis Ela quer dizer altivo intrepido orgulhoso cruel12 E e assim que comea 0 famoso grande retrato do barbaro que vamos encontrar ate 0 fim do secu 10 XIX e claro em Nietzsche em quem a liberdade sera equivalente a urna ferocidade que e gosto pelo poder e avi dez determinada incapacidade de servir mas desejo sempre pronto a sujeitar costumes impolidos e grosseiros odio pelos nomes pela lingua pelos costumes romanos Amador da liberdade valente ligeiro infiel avido de ganhos impa 177 AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 176 13 Cf F Nietzsche Zur Genealogie der Moral eine Streitschrifi Leipzig 1887 Erste Abhandlung Gut und Bose Gut und Schlecht 11 Zweite Abhandlung Schuld Schlechtes Gewissen und Verwandtes 16 17 e 18 tract fr La genealogie de fa morale Un ecrU polemique Paris Gallimard 1971 vet tambem Morgenrote Gedanken iiber die moralischen Vorurtheile Chemnitz 1881 Zweitw Buch 112 tract fr Aurore Pensees sur les pnjuges moraux Paris Gallimard 1970 Cf a ciwao de Boulainvilliers in A DeYVer Le sang epure op cit p 508 Eles eram alias muito amantes da liberdade valentes ligeiros infieis avidos do ganho inquietos impacientes e assim que os antigos autores os descrevem Passagem entre aspas no manuscrito ciente inquieto13 etc sao esses os epitetos que Boulain villiers e seus sucessores utilizam para descrever esse novo grande barbaro louro que faz assim atraves de seus textos sua entrada solene na histaria europeia quero dizer na his toriografia europeia Esse retrato da grande ferocidade loura dos germanos permite explicar primeiramente como os guerreiros fran cos que entraram na Gilia puderam e deveram necessaria mente recusar qualquer assimilaao com os galoromanos em especial qualquer sujeiao a esse direito imperial Eles eram livres demais quero dizer altivos demais arrogantes demais etc para nao impedir 0 chefe de guerra de tornarse soberano no sentido romano da palavra Erarn avidos demais de conquista e de dominaao em sua liberdade para nao se apoderarem eles proprios a titulo individual da terra gau lesa De sorte que 0 rei que era seu chefe de guerra nao se tornou com a vitoria dos francos proprietario das terras da Gilia mas cada um dos guerreiros se beneficiou ele praprio e diretamente da vitoria e da conquista reser you para si uma parte das terras da Galia Remotamente e esse nao me detenho nos detalhes que sao complicados na analise de Boulainvilliers 0 inicio do feudalismo Cada urn tomou efetivamente um pedao de terra 0 rei sa tinha 14 Tratase da tomada de Soissons contra 0 romano Siagrio em 486 179 AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 as terras dele nenhum direito por conseguinte do tipo da soberania romana sobre 0 conjunto das terras da Gilia E tornandose assim proprietirios independentes e individuais e claro que nao havia razao nenhuma para que eles aceitas sem acima deles urn rei que teria sido de certo modo her deiro dos imperadores romanos E e aqui que comea a histaria do vaso de Soissons ou melhor ai ainda a historiografia do vaso de Soissons Qual e essa histaria Voces sem duvida a aprenderarn em seus livros escolares Euma invenao de Boulainvilliers de seus predecessores e de seus sucessores Pinararn em Gregoire de Tours essa historia que depois vai ser um dos lugaresco muns de discussoes histaricas infinitas Quando depois de nao me lembro qual batalha14 Clovis reparte 0 saque ou melhor preside enquanto magistrado civil it distribuiao do saque voces sabem que diante de certo vaso ele diz Este eu queria mas urn guerreiro levantase e diz Nilo tens direito a esse vaso pois mesmo sendo rei tu partilharas 0 saque com os outros Nao tens nenhurn direito de apreen sao nao tens nenhum direito de posse primeira e absoluta sobre 0 que foi ganho na guerra 0 que foi ganho na guerra deve ser dividido em propriedades absolutas entre os dife rentes vencedores e 0 rei nao tern nenhurna preeminencia Ai esta a primeira fase da histaria do vaso de Soissons Vol taremos it segunda depois Essa descriao de uma comunidade germanica feita por Boulainvilliers permite portanto explicar como os germanos foram absolutamente recalcitrantes it organizaao romana do poder Mas tarnbem permite explicar como e por que essa conquista da Galia povoada erica por esse povo pobre e pouco numeroso p6de apesar de tudo perdurar Ai tam EM DEFESA DA SOCIEDADE 178 bem a compara9ao com a lnglaterra e interessante Voces se lembram de que os ingleses estavam igualmente diante des te problema como e possivel que sessenta mil guerreiros normandos tenham conseguido instalarse na lnglaterra e resistir Boulainvilliers tem 0 mesmo problema Mas eis como ele 0 resolve por sua vez Ele diz isto se os francos puderam com efeito resistir nessa terra conquistada e por que tomaram como primeira precau9ao nao s6 nao dar mas confiscar as armas dos gauleses de maneira que permane cesse bem isolada no meio do pais urna certa casta militar nitidamente diferenciada das outras casta militar que e urna casta inteiramente germauica Os gauleses ja nao tem armas mas em compensa9ao vao deixarIhes a ocupa9ao real de suas terras ja que precisamente os germanos ou os francos nao vao ter outra ocupa9ao alem de guerrear Uns portanto guerreiam os outros ficam em suas terras e as cultivam Pe demlhes simplesmente certo tributo que deve permitir aos germanos assegurar sua fun9ao militar Tributos que por certo nao sao leves mas sao IDuito menos pesados do que os impostos que os romanos tentavam coletar Muito menos pesados porque quantitativamente menos importantes e sobretudo porque quando os romanos exigiam para seus mercenarios urn imposto em moeda dos camponeses os camponeses nao podiam daIo Agora s6 pedem tributos em especie que sempre podem fomecer Nesta medida entre os camponeses gauleses aos quais s6 se pedem tributos em especie e essa casta guerreira ja nao M hostilidade Por tanto temos assim urna sorte de Galia franca feliz estivel muito menos pobre do que era a Galia romana no fim da ocupa9ao romana Uns diante dos outros gauleses e francos estavam diz Boulainvilliers felizes com a posse tranqiii la do que tinham 0 franco com 0 engenho do gaules e este com a seguran9a que 0 primeiro Ihe proporcionava Temos ai 0 nucleo daquilo que Boulainvilliers como voces sabem iventou isto e 0 feudalismo como sistema historicojuri dICD que caracteriza a sociedade as sociedades europeias desde os seculos VI VII VIII ate 0 seculo XV aproximada mente Esse sistema do feudalismo nao havia sido isolado nem pelos historiadores nem pelos juristas antes das anali ses de Boulainvilliers Eessa felicidade de uma casta mili tar sustentada e mantida por urna popula9ao camponesa que lhe paga tributos em produtos agricolas que e de certo modo o clIma dessa unidade juridicopolitica do feudalismo Terceiro conjonto de fatos que Boulainvilliers analisa e que eu gostaria igualmente de isolar pois sao importantes e a serie dos fatos pelos quais essa nobreza ou melhor essa aristocracia guerreira assim instalada na Galia pOde final mente perder 0 essencial de seu poder e de sua riqueza e verse afinal de contas refreada pelo poder monarquico A analise que Boulainvilliers faz e aproximadamente a se guinte 0 rei dos francos era portanto no inicio urn rei de dupla conjuntura no sentido de que enquanto chefe de guer ra s6 fora designado durante 0 tempo da guerra 0 carater absoluto de seu poder por conseguinte so valia enquanto durava a propria guerra De outra parte enquanto magistra do civil ele DaD pertencia necessariamente a uma mica e mesma dinastia nenhum direito de sucessao tinha de ser eleito Ora esse soberano esse chefe de dupla conjuntura vi s tornar pOlleD a pOlleD 0 monarca permanente here dllarlO e absoluto que a maior parte das monarquias euro peias em especial a monarquia francesa conheceu Como se deu essa transforma9ao Primeiro pelo proprio fato da conquista pelo proprio sucesso militar pelo fato de que um exercito pouco numeroso se implantara num pais imenso que era de se supor seria recalcitrante pelo menos inicial mente Logo e normal que 0 exercito franco tenha ficado de certo modo em pe de guerra nessa GaIia que acabava d ocupar E por essa razao aquele que so era chefe durante a 180 EM DEFESA DA SOClEDADE AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 181 dura9ao da guerra ficou por causa da ocupa9ao ao mesmo tempo chefe de guerra e chefe civil Portanto a organiza9ao militar se mantem pelo fato mesmo da ocupa9ao Ela se man tern mas nao sem problemas nao sem dificuldades nao sem revoltas de parte justamente dos francos dos guerrei ros francos que nao aceitam que a ditadura militar se pro longue de certo modo ate na paz De sorte que 0 rei para manter seu poder tambem foi obrigado a recorrer de novo a mercenanos que ele vai arrebanhar precisamente nesse povo gaules que deveria ter deixado desarmado ou ainda no ex terior Em todo caso eis que a aristocracia guerreira vai come9ar a verse imprensada entre urn poder momrquico que tenta manter seu carater absoluto e urn povo gaules que e chamado pouco a pouco pelo proprio monarca para sus tentar seu poder absoluto E ai gue encontramos 0 segundo episodio do vaso de Soissons Eo momenta em que Clovis que nao havia engoli do a proibi9ao que the fora feita de tocar no vaso passando uma revista militar reconhece 0 guerreiro que 0 havia impe dido de par a mao no dito cujo Ent1io pegando seu grande machado 0 born Clovis racha 0 cranio do guerreiro dizendo lhe Lembrate do vasa de Soissons Temos ai exatamente o momenta em que aquele que devia ser apenas urn magistra do civil Clovis mantem a forma militar do seu poder mesmo para resolver a questao civil Servese justamente de urna revista militar ou seja de urna forma que manifesta 0 carater absoluto de seu poder para resolver urn problema que deveria ser apenas urn problema civil 0 monarca absoluto nasce pois no momenta em que a forma militar do poder e da disciplina come9a a organizar 0 direito civil A segunda opera9ao mais importante pela qual 0 poder civil vai assurnir a forma absoluta e esta de urn lado pois o poder civil recorre ao povo gaules para formar urn bando de mercenarios Mas constituise outra alian9a que dessa feita e a alian9a entre 0 poder monarquico e a antiga aristo cracia gaulesa Eis como Boulainvilliers faz sua analise Ele diz isto no fundo quando os francos chegaram quais foram entre os gauleses as camadas da popula9ao que mais sofre ram Nao tanto pois os camponeses os quais ao contrfuio viram seus impostos em moeda se transformarem em tribu tos em especie mas a aristocracia gaulesa cujas terras fo ram claro confiscadas pelos guerreiros germiinicos e fran cos Essa aristocracia e que acabou sendo efetivamente es poliada Ela sofreu com isso e 0 que e que ela fez Ja nao lhe restava senao urn tinico refUgio porquanto ela ja nao ti nha suas terras e 0 proprio Estado romano havia desapare cido tinha urn Unico abrigo que era a Igreja Foi assim que a aristocracia gaulesa refugiouse na Igreja ela nao so desenvolveu 0 aparelho da Igreja mas ai atraves da Igreja ela de urn lado aprofundou estendeu sua influencia sobre o povo mediante todo 0 sistema de cren9as que ela fazia cir cular ela desenvolveu igualmente na Igreja seus conheci mentas de latim e terceiro nela cultivou 0 direito romano que era urn direito de forma absolutista De sorte que ine vitavelmente quando os soberanos francos tiveram de urna parte de apoiarse no povo contra a aristocracia germiinica e de outra de fundar urn Estado em todo caso uma monar quia do tipo romano que melhores aliados eles poderiam encontrar do que aqueles homens que tinham tanta influen cia sobre 0 povo de urn lado e que de outro com 0 latim conheciam tao bern 0 direito romano Foram naturalment os aristocratas gauleses foi a nobreza gaulesa refugiada na Igreja que se tornou a aliada natural dos novos monarcas no mesma momento em que estes tentavam constituir seu absolutismo E foi assim que a Igreja com 0 latim com 0 direito romano com a pratica judiciaria tornouse a grande aliada da monarquia absoluta Ha em Boulainvilliers como voces veem todo urn des tino importante que e dado ao que se poderia chamar de lin 182 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVERERO DE 976 183 gua dos saberes 0 sistema linguasaber Ele mostra como a aristocracia guerreira foi posta it margem por urna alian9a entre a monarquia e 0 povo por intermedio da Igreja do latim e da pratica do direito 0 latim tomouse lingua de Es tado lingua de saber e lingua juridica E se a nobreza per deu seu poder foi na medida em que pertencia a outro sis tema lingiiistico A nobreza falava as linguas germanicas nao conbecia 0 latim De sorte que no momenta em que todo 0 novo sistema de direito estava sendo implantado par ordena90es em latim ela nem sequer compreendia 0 que Ihe estava acontecendo E compreendiao tao pouco e era tao importante que nao compreendesse que justamente a Igreja de um lado e 0 rei do outro fizeram todo 0 possivel para que a nobreza continuasse ignorante Boulainvilliers faz toda uma historia da educa9ao da nobreza mostrando que se a Igreja por exemplo insistiu tanto na vida no alem como a unica razao de estar aqui neste mundo foi essen cialmente para fazer as pessoas bemeducadas acreditarem que de fato nada do que se passava aqui era importante e que 0 essencial do destino delas devia passarse do outro lado E foi assim que aqueles germanos tao itvidos de pos suir e de dominar aqueles grandes guerreiros louros tao apegados ao presente foram aos poucos sendo transforma dos em pessoas tipo cavaleiros tipo cruzados que negli genciavam inteiramente 0 que se passava em suas proprias terras e em seu proprio pais e se encontraram espoliados de sua fortuna e de seu poder As Cruzadas como grande ca minbada para 0 alem sao para Boulainvilliers a expressao a manifesta9ao do que se passava quando essa nobreza ficou inteiramente voltada para 0 mundo do alem enquanto no lado de ca au seja em suas proprias terras no momento em que estavam em Jerusalem que e que se passava 0 rei a Igreja a antiga aristocracia gaulesa manipulavam as leis em latim que deviam espoliaIos de suas terras e de seus direitos Oai 0 apelo de Boulainvilliers a que Essencialmente e isto percorre toda a sua obra nao e justamente como era 0 caso por exemplo dos historiografos parlamentares e sobretudo populares ingleses do seculo XVII it revolta dos nobres espoliados de seus direitos Ao que a nobreza e convidada e essencialmente it reabertura do saber reaber lura de sua propria memoria tomada de consciencia recupe ra9ao do conbecimento e do saber Ea isso que Boulain villiers convida em primeira insmncia anobreza V6s nao recuperareis 0 poder se nao recuperardes 0 estatuto dos saberes de que fostes espoliados ou melhor que vos ja mais havieis procurado possuir Pois de fato sempre havieis combatido sem vos dar conta de que a partir de certo mo mento a verdadeira batalha pelo menos no interior da so ciedade ja nao passava pelas armas e sim pelo saber Nossos ancestrais diz Boulainvilliers tiveram a vaidade capri chosa de 19norar 0 que eram Houve urn esquecimento per petuo de si mesmo que parece provir da imbecilidade ou do feiti90 Retomar consciencia de si descobrir as fontes do saber e da memoria significa denunciar todas as mistifica 90es da historia E sera retomando consciencia de si inse rindose de novo na trama do saber que a nobreza odera voltar a ser urna for9a colocarse como sujeito da historia Colocarse como urna for9a na historia implica pois como primeira fase retomar consciencia de si e reinserirse na ordem do saber Ai esta certo nllinero de temas que eu isolei nas obras consideraveis de Boulainvilliers e que me parecem introdu zir urn tipo de analise que evidentemente vai ser fundamental para todas as analises historicopoliticas desde 0 seculo XVIII ate hoje Importancia dessas analises por que Primeiro pea primazia gera que nelas econcedida it guerra Mas eu creio que 0 que esobretudo importante uma vez que a pri mazia concedida it guerra nessas analises e a forma que a 184 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 185 narrativa de guerra assume nelas e 0 papel que Boulain villiers faz essa narrativa de guerra desempenhar Pois eu creio que para utilizar como ele faz a guerra como analisa dor gera da sociedade Boulainvilliers faz a guerra passar por tres generaliza5es sucessivas ou sobrepostas Primeiro ele a generaliza com rela9ao aos fundamentos do direito se gundo ele a generaliza com rela9ao a forma da batalha ter ceiro ele a generaliza com rela9ao ao fato da invasao e ao outro fato reciproco da invasao que e a revolta Sao essas tres generaliza90es que agora eu gostaria de situar um pouco Primeiro generaliza9ao da guerra com rela9ao ao di reito e aos fundamentos do direito Nas analises anteriores as dos protestantes franceses do seculo XVI dos parlamen taristas franceses do seculo XVII e dos parlamentaristas in gleses da mesma epoca a guerra e essa especie de episodio de ruptura que suspende 0 direito e 0 subverte A guerra e 0 barqueiro que permite ir de um sistema de direito para outro Em Boulainvilliers a guerra nao desempenha esse papel a guerra nao interrompe 0 direito A guerra na verdade en valve inteiramente 0 direito envolve mesmo inteiramente o direito natural a ponto de deixaIo irreal abstrato e de cer to modo ficticio De que a guerra tenha envolvido inteira mente 0 direito natural a tal ponto que esse direito nao seja mais do que uma abstra9ao inutilizavel Boulainvilliers da tres provas da andamento a essa ideia de tres formas Pri meiro no modo historico ele diz isto podese percorrer a historia tanto quanto se quiser em todos os sentidos pois como quer que seja nunca se encontrarao direitos naturais Em nenhuma sociedade seja ela qual for ha direitos natu rais 0 que os historiadores acreditavam descobrir por exem plo entre os saxoes ou entre os celtas isto e um tipo de pequena praia de pequena ilha de direito natural tudo isso esta inteiramente errado Em toda parte so se encontra algo que e quer a propria guerra sob os franceses houve a inva sao dos francos sob os galoromanos houve a invasao dos germanos quer ainda desigualdades que traduzem guerras e violencias Assim e que os gauleses por exemplo ja esta yam divididos entre aristocratas e naoaristocratas Entre os medas entre os persas voces encontram igualmente uma aris tocracia e um povo Isso prova com evidencia que houve por tras disso lutas violencias e guerras E alias todas as vezes que se veem as diferen9as entre aristocracia e povo atenuarse numa sociedade ou num Estado podese ter cer teza de que 0 Estado vai entrar em decadencia Grecia e Roma perderam seus estatutos e desapareceram mesmo como Estados desde que sua aristocracia entrou em deca dencia Logo em toda parte desigualdades em toda parte vio lencias que fundamentam desigualdades em toda parte guer ras Nao hi sociedades que possam perdurar sem essa espe cie de tensao belicosa entre uma aristocracia e uma massa de povo Agora a aplica9ao teorica dessa mesma ideia e a se guinte Boulainvilliers diz podese e claro conceber uma especie de liberdade primitiva antes de qualquer domina9ao de qualquer poder de qualquer guerra de qualquer servi dao mas essa liberdade que se pode conceber entre indivi duos que nao teriam entre si nenhuma rela9ao de dominao essa liberdade em que todo 0 mundo em que todas as pes soas seriam iguais umas com rela9ao as outras esse par li berdadeigualdade so pode ser na realidade algo sem for9a e sem conteudo Porque 0 que e a liberdade A liberdade nao consiste e claro em impedirse de invadir a liberdade dos outros pois nesse momento ja nao seria uma liberdade Em que consiste a liberdade A liberdade consiste em poder to mar em poder se apropriar em poder aproveitar em poder comandar em poder obter a obediencia 0 primeiro criterio da liberdade e poder privar os outros da liberdade Para que serviria e em que consistiria concretamente 0 fata de ser 186 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 187 livre se nao se pudesse justamenre invadir a liberdade dos outros Essa e a primeira expressao da liberdade A liberda de para Boulainvilliers e portanto 0 contrano da igualda de E 0 que vai se exercer pela diferena pela dominaao pela guerra por todo urn sistema de relaoes de fora Vma liberdade que nao se traduz numa relaao de fora desiguali taria s6 pode ser uma liberdade abstrata impotente e fraca Dai uma especie de aplicaao a um s6 tempo hist6rica e te6rica dessa ideia Boulainvilliers diz e ai ainda esque matizo muito admitarnos que 0 direito natural tenha efeti vamente existido em dado momento de certa forma no mo mento fundador da hist6ria um direito em que as pessoas seriam livres de uma parte e iguais A fraqueza dessa li berdade e tamanha ja que e precisarnente uma liberdade abstrata ficticia sem conteudo efetivo que ela s6 pode desaparecer diante da fora hist6rica de uma liberdade que funciona como desigualdade E se e verdade que existiu em algum lugar ou num instante qualquer algo como essa li berdade natural como essa liberdade igualitaria como esse direito natural ele nao pode resistir it lei da hist6ria que faz que a liberdade s6 seja forte s6 seja vigorosa e s6 seja plena se for a liberdade de alguns garantida it custa dos outros s6 se houver uma sociedade que garanta a desigualdade essencia A lei igualitaria da natureza e fraca em face da lei desi gualitaria da hist6ria Logo e normal que a lei igualitaria da natureza tenha cedido 0 lugar e definitivamente para a lei desigualitaria da hist6ria Por ser 0 direito original e que 0 direito natural nao e fundador como dizem os juristas mas excluido pelo vigor maior da hist6ria A lei da hist6ria e sem pre mais forte do que a lei da natureza Eisso que Boulain villiers sustenta quando diz que a hist6ria conseguiu final mente criar uma lei natural de antltese entre a liberdade e a igualdade e que essa lei natural e mais forte do que a lei inscrita naquilo a que chamam 0 direito natura A maior fora da hist6ria em comparaao it fora da natureza e isso finalmente que faz que a hist6ria tenha envolvido inteira mente a natureza A natureza ja nao pode falar quando a hist6ria comea pois na guerra entre a hist6ria e a natureza a vencedora e sempre a hist6ria Ha uma relaao de fora entre natureza e hist6ria e essa relaao de fora e definiti varnente em favor da hist6ria Logo 0 direito natural nao existe ou existe apenas como vencido e sempre 0 grande vencido da hist6ria e 0 outro e como os gauleses diante dos romanos como os galoromanos diante dos germanos A hist6ria e a germanidade se voces preferirem com relaao it natureza Portanto primeira generalizaao a guerra en volve inteiramente a hist6ria em vez de ser simplesmente sua desordenaao e sua interrupao Segunda generalizaao da guerra com relaao it forma da batalha Para Boulainvilliers e verdade que a conquista a invasao a batalha ganha ou perdida fixam uma relaao de fora mas de fato essa relaao de fora que se expressa na batalha foi no fundo estabelecida antes e por algo que nao as batalhas antecedentes 0 que estabelece a relaao de fora e 0 que faz que uma naao va ganhar uma batalha e a outra perdela 0 que e Pois bern e a natureza e a organizaao das instituii5es militares e 0 exercito sao as instituiroes militares Elas sao importantes de uma parte porque per mitem claro obter vit6rias e tarnbem porque permitem ar ticular a sociedade por inteiro No fundo para Boulain villiers 0 importante 0 que vai de fato fazer que a guerra va ser 0 principio de analise de uma sociedade 0 que para ele e determinante numa organizaao social e 0 problema da organizaao militar ou pura e simplesmente este quem possui as armas A organizaao dos germanos repousa es sencialmente no fato de que alguns os leudes tinharn as armas e os Qutros nao as tinham 0 que caracteriza 0 regi me da Galia franca e que se tomou 0 cuidado de retirar as ar 188 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 189 190 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 191 mas dos gauleses e de reservaIas aos germanos os quais deviam ser sustentados enquanto homens de armas pelos gauleses As altera5es comearam a ocorrer quando essas leis de distribuiao das armas numa sociedade comearam a se embaralhar quando os rornanos recorreram a mercena rios quando os reis francos organizararn milicias quando Filipe Augusto recorreu a cavaleiros estrangeiros etc Foi a partir desse momento que a organizaao simples que per mitia aos germanos e apenas aos gennanos au aaristocra cia guerreira possuir armas foi embaralhada Ora esse problema da posse das armas e 0 nesse sen tido que ele pode servir de ponto de partida para urna anali se geral da sociedade de urn lado 0 ligado claro a proble mas tecnicos Por exemplo quem diz cavaleiros diz lanas armaduras pesadas etc mas diz igualmente urn exercito pOlleD numeroso de homens ricas Quem diz ao contnirio arqueiros armaduras leves vai dizer exercito nurneroso A partir dai vemos delinearse toda urna serie de problemas economicos e institucionais se ha urn exercito de cavaleiros urn exercito pesado e pOlleD numeroso de cavaleiros entao os poderes do rei sao forosamente limitados pois urn rei nao pode pagar 0 exercito tiio dispendioso dos cavaleiros Sao os proprios cavaleiros que serao obrigados a se sustentar Em compensayao com urn exercito de infantaria ternse urn exercito numeroso que os reis podem pagar dai 0 cres cimento do poder momirquico mas ao mesma tempo aumen to do fisco Portanto voces veem que dessa vez ja nao 0 como resultado da invasao que a guerra deixaria sua marca nurn corpo social mas que por intermedio das institui5es militares ela acaba tendo efeitos gerais sobre a ordem civil inteira 0 que por conseguinte serve de analisador da so ciedade ja nao 0 somente a especie de dualidade simples invasoresinvadidos vencedoresvencidos lembrana da ba talba de Hastings ou lembrana da invasiio dos francos Ja nao eesse mecanismo binario simples que marcara com a chan cela da guerra 0 corpo social inteiro mas uma guerra COD siderada alem e aquem da batalba a guerra como maneira de fazer a guerra como maneira de preparar e de organizar a guerra A guerra entendida como distribuiao das armas natureza das armas tecnicas de combate recrutamento retribuiao dos soldados impostos destinados ao exercito a guerra como institui9ao intema e nao mais como evento bruto da batalha 0 isso que nas analises de Boulainvilliers 0 operador Se ele consegue fazer a historia da sociedade francesa 0 seguindo perpetuamente 0 fio que por tras da batalha e por tras da invasao faz aparecer a instituiao mili tar e mais alem da instituiao militar 0 conjunto das institui 5es e da economia do pais A guerra 0 uma economia geral das armas urna economia dos homens armados e dos ho mens desarmados nurn dado Estado e com todas as series institucionais e econ6micas que derivam dai Eessa formi davel generalizaao da guerra com relaao ao que ela ainda era entre os historiadores do seculo XVII que 0 evidente confere a Boulainvilliers a importante dimensao que eu tento Ihes mostrar Enfim terceira generalizaao da guerra na analise de Boulainvilliers nao com relaao ao fato da batalha mas com relaao ao sistema invasaorevolta que eram os dois gran des elementos que se fazia intervir para distinguir a guerra nas sociedades por exemplo na historiografia inglesa do seculo XVII 0 problema de Boulainvilliers nao 0 pois simplesmente distinguir quando houve invasao quais foram os efeitos da invasao tampouco consiste simplesmente em mostrar se houve ou nao revolta Mas 0 que ele quer fazer 0 mostrar como certa relaao de fora que fora manifesta da pela invasao e pela batalha pouco a pouco e obscura mente se inverteu 0 problema dos historiografos ingleses era distinguir em toda parte em todas as institui5es onde estavam os fortes os normandos e onde estavam os fracos os saxoes 0 problema de Boulainvilliers e saber como pois os fortes se tomaram fracos e como os fracos se torna ram fortes Eesse problema da passagem da fora para a fra queza e da fraqueza para a fora que vai constituir 0 essen cial de sua amlise Essa analise e essa descriao da mudana Boulain villiers vai fazelas a partir daquilo que se poderia denomi nar a determinacao dos mecanismos internos de inversao cujos exemplos se podem encontrar facilmente Com efeito o que deu fora it aristocracia franca bern no comeo da quilo a que logo se chamara a Idade Media foi 0 que Foi o fato de que tendo invadido e ocupado a Galla os francos se atribuiram a eies proprios e diretamente terras Logo eies eram diretamente proprietarios das terras e recebiam por isso rendas em especie que asseguravam de urn lado a cal ma da populaao camponesa e de outro a propria fora da cavalaria Ora e precisamente isso ou seja 0 que fazia a fora deles que pouco a pouco vai tornarse 0 principio da fraqueza deles por causa dessa dispersao dos nobres em suas terras e pelo fato de que sustentados para fazer a guer ra pelo sistema de tributos eies foram de uma parte afas tados da proximidade com 0 rei que eles haviam criado e de Dutra s6 se ocuparam com a guerra e com a guerra entre si Em conseqiiencia negligenciaram tudo quanto podia ser a educaao a instruao 0 aprendizado do latim 0 conheci mento Todo esse conjunto de coisas vai se tomar 0 principio da impotencia deles Inversamente se voces tomam 0 exemplo da aristocra cia gaulesa no inicio da invasao franca ela estava no ulti mo grau da fraqueza cada proprietano gaules fora espolla do de tudo E era isso precisamente essa fraqueza que hlS toricamente se tornou a fora deles por urn desenvolvimento necessario 0 fato de serem expulsos das terras os encami nhou portanto para a Igreja e isso Ihes deu urna influencia sobre 0 povo mas igualmente conhecimentos de direito Foi isso que pouco a pouco os deixou em condioes de esta rem mais proximos do rei como conselheiros do rei e por conseguinte de tomarem a por a mao num poder politico e nurna riqueza economica que Ihes haviam escapado outrora A forma os elementos que constituiam a fraqueza da aris tocracia gaulesa foram ao mesmo tempo e a partir de certo momento os principios de sua reviravolta o problema que Boulainvilliers analisa nao e portanto quem foi vencedor e quem foi vencido mas quem se tornou forte e quem se tornou fraco Por que 0 forte se tornou fra co e por que 0 fraco se tornou forte Isto quer dizer que a historia aparece agora como sendo essencialmente urn cal culo das forO Na mesma medida em que vai ser preciso fazer uma descriao dos mecanismos das relaoes de fora essa analise vai necessariamente levar a que Ao fato de que a grande dicotomia simples vencedoresvencidos ja nao vai ser exatamente pertinente para a descriao de todo esse processo A partir do momento em que 0 forte se torna fraco e 0 fraco se tarna forte vai haver novas oposioes novas divagens novas distribuioes os fracos vao se aliar entre si os fortes vao procurar a aliana de alguns contra alguns outros 0 que era ainda na epoca das invas5es uma especie de grande batalha macia exercito contra exercito francos contra gauleses normandos contra sax5es essas duas gran des massas nacionais vao se dividir se transformar por mul tiplos canais E vao aparecer entao lutas diversO com revi ravoltas de frente alianO conjunturais reagrupamentos mais ou menos permanentes aliana do poder monarquico com a antiga nobreza gaulesa apoio desse conjunto no po vo ruptura do entendimento tacito entre os guerreiros fran cos e os camponeses gauleses quando os guerreiros francos empobrecidos vaa aumentar suas exigencias e exigir tribu 192 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVEREIRO DE 1976 193 lnterruplao nas gravaoes 0 manuscrito diz explicitamente Num sentido e sempre realmente 0 analogo ao problema juridico como nasce a tos mais elevados etc Todo esse pequeno sistema de apoios de alian9as de conflitos intemos e isso agora que vai de certo modo generalizarse nurna forma de guerra que os historiadores ate 0 seculo XVII ainda concebiam essencial mente no modo do grande enfrentamento da invasao Ate 0 seculo XVII a guerra era mesmo essencialmente a guerra de urna massa contra outra massa Boulainvilliers por sua vez faz a rela9ao de guerra penetrar em toda a rela 9aO social vai subdividiIa por mil canais diversos e mos trar a guerra como urna especie de estado permanente entre grupos frentes unidades tMicas de certo modo que se ci vilizam uns aos outros se op5em uns aos Dutros OU ao contrario se aliam uns com os outros Ja nao ha essas gran des massas estaveis e multiplas vai haver urna guerra mul tipla nurn sentido urna guerra de todos contra todos mas urna guerra de todos contra todos nao mais de modo algum e evidente no sentido abstrato e creio eu irreal que Hobbes apresentava quando falava da guerra de todos contra todos e tentava mostrar como nao e a guerra de todos contra todos que e operadora no interior do corpo social Em Boulain villiers ao contrario vamos ter uma guerra generalizada que vai percorrer tanto todo 0 corpo social quanto toda a his toria do corpo social mas nao e evidente como guerra dos individuos contra os individuos mas como guerra de gru pos contra grupos E e essa generaliza9ao da guerra que e acho eu caracteristica do pensamento de Boulainvilliers Eu gostaria de terminar dizendoIhes isto Essa genera liza9ao triplice da guerra leva a que Ela leva ao seguinte a que gra9as a ela Boulainvilliers chegou ao ponto em que os historiadores do direito J Para aqueles historiadores soberania Mas dessa feita ja nao se trata de ilustrar pela narrativa historica a continuidade de uma soberania que elegitima porque continua de urn extre rno a Dutro no elemento do direito Tratase de dizer como nasce a institui9aO singular a figura hist6rica modema do Estado absoluto atraves do jogo de rela90es de fona que sao uma especie de guerra generalizada entre as na90es 195 que narravam a historia no interior do direito publico no interior do Estado a guerra era pois essencialmente a rup tura do direito 0 enigma a especie de massa escura ou de acontecimento bruto que curnpria mesmo tomaIo como ele era e que nao era nao somente principio de inteligibilida de nao se tratava disso mas ao contrario principio de ruptura Ai ao contrario e a guerra que vai precipitar urn tipo de gabarito de inteligibilidade na propria ruptura do direito e que vai pois perrnitir determinar a rela9ao de for9a que sustenta permanentemente certa rela9ao de direito Bou lainvilliers vai assim poder integrar esses acontecimentos que antigamente eram apenas violencia e apresentados em sua massividade essas guerras essas invasoes essas mu dan9as em toda urna camada de conteudos e de profecias que envolvem a sociedade inteira ja que isso toca como voces viram ao direito aeconomia ao sistema fiscal are ligiao as cren9as a instru9ao a pratica da lingua as institui 90eS juridicas A historia a partir do proprio fato da guerra e a partir da analise que se faz em termos de guerra vai poder relacionar todas essas coisas guerra religiao politica costumes e caracteres e vai ser pais urn principia de inte ligibilidade da sociedade A guerra e que deixa a sociedade inteligivel em Boulainvilliers e penso eu a partir dai em todo 0 discurso historico Quando eu falo de gabarito de in teligibilidade nao quero dizer e claro que 0 que Boulain villiers disse e verdadeiro Podese mesmo verossimilmente demonstrar que tudo 0 que ele disse pe9a por pe9a e errado Simplesmente eu diria que se pode demonstrar isso Por AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 194 exemplo 0 discurso que era feito no seculo XVII sobre as origens troianas ou sobre a emigraao dos francos que teriam deixado a Galia em dado momento sob urn certo Sigove gio e que teriam voltado mais tarde nao se pode dizer que eja pertinente ao regime de verdade ou de erro que e 0 nosso E inatribuivel para nos em termos de verdade ou de erro Em compensaao 0 gabarito de inteligibilidade exposto por Boulainvilliers instaurou creio eu urn certo regime urn certo poder de divisao verdadeerro que se pode aplicar ao discurso do proprio Boulainvilliers e que pode fazer dizer alias que seu discurso e falso em seu conjunto e falso em seu detalhe E mesmo se voces quiserem totalmente falso Ainda assim foi esse gabarito de inteligibilidade que foi estabelecido para nosso discurso historico E e a partir de uma inteligibilidade desse tipo que nos daqui para a frente podemos dizer 0 que e verdadeiro ou errado no discurso de Boulainvilliers Esobre isso tambem que eu gostaria de insistir e que fazendo a relaao de fora intervir como uma especie de guerra continua no interior da sociedade Boulainvilliers po dia recuperar mas dessa vez em termos historicos todo urn tipo de analise que se encontrava em Maquiave Mas em Maquiavel a relaao de fora era essencialmente descri ta como tecnica politica a ser posta entre as maos do sobe rano Dai em diante a relaao de fora e run objeto historico que alguem que nao 0 soberano ou seja algo como uma naao a maneira da aristocracia ou mais tarde da burgue sia etc pode situar e deterrninar no interior de sua histo ria A relaao de fora que era run objeto essencialmente politico se torna agora run objeto historico ou melhor run objeto historicopolitico ja que e analisando essa relaao de fora que por exemplo a nobreza vai poder tomar cons ciencia de si mesma reencontrar seu saber tornar a ser uma fora politica no campo das foras politicas A constituiao de run campo historicopolitico 0 funcionamento da histo ria na luta politica foram tornados possiveis a partir do momenta em que num discurso como 0 de Boulainvilliers essa relaao de fora que era de certo modo 0 objeto exclu sivo das preocupaoes do Principe pOde tornarse objeto do saber para urn grupo uma naao uma minaria uma clas se etc A organizaao de run campo historicopolitico come a assim 0 funcionamento da historia na politica a utilizaao da politica como caculo das relaoes de fora na historia tudo isso se integra aqui Outra observaao ainda Eque como voces veem che gase aiMia de que a guerra foi no fundo a matriz de ver dade do discurso historico Matriz de verdade do discurso historical quer dizer 0 seguinte a verdade contrariamente ao que a filosofia ou 0 direito quiseram fazer acreditar nao comeya a verdade e 0 logos nao comecam onde cessa a vio lencia Ao contrario foi quando a nobreza comeou a travar sua guerra politica a urn so tempo contra 0 terceiro estado e contra a monarquia foi no interior dessa guerra e pensan do na historia como guerra que algo como 0 discurso his torico que conhecemos agora pOde estabelecerse Penultima observaao voces sabem que hi run lugar comum que pretende que sejam as classes em ascensao que trazem ao mesmo tempo os valores do universal e a potencia da racionalidade Muito esforo foi feito para tentar demons trar que era a burguesia que havia inventado a historia ja que a historia todos sabem e racional e ja que a burgue sia do seculo XVIII classe ascendente trazia consigo 0 universal e 0 raciona Pois bern eu acho que se tern quan do se olham as coisas run pouco mais de perto 0 exemplo de uma classe que na mesma medida em que estava em plena decadencia despojada de seu poder politico e economico implantou runa certa racionalidade historica de que a bur guesia em seguida 0 proletariado depois se apossarao Mas 196 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 18 DE FEVERE1RO DE 1976 197 eu nao direi que e porque estava em decadencia que a aris tocracia francesa inventou a historia Eporque ela fazia a guerra que pOde atribuirse precisamente sua guerra como objeto sendo a guerra a urn so tempo 0 ponto inicial do dis curso a condiao de possibilidade da emergencia de urn discurso historico e 0 referencial 0 objeto para 0 qual se volta esse discurso sendo a guerra ao mesmo tempo aqui 10 a partir de que 0 discurso fala e aquilo de que ele fala Enfim derradeira observaao se Clausewitz pOde urn dia dizer urn seculo depois de Boulainvilliers e por conse guinte dois seculos depois dos historiadores ingleses que a guerra era a politica continuada por outros meios e porque houve alguem que no seculo XVII na virada do seculo XVII para 0 XVIII pOde analisar expor e mostrar a politica como sendo a guerra continuada por outros meios 198 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 Boulainvilliers e a constitui9iio de urn continuo histori copolitico a historicismo Tragedia e direito publico A administraroo central da historia Problematica das Lu zes e genealogia dos saberes As quatro opera90es do saber disciplinar e seus efeitos Afilosofia e a clenda 0 disci plinamento dos saberes Falandolhes de Boulainvilliers eu nao queria de modo algum mostrarlhes que com ele comeava algo como a his toria ja que afinal de contas nao ha razao para dizer que a historia nasce antes com ele do que por exemplo com os juristas do seculo XVI que haviam examinado os monurnen tos do direito publico do que com os parlamentares que ao longo de todo 0 seculo XVII haviam pesquisado nos arqui vos e na jurisprudencia do Estado 0 que poderiam ser as leis fundamentais do reino do que com os beneditinos que haviam sido os grandes colecionadores de codices desde 0 fim do seculo XVI De fato 0 que se constituiu no inicio do seculo XVIII com Boulainvilliers foi algo creio eu que e urn campo historicopolitico Em que sentido Primeiro neste tomando a naao ou melhor as naoes como objeto Boulainvilliers analisou sob as instituioes sob os aconte cimentos sob os reis e sob 0 poder deles algo diferente essas sociedades por conseguinte como se dizia na epoca em que se ligavam os interesses os costumes e as leis ao mesmo tempo Portanto tomando esse objeto ele praticava uma dupla conversao De uma parte fazia e creio que era a 200 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 201 primeira vez que isso sucedia a historia dos suditos ou seja passava para 0 outro lado em relaao ao poder comeava a dar status na historia a algo que se tomara no seculo XIX com Michelet a historia do povo ou dos povosl Ele desco bria certa materia da historia que era 0 outro lado da relaao de poder Mas analisava essa nova materia da historia nao como uma substancia inerte mas como uma fona ou for as pois 0 proprio poder nao passava de uma delas uma es pecie de fora singular a mais estranha dentre todas as for as que lutavam entre si no interior do corpo social 0 poder e aquele do pequeno grupo dos que 0 exercem mas nao tern fora e no entanto esse poder afinal de contas esse poder se toma a mais forte de todas as foras uma fora a qual nenhurna outra pode resistir salvo violencia ou revolta 0 que Boulainvilliers descobria era que a historia nao devia ser a historia do poder mas a historia desse par monstruoso es tranho em todo caso cujo enigma nenhuma ficao juridica podia reduzir ou analisar exatamente isto e par formado pelas foras originarias do povo e a fora finalmente cons tituida de alguma coisa que nao tern fora mas que e porem o poder Deslocando 0 eixo 0 centro de gravidade de sua ana lise Boulainvilliers fazia algo importante Sobretudo por que ele definia 0 principio daquilo que se poderia denominar o cariller relacional do poder 0 poder nao e uma proprieda de nao e urna potencia 0 poder sempre e apenas urna relaao que so se pode e so se deve estudar de acordo com termos entre os quais atua essa relaao Portanto nao se pode fazer nem a historia dos reis nem a historia dos povos mas a his toria daquilo que constitui urn em face do outro esses dois termos dos quais urn nunca einfinito e 0 Dutro nuncaezero 1 J Michelet Le peuple Paris 1846 Fazendo essa historia definindo 0 cariller relacional do po der e analisandoo na historia Boulainvilliers recusava e e esse acho eu 0 outro aspecto de sua operaao 0 mode 10 juridico da soberania que fora ate entao a tinica manei ra que se tinha de pensar a relaao entre 0 povo e 0 monar ca ou ainda entre 0 povo e os que govemam Nao e em ter mos juridicos de soberania mas em termos historicos de dominaao e de jogo entre as relaoes de fora que Bou Iainvilliers descreveu esse fenameno do poder E foi nesse campo que ele colocou 0 objeto de sua analise historica Fazendo isso atribuindose como objeto urn poder que era essencialmente relacional e nao adequado aforma juri dica da soberania definindo pois urn campo de foras onde atua a relaao de poder Boulainvilliers tomava como obje to do saber historico a mesma coisa que fora analisada por MaquiaveF mas em termos prescritivos de estrategia de urna estrategia vista somente do lado do poder e do Princi pe Dirao que Maquiavel fez outra coisa que dar ao Principe conselhos serios Oll ironicos essaja euma Dutra questao na gestao e na organizaao do poder e que afinal de con tas 0 proprio texto do Principe e repleto de referimcias his toricas Dirao tambem que Maquiavel fez os Discursas sabre a primeira decada de Tita Livia etc Mas na verdade em 2 N MaquiaveI Ii Principe Roma 1532 Discorsi sopra la prima deca di Tita Livia op cit Dellarte della guerra Floreo9a 1521 lstoriefio rentine Floreoya 1532 Sao numerosissimas as traduyoes francesas de 0 Principe Os outros textos podem seT lidos na ediyao de E Barincou Maquia vel Euvres completes Paris Gallimard Bibiioteque de la Pleiade 1952 que utilizou e atualizou as antigas traducoes de J Guiraudet 1798 Foucault tratara de Maquiavel sobretudo em dois ensaios Dmnes et singulatim 1981 e The political Technology of Individuals 1982 ver tambem a aula no Col1ege de France de 1 de fevereiro de 1978 sobre A govemabilidade textos citados supra aula de 21 de janeiro nota 13 202 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 203 Maquiavel a historia nao e 0 dominio no qual ele vai anali sar rela90es de poder A historia para Maquiavel e simples mente urn lugar de exemplos uma especie de coletanea de jurisprudencia ou de modelos taticos para 0 exercicio do po der A historia para Maquiavel sempre se limita a registrar rela90es de for9a e calculos ocasionados por essas rela90es Em compensa9ao para Boulainvilliers e e isso acho eu o importante a rela9ao de for9a e 0 jogo do poder sao a pro pria substancia da historia Se ha historia se ha acontecimen tos se OCOrre alguma coisa cuja memoria se pode e se pre cisa guardar e precisamente na medida em que atuam entre os homens rela90es de poder rela90es de for9a e certo jogo de poder A narrativa historica por conseguinte e 0 calculo politico tern para Boulainvilliers exatamente 0 mesmo objeto Sem duvida a narrativa historica e 0 calculo politico nao tern a mesma finalidade mas aquilo de que falam aquilo de que se trata na narrativa e no calculo esta exatamente em conti nuidade Logo temos em Boulainvilliers creio eu pela pri meira vez urn continuo historicopolitico Podese dizer tam bern noutro sentido que Boulainvilliers abriu urn campo historicopolitico pela razao que se segue Eu lhes disse e acho que e fundamental para compreender a partir de que Boulainvilliers falava que para ele se tratava de considerar como critico 0 saber dos intendentes essa especie de ana lise e de programa de govemo que os intendentes ou de urn modo geral a administra9ao publica monarquica propunham incessantemente ao poder Boulainvilliers e verdade se opoe radicalmente a esse saber mas reimplantando no interior de seu proprio discurso e para fazelas funcionar para seus fins pessoais as proprias analises que se encontram nesse saber dos intendentes Tratase de confiscalo e de fazelo funcio nar contra 0 sistema da monarquia absoluta que era ao mes mo tempo 0 lugar de nascimento e 0 campo de utiliza9ao desse saber administrativo desse saber dos intendentes des se saber economico E no fundo quando Boulainvilliers analisa atraves da historia toda urna serie de rela90es precisas entre se voces quiserem organiza9ao militar e fisco ele nada mais faz senao aclimatar ou melhor utilizar para suas analises his toricas urna forma de rela9ao urn tipo de inteligibilidade urn modelo de rela90es que eram exatamente aqueles que 0 saber administrativo 0 saber fiscal 0 saber dos intendentes haviam definido por sua vez Por exemplo quando Boulain villiers explica a rela9ao que ha entre 0 mercenarismo a eleva9ao do fisco 0 endividamento campones a impossibi lidade de comercializar os produtos da terra ele nada mais faz senao retomar mas na dimensao historica 0 que na epo ca estava em questao entre os intendentes ou financistas do reinado de Luis XlV Voces encontrarn exatarnente as mesmas especula90es por exemplo em pessoas como Boisguilbert ou Vauban A rela9ao entre endividamento rural e ennque cimento urbano foi igualmente uma discussao essencial em todo 0 final do seculo XVII e no inicio do seculo XVIII Portanto e realmente 0 mesmo modo de inteligibilidade que se encontra no saber dos intendentes e nas analises histori cas de Boulainvilliers mas ele e 0 primeiro a ter feito esse tipo de rela9ao funcionar no interior do dominio da narrati va historica Em outras palavras Boulainvilliers faz funclO nar como principio de inteligibilidade da historia 0 que ate entiio era apenas 0 principio de racionalidade na gestao do Estado 0 fato de a historia e a gestao do Estado entrarem 3 Pierre Ie Pesant de Boisguilbert Le derail de fa France s1 1695 Factum de fa France 1707 in Economistes financiers du XVIIe siide Paris 1843 Testament politique de M de Vauban Marechal de France s1 1707 2 voL Dissertation sur 1a nature des richesses de l argent et des tn huts Paris sd 4 Sebastien Ie Prestre de Vauban Methode generale etfacile pourlaire Ie denombrement des peuples Paris 1868 Projet d une dixme royale 51 1707 em continuidade e acho eu urn fenomeno capital A utili zacao do modelo de racionalidade administrativa do Estado como gabarito de inteligibilidade especulativa da hist6ria e isso que constitui 0 continuo hist6ricopolitico Urn conti nuo que vai fazer com que dai em diante falar da hist6ria e analisar a gestao do Estado podera se fazer segundo 0 mesmo vocabulario e segundo 0 mesmo gabarito de inteli gibilidade ou de calculo ereio por fim que Boulainvilliers constituiu urn con tinuo hist6ricopolitico na medida em que quando narra ele tern urn projeto precise e especifico tratase realmente para ele de tomar a dar i nobreza urna mem6ria que ela per deu e ao mesmo tempo urn saber que ela sempre menospre zou TomandoIhe a dar mem6ria e saber 0 que Boulain villiers quer fazer e tomar a darIhe forca reconstituir a nobreza como forca no interior das forcas do campo social Em conseqiiencia para Boulainvilliers tomar a palavra na area da hist6ria contar urna hist6ria nao e simplesmente descrever uma relacao de forca nao e simplesmente reutili zar em proveito da nobreza por exemplo urn calculo de in teligibilidade que era ate enta 0 do govemo Tratase de modificar com isso mesmo em seu proprio dispositive e em seu equilibrio atual as relacoes de forca A hist6ria nao e simplesmente urn analisador ou urn decifrador das forcas e urn modificador Em conseqiiencia 0 controle 0 fato de ter razao na ordem do saber hist6rico em resumo dizer a ver dade da hist6ria e por isso mesmo ocupar urna posicao es trategica decisiva Para resumir tudo isso podese dizer que a constituicao de urn campo hist6ricopolitico se traduz pelo fato de que se passou de urna hist6ria que ate entao tinha como funcao dizer 0 direito narrando as facanhas dos her6is ou dos reis suas batalhas suas guerras etc passouse de urna hist6ria que dizia 0 direito narrando as guerras para uma hist6ria que agora faz a guerra decifrando a guerra e a luta que perpas sam todas as instituicoes do direito e da paz Logo a hist6ria tomouse urn saber das lutas que se estende por si mesmo e funciona num campo de lutas combate politico e saber his t6rico estao dai em diante ligados urn ao outro E se por certo e verdade que nunca houve enfrentamentos que nao fossem acompanhados de recordacoes de memoriais de diversos rituais de memorizaao eu efeio que agora a par tir do seculo XVIll e e ai que a vida e 0 saber politicos co mecam a inserirse nas lutas reais da sociedade a estrate gia 0 calculo imanente a essas lutas vao articularse basea dos nurn saber hist6rico que e decifracao e anilise das forcas Nao se pode compreender a emergencia dessa dimensao es pecificamente modema da politica sem compreender como o saber hist6rico tomouse a partir do seculo XVIll urn elemento de luta a urn s6 tempo descricao das lutas e arma na luta Logo organizaCao desse campo hist6ricopolitico A hist6ria nos trouxe a ideia de que estamos em guerra e fazemos a guerra atraves da hist6ria A este respeito estando isto fixado duas palavras an tes de retomar essa guerra que e travada atraves da hist6ria dos povos Uma primeiro a prop6sito do historicismo Todos sabem e claro que 0 historicismo e a coisa mais hor rorosa do mundo Nao hi filosofia digna desse nome nao hi teoria da sociedade nao hi epistemologia urn pouco su perior ou elevada que nao devam evidentemente lutar radi calmente contra a mediocridade do historicismo Ninguem ousaria confessar que e historicista E eu creio que se pode ria mostrar facilmente como desde 0 seculo XIX todos os grandes fi16sofos foram de uma maneira ou de outra anti historicistas Poderiamos mostrar acho eu iguaimente como todas as ciencias humanas so se sustentam e talvez no limite 204 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 205 5 Sabre 0 antihistoricismo do saber contemporaneo cf em especial Les mots et les choses op cit cap X IV so existam por serem antihistoricistas5 Poderiamos mos trar tambem como a historia a disciplina historica em seus recursos que tanto a encantam seja a uma filosofia da his toria seja a uma idealidade juridica e moral seja as cien cias humanas procura escapar ao que poderia ser sua incli naao fatal e interior ao historicismo Mas 0 que e esse historicismo de que todo 0 mundo tratese da filosofia das ciencias humanas da historia des confia tanto Que e esse historicismo que se deve a qual quer preo conjurar e que a modernidade filosofica cienti fica e mesmo politica sempre tentou conjurar Pois bem eu creio que 0 historicismo nada mais e senao 0 que acabo precisamente de evocar esse no essa dependencia incon tormivel da guerra ahistoria e reciprocamente da hist6ria a guerra 0 saber historico por mais longe que va jamais encontra nem a natureza nem 0 direito nem a ordem nem a paz Por mais longe que va 0 saber historico so encontra o indefinido da guerra isto e as foras com suas relaoes e seus enfrentamentos e os acontecimentos nos quais se deci dem de uma maneira sempre provisoria as relaoes das foras A historia encontra apenas a guerra mas essa guer ra a historia jamais pode dominaIa inteiramente a historia jamais pode contornar a guerra nem encontrar suas leis fun damentais nem impor seus limites pura e simplesmente porque a propria guerra sustenta esse saber passa por esse saber atravessao e determinao Esse saber sempre e ape nas uma arma na guerra ou ainda urn dispositivo tatico no interior dessa guerra A guerra se trava portanto atraves da historia e atraves da historia que a narra E de seu lado a his toria nunca pode decifrar senao uma guerra que ela propria faz ou que passa por ela Pois bem eu creio que esse no essencial entre 0 saber historico e a prMica da guerra e grosso modo 0 que cons titui 0 nucleo do historicismo esse nucleo ao mesmo tempo irredutivel e que sempre se tem de expurgar por causa des sa ideia que foi relanada sem parar de um ou dois milenios para eli e a que se pode chamar platonica se bem que sempre convem desconfiar dessa atribuiao geral ao pobre Platao de tudo quanta se quer banir essa ideia que veros similmente se encontra ligada a qualquer organizaao do saber ocidental a de que 0 saber e a verdade nao podem nao pertencer ao registro da ordem e da paz que jamais se pode encontrar 0 saber e a verdade do lado da violencia da de sordem e da guerra A proposito dessa ideia seja ela plat6 nica ou nao pouco importa de que 0 saber e a verdade nao podem pertencer a guerra mas so podem ser da ordem e da paz eu acho que 0 que e importante e que 0 Estado moder no a reimplantou profundamente em nossa epoca mediante o que se poderia denominar 0 disciplinamento dos sabe res no seculo XVIII E e essa ideia que nos torna insuportavel o historicismo que nos torna insuportavel aceitar algo como uma circularidade indissociavel entre 0 saber historico e as guerras que sao ao mesmo tempo narradas por ele e que porem 0 perpassam Logo problema e se voces preferirem primeira tarefa tentar ser historicistas ou seja analisar essa relaao perpetua e incontornavel entre a guerra narrada pela historia e a hist6ria perpassada par essa guerra que ela narra I nesta linha que tentarei enta continuar esta pequena his toria dos gauleses e dos francos que eu comecei I isso quanta a primeira observaao quanta a primei ra digressao a proposito desse historicismo Segunda coisa um tema que acabei de abordar M pouco isto e 0 discipli namento dos saberes no seculo XVIII ou melhor se voces preferirem por um outro prisma uma objeao que se pode fazer Colocando assim a historia a historia das guerras e a 207 AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOClEDADE 206 0 ajustamento do sentido a partir da gravalao foi dificil De fato as 18 primeiras paginas do manuscrito foram recolocadas no final no desenrlar do curso 6 0 texto entre colchetes foi estabelecido segundo 0 manuscrito de M Foucault guerra atraves da historia como 0 grande aparelho discursi vo pelo qual se fez no seculo XVIII a critica do Estado fa zno essa relayao guerralhistoria a condiyao de emeren Cla da polltlCa a ordem tinha pois como funyao res tabelecer a continuidade em seu discurso No momenta em que os juristas se interrogavam sobre os arqUlvos para conhecer as leis fundamentais do reino de lineavase uma historia dos historiadores que nao era 0 an to do poder sobre si mesmo Nao convem esquecer que no seculo XVII e nao somente na Franya a tragedia era uma das grandes formas rituais nas quais se manifestava 0 direito pUblio e se deatiam seus problemas Pois bern as trage dlaS hlstoncas de Shakespeare sao tragedias do direito e do rei essencialmente centradas no problema do usurpador e da decadencia do assassinio dos reis e do nascimento de urn ser novo constituido pela coroayao de urn rei Como urn individuo podeni receber pela violencia pela intriga pelo assaSSllllO e a guerra um poderio publico que deve fazer rei nar a paz a justiya a ordem e a felicidade Como a ilegitimi dade podeni produzir a lei Ao passo que na mesma epoca a teoria e a historia do direito se empenhavam em tecer a con tinuidade sem ruptura do poder publico a tragectia de Shakes peare pr sua vez se aferra6 ao contrario a essa chaga a essa especle de ferida repetida que 0 corpo da realeza traz desde que ha morte violenta dos reis e adventos de sobera nos ilegitimos Eu creio portanto que a tragectia shakes peariana e ao menos por urn de seus eixos uma especie de cerimonia de ritual de memorizayao dos problemas do di reito publico Poderiamos dizer a mesma coisa da tragedia francesa a de Comeille e lalvez mais ainda da de Racine jus tamente E alias de um modo geral acaso a tragedia grega tarnbem nao e sempre essencialmente uma tragedia do di reito Eu creio que ha dependencia fundamental essencial entre a tragedia e 0 direito entre a tragedia e 0 direito publico bern como verossirnilmente ha dependencia essencial en tre 0 romance e 0 problema da norma A tragedia e 0 direito o romance e a norma talvez se devesse olhar tudo isso Em todo caso a tragedia na Franya no seculo XVII e ela tambem uma especie de representayaO do direito publico uma represenlayao historicojuridica do poder publico Com uma diferenya claro e e essa a diferenya fundamental entre ela e Shakespeare genialidade a parte de urn lado na tragectia classica francesa em geral so se trata dos reis antigos Codificayao ligada por certo a prudencia politica Mas afinal de conlas tampouco se deve esquecer que en tre todas as razoes dessa referencia a Antiguidade ha 0 se guinte 0 direito monarquico no seculo XVII na Franya e sobretudo sob Luis XlV considerase por sua forma e mes mo pela continuidade de sua historia como situandose em linha direta com relayao as monarquias antigas Erealmen te 0 mesmo tipo de poder e 0 mesmo tipo de monarquia e substancial e juridicamente a mesma monarquia que encon tramos em Augusto ou Nero no limite em Pirro e depois em Luis XlV Por outro lado na tragedia classica francesa hi referencia a Antiguidade mas presenya tambem dessa instituiyao que parece de certo modo limitar os poderes tri gicos da tragedia e fazela cair num teatro da galantaria e da intriga a presenya da corte Tragedia da Antiguidade e trage dia da corte Mas que e a corte senao precisamente e isto de uma forma incontestivel em Luis XIV tambem ai uma especie de aula de direito publico A corte tern essencial 209 AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 208 mente como fun9ao constituir organizar urn lugar de mani festa9ao cotidiana e permanente do poder monarquico em seu esplendor No fundo a corte e essa especie de opera9ao ritual permanente recome9ada dia ap6s dia que requalifica urn individuo urn homem particular como sendo 0 rei como senda 0 monarca como senda 0 soberano A corte em seu ritual mon6tono e a opera9ao incessantemente renavada pela qual urn homem que se levanta que passeia que come que tern seus amores e suas paixoes eao mesma tempo atraves disso a partir disso e sem que nada disso seja de algum mo do eliminado urn soberano Tomar seu amor soberano tor nar sua alimenta9ao soberana tomar soberanos seu despertar e seu deitar e nisso que consiste a opera9ao especifica do ritual e do cerimonial da corte E ao passo que a corte re qualifica incessantemente 0 cotidiano como soberano como a pessoa de urn monarca que e a substiincia mesma da mo narquia atragedia faz isso de certo modo em sentido inver so a tragedia desfaz e recompoe se voces quiserem 0 que o ritual cerimonial da corte estabelece a cada dia A tragedia classica a tragedia raciniana 0 que e que ela faz Ela tern como fun9ao em todo caso esse e urn de seus eixos constituir 0 avesso da cerimonia mostrar a cerimo nia rasgada 0 momento em que 0 detentor do poderio pUbli co 0 soberano vaise decompondo aos poucos em homem de paixao em homem de c6lera em homem de vingan9a em homem de amor de incesto etc e em que 0 problema e saber se a partir dessa decomposi9ao do soberano em ho mem de paixao 0 reisoberano podera renascer e recompor se morte e ressurrei9ao do corpo do rei no cora9ao do mo narca E e esse 0 problema juridico muito mais do que psi col6gico que e apresentado pela tragedia raciniana Nessa medida vOCes compreendem bern que Luis XlV ao pedir a Racine que se tomasse seu histori6grafo nada mais fazia senao continuar na linha daquilo que era a historiografia da monarquia ate enmo ou seja cantar 0 pr6prio poder mas ao mesmo tempo permitia tambem a Racine continuar na mes rna fun9ao que havia exercido quando escrevia tragedias SolicitavaIhe no fundo que escrevesse como histori6gra fo 0 quinto ato de urna tragedia feliz ou seja a eleva9ao do homem privado do homem de corte e de cora9ao ate 0 ponto em que se toma chefe de guerra e monarca detentor da soberania Confiar sua historiografia a urn poeta tritgico nao era em absoluto no fundo sair da ordem do direito nao era trair de modo aIgum a velha fun9ao da hist6ria que era dizer 0 direito e dizer 0 direito do Estado soberano Erapor urna necessidade vinculada ao absolutismo do rei retor nar ao contrario a fun9ao mais pura e mais elementar da historiografia regia nessa monarquia absoluta da qual nao se pode esquecer que por urna especie de estranho remer gulho no arcaismo ela fazia da cerimonia do poder urn mo menta politico intenso e em que a corte como cerim6nia do poder era urna aula cotidiana de direito publico urna ma nifesta9ao cotidiana de direito publico Compreendese que a hist6ria do rei possa ter retomado assim sua forma pura sua forma magicopoetica de certo modo A hist6ria do rei nao podia nao voltar a ser 0 canto do poder sobre si mesmo Logo absolutismo cerimonial da corte ilustra9ao do direi to publico tragedia classica historiografia do rei tudo isto acho eu pertencia a urn mesmo conjunto Perdoemme essas especula90es sobre Racine e a his toriografia Pularnos urn seculo justarnente 0 seculo que foi inaugurado por Boulainvilliers e tomarnos 0 derradeiro dos monarcas absolutos com seu derradeiro histori6grafo Luis XVI e JacobNicolas Moreau sucessor longinquo de Racine de quem euja Ihes disse algumas palavras e que era 0 admi nistrador 0 ministro da hist6ria que Luis XVI havia nomea do por volta dos anos 1780 Se 0 compararmos com Racine 210 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 21 I quem e Moreau Paralelo perigoso mas que talvez nao seja desfavonivel a quem voces acham Moreau e 0 defensor eru dito de wn rei claro que teni em sua vida urn certo mune ro de ocasioes de ser defendido Defensor e exatamente esse 0 papel que ele tem quando e nomeado hi pela decada de 1780 nurn momento em que justamente os direitos da monarquia sao atacados em nome da hist6ria e isto de hori zontes bem diferentes nao somente do lado da nobreza mas dos parlamentares mas da burguesia tambem Foi 0 mo mento em que a hist6ria se tornou justamente 0 discurso pelo qual cada na9ao entre aspas e em todo caso cada ordem cada c1asse valoriza seu pr6prio direito 0 momento em que a hist6ria se tornou se voces preferirem 0 discurso geral das lutas politicas Nesse momento portanto cria9iio de urn Ministerio da Hist6ria E e quando voces me diriio a hist6ria escapou realmente a esse ponto ao Estado ja que se ve urn seculo depois de Racine aparecer urn histori6grafo que e pelo menos tiio ligado ao poder do Estado ja que ele tern verdadeiramente ele exerce como acabei de dizer uma fun9iiO se niio ministerial pelo menos administrativa De que se tratava entiio nessa cria9iio nessa adminis tra9iio central da hist6ria Tratavase de armar nessa bata lha politica 0 rei na medida em que ele niio passa afinal de contas de urna for9a dentre outras e atacada pelas outras Tratavase tambem de tentar estabe1ecer urn tipo de paz irn posta nessas lutas hist6ricopoliticas Tratavase de codifi car de urna vez por todas esse discurso da hist6ria para que ele pudesse integrarseapnitica do Estado Dai as tarefas que haviam sido confiadas a Moreau cotejar os docurnentos da administra9iio publica polos adisposi9ao da pr6pria admi nistra9iio publica primeiro a da fazenda depois as outras e enfirn abrir esses docurnentos esse tesouro de docurnen tos a pessoas que seriam pagas pelo rei para fazer ossa pes 70 resultado desse enorme trabalho realizado pOf JN Moreau se encontra em Principes de morale de politique et de droit public op cit Para uma ilustraao dos criterios utilizados por JN Moreau na preparalao desse trabalho e para a sua historia cf tambem 0 Plan des travaux litteraires ordonnes par sa Majese op cit quisa7 Com a diferen9a portanto de que Moreau nao e Ra cine de que Luis XVI nao e Luis XlV e de que se esta longe da descri930 cerimoniosa da passagem do Reno qual e a diferen9a entre Moreau e Racine entre a antiga historio grafia a que encontramos em seu ponto de certo modo mais puro no final do seculo XVII e essa especie de hist6 ria de que 0 Estado esta se incumbindo e cujo controle esta assumindo no final do seculo XVIII Podemos dizer que a hist6ria deixou de ser urn discurso do Estado sobre si mesmo desde que talvez se tenba largado a historiografia de corte para cair nurna historiografia de tipo administrativo Eu acho que a diferen9a e consideravel e em todo caso que re quer ser medida E ai entiio nova digressiio se voces quiserem 0 que distingue 0 que se poderia denominar a hist6ria das ciencias da genealogia dos saberes e que a hist6ria das ciencias se si tua essencialmente num eixo que e em linhas gerais 0 eixo conbecimentoverdade ou em todo caso 0 eixo que vai da estrutura do conbecimento aexigencia da verdade Em con traste com a hist6ria das ciencias a genealogia dos saberes se situa nurn eixo que e diferente 0 eixo discursopoder ou se voces preferirem 0 eixo pratica discursivaenfrentamento de poder Ora pareceme que quando a aplicamos a esse periodo privilegiado por carradas de razoes que e 0 seculo XVIII quando a aplicamos a essa area a essa regiiio a ge nealogia dos saberes tem primeiro de desmantelar antes de mais nada a problematica das Luzes Ela tem de desmante lar 0 que na epoca e alias no seculo XIX e ainda no XX 213 AULA DE 25 DE FEVERE1RO DE 1976 EMDEFESA DA SOCIEDADE 212 foi descrito como 0 progresso das Luzes a 1uta do conheci mento contra a ignorancia da razao contra as quimeras da experiencia contra os preconceitos dos raciocinios contra 0 erro etc Tudo isso que foi descrito e simbolizado como a caminhada do dia dissipando a noite e disso que e preciso acho eu livrarse e preciso em compenSa930 perceber no curso do seculo XVIII em vez dessa rela930 entre dia e noite entre conhecimento e ignorancia algo muito diferen te urn imenso e multiplo combate nlio pois entre conheci mento e ignorancia mas urn imenso e multiplo combate dos saberes uns contra os outros dos saberes que se opoem en tre si por sua morfologia pr6pria por seus detentores inimi gos uns dos outros e por seus efeitos de poder intrinsecos Vou usar aqui urn ou dois exemplos que me afastarlio provisoriamente da hist6ria 0 problema se voces preferi rem do saber tecnico tecnol6gico Costumase dizer que 0 seculo XVIII e 0 seculo de emergencia dos saberes tecnicos De fato 0 que se passou no seculo XVIII foi algo muito diferente Primeiro a existencia plural polimorfa mUltipla dispersa de saberes diferentes que existiam com suas dife ren9as conforme as regiOes geograicas conforme 0 porte das empresas das oficinas etc estou falando de conheci mentos tecnol6gicos nlio e conforme as categorias so ciais a eduCa930a riqueza daqueles que os detinham E tais saberes estavam em luta uns com os outros uns diante dos oUlros nurna sociedade em que 0 segredo do saber tecnol6 gico valia riqueza e em que a independencia desses saberes uns em rela930 aos oUlros significava tamoom a independen cia dos individuos Portanto saber mUltiplo sabersegredo saber que funciona como riqueza e como garantia de inde pendencia era nesse fracionamento que funcionava 0 saber tecnol6gico Ora II medida que se desenvolveram tanto as for 9as de produ93o quanto as demandas economicas 0 valor desses saberes aumentou a luta desses saberes uns com rela 930 aos outros as delimita90es de independencia as exigen cias de segredo tomaramse mais fortes e de certo modo mais tensas Nessa mesma ocasi3o desenvolveramse pro cessos de anexa93o de confisco de aprOpria930 dos sabe res menores mais particulares mais loeais mais artesanais pelos maiores eu quero dizer os mais gerais os mais indus triais aqueles que circulavam mais faciimente urna especie de imensa luta economicopolitica em tomo dos saberes a prop6sito desses saberes a prop6sito da dispers3o e da hete rogeneidade deles imensa luta em tomo das indu90es eco nomicas e dos efeitos de poder ligados II posse exclusiva de urn saber II sua dispers3o e ao seu segredo Enesta forma de saberes mUltiplos independentes heterogeneos e secretos que se deve pensar 0 que foi chamado de desenvolvimento do saber tecnol6gico do seculo XVIII e nessa forma de mul tiplicidade e n3o no progresso do dia sobre a noite do co nhecimento sobre a ignoriincia Ora nessas lutas nessas tentativas de anexa930 que S30 ao mesmo tempo tentativas de generaliza930 0 Estado vai intervir direta ou indiretamente mediante acho eu quatro procedimentos Primeiro a elimina930 a desquaiifica930 da quilo que se poderia charnar de pequenos saberes inuteis e irredutiveis economicamente dispendiosos elimina930 e des qualifica930 portanto Segundo normaliza930 desses sabe res entre si que val permitir ajusllilos uns aos outros fazelos comunicarse entre si derrubar as barreiras do segredo e das delimita90es geogrMicas e tecnicas em resurno tomar intercambhiveis n3o s6 os saberes mas tambem aqueles que os detem normaliza930 pois desses saberes dispersos Ter ceira opeTa93o classifica930 hienirquica desses saberes que perrnite de certo modo encaixalos uns nos outros desde os mais especificos e mais materiais que serno ao mesmo tempo os saberes subordinados ate as formas mais gerais ate os saberes mais formals que serno a urn s6 tempo as 214 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 25 DE FEVERERO DE 976 215 formas envolventes e diretrizes do saber Portanto classifica 9iiO hierarquica E enfim a partir dai possibilidade da quar ta opera9iio de urna centraliza9iio piramidal que perruite 0 controle desses saberes que assegura as sele90es e permite transruitir a urn so tempo de baixo para cima os conteudos desses saberes e de cima para baixo as dire90es de conjunto e as organiza90es gerais que se quer fazer prevalecer A esse movimento de organiza9iio dos saberes tecnolo gicos correspondeu toda urna serie de pnlticas de empreen dimentos de institui90es A Enciclopedia por exemplo Ha bituaramse aver na Enciclopedia apenas seu lado de opo si9iiO politica ou ideologica a monarquia e a urna forma pelo menos de catolicismo De fato seu interesse tecnologi co niio deve ser atribuido a urn rnaterialismo filos6fico mas realmente a urna opera9iio a urn so tempo politica e econ6mi ca de homogeneiza9iio dos saberes tecnologicos As grandes investiga90es sobre os metodos do artesanato sobre as tec nicas metalfugicas sobre a extra9iio mineira etc essas grandes investiga90es que se desenvolveram desde meados ate 0 fun do seculo XVlIl corresponderam a esse empreen dimento de normaliza9iio dos saberes tecnicos A existencia a cria9iio ou 0 desenvolvimento de grandes escolas como a das Minas ou das Obras Publicas etc permitiram estabele cer niveis cortes estratos ao mesmo tempo qualitativos e quantitativos entre os diferentes saberes 0 que permitiu a hierarquiza9iio deles E enfim 0 corpo de inspetores que em toda a superficie do reino deram informa90es e conselhos para a organiza9iio e a utiliza9iio desses saberes tecnicos assegurou a fun9iio de centraliza9iio Poderiamos dizer a mes rna coisa tambem usei 0 exemplo dos saberes tecnicos a proposito do saber medico Toda a segunda metade do seculo XVlIl viu desenvolverse todo urn trabalho de ho mogeneiza9iio normaliza9iio classifica9iio e centraliza9iio ao mesmo tempo do saber medico Como conferir urn con 8 Sabre os procedimentos de nonnalizallao no saber medico podemos citar 0 conjunto dos textos de M Foucault que vao de Naissance de fa clinique Une archeologie du regard medical Paris PUP 1963 as conferencias brasilei ras sobre a histOria da medicina em 1974 cf Dits et ecrits III n 170 196 e 229 e enfun a analise do policiamento medico em La politique de la sante au XVIIIe siecle 1976 e 1979 in Dits et ecrits ITI n 168 e 257 9 Sabre 0 poder disciplinar e seus efeitos sabre 0 saber veT em parti cular Surveiller et punir Naissance de la prison Paris Gallimard 1975 teudo e uma forma ao saber medico como impor regras homogeneas a pratica dos tratamentos como impor essas regras apopula9iio menos alias para fazela compartilhar esse saber do que para torOlIlo aceitivel a ela Isso foi a cria9iio dos hospitais dos dispensarios da Sociedade Real de Medicina a codifica9iio da profissiio medica toda urna enorme campanha de higiene publica toda urna enorme campanha tambem sobre a higiene dos recemnascidos e das crian9as etc8 No fundo em todos esses empreendimentos dos quais eu Ihes citei somente dois exemplos tratavase de quatro coisas seliio normaliza9iio hierarquiza9iio e centraliza9iio Siio essas as quatro opera90es que podemos ver em anda mento nwn estudo urn pouco detalhado daquilo que e deno minado 0 poder disciplinar 0 seculo XVlIl foi 0 seculo do disciplinamento dos saberes ou seja da organiza9iio inter na de cada saber como uma disciplina tendo em seu campo proprio a urn so tempo criterios de sele9iio que permitem descartar 0 falso saber 0 naosaber formas de normaliza9iio e de homogeneiza9iio dos conteUdos forrnas de hierarqui za9iio e enfim urna organiza9iio interna de centraliza9iio desses saberes em torno de urn tipo de axiomatiza9iio de fato Logo organiza9iio de cada saber como disciplina e de outro lado escalonamento desses saberes assim disciplinados do interior sua intercomunica9iio sua distribui9iio sua hierar 217 AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 216 quizaao reciproca nwna especie de campo global ou de dis ciplina global a que chamam precisamente a ciencia A ciencia niio existia antes do seculo XVIII Existiam cimcias existiam saberes existia tambem se vOCes quiserem a filo sofia A filosofia era justamente 0 sistema de organizaao ou melhor de comunicaao dos saberes uns em relaao aos outros e e nesta medida que ela podia ter wn papel efeti YO real operacional no interior do desenvolvimento dos co nhecimentos Aparece agora com 0 disciplinamento dos sa beres em sua singularidade polimorfa ao mesmo tempo 0 fato e a regra que agora estiio incorporados na nossa cultura e que se chama ciencia Desaparece creio eu nesse mo mento e pelo mesmo motivo de wn lado 0 papel ao mesmo tempo fundamental e fundador da filosofia A filosofia dai em diante ja nao tera nenhwn papel efetivo para desempe nhar no interior da ciencia e dos processos de saber Desapa reee ao mesmo tempo e reciprocamente a mathesis como projeto de uma ciencia universal que serviria tanto de ins trumento formal quanta de fundamento rigoroso a todas as ciencias A ciencia como dominio geral como policiamento disciplinar dos saberes tomou 0 lugar tanto da filosofia quan to da mathesis E doravante ela vai formular problemas es pecificos ao policiamento disciplinar dos saberes proble mas de classificaao problemas de hierarquizaao problemas de vizinhana etc Dessa mudana consideravel do disciplinamento dos sa beres e do abandono em conseqiiencia tanto do discurso filosOfico operante na ciencia quanto do projeto interne as ciencias de mathesis 0 seculo XVIII so tomou consciencia voces sabem sob a forma de wn progresso da razao Mas eu acho que apreendendo bern que sob aquilo que se denomi nou 0 progresso da razao 0 que se passava era 0 disciplina mento de saberes polimorfos e heterogeneos e que se pode compreender certo nillnero de coisas Primeiro 0 apareci mento da Universidade Eclaro nao 0 aparecimento no sen tido estrito ja que as universidades tinham sua funao seu papel e sua existencia muito antes Mas a partir do fim do seculo XVIII e do inicio do seculo XIX a criaao da uni versidade napoleonica se situa precisamente ai aparece algo que e como wna especie de grande aparelho uniforme dos sa beres com suas diferentes categorias e seus diferentes pro longamentos seu escalonamento e seus pseudopodes A universidade tern sobretudo wna funao de seleao nao tanto das pessoas afinal de contas isso nao e muito importante essencialmente mas dos saberes 0 papel da seleao ela 0 exerce com essa especie de monopolio de fato mas tambem de direito que faz que wn saber que nao nasceu que nao se formou no interior dessa especie de campo institucional com limites alias relativamente instaveis mas que constitui em linhas gerais a universidade os organismos oficiais de pesquisa fora disso 0 saber em estado selvagem 0 saber nas cido alhures se ve automaticamente logo de saida se nao totalmente excluido pelo menos desclassificado a priori Desaparecimento do cientistaamador e wn fato conhecido nos seculos XVIIIXIX Portanto papel de seleao da uni versidade seleao dos saberes papel de distribuiao do es calonamento da qualidade e da quantidade dos saberes em diferentes niveis esse e 0 papel do ensino com todas as barreiras que existem entre os diferentes escal5es do apare lho universitirio papel de homogeneizaao desses saberes com a constituiao de wna especie de comunidade cientifica com estatuto reconhecido organizaao de wn consenso e enfim centralizaao mediante 0 carater direto ou indireto de aparelhos de Estado Compreendese 0 aparecimento pois de algo como a universidade com seus prolongamentos e suas fronteiras incertas no inicio do seculo XIX a partir do momento em que justamente se operou esse por em disci plina os saberes esse disciplinamento dos saberes 218 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 219 Segundo fato que se pode compreender a partir dai 0 que seria como que uma mudanana forma do dogmatismo A partir do momento em que OCOrre uma forma de controle no mecanismo portanto na disciplina interna dos saberes mediante um aparelho a isso destinado a partir do moment em que se tem essa forma de controle voces compreendem que se pode perfeitamente renunciar a algo que seria a orto doxia dos enunciados Ortodoxia onerosa ja que essa velha ortodoxia esse principio que funcionava como modo de funcionamento religioso eclesiastico de controle sobre 0 saber tinha de acarretar a condenaao a exclusao de certo nUmero de enunciados que eram cientificamente verdadei ros e cientificamente fecundos Essa ortodoxia que inci dia sobre os proprios enunciados que selecionava os que eram conformes e os que nao eram conformes os que eram aceitaeis e os que nao eram aceitaveis a disciplina 0 disclphnamento Interno dos saberes que e implantado no seculo XVII vai substituir essa ortodoxia por outra coisa um controle que nao incide pois sobre 0 conteudo dos enun ciados sobre sua conformidade OU nao com certa verdade mas sobre a regularidade das enunciaoes 0 problema secl ber quem falou e se era qualificado para falar em que mV1 se sltua esse enunciado em que conjunto se pode co locaIo em que e em que medida ele e conforme a outras formas e a outras tipologias de saber Isso permite ao mes mo tempo de um lado um liberalismo num sentido se nao indefinido pelo menos muito mais amplo quanto o pro prio conteudo dos enunciados e do outro um controle infi nitamente mais rigoroso mais abrangente mais amplo em sua superficie de apoio no nivel mesmo dos procedimentos da enunciaao E com isso deduzse dal naturahnente uma possibilidade de rotaao muito maior dos enunciados um degaste uito mais rapido das verdades dai um desbloqueio eplstemologlCO Asslm como a ortodoxia incidente sobre 0 10 Cf em especial 0 curso no College de France anos 19711972 Theories et institutions penales e 19721973 La societe punitive no prelo II Cf 0 curso no College de France anos 19741975 Les anormaux no prelo conteudo dos enunciados pOde ser um obstaculo il renovaao do estoque dos saberes cientificos assim tambem em com pensaao 0 disciplinamento no nivel das enuncia90es per mitiu uma velocidade de renova9ao dos enunciados muito maior Passouse se voces preferirem da censura dos enun ciados para a disciplina da enuncia9ao ou ainda da ortodo xia para algo a que eu chamaria a ortologia e que e a forma de controle que se exerce agora a partir da disciplina Bem Eu me perdi um pouco em tudo isso Estuda mos pudemos mostrar como as tecnicas disciplinares de poderO consideradas em seu nivel mais tenue mais ele mentar consideradas no nive do proprio corpo dos indivi duos haviam conseguido mudar a economia politica do po der haviamlhe modificado os aparelhos como tambem essas tecnicas disciplinares de poder incidentes sobre 0 corpo ha viam provocado nao so um aCUmulo de saber mas tambem individuado dominios de saber possiveis e depois como as disciplinas de poder aplicadas aos corpos haviam feito sair desses corpos sujeitados algo que era uma ahnasujeito urn eu uma psique etc Tudo isto tentei estudar no ano passadoll Eu penso que agora deveriamos estudar como ocorreu uma outra forma de disciplinamento de por em dis ciplina contemporaneo do primeiro que nao incide sobre os corpos mas incide sobre os saberes E poderiamos mos trar acho eu como esse disciplinamento incidente sobre os saberes provocou um desbloqueio epistemologico uma nova forma uma nova regularidade na prolifera9ao dos saberes Poderiamos mostrar como esse disciplinamento organizou um novo modo de rela9ao entre poder e saber Poderiamos r JI 221 AULA DE 25 DE FEVEREIRO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 220 mostrar enfim como a partir desses saberes disciplinados apareceu urna regra nova que ja nao e a regra da verdade mas a regra da ciencia Tudo isto nos afasta urn pouco da historiografia do rei de Racine e de Moreau Poderiamos retomar a analise mas nao 0 farei aqui e mostrar como no momento em que jus tamente a hist6ria 0 saber hist6rico entrava nurn campo geral de combate a hist6ria se encontrava mas por outras razoes na mesma situaao no fundo que esses saberes tec nol6gicos de que eu lhes falava hi pouco Tais saberes tecno 16gicos em sua dispersao em sua morfologia pr6pria em sua regionalizaao em seu caciter local com 0 segredo que os rodeava eram a urn s6 tempo 0 motivo e 0 instrumento de urna luta economica e de urna luta politica e nessa luta geral dos saberes tecnol6gicos uns contra os outros 0 Es tado interviera com urna funao com urn papel de discipli namento ou seja a urn s6 tempo de seleao de homoge neizaao de hierarquizaao de centralizaao E 0 saber his t6rico por sua vez por razoes totalmente diferentes entrou aproximadamente na mesma epoca nurn campo de lutas e de batalhas Nao mais por razoes diretamente economicas mas por razoes de luta e de luta politica Quando de fato 0 sa ber hist6rico que ate enta fizera parte desse discurso que o Estado ou 0 poder fazia sobre si mesmo quando ele foi enucleado em relaao a esse poder e quando se tornou urn instrumento de luta politica ao longo de todo 0 seculo XVIII da mesma forma e pela mesma razao houve tentativa de parte do poder de retomaIo e de disciplinaIo A criaao no fim do seculo XVIII de urn Ministerio da Hist6ria a craao do grande acervo de arquivos que alias ia se tornar a Ecole des Chartes no seculo XIX aproximadamente con temporanea da crio da Escola de Minas da Escola de Obras PUblicas a Escola de Obras PUblicas e urn pouco diferente pouco importa corresponde tambem ela a esse disciplinamento do saber Tratase para 0 poder monarqui co de disciplinar 0 saber hist6rico os saberes hist6ricos e de estabelecer assim urn saber de Estado S6 que com esta diferena em relaao ao saber cientifico que na mesma me dida em que a hist6ria era realmente acho eu urn saber essencialmente antiestataI entre a hist6ria disciplinada pelo Estado tornada conteudo do ensino oficial e essa hist6ria ligada as lutas como consciencia dos sujeitos em luta houve urn enfrentamento perpetuo 0 enfrentamento nao foi redu zido pelo disciplinamento Enquanto na ordem da tecnolo gia podese dizer que em linhas gerais 0 disciplinamento operado no decorrer do seculo XVIII foi eficaz e bemsuce dido em compensaaono que se refere ao saber hist6rico houve disciplinamento mas esse disciplinamento nao s6 nao impediu mas acabou fortalecendo atraves de todo urn jogo de lutas de confiscos de contestaoes reciprocas a hist6ria nao estatal a hist6ria descentralizada a hist6ria dos sujeitos em luta E nesta medida voces tern perpetuamente dois ni veis de consciencia e de saber hist6rico dois niveis claro que vao ficar cada vez mais defasados urn em relaao ao outro Mas essa defasagem jamais impediri a existencia de urn e de outro de urna parte urn saber efetivamente disci plinado sob forma de disciplina hist6rica de outra urna consciencia hist6rica polimorfa dividida e combatente que nada mais e que 0 outro aspecto a outra face da conscien cia politica Eurn pouco dessas coisas ja no fim do seculo XVIII e no inicio do seculo XIX que eu tentarei Ihes falar 222 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 25 DE FEVERERO DE 1976 223 Escola superior destmada a formalfao de especialistas em documentos antigos N do T AULA DE 3 DE MARCO DE 1976 Generalizariio tatica do saber hist6rico ConstituifCio Revoluriio e historia dciea 0 selvagem e 0 barbaro rres filtragens do barbara taacas do discurso historico Ques toes de metoda 0 campo epistemico e 0 antihistoricismo da burguesia Reativariio do discurso historico na Revolufiio Feudalismo e romance gatica A ultima vez eu Ihes mostrei como fora formado cons tituido urn discurso hist6ricopolitico urn campo hist6rico politico em tomo da rea9lio nobili3ria do inicio do seculo XVIII Agora eu gostaria de me colocar noutro ponto do tempo ou seja ao redor da Revolu9lio Francesa nurn dado momento em que se pode apreender creio eu dois proces sos De urna parte vese como esse discurso que fora ori ginalmente Iigado il rea9lio nobili3ria se generalizou nlio tanto nlio somente pelo fato de que se teria tornado a forma de certo modo regular can6nica do discurso hist6rico mas tambem na medida em que se tomou urn instrumento tatico que ja nlio era utilizavel somente pela nobreza e sim em ultima analise nurna estrategia ou noutra 0 saber hist6rico de fato ao longo do seculo XVIII claro que por meio de certo nUmero de modifica90es nas proposi90es fundamen tais tomouse por fim urna especie de arma discursiva uti lizavel exibivel por todos os advers3rios do campo politico Em surna eu gostaria de Ihes mostrar como esse discurso hist6rico nlio deve ser tornado como a ideologia ou 0 produ to ideol6gico da nobreza e de sua posi9lio de classe e que 1 Tratase aqui visivelmente da retomada e da reformulaciio genea logica dos campos do saber e das formas de discursividade cuja analise arqueoI6gica Michel Foucault havia desenvolvido em Les mots et les choses op cit nao e de ideologia que se trata tratase de outra coisa que tento justamente identificar e que seria se voces quiserem a tMica discursiva urn dispositivo de saber e de poder que precisamente enquanto tMica pode ser transferivel e se tor na finalmente a lei de forma9ao de urn saber e ao mesmo tempo a forma comurn it batalha politica Logo generaliza 9ao do discurso da hist6ria mas enquanto tMica o segundo processo que vemos delinearse no momento da Revolu9ao e 0 modo como essa tatica abriuse em tres dire90es correspondentes a res batalhas diferentes que aca baram produzindo tres tMicas tambem elas diferentes urna que e centrada nas nacionalidades e que vai se encontrar essencialmente em continuidade de urn lado com os fen6 menos da lingua e por conseguinte com a filologia a outra que e centrada nas classes sociais tendo como fen6meno central a domina9ao econ6mica por conseguinte rela9ao fundamental com a economia politica enfim urna terceira dire9ao que dessa feita vai ser centrada nao mais nas nacio nalidades nem nas classes mas na ra1a tendo como feno myno central as especifica90es e sele90es biol6gicas por tanto continuidade entre esse discurso hist6rico e a proble Iruitica biol6gica Filologia economia politica biologia Falar trabalhar viverl Etudo isso que vamos ver reinvestirse ou rearticularse em tOIDO desse saber hist6rico e das taticas que he sao ligadas A primeira coisa de que gostaria de hes falar hoje e pois dessa generaliza9ao tatica do saber hist6rico de que forma ela se deslocou de seu lugar de nascimento que era a rea9ao nobiliaria no inicio do seculo XVIII para se tomar esse instrumento geral de todas as lutas politicas de qualquer ponto de vista que as consideremos do fun do seculo XVIII Primeira questao razao dessa polivalencia tatica como e por que esse instrumento tao especifico esse discurso afi nal tao singular que consistia em cantar 0 louvor dos inva sores p6de se tomar urn instrumento geral nas taticas enos enfrentamentos politicos do seculo XVIII Eu creio que a razao disso podemos encontrala na di re9ao que se segue Portanto Boulainvilliers fizera da dua lidade nacional 0 principio de inteligibilidade da hist6ria Inteligibilidade queria dizer tres coisas Tratavase primeiro para Boulainvilliers de descobrir 0 conflito inicial bataha guerra conquista invasao etc 0 conflito inicial 0 nucleo belicoso do qual podiam derivar as outras batalhas as outras lutas todos os outros enfrentamentos seja a titulo de conse qiiencia direta seja por urna serie de deslocamentos de mo difica90es de reviravoltas nas rela90es de for9a Logo uma especie de grande genealogia das lutas atraves de todos os diferentes combates que haviam sido registrados pela hist6 ria Como descobrir a luta fundamental como reatar 0 fio estrategico de todas essas batalhas A inteligibilidade hist6 rica que Boulainvilliers queria introduzir significava igual mente que se tratava niio s6 de descobrir essa batalha nuclear fundamental e a maneira pela qual os outros combates deri vavam dela mas que curnpria tambem localizar as trai90es as alian9as antinaturais as asmcias de uns e as covardias dos outros todas as preteri90es todos os calculos inconfes saveis todos os imperdoaveis esquecimentos que haviam tor nado possivel essa transforrna9ao e ao mesmo tempo de cer to modo a adultera9ao dessa rela9ao de for9a e desse en frentamento fundamentais Tratavase de fazer urn tipo de grande exame hist6rico de quem e 0 erro e portanto 227 AULA DE 3 DE MAR90 DE 1976 EMDEFESA DA SOCIEDADE 226 nao s6 de reatar 0 flo estrategico mas lambem de tra9ar atraves da hist6ria a linha as vezes sinuosa mas ininterrupta das partilhas morais Terceiro essa inteligibilidade hist6ri ca queria dizer outra coisa tratavase para alem de todos esses deslocamentos taticos para alem de todas essas mal versa90es hist6ricomorais de redescobrir de trazer outra vez it luz certa rela9ao de for9a que fosse a urn s6 tempo a boa e a verdadeira A verdadeira rela9ao de for9a no sentido de que se tratava de redescobrir certa rela9ao de fOf9a que nao era ideal que era real que era efetivamente registrada inse rida pela hist6ria no decorrer de certa prova de for9a decisi va que fora nessa ocorrencia a invasao da Galia pelos fran cos Logo urna certa rela9ao de for9a que fosse historica mente verdadeira historicamente real e em segundo lugar que fosse urna boa rela9ao de for9a porque ela seria desem bara9ada de todas as altera90es que as trai90es os diferentes deslocamentos a fizeram sofrer 0 tema dessa busca de in teligibilidade hist6rica era este tratavase de redescobrir urn estado de coisas que fosse urn estado de for9a em sua retidao original E esse projeto voces 0 encontram forrnu lado claramente por Boulainvilliers e por seus sucessores Boulainvilliers dizia por exemplo tratase de lembrar nos sos usos presentes em sua verdadeira origem de descobrir os principios do direito comurn da na9ao e de examinar 0 que foi mudado na seqiiencia do tempo E du BuatNan9ay urn pouco mais tarde deveria dizer e de acordo com 0 co nhecimento do espirito primitivo do governo que se deve revigorar certas leis moderar aquelas cujo vigor excessivo po deria alterar 0 equilibrio restabelecer a harmonia e as rela90es Portanto tres tarefas nessa especie de projeto de ana lise da inteligibilidade da hist6ria reatar 0 fio estrategico tra9ar 0 fio das divisoes morais e restabelecer a retidiio de algo a que se pode chamar 0 ponto constituinte da politica e 2 A doutrina medica da constitui930 tern uma tonga historia mas aqui M Foucault se refere decerto Ii teona anatomopato16gica fonnulada no secuto XVIII a partir de Sydenham Le Brun Bardeu e que sera desenvolvida na primeira metade do seculo XIX por Bichat e pela Escola de Paris cf Naissance de la ciinique op cit da hist6ria 0 momenta de constitui9ao do reino Eu digo ponto constituinte momento de constitui930 para evitar urn pouco sem todavia apagaIa totahnente a palavra cons titui9aO De fato e mesmo de constitui9ao voces estiio ven do que se trata fazse hist6ria para restabelecer a constitui 9ao mas a constitui9ao de modo algum entendida como urn conjunto explicito de leis que teriam sido forrnuladas em dado momento Tampouco se trata de reencontrar uma es pecie de conven9ao juridica fundadora que teria sido acer tada no tempo ou no arquitempo entre 0 rei entre 0 sobe rano e seus suditos Tratase de reencontrar algo que tern portanto consistencia e situa9aO hist6rica que nao e tanto da ordem da lei quanta da ordem da for9a que 000 e tanto da ordem do escrito quanta da ordem do equilibrio Algo que e urna constitui9aO mas quase como a entenderiam os medi cos ou seja rela9ao de fOf9a equilibrio e jogos de propor90es dissimetria estavel desigualdade congruente Ede tudo isso que falavam os medicos do seculo XVIII quando evocavam a constitui9ao Essa ideia de constitui9ao na literatura hist6rica que se ve forrnarse em torno da rea9ao nobiliaria e de certo modo medica e militar ao mesmo tempo rela 9ao de for9a entre 0 bern e 0 mal rela9ao de for9a lambem entre os adversarios Esse momenta constituinte que se trata de reencontrar devese alcan9aIo pelo conhecimento e pelo restabelecimento de urna rela9ao de for9a fundamental Tra tase de instaurar uma constitui9ao que seja acessivel nao pelo restabelecimento de velhas leis mas por algo que seria 229 AULA DE 3 DE MAR90 DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 228 uma revoluao das foras revoluao no sentido em que precisamente se trata de passar do auge da noite para 0 auge do dia do ponto mais baixo para 0 ponto mais alto 0 que foi possivel a partir de Boulainvilliers e eu acho que e isso 0 fundamental foi 0 acoplamento dessas duas no 5es a de constituiao e a de revoluao Enquanto na litera tura hist6ricojuridica que fora essencialmente ados parla mentares entendiase por constituiao essenclalmente as leis fundamentais do reino ou seja um aparelho juridico algu rna coisa da ordem da convenao ficava evidente que essa volta da constitui s6 podia ser 0 restabelecimento de certo modo decis6rio das leis trazidas de volta it plena luz A par tir do momento ao contrano em que a constituiao ja niio e uma estruturajuridica um conjunto de leis mas uma rela ao de fora fica muito claro que essa relaao niio pode ser restabelecida a partir do nada s6 se pode restabeleceIa se existir algo como um movimento ciclico da hist6ria se exis tir em todo caso algo que permita fazer a hist6ria girar em torno de si mesma e trazeIa de volta a seu ponto inicial Em conseqiiencia voces veem que se reintroduz ai com essa ideia de uma constituiao que e medicomilitar ou seja relaao de fora algo como uma filosofia da hist6ria ciclica a ideia em todo caso de que a hist6ria se desenvolve de acordo com circulos E por isso eu digo que essa ideia se introduz Para dizer a verdade ela se reintroduz ou se voces preferi rem 0 velho tema milenarista da volta das coisas se acopla a um saber hist6rico articulado Essa filosofia da hist6ria como filosofia do tempo ci clico se torna possivel a partir do seculo XVIII desde que se puseram em iio as duas no5es de constituiao e de relaao de fora Com efeito em Boulainvilliers voces veem apare cer creio que pela primeira vez no interior de um discurso hist6rico articulado a ideia de uma hist6ria ciclica Os impe 3 Em Essai surla noblesse de France contenant une dissertation sur son origine et abaissement obm redigia por volta de 1700 e editada em 1730 in Continuation des memoires de litteraturet IX op cit a prop6sito do declinio da decadencia da antiga RaIna Boulainvilliers reconhece que esse e urn destino comum a todos os Estados de tonga durajao e acrescenta 0 mundo e0 joguete de uma sucessao continua por que a nobreza e suas vanta gens estariam fora da regra comum Nao obstante a prop6sito dessa suces sao ele pensa que dos nossos muitos filhos alguem abrini essa obscuridade em que vivemos para devolver ao nosso nome seu antigo brilho p 85 Quanta a ideia de cielo encontramola mais na mesma epoea em Scienza nuova Napoles 1725 de G B Vico Em Astrologia mondiale 1711 de Boulain villiers editada porRenee Simon em 1949 e formulada a ideia prehegelia na poderiamos dizer da transferencia das monarquias de uma regiao e de uma naao para outra Tratase ai para Boulainvilliers de uma ordem que nao tern todavia nada de fixo porquanto nao ha sociedade sempre duradou ra e os Imperios mais vastos e mais temidos estao sujeitos a destruirse por meios iguais aqueles que os formaram muitas vezes nascem outras socieda des no proprio seio deles que usam por seu turno de foa e de persuasao fazem conquistas sobre as antigas e as sujeitam por sua vez pp 1412 rios dizia Boulainvilliers crescem e caem em decadencia da forma como a luz do sol ilumina 0 territ6ri03 Revoluao solar revoluao da hist6ria voces veem que as duas coisas agora estiio ligadas Portanto temos esse par esse vinculo de tres temas constituiao revoluao hist6ria ciclica ai esta se voces quiserem um dos aspectos do instrumento tatico que Boulainvilliers inventara Segundo aspecto procurando 0 ponto constituinte que seja born e verdadeiro na hist6ria 0 que e que Boulain villiers quer fazer Tratase para ele de recusar procurar esse ponto constituinte na lei claro mas tambem de recusar procuraIo nanatureza antijuridicismo e do que acabei de lhes falar ha pouco mas igualmente antinaturalismo 0 gran de adversano de Boulainvilliers e de seus sucessores sera a natureza sera 0 homem natural ou ainda se voces preferi rem 0 grande adversario desse genero de analise e e nisso 231 AULA DE 3 DE MAR90 DE 976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 230 tambem que as analises de Boulainvilliers viio se tornar ins trumentais e taticas e 0 homem natural e 0 selvagem entendido em dois sentidos 0 selvagem born ou mau esse homem natural que os juristas ou os te6ricos do direito cria ram antes da sociedade para constituir a sociedade como elemento a partir do qual 0 corpo social podia constituirse Procurando 0 ponto da constitui9iio Boulainvilliers e seus sucessores niio tentavam reencontrar esse selvagem anterior de certo modo ao corpo social 0 que eles tambem querem conjurar e esse outro aspecto do selvagem esse outro ho mem natural que e 0 elemento ideal inventado pelos econo mistas esse homem que niio tern hist6ria nem passado que s6 e movido por seu interesse e que troca 0 produto de seu trabalho por outro produto 0 que 0 discurso hist6ricopoli tico de Boulainvilliers e de seus sucessores quis pois con jurar foi a urn s6 tempo 0 selvagem te6ricojuridico 0 sel vagem saido de suas florestas para contratar e fundar a so ciedade e foi igualmente 0 selvagem homo oeconomicus que e destinado atroca e ao escambo Esse par no fundo do sel vagem eda troca e creio eu absolutamente fundamental nao s6 no pensamento juridico nao s6 na teoria do direito no seculo XVIII mas e tambem esse par do selvagem e da troca que vamos encontrar continuamente desde 0 seculo XVIII e a teoria do diieito ate a antropologia dos seculos XIX e XX No fundo esse selvagem nesse pensamentojuridico do seculo XVIII bern como no pensamento antropol6gico dos seculos XIX e XX e essencialmente 0 homem da troca e 0 trocador 0 trocador dos direitos ou 0 trocador dos bens Enquanto trocador dos direitos ele funda a sociedade e a sobe rania Enquanto trocador dos bens ele constitui urn corpo social que e ao mesmo tempo urn corpo economico Oesde o seculo XVIII 0 selvagem e 0 sujeito da troca elementar Pois bern foi no fundo contra esse selvagem cuja impor tiincia era grande na teoria juridica do seculo XVIII que 0 discurso hist6ricopolitico inaugurado por Boulainvilliers construiu urna outra personagem que e tao elementar se voces quiserem quanto 0 selvagem dos juristas e logo dos antropologistas mas que e constituido de modo muito di ferente Esse adversario do selvagem e 0 barbaro o barbaro se opOe ao selvagem mas de que maneira Pri meiro nisto no fundo 0 selvagem e sempre selvagem na selvageria com outros selvagens assim que esta nurna rela 9iiO de tipo social 0 selvagem deixa de ser selvagem Em compensa9ao 0 barbaro e alguem que s6 se compreende e que s6 se caracteriza que s6 pode ser definido em compa ra9iio a urna civiliza9iio fora da qual ele se encontra Niio hi barbaro se nao hi em algum lugar urn ponto de civiliza 9iiO em compara9ao ao qual 0 barbara e exterior e contra 0 qual ele vern lutar Urn ponto de civiliza9iio que 0 barba ro despreza que 0 barbaro inveja em compara9ao ao qual 0 barbaro se encontra nurna rela9iio de hostilidade e de guer ra permanente Niio hi barbaro sem urna civiliza9ao que ele procura destruir e da qual procura apropriarse 0 barbaro e sempre 0 homem que invade as fronteiras dos Estados e aquele que vern topar nas muralhas das cidades 0 barbaro diferentemente do selvagem nao repousa contra urn pano de fundo de natureza ao qual pertence Ele s6 surge contra urn pano de fundo de civiliza9iio contra 0 qual vern se cho car Ele niio entra na hist6ria fundando urna sociedade mas penetrando incendiando e destruindo urna civiliza9iio Por tanto eu creio que 0 primeiro ponto a diferen9a entre 0 bar baro e 0 elvagem e essa rela9ao com urna civiliza9iio por tanto com urna hist6ria previa Niio hi barbaro sem urna his t6ria previa que e a da civiliza9ao que ele vern incendiar E de outra parte 0 barbaro nao e 0 vetor de trocas como 0 selvagem 0 barbaro e essencialmente vetor de algo muito di ferente da troca e 0 vetor de domina9iio 0 barbaro diferen temente do selvagem se apodera se apropria pratica niio a 232 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 3 DE MARiO DE 1976 233 l t II I 234 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 3 DE MARrO DE 1976 235 ocupa9iio primitiva do solo mas a rapina Isto quer dizer que sua rela9iio de propriedade e sempre secundliria sempre se apodera apenas de urna propriedade previa da mesma for ma poe os outros a seu servi90 manda outros cultivarem a terra manda cuidarem de seus cavalos prepararem suas ar mas etc Sua liberdade tambem ela so repousa na liberdade perdida dos outros E na rela9iio que mantem com 0 poder o barbaro diferentemente do selvagem jamais cede sua liberdade 0 selvagem e aquele que tern entre as miios urna especie de superabundiincia de liberdade que ele acaba ce dendo para garantir sua vida sua seguran9a sua proprieda de seus bens 0 barbaro por sua vez nunca cede sua liber dade E quando se atribui urn poder quando se atribui urn rei quando elege urn chefe ele 0 faz niio em absoluto para diminuir sua propria parte de direitos mas ao contrlirio pa ra multiplicar sua for9a para ficar mais forte em suas rapi nas para ficar mais forte em seus roubos e em seus estu pros para ser urn invasor mais certo de sua propria for9a E como multiplicador de sua propria for9a individual que 0 barbaro instala urn poder Isto quer dizer que 0 modelo de govemo para 0 barbaro e urn govemo necessariamente mi litar que niio repousa em absoluto nesses contratos de ces siio civil que caracterizam 0 selvagem Foi essa personagem do barbaro que acho eu a historia do tipo da de Boulain villiers p6s em cena no seculo XVIII Compreendese entiio muito bern por que 0 selvagem apesar de tudo mesmo quando se the reconhecem algumas maldades e alguns defeitos no pensamento juridicoantro pologico de nossos dias e ate nas utopias bucolicas e ameri canas que encontramos agora 0 selvagem como voces sa bern e sempre born E como niio seria born ja que tern pre cisamente como fun9iio trocar dar dar e claro da melhor maneira possivel para seus interesses mas nurna forma de reciprocidade em que reconhecemos se voces quiserem a forma aceitavel e juridica da bondade 0 barbaro em com pensa9iio niio pode niio ser mau e maldoso mesmo que se lhe reconhe9am qualidades Ele so pode ser cheio de arro giincia e desurnano ja que niio e justamente 0 homem da troca e da natureza ele e 0 homem da historia e 0 homem da pilhagem e do incendio e 0 homem da domina9iio Urn povo altivo brutal sem patria sem lei dizia Mably que porem amava muito os barbaros ele tolera violencias atro zes pois para ele elas estiio na ordem das coisas publicas4 No barbaro a alma e grande nobre e altiva mas sempre as sociada a velhacaria eacrueldade tudo isto esta em Mably De Bonneville dizia falando dos barbaros esses aventu reiros so respiram a guerra a espada era 0 direito deles e eles 0 exerciam sem remorsos5 E Marat tambem ele grande amigo dos barbaros os diz pobres grosseiros sem comercio sem artes mas livres6 Romem da natureza o barbaro Sim e niio Niio no sentido de que esta sempre ligado a urna historia e a urna historia previa 0 barbaro surge contra 0 pano de fundo de historia E se ele se repor ta anatureza dizia du BuatNan9ay que visava ao seu ini migo intimo Montesquieu se e0 homem natural eque a 4 Urn povo altivQ brutal sem patria sem lei Os franceses podiam tolerar da parte de seu chefe algumas violencias atrozes mesmo por que elas estavam na ordem dos costumes publicos GB de Mably Observations sur histoire de France Paris 1823 cap I p 6 1 ed Genebra 1765 5 N de Bonneville Histoire de lEurope moderne depuis irruption des peuples du Nord dans IEmpire romainjusquu fa paix de 1783 Genebra 1789 voL I l parte cap I p 20 A citayao tennina assim a espada era 0 direito deles e eles 0 exerciam sem remorsos como 0 direito da natureza 6 Pobres grosseiros sem comercio sem artes sem industria mas livres Les chafnes de fesclavage Ouvrage destine u developper Ies noirs aUentats des princes contre Ie peuple Paris ano I cap Des vices de la cons titution politique cf reed Paris Union Generale dEditions 1988 p 30 1 7 Cf L G conde du BuatNancay elements de lapolitique op cit voL I liv I cap IIX De legalite des hommes 0 contexto dessa citayao se eque euma que nao pudemos encontrar poderia ser esse natureza das coisas e 0 que Ea rela9ao do sol com a lama que ele faz secar e a rela9ao do carda com 0 asno que dele se alimenta7 Nesse campo hist6ricopolitico em que 0 saber das ar mas e constantemente utilizado como instrumento politico eu creio que se pode conseguir caracterizar cada urna das grandes tMicas que vao ser estabelecidas no seculo XVIII pelo modo como se faz atuar os quatro elementos que esta yam presentes na anaIise de Boulainvilliers a constitui9ao a revolu9ao a barbarie e a domina9ao No fundo 0 problema vai ser 0 de saber como vai se estabelecer 0 ponto de jun 9aO 6tirno entre a fUria da barbarie de urn lado e 0 equili brio dessa constitui9ao que se quer encontrar Como fazer que atuem numa organiza9ao correta das for9as 0 que 0 barbara pode trazer consigo de violencia de liberdade etc Que e preciso noutras palavras conservar e que e preciso descartar do barbaro para fazer que funcione uma constitui 9aO justa Que e preciso encontrar de fato de barbarie util o problema e no fundo a filtragem do barbara e da barbarie como se deve filtrar a domilla9ao barbara para consumar a revolu9ao constituinte Eeste problema e sao as diferentes solu90es para esse problema da filtragem necessaria da bar barie para a revolu9aO constituinte e isso que vai definir no campo do discurso hist6rico nesse campo hist6ricopo litico as posi90es taticas dos diferentes grupos dos dife rentes interesses dos diferentes centros da batalha seja a nobreza ou 0 poder monarquico seja a burguesia ou as dife rentes tendencias da burguesia Eu creio que todo esse conjunto de discursos hist6ri cos no seculo XVIII e dominado pelo seguinte problema 8 M Foucault alude aqui ao gropo de reflexao que a partir de 1948 comeyara a reunirse em toma de Cornelius Castoriadis e que a partir de 1949 publicara Socialisme ou barbarie A revista deixara de ser publicada no n 40 em 1965 Impulsionados por Castoriadis e por Claude Lefort trotskis laS dissidentes militantes intelectuais dentre os quais Edgard Morin Jean Francois Lyotard Jean Laplanche Gerard Genette etc desenvolviam temas tais como por exemplo a critica do regime sovietico a questao da democra cia direta a critica do reformismo etc l 1 I lt 237 nao em absoluto revolu9aO ou barbarie mas revolu9aO e barbarie economia da barbarie na revolu9ao Verei nao urna prova mas urna especie de confirma9ao de que e este 0 pro blema nurn texto que alguem me entregou ouo dia no mo mento em que eu estava saindo da aula E um texto de Robert Desnos que mostra perfeitamente bem como ate no seculo XX ainda esse problema eu ia dizer socialismo ou barbarie revolu9aO ou barbarie e urn problema falso e que o verdadeiro problema e revolu9ao e barbarie Pois bem tomarei como testemunho esse texto de Robert Desnos que suponho foi publicado em La revolution surrealiste nao sei pois faltam referencias Eis 0 texto Ate parece saido diretamente do seculo XVIII Oriundos do Leste tenebro so os civilizados continuam para 0 Oeste a mesma marcha de Atila de Tamerlao e de tantos outros desconhecidos Quem diz civilizados diz antigos barbaros ou seja bastardos dos aventureiros da noite ou seja aqueles que 0 inimigo roma nos gregos corrompeu Expulsos das orlas do Pacifico e das encostas do Himalaia essas grandes companhias infieis it sua missao encontramse agora diante daqueles que os ex pulsaram nos dias nao muito longinquos das invasoes Filhos de Kalmuk netos dos hunos dispamse urn pouco dessas roupas copiadas do vestuario de Atenas e de Tebas das cou ra9as apanhadas em Esparta e em Roma e apare9am nus como seus pais em cima de seus pequenos cavalos E voces AULA DE 3 DE MARO DE 1976 EMDEFESA DA SOClEDADE 236 238 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 3 DE MARrO DE 1976 239 nonnandos lavradores pescadores de sardinhas fabricantes de sidIa subarn wn pouco nesses barcos arriscados que mais alem do circulo polar traararn wna longa esteira antes de atingir esses prados Umidos e essas florestas abundantes de caa Matilha reconhe9a seudono Acreditava fugir dele desse Oriente que a expulsava investindoa do direito de destrui9ao que voce nao soube conservar e eis que voce 0 encontra de costas uma vez terminada a volta ao mundo Pe 90lhe nao imite 0 cao que quer agarrar a cauda correra per petuarnente atnis do Oeste pare Prestenos conta wn pouco de sua misslio grande exercito oriental tornado hoje Os Oei dentais9 Pois bern concretamente para tentar ressituar os dife rentes discursos hist6ricos e as raticas politicas a que eles se prendem Boulainvilliers havia introduzido ao mesmo tem po na hist6ria 0 grande barbaro louro 0 fato juridico e his t6rico da invasao e da conquista violenta a apropria9ao das terras e a sujeiao dos homens e enfim wn poder monar quico extremamente limitado De todos esses os maci 90S e solidarios que constituiam a irruP9ao do fato da bar bane na hist6ria quais os que vao ser descartados E 0 que vai se conservar para reconstituif a relao correta de for9a que deve sustentar 0 reino Tomarei tres grandes modelos de filtro Houve muitos outros no seculo XVIII tomo estes porque foram politicamente e tambem epistemologicamente sem duvida os mais ifnportantes correspondem cada qual a tres posi90es politicas bern diferentes Privneira filtragem do barbaro a mais rigorosa a filtra gem absoluta a que consiste em tentar nao deixar passar nada do barbaro para a hist6ria tratase nesta posi9ao de 9 R Desnos Description dune revoltc prochaine La Revolution sumaJiste n 3 15 de abril de 1925 p 25 Reed La revolution sumoiste 19241929 Pari 1975 mostrar que a monarquia francesa nao tern atnis de si uma invasao gerrnlinica que a teria introduzido e que teria sido de certo modo sua portadora Tratase de mostrar que tampou co a nobreza tern como ancestrais os conquistadores vindos do outro lado do Reno e que portanto os privilegios da nobreza que a colocam entre 0 soberano e os outros sudi tos ou the foram concedidos tardiamente ou ela os usur pou mediante algwn meio obscuro Em suma em vez de reportar a nobreza privilegiada a wna horda barbara funda dora tratase de esquivar esse nucleo barbaro de fazelo desaparecer e de deixar de certo modo a nobreza em sus penso de fazer dele uma cria9ao tardia e superficial a wn s6 tempo Essa tese e claro a tese da monarquia a que voces encontram em toda wna serie de historiadores que vai de DuboslO a Moreau Essa tese articulada nwna proposi9ao fundamental re sulta aproximadamente nisto pura e sifnplesmente os fran cos diz Dubos diril em seguida Moreau no fundo sao wn mito wna ilusao wna cria9ao total de Boulainvilliers Os francos nao existem isto quer dizer que primeiro nao houve em absoluto invasao De fato que e que se passou Houve invasOes mas feitas por outros invasao dos butgUn dios invasao dos godos contra as quais os romanos nada podiam E foi contra essas invasoes que os romanos recor reram mas a titulo de aliados a wna pequena popula9ao 10 Cf 1B Dubos Histoire critique de letablissement de la monar chiejran9aise dans Ies Gaules Paris 1734 11 cr JN Moreau Lefons de morale de poitique et de droit public puisees dans Ihisoire de 10 monarchie Versalhes 1773 Expose historique des administrations populaires aux plus anciennes epoques de notre monar chie Paris 1789 Exposition et defense de notre constitution monarchique franfaise prechJees de Bistoire de toutes nos assembIees nationales Paris 1789 12 Velha expressao que significa tratar alguem como as turcos trata vam as mauros Dubos escreve Queira 0 leitor concordat em prestar aten 900 ao humor natural dos habitantes da GaIia que em nenhum seculo passaram por esrupidos nem por covardes sem lanar mao de outras provas versea bern que eimpassivel que urn punhado de francos tenha tratado como lurea a mouro urn milhao de romanos das GaIias Histoire critique vol IV liv VI pp 2123 que tinha alguns meritos militares e que eram precisamente os francos Mas os francos nao foram recebidos de modo algum como invasores como grandes barbaros suscetiveis de domina9ao e de rapina mas como pequena popula9ao aliada e uti De sorte que eles receberam imediatamente os direitos de cidadania nao so os converteram imediatamente em cidadaos galoromanos mas lhes deram os instrumentos de poder politico e a esse respeito Dubos lembra que Clovis afinal de contas foi consul romano Portanto nem invasao nem conquista mas imigra9ao e alian9a Nao houve inva sao mas nem sequer se pode dizer que houve urn povo fran co com sua legisla9ao e seus costumes Primeiro pura e simplesmente porque eles eram muito pouco nurnerosos diz Dubos para poder tratar os gauleses como turco a mou ro12 e imporlhes seus proprios Mbitos e seus proprios cos tumes Eles nem sequer podiam perdidos como estavam nessa rnassa galoromana manter seus proprios Mbitos Por tanto eles literalmente dissolveramse E alias como nao se teriam dissolvido nessa sociedade e nesse aparelho politi co galoromano urna vez que nao tinham realmente nenhurn conhecimento nem da administra9ao publica nem do gover no Ja a arte da guerra deles Dubos pretende que a tinham copiado dos romanos Em todo caso os mecanismos da admi nistra9ao publica que eram diz Dubos admiraveis na Galia romana os francos nao tiveram 0 cuidado de destruilos Nada da Galia romana foi desnaturado pelos francos diz 13 No tocante acritica de Boulainvilliers em Dubos cf ibid caps 8 e 9 241 AULA DE 3 DE MARO DE 1976 Dubos A ordem triunfou Logo os francos foram absorvidos e seu rei ficou simplesmente de certo modo no topo na su perficie do edificio galoromano apenas penetrado por alguns imigrantes de origem gerrnanica Apenas 0 rei ficou pois no topo do edificio rei que herdou precisamente direitos cesareos do imperador romano 1sto quer dizer que nao se teve em absoluto como acreditava BouIainvilliers urna aris tocracia de tipo barbaro mas logo de saida urna monarquia absoluta E foi vanos seculos mais tarde que ocorreu a rup tura que ocorreu algo analogo it invasao mas urna especie de invasao interna13 Ai a analise de Dubos se desloca para 0 fim dos caro lingios e 0 inicio dos Capetos onde localiza urn enfraqueci mento do poder central desse poder absoluto de tipo cesa reo de que os merovingios se tinham beneficiado no inicio Em compensa9ao os oficiais delegados pelo soberano ou torgamse cada vez mais poder 0 que era de sua al9ada admi nistrativa eles transforrnaram em feudos como se fosse pro priedade deles E e assim que nasce a partir dessa decom posi9ao do poder central urna coisa que e 0 feudalismo feudalismo que vOCes veem que e urn fenomeno tardio de modo algum ligado it invasao mas it destrui9ao interna do poder central e que constimi urn efeito que tern os mesmos efeitos que urna invasao mas urna invasao que teria sido feita do interior por pessoas que usurparam urn poder do qual eram simplesmente delegados 0 desmembramento da so berania e a mudan9a dos oficios em senhorias produziram e urn texto de Dubos que eu leio para voces efeitos total mente semelhantes aos da invasao estrangeira elevaram en tre 0 rei e 0 povo urna casta dominadora e fizeram da Galia EM DEFESA DA SOCIEDADE 240 uriJ verdadeiro pais de conquista14 Esses tres elementos invasao conquista dominayao que caracterizavam segun do Boulainvilliers 0 que sucedeu no momento dos francos Dubos os reencontra rnas como fenomeno interno devidos ao nascimento ou correlativos ao nascimento de uma aris tocracia mas de uma aristocracia como voces veem artifi cial e completamente protegida completamente indepen dente da invasao franca e da barbarie que ela trazia consigo Entiio e contra essa conquista contra essa usurpayiio con tra essa invasao interior que vao se desencadear as lutas 0 monarca de urn lado as cidades igualmente que haviam guardado a liberdade dos municipios rornanos vao lutarjun tos contra os feudais Voces tern ai nesse discurso de Dubos de Moreau e de todos os historiadores monarquistas a inversiio peya por pe ya do discurso de Boulainvilliers tendo porem esta impor tante transformayao 0 foco da analise historica se desloca por causa da invasao e dos primeiros merovingios para este outro fato que foi 0 nascimento do feudalismo e dos primei ros Capetos Voces veem tambem e isso e importante que a invasao da nobreza e analisada niio como 0 efeito de urna vitoria militar e a irrupyao da barbarie mas como 0 resultado de urna usurpayao interna 0 fato da conquista e sempre afrr mado mas despojado tanto de sua paisagem barbara quanto dos efeitos de direito que a vitoria militar podia acarretar Os nobres nao sao barbaros sao escroques escroques politicos Eessa a primeira posiyao a primeira utilizayao uitica por inversao do discurso de Boulainvilliers Outra filtragem agora outra filtragem do barbaro Tra tase nesse outro tipo de discurso dessa feita de dissociar urna liberdade germiinica ou seja uma liberdade barbara do carater exclusivo dos privilegios da aristocracia Em ou tras palavras tratase e nisso essa tese essa tatica vai ficar muito proxima da de Boulainvilliers de continuar a valo rizar contra 0 absolutismo romano da monarquia as liber dades que os francos e os barbaros trouxeram consigo Os bandos hirsutos vindos do outro lado do Reno entraram de fato na Galia e trouxeram consigo suas liberdades Mas esses bandos hirsutos nao eram germanos guerreiros constituindo urn nueleo aristocnitico que ia manterse como tal no corpo da sociedade galoromana Houve uma inundayiio de guer reiros siro mas tratase de fato de todo urn povo em armas A forma politica e social que se introduziu na Galia nao foi a de urna aristocracia foi ao contnirio a de uma democra cia da mais ampla democracia E entao essa tese voces encontram em Mablyl em Bonnevillel6 e em Marat ainda em Les chaines de Iesclavage As correntes da escravidao Portanto democracia barbara dos francos que nao conhe ciam forma alguma de aristocracia que so conheciam urn povo igualitario de soldadoscidadaos Urn povo altivo brutal diz Mably sem patria sem leil no qual cada sol dadocidadao so vivia do saque e niio queria ser incomoda do por nenhum castigo Sobre esse povo nenhuma autori dade continua nenhuma autoridade razoavel ou constituida Pois bern segundo Mably foi essa democracia brutal bar bara que se estabeleceu na Galia E a partir dai a partir desse estabelecimento uma serie de processos essa avidez esse 242 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 3 DE MARCO DE 1976 243 14 Apenas a Ultima frase parece ser uma cital30 depois de ter falado das usurpa90es dos oficiais momirquicos e da conversao das comissoes dos duques e condes em dignidades hereditirias Dubas escreve Foi entao que as Gilias se tornaram urn pais de conquista ibid ed de 1742 liv IV p 290 15 GB de Mably Obsellations sur Ihistoire de France op cit 16 N de Bonneville Histoire de IEurope moderne depuis irruption des peuples du Nord op eft 17 GB de Mably Observations op cit p 6 egolsmo dos barbaros francos que era qualidade quando se tratava de transpor 0 Reno e de invadir a Galla tomase defeito asslm que eles se instalam os francos ja niio se ocupam senao de pilhagens e de apropriac5es Negligenciam tanto 0 exer cicio do poder quanto as assembleias de marco ou de maio que controlavam a cada instante a cada ano 0 poder mo narquico Portanto deixam 0 rei agir deixam constituirse tambem acima deles uma monarquia que tende a tomarse absoluta E 0 elero decerto ignorando todos esses ardis segundo Mably interpreta os costumes germiinicos em ter mos de direito romano creemse suditos de urna monarquia enquanto eram de fato 0 corpo de uma republica Quanto aos funcionarios oficiais do soberano eles tam bern assurnem cada vez mais poder de sorte que se esta dei xando a democracia geral que fora trazida pela barbarie franca e entrando nurn sistema a urn s6 tempo monarquico e aristocratico Eurn lento processo contra 0 qual hi toda via urn momenta de reacao Equando Carlos Magno sen tindose justamente cada vez mais dominado e ameacado pela aristocracia ap6iase de novo nesse povo que os reis precedentes haviam menosprezado Carlos Magno restaura 0 Campo de Marte e as assembleias de maio deixa todos en trarem nessas assembl6ias meSilla os naoguerreiros Logo curto instante de volta ademocracia gennanica e mais tarde depois desse interregno retomada do lento processo que faz desaparecer a democracia e duas figuras gemeas vao nas cer De uma parte a de uma monarquia a de Hugo Capeto E como a monarquia consegue estabelecerse Na medida em que contra a democracia barbara e franca os aristocratas aceitam escolher urn rei que vai tender cada vez mais para o absolutismo mas por outro lado como recompensa des sa sagracao regia operada pelos nobres na pessoa de Hugo Capeto os Capetos vao dar como feudo aos nobres as alca das administrativas e os cargos de que haviam sido encarre 18 L G O F de Brequigny Dipornata chartae epistolae et alia monumenta ad resfranciscas speclantia Paris 16791783 Ordonnances des rois de France de la troisieme race Paris 1 XI 1769 e t XII 1776 19 JF Chapsal Discours sur fa feodalite et lallodialilli suivi de Dissertations sur lejiancalleu des coutumes dAuvergne du Bourdonnais du Nivernois de Champagne Paris 1791 gados E em conseqiiencia mediante uma curnplicidade en tre os nobres que fizeram 0 rei e 0 rei que fez 0 feudalismo que nasce acima da democracia barbara a figura gemea da monarquia e da aristocracia Contra 0 pano de fundo da de mocracia germanica ternos pais esse duplo processo Ecla ro a aristocracia e a monarquia absoluta brigarao urn dia mas nao convem esquecer que elas sao no fundo irmas gemeas Terceiro tipo de discurso terceiro tipo de analise ter ceira titica ao mesmo tempo que e no fundo a mais sutil e a que ted a fortuna historica maior se bern que na mesma epoca em que foi formulada ela 0 tenha tido decerto com infinitamente menos brilho do que a tese de Dubos ou a de Mably Tratase nessa terceira operacao titica de distinguir no fundo duas barbaries uma ados germanos que vai ser a barbarie rna aquela de que enecessaria emanciparse e depois urna barbarie boa a barbarie dos gauleses que e a unica realmente portadora de liberdade Com isso fazemse duas operac5es importantes de urn lado vaise dissociar li berdade e germanidade que haviam sido unidas por Boulain villiers e do outro vaise dissociar a romanidade e 0 abso lutismo Isto quer dizer que vao se descobrir na Galia romana esses elementos de liberdade acerca dos quais todas as teses precedentes haviam admitido mais ou menos que haviam sido importadas pelos francos Em linhas gerais se voces quiserem enquanto a tese de Mably era obtida por urna trans formacao da tese de Boulainvilliers desagregaCao demo critica das liberdades germanicas obtemse a nova tese que e a de Brequigny 18 de ChapsaP9 etc por uma intensifica 245 AULA DE 3 DE MARrO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 244 ao e urn deslocamento daquilo que fora de certo modo registrado urn pouco marginalmente por Dubos quando dis sera que contra 0 feudalismo se levantaram juntos 0 rei e depois as cidades as cidades que haviam resistido a usurpa ao feudal A tese de Brequigny de Chapsal a que vai se tomar por sua importancia a tese dos historiadores burgueses do seculo XIX de Augustin Thierry de Guizot consiste em dizer que nO fundo 0 sistema politico dos romanos tinha dois pIanos Claro no nivel do governo central da grande administracao publica romana lidase pelos menos desde 0 Imperio com urn poder absoluto Mas os romanos haviam deixado aos gauleses as liberdades originarias que eram deles De sorte que a Galia romana e em certo sentido uma parte desse grande imperio absolutista mas 0 igualmente salpica da penetrada de toda urna serie de focos de liberdade que sao no fundo as velhas liberdades gaulesas ou celticas que os romanos deixaram intocadas e que vao continuar a fun cionar nas cidades naqueles famosos municipios do Imperio romano cnde com uma forma que alias emais ou menos copiada da velha cidade romana as liberdades arcaicas as liberdades ancestrais dos gauleses e dos celtas vao continuar a funcionar A liberdade e e pela primeira vez acho eu que isso aparece nessas analises historicas 0 pois urn fenome no compativel com 0 absolutismo romano eurn fen6meno gaules mas e sobretudo urn fenomeno urbano A liberdade pertence as cidades E 0 precisamente na medida em que per tence as cidades que essa liberdade vai poder lular e tomarse uma fora politica e historica Sem duvida essas cidades romanas vao ser destruidas quando se produz a invasao dos francos e dos germanos Mas os francos e os germanos cam poneses nomades em todo caso barbaros menosprezam as cidades e se instalam no campo aberto Portanto as cidades se reconstituem menosprezadas que eram pelos ffarreos e se beneficiam naquele momento de urn novo enriquecimento Quando se instala 0 feudalismo no final do reinado dos ca rolingios 0 claro que os grandes senhores laicoeclesiasti cos vao tentar passar a mao nessa riqueza reconstituida das cidades Mas 0 ai que as cidades tendo adquirido forca atraves da historia graas as suas riquezas as suas liberda des graas tambem a comunidade que formavam vao poder lutar resistir revoltarse E sao todos esses grandes movi mentos de revolta das comunas que vemos desenvolverem se desde os primeiros Capetos e que acabariio por impor tanto ao poder monirquico quanto a aristocracia 0 respeito de seus direitos e ate certo ponto suas leis seu tipo de eco nomia suas formas de vida seus costumes etc 1550 nos seculos XV e XVI Voces estao vendo que dessa vez temos urna tese que muito mais do que as teses anteriores muito mais ate do que a de Mably vai poder ser a tese do terceiro estado ja que e a primeira vez que a historia da cidade a historia das ins tituioes urbanas a historia lambem da riqueza e de seus efeitos politicos vao poder ser articuladas no interior da ana lise historica 0 que e feito ou ao menos esboado nessa historia e urn terceiro estado que se forma nao simplesmen te pelas concess6es do rei mas gray3s asua energia asua riqueza ao seu comercio graas a urn direito urbano muito elaborado copiado em parte do direito romano mas igual mente articulado com base na antiga liberdade ou seja na antiga barbarie gaulesa Desde ja e pela primeira vez a ro manidade que sempre tivera no pensamento historico e poli tico do seculo XVIII a cor do absolutismo e que sempre es tivera do lado do rei vai colorirse de liberalismo E longe de ser a forma teatral na qual 0 poder monarquico vai refle tir sua historia a romanidade graas a essas analises de que lhes estou falando vai ser urn objeto da propria burguesia A burguesia vai poder recuperar a romanidade sob a forma 246 EM DEFESA DA SOCfEDADE AULA DE 3 DE MARCO DE 1976 247 20 RJ Turgot Memoire sur les municipaliMs Paris 1776 do municipio galaromano como sendo de certo modo seu foro de nobreza A municipalidade galoromana e a nobre za do terceiro estado E e essa municipalidade essa forma de autonomia de liberdade municipal que 0 terceiro estado vai reclamar Tudo isso e claro deve ser ressituado no de bate que ocorreu no seculo XVIII em torno justamente das liberdades e das autonomias municipais Remeto voces par exemplo ao texto de Turgot que data de 177620 Mas voces veem que por essa mesma razao a romanidade vai poder as vesperas da Revoluao despojarse de todas as conota 5es monarquistas e absolutistas que haviam sido suas ao longo do seculo XVIII Vai poder haver uma romanidade li beral a qual por conseguinte vai tentar voltar mesmo quem nao e monarquista mesmo quem nao e absolutista Podese voltar a romanidade mesmo quando se e burgues E voces sabem que a Revoluao nao se privani disso Outra importiincia tambem desse discurso de Brequigny de Chapsal etc e que ele permite voces estao venda urn formidavel alargamento do campo hist6rico No fundo com os historiadores ingleses do seculo XVII mas tambem com Boulainvilliers partiuse do pequeno nucleo que era a fato da invasao daquelas algumas decadas daquele seculo em todo caso durante 0 qual as hordas barbaras haviam tornado de assalto a Galia E voces veem que pouco a pouco assis timos a todo urn alargamento Ja se viu por exemplo com Mably a importancia que tinha urna personagem como Car los Magno como tambem com Dubos a analise hist6rica se havia estendido para as primeiros Capetos e para a feu dalismo E eis que agora com as analises de Brequigny de Chapsal etc a foco 0 dominio do saber historicamente util e politicamente fecundo vai de urn lado estenderse para a alto porquanto se remonta ate a organizaao municipal dos romanos e finalmente ate as velhas liberdades gaulesas e celticas formidavel subida para tras De outro lado a hist6ria vai para baixo estenderse atraves de todas as lutas atraves de todas as revoltas comunais que desde a inicio do feuda lismo vao levar ao advento parcial em todo caso da bur guesia como fora econ5mica e politica nos seculos XV e XVI Dai em diante e urn milenio e meio de hist6ria que vai se tornar 0 campo do debate hist6rico e politico 0 fato juri dico e hist6rico da invasao agora se fragmentou completa mente e lidamos com urn imenso campo de lutas generali zadas que cobrem pois 1500 anos de hist6ria com atores tao variados quanta os reis a nobreza 0 clero os soldados os oficiais momrquicos 0 terceiro estado os burgueses as camponeses as habitantes das cidades etc E urna hist6ria que se ap6ia sabre institui5es como as liberdades romanas as liberdades municipais a Igreja a educaao a comercio a lingua e assim por diante Fragmentaao geral do campo da hist6ria e e precisamente nesse campo que os historia dores do seculo XIX vao retomar 0 trabalho Voces me dido por que todos esses detalhes por que essa introduao dessas diferentes titicas no interior do campo da hist6ria E verdade que eu poderia ter pura e simples mente passado diretamente para Augustin Thierry para Montlosier e para todos as que a partir dessa instrurnenta ao do saber tentaram pensar 0 fenameno revolucionario Demoreime nisso por duas raz6es Primeiro por uma razao de metoda Como voces estao vendo podese muito bern si tuar como a partir de Boulainvilliers constituise urn dis curso historico e politico cuja area de objetos cujos ele mentos pertinentes cujos conceitos cujos metodos de ana lise sao muito proximos uns dos outros Formouse uma especie de discurso hist6rico no decorrer do seculo XVIII que e comum a toda uma serie de historiadores contudo 249 AULA DE 3 DE MARrO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 248 250 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 3 DE MARrO DE 1976 251 muito opostos em suas teses bern como em suas hipoteses ou em seus sonhos politicos Podese perfeitamente sem ruptura nenhurna percorrer toda essa rede de proposi90es fundamentais que esteiam cada tipo de analise todas as transforma90es pelas quais se pode passar de urna hist6ria que louva os francos como Mably como Dubos para urna hist6ria ao contrario da democracia franca Podese muito bern passar de uma dessas hist6rias para a outra si tuando algumas transforma90es muito simples nas propo siyoes fundamentais Ternos pais uma trama epistemica muito densa de todos os discursos hist6ricos sejam quais forem afinal as teses hist6ricas e os objetivos politicos que eles se proponham Ora essa trama epistemica ser tao densa nao significa de modo algum que todo 0 mundo pense da mesma forma Essa emesma pelo contnirio a condiyao pa ra que se possa nao pensar da mesma forma e a condi9ao para que se possa pensar de uma forma diferente e para que essa diferen9a seja politicamente pertinente Para que os diferentes sujeitos falem possam ocupar posi90es tatica mente opostas para que possam uns em face dos outros encontrarse em posiy3o de adversarios para que em con seqiiencia a oposi9ao seja uma oposi9ao tanto na ordem do saber quanta na ordem da politica era justamente preciso que houvesse esse campo muito denso essa rede muito densa que regularizasse 0 saber hist6rico Quanto mais re gularmente formado e 0 saber mais e possivel para os su jeitos que nele falam distribuirse segundo linhas rigorosas de afrontamento e mais e possive fazer esses discursos assim afrantados funcionarem como conjuntos taticos dife rentes em estrategias globais em que nao se trata simples mente de discurso e de verdade mas igualmente de poder de status de interesses economicos Em outras palavras a reversibilidade tatica do discurso depende diretamente da homogeneidade das regras de forma9ao desse discurso Ea regularidade do campo epistemico e a homogeneidade no modo de forma9ao do discurso que vai deixalo utilizavel nas lutas que quanta a elas sao extradiscursivas Era por essa razao de metodo portanto que insisti nessa distribui9ao das diferentes tMicas discursivas no interior de urn campo hist6ricopolitico coerente regular e formado de maneira muito densa21 lnsisti nisso tambem por outra razao uma razao de fato que diz respeito ao que se passou no momenta mes mo da Revolu9ao Tratase disto il parte a ultima forma de discurso de que acabo de lhes falar a de Brequigny ou de Chapsal etc voces estao venda que no fundo os que tinham menos interesse em investir seus projetos politicos na hist6ria eram claro as pessoas da burguesia ou do tercei ro estado porque retornar il constitui9aO pedir a volta a algo como urn equilibrio de for9as implicava de certo modo que se estivesse seguro de no interior dessa rela9ao de for9a encontrarse a si mesma Ora era bern evidente que 0 ter ceiro estado a burguesia nao podiam muito em todo caso an tes de meados da ldade Media situarse a si mesmos como sujeitos hist6ricos nesse jogo de rela90es de for9a En quanta se interrogavam os merovingios as carolingios as invasoes francas ou ainda mesmo Carlos Magno como se poderia encontrar algurna coisa que fosse da ordem do ter ceiro estado ou da burguesia Dai 0 fato de que a burguesia contrariamente ao que se diz foi no seculo XVlII certa mente a mais reticente a mais relutante il hist6ria Profun damente a aristocracia e que foi hist6rica A monarquia 0 foi os parlamentares igualmente Mas a burguesia ficou 21 Esta passagem e uma pela significativa para ser incorporada a documental30 do debate e das controversias suscitadas pelo conceito de epis teme elaborado por Foucault em Les mots et fes choses op cit e retomado em Larcheofogie du savoir op cit cap IV VI muito tempo antihistoricista ou antihistoriadora se voces preferirem Esse carater antihistoriador da burguesia nos 0 vemos manifestarse de duas formas Primeiro durante toda a pri meira parte do seculo XVIII a burguesia foi antes favora vel ao despotismo esclarecido ou seja a uma certa forma de moderaao do poder monarquico que nao repousava po rem na historia mas numa limitaao devida ao saber a filo sofia a tecnica a administraao publica etc E depois a burguesia na segunda parte do seculo XVIII sobretudo an tes da Revoluao tentou escapar ao historicismo ambiente reclamando uma constituiao que nao fosse justamente uma reconstituicao mas fosse essencialmente se nao antihisto rica pelo menos ahistorica Dai voces compreendem 0 re curso ao direito natural 0 recurso a algo como 0 contrato so cial 0 rousseaunismo da burguesia no final do seculo XVIII antes e no inicio da Revoluao era exatamente uma respos ta ao historicismo dos outros sujeitos politicos que lutavam nesse campo da teoria e da analise do poder Ser rousseau niano apelar precisamente ao selvagem apelar ao contrato era escapar a toda essa paisagem que era definida pelo bar baro por sua hist6ria e por suas relac5es com a civilizacao Eclaro esse antihistoricismo da burguesia nao ficou inalterado ele nao impediu toda uma rearticulaao da histo ria No momento da convocaao dos EstadosGerais voces veem que os Cademos de Queixas estao cheios de referen cias hist6ricas mas as principais delas sao e 6bvio as da propria nobreza E foi simplesmente para responder a mul tiplicidade dessas refrencias feitas as capitulares ao edito de Pistes22 as praticas merovingias ou carolingias que a bur guesia por sua vez reativou toda uma serie de saberes his toricos de certo modo a titulo de replica polemica a multi plicidade das referencias historicas que voces encontram nos Cademos da Nobreza E depois voces tern uma segunda rea tivaao historica que e sem duvida mais importante e mais interessante Era a reativaao na propria Revoluao de certo nllmero de momentos ou de formas historicas que funciona ram se voces preferirem como fatos da historia cuja volta ao vocabulario as instituioes aos signos as manifestaoes as festas etc permitia dar uma figura visivel a uma Revo luao compreendida como ciclo e como volta E foi assim que voces tiveram duas grandes formas his toricas reativadas na Revolucao a partir mesmo de eerte modo desse rousseaunismo juridico que fora 0 fio diretor durante muito tempo De uma parte reativaao de Roma me lhor reativaao da cidade romana ou seja tanto da Roma arcaica republicana e virtuosa quanta da cidade galoro mana com suas liberdades e sua prosperidade dai a festa romana como ritualizaao politica dessa forma historica que vinha a titulo de constituiao de certo modo fundamental das liberdades Outra figura reativada a figura de Carlos Magno de quem voces viram 0 papel que the dava Mably e que e tornado como ponto de junao entre as liberdades francas e as liberdades galoromanas Carlos Magno 0 ho mem que convocava 0 povo para 0 Campo de Marte Carlos Magno soberanoguerreiro mas ao mesmo tempo protetor do comercio e das cidades Carlos Magno rei germiinico e imperador romano Houve todo urn sonho carolingio que se 252 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 3 DE MARO DE 1976 253 22 Num coocHio realizado em Pistes au Pitres cujas resolw5es tra zero 0 nome de Edito de Pistes sob a influencia do arcebispo Hincmar cui douse da organiz39ao do sistema monetario ordenouse a demo1i9ao dos castelos construidos pelos senhores e concedeuse a virias cidades 0 direito de cunhar moeda A assembleia instruiu tambem 0 processo de Pepino II rei da Aquitania que foi declarado despojado de seus Estados 23 Tratawse de uma m09ao apresentada na sessao de 17 de junho de 1790 cf FA Aulard La societe des jacobins Paris 18891897 t I p 153 24 E L H 1 conde de Antraigues Memoires sur la constitution des Etats provinciaux impressa em Vivarois 1788 p 61 desenvolveu ja no lU1CIO da Revoluao que atravessou a Revoluao e do qual se fala muito menos do que da festa romana 0 Campo de Marte a festa de 14 de julho de 1790 e uma festa carolingia ela se passa precisamente no Campo de Marte e era uma certa relaao do povo assim reunido com seu soberano essa relaao de modalidade carolingia que ela permitia ate certo ponto reconstituir ou reativar E em todo caso essa especie de vocabulario historico implicito que esta presente na festa de julho de 1790 E a melhor prova disso alias e que num clube de jacobinos em junho de 1790 algumas semanas antes da festa alguem havia pe dido que Luis XVI fosse no decorrer dessa festa destituido de seu titulo de rei que se substituisse esse titulo de rei pelo de imperador e que se gritasse Ii sua passagem nao Viva 0 rei mas Luis 0 imperador pais quem e imperador imperat sed non regit comanda mas naD governa eimpe rador e nao e rei Cumpria dizia tal projeto23 que Luis XVI voltasse do Campo de Marte com a coroa imperial na cabea E e claro no ponto de confluencia desse sonho carolingio urn pouco desconhecido com 0 sonho romano que vamos encontrar claro 0 imperio napoleonico Outra forma de reativaao historica no interior da Re vouao a execraao do feudalismo daquilo a que Antrai gues nobre aliado Ii burguesia chamava 0 mais espantoso flagelo com que 0 ceu em sua colera pudesse castigar uma naao livre24 Pois bern essa execraao do feudalismo as sume varias formas Primeiro 0 retorno puro e simples da tese de Boulainvilliers da tese da invasao E voces encon 25 1B Proyart Vie du Dauphin pere de Louis XV ParisLyon 1782 vol I pp 3578 Citado in A Devyver Le sang epure op cit p 370 26 EJ Sieyes Qu estce que Ie TiersEtat ed citada cap II pp 101 A frase comelVa no texto assim Por que nao destituiria ele 0 Terceiro Es tado 27 Cf AI Boulay de la Meurthe Rapport presenfe Ie 25 Vendemiaire an VI au Conseil des CinqCents sur les mesures dosfracisme dexil dexpulsion les plus convenables aux principes de justice et de liberti ef les plus propres acon solider la republique Citado in A Devyver Le sang epure op cit p 415 255 tram assim textos este e do padre Proyart Senhores fran cos somos mil contra urn fomos por bastante tempo vossos vassalos tarnaivas os nossos apraznos reaver 0 patrim6 nio de nossos pais Eisso que 0 padre Proyart queria que o terceiro estado dissesse Ii nobreza E Sieyes em seu famo so texto ao qual eu vollarei da proxima vez dizia Por que nao mandar embora para as florestas da Franconia todas essas familias que conservam a louca pretensao de ser oriundas da raa dos conquistadores e de ter herdado direitos de con quiSla26 E em 1795 ou 1796 nao me lembro mais Boulay de la Meurthe dizia depois dos grandes movimentos de emi graao Os emigrados representam os vestigios de uma con quista de que a naao francesa pouco a pouco libertouse27 Voces veem que aqui se formou algo que tambm vai ser importante bern no inicio do seculo XIX ou seja a rein lerpretaao da Revoluao Francesa e das lutas politicas e sociais que a perpassaram em termo de historia das raas E e igualmente do lado dessa execraao do feudalismo que se deve por certo recolocar a valorizaao ambigua do goti co que vemos aparecer nos famosos romances medievais da epoca da Revoluao esses romances que sao a urn so tempo romances de terror de pavor e de misterio mas igualmente ro mances politicos pois sao sempre narrativas de abuso de poder de extorsoes e a fabula de soberanos injustos de se AULA DE 3 DE MAR90 DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 254 nhores implacaveis e sanguinitrios de padres arrogantes etc o romance g6tico e um romance de ficao cientifica e poli tica ficao politica na medida em que se trata de romances essencialmente centrados no abuso de poder e de ficao cientifica na medida em que se trata da reativaao no plano do imaginario de todo urn saber sobre 0 feudalismo de to do um saber sobre 0 g6tico que tem no fundo urn seculo de idade Nao foi a literatura nao foi a imaginaao que intro duziram no final do seculo XVIII como uma novidade ou como um renascimento absoluto esses temas do g6tico e do feudalismo Eles se inseriram de fato na ordem do imagina rio na mesma medida em que esse g6tico e esse feudalismo foram 0 m6bil de uma luta agora secular no plano do saber e das formas de poder Muito antes do primeiro romance g6 tlCO quase um seculo antes brigavase em torno do que eram hist6rica e politicamente os senhores seus feudos seus poderes suas formas de dominaao Todo 0 seculo XVIII foi no plano do direito da hist6ria e da politica impregna do pelo problema do feudal E foi somente no momento da Revoluao portanto um seculo depois desse enorme tra balho no plano do saber e no plano da politica que final mente houve uma reassull9aO imagimiria nesses romances de ficao cientifica e politica Nesse dominio voces tive ram entao por essa razao 0 romance g6tico mas tudo isso deve ser recolocado nessa hist6ria do saber e das tMicas politicas que ele permite Pois bem entiio da pr6xima vez eu lhes falarei da hist6ria como retomada da Revoluao 256 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE lODE MARCO DE 1976 Reelaborariio politico do ideia de nariio no Revoluriio Sieyes Conseqiiencias tearicas e efeitos sabre 0 discurso historico as dois gabaritos de inteligibilidade do nova leo ria dominariio e totalizariio Montlosier e Augustin Thierry Nascimento do dialetica Eu creio que no seculo XVIII 0 discurso da hist6ria essencialmente ele e quase s6 ele e que fizera da guerra 0 analisador principal e quase exclusivo das relaoes politicas o discurso da hist6ria portanto e nao 0 discurso do direito e nao 0 discurso da teoria politica com seus contratos seus selvagens seus homens das pradarias ou das florestas seus es tados da natureza a luta de todos contra todos etc nao foi isso foi 0 discurso da hist6ria Entao eu gostaria agora de mostrar como e de uma forma um pouco paradoxal e a partir da Revoluao que esse elemento da guerra constitu tivo mesmo da inteligibilidade hist6rica do seculo XVIII vai ser se nao eliminado do discurso da hist6ria pelo menos re duzido delimitado colonizado implantado repartido civi lizado e voces preferirem e ate certo ponto apaziguado E que afinal de contas a hist6ria tal como a havia narrado Boulainvilliers ou du BuatNanay pouco importa fizera surgir 0 grande perigo 0 grande perigo de que fiquemos presos numa guerra infindavel 0 grande perigo de que to das as nossas relaoes sejam elas quais forem sejam sem pre da ordem da dominaao E e esse duplo perigo da guer ra infindavel como pano de fundo da histaria e da relailo da dominailo como elemento principial da politica que vai ser no discurso histarico do seculo XIX reduzido reparti do em perigos regionais em episadios transitarios retrans crito em crises e em violencias Porero mais ainda acho ell mais essencialmente esse perigo vai ser destinado a uma es pecie de apaziguamento final nilo no sentido do equilibrio born e verdadeiro que os historiadores do seculo XVIII ha viam buscado mas no sentido de reconciliailo Essa inversilo do problema da guerra no discurso da his taria eu nilo creio que seja 0 efeito do transplante ou de certo modo do controle assumido por uma filosofia diale tica sobre a histaria Eu creio que houve algo como uma dialetizailo interna uma autodialetizailo do discurso his torico que corresponde e claro ao seu emburguesamento E 0 problema seria saber como a partir desse deslocamen to se nilo dessa decadencia do papel da guerra no discurso histarico essa relailo de guerra dominada assim no interior do discurso histarico vai reaparecer mas com urn papel ne gativo de certo modo exterior urn papel nilo mais constitu tivo da histaria mas protetor e conservador da sociedade a guerra nilo mais como condiilo de existencia da sociedade e das rela5es politicas mas condiilo de sua sobrevivencia em suas relayoes politicas Vai aparecer nesse momento a ideia de uma guerra interna como defesa da sociedade con tra os perigos que nascem em seu praprio corpo e de seu pr6prio corpo e se voces preferirem a grande reviravolta do histarico para 0 biolagico do constituinte para 0 medico no pensamento da guerra social Entao hoje eu vou tentar descrever esse movimento de autodialetizailo e por conseguinte de emburguesamen to da histaria do discurso histarico Eu tentei lhes mostrar da ultima vez como e por que no campo hist6ricopolitico que fora constituido no seculo XVIII era a burguesia cuja 1 EJ Sieyes Qu esfce que Ie TiersEtat ed citada p 1 posiilo era em ultima analise a mais dificil que tinha mais dificuldade para utilizar 0 discurso da histaria como arrna no combate politico Gostaria de Ihes mostrar agora como veio 0 desbloqueio nilo em absoluto porque a burguesia de certo modo se atribuiu ou reconheceu uma histaria mas a partir de algo bern particular que foi a reelaborailo nilo his tarica mas politica dessa famosa noilo de nailo que a aristocracia convertera no sujeito e no objeto da histaria no seculo XVIII Foi deste papel ou seja da reelaborailo poli tica da nailo da ideia de nailo que se fez uma transforma ilo que tornou possivel urn novo tipo de discurso hist6rico Tomarei se nilo exatamente como ponto inicial pelo menos como exemplo dessa transforrnailo evidentemente 0 famo so texto de Sieyes sobre 0 terceiro estado texto que como voces sabem formula as tres quest5es Que e 0 Terceiro Es tado Tudo Que ele foi ate agora na ordem politica Nada o que ele exige ser Tornarse alguma coisa nelal Texto ao mesmo tempo famoso e desgastado mas que creio eu quando 0 olhamos urn pouco mais de perto traz certo nu mero de transforma5es essenciais A propasito da nailo volto a coisas ja ditas para resu miIas voces sabem que em linhas gerais a tese da mo narquia absoluta era a de que a nailo nilo existia ou de que pelo menos se existia ela sa podia existir na medida em que encontrava sua condiilo de possibilidade e sua unida de substancial na pessoa do rei Ha nailo nilo porque ha urn grupo uma multidilo urna multiplicidade de individuos que habitariam numa terra que teriam a mesma lingua os mesmos costumes as mesrnas leis Nao e isso que faz anayao o que faz a nailo e que hi individuos que uns ao lado dos DutrOS nao sao mais do que individuos nao formam sequer 259 AULA DE 10 DE MAR90 DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 258 260 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARtO DE 1976 261 urn conjunto mas tern todos cada qual individualmente uma certa rela91io a urn so tempo juridica e fisica com a pessoa real viva corporal do rei E0 corpo do rei em sua rela91io fisicojuridica com cada urn de seus suditos que faz 0 corpo da na9ao Urn jurista do final do seculo XVII dizia cada particular representa urn s6 individuo em relayao ao rei A na91io n1io forma corpo Ela reside por inteiro na pessoa do rei E e dessa na91io mero efeito juridico de certo modo do corpo do rei que so tinha sua realidade na realidade linica e individual do rei que a rea91io nobiliiria havia tirado urna multiplicidade de na90es ao menos duas em todo caso e apartir dai ela havia estabelecido entre essas na90es rela 90es de guerra e de domina91io fizera 0 rei passar para 0 lado dos instrumentos de guerra e de domina91io de urna na91io so bre a outra N1io e 0 rei que constitui a na91io e urna na91io que se atribui urn rei precisamente para lutar contra as outras na90es E essa historia escrita pela rea91io nobiliiria fizera dessas rela90es a trama da inteligibilidade historica Com Sieyes vamos ter urna defini91io totalmente dife rente ou melhor urna defini91io desdobrada da na91io De urna parte urn estado juridico Sieyes diz que para que haja uma nacao sao necessanas duas coisas uma lei cornUID e urna legislatura E isso quanto ao estado juridico Esta primeira defini91io da na91io ou melbor de urn primeiro conjunto de condi90es necessirias para que a na91io exista exige portanto para que se possa falar da na91io muito menos do que exigia a defini91io da monarquia absoluta Isto quer dizer que para que haja na91io n1io e necessario que haja urn rei Nem se Manuscrito antes de cada particular 0 rei representa a nal30 intira e Esta passagem e dada como citada in P E Lemontey Euvres Pans t Y 1829 p 15 2 Vma lei comum e uma representalVao comum e isso que faz uma Nalao ibid p 12 quer e necessario que haja urn governo Antes mesmo da for ma91io de qualquer governo antes do nascimento do sobe rano antes da delega91io do poder a na91io existe contanto que ela se tenha atribuido uma lei comum por meio de uma instancia que ela qualificou para atribuir as leis e que e pre cisamente a legislatura Logo a na91io e muito menos do que requeria a defini91io da monarquia absoluta Mas e por outro lado muito mais do que 0 exigido pela defini91io da rea91io nobiliaria Para esta para a historia tal como a escrevia Bou lainvilliers bastava para que houvesse uma na91io que hou vesse homens agrupados por urn certo interesse e que houves se entre eles urn certo llUmero de coisas em cornuro como os costumes os Mbitos eventualmente uma lingua Para que haja uma na91io segundo Sieyes deve haver portanto leis explicitas e instancias que as formulem 0 par leilegislatura e a condi9ao formal para que haja na91io Mas essa e apenas a primeira etapa da defini91io Para que uma na9ao subsista para que sua lei seja aplicada para que sua legislatura seja reconhecida e isto n1io so no exterior pelas outras na90es mas no interior mesmo para que ela subsis ta e prospere como condi91io n1io mais formal de sua exis tencia juridica mas como condi91i0 historica de sua existen cia na historia eprecise Dutra coisa eprecise outras condi 90eS E e nestas condi90es que Sieyes se detem S1io as con di90es de certo modo substanciais da na91io e Sieyes ve dois grupos delas Acima de tudo 0 que ele denomina tra balhos ou seja primeiro a agricultura segundo 0 artesana to e a industria terceiro 0 comercio quarto as artes liberais Porem aIem desses trabalhos e precise 0 que ele deno mina fun90eS e 0 exercito e a justi9a e a Igreja e e a administra91io publicaJ Trabalhos e fun90es diriamos 3 Que eprecise para que uma Naao subsista e prospere Trabalhos particulares e fuooes publicas ibid p 2 cf cap I pp 29 decerto com mais verossimilhana fun5es e aparelhos para designar esses dois conjuntos de requisitos histaricos da naao Mas 0 importante e precisamente que seja nesse nivel de fun5es e de aparelhos que sejam definidas as con di5es da existencia histarica da naao Ora fazendo isso acrescentando a essas condi5es juridicoformais da naao condi5es histaricofuncionais eu creio que Sieyes inverte e e a primeira coisa que se pode assinalar a direao de tadas as analises que haviam sido feitas ate entao seja no sentido da tese monarquista seja nurna direao do tipo rousseauniana Com efeito enquanto havia reinado a defmiao juridica da naao no fundo esses elementos que Sieyes isola como condiao substancial da naao a agricultura 0 comercio a industria etc 0 eram Nao eram a condiao para que a narao existisse erarn ao contnirio 0 efeito da existencia da naao Era precisamente quando os homens distribuidos individualmente na superficie da terra no limite da floresta ou nas pradarias queriam desenvolver sua agricultura ter urn comercio pader ter entre si re1acoes de tipo economica que se atribuiam urna lei urn Estado ou urn govemo Isto quer dizer que todas essas fun5es so eram na realidade da ordem da conseqiiencia ou em todo caso da ordem da finalidade em comparaao a constituiao juridica da naao e era apenas quando essa organizaao juridica da naao estava adquirida que essas fun5es podiam manifestarse Quanto aos apare Ihos como 0 exercito a justia a administraao publica etc eles tampouco eram a condiao para que a naao exis tisse eram se nao os efeitos dela pelo menos seus instrumen tos e sua garantia Uma vez constituida a naao e que se podia atribuirse algo como urn exercito ou urna justia Ora voces estao vendo que Sieyes inverte a analise Faz esses trabalhos e essas fun5es ou essas fun5es e esses aparelhos passarem antes da naao antes se nao historica mente pelo menos na ordem das condi5es de existencia Uma naao so pode existir como naao so pode entrar e subsistir na hist6ria se ecapaz de comercio de agricultura de artesanato se tem individuos suscetiveis de formar urn exercito urna magistratura urna igreja urna administraao publica Isto quer dizer que urn grupo de individuos pode sempre reunirse pode sempre atribuirse leis e urna legis latura pode atribuirse uma constituiao Se ele nao tem essas capacidades de praticar 0 comercio 0 artesanato a agricultura de formar urn exercito uma magistratura etc jamais ele sera historicamente uma na3o Ele 0 sera tal vez juridicamente mas nunca historicamente Nunca e 0 contrato nem a lei nem 0 consenso que podem ser real mente criadores de naao Mas inversamente pode perfei tamente acontecer que urn grupo de individuos tenha com que tenha a capacidade historica de formar seus trabalhos de exercer suas fun5es apesar de jamais ter recebido urna lei comurn e uma legislatura Elas estarao de certo modo essas pessoas de posse dos elementos substanciais e fun cionais da naao nao estarao de posse de seus elementos fonnais Serao capazes de naao nao serao uma nacao Ora a partir dai podese analisar 0 que Sieyes faz o que se passa na Frana no final do seculo XVlII segundo ele Ha de fato uma agricultura urn comercio urn artesa nato artes liberais Quem garante essas diferentes fun5es o terceiro estado e 0 terceiro estado somente Quem faz fun cionar 0 exercito a igreja a administraao publica ajustia E claro em certos cargos importantes encontramse pes soas que pertencem aaristocracia mas em nove decimos desses aparelhos e 0 terceiro estado segundo Sieyes que ga rante seu funcionamento Em compensalao esse terceiro estado que efetivamente assume em si as condi5es subs tanciais da naao nao recebeu 0 estatuto formal delas Nao hi na Frana leis comuns mas uma serie de leis das quais umas se aplicam anobreza outras ao terceiro estado outras 262 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARO DE 1976 263 ao clero etc Nao hi leis comuns Nao ha legislatura tam pouco porque as leis ou as ordenaDes sao fixadas por urn sistema que Sieyes chama aulico4 0 sistema da corte ou seja do arbitrio monarquico Dessa analise creio que se pode tirar certo nllinero de conseqiiencias Vmas eclaro sao de ordem imediatamente politica Sao imediatamente politicas nisto e que como se vi a Frana nao e urna naaoja que the faltam as condiDes formais juridicas da naao leis comuns legislatura E no entanto ha na Franca uma nacao isto e urn grupo de in dividuos que trazem em si a capacidade de garantir a exis tencia substancial e historica da naao Essas pessoas sao portadoras das condiDes historicas de existencia de urna naao e da naao Dai a formula central do texto de Sieyes que so se pode compreender precisamente numa compara ao polemica explicitamente polemica com as teses de Bou lainvilliers de du BuatNanay etc e que e 0 Terceiro Estado e uma naao completa5 Essa formula quer dizer 0 seguinte esse conceito de nac8o que a aristocracia quisera reservar para urn grupo de individuos que so tinham para si algo como costumes e urn estatuto comuns nao e suficien te para cobrir 0 que e a realidade historica da naao Mas por outro lade 0 conjunto estatal constituido pelo reino da Frana nao e realmente urna naao na medida em que nao abrange exatamente as funDes historicas que sao necessa rias e suficientes para constituir urna naao Onde vamos encontrar por conseguinte 0 Dueleo hist6rico de uma nacao que sera a nacao No terceiro estado e no terceiro estado somente Por si so 0 terceiro estado e condiao historica da existencia de uma nacao mas de urna naao que voces veem deveria de direito coincidir com 0 Estado 0 terceiro esta do e urna naao completa 0 qUl constitui a naao esta nele Ou ainda se quisermos traduzir essas mesmas proposiDes de Dutra maneira Tuda 0 que e nacional e nossa diz 0 terceiro estado e tudo 0 que enosso enacao6 Essa formulaao politica da qual Sieyes nao e 0 inven tor nem 0 tinico formulador vai claro ser a matriz de todo urn discurso politico que como voces bern sabem ainda nao esta esgotado agora A matriz desse discurso politico apresenta ereio eu duas caracteristicas Primeiro certa rela ao nova da particularidade com a universalidade uma certa relaao que e exatamente 0 inverso daquela que havia ca racterizado 0 discurso da reaao nobiliaria No fundo a rea ao nobiliaria fazia 0 que Ela extraia do corpo social cons tituido pelo rei e seus suditos ela extraia da unidade monar quica urn certo direito singular selado pelo sangue afirmado na vitoria 0 direito singular dos nobres E ela pretendia seja qual for a constituiao do corpo social que a rodeava guar dar para a nobreza 0 absoluto e singular privilegio desse di reito portanto extrair da totalidade do corpo social esse direito particular e fazeIo funcionar em sua singularidade Aqui vai se tratar de coisa muito diferente Vai se tratar de dizer ao contrario e 0 que 0 terceiro estado vai dizer Nao passamos de uma naao entre outros individuos Mas essa naao que nos constituimos e a tinica que pode constituir efetivamente a naao Talvez nao sejamos nos sozinhos a totalidade do corpo social mas somos capazes de trazer co nosco a funao totalizadora do Estado Somos suscetiveis de universalidade estatal E entao segunda caracteristica 264 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARO DE 1976 265 4 Cf ibid cap II p 17 5 Cf ibid cap I p 2 6 0 Terceiro abarca tudo quanta pertence anayao e tudo quanto nao e 0 Terceiro nao pode ser visto como sendo da nayao Que e 0 Terceiro Tudo ibid p 9 266 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARCO DE 1976 267 desse discurso vamos ter uma inversao do eixo temporal da reivindicayao Dai em diante nao e em nome de urn direito passado estabelecido quer por urn consenso quer por uma vitoria quer por uma invasao que vai se articular a reivin dicayao A reivindicayao vai poder se articular a partir de urna virtualidade de urn futuro de urn futuro que e iminente que ja esta presente no presente pois se trata de urna certa funyao de universalidade estatal ja assegurada por uma nayao dentro do corpo social a qual em nome disso exige que seu estatuto de nayao unica seja efetivamente reconbe cido e reconbecido na forma juridica do Estado Ai esm se voces quiserem 0 que se refere as conseqiien cias politicas deste tipo de anilise e de discurso Vamos ter conseqiiencias te6ricas tambem que sao as seguintes Voces estao vendo que 0 que define nessas condiyoes uma nayao nao e seu arcaismo sua ancestralidade sua relacao com 0 passado e sua relayao com alguma coisa diferente sua rela yao com 0 Estado Isso quer dizer varias coisas Primeiro que a nayaa se especifica nao essencialmente em compara Caa a outras nacoes 0 que caracteriza a nayaa DaD euma relayao horizontal com outros grupos que seriam nayoes diferentes nayoes adversas opostas oujustapostas 0 que vai caracterizar a na3o e uma relacao ao contnirio verti cal que vai desse corpo de individuos suscetiveis de cons tituir urn Estado ate a existencia efetiva do pr6prio Estado Eao longo desse eixo vertical nayaoEstado ou virtualida de estatallrealidade estatal que a nayao vai ser caracterizada e situada Isto quer dizer tambem que 0 que constitui a forya de urna nayao nao e tanto seu vigor fisico suas aptidoes militares de certo modo sua intensidade barbara que os historiadores nobiliirios do inicio do seculo XVIII quise ram descrever 0 que constitui agora a forya de uma nayao e algo como capacidades virtualidades que todas elas se ordenam na figura do Estado uma nayao sera forte tanto mais forte quanto mais capacidades estatais ela detiver em relayao a ela Isto quer dizer tambem que a peculiaridade de urna nayao nao e tanto dominar as outras 0 que vai consti tuir 0 essencial da funyao e do papel hist6rico da nayao nao sera exercer sabre as outras nacoes uma relacao de domina 9aO sera alga diferente sera administrar a si mesma gerir govemar assegurar por si a constituicao e 0 funcionamen to da figura e do poder estatais Nao dominayao mas esta tizayao A nayao ja nao e portanto essencialmente urn par ceiro em relayoes barbaras e belicosas de dominayao A na yao e 0 nucleo ativo constitutivo do Estado A nayao e0 Es tado ao menos em pontilhado e 0 Estado na medida em que ele esta nascendo formandose e encontrando suas condi yoes hist6ricas de existencia num grupo de individuos Ai esHlo se voces quiserem as conseqiiencias teoricas no nivel daquilo que se entende por nayao Conseqiiencias agora para 0 discurso hist6rico 0 que vamos ter agora eurn discurso hist6rico que reintroduz e ate certo ponto recolo ca em seu centro problema do Estado E nisso vamos ter urn discurso hist6rico que ate certo ponto se aproximara daquele discurso hist6rico tal como existia no seculo XVII e do qual tentei lhes mostrar que era essencialmente uma certa maneira para 0 Estado de fazer urn discurso sobre si mesmo Esse discurso que tinba funyoes justificadoras li rurgicas era 0 Estado narrando seu pr6prio passado ou seja estabelecendo sua pr6pria legitimidade e fortalecendose de certo modo no plano de seus direitos fundamentais Era isso 0 discurso da hist6ria no seculo XVII ainda Foi contra ele que a reayao nobiliaria havia lanyado seu petardo e esse tipo de discurso hist6rico no qual a nayao era precisamente aquilo com 0 que se podia decompor a unidade estatal e mos trar que sob a aparencia formal do Estado existiam outras foryas que justamente nao eram as foryas do Estado mas as foryas de urn grupo particular que tinba sua hist6ria par ticular sua relaao com 0 passado suas vit6rias seu sangue suas rela5es de dominaao etc Agora vamos ter urn discurso da historia que se apro xima do Estado e que ja nao sera em suas fun5es essen ciais antiestatal Mas nessa nova historia nao se tratani de fazer 0 Estado enunciar urn discurso que sera 0 dele proprio e 0 de sua justificaao Vai se tratar de fazer a historia das rela5es que se tramam eternamente entre a naao e 0 Es tado entre as virtualidades estatais da naao e a totalidade efetiva do Estado Isso permite escrever urna historia que claro nao sera derivada do circulo da revoluao e da recons tituiao da volta revolucionadora it ordem primitiva das coi sas como era 0 caso no seculo XVII Mas vamos ter agora ou poderemos ter urna historia do tipo retilineo em que 0 momento decisivo sera a passagem do virtual para 0 real a passagem da totalidade nacional para a universalidade do Es tado uma historia por conseguinte que estara polarizada para 0 presente e para 0 Estado ao mesmo tempo urna his toria que culmina nessa iminencia do Estado da figura total completa e plena do Estado no presente E isto vai permitir tambem segunda coisa escrever urna historia em que a relaao das foras que sao postas em jogo nao sera urna re laao do tipo guerreiro mas urna relaao do tipo inteiramen te civil se voces quiserem Eclaro na analise de Boulainvilliers eu tentei Ihes mos trar como 0 enfrentamento das na5es nurn mesmo corpo social se dava por intermedio de institui5es da economia da educaao da lingua do saber etc Mas essa utilizaao das institui5es civis estava ali apenas a titulo de instrumen to para urna guerra que continuava a ser fundamentalmente urna guerra eram apenas os instrurnentos de urna dominaao que continuava a ser sempre urna dominaao de tipo guer reiro do tipo da invasao etc Vamos agora ao contrario ter uma historia em que a guerra a guerra para a dominaao sera substituida por uma luta que e de certo modo de outra subsmncia nao urn enfrentamento arrnado mas urn esforo uma rivalidade uma tensao direcionada para a universalida de do Estado 0 Estado e a universalidade do Estado e que vao ser a urn so tempo 0 mobil e 0 campo de batalha da luta em conseqiiencia luta que na mesma medida em que nao tera como finalidade e como expressao a dominaao mas tera como objeto e espao 0 Estado sera essencialmente civil Ela vai se desenrolar essencialmente atraves e em di reao da economia das institui5es da produao da admi nistraao Vamos ter uma luta civil em comparaao it qual a luta militar a luta sangrenta so pode ser urn momento excepcional ou uma crise ou urn episodio A guerra civil longe de ser 0 pano de fundo de todos os enfrentamentos e das lutas nao passara de fato de urn episodio de uma fase de crise em comparaao a uma luta que agora vai ser preci so considerar em termos DaD de guerra nao de dominaao nao em termos militares mas em termos civis E eu acho que e ai que se coloca uma das quest5es fun damentais da historia e da politica nao somente do seculo XIX mas ainda do seculo XX Como se pode compreender uma luta em terrnos propriamente civis Isso que chamamos a luta a luta economica a luta politica a luta pelo Estado pode ser efetivamente analisado em termos nao guerreiros em termos propriamente economicopoliticos Ou devemos descobrir por tras disso algo queOseria justamente 0 pano de fundo indefinido da guerra e da dominaao que os his toriadores do seculo XVIII haviam tentado assinalar Em todo caso a partir do seculo XIX e a partir dessa redefini ao da noao de naao teremos uma historia que vai procu rar de encontro ao que se fazia no seculo XVIII 0 pano de fundo civil da luta dentro do espao do Estado que deve subs tituir 0 pano de fundo guerreiro militar sangrento da guer ra que os historiadores do seculo XVIII haviam assinalado 268 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 0 DE MARrO DE 976 269 7 F de Reynaud conde de Montlosier De fa monarchie franraise depuis son etablissementjusqua nosjours Paris 1814 vol IIII 8 A Thierry Sur lantipathie de race qui divise la nation fraolaisc Le censeur europeen 2 de abril de 1820 compilado in Dix ans deludes histo riques Paris 1835 p 292 Ai esta se voces quiserem 0 que diz respeito as condi oes de possibilidade desse novo discurso historico Concre lamente qual forma in1 assumir essa nova historia Eu creio que se quisermos situala de uma forma global podemos dizer que ela vai se caracterizar pelo jogo pelo ajustamento de dois gabaritos de inteligibilidade que se justapoem se entrecruzam ate certo ponto e se corrigem reciprocamente o primeiro e 0 gabarito de inteligibilidade que havia sido constituido e utilizado no seculo XVIII Isto quer dizer que na historia tal como vamos vela escrita por Guizot Augus tin Thierry Thiers Michelet tambem vai se propor no ini cio uma relaao de fora uma relaao de luta e isto na pro pria fora que the reconheciam ja no seculo XVIII ou seja a guerra a batalha a invasao a conquista Os historiadores digamos do tipo ainda aristocratico como Montlosier7 mas tambem Augustin Thierry mas tambem Guizot se propoem sempre essa luta como matriz se voces quiserem de uma historia A Thierry por exemplo diz Acreditamos ser uma naao e somas duas naoes na mesma terra duas naoes inimigas em suas recorda90es inconciliaveis em seus pro jetos uma outrora conquistou a outra E claro alguns dos senhores passaram para 0 lado dos vencidos mas 0 resto au seja aqueles que continuaram a ser as senhores 0 resto tao alheio a nossas afeioes e a nossos costumes quanta se tivesse chegado ontem entre nos tao surdo a nossas palavras de liberdade e de paz quanta se nossa linguagem the fosse desconhecida como a linguagem de nossos antepassados 0 era adele 0 resto segue seu caminho sem se preocupar com o nosso8 E Guizot diz tambem OM mais de treze seculos 9 Cf F Guizot Du gouvernement de fa France depuis fa Restauration et du ministere aCluel Paris 1820 p I 271 a Fran9a continha dois povos urn povo vencedor e urn povo vencido9 Temos mesmo portanto ainda nesse momento o mesmo ponto inicial 0 mesmo gabarito de inteligibilidade do seculo XVIII Mas a esse primeiro gabarito acrescentase urn outro que completa e inverte ao mesmo tempo essa dualidade ori ginaria Eum gabarito que em vez de funcionar a partir de um ponto de origem que seria a primeira guerra a primeira invasao aprimeira dualidade nacional funciona ao contnirio regressivamente a partir do presente Esse segundo gabari to e precisamente aquele que foi tornado possivel pela ree laboraao da ideia de naao 0 momento fundamental ja nao e a origem 0 ponto inicial da inteligibilidade nao e 0 elemento arcaico e ao contririo 0 presente Etemos ai acho eu urn fenomeno importante que e a inversao do valor do presente no discurso historico e politico No fundo na his toria e no campo historicopolitico do seculo XVIII 0 pre sente era sempre 0 momenta negativo era sempre algo oco calma aparente esquecimento 0 presente era 0 momenta em que atraves de uma porao de deslocamentos de traioes de modificaoes das relaoes de fora 0 estado primitivo de guerra havia sido como que embaralhado e achavase irre conhecivel nao so irreconhecivel mas profundamente es quecido mesmo por aqueles que teriam tido proveito porem em utilizaIo A ignorancia dos nobres sua distraao sua preguia sua avidez tudo isso fizera que eles tivessem es quecido a relaao de fora fundamental que definia a rela ao deles com os outros habitantes de suas terras E alem disso 0 discurso dos c1erigos dos juristas dos administra dores do poder monarquico havia encoberto essa relaao de AULA DE lODE MARrO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 270 272 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARrO DE 1976 273 fora inicial de sorte que 0 presente era para a historia do seculo XVIII sempre 0 momenta do profundo esquecimento Dai a necessidade de sair do presente por urn despertar vio lento e subito que devia passar primeiro e acima de tudo pela grande reativaao do momenta primitivo na ordem do saber Despertar da consciencia a partir desse ponto de es quecimento extremo que era 0 presente Ao contrario agora no gabarito de inteligibilidade da historia a partir do momenta em que a historia e polarizada pela relaao naaoEstado virtualidadeatualidade totalida de funcional da naaoluniversalidade real do Estado voces veem bern que 0 presente vai ser 0 momento mais cheio 0 momento da maior intensidade 0 momenta solene em qe se faz a entrada do universal no real Esse ponto de contato do universal e do real num presente urn presente que acaba de suceder e que vai suceder na iminencia do presente e isso que Ihe vai dar a urn s6 tempo 0 valor a intensidade e que vai constituilo como principio de inteligibilidade 0 presente ja nao e 0 momenta do esquecimento 13 ao con trario 0 momenta em que vai brilhar a verdade aquele em que 0 obscuro ou 0 virtual vai revelarse em plena luz 0 que faz que 0 presente se tome ao mesmo tempo revelador e analisador do passado Eu ereio que a hist6ria tal como a vemos funcionar no seculo XIX ou pelo menos na primeira metade do seculo XIX utiliza os dois gabaritos de inteligibilidade aquele que se estende a partir da guerra inicial que vai atravessar todos os processos historicos e que os anima em todos os seus de senvolvimentos e tarnhem outro gabarito de inteligibilida de que vai remontar da atualidade do presente da realiza ao totalizadora do Estado ao passado que reconstitui sua genese De fato esses dois gabaritos nunca funcionam urn sem 0 outro sempre sao utilizados quase em concorrencia vaa sempre urn de encontro ao outro sobrepoemse mais ou menos entrecruzamse parcialmente em suas fronteiras Te mos no fundo urna hist6ria que e escrita de urn lado em for ma de dominaao tendo como segundo plano a guerra e de outro lado em forma de totalizaao tendo do lado do presente na iminencia em todo caso daquilo que se pas sou e daquilo que se vai passar a emergencia do Estado Portanto urna historia que se escreve a urn s6 tempo em termos de comeo dividido e em termos de conclusao tota lizadora E eu creio que 0 que define a utilidade a utiliza bilidade politica do discurso hist6rico e a maneira no fundo pela qual se faz funcionar urn em relaao ao outr esses ga baritos a maneira pela qual se vai privilegiar urn ou 0 outro Em linhas gerais 0 privilegio concedido ao primeiro gabarito de inteligibilidade 0 do comeo dilacerado vai fomecer uma hist6ria que diremos se voces concordarem reacionaria aristocrMica de direita 0 privilegio concedido ao segundo ao momenta presente da universalidade vai fornecer uma hist6ria que sera uma hist6ria do tipo liberal ou burguesa Mas de fato nenhuma dessas duas hist6rias cada qual com sua posiao tMica pr6pria podera eximirs de utilizar de urna maneira ou de outra os dois gabaritos Eu gostaria para tanto de Ihes dar dois exemplos urn ex traido de uma historia tipicamente de direita tipicamente aristocratica que ate certo ponto trilhava a linha direta da quela do seculo XVIII mas que de fato a desloca conside ravelmente e faz apesar de tudo que funcione 0 gabarito de inteligibilidade que se estende a partir do presente 0 outro sera urn exemplo inverso ou seja nurn historiador conside rado liberal e burgues mostrar 0 jogo desses dois gabaritos e mesmo desse gabarito de inteligibilidade a partir da guer ra que nao e porem para ele absolutamente privilegiado o primeiro exemplo portanto uma hist6ria do tipo de direita aparentemente dentro da linha da reaao nobiliaria do seculo XVIII e aquela que foi escrita no inicio do seculo 274 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARCO DE 1976 275 XIX por Montlosier Nurna historia como essa encontra mos no inicio urn privilegio das rela90es de domina9ao e sempre essa rela9ao da dualidade nacional essa rela9ao de domina9ao caracteristica da dualidade nacional que vamos encontrar ao longo de toda a historia E 0 livro os livros de Montlosier sao salpicados de invectivas do seguinte genero que ele dirige ao terceiro estado Ra9a de libertos ra9a de escravos povo tributario licen9a vos foi outorgada para ser des livres mas nao para serdes nobres Para nos tudo e de direito para vos tudo e de favor Nao somos de vossa comu nidade somas urn todo por nos mesmos E at tambem vo ces encontram 0 famoso tema de que eu lhes falava a propo sito de Sieyes No mesmo sentido Jouffroy escrevia numa revista qualquer nao sei mais qual urna frase como esta A ra9a setentrional se apoderou da Galia sem dela extirpar os vencidos ela legou aos seus sucessores as terras da con quista para govemar e os homens da conquista para reger 10 A dualidade nacional e afirmada por todos esses histo riadores que sao grosso modo emigrados que voltam a Fran9a e reconstituem de certo modo no momenta da rea 9ao ultra uma especie de momento privilegiado da invasao Mas olhandoa mais de perto a analise de Montlosier fun ciona de modo muito diferente daquele que se via no seculo 10 Michel Foucault aludc aqui a Achille Jouffroy dAbbans 1790 1859 Partidario dos Bourbons publicou em L Observaleur artigos favora veis ao direito divino ao parler absoluto e ao ultramontanismo Depois da queda de Carlos X publicou urn jamal La legitimite cuja difusao foi proibi da na Fraoya E autor entre outras de uma brochura Des idees liherates du Franrais 1815 de uma narrativa da Revoluyao Les Jastes de lanarchie 1820 e de uma obm hist6rica sabre a Oalia Les siecles de la monarchie franraise 1823 A citayao de Jouffroy esta em L observateur des colonies de fa marine de la politique de fa litterature et des arts IX fasciculo 1820 p 299 cr A Thierry Sur lantipathic de race art cit XVIII Montlosier fala de uma rela9ao de domina9ao que resulta de urna guerra claro ou melhor de urna multiplici dade de guerras que ele nao procura no fundo situar E diz o essencial nao e tanto 0 que se passou na hora da invasao dos francos porque na verdade as rela90es de domina9ao existiam muito antes e sao muito mais multiplas do que isso Na GaIia bern antes mesmo da invasao romana ja havia urna rela9ao de domina9ao entre uma nobreza e urn povo que era tributario Esse era 0 resultado de urna guerra antiga as ro manos chegaram trazendo sua guerra consigo mas trazen do igualmente urna rela9ao de domina9ao entre sua aristo cracia e as pessoas que nao passavam de clientes desses ricos desses nobres ou desses aristocratas E ai tambem rela9ao de domina9ao resultante de uma velha guerra E depois che garam os germanos com sua propria rela9ao intema de su jei9ao entre os que eram guerreiros livres e os outros que nao passavam de suditos Portanto afinal 0 que se consti tuiu no inicio da Idade Media na aurora do feudalismo nao foi a sobreposi9ao pura e simples de urn povo vencedor e de urn povo vencido mas a mescla de tres sistemas de dornina9ao intema 0 dos gauleses 0 dos romanos e 0 dos germanos 11 No fundo a nobreza feudal da Idade Media nao e mais que a mescla dessas tres aristocracias que se constituiram nurna nova aristocracia e exerceram urna rela9ao de domina9ao sobre pessoas que eram por sua vez a mescla dos tributa rios gauleses dos clientes romanos e dos suditos germanos De sorte que temos urna rela9ao de domina9ao entre algo que era urna nobreza que era uma na9ao mas que era tam bern a na9ao inteira ou seja a nobreza feudal e depois no exterior dessa na9ao como objeto como parceiro de sua 11 F de Reynaud conde de Montlosier De la monarchie franaise op cit liv I cap I p 150 276 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 10 DE MARrO DE 1976 277 relaito de dominaito vamos ter todo urn povo de tributa rios de servos etc que sito na realidade nito a outra parte da naito mas que estito fora da naito Portanto Montlosier faz funcionar urn monismo no plano da naito e em proveito da nobreza e depois urn dualismo no plano da dominaito Ora em comparaito a isso qual vai ser 0 papel segun do Montlosier da monarquia Pois bem 0 papel da monar quia foi 0 de constituir a partir dessa massa fora da naito e que era 0 resultado a mescla dos suditos germanos dos clientes romanos dos tributarios gauleses uma nalao urn outro povo Ai esta 0 papel do poder regio A monarquia libertou os tributarios concedeu direitos as cidades tomou as independentes da nobreza ela libertou mesmo os servos e criou pea por pea algo de que Montlosier diz que era urn novo povo igual em direito ao antigo povo ou seja a no breza e muito superior em nilmero 0 poder regio diz Mon dosier constituiu uma classe imensa12 Ha nesse tipo de analise a reativaito claro de todos os elementos que vimos ser utilizados no seculo XVIII mas com urna modificaito fundamental e que voces estito venda os processos da politica tudo que se passou desde a Idade Media ate 0 seculo XVII e 0 seculo XVIII para Mon tlosier nao consiste simplesmente em modificar em deslo car as relaoes de fora entre dois parceiros que teriam sido dados logo de saida e que teriam sido postos frente a frente desde a invasao De fato 0 que aconteceu foi a criaao no interior de um conjunto que era mononacional e por intei ro concentrado em torno da nobreza de algo diferente a criaao de urna nova naao de um novo povo daquilo que Montlosier chama de urna nova classelJ Fabricaao em con 12 Cf ibid iv III cap 11 pp 152 SS 13 Cf ibid loco cit seqiiencia de uma classe de classes no interior do corpo social Ora a partir dessa fabricaao de urna nova classe 0 que vai acontecer Pois bem 0 rei se serve dessa nova classe para arrancar da nobreza seus privilegios economicos e po liticos Que meios emprega Ai tambem Montlosier repete o que seus predecessores disseram mentiras traioes alian as antinaturais etc 0 rei utiliza tambem a fora viva dessa nova classe utiliza as revoltas revoltas das cidades contra os senhores rebeliao dos camponeses contra os proprietarios das terras Ora por tras de todas essas revoltas diz Mon tlosier que se deve ver 0 descontentamento dessa nova classe e claro Mas sobretudo a mao do rei 0 rei e que ani mava todas as revoltas porque cada revolta enfraquecia 0 poder dos nobres e por conseguinte fortalecia 0 poder dos reis que obrigavam as Dobres a fazer concess5es E alias por um processo circular cada medida regia de libertaao aumentava a arrogancia e a fora do novo povo Cada con cessao que 0 rei fazia a essa nova classe acarretava novas revoltas Ha pais urn vinculo essencial em tada a hist6ria da Frana entre a monarquia e a revolta popular Monarquia e revolta popular sao intimamente ligadas E a transferencia para a monarquia de todos os poderes politicos que a nobre za havia possuido outrora se faz essencialmente pela arma dessas revoltas dessas revoltas preparadas animadas em todo caso sustentadas e favorecidas pelo poder monarquico A partir dai a monarquia arroga 0 poder apenas a si mas s6 pode fazelo funcionar s6 pode exercelo recorrendo a essa nova classe Confiani pais suajusti9a e sua adminis tra9ao publica a essa nova dasse que se ve assim incum bida de todas as funoes do Estado De sorte que 0 derra deiro momenta do processo s6 pode ser e claro a revolta Ultima aquela em que 0 Estado inteiro tendo caido nas maos dessa nova classe nas maos do povo escapa ao poder mo mirquico J8 nao vaa ficar frente a frente senao urn rei que 278 EMDEFESA DA SOCEDADE AULA DE IO DE MARCO DE 976 279 na realidade s6 tern como poder aquele que Ihe foi dado pelas revoltas populares e do outro lado urna classe popu lar que tern entre as maos todos os instrumentos do Estado Derradeiro epis6dio derradeira revolta que se faz contra quem Pois bern contra aquele que esqueceu que era 0 der radeiro aristocrata a ainda possuir poder 0 rei A Revolu9ao Francesa se mostra portanto na analise de Montlosier como 0 derradeiro epis6dio desse processo de transferencia que constituiu 0 absolutismo monarquico14 A conclusao dessa constitui9ao do poder monarquico e a Re volu9ao A Revolu9aO derrubou 0 rei De modo algum A Revolu9ao concluiu a obra dos reis expressou literalmente a verdade dessa obra A Revolu9ao deve ser lida como a con clusao da monarquia conclusao tragica talvez mas conclu sao politicamente verdadeira E a cena de 21 de janeiro de 1793 talvez tenha decapitado 0 rei decapitouse 0 rei mas coroouse a monarquia A Conven9ao e a verdade da mo narquia posta a nu e a soberania arrancada da nobreza pelo rei esta agora de urna forma absolutamente necessaria nas maos de urn povo que vern a ser diz Montlosier 0 herdeiro legitimo dos reis Montlosier aristocrata emigrado acirra do adversario da menor tentativa de liberaliza9ao sob a Restaura9ao pode escrever isto 0 povo soberano que nao o censurem com demasiado amargor Ele limitouse a con surnar a obra dos soberanos seus predecessores Portanto o povo e 0 herdeiro e 0 herdeiro legitirno dos reis limitouse a consurnar a obra dos soberanos seus predecessores Se guiu ponto por ponto a estrada que the fora tra9ada pelos reis pelos parlamentos pelos homens da lei e pelos cientis tas De sorte que se tern em Montlosier voces estiio venda emoldurando de certa forma a pr6pria analise hist6rica a for 14 Ibid liv II cap II p 209 mula9ao de que tudo partiu de urn estado de guerra e de urna rela9ao de domina9ao Temos nessas reivindica90es politi cas da epoca da Restaura9ao a afirma9ao de que a nobreza deve reaver seus direitos recuperar os bens nacionalizados reconstituir as rela90es de domina9ao que ela havia exerci do outrora em rela9ao ao povo inteiro E claro ha essa afir ma9ao mas voces veem que 0 discurso hist6rico que e feito em seu nucleo em seu conteudo central e urn discurso his t6rico que faz 0 presente funcionar como momento pleno momento da efetua9ao momenta da totaliza9ao momenta a partir do qual todos os processos hist6ricos que entabu laram as rela90es entre a aristocracia e a monarquia chegam finalmente a seu ponto ultimo derradeiro a seu momento pleno aquele em que se constitui urna totalidade estatal en tre as maos de urna coletividade nacional E nessa medida podese dizer que esse discurso sejam quais forern os temas politicos ou os elementos de analise que se referem a hist6 ria de Boulainvilliers ou de du BuatNan9ay ou sao direta mente transplantados dela funciona na verdade com base em outro modelo Agora eu gostaria de examinar para terminar outro tipo de hist6ria diretamente oposta E a hist6ria de Augustin Thierry adversario explicito de Montlosier Nele 0 ponto da inteligibilidade da hist6ria vai ser e claro de forma pri vilegiada 0 presente Explicitamente 0 segundo gabarito aquele que vai partir do presente do presente pleno para revelar os elementos e os processos do passado e que sera utilizado Totaliza9ao estatal e isso que deve ser projetado sobre 0 passado e devese fazer a genese dessa totaliza9ao A Revolu9ao e precisamente para Augustin Thierry esse momento pleno de urna parte a Revolu9ao diz ele e claro 0 momenta da reconcilia9ao Ele coloca essa reconci lia9ao essa constitui9ao de urna totalidade estatal na famosa cena em que Bailly como voces sabem ao acolher os repre 15 A Thierry Essai sur lhistoire de laformation et des progres du TjersEtat in Euvres completes t Y Paris 1868 p 3 Thierry escreve A famBia esrn completa 16 Cf em especial A Thierry Sur lantipathie de race art cit e Histoire veritable de Jacques Bonhonune Le censeur europeen maio de 1820 artigo igualmente compilado in Dix ans detudes historiques op cit sentantes da nobreza e do clero no mesmo local em que es tavam os do terceiro estado respondeu Ai esm a familia reunida15 Portanto partamos desse presente 0 momento atual e o da totalizayao na forma do Estado Seja como for essa to talizayao s6 pOde ocorrer no processo violento da Revoluyao e esse momenta pleno da reconciliayao traz ainda a fisiono mia e os trayos da guerra E Augustin Thierry diz que a Revoluyao Francesa nada mais e no fundo do que 0 derra deiro epis6dio de urna luta que durou mais de treze seculos a luta entre os vencedores e os vencidos16 Entao todo 0 problema da analise hist6rica para Augustin Thierry vai ser 0 de mostrar como uma luta entre vencedores e vencidos pOde atravessar toda a hist6ria e conduzir a urn presente que justamente ja nao tern a forma da guerra e de urna domina yao dissimetrica que continuariam as precedentes ou que as inverteriam noutro sentido e 0 de mostrar de que forma essa guerra pOde levar agenese de urna universalidade em que a luta ou a guerra em todo caso tern de desaparecer Como e que das duas partes pode haver urna que foi portadora de universalidade Eesse 0 problema da hist6ria para Augustin Thierry E sua analise entao vai consistir em descobrir a origem de urn processo que e duelo no inicio mas que sera monista e universalista ao meSilla tempo no final 0 essencial do enfrentamento para Augustin Thierry e justamente que 0 que sucedeu claro encontra seu ponto de origem em algo como urna invasao Mas se houve luta e enfrentamento ao lange de toda a Idade Media e ate no mo mento atual nao foi no fundo porque vencedores e venci dos se enfrentaram atraves das instituiyoes foram na reali dade dois tipos economicojuridicos de sociedade que se constituiram e entraram em rivalidade urn com 0 outro pela administrayao e pela posse do Estado Tivemos antes mes mo da constituiyao da sociedade medieval urna sociedade rural organizada depois da conquista e de acordo com urna forma que vai ser muito cedo a do feudalismo e depois em face disso urna sociedade urbana que por sua vez tinha urn modelo romano e urn modelo gaules E no fundo 0 en frentamento e nurn sentido 0 resultado da invasao e da conquista mas e essencial substancialmente a luta entre duas sociedades cujos conflitos vao ser por momentos con flitos armadas mas quanta ao essencial urn enfrentamen to de ordem politica e economica Guerra talvez mas guer ra do direito e das liberdades de urn lado contra a divida e a riqueza do outro Esses enfrentamentos entre dois tipos de sociedade pela constituiyao de urn Estado e isso que vai ser 0 motor fun damental da hist6ria Ate os seculos IXX as cidades e que saem perdendo nesse enfrentamento nessa luta pelo Estado e pela universalidade do Estado E depois a partir dos seculos XXI renascimento ao contnirio das cidades que ocorre a partir do modele italiano no Sui a partir do modelo n6rdi co nas regiaes do Norte Nova forma em todo caso de organizayao juridica e economica E se a sociedade urbana prevalece finalmente nao e em absoluto porque teria obti do algo como urna vit6ria militar mas pura e simplesmente porque tern a seu favor e cada vez mais nao somente a ri queza mas a capacidade administrativa e tambem uma mo ral uma certa maneira de viver uma certa maneira de ser uma vontade instintos inovadores diz Augustin Thierry 281 AULA DE 10 DE MARO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 280 282 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 10 DE MARO DE 1976 283 wna atividade tambem que the dame for9a bastante para que suas institui90es deixem wn dia de ser locais e se tor nem enfim as pr6prias institui90es do direito politico e do direito civil do pais Universaliza9ao por conseguinte a partir nao de wna rela9ao de domina9ao que teria se virado inteiramente a seu favor mas peio fate de que todas as fun 90es constitutivas do Estado estao nascem em suas maos ou passam em todo caso por suas maos E a essa for9a que 0 a for9a do Estado e ja nao 0 a for9a da guerra a burguesia nao dani wn usa guerreiro ou s6 dara urn uso guerreiro quando realmente for for9ada a isso E dois grandes episOdios duas grandes fases nessa his t6ria da burguesia e do terceiro estado Primeiro quando 0 terceiro estado sente que tern entre as maos todas as for9as do Estado 0 que ele vai propor pois bern 0 wna especie de pacto social iI nobreza e ao clero E 0 assim que se consti tuem a wn s6 tempo a teoria e as institui90es das tres ordens Mas 0 wna unidade facticia que nao corresponde verdadei ramente iI realidade da rela9ao de for9a nem iI vontade da parte adversa De fato 0 terceiro estado ja tern todo 0 Esta do na mao e a parte adversa ou seja a nobreza nem sequer quer reconhecer wn direito qualquer ao terceiro estado E nesse momento que come9a no seculo XVIII wn novo pro cesso que vai ser urn processo mais violento de enfrenta mento E a Revolu9ao sera precisamente 0 ultimo epis6dio de guerra violenta que reativa claro os antigos conflitos mas que 0 de certo modo apenas 0 instrwnento militar de wn conflito ou de wna luta que nao sao da ordem guerreira que sao essencialmente da ordem civil e que tern como obje to e como espa90 0 Estado 0 desaparecimento do sistema das tres ordens os abalos violentos da Revolu9aO tudo isso s6 constitui no fundo wna linica coisa a hora em que 0 ter ceiro estado tornado na9ao tornado a naao mediante absor 9ao de todas as funoes estatais vai efetivamente incumbir se ele sozinho da na9ao e do Estado Constituir sozinho a na9ao e incwnbirse do Estado quer dizer assegurar as fun 90es de universalidade que fazem que desapare9am por isso mesmo tanto a dualidade antiga quanto todas as rela90es de domina9ao que puderam funcionar ate enmo A burguesia o terceiro estado tornase portanto 0 povo tornase portanto o Estado Ele tern a for9a do universal E 0 momento pre sente aquele em que escreve Augustin Thierry 0 preci samente 0 momento desse desaparecimento das dualidades das na90es das classes tambem Imensa evoluao diz Au gustin Thierry que fez desaparecer sucessivamente do solo onde vivemos todas as desigualdades violentas ou ilegiti mas 0 senhor e 0 escravo 0 vencedor e 0 vencido 0 senhor eo servo para mostrar afinal no lugar deles wn mesmo povo wna lei igual para todos wna na9ao livre e soberana17 Voces estao vendo que com analises como esta de wna parte temos claro a evacua9ao ou em todo caso a delimi ta9ao estrita da funao da guerra como analisador dos pro cessos hist6ricopoliticos A guerra ja nao 0 senao momen tiinea e instrwnental em compara9ao a enfrentamentos que por sua vez nao sao do tipo belicoso Segundo 0 elemento essencial ja nao 0 essa relaao de domina9ao que agiria de uns a outros de wna na9ao a outra de wn grupo a outro a rela9ao fundamental 0 0 Estado E voces estao vendo afi nal como no interior de analises como essas vemos deli nearse algo que 0 eu diria imediatamente assimilavel imediatamente transferivel a urn discurso filos6fico do tipo dialetico A possibilidade de wna filosofia da hist6ria ou seja 0 aparecirnento no inicio do seculo XIX de wna filosofia que 17 A Thierry Essai sur lhistoire du TiersEtat in op cit p 10 A citayao inexata foi restabelecida no texto de acordo com 0 original 284 EM DEFESA DA SOCIEDADE encontrani na hist6ria e na plenitude do presente 0 momento em que 0 universal se expressa em sua verdade voces veem que essa filosofia eu nao digo que e preparada digo que ja funciona no interior do discurso hist6rico Houve urna auto dialetiza9ao do discurso hist6rico que foi feita independen temente de qualquer transferencia explicita ou de qualquer utiliza9ao explicita de urna filosofia dialetica para 0 discur so hist6rico Mas a utiliza9ao pela burguesia de urn discurso hist6rico a modifica9ao pela burguesia dos elementos fun darnentais da inteligibilidade hist6rica que ela havia recolhido do seculo XVIII foi ao mesmo tempo urna autodialetiza 9ao do discurso hist6rico E voces compreendem como a partir dai entre discurso da hist6ria e discurso da filosofia puderam estabelecerse rela90es No fundo a filosofia da hist6ria nao existia no seculo XVIII seniio como especula9ao sobre a lei geral da hist6ria A partir do seculo XIX come 9a algo novo e creio eu fundamental A hist6ria e a filoso fia vao formular esta questao em comum 0 que no presen te traz consigo 0 universal 0 que no presente e a verdade do universal Essa e a questao da hist6ria essa e igualmen te a questiio da filosofia Nasceu a dialetica AULA DE 17 DE MARCO DE 1976 Do poder de soberania ao poder sabre a vida Fazer viver e deixar morrer Do homemcorpo ao homemespe cie nascimento do biopoder Campos de aplicaaodo bio poder Apopulafiio Da morte e da morte de Franco m especial Articulafoes da disciplina e da regulamentarQo a cidade operaria a sexualidade a norma Biopoder e ra cismo Fun90es e areas de aplicQfiio do racismo a nazis mo a socialismo Cumpre pois tentar terminar fechar urn pOUCO 0 que eu disse este ano Eu havia tentado expor urn pouquinho 0 problema da guerra encarada como gabarito de inteligibili dade dos processos hist6ricos Parecerame que essa guerra fora concebida inicial e praticamente durante todo 0 seculo XVIII ainda como guerra das ra9as Era urn pouco essa his t6ria da guerra das ra9as que eu queria reconstituir E tentei da ultima vez mostrarlhes como a pr6pria n09ao de guerra fora finalmente eliminada da analise hist6rica pelo principio da universalidade nacional Eu gostaria agora de lhes mos trar como 0 tema da ra9a vai nao desaparecer mas ser reto mado em algo muito diferente que e 0 racismo de Estado E entao e 0 nascimento do racismo de Estado que eu gos taria de hes narrar urn pouquinho hoje pelo menos de situar o problema para voces Pareceme que urn dos fen6menos fundamentals do se culo XIX foi e 0 que se poderia denominar a assun9ao da Manuscrito a frase prossegue depois de nacional na epoca da RevolUlao vida pelo poder se voces preferirem urna tomada de poder sobre 0 homem enquanto ser vivo urna especie de estatiza 9iio do biologico ou pelo menos uma certa inclina9iio que conduz ao que se poderia chamar de estatiza9iio do biologi co Creio que para compreender 0 que se passou podemos nos referir ao que era a teoria classica da soberania que em ultima analise serviunos de pano de fundo de quadro para todas essas analises sobre a guerra as ra9as etc Na teoria classica da soberania voces sabem que 0 direito de vida e de morte era urn de seus atributos fundamentais Ora 0 direito de vida e de morte e urn direito que e estranbo estra nho ja no nivel teorico com efeito 0 que e ter direito de vida e de morte Em certo sentido dizer que 0 soberano tern direito de vida e de morte significa no fundo que ele pode fazer morrer e deixar viver em todo caso que a vida e a morte DaD sao desses fenomenos naturais imediatos de eer to modo originais ou radicais que se localizariam fora do campo do poder politico Quando se vai urn pouco rnais alem e se voces quiserem ate 0 paradoxo isto quer dizer no fundo que em rela9iio ao poder 0 sudito niio e de pleno direito nem vivo nem morto Ele e do ponto de vista da vida e da morte neutro e e simplesmente por causa do soberano que o sudito tern direito de estar vivo ou tern direito eventual mente de estar morto Em todo caso a vida e a morte dos suditos so se tomam direitos pelo efeito da vontade sobera na Ai esta se voces quiserem 0 paradoxa te6rico Para doxo teorico que deve se completar evidentemente por urna especie de desequilibrio pratico Que quer dizer de fato direito de vida e de morte Niio e claro que 0 sobera no pode fazer viver como pode fazer morrer 0 direito de vida e de morte so se exerce de urna forma desequilibrada e sempre do lado da morte 0 efeito do poder soberano sobre a vida so se exerce a partir do momento em que 0 soberano pode matar Em ultima analise 0 direito de matar e que detem efetivamente em si a propria essencia desse direito de vida e de morte e porque 0 soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida Eessencialmente urn direito de es pada Niio M pois simetria real nesse direito de vida e de morte Niio e 0 direito de fazer morrer ou de fazer viver Niio e tampouco 0 direito de deixar viver e de deixar morrer E0 direito de fazer morrer ou de deixar viver 0 que e claro introduz urna dissimetria flagrante E eu creio que justamente urna das mais maci9as trans forma90es do direito politico do seculo XIX consistiu niio digo exatamente em substituir mas em completar esse velho direito de soberania fazer morrer ou deixar viver com outro direito novo que niio vai apagar 0 primeiro mas vai pe netralo perpassalo modificalo e que vai ser urn direito ou melhor urn poder exatamente inverso poder de fazer viver e de deixar marrero 0 direito de soberania e portan to 0 de fazer morrer ou de deixar viver E depois este novo direito e que se instala 0 direito de fazer viver e de deixar morrer Essa transforma9iio e claro niio se deu de repente Pode se seguila na teoria do direito mas ai serei extremamente rapido Voces ja veem nos juristas do seculo XVII e sobre tudo do seculo XVIII formulada essa questiio a proposito do direito de vida e de morte Quando os juristas dizem quan do se contrata no plano do contrato social ou seja quando os individuos se reunem para constituir urn soberano para delegar a urn soberano urn poder absoluto sobre eles por que 0 fazem Eles 0 fazem porque estiio premidos pelo peri go ou pela necessidade Eles 0 fazem por onseguinte para proteger a vida Epara poder viver que constituem urn so berano E nesta medida a vida pode efetivamente entrar nos direitos do soberano Niio e a vida que e fundadora do direito do soberano E niio pode 0 soberano reclamar efeti vamente de seus suditos 0 direito de exercer sobre eles 0 286 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 287 1 Sabre aquestao da tecnologia disciplinar ver Surveiller et punir op cit poder de vida e de morte ou seja pura e simplesmente 0 po der de matalos Nao deve a vida ficar fora do contrato na medida em que ela e que foi 0 motivo primordial inicil e fundamental do contrato Tudo isso e uma discussao de fi losofia politica que se pode deixar de lado mas que mostra bern como 0 problema da vida comea a problematizarse no campo do pensamento politico da analise do poder poli tico De fato 0 nivel em que eu gostaria de seguir a trans formaao nao e 0 nivel da teoria politica mas antes 0 nivel dos mecanismos das tecrucas das tecnologias de poder En tao ai topamos com coisas familiares e que nos seculos XVII e XVIII viramse aparecer tecnicas de poder que eram essencialrnente centradas no corpo no corpo individual Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a dis tribuiao espacial dos corpos individuais sua separaao seu alinhamento sua colocaao em serie e em vigiliincia e a organizaao em tomo desses corpos individuais de todo urn campo de visibilidade Eram tambem as tecrucas pelas quais se incurnbiam desses corpos tentavam aurnentarIhes a fora uti atraves do exercicio do treinamento etc Eram igualmente tecnicas de racionalizaao e de economia estrita de urn poder que devia se exercer da maneira menos onero sa possivel mediante todo urn sistema de vigiliincia de hie rarquias de inspeoes de escrituraoes de relatorios toda essa tecnologia que podemos chamar de tecnologia disci plinar do trabalho Ela se instala ja no final do seculo XVII e no decorrer do seculo XVIIII Ora durante a segunda metade do seculo XVIII eu creio que se ve aparecer algo de novo que e uma outra tecnolo gia de poder nao disciplinar dessa feita Vma tecnologia de poder que nao exclui a primeira que nao exclui a tecnica disciplinar mas que a embute que a integra que a modifica parcialmente e que sobretudo vai utilizala implantandose de certo modo nela e incrustandose efetivamente graas a essa tecnica disciplinar previa Essa nova tecnica nao supri me a tecnica disciplinar simplesmente porque e de outro nivel esta noutra escala tern outra superficie de suporte e e auxiliada por instrumentos totalmente diferentes Ao que essa nova tecruca de poder nao disciplinar se aplica e diferentemente da disciplina que se dirige ao corpo a vida dos homens ou ainda se voces preferirem ela se dirige nao ao homemcorpo mas ao homem vivo ao ho mem ser vivo no limite se voces quiserem ao homemespe cie Mais precisamente eu diria isto a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multi plicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados treinados utilizados eventualmente pu nidos E depois a nova tecnologia que se instala se dirige a multiplicidade dos homens nao na medida em que eles se resurnem em corpos mas na medida em que ela forma ao contrario urna massa global afetada por processos de con junto que sao proprios da vida que sao processos como 0 nascimento a morte a produao a doena etc Logo depois de urna primeira tomada de poder sobre 0 corpo que se fez consoante 0 modo da individualizaao temos uma segunda tomada de poder que por sua vez nao e individualizante mas que e massificante se voces quiserem que se faz em direao nao do homemcorpo mas do homemespecie Depois da ana tomopolitica do corpo hurnano instaurada no decorrer do seculo XVIII vemos aparecer no fim do mesmo seculo algo que ja nao e uma anatomopolitica do corpo hurnano mas que eu chamaria de urna biopolitica da especie hurnana De que se trata nessa nova tecnologia do poder nessa biopolitica nesse biopoder que esm se instalando Eu lhes dizia em duas palavras agora ha pouco tratase de urn con 289 AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 288 junto de processos como a propor9ao dos nascimentos e dos obitos a taxa de reprodu9ao a fecundidade de urna popula 9ao etc Sao esses processos de natalidade de mortalidade de longevidade que justamente na segunda metade do se culo XVIII juntamente com urna por9ao de problemas eco nomicos e politicos os quais nao retorno agora constitui ram acho eu os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolitica E nesse momento em todo caso que se lan9a mao da medi9ao estatfstica desses fenomenos com as primeiras demografias Ea observa9ao dos procedimentos mais ou menos espontaneos mais ou menos combinados que eram efetivamente postos em exe cU9ao na popula9ao no tocante a natalidade em surna se vo ces preferirem 0 mapeamento dos fenomenos de controle dos nascimentos tais como eram praticados no seculo XVIII Isso foi tambem 0 esb090 de urna politica de natalidade ou em todo caso de esquemas de interven9ao nesses fenome nos globais da natalidade Nessa biopolitica nao se trata sim plesmente do problema da fecundidade Tratase tambem do problema da morbidade nao mais simplesmente como justamente fora 0 caso ate entiio no nivel daquelas famosas epidemias cujo perigo havia atormentado tanto os poderes politicos desde as profundezas da Idade Media aquelas fa mosas epidemias que eram dramas temporitrios da morte multiplicada da morte tornada iminente para todos Nao e de epidemias que se trata naquele momento mas de algo diferente no final do seculo XVIII grosso modo aquilo que se poderia chamar de endemias ou seja a forma a natureza a extensao a dura9ao a intensidade das doen9as reinantes nurna popula9ao Doen9as mais ou menos dificeis de extir par e que nao sao encaradas como as epidemias a titulo de causas de morte mais freqiiente mas como fatores perma nentes e e assim que as tratam de subtra9ao das for9as diminui9ao do tempo de trabalho baixa de energias custos economicos tanto por causa da produ9ao nao realizada quan 2 Sabre todas essas questoes ver 0 Curso no College de France anos 19731974 Le pouvoir psychiatrique no prelo to dos tratamentos que podem custar Em surna a doen9a como fenomeno de popula9ao niio mais como a morte que se abate brutalmente sobre a vida e a epidemia mas como a morte permanente que se introduz sorrateiramente na vida a corroi perpetuamente a diminui e a enfraquece Sao esses fenomenos que se come9a a levar em conta no final do seculo XVIII e que trazem a introdu9ao de urna me dicina que vai ter agora a fun9aO maior da higiene publica com organismos de coordena9ao dos tratamentos medicos de centraliza9ao da informa9ao de normaliza9ao do saber e que adquire tambem 0 aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicaliza9ao da popula9ao Portanto pro blemas da reprodu9ao da natalidade problema da morbida de tambem 0 outro campo de interven9ao da biopolitfca vai ser todo urn conjunto de fenomenos dos quais uns sao univer sais e outros sao acidentais mas que de uma parte nunea sao inteiramente compreensiveis mesmo que sejam aciden tais e que acarretam tambem conseqiiencias anaIogas de in capacidade de por individuos fora de circuito de neutrahza 9aO etc Sera 0 problema muito importante ja no inicio do seoulo XIX na hora da industrializa9ao da velhice do mdi viduo que cai em conseqiiencia para fora do campo de capa cidade de atividade E da outra parte os acidentes as enfer midades as anomalias diversas E e em rela9ao a estes feno menos ue essa biopolitica vai introduzir nao somente insti tui90es de assistencia que existem faz muito tempo mas mecanismos muito mais sutis economicarnente mUlto malS racionais do que a grande assistencia a urn so tempo maci9a e lacunar que era essencialmente vinculada a Igreja Vamos ter mecanismos mais sutis mais racionais de seguros de poupan9a individual e coletiva de seguridade etc 291 AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 EM DEFESA DA SOCIEDADE 290 Enfim ultimo dominio enumero os principais em todo caso os que aparecerarn no final do seculo XVIII e no inicio do XIX haveni muitos outros depois a preOCUpa9aO com as rela90es entre a especie humana os seres humanos enquanto especie enquanto seres vivos e seu meio seu meio de exis tencia sejam os efeitos brutos do meio geognifico clima tico hidrografico os problemas por exemplo dos pantanos das epidemias ligadas aexistencia dos pantanos durante to da a primeira metade do seculo XIX E igualmente 0 pro blema desse meio na medida em que nao e um meio natural e em que repercute na popula9ao um meio que foi criado por ela Sera essencialmente 0 problema da cidade Eu Ihes assinalo aqui simplesmente alguns dos pontos a partir dos quais se constituiu essa biopolitica algumas de suas praticas e as primeiras das suas areas de interven9aO de saber e de poder ao mesmo tempo e da natalidade da morbidade das incapacidades biol6gicas diversas dos efeitos do meio e disso tudo que a biopolitica vai extrair seu saber e definir 0 campo de interven9aO de seu poder Ora em tudo isso eu creio que hi certo numero de coi saS que sao importantes A primeira seria esta 0 aparecimen to de urn elemento eu ia dizer de uma personagem novo que no fundo nem a teoria do direito nem a pratica discipli nar conhecem A teoria do direito no fundo s6 conhecia 0 individuo e a sociedade 0 individuo contratante e 0 corpo social que fora constituido pelo contrato voluntario ou im plicito dos individuos As disciplinas lidavam praticamente com 0 individuo e com seu corpo Nao e exatarnente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder ou en fim com 0 corpo social tal como 0 definem os juristas nao e tampouco com 0 individuocorpo Eurn novo corpo corpo multiplo corpo com inumeras cabe9as se nao infinito pelo menos necessariarnente numerivel Ea n09aO de popula 9aO A biopolitica lida com a popula9aO e a popula9aO como problema politico como problema a um s6 tempo cien tifico e politico como problema biol6gico e como problema de poder acho que aparece nesse momento Segundo 0 que e importante tarnbem afora 0 apareci mento desse elemento que e a popula9aO e a natureza dos fenamenos que sao levados em considera9aO Voces estao venda que sao fenomenos coletivos que s6 aparecem com seus efeitos econamicos e politicos que s6 se tornam perti nentes no nivel da massa Sao fenamenos aleat6rios e im previsiveis se os tomarmos neles mesmos individualmente mas que apresentam no plano coletivo constantes que e fa cil ou em todo caso possive estabelecer E enfim sao fe namenos que se desenvolvem essencialmente na dura9ao que devem ser considerados num certo limite de tempo rela tivarnente longo sao fenamenos de serie A biopolitica val se dirigir em suma aos acontecimentos aleat6rios que OCOf rem numa popula9aO considerada em sua dUra9aO A partir dai terceira coisa acho eu importante essa tecnologia de poder essa biopolitica vai implantar mecanis mos que tern certo numero de fun9aes muito diferentes das fun90es que erarn as dos mecanismos disciplinares Nos me canismos implantados pela biopolitica vai se tratar sobretudo e claro de previs5es de estimativas estatisticas de medi 90es globais vai se tratar igualmente nao de modificar tal fenameno em especial nao tanto tal individuo na medida em que e individuo mas essencialmente de intervir no nivel daquilo que sao as determina90es desses fenamenos gerais desses fenamenos no que eles tern de global Vai ser preciso modificar baixar a morbidade vai ser preciso encom pridar a vida vai ser preciso estimular a natalidade E trata se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que nessa popula9aO global com seu campo aleat6rio vao poder fixar urn equilibrio manter uma media estabelecer uma es pecie de homeostase assegurar compensaoes em suma 292 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 293 294 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 295 certo nllinero de estudos recentes que a grande ritualizaao publica da morte desapareceu ou em todo caso foise apa gando progressivamente desde 0 fim do seculo XVIII ate agora A tal ponto que agora a morte deixando de ser uma daquelas cerimonias brilhantes da qual participavam os in dividuos a familia 0 grupo quase a sociedade inteira tor nouse ao contnirio aquilo que se esconde ela se tomou a coisa mais privada e mais vergonbosa e no limite e menos o sexo do que a morte que hoje e objeto do tabu Ora eu creio que a razao por que de fato a morte tomouse assim essa coisa que se esconde nao estit numa especie de deslo camento da angUstia ou de modificaao dos mecanismos re pressivos Esm numa transfo1io das tecnologias de poder o que outrora conferia brilho e isto ate 0 final do seculo XVIII it morte 0 que the impunha sua ritualizaao t1io ele vada era 0 fato de ser a manifestaao de uma passagem de um poder para outro A morte era 0 momento em que se pas sava de um poder que era 0 do soberano aqui na terra para aquele outro poder que era 0 do soberano do alem Passava se de uma inst1incia de julgamento para outra passavase de um direito civil ou publico de vida e de morte para um di reito que era 0 da vida etema ou da danaao etema Passa gem de um poder para outro A morte era igualmente uma transmissao do poder do moribundo poder que se transmi tia para aqueles que sobreviviam ultimas palavras ultimas recomendaoes ultimas vontades testamentos etc Todos esses fenomenos de poder e que eram assim ritualizados Ora agora que 0 poder e cada vez menos 0 direito de fazer morrer e cada vez mais 0 direito de intervir para fazer viver e na maneira de viver e no como da vida a partir do momento em que portanto 0 poder intervem sobretudo nesse nivel para aumentar a vida para controlar seus aci dentes suas eventualidades suas deficiencias dai por dian te a morte como termo da vida e evidentemente 0 termo 0 3 Michel Foucault voltanl a todos esses mecanismos sobretudo no Cursa no College de France anos 19771978 Securite terrioire et popula tion e 19781979 Naissance de fa biopolitique no preto de instalar mecanismos de previdencia em tomo desse alea torio que e inerente a uma populaao de seres vivos de oti mizar se voces preferirem urn estado de vida mecanismos como voces veem como os mecanismos disciplinares des tinados em suma a maximizar foras e a extraiIas mas que passam por caminhos inteiramente diferentes Pois ai nao se trata diferentemente das disciplinas de um treinamento in dividual realizado por urn trabalho no proprio corpo Nao se trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual como faz a disciplina Nao se trata por conseguinte em abso luto de considerar 0 individuo no nivel do detalhe mas pelo contnirio mediante mecanismos globais de agir de tal ma neira que se obtenbam estados globais de equilibrio de re gularidade em resumo de levar em conta a vida os processos biologicos do homemespecie e de assegurar sobre eles nao uma disciplina mas uma regulamentaa03 Aquem portanto do grande poder absoluto dramlitico sombrio que era 0 poder da soberania e que consistia em po der fazer morrer eis que aparece agora com essa tecnologia do biopoder com essa tecnologia do poder sobre a popula ao enquanto tal sobre 0 homem enquanto ser vivo um parler continuo cientifico que e0 parler de fazer viver A soberania fazia morrer e deixava viver E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentaao e que consiste ao contnirio em fazer viver e em deixar morrer Eu creio que a manifestaao desse poder aparece con cretamente nessa famosa desqualificaao progressiva da mor te na qual os sociologos e os historiadores se debruaram com tanta freqiiencia Todo 0 mundo sabe sobretudo desde I I i 296 EM DEFESA DA SOC1EDADE AULA DE 17DE MARODE 1976 297 limite a extremidade do poder Ela esta do lado de fora em rela9ao ao poder e 0 que cai fora de seu dominio e sobre 0 que 0 poder so tera dominio de modo geral global estatis tieo Isso sobre 0 que 0 poder tem dominio nao e a morte e a mortalidade E nessa medida e normal que a morte agora passe para 0 iimbito do privado e do que ha de mais privado Enquanto no direito de soberania a morte era 0 ponto em que mais brilhava da forma moos manifesta 0 absoluto poder do soberano agora a morte vai sef ao contnirio 0 momen to em que 0 individuo escapa a qualquer poder volta a Sl mesma e se ensimesma de certa modo em sua parte malS privada 0 poder ja nao conhece a morte No sentido estrito o poder deixa a morte de lado Para simbolizar rudo isso tomemos se voces quiserem a morte de Franco que e um evento apesar de tudo muito muito interessante pelos valores simb6licos que faz atuar uma vez que moma aquele que tinha exercido 0 direito so berano de vida e de morte com a selvageria que voces co nhecem 0 mais sanguinario de todos os ditadores que havia feito reinar de modo absoluto durante quarenta anos 0 dl reito soberano de vida e de morte e que na hora que ele mesma vai morfer entra nessa especie de novo campo do poder sobre a vida que consiste nao so em organizar a ida DaD so em fazer viver mas em suma em fazer 0 mdlvlduo viver mesmO alem de sua morte E mediante urn poder que nao e simplesmente proeza cientifica mas efetivamene exercicio desse biopoder politico que fOl mtroduzldo no se culo XIX fazse tao bem as pessoas viverem que se consegue fazelas viver no mesmo momento em que elas devenam biologicamente estar mortas ha muito tempo Foi assim que aquele que havia exercido 0 poder absoluto de Vida e de mor te sobre centenas de milhares de pessoas aquele mesmo caiu sob 0 impacto de urn poder que organizava tao bem a vida que olhava tao pouco a morte que ele nem sequer per cebeu que ja estava morto e que 0 faziam viver apos sua mor te Eu creio que 0 choque entre esses dois sistemas de po der 0 da soberania sobre a morte e 0 da regulamenta9ao da vida achase simbolizado nesse pequeno e alegre evento Eu gostaria agora de retomar a compara9ao entre a tec nologia regulamentadora da vida e a tecnologia disciplinar do corpo de que eu lhes falava agora ha pouco Temos portanto desde 0 seculo XVIII ou em todo caso desde 0 fim do se culo XVIII duas tecnologias de poder que sao introduzidas com certa defasagem cronologica e que sao sobrepostas Uma tecnica que e pois disciplinar e centrada no corpo produz efeitos individualizantes manipula 0 corpo como fo co de for9as que e preciso tomar uteis e doceis ao mesmo tempo E de outro lado temos urna tecnologia que por sua vez ecentrada DaD no corpo mas na vida uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas proprios de uma popula9ao que procura controlar a serie de eventos fortuitos que podem Dearrer numa massa viva uma tecnologia que procura con trolar eventualmente modificar a probabilidade desses even tos em todo caso em compensar seus efeitos Euma tecno logia que visa portanto nao 0 treinamento individual mas pelo equilibrio global algo como uma homeostase asegu ran9a do conjunto em rela9ao aos seus perigos intemos Logo urna tecnologia de treinamento oposta a ou distinta de urna tecnologia de previdencia urna tecnologia disciplinar que se distingue de urna tecnologia previdenciaria ou regulamenta dora uma tecnologia que emesmo em ambos os casas tec nologia do corpo mas nurn caso tratase de urna tecnologia em que 0 corpo e individualizado como organismo dotado de capacidades e no outro de uma tecnologia em que os cor pos sao recolocados nos processos biologicos de conjunto Poderiamos dizer isto tudo sucedeu como se 0 poder que tinha como modalidade como esquema organizador a soberania tivesse ficado inoperante para reger 0 corpo eco 298 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 299 namico e politico de uma sociedade em via a urn so tempo de explosao demogcifica e de industrializa9ao De modo que it velha meciinica do poder de soberania escapavam muitas coisas tanto por baixo quanto por cima no nivel do detalhe e no nivel da massa Foi para recuperar 0 detalhe que se deu urna primeira acomoda9ao acpmoda9ao dos mecanismos de poder sobre 0 corpo individual com vigiliincia e treina mento isso foi a disciplina Eclaro essa foi a acomoda9ao mais facil mais comoda de realizar Epor isso que ela se realizou mais cedo ja no seculo XVII inicio do seculo XVIII em nivellocal em formas intuitivas empiricas fra cionadas e no iimbito limitado de institui90es como a esco la 0 hospital 0 quartel a oficina etc E depois voces tern em seguida no final do seculo XVIII urna segunda acomo da9ao sobre os fenomenos globais sobre os fenomenos de popula9ao com os processos biologicos ou biosociologi cos das massas hurnanas Acomoda9ao muito mais dificil pois e claro ela implicava orgaos complexos de coordena 9aO e de centraliza9ao Temos pois duas series a serie corpo organismo disciplina institui90es e a serie popula9ao processos bio logicos mecanismos regulamentadores Estado Urn conjunto organico institucional a organodisciplina da ins titui9ao se voces quiserem e de outro lado urn conjunto biologico e estatal a bioregulamenta9ao pelo Estado Nao quero fazer essa oposi9ao entre Estado e institui9ao atuar no absoluto porque as disciplinas sempre tendem de fato a ultrapassar 0 ambito institucional e local em que sao con sideradas E depois elas adquirem facilmente uma dimensao estatal em certos aparelhos como a policia por exemplo que e a urn so tempo urn aparelho de disciplina e urn apare Manuscrito no Jugar de regulamentadores previdenciarios Iho de Estado 0 que prova que a disciplina nem sempre e institucional E da mesma forma essas grandes regula90es globais que proliferaram ao longo do seculo XIX nos as en contramos e claro no nivel estatal mas tambem abaixo do nivel estatal com toda urna serie de institui90es subestatais como as institui90es medicas as caixas de auxilio os segu ros etc Essa e a primeira observa9ao que eu queria fazer Por outro lado esses dois conjuntos de mecanismos urn disciplinar 0 outro regulamentador nao estao no mes mo nivel Isso lhes permite precisamente nao se excluirem e poderem articularse urn com 0 outro Podese mesmo di zer que na maioria dos casas os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos regulamentadores de poder os mecanismos disciplinares do corpo e os mecanismos regu lamentadores da popula9ao sao articulados urn com 0 outro Urn ou dois exemplos examinem se quiserem 0 problema da cidade ou mais precisamente essa disposi9ao espacial pen sada concebida que e a cidademodelo a cidade artificial a cidade de realidade utopica tal como nao so a sonharam mas a constituiram efetivamente no seculo XIX Examinem algo como a cidade operaria A cidade operana tal como existe no seculo XIX 0 que e Vese muito bern como ela articula de certo modo perpendicularmente mecanismos dis ciplinares de controle sobre 0 corpo sobre os corpos por sua quadricula pelo recorte mesmo da cidade pela locali za9ao das familias cada uma numa casal e dos individuos cada urn num comodo Recorte por individuos em visibi lidade normaliza9ao dos comportamentos especie de con trole policial espontiineo que se exerce assim pela propria disposi9ao espacial da cidade toda urna serie de mecanis mos disciplinares que e facil encontrar na cidade operaria E depois voces tern toda uma serie de mecanismos que sao ao contrano mecanismos regulamentadores que incidem so bre a POpula9ao enquanto tal e que permitem que induzem 300 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 301 comportamentos de poupana por exemplo que sao vincu lados ao habitat a locaao do habitat e eventualmente a sua compra Sistemas de segurosaude ou de segurovelhice re gras de higiene que garantem a longevidade 6tima da popu laao press5es que a pr6pria organizaao da cidade exerce sobre a sexualidade portanto sobre a procriaao as press5es que se exercem sobre a higiene das familias os cuidados dispensados as crianas a escolaridade etc Logo voces tern mecanismos disciplinares e mecanismos regulamentadores Considerem urn outro dominio enfim nao inteiramen te outro considerem noutro eixo algo como a sexualidade No fundo por que a sexualidade se tomou no seculo XIX urn campo cuja importitncia estrategica foi capital Eu creio que se a sexualidade foi importante foi por uma porao de raz5es mas em especial houve estas de urn lado a sexuali dade enquanto comportamento exatamente corporal depende de urn controle disciplinar individualizante em forma de vigilitncia permanente e os famosos controles por exem plo da masturbaao que foram exercidos sobre as crianas desde 0 fim do seculo XV1Il ate 0 seculo XX e isto no meio familiar no meio escolar etc representam exatamente esse lado de controle disciplinar da sexualidade e depois por outro lado a sexualidade se insere e adquire efeito por seus efeitos procriadores em processos biol6gicos amplos que concemem nao mais ao corpo do individuo mas a esse ele mento a essa unidade multipla constituida pela populaao A sexualidade esta exatamente na encruzilhada do corpo e da populaao Portanto ela depende da disciplina mas de pende tambem da regulamentaao A extrema valorizaao medica da sexualidade no secu 10 XIX teve assim creio seu principio nessa posiao privi legiada da sexualidade entre organismo e populaao entre corpo e fen6menos globais Dai tambem a ideia medica se gundo a qual a sexualidade quando e indisciplinada e irre gular tern sempre duas ordens de efeitos urn sobre 0 corpo sobre 0 corpo indisciplinado que e imediatamente punido por todas as doenas individuais que 0 devasso sexual atrai sobre si Vma criana que se masturba demais sera muito doente a vida toda puniao disciplinar no plano do corpo Mas ao mesmo tempo uma sexualidade devassa perverti da etc tern efeitos no plano da populaao urna vez que se sup5e que aquele que foi devasso sexualmente tern uma hereditariedade urna descendencia que ela tambem vai ser perturbada e isso durante gera5es e gera5es na setima ge raao na setima da setima Ea teoria da degenerescencia4 a sexualidade na medida em que esta no foco de doenas individuais e uma vez que esta por outro lado no nucleo da degenerescencia representa exatamente esse ponto de arti culaao do disciplinar e do regulamentador do corpo e da populaao E voces compreendem entao nessas condi5es por que e como urn saber tecnico como a medicina ou me Ihor 0 conjunto constituido por medicina e higiene vai ser no seculo XIX urn elemento nao 0 mais importante mas aquele cuja importancia sera consideravel dado 0 vinculo que estabelece entre as influencias cientificas sobre os pro cessos biol6gicos e organicos isto e sobre a populaao e 4 M Foucault se refere aqui ateoria elaborada na Fran9a em meados do seculo XIX pelos alienistas em especial por BA Morel Traite des degenerescences physiques intellectuelles et morales de lespece humaine Paris 1857 Traite des maladies mentales Paris 1870 por V Magnan Leons cliniques sur les maladies mentales Paris 1893 e por M Legrain V Magnan Les degeneres eta mental et syndromes episodiques Paris 1895 Essa teoria da degenerescencia fundamentada no principio da trans missibilidade da tara chamada hereditaria foi 0 nueleo do saber medico sobre a loucura e a anonnalidade na segunda metade do seculo XIX Muito cedo adotada pela medicina legal ela teve efeitos consideraveis sobre as dou trinas c as praticas eugenicas e nolo deixou de influenciar toda uma literatura toda uma criminologia e toda uma antropologia sobre 0 corpo e ao mesmo tempo na medida em que a me dicina vai ser uma tecnica politica de interven9ao com efei tos de poder proprios A medicina e urn saberpoder que inci de ao mesmo tempo sobre 0 corpo e sobre a popula9ao so bre 0 organismo e sobre os processos biologicos e que vai portanto ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores De urna forma mais geral ainda podese dizer que 0 elemento que vai circular entre 0 disciplinar e 0 regulamen tador que vai se aplicar da mesma forma ao corpo e it popula9ao que permite a urn so tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatorios de urna multiplicidade biologica esse elemento que circula entre urn e outro e a norma A Donna e 0 que pode tanto se aplicar a urn corpo que se quer disciplinar quanta a uma po pula9ao que se quer regulamentar A sociedade de normali zaao nao e pais nessas condioes uma especie de socie dade disciplinar generalizada cujas institui95es disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo 0 espo essa nao e acho eu senao uma primeira interpretalao e in suficiente da ideia de sociedade de normaliza9ao A socie dade de normaliza9ao e urna sociedade em que se cruzam conforme uma articula9ao ortogonal a norma da disciplina e a norma da regulamenta9ao Dizer que 0 poder no seculo XIX tomou posse da vida dizer pelo menos que 0 poder no seculo XIX incumbiuse da vida e dizer que ele conse guiu cobrir toda a superficie que se estende do orgilnico ao biologico do corpo it popula9ao mediante 0 jogo duplo das tecnologias de disciplina de urna parte e das tecnologias de regulamenta9ao de outra Portanto estamos num poder que se incurnbiu tanto do corpo quanta da vida ou que se incurnbiu se voces preferi rem da vida em geral com 0 polo do corpo e 0 polo da po pula9ao Biopoder por conseguinte do qual logo podemos localizar os paradoxos que aparecem no proprio limite de seu exercicio Paradoxos que aparecem de urn lado com 0 poder atomico que nao e meramente 0 poder de matar se gundo os direitos que sao concedidos a todo soberano mi lhOes e centenas de milhOes de homens afinal de contas isso e tradicional Mas 0 que faz que 0 poder at5mico seja para 0 funcionamento do poder politico atual urna especie de paradoxa dificil de contomar se nao totalmente incon tomavel e que no poder de fabricar e de utilizar a bomba atOmica temos a entrada em cena de urn poder de soberania que mata mas igualmente de urn poder que e 0 de matar a propria vida De sorte que nesse poder atomico 0 poder que se exerce se exerce de tal forma que e capaz de suprimir a vida E de suprimirse em conseqiiencia como poder de as segurar a vida Ou ele e soberano e utiliza a bomba atomica mas por isso nao pode ser poder biopoder poder de assegurar a vida como ele 0 e desde 0 seculo XIX Ou noutro limite voces tern 0 excesso ao contnirio nao mais do direito sobe rano sobre 0 biopoder mas 0 excesso do biopoder sobre 0 direito soberano Esse excesso do biopoder aparece quando a possibilidade e tecnica e politicamente dada ao homem nao so de organizar a vida mas de fazer a vida proliferar de fabricar algo vivo de fabricar algo monstruoso de fabricar no limite virus incontrolaveis e universalmente destrui dores Extensao formidavel do biopoder que em contraste com 0 que eu dizia agora ha pouco sobre 0 poder atomico vai ultrapassar toda a soberania hurnana Desculpemme esses longos percursos a respeito do biopoder mas eu creio que e contra esse pano de fundo que se pode encontrar 0 problema que eu havia tentado expor Entao nessa tecnologia de poder que tern como objeto e como objetivo a vida e que me parece urn dos tra90s fun damentais da tecnologia do poder desde 0 seculo XIX como vai se exercer 0 direito de matar e a fun9ao do assassinio se e verdade que 0 poder de soberania recua cada vez mais e 302 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17DE MARtO DE 1976 303 304 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARIyO DE 1976 305 que ao contrfuio avanya cada vez mais 0 biopoder disciplinar ou regulamentador Como urn poder como este pode matar se e verdade que se trata essencialmente de aurnentar a vida de prolongar sua durayiio de multiplicar suas possibilidades de desviar seus acidentes ou entiio de compensar suas defi ciencias Como nessas condiyoes e possivel para urn poder politico matar redamar a morte pedir a morte mandar ma tar dar a ordem de matar expor amorte niio so seus inimi gos mas mesmo seus proprios cidadiios Como esse poder que tern essencialmente 0 objetivo de fazer viver pode dei xar marrer Como exercer 0 parler da morte como exercer a funyiio da morte num sistema politico centrado no biopoder Eai creio eu que intervem 0 racismo Niio quero de modo algum dizer que 0 racismo foi inventado nessa epoca Ele existia hi muito tempo Mas eu acho que funcionava de outro modo 0 que inseriu 0 racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergencia desse biopoder Foi nesse momento que 0 racismo se inseriu como mecanismo funda mental do poder tal como se exerce nos Estados modemos e que faz com que quase niio haja funcionamento moderno do Estado que em certo momento em certo limite e em certas condiyoes niio passe pelo racismo Com efeito que e 0 racismo E primeiro 0 meio de introduzir afinal nesse dominio da vida de que 0 poder se incumbiu urn corte 0 corte entre 0 que deve viver e 0 que deve morrer No continuo biologico da especie humana 0 aparecimento das rayas a distinyiio das rayas a hierarquia das rayas a qualificayiio de certas rayas como boas e de outras ao contnirio como inferiores tudo iS80 vai ser uma manei ra de fragmentar esse campo do biologico de que 0 poder se incumbiu uma maneira de defasar no interior da populayiio uns grupos em relayiio aos outros Em resumo de estabelecer urna cesura que seni do tipo biologico no interior de urn do minic considerado como senda precisamente urn dominio biologico Isso vai permitir ao poder tratar urna populayiio como uma mistura de raas OU mais exatamente tratar a es pecie subdividir a especie de que ele se incumbiu em sub grupos que seriio precisamente rayas Essa e a primeira fun yiio do racismo fragmentar fazer cesuras no interior desse continuo biologico a que se dirige 0 biopoder De outro lado 0 racismo teni sua segunda funyiio teni como papel permitir uma relayiio positiva se voces quise rem do tipo quanta mais voce matar mais voce fani mar rer ou quanto mais voce deixar morrer mais por iS80 mesmo voce viveni Eu diria que essa relayiio se voce quer viver e preciso que voce faya morrer e preciso que voce pos sa matar afinal niio foi 0 racismo nem 0 Estado modemo que inventou E a rela9ao guerreira para viver e preciso que voce massacre seus inimigos Mas 0 racismo faz jus tamente funcionar faz atuar essa relayiio de tipo guerreiro se voce quer viver epreciso que 0 outro morra de uma maneira que e inteiramente nova e que precisamente e compativel com 0 exercicio do biopoder De uma parte de fato 0 racismo vai permitir estabelecer entre a minha vida e a morte do outro urna relayiio que niio e urna relayao mili tar e guerreira de enfrentamento mas urna relayiio do tipo biologico quanto mais as especies inferiores tenderem a de saparecer quanto mais os individuos anormais forem elimi nados menos degenerados haveni em relayiio aespecie mais eu niio enquanto individuo mas enquanto especie vive rei mais forte serei mais vigoroso serei mais poderei pro liferar A morte do outro niio e simplesmente a minha vida na medida em que seria minha seguranya pessoal a morte do outro a morte da raya ruim da raya inferior ou do dege nerado ou do anormal e0 que vai deixar a vida em geral mais sadia mais sadia e mais pura Portanto relaao nao militar guerreira ou politica mas relayao biologica E se esse mecanismo pode atuar e por 306 EM DEFESA DA SOCEDADE AULA DE 7 DE MARrO DE 976 307 que os inimigos que se trata de suprimir nao sao os adver sirios no sentido politico do termo sao os perigos extemos ou intemos em rela9ao it popula9ao e para a popula9ao Em outras palavras tirar a vida 0 imperativo da morte so e admissivel no sistema de biopoder se tende nao it vitoria sobre os adversirios politicos mas it elimina9ao do perigo biologico e ao fortalecimento diretarnente ligado a essa eli mina9ao da propria especie ou da ra9a A ra9a 0 racismo e a condi9ao de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normaliza9ao Quando voces tern urna sociedade de nor maliza9ao quando voces tern urn poder que e ao menos em toda a sua superficie e em primeira instincia em primeira linha urn biopoder pois bern 0 racismo e indispensivel como condi9ao para poder tirar a vida de alguem para po der tirar a vida dos outros A fun9ao assassina do Estado so pode ser assegurada desde que 0 Estado funcione no modo do biopoder pelo racismo Voces compreendem em consequencia a importfu1cia eu ia dizer a importincia vital do racismo no exercicio de urn poder assim e a condi9ao para que se possa exercer 0 di reito de matar Se 0 poder de normaliza9ao quer exercer 0 velho direito soberano de matar ele tern de passar pelo ra cismo Ese inversamente urn poder de soberania ou seja urn poder que tern direito de vida e de morte quer funcionar com os instrumentos com os mecanismos com a tecnolo gia da normaliza9ao ele tambem tern de passar pelo racis mo E claro por tirar a vida nao entendo simplesmente 0 assassinio direto mas tarnbem tudo 0 que pode ser assassi nio indireto 0 fato de expor it morte de multiplicar para al guns 0 risco de morte ou pura e simplesmente a morte po litica a expulsao a rejei9ao etc A partir dai eu creio que se pode compreender certo nillnero de coisas Podese compreender primeiro 0 vinculo que rapidamente eu ia dizer imediatamente se estabele ceu entre a teoria biologica do seculo XIX e 0 discurso do poder No fundo 0 evolucionismo entendido num sentido lato ou seja nao tanto a propria teoria de Darwin quanto o conjunto 0 pacote de suas n090es como hierarquia das especies sobre a more comurn da evolu9ao luta pela vida en tre as especies sele9ao que elimina os menos adaptados tomouse com toda a naturalidade em alguns anos do se culo XIX niio simplesmente urna maneira de transcrever em termos biologicos 0 discurso politico niio simplesmente uma maneira de ocultar urn discurso politico sob urna ves timenta cientifica mas realmente urna maneira de pensar as rela90es da coloniza9iio a necessidade das guerras a crimi nalidade os fenomenos da loucura e da doen9a mental a historia das sociedades com suas diferentes classes etc Em outras palavras cada vez que houve enfrentamento conde na9ao it morte luta risco de morte foi na forma do evolucio nismo que se foi for9ado literalmente a pensilos E podese compreender tambem por que 0 racismo se desenvolve nessas sociedades modernas que funcionam ba seadas no modo do biopoder compreendese por que 0 racis mo vai irromper em certo numero de pontos privilegiados que sao precisamente os pontos em que 0 direito amorte e necessariamente requerido 0 racismo vai se desenvolver primo com a colonizarao ou seja com 0 genocidio coloni zador Quando for preciso matar pessoas matar popula90es matar civiliza90es como se poderi fazelo se se funcionar no modo do biopoder Atraves dos temas do evolucionis mo mediante urn racismo A guerra Como e possivel niio so travar a guerra contra os adversanos mas tambem expor os proprios cidadiios it guerra fazer que sejam mortos aos milh5es como aconte ceu justamente desde 0 seculo XIX desde a segunda metade do seculo XIX seniio precisamente ativando 0 tema do ra cismo Na guerra vai se tratar de duas coisas dai em diaute 308 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARrO DE 1976 309 destruir nao simplesmente 0 adversano politico mas a raa adversa essa especie de perigo biologico representado para a raa que somos pelos que estao a nossa frente Eclaro essa e apenas de certo modo uma extrapolaao biologica do tema do inimigo politico No entanto mais ainda a guerra isto e absolutamente novo vai se mostrar no final do seculo XIX como uma maneira nao simplesmente de forta lecer a propria raa eliminando a raa adversa conforme os temas da seleao e da luta pela vida mas igualmente de regenerar a propria raa Quanto mais numerosos forem os que morrerem entre nos mais pura sera a raa a que perten cernos Voces tern ai em todo casa urn racismo da guerra novo no final do seculo XIX e que era acho eu necessitado pelo fato de que urn biopoder quando queria fazer a guerra como poderia articular tanto a vontade de destruir 0 adver sario quanta 0 risco que assumia de matar aqueles mesmos cuja vida ele devia por definiao proteger organizar mul tiplicar Poderiamos dizer a mesma coisa a proposito da criminalidade Se a criminalidade foi pensada em termos de racismo foi igualmente a partir do momenta em que era preciso tamar passivel nurn mecanismo de biopoder a con denaao amorte de urn criminoso ou seu isolamento Mes rna coisa com a loucura mesma coisa com as anomalias diversas Em linhas gerais 0 racismo acho eu assegura a fun ao de morte na economia do biopoder segundo 0 principio de que a morte dos outros e 0 fortalecimento biologico da propria pessoa na medida em que ela e membro de uma raa ou de uma populaao na medida em que se e elemento numa pluralidade unitaria e viva Voces estao vendo que ai estamos no fundo muito longe de um racismo que seria simples e tradicionalmente desprezo ou odio das raas umas pelas outras Tambem estamos muito longe de urn racismo que seria uma especie de operaao ideologica pela qual os Estados ou uma classe tentaria desviar para urn adversano mitico hostilidades que estariam voltadas para eles ou agi tariam 0 corpo social Eu creio que e muito mais profundo do que uma velha tradiao muito mais profundo do que uma nova ideologia e outra coisa A especificidade do racismo modemo 0 que faz sua especificidade nao esta ligado a mentalidades a ideologias a mentiras do poder Esta ligado atecnica do poder atecnologia do poder Esta ligado a isto que nos coloca longe da guerra das raas e dessa inteligibi lidade da historia num mecanismo que permite ao biopoder exercerse Portanto 0 racismo e ligado ao funcionamento de urn Estado que e obrigado a utilizar a raa a eliminaao das raas e a purificaao da rap para exercer seu poder sobe rano A justaposiao ou melhor 0 funcionamento atraves do biopoder do velho poder soberano do direito de morte implica 0 funcionamento a introduao e a ativaao do ra cismo Eeai ereio eu que efetivamente ele se enraiza Voces compreendem entae nessas condi90es como e por que os Estados mais assassinos sao ao mesma tempo forosamente os mais racistas Eclaro ai temos de tomar 0 exemplo do nazismo Afinal de contas 0 nazismo e de fato o desenvolvimento ate 0 paroxismo dos mecanismos de poder novos que haviam sido introduzidos desde 0 seculo XVIII Nao ha Estado mais disciplinar claro do que 0 regime na zista tampouco ha Estado onde as regulamentaoes biolo gicas sejam adotadas de uma maneira mais densa e mais insistente Poder disciplinar biopoder tudo isso percorreu sustentou a muque a sociedade nazista assunao do biolo gico da procriaao da hereditariedade assunao tambem da doena dos acidentes Nao ha sociedade a urn so tempo mais disciplinar e mais previdenciaria do que a que foi im plantada ou em todo caso projetada pelos nazistas 0 con trole das eventualidades proprias dos processos biologicos era urn dos objetivos imediatos do regime 310 EM DEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARO DE 1976 311 Mas ao mesmo tempo que se tinha essa sociedade universalmente previdenciaria universalmente segurado ra universalmente regulamentadora e disciplinar atraves dessa sociedade desencadeamento mais completo do poder assassino ou seja do velho poder soberano de matar Esse poder de malar que perpassa todo 0 corpo social da socie dade nazista se manifesta antes de tudo porque 0 poder de matar 0 poder de vida e de morte e dado nao simplesmente ao Estado mas a toda uma serie de individuos a uma quan tidade consideravel de pessoas sejam os SA os SS etc No limite todos tern 0 direito de vida e de morte sobre 0 seu vizinho no Estado nazista ainda que fosse pelo com portamento de dem cia que permite efetivamente supri mir ou fazer suprimirem aquele que esta a seu lado Portanto desencadeamento do poder assassino e do po der soberano atraves de todo 0 corpo social 19ualmente pelo fato de a guerra ser explicitamente posta como urn objetivo politico e nao meramente no fundo como urn objetivo po litico para obter certo numero de meios mas como uma es pecie de fase ultima e decisiva de todos os processos politi cos a politica deve resultar na guerra e a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar 0 conjunto Em conse qiiencia nao e simplesmente a destruiao das outras raas que e 0 objetivo do regime nazista A destruiao das outras raas e uma das faces do projeto sendo a outra face expor sua pr6pria raa ao perigo absoluto e universal da morte 0 risco de morrer a exposiao it destruiao total e urn dos principios inseridos entre os deveres fundamentais da obe diencia nazista e entre os objetivos essenciais da politica E preciso que se chegue a urn ponto tal que a populaao intei ra seja exposta it morte Apenas essa exposiao universal de toda a populaao it morte podera efetivamente constituila como raa superior e regenerala definitivamente perante as raas que tiverem sido totalmente exterminadas ou que se rao definitivamente sujeitadas Ternse pais na sociedade nazista esta coisa apesar de tudo extraordinma e urna sociedade que generalizou abso lutamente 0 biopoder mas que generalizou ao mesmo tempo o direito soberano de matar Os dois mecanismos 0 classi co arcaico que dava ao Estado direito de vida e de morte sabre seus cidadaos e 0 novo mecanisme organizado em tomo da disciplina da regulamentaao em surna 0 novo me canismo de biopoder vern exatamente a coincidir De sor te que se pode dizer isto 0 Estado nazista toruou absoluta mente coextensivos 0 campo de uma vida que ele organiza protege garante cultiva biologicamente e ao mesmo tem po 0 direito soberano de matar quem quer que seja nao s6 os outros mas os seus pr6prios Houve entre as nazistas uma coincidencia de urn biopoder generalizado com urna ditadura a urn s6 tempo absoluta e retransmitida atraves de todo 0 corpo social pela formiditvel junao do direito de ma tar e da exposiao it morte Temos urn Estado absolutamen te racista urn Estado absolutamente assassino e urn Estado absolutamente suicida Estado racista Estado assassino Es tado suicida sso se sobrepoe necessariamente e resultou e claro ao mesmo tempo na soluao final pela qual se quis eliminar atraves dos judeus todas as outras raas das quais os judeus eram a urn s6 tempo 0 simbol0 e a manifestaao dos anos 19421943 e depois no telegrama 71 pelo qual em abril de 1945 Hitler dava ordem de destruir as condioes de vida do pr6prio povo alemao5 5 Hitler ja em 19 de marco tamara disposicoes para a destruicao da infraestrutura logistica e dos equipamentos industriais da Alemanha Tais disposicoes estao enunciadas em dais decretos de 30 de marco e de 7 de abril Sabre esses decretos cf A Speer Erinnerungen Berlim Propylaen Verlag 1969 trad fr Au creur du Troisieme Reich Paris Fayard 1971 Foucault certamente leu a obra de J Fest Hitler FrankfurtBerlimlViena Verlag Ullstein 1973 trad fro Paris Gallimard 1973 312 EMDEFESA DA SOCIEDADE AULA DE 17 DE MARO DE 1976 313 SolU9ao final para as outras ra9as suicidio absoluto da ra9a alema Era a isso que levava essa meciinica inscrita no funcionamento do Estado modemo Apenas 0 naZlsmo e claro levou ate 0 paroxismo 0 jogo entre 0 direito sobera no de matar e os mecanismos do biopoder Mas tal jogo esta efetivamente inscrito no funcionamento de todos os Esta dos De todos os Estados modemos de todos os Estados capitalistas Pois bem nao e certo Eu creio que justamente mas essa seria uma outra demonstra9ao 0 Estado SOCla lista 0 socialismo etao marcado de racismo quanta 0 fun cionamento do Estado moderno do Estado capitalista Em face do racismo de Estado que se formou nas condi90es de que Ihes falei constituiuse um socialracismo que nao es perou a forma9ao dos Estados socialistas para aparecer 0 socialismo foi logo de saida no seculo XIX um raClsmo E seja Fourier no inicio do seculo sejam os anarquistas no final do seculo passando por todas as formas de SOClalls mo voces sempre veem neles urn componente de racismo Ai e muito diftcil para mim falar disso Falar disso de qualquer jeito e fazer uma afirma9ao que nao admite replica DemonstraIo para voces implicaria 0 que eu quena fazer uma outra bateria de aulas no fim Em todo caso eu gosta ria simplesmente de dizer isto de um modo geral parece me ai eurn pOlleD uma conversa informal que 0 socialis mo na medida em que nao apresenta em primeira insancia os problemas economicos ou juridicos do tipo de propnedade ou do modo de produ9ao na medida em que em conse qiiencia 0 problema da meciinica do poder dos mecanismos 6 De Ch Fourier ver sobretudo a esse respeito Theorie des quatre mouvements et des destinees generales Leipzig Lyon 1808 Le nouveau mon de industriel et soctetaire Paris 1829 La fausse industrie morcelie repug nante mensongere Paris 18362 vol do poder nao e apresentado e analisado por ele 0 socia lismo pais nao pade deixar de reativar de reinvestir esses mesmos mecanismos de poder que vimos constituiremse atraves do Estado capitalista ou do Estado industrial Em todo caso uma coisa e certa e que 0 tema do biopoder desen volvido no fim do seculo XVIII e durante todo 0 seculo XIX nao s6 nao foi criticado pelo socialismo mas lambem de fato foi retomado por ele desenvolvido reimplantado modifi cado em certos pontos mas de modo algum reexaminado em suas bases e em seus modos de funcionamento A ideia em Suma de que a sociedade ou 0 Estado ou 0 que deve subs tituir 0 Estado tem essencialmente a fun9ao de incumbirse da vida de organizaIa de multiplicaIa de compensar suas eventualidades de percorrer e delimitar suas chances e pos sibilidades biol6gicas pareceme que isso foi retomado tal qual pelo socialismo Com as conseqiiencias que isso tem uma vez que nos encontramos num Estado socialista que deve exercer 0 direito de matar ou 0 direito de eliminar ou o direito de desqualificar E e assim que inevitavelmente voces VaG encontrar 0 racismo nao 0 racismo propriamen te etnico mas 0 racismo de tipo evolucionista 0 racismo biol6gico funcionando plenamente nos Estados socialistas tipo Uniao Sovietica a prop6sito dos doentes mentais dos criminosos dos adversarios politicos etc Isso e tudo quan to ao Estado o que me parece interessante tambem e que faz tempo me e problem ico e que mais uma vez nao e simplesmente no plano do Estado socialista que se encontra esse mesmo funcionamento do racismo mas tambem nas diferentes for mas de analise ou de projeto socialista ao longo de todo 0 seculo XIX e pareceme em toma do seguinte cada vez que um socialismo insistiu no fundo sobretudo na transfor ma9ao das condi90es economicas como principio de trans I 314 EM DEFESA DA SOClEDADE AULA DE 17 DE MAR90 DE 1976 315 formaiio e de passagem do Estado capitalista para 0 Estado socialista em outras palavras cada vez que e1e buscou 0 principio da transformaiio no plano dos processos econo micos ele nao necessitou pelo menos imediatamente de racismo Em compensaiio em todos os momentos em que o socialismo foi obrigado a insistir no problema da luta da luta contra 0 inimigo da eliminaiio do adversano no pr6prio interior da sociedade capitalista quando se tratou por con seguinte de pensar 0 enfrentamento fisico com 0 adversario de classe na sociedade capitalista 0 racismo ressurgiu por que foi a unica maneira para urn pensamento socialista que apesar de tudo era muito ligado aos temas do biopoder de pensar a raziio de matar 0 adversario Quando se trata sim plesmente de eliminalo economicamente de fazelo perder seus privi1egios niio se necessita de racismo Mas quando se trata de pensar que se vai ficar frente a frente com ele e que vai ser preciso brigar fisicamente com ele arriscar a pr6pria vida e procurar matalo foi preciso racismo Em conseqiiencia cada vez que voces veem esses 80 cialismos farmas de socialismo momentos de socialismo que acentuam esse problema da luta voces tern 0 racismo E assim que as formas de socialismo mais racistas foram claro 0 blanquismo a Comuna e foi a anarquia muito mai do que a socialdemocracia muito mais do que a Segunda Internacional e muito mais do que 0 pr6prio marxismo 0 racismo socialista s6 foi liquidado na Europa no fim do se culo XIX de uma parte pela dominaiio de uma socialdemo cracia e temos mesmo de dizer de urn reformismo ligado a essa socialdemocracia e da outra por certo numero de processos como 0 caso Dreyfus na Frana Mas antes do caso Dreyfus todos os socialistas enfim os socialistas em sua extrema maioria eram fundamentalmente racistas E eu creio que eram racistas na medida em que e terminarei nes te ponto niio reavaliaram ou admitiram se voces preferi rem como sendo 6bvio esses mecanismos de biopoder que o desenvolvimento da sociedade e do Estado desde 0 seculo XVlII havia introduzido Como se pode fazer urn biopoder funcionar e ao mesmo tempo exercer os direitos da guerra os direitos do assassinio e da funiio da morte senao passan do pelo racismo Era esse 0 problema e eu acho que conti nua a ser esse 0 problema Resumo do curso Publicado no Annuaire du College de France 76eannee Histoire des systemes de pensee annee 19751976 1976 pp 3616 Republicado in Dits et ecrits 19541988 ed par D Defert F Ewald colab 1 Lagrange Paris Gallimard Bibliotheque des sciences humaines 19944 vol cf III n 187 pp 12430 Para realizar a analise concreta das rela5es de poder devese abandonar 0 modelo juridico da soberania Este de fato pressup5e 0 individuo como sujeito de direitos naturais ou de poderes primitivos prop5ese 0 objetivo de explicar a genese ideal do Estado enfim faz da lei a manifestaiio fun damental do poder Deverseia tentar estudar 0 poder niio a partir dos termos primitivos da relaiio mas a partir da pro pria relaiio na medida em que ela e que determina os ele mentos sobre os quais incide em vez de perguntar a sujei tos ideais 0 que puderam ceder de si mesmos ou de seus po deres para deixarse sujeitar devese investigar como as re la5es de sujeiiio podem fabricar sujeitos Assim tambem em vez de buscar a forma UIlica 0 ponto central do qual de rivariam todas as formas de poder por conseqiiencia ou desenvolvimento devese primeiro deixaIas valer em sua multiplicidade em suas diferenas em sua especificidade em sua reversibilidade estudaIas pois como rela5es de for ca que se entrecruzam remetem umas as outras convergem ou ao contrario se op5em e tendem a anularse Enfim em vez de conceder urn privilegio il lei como manifestaiio de l 320 EM DEFESA DA SOCfEDADE RESUMO DO CURSO 321 poder e preferivel tentar localizar as diferentes tecnicas de coerao por ele empregadas Se e preciso fazer a analise do poder coincidir com 0 esquema proposto pela constituiao juridica da soberania se e preciso pensar 0 poder em termos de relaoes de fora devese por isso decifralo segundo a forma geral da guerra A guerra pode valer como analisador das relaoes de fora Essa questao abrange varias outras deve a guerra ser considerada urn estado de coisas primeiro e fundamental em relaao ao qual todos os fenome nos de dominaao de diferenciaao de hierarquizaao so ciais deverao ser considerados como derivados os processos de antagonismos de enfrentamentos e de lutas entre individuos grupos ou classes dependem em ultima instancia dos processos gerais da guerra 0 conjunto das nooes derivadas da estrategia ou da tMica podem constituir urn instrumento valido e suficiente para analisar as relaoes de poder as instituic5es militares e guerreiras de uma forma geral os procedimentos praticados para travar a guerra sao de perto ou de longe direta ou indiretamente 0 nucleo das instituioes politicas mas a questao que se deveria formular primeiro seria esta como desde quando e como comeouse a imaginar que e a guerra que funciona nas relaoes de poder que urn combate ininterrupto perturba a paz e que a ordem civil e fundamentalmente uma ordem de batalha Foi essa a questao formulada no curso deste ano Co mo se enxergou a guerra na filigrana da paz Quem procurou no ruido e na confusao da guerra na lama das batalhas 0 principio de inteligibilidade da ordem das instituioes e da hist6ria Quem pensou primeiro que a politica era a guerra continuada por outros meios Aparece urn paradoxo ao primeiro olhar Com a evolu ao dos Estados desde 0 inicio da Idade Media parece que as praticas e as instituioes de guerra seguiram urna evolu 9ao vislvel De uma parte elas tiveram tendencia a concen trarse entre as maos de urn poder central que era 0 Unico a ter o direito e os meios da guerra por essa razao mesma elas se apagaram nao sem lentidao da relaao de homem com homem de grupo com grupo e urna linha de evoluao as conduziu a ser cada vez mais urn privilegio de Estado De outra parte e em conseqiiencia a guerra tende a tornarse 0 apanagio profissional e tecnico de urn aparelho militar cio samente definido e controlado Nurna palavra urna socie dade inteiramente perpassada de relaoes guerreiras foi sendo substituida aos poucos por urn Estado dotado de instituioes militares Ora mal estava terminada essa transformaao e apare ceu urn certo tipo de discurso sobre as relaoes entre a sociedade e a guerra Formouse urn discurso sobre as rela oes entre a sociedade e a guerra Urn discurso hist6rico juridico muito diferente do discurso filosOficojuridico or denado ao problema da soberania faz da guerra 0 pano de fundo permanente de todas as instituioes de poder Esse discurso apareceu pouco tempo depois do fim das guerras de Religiao e no inicio das grandes lutas politicas inglesas do seculo XVII Segundo tal discurso que foi ilustrado na In glaterra por Coke ou Lilburne na Frana por Boulain villiers e mais tarde por du BuatNanay foi a guerra que presidiu ao nascimento dos Estados mas nao a guerra ideal a imaginada pelos fil6sofos do estado natural mas guer ras reais e batalhas efetivas as leis nasceram em meio a ex pedioes a conquistas e a cidades incendiadas mas a guer ra continua tambem a causar estragos no interior dos meca 322 EM DEFESA DA SOCIEDADE RESUMO DO CURSO 323 nismos do poder ou pelo menos a constituir 0 motor secre to das instituioes das leis e da ordem Sob os esquecimentos as Husoes ou as mentiras que nos fazem crer em necessida des naturais ou nas exigencias fundamentais da ordem devese encontrar a guerra ela e a cifra da paz Ela divide permanentemente 0 corpo social inteiro coloca cada urn de n6s num campo ou no outro E essa guerra nao basta en contrala como urn principio de explicaao e preciso reati vala fazeIa deixar as formas latentes e surdas em que ela prossegue sem que a percebamos bern e levaIa a uma bata Iha decisiva para a qual devemos prepararnos se quisermos ser vencedores Atraves dessa tematica caracterizada de urna maneira muito vaga ainda podese compreender a importancia des sa forma de analise 1 0 sujeito que fala nesse discurso nao pode ocupar a posiao do jurista ou do fil6sofo ou seja a posiao do su jeito universal Nessa luta geral de que fala ele esm forosa mente de urn lado ou do outro esta no meio da batalha tern adversarios combate por uma vit6ria Sem duvida procura fazer valer 0 direito mas tratase de seu direito direito sin gular marcado por uma relaao de conquista de dominaao ou de ancianidade direitos da raa direitos das invasoes triunfantes ou das ocupaoes milenares E se ele fala tam bern da verdade e daquela verdade perspeetiva e estrategica que Ihe permite granjear a vit6ria Portanto temos ai urn dis curso politico e hist6rico que tern pretensao il verdade e ao direito mas excluindose a si pr6prio e explicitamente da uni versalidade juridicofilos6fica Seu papel nao e aquele com que os legisladores e os fil6sofos sonharam de S610n a Kant estabelecerse entre os adversanos no centro e acima da con fusao impor urn armisticio fundar uma ordem que reconci lie Tratase de expor urn direito atingido de dissimetria e que funciona como privilegio para ser mantido ou restabelecido tratase de fazer valer uma verdade que funciona como urna arma Para 0 sujeito que faz semelhante discurso a verdade universal e 0 direito geral sao ilusoes ou ciladas 2 Tratase ademais de urn discurso que inverte os va lores tradicionais da inteligibilidade Explicaao por baixo que nao e a explicaao pelo mais simples pelo mais ele mentar e mais claro mas pelo mais confuso pelo mais obs curo pelo mais desordenado pelo mais votado ao acaso 0 que deve valer como principio de decifraao e a confusao da violencia das paixoes dos 6dios das desforras e tam bern 0 tecido das circunstiincias miudas que fazem as derrotas e as vit6rias 0 deus eliptico e sombrio das batalhas deve ilurninar as longas jornadas da ordem do trabalho e da paz o furor deve explicar as harmonias Assim e que no princi pio da hist6ria e do direito farao valer uma serie de fatos brutos vigor fisico fora traos de carater urna serie de acasos derrotas vit6rias sucessos ou insucessos das conju raoes das revoltas ou das alianas E e somente acima des se enredamento que se delineara urna racionalidade cres cente ados calculos e das estrategias racionalidade que il medida que se sobe e que ela se desenvolve fica cada vez mais fragil cada vez mais maldosa cada vez mais ligada il ilusao aquimera amistificayiio Portanto temos at exata mente 0 contrano dessas anillises tradicionais que tentam encontrar sob 0 acaso de aparencia e de superficie sob a brutalidade visivel dos corpos e das paixoes urna racionali dade fundamental permanente vinculada por essencia ao justo e ao bern 3 Esse tipo de discurso se desenvolve inteiramente na dimensao hist6rica Nao empreende avaliar a hist6ria os go vernos injustos os abusos e as vioIencias pelo principio 324 EM DEFESA DA SOCIEDADE RESUMO DO CURSO 325 ideal de uma razao ou de uma lei mas revelar ao contnirio sob a forma das institui90es ou das legisla90es 0 passado esquecido das lutas reais das vitarias ou das derrotas dissi muladas 0 saugue seco nos cOdigos Atribuise como cam po de referencia 0 movimento infindavel da histaria Mas e lhe possivel ao mesmo tempo apoiarse nas formas miticas tradicionais a era perdida dos graudes ancestrais a iminen cia dos tempos novos e das desforras milenares a vinda do novo reino que apagara as antigas derrotas e urn discurso que sera capaz de trazer tanto a nostalgia das aristocracias que se extinguem quanta 0 ardor das desforras populares Em suma em contraste com 0 discurso filosOficojuri dico que se ordena pelo problema da soberauia e da lei esse discurso que decifra a permanencia da guerra na sociedade e urn discurso essencialmente histaricopolitico um discur so em que a verdade funciona como arma para uma vitaria partidaria urn discurso sombriamente eritico e ao meSilla tempo intensamente mitico o curso deste auo foi dedicado ao aparecimento desta forma de analise como a guerra e seus diferentes aspectos invasao batalha conquista vitaria rela90es dos vencedores com os vencidos pilhagem e apropria9ao subleva90es foi utilizada como urn aualisador da histaria e de um modo geral das rela90es sociais II Devese de inicio descartar algumas falsas paterni dades E sobretudo a de Hobbes 0 que Hobbes denomina a guerra de todos contra todos nao e em absoluto uma guerra real e histarica mas um jogo de representa90es pelo qual cada qual mede 0 perigo que cada qual representa para si calcula a vontade que os outros tern de lutar e avalia 0 risco que ele praprio assumiria se tivesse recorrido a for9a A soberauia tratese de uma republica de institui9ao ou de uma republica de aquisi9ao se estabelece nao por um fato de domina9ao belicosa mas ao contrario por um cM culo que permite evitar a guerra Para Hobbes a naoguer ra e que funda 0 Estado e Ihe da sua forma 2 A histaria das guerras como matrizes dos Estados foi decerto esb09ada no seculo XVI no final das guerras de Re ligiao na Frau9a por exemplo em Hotman Mas foi so bretudo no seculo XVII que se desenvolveu esse tipo de aualise Na Inglaterra primeiro na oposi9ao parlamentar e entre os puritanos com a ideia de que a sociedade inglesa desde 0 seculo XI e uma sociedade de conquista a monar quia e a aristocracia com suas instituioes proprias seriam de importa9ao normanda enquanto 0 povo saxao teria nao sem dificuldade conservado alguns vestigios de suas liber dades primitivas Contra esse pano de fundo de domina9ao guerreira historiadores ingleses como Coke ou Selden re constituem os principais episadios da histaria da Inglaterra cada um deles e aualisado quer como uma conseqiiencia quer como uma retomada do estado de guerra historicamente primeiro entre duas ra9as hostis e que diferem por suas ins titui90es e por seus interesses A revolu9aO de que tais his toriadores SaO contemporiineos testemunhas e as vezes pro tagonistas seria assim a derradeira batalha e a desforra dessa velha guerra Encontrase uma aualise do mesmo tipo na Fran9a porem mais tardiamente e sobretudo nOs meios aristocniti cos do fim do reinado de Luis XVI Boulainvilliers fomece ra a formula9ao mais rigorosa dela mas dessa feita a his taria e narrada e os direitos sao reivindicados em nome do vencedor a aristocracia francesa atribuindose uma origem germanica outorgase urn direito de conquista portauto de posse eminente sobre todas as terras do reino e de domina 9ao absoluta sobre todos os habitautes gauleses ou roma 326 EM DEFESA DA SOClEDADE nos mas ela se atribui tambem prerrogativas em rela9ao ao poder monarquico que s6 teria sido estabelecido na origem por seu consentimento e deveria sempre ser mantido dentra dos limites entao fixados A hist6ria assim escrita ja nao e como na Inglaterra a hist6ria do enfrentamento perpetuo entre vencidos e vencedores tendo como categoria funda mental a subleva9ao e as concessoes arrancadas sera a his t6ria das usurpa90es ou das trai90es do rei com rela9ao a no breza da qual ele e oriundo e de seus conluios antinaturais com urna burguesia de origem galoramana Esse esquema de analise retomado por Freret e sobretudo por du Buat Nan9ay foi motivo de toda urna serie de polemicas e a oca siao de pesquisas hist6ricas consideraveis ate a Revolu9ao o importante e que 0 principio da analise hist6rica seja buscado na dualidade e na guerra das ra9as Ea partir dai e por interrnedio das obras de Augustin e de Amedee Thierry que vao se desenvolver no seculo XIX dois tipos de decifra 9ao da hist6ria urn se articulara a partir da luta de classes o outro do enfrentamento biol6gico 1 Situariio do curso Ministrado de 7 de janeiro a 17 de mano de 1976 entre o lanamento de Surveiller et punir Vigiar e punir feve reiro de 1975 e 0 de La volante de savoir A vontade de sa ber outubro de 1976 este curso ocupa no pensamento e nas pesquisas de Foucault uma posiao especifica estrate gica poderiamos dizer e uma especie de pausa de momento de interrupao de virada decerto em que ele avalia 0 ca minho percorrido e traa as linhas das pesquisas vindouras Em Em defesa da sociedade Foucault apresenta na abertura do curso e em forma de balano e de levantamento os delineamentos gerais do poder disciplinar poder que se aplica singularmente aos corpos pelas tecnicas da vigi liincia pelas puni5es normalizadoras pela organizaao pa n6ptica das institui5es punitivas e esboa no final do curso o perfil daquilo a que chama 0 biopoder poder que se aplica globalmente it populaao it vida e aos vivos Foi na tentativa de estabelecer uma genealogia desse poder que Foucault se interrogou depois sobre a governabilidade po der que se exerceu desde 0 fim do seculo XVI atraves dos dispositivos e das tecnologias da razao de Estado e do po 330 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUA9AO DO CURSO 331 liciamento A questiio das disciplinas Foucault havia con sagrado 0 curso de 19721973 La sociere punitive A so ciedade punitiva de 19731974 Le pouvoir psychiatrique 0 poder psiquilitrico de 19741975 Les anarmaux Os anormais e enfim a obra Surveiller etpunir il governabi lidade e ao biopoder ele consagraril 0 primeiro volume de Histaire de la sexualite Hist6ria da sexualidade La vo lante de savoir dezembro de 1976 e em seguida 0 curso de 19771978 Securite territoire et population Segurana territ6rio e populaiio de 19781979 Naissance de la bio politique Nascimento da biopolitica e 0 inicio do curso de 19791980 Du gouvernement des vivants Do governo dos vivos Como a questiio dos dois poderes de sua especificida de e de sua articulaiio era central nesse curso junto com a da guerra como analisador das relaoes de poder e a do nascimento do discurso hist6ricopolitico da luta das raas pareceu oportuno para tentar situala evocar alguns pon tos que parecenos deram azo a malentendidos a equivo cos a falsas interpretaoes a falsificaoes algumas vezes Tratase de uma parte do nascimento da problematica do poder em Foucault tratase de outra parte do funciona mento dos dispositivos e tecnologias do poder nas socieda des liberais enos totalitarismos do dialogo com Marx e Freud a prop6sito dos processos de produiio e da sexuali dade e enfim a questiio das resistencias Empregaremos de poimentos diretos tirados sobretudo dos textos reunidos em Dits et ecrUs Cumpre niio obstante salientar que a docu mentaiio completa sobre a questiio do poder dos poderes niio estaci disponivel antes do termino da publicaiio dos Abrevia9ao das referencias a Dits et ecrits DE volume n do art paginas cursos e que portanto sera preciso esperar ate entiio para tentar fazer um balano definitivo dela Foucault nunca dedicou um livro ao poder Esboou va rias vezes seus delineamentos essenciais explicouse incan savelmente niio foi avaro de advertencias e de esclarecimen tos Ao contrario estudou seu funcionamento seus efeitos seu como em numerosas analises hist6ricas que pode realizar sabre os hospicios a loueura a medicina as pri soes a sexualidade 0 policiamento A questiio do poder se espraia pois ao longo de todas essas analises forma um s6 todo com elas eIhes imanente e por isso mesmo elhes indissociavel Como a problemitica se enriqueceu sob a pressiio dos acontecimentos e ao longo de seu desenvolvi mento interno seria viio querer inserila a qualquer preo nu ma coerencia numa continuidade linear e sem falhas Tratase antes cada vez de um movimento de retomada Foucault por um procedimento que the e pr6prio nunca parou ate 0 fim da vida de reler de tornar a situar e de reinterpretar seus antigos trabalhos il luz dos ultimos numa especie de reatualizaiio incessante Epor isso mesmo que ele sempre se defendeu de ter querido propor uma teoria geral do poder que niio deixaram de Ihe atribuir no que concerne por exemplo ao panoptismo Sobre as relaoes verdadepoder saberpoder ele dizia em 1977 essa camada de objetos melhor essa camada de relaoes e dificil de apreender e como niio se tem teoria geral para apreendelas eu sou se voces quiserem um empirista cego isto quer dizer que es tou na pior das situaoes Niio tenho teoria geral e tampouco tenho instrumento seguro DE III 216 404 A questiio do poder dizia ele ainda em 1977 comeou a colocarse em sua nudez por volta dos anos 1955 contra 0 pano de fundo dessas duas sombras gigantescas dessas duas heranas negras que foram para ele e para a sua geraiio 0 fascis mo e 0 stalinismo A niioanalise do fascismo e um dos 1 332 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUAAO DO CURSO 333 fatos politicos importantes destes ultimos trinta anos DE III 218 422 Se a questao do seculo XIX foi a da pobreza dizia ele a questao colocada pelo fascismo e pelo stali nismo foi a do poder pouquissimas riquezas de urn lado excesso de poder do outro cf DE III 232 536 Desde os anos trinta nos circulos trotskistas haviase analisado 0 fenomeno burocr ico a burocratiza9ao do Partido A ques tao do poder e retomada nos anos cinqiienta a partir pois das heran9as negras do fascismo e do stalinismo nesse momenta e que teria ocorrido a clivagem entre a antiga teo ria da riqueza nascida do escandalo da miseria e a pro blematica do poder Sao os anos do relatorio Kruchev do inicio da desestalinizaao da revolta hungara da guerra da Argelia As rela90es de poder os fatos de domina9ao as praticas de sujei9ao nao sao especificos dos totalitarismos perpas sam da mesma forma as sociedades denominadas demo craticas aquelas que Foucault estudou em suas pesquisas hist6ricas Que rela9ao ha entre sociedade totalitaria e so ciedade democratica Em que a racionalidade politica delas a utiliza9ao que fazem das tecnologias e dispositivos do po der se parecem ou se distinguem A prop6sito disso Foucault dizia em 1978 As sociedades ocidentais de urn modo ge ral as sociedades industriais e desenvolvidas do fim deste seculo sao sociedades que sao penetradas por essa inquie ta9ao surda ou mesmo por movimentos de revolta total mente explicitos que questionam essa especie de superpro dU9ao de poder que 0 stalinismo e 0 fascismo decerto mani festaram no estado nu e monstruoso DE III 232 536 E urn pOlleD acima na mesma conferencia E claro fas cismo e stalinismo correspondiam ambos a uma conjuntura precisa e bern especifica Decerto fascismo e stalinismo pro duziram seus efeitos em dimensoes desconhecidas ate entao e que podemos esperar se nao pensar racionalmente que naO as conheceremos mais de novo Fen6menos singulares por consegumte mas nao se deve negar que em militos pontos fsclsmo e stalinismo simplesmente prolongaram toda urna sene de mecansmos que ja existiam nos sistemas sociais e politicos do Ocidente Afinal de contas a organiza9ao dos grande parlldos0 desenvolvimento de aparelhos policiais a eXlstencla de tecmcas de repressao como os campos de trabalho tudo isso e uma heran9a realmente constituida das scledades ocidentais liberais que 0 stalinismo e 0 fascismo so llveram de fazer deles Ibid pp 5356 sslm havena entre sociedades liberais e Estados to tahtanos urna filia9ao bern estranha do nonnal ao patol6 gleO ao monstruoso mesmo sobre a qual curnpriria cedo ou tarde mterrogarse Ainda em 1982 a prop6sito dessas duas doen9as do poder dessas duas febres que foram 0 fas Clsmo e 0 stalinismo Foucault escrevia Vma das numero sas razoes que fazem com que elas sejam tao desconcertan tes para nos e que a despeito de sua singularidade historica elas nao sao inteiramente originais a fascismo e 0 stalinis mo utlizaram e ampliaram os mecanismos ja presentes na malOna das outras sociedades Nao somente isso mas ape sar de sua loucura intema e1es utilizaram numa larga me dida as ideias e os procedimentos de nossa racionalidade politica DE IV 306 224 Transferencia de tecnologias e prolongamento pois adoenla aloucura sem contar a mons truosidade Continuidade tambem do fascismo e do stali nismo nas biopoliticas de exclusiio e de extennina9ao do politicamente perigoso e do etnicamente impuro biopoliti cas introduzidas ja no seculo XVIII pelo policiamento medi co e assumidas no seculo XIX pelo darwinismo social pelo eugenismo pelas teorias medicoIegais da hereditarie dade da degenerescencia e da ra9a e lerseao a esse res peito as considera90es de Foucault na ultima aula a de 17 de mar90 de Em defesa da sociedade Afinal de contas um 334 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUA9AO DO CURSO 335 dos objetivos sem duvida 0 objetivo essencia desse curso e mesmo a analise da utilizaao que 0 fascismo sobretudo mas 0 stalinismo tambem deu as biopoliticas raciais no governo dos vivos pelo vies da pureza de sangue e da or todoxia ideol6gica Foucault manteve a prop6sito das rela5es entre poder e economia politica uma especie de dialogo ininterrupto com Marx Com efeito Marx nao ignorava a questiio do poder e das disciplinas ainda que nos atenbamos apenas as analises do primeiro livro de 0 capital sobre a jornada de trabalho a divisao do trabalho e a manufatura as maqui nas e a grande industria e a do ultimo livro sobre 0 pro cesso de circulaao do capital cf DE IV 297 a 1976 182201 esp 186 ss assim tambem Foucault nao ignorava por sua vez as coer5es exercidas pelos processos econo micos sobre a organizaao dos espaos disciplinares Mas em Marx as rela5es de dominaao parecem estabelecerse na fabrica unicamente mediante 0 jogo e os efeitos da rela ao antagonista entre 0 capital e 0 trabalho Para Foucault ao contrario essa relaao s6 teria sido possivel pelas sujei 5es pelos treinamentos pelas vigiliincias produzidas e administradas previamente pelas disciplinas A esse respei to dizia ele quando se necessitou na divisao do trabalho de pessoas capazes de fazer isto de outras capazes de fazer aquilo quando se teve medo tambem de que movimentos populares de resistencia ou de inercia ou de revolta vies sem transtornar toda essa ordem capitalista que estava nas cendo enta foi preciso uma vigilancia precisa e concreta sobre todos os individuos e creio que a medicalizaao de que eu falava esta ligada a isso DE III 212 374 Por tanto nao seria a burguesia capitalista do seculo XIX que teria inventado e imposto as rela5es de dominaao ela as teria herdado dos mecanismos disciplinares dos seculos XVII e XVIII e s6 teria necessitado utilizalas mudarlhes a direao intensificando algumas ou atenuando outras Nao ha pais urn foeo unico de oode sairiam como que por emanaao todas essas rela5es de poder mas urn emaranha mento de rela5es de poder que em surna torna possivel a dominaao de uma classe sobre a outra de urn grupo sobre o outro Ibid p 379 No fundo eSCreve ainda Foucault em 1978 e verdade que a questao que eu forrnulava eu a forrnulava ao marxismo bern como a outras concep5es da hist6ria e da politica e ela consistia nisto as rela5es de poder nao representam em comparaao por exemplo com as rela5es de produao urn nivel de realidade totalmente complexo e relativamente mas somente relativamente in dependente DE III 238 629 E poderseia entiio per guntar se 0 capitalismo modo de produao em que vern inserirse essas relacoes de poder naD representou por seu turno urn grande dispositivo de codificaao e de intensifi caao dessas rela5es relativamente autonomas pelas seg menta5es pelas hierarquias pela divisao do trabalho esta belecidas nas manufaturas nas oficinas e nas fabricas pe las relacoes decerto economicas e conflituosas entre a for a de trabalho e 0 capital mas tambem e sobretudo pelas regulamenta5es disciplinares pela sujeiao dos corpos pe las regula5es sanitarias que adaptaram intensificaram do braram essa fora as coer5es economicas da produao Nao seria 0 trabalho portanto que teria introduzido as discipli nas mas fiuito pele contnirio as disciplinas e as normas que teriam tornado possivel 0 trabalho tal como ele se orga niza na economia chamada capitalista Poderseia dizer 0 mesmo a prop6sito da sexualida de dialogo dessa vez mas num tom mais acalorado com a medicina do seculo XIX e sobretudo com Freud Foucault nunca negou a centralidade da sexualidade nos discursos e nas praticas medicas a partir do inicio do seculo XVIII Mas descartou a ideia anunciada por Freud e depois teorizada 336 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUA9AO DO CURSO 337 pelo freudomarxismo de que essa sexualidade s6 teria sido negada recalcada reprimida muito pelo contririo ela teria ocasionado segundo Foucault toda uma proliferaao de dis cursos eminentemente positivos pelos quais na realidade se exerceu esse poder de controle e de normalizaao dos indi viduos dos comportamentos e da populaao que e 0 biopo der A sexualidade nao seria pois 0 receptaculo dos se gredos de onde se faria surgir desde que se soubesse detec talos e decifraIos a verdade dos individuos ela e antes 0 dominio no qual desde a campanha contra 0 onanismo das crianas surgida na Inglaterra na primeira metade do seculo XVIII se exerceu 0 poder sobre a vida em duas formas a da ani omopolitica do corpo humano e a da biopolitica da popuaao Em tomo da sexualidade teriam vindo arti cularse assim apoiandose e refonandose reciprocamente os dois poderes 0 das disciplinas do corpo e 0 do govemo da populaao As disciplinas do corpo e as regulamenta6es da populaao constituem os dois polos escrevia ele em La volante de savoir em torno dos quais se desenvolveu a organizaao do poder sobre a vida A implantaao no de correr da idade classica dessa grande tecnologia com dupla face anat6mica e biologica individualizante e especifi cante voltada para os desempenhos do corpo e olhando para os processos da vida caracteriza um poder cuja mais alta funao talvez ja nao seja doravante a de matar mas a de in vestir a vida de parte a parte p 183 Dai a importancia do sexo nao como deposito de segredos e fundamento da ver dade dos individuos mas antes como alvo como mobil po litico Com efeito de um lado ele depende das disciplinas do corpo treinamento intensificaao e distribuiao das for as ajustamento e economia das energias Do outro ele de pende da regulaao das popula6es por todos os efeitos glo bais por ele induzidos Utilizamno como matriz das dis ciplinas e como principio das regula6es ibid pp 1912Y Portanto 0 que faz a especificidade e a importancia do trabalho e da sexualidade 0 que faz tambem que tenham sido investidos superinvestidos pelos discursos da eco nomia politica de um lado e pelo saber medico do outro e que neles atraves deles vieram conjugarse intensifican do assim suas ascendencias e seus efeitas tanto as rela oes do poder disciplinar quanta as tecnicas de normalizaao do biopoder Esses dois poderes nao constituiriam pois como se disse as vezes duas teorias no pensamento de Foucault uma exclusiva da outra uma independente da outra uma sucessiva aDutra mas antes dais modos conjuntos de fun cionamento do saberpoder tendo e verdade focos pontos de aplicaao finalidades e mobeis especificos 0 treinamen to dos corpos de uma parte a regulaao da populaao da Dutra Lerseao a esse respeito as amilises de Foucault so bre a cidade a norma a sexualidade na aula de 17 de maro de Em defesa da sociedade e 0 capitulo final Direito de morte e poder sobre a vida de La volante de savoir Onde ha poder ha sempre resistencia sendo urn coextensivo ao outro desde que ha urna relaao de poder ha uma possibilidade de resistencia Nunca somos pegos na armadilha pelo poder sempre podemos modificarlhe 0 dominio em determinadas condi6es e segundo uma estra tegia precisa DE III 200 267 0 campo no qual se es praia 0 poder nao e pois 0 de uma dominaao sombria e estave Em toda parte estamos em luta e a todo ins tante vamos da rebeliao a dominaao da dominaao a re beliiio e e toda essa agitaiio perpetua que eu gostaria de tentar fazer que aparera DE III 216 407 0 que carac teriza 0 poder em seus escopos e em suas manobras seria portanto menos uma potencia sem limites do que uma espe cie de inefidcia constitutiva 0 poder niio e onipotente onisciente ao contrario dizia Foucault em 1978 a respeito das analises realizadas em La volante de savoir Se as rela 338 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUAAO DO CURSO 339 90es do poder produziram formas de investiga9ao de anali ses dos modelos de saber foi precisamente acrescentava ele porque 0 poder nao era onisciente mas porque era cego porque estava num impasse Se se assistiu ao desen volvimento de tantas rela90es de poder de tantos sistemas de controle de tantas formas de vigilancia foi precisamente porque 0 poder era sempre impotente DE III 238 629 Sendo a hist6ria 0 ardil da razao nao seria 0 poder 0 ardil da hist6ria aquele que sempre ganba perguntavase ele ainda em La volante de savair Muito peio contrario Isso seria desconbecer 0 carater estritamente relacional das rela 90es de poder Elas s6 podem existir em fun9ao de uma mul tiplicidade de pontos de resistencia estes desempenbam nas rela90es de poder 0 papel de adversano de alvo de apoio de saliencia onde se agarrar Esses pontos de resistencia es tao presentes em toda parte na rede do poder p 126 Mas essa resistencia essas resistencias como se mani festam que formas assurnem como sao analisaveis Ha que salientar a esse respeito e acima de tudo isto se 0 poder como Foucault diz nas duas primeiras aulas do curso s6 se desenvolve e s6 se exerce nas formas do direito e da lei se nao e algo que se toma ou que se troca se nao se constr6i a par tir de interesses de uma vontade de uma inten9ao se nao se origina no Estado se nao e pois dedutivel e inteligivel a partir da categoria juridicopolitica da soberania mesmo que 0 direito a lei e a soberania possam representar uma es pecie de codifica9ao de fortalecimento mesmo desse poder cf DE III 218 424 239 654 tampouco a resistencia entao nao e da ordem do direito de urn direito e vai a muito mais alem pois do ambito juridico daquilo a que se chamou desde 0 seculo XVII 0 direito de resistencia ela nao se fundamenta na soberania de urn sujeito previo Poder e re sistencias se enfrentam com taticas mutaveis m6veis ffild tiplas num campo de rela90es de for9a cuja 16gica e menos aquela regulamentada e codificada do direito e da sobera nia do que aquela estrategica e beiicosa das lutas A rela9ao entre poder e resistencia esta menos na forma juridica da soberania do que naquela estrategica da luta que enta curn prira analisar Essa e uma linba de for9a desse curso numa epoca em que Foucault se interessava muito pelas institui90es milita res e pelo exercito cf a esse respeito DE III 174 89 200 268 229 515 239 648 e mais tarde em 1981 IV 297 182201 A pergunta que ele se fazia entao era esta essas lutas esses enfrentamentos essas estrategias serao analisa veis na forma binana e maci9a da domina9ao dominantesl dominados e portanto em ultima instiincia da guerra Devese entao escrevia ele em La volonte de savoir in verter a f6rmula e dizer que a politica e a guerra prossegui da com Dutros meios Talvez se se quisesse manter sempre uma distiincia entre guerra e politica deverseia adiantar ao contriirio que essa multiplicidade das reia90es de for9a pode ser codificada em parte e jamais totalmente seja na forma da guerra seja na forma da politica essas seriam duas estrategias diferentes mas prontas para cair urna na outra para integrar essas rela90es de for9a desequilibradas heterogeneas instaveis tensas p 123 Objetando aos mar xistas a prop6sito do conceito de luta das classes 0 fato de se terem interrogado mais sobre 0 que e a classe do que sobre 0 que e a luta cf DE III 200 268206310311 ele afirmava 0 que eu gostaria de discutir a partir de Marx nao pertence ao problema da sociologia das classes mas ao metoda estrategico referente illuta Eai que se arraiga meu interesse por Marx e e a partir dai que eu gostaria de for mular os problemas DE III 235 606 As rela90es entre guerra e domina9ao Foucault ja havia consagrado a aula de lOde janeiro do Curso de 1973 sobre A saciedade punitiva Nela denuncia a teoria de Hobbes 340 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUAAO DO CURSO 341 sobre a guerra de todos contra todos analisa as relaoes entre guerra civil e poder e descreve as medidas de defesa tomadas pela sociedade contra 0 inimigo social que desde o seculo XVIII 0 criminoso se tornou Em 1967 e 1968 como lembra Daniel Defert em sua Cronotogia DE I 3032 Foucault lia Trotski Guevara Rosa Luxemburgo e Clausewitz A proposito dos escritos dos Black Panthers que estava lendo na mesma epoca ele dizia numa carta Eles desenvolvem urna analise estrategica liberta da teoria mar xista da sociedade ibid p 33 Numa carta de dezembro de 1972 diz querer empreender a analise das relaoes do poder a partir da mais denegrida das guerras nem Hobbes nem Clausewitz nem luta das classes a guerra civil ibid p 42 Enfim em agosto de 1974 noutra carta escreve ainda Meus marginais sao incrivelmente familiares e ite rativos Vontade de me ocupar de outras coisas economia politica estrategia politica ibid p 45 Sobre a eficacia do modelo estrategico para a analise das relaoes de poder Foucault parece nao obstante ter he sitado muito as processos de dominaao nao serao mais complexos mais complicados do que a guerra pergunta vase ele nurna entrevista de dezembro de 1977 DE III 215 391 E nas perguntas dirigidas a revista Herodote ju Ihosetembro de 1976 ele escrevia A noao de estrategia e essencial quando se quer fazer a analise do saber e de suas relaoes com 0 poder Sera que ela implica necessariamente que atraves do saber em questao se faz a guerra A estra tegia nao permite analisar as relaoes de poder como tecnica de dominariio au devemos dizer que a dominaao nao pas sa de urna forma continuada da guerra DE III 178 94 E acrescentava urn pouco mais tarde A retaao de fora na ordem da politica e uma retaao de guerra Pessoalmen te por ora nao me sinto pronto para responder de urn modo definitivo com sim ou com nao DE III 195 206 A tais questoes econsagrado essencialmente 0 curso que publicamos aqui Nele Foucault analisa os ternas da guer ra e da dominaao no discurso historicopolitico da luta das raas nos Levellers e nos Diggers ingleses e em Boulain villiers com efeito suas narrativas da dominaao dos nor mandos sobre os saxoes depois da batalha de Hastings e dos francos germiinicos sobre os gatoromanos depois da invasao da Galia sao fundamentadas na historia da con quista que eles opoem as ficoes do direito natural e ao universalismo da lei E ai e nao em Maquiavet ou em Hobbes segundo Foucault que teria origem urna forma ra dical de historia que fala de guerra de conquista de domi naao e que funciona como arma contra a realeza e a nobreza na Inglaterra contra a realeza e 0 terceiro estado na Frana Foucault que retoma aqui direta ou indiretamente urna tese formulada em 1936 nurn contexto teoricopolitico e com objetivos totalmente diferentes por Friedrich Meinecke em Die Entstehung des Historismus chama de historicismo esse discurso historicopolitico da conquista discurso de lutas discurso de batalhas discurso de raas A dialetica no seculo XIX teria codificado e portanto neutralizado essas lutas depois do uso dado a elas por Augustin Thierry em suas obras sobre a conquista normanda e sobre a forma ao do terceiro estado e antes que 0 nazismo utilize a ques tao racial nas politicas de discriminaao e de exterminaao que se conhecem E se e verdade que esse discurso histori copolitico obriga 0 historiador a aderir a urn campo ou ao outro afastandose da posiao mediana a posiao de irbitro de juiz de testemunha universal DE III 169 29 que foi a do filosofo de Solon a Kant se e verdade tam bern que esses discursos nascem na guerra e nao na paz ain da assim a retaao biniria introduzida nesses discursos pe los fatos de dominaao e que 0 modelo da guerra explica nao parece justificar totalmente nem a multiplicidade das 342 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUA9AO DO CURSO 343 lutas reais suscitadas pelo poder disciplinar nem e ainda menos os efeitos de govemo sobre os comportamentos pro duzidos pelo biopoder Ora e mesmo para a analise deste ultimo tipo de poder que se orientavam as pesquisas de Foucault depois de 1976 e talvez seja essa uma das razoes se nao de abandonar pelo menos de por em discussao posteriormente a problematica da guerra que ainda esta no centro de Em defesa do socie dade Num real que e poHlmico nos lutamos todos con tra todos dizia ele em 1977 DE III 206 311 Mas essa afirmaao aparentemente hobbesiana nao deve iludir Nao e 0 grande enfrentamento binmo a forma intensa e violenta que as lutas assumem em certos momentos mas somente em certos momentos da hist6ria os enfrentamentos codifi cados na forma da revoluao Ii antes no campo do po der urn conjunto de lutas pontuais e disseminadas uma multiplicidade de resistencias locais imprevisiveis hetero geneas que 0 fato macio da dominaao e a l6gica binaria da guerra nao conseguem apreender No fim de sua vida em 1982 num texto que e um pouco seu testamento filos6fi co em que ele tentava como costumava fazer eisso alias que parece ser uma das figuras de seu pensamento re pensar e dar nova perspectiva a todas essas questoes it luz de seus ultimos trabalhos Foucault escrevia que seu prop6 sito nao fora 0 de analisar os fenomenos de poder nem de lamar as bases de uma analise assim mas antes produzir uma hist6ria dos diferentes modos de subjetivaao do ser humano em nossa cultura 0 exercicio do poder consistiria entao segundo ele sobretudo em conduzir condutas de acordo com 0 modo da pastoraao crista e da govemamen talidade 0 poder escrevia ele no fundo e menos da ordem do enfrentamento entre dois adversarios ou do com promisso de um com 0 outro do que da ordem do gover no DE IV 306 237 E coneluia mas 0 texto deve ser lido por inteiro a prop6sito dessas relaoes entre poderes e lutas Em suma toda estrategia de enfrentamento sonha tor narse estrategia de poder e toda relaao de poder tende tanto se segue sua propria linha de desenvolvimento quanto se se choca com resistencias frontais a tornarse estrategia ganhadora Ibid p 242 Foucault levantara a questiio do poder ja em Lhistoire de 10folie poder esse que e ativo e se exerce atraves das tec nicas administrativas e estatais do grande encerramento dos individuos perigosos os vagabundos os criminosos os loucos Ela sera retomada no inicio dos anos setenta nos cursos no College de France sobre a produao e os regimes da verdade na Grecia antiga sobre os mecanismos punitivos na Europa desde a Idade Media sobre os dispositivos de nor malizaao da sociedade disciplinar Mas no segundo plano de tudo isso hi 0 contexto politicomilitar as circunstancias hist6ricas como as chamava Canguilhem dos conflitos in temacionais e das lutas sociais na Frana depois de 1968 Dessas circunstancias nao podemos refazer aqui a his toria Lembremos brevemente para rememorar que eram os anos da Guerra do Vietna do Setembro Negro 1970 na Jordania da agitaao estudantil 1971 em Portugal con tra 0 regime de Salazar tres anos antes da Revoluao dos Cravos da ofensiva terrorista do IRA 1972 na Irlanda da recrudescencia do conflito entre arabes e israelenses com a guerra do Kippur da normalizaao da Checoslovaquia do regime dos coroneis na Grecia da queda de Allende no Chile dos atentados fascistas na Itilia da greve dos mineiros na Inglaterra da agonia feroz do franquismo na Espanha da tomada de poder pelos khmers vermelhos no Camboja da guerra civil no Libano no Peru na Argentina no Brasil e em numerosos Estados africanos o interesse de Foucault pelo poder tern sua origem aqui na vigilancia na atenao e no interesse com que ele seguia 344 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUAAO DO CURSO 345 o que Nietzsche denominava die grosse Politik a ascen sao dos fascismos em quase toda parte no mundo as guer ras civis a instaurayao das ditaduras militares os objetivos geopoliticos opressivos das grandes potencias dos Estados Unidos no Vietna notadamente ele se enraiza tambem e sobretudo em sua pnitica politica dos anos setenta que Ihe havia permitido apreender ao vivo in loco 0 funciona mento do sistema carcerano observar 0 destino reservado aos detentos estudar suas condiyoes materiais de vida denun ciar as praticas da administrayao penitenciana apoiar os conflitos e as revoltas em todo lugar onde rebentavam Quanto ao racismo foi urn tema que apareceu e que foi abordado nos seminanos enos cursos sobre a psiquiatria sobre as puniyoes sobre os anormais sobre todos esses sabe res e pniticas em que em torno da teoria medica da dege nerescencia da teoria medicolegal do eugenismo do dar winismo social e da teoria penal da defesa social elabo ramse no seculo XIX as tecnicas de discriminayao de isolamento e de normalizayao dos individuos perigosos a aurora precoce das purificayoes etnicas e dos campos de trabaIbo que urn criminalista frances do final do secuIo XIX 1 Leveille por ocasiao de urn Congresso Internacional Pe nitenciano em Sao Petersburgo aconselhava a seus colegas russos construirem na Siberia como lembra 0 proprio Fou cault cf DE III 206 235 Nasceu urn novo racismo quan do 0 saber da hereditariedade ao qual Foucault planeja va consagrar suas futuras pesquisas em seu texto de candi datura ao College de France cf DE I n 71 842846 se acoplou com a teoria psiquiatrica da degenerescencia Diri gindose a seu auditorio ele dizia no fim de sua ultima aula 18 de maryO de 1975 do curso de 19741975 sobre Os anor mais Voces veem como a psiquiatria pode efetivamente a partir da nOyao de degenerescencia a partir das analises da hereditariedade ligarse ou melhor dar azo a urn racismo Eo nazismo acrescentava ele nada mais faria que ligar por sua vez esse novo racismo como meio de defesa inter na da sociedade contra os anormais ao racismo elnico que era endemico no seculo XIX Contra 0 pano de fundo da guerra das guerras das lu tas e revoltas desses anos em que como se diz 0 tempo estava quente Em defesa da sociedade bern poderia ser entao 0 ponto de encontro a junyao a articulayao do pro blema politico do poder e da questao historica da raya a ge neaiogia do racismo a partir dos discursos historicos sobre a luta das rayas nO seculo XVII e no secuio XVIII e suas transforrnayoes no secuIo XIX e no seculo xx Sobre a guer ra essa guerra que atravessa 0 campo do poder poe as for yas em contronto distingue amigos e adversanos engendra dominayoes e revoltas poderiamos evocar urna lembranya de infancia de Foucault tal como ele mesmo contava nurna entrevista de 1983 a respeito do terror de que fora tornado em 1934 por ocasiao do assassinato do chanceler Dollfuss A ameaya da guerra era nosso pano de fundo 0 contexto de nossa existencia Depois veio a guerra Muito mais do que as cenas cia vida familiar sao esses acontecimentos concernen tes ao mundo que constituem a substiincia da nossa memoria Digo nossa memoria porque estou quase certo de que a maioria dos jovens e das jovens franceses da epoca viveram a mesma experiencia Pesava urna ameaya sobre a nossa vida privada Talvez seja essa a razao pela qual sou fascinado pela historia e pela relayao entre a experiencia pessoal e os acon tecimentos em que nos inserimos Eesse penso eu 0 nueleo de meus desejos teoricos DE IV 336 528 Quanto it conjuntura intelectual dos anos que prece dem 0 curso anos marcados pela crise do marxismo e pela ascensao do discurso neoliberal e dificil se nao impossivel saber a que obras Foucault faz referencia implicita ou expli citamente em Em defesa da sociedade Desde 1970 foram 346 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUA9AO DO CURSO 347 traduzidas e publicadas obras de M Weber H Arendt E Cassirer M Horkheimer e T W Adorno A Soljenitsyn Vma homenagem explicita e prestada no curso a AntiEdi pe de G Deleuze e F Guatari Foucault nao mantinha ao que parece uma caderneta de leituras e de outro lado nao gos tava do debate de autor com autor it polemica ele preferia a problematizaao cf DE IV 342 591598 Tambem nao podemos fazer senao urna ideia conjetural sobre a sua ma neira de ler os livros de utilizar a docurnentaao de explorar as fontes haveria todo urn trabalho a fazer sobre isso sobre a fitbrica de seus livros Tampouco sabemos muito bern como preparava seus cursos 0 que publicamos aqui e cujo manuscrito pudemos consultar graas it cortesia e it ajuda de Daniel Defert e quase inteiramente redigido Nao obs tante nao corresponde ao que foi efetivamente pronuncia do sao blocos de pensamento que serviam a Foucault de pista de referencia de fio condutor e a partir dos quais em geral ele improvisava desenvolvendo e aprofundando este ou aquele ponto antecipando este curso ou voltando itquele outro Temos tambem a impressao de que nao procedia com urn plano inteiramente preestabelecido mas antes a partir de urn problema de problemas e que 0 curso se desenrolava portanto fazendose por urna especie de engendraao in terior com bifurca6es antecipa6es abandonos por exem plo a aula prometida sobre a repressao que ele nao dara e retomara em La volante de savoir No tocante ao seu traba lho it sua maneira de trabalhar Foucault escrevia em 1977 Nao sou urn fi1osofo nem urn escritor Nao fao urna obra fao pesquisas que sao historicas e politicas ao mesmo tempo sou arrastado muitas vezes por problemas que encontrei nurn livro que nao pude resolver nesse livro tento pois tramlos no livro seguinte Ha tambem fenomenos de conjuntura que fazem que em dado momento tal problema parea ser urn problema urgente politicamente urgente na atualidade e por causa disso me interessa DE Ill 212 376377 Quanto ao metoda e arespeito de Larcheologie du savoir ele di zia Nao tenho metodo que aplicaria da mesma forma a dominios diferentes Ao contrano eu diria que e urn mes mo campo de objetos urn dominio de objetos que tento iso lar utilizando instrumentos que encontro au eric no mesma momenta em que estou fazendo minha pesquisa mas sem privilegiar de modo algurn 0 problema do metodo DE Ill 216 404 A vinte anos de distitncia este curso nada perdeu de sua atualidade e de sua urgencia e 0 descarte das teorias juridi cas e das doutrinas politicas incapazes de explicar bern as rela6es de poder e as rela6es de fora no enfrentamento dos saberes e nas lutas reais e uma releitura da epoca das Luzes em que se deveria ver a desqualificaao dos saberes menores em proveito da centraliza9ao da normalizay3o do disciplinamento de saberes dominantes em vez do pro gresso da Razao e a critica da ideia segundo a qual a histo ria seria uma invenao e uma herana da burguesia ascen dente no seculo XVIII e 0 elogio acentuado do historicis mo dessa historia que fala de conquistas e de domina6es uma historiabatalha no verdadeiro sentido da palavra que se construiu a partir da luta das raas em oposiao ao direito natural e enfim desde a transformaao dessa luta no seculo XIX a formulaao de urn problema aquele da regulamenta ao biopolitica dos comportamentos aquele como memoria recente e horizonte proximo do nascimento e do desenvol vimento do racismo e do fascismo Os leitores de Foucault habituados its suas mudanas de cenario its suas modifica 6es das perspectivas com relaao its ideias dominantes e aos saberes estabelecidos nao ficarao surpresos Quanto aos especialistas so podemos sugerirIhes que nito esqueam que este texto nao eurn livra mas urn curso e que devem portanto tomaIo como tal nao urn trabalho de erudiao mas antes a formula91io de um problema urgente 0 do racis mo e a abertura de uma pista 0 esb090 de um tra9ado genea logico para tenlaf repensaIo Como leIo entao Poderiamos para isso lembrar como conclusao 0 que Foucault dizia em 1977 A questiio da ilosofiae a questao deste presente que somos nos mesmos E por isso que hoje a filosofia e intei ramente politica e inteiramente historiadora Ela e a politica imanente it historia e a historia indispensavel it politica DE III 200 266 Quanto aos estudos que Foucault poderia ter consulta do para a prepara9ao deste curso ficamos apenas nas hipo teses As fontes sao citadas nas notas mas e praticamente impossivel saber se se trata de uma leitura direta ou de um emprestimo de uma obra de segunda mao Uma bibliografia cientifica so poderia ser estabelecida a partir das notas que Foucault tomava cuidadosamente uma cita9ao por folha com referencias bibliogrificas edi9ao pagina mas ele as classificava depois tematicamente e nao como documenta 9ao para este ou aquele volume para este ou aquele curso Esse trabalho de reconstitui9aO da biblioteca de Foucault esti por fazer e ultrapassa em todos os casos 0 ambito des ta nota Para abrir pistas e para orientar os leitores e os futuros pesquisadores limitamonos a assinalar por ora algumas obras que se reportam a questoes levantadas no curso e que estavam disponiveis na epoca em que Foucault 0 preparava 349 M Bloch Sur les grandes invasions Quelques positions de problemes Revue de synthese 19401945 G Huppert The Idea ofPerfect History Historical Erudition and Historical Philosophy in Renaissance France Urbana University of Illinois Press 1970 trad fr Lidee de Ihistoire parfaite Paris Flarnmarion 1973 L Poliakov Histoire de Iantise mitisme III De Voltaire a Wagner Paris CalmannLevy 1968 e Le mythe aryen Paris CalmannLevy 1971 cG Dubois Celtes et Gaulois au XVI siecle Le developpement dun mythe litteraire Paris Vrin 1972 A Devyver Le sang epure Les prejuges de race chez les gentilshonmes fran ais de Ancien Regime 15601720 Bruxelas Editions de lUniversite 1973 A louanna Lidee de race en France au XVI siecle et au debat du XVII siecle tese defendida em junho de 1975 na Universidade de Paris IV e difundida pelas Editions Champion em 1976 Assinalemos tambem que 0 problema da historiografia das ra9as fora apresentado depois de Meinecke por G Lukacs no VII capitulo de Die Zerstorung der Vernunji Ber lim Aufbau Verlag 1954 trad fr La destruction de la rai son Paris IArche 19581959 e em Der historische Roman Berlim Aufbau Verlag 1956 trad fr Le roman historique Paris Payot 1965 Lembremos igualmente sobre a questao do mito troia no dois antigos trabalhos alemaes E Luthgen Die Quellen und der historische Irt der friinkischen Trojasage Bonn R Weber 1876 e a tese de M Klippel Die Darstellung des friinkischen Trojanersagen Marburg Beyer und Hans Knecht 1936 SlTUA9AO DO CURSO EM DEFESA DA SOCIEDADE 348 mito troiano e hist6ria das ralas Th Simar Etude critique sur la formation de la doctri ne des races Bruxelas Lamertin 1922 1 Barzun The French Race Nova York Columbia University Press 1932 Levellers e Diggers 1 Frank The Levellers Cambridge Ma Harvard Uni versity Press 1955 H N Brailsford The Levellers and the English Revolution editado por Ch Hill Londres Cresset 350 EM DEFESA DA SOCIEDADE SITUAAO DO CURSO 351 Press 1961 e sobretudo Ch Hill Puritanism and Revolu tion Londres Seeker Warburg 1958 do mesmo autor Intellectual Origins ofthe English Revolution Oxford Cla rendon Press 1965 e The World Turned upside down Lon dres Temple Smith 1972 a ideia imperial romana e a translatio imperii da Idade Media ao Renascimento F A Yates Astraea The Imperial Theme in the Sixteenth Century LondresBoston Routledge and Kegan Paul 1975 trad fr Astraea Paris Boivin 1989 Boulainvilliers R Simon Henry de Boulainvilliers historien politi que philosophe astrologue Paris Boivin 1942 e Un revol te du grand sieele Henry de Boulainvilliers Garches Ed du Nouvel Humanisme 1948 A discussao entre romanistas e 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entre os francos 183 Acasos no principio da hist6ria 64 Administraiio publica 1545 1656 segundo Boulainvilliers 1545 conhecimentos da e histo ria 1623 saber da 1527 Adversario eliminayao do no socialis mol 314 America 102 Analise existencial 8 Amilises hist6rica e economicopo litica 175 hist6ricopoliticas e guer ra 1856 Analistas 7780 Anarquismo e racismo 312 Anatomopolitica do corpo humano 289 Anomalias 308 nascimento do problema da 291 Anorrnais elimina9ao dos individuos 305 AntilEdipe 9 Antihistoricismo da burguesia 2513 354 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDlCE DAS NOCDES E DOS CONCEITOS 355 Antipsiquiatria 8 18 Antisemitismo 99101 religioso 101 Antropologia nos seculos XIX e XX 232 Aparelhos de aprendizagem 52 de Estado 2989 de poder 52 escolar 512 militar 55 Apocalipse 67 Aristocracia 1823 192 e hist6ria 251 e liberdade barbara 2434 e rei 1568 franca e parler momirqui co 1812 gaulesaelgreja183192 guerreira 176 1812 inglesa 114 nascimento da segundo Du bos 2412 Arqueologia 16 Atenas 126 Babi16nia 86 Barbarie e constituiao 236 e democracia 2435 e revoluao 237 desaparecimento da 2389 filtragem da 2369 irrupao da na hist6ria 238 Barbaro 104 19 27 178 2338 2404 e selvagem 22835 na historiografia europeia 178 Batalhas 23 589 106 108 9 III 18991 e nascimento das leis 58 Beneditinos 199 Biblia 823 e discursos de insurrei ao 836 901 Binarioa ver tambem Divi sao concepao da sociedade 59 esquema na acao politica e na pesquisa hist6rica 131 oposirao no corpo social 100 Binarismo social 86 Biologia raa seleDes biol6gicas 226 Biol6gico estatizaao do 286 Biopoder 289 294 296 302 93115 direito de matar e Estados modemos 311 excesso do sabre 0 direito soberano 303 fabricaao do vivente pelo 303 paradoxos do 303 racismo e Estado no 306 tecnologia do 294 tecnologias regulamentado ras do 297 Biopolitica 28994 da especie hurnana 289 mecanismos da 2934 Bioregulamentaao 298 Burguesia 369 159 197248 25132824 e constituiao 252 e despotismo esclarecido 252 enaao 168 relacoes de forca e consti tuiao 251 antihistoricismo da 197 252 funDes de universalidade da 283 Campo epistemico regularidade do 251 Campo hist6ricopolitico 236 251 constituir30 de com Bou lainvilliers 199204 Capitalismo industrial 43 Cidade operaria 299 reativaC30 da galeroma na 253 Cidades modelo 299300 problema da no seculo XIX 292 299300 Ciencias 45 218 como policiamento disci plinar dos saberes 218 e poder 145 humanas e antihistoricis mol 2056 hist6ria das 2134 projeto de urna universal 2178 Classes 168 e classes em Montlosier 2767 sociais dominacao econo mica economia politica 226 inimigo de 97 luta das 26 92 luta de e conflito de raa 723 naao e 161 Coen5es disciplinares 447 College de France 3 Colonialismo interno do Ocidente 121 Colonizaao 121 307 ver tambem Dominaao Pnitica colonial direito da 120 politica europeia da 71 Comportamentos medicalizaao dos 46 Conhecimentos 12335 e verdade 213 sobre 0 Estado 151 sobre 0 governo 151 356 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDICE DAS NOrOES E DOS CONCEITOS 357 hierarquizaiio cientifica do 13 Conquista 1135 1178 121 1234127129132281 e discurso hist6rico 113 e francos 178 e govemo segundo os Le vellers 129 e relaaes de propriedade segundo os Levellers 129 normanda 115 direito de na Inglaterra 115 Consciencia 272 hist6rica 87 93 98 nova tomada cia de 5i entre a nobreza 185 Conservadorismos sociais estrategia global dos 73 Constituiao 16522932251 e barbarie 236 e burguesia 251 fundmentalsegundo Hot man 144 Contradiao l6gica da 69 Contrahist6ria 76 805 925 98 Contrato 202 252 287 e fundaao da sociedade 232 e opressao 24 na teoria do direito 292 discurso do em Hobbes 114 Controle 39 sobre 0 corpo 3001 Corpo social 28 44 812 100 19023230910 Corpos 35 423 e disciplina 221 289 298300302 e poder 42 292 e saberes 221 individual nas tecnologias disciplinares 298 multiplo como objeto do biopoder 292 nas tecnologias previden ciarias 297 no principie da hist6ria 64 norma e populaao 302 distribuiao espacial dos individuais 288 Corte e soberano 210 Critica 711 Cursors hist6rico dos de M Fou cault 46 que e urn 34 Defesa da sociedade 26 73 da sociedade e guerra 258 da sociedade e racismo 73 Degenerados e especie 305 Degenerescencia teoria da 73 301 Democracias barbara dos francos 2434 1 e barbarie 2434 parlamentares 42 volta a germanica segundo Mably 243 Derrotas causas internas da 175 narrativa das 82 Descontinuidade 16 Desejos medicalizaao dos 46 Despotismo esclarecido e burguesia 252 Desrazao e verdade 65 DiaJetica 689 72 como pacificaao autorita ria do discurso historico politico 69 e sujeito universal 69 e totalizaao 69 e verdade reconciliada 69 hegeliana 69 nascimento da 2834 Diferenas em Hobbes 1037 guerra e hist6ria segundo Boulainvilliers 1889 Diggers 118 127 12930 Direita 1634 pensamento de oa Fran a 162 Direitos 3024143457 60110781182113641 150 1567 16970 1723 257 2868 303 30911 absoluto e revoltas 132 antidisciplinar 47 civil e forma militar do poder 182 comum da naao 228 e guerra 150 1945 2045 e hist6ria 601 1689 2045211 e hist6ria da nobreza 1578 e poder 19202930 e soberania normanda 119 da colonizaao 120 da conquista na Inglater ra 115 da nobreza 147 170 de matar 2868 3037 de matar Estados moder nos e biopoder 312 do povo na 1nglaterra 118 imperial 172 mOTIClrquico na Fran9a no seculo XVll 209 natural 188252 nonnando segundo os Le vellers 129 publico 4451361401 1489164167195211 romano 41 137 146 saxao 1246 170 fundamentos do e guerra segundo Boulainvilliers 1869 sistemas opostos de na In glaterra 169 teoria do 314144232 292 358 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDICE DAS NOOES E DOS CONCElTOS 359 Disciplinas 448 292 294 2989 ver tambem Coerliio Poder da enuncialiio 221 e bioregulamentaliio 298 e corpo 221 2889 e instituioes 298 e saberes 221 corpo nas 292 discurso das 456 Disciplinamento como contrale da regula ridade das enunciaoes 2201 do saber hist6rico 2223 dos saberes 207 21622 Discurso da guerra das raras 801978 Discurso das ralas 801978 Discurso historicopolitico 56 9 628 como discurso de perspec tiva 61 generalizaliio do 225 sujeitodo 61 verdade no 61 Discurso juridicofilos6fico 56 9679 e historicismo politico 1303 universalidade no 62 Discurso racista 75 946 ver tambem Racismo Discursos critico 68 da hist6ria 2579 da revolta 856 de insurreiliio e Biblia 826 90 92 de oposiliio 89 do direito 257 do Estado sobre 0 Esta do 160 do rei 11820 e Jutas 251 filos6fico do tipo dialetico 284 mitico 68 revolucionario 918 revolucionario e racismo 97 teo16gicoracial entre os Levellers e os Diggers 130 emburguesamento do 258 enfrentamentos dos 250 medicalizaiio dos 46 Discursos cientificos 145 efeitos de poder do 149 institucionalizacao dos 14 Discursos hist6ricos 902 como conjuntos taticos di ferentes 250 como instrumento tatico 225 e burguesia 284 e conquista 113 e Estado 268 e poder 250 e presente 27980 e verdade 250 na realiio nobiliaria 267 no seculo XV111 267 autodialetizaiio do 258 284 dialetizaiio interna do 258 proposiroes fundamentais do 250 trama epistemica do 250 transformaloes no 250 virtual e real no 268 Dispositivos de dominaliio 51 de poder 19 Divisiiooes 228 binaria 89 Doenlas 301 como fenomeno de popu Ialiio 2901 e sexualidade 301 mental 307 Dominaliio 24 314 36 40 44513 10910 118 131 1721872262756 barbara 236 burguesa 368 colonial 75 e barbaro 2334 e direito 312 40 172 e hist6ria 1323273 e liberdade entre os fran cos 1778 e poder 201 e poder segundo os Dig gers 1301 e racionalidade 64 romana 1723 segundo Boulainvilliers 2689 dispositivos de 51 operadores de 513 ordem da e political 2578 sistemas da intema em Montlosier 2767 Dualidade das naoes no Estado 141 nacionaI 139227274 nacional em Montlosier 2746 nacional original segundo A Thierry e Guizot 2701 racial na Inglaterra 150 Dualismo nacional na Franla 151 Economia e poder 1921 e saberes miJltiplos 215 Economia politica 226 Eliminaao do perigo bioI6gico 73 306 dos individuos anorrnais 305 Encyclopedie e homogeneizaao dos sa beres tecnicos 216 Enfrentamentos 11 18 22 281 das ralas 723 dos discursos 250 dos grupos sob 0 Estado 1612 entre hist6rias 2223 fisico no socialismo 314 360 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDICE DAS NOrOES E DOS CONCElTOS 361 Enuncia9ao disclpllna da 221 Enunciados 2201 Esparta 126 Especie e degenerados 305 fortalecimento da raa e da 305 Estados 34 39 44 956 100 92659272427782813 298930913315 de aquisliio 1089 de instituiiio 1089 e bioregulamentaiio 298 e disciplinamento dos sa beres 2078 e dlscurso historico 269 70 e guerra 556 589 1023 1078 e historia 2123 2223 e naiio 1689 2668 272 e populaiio 2989 e saberes 2156 e saberes tecnoI6gicos 222 administraiio do e inteligl bllidade da hlstoria 2034 analise do 100 aparelhos de 40 2989 constituiao de urn e 50 cledades segundo A Thier ry 2801 constituiiio do 1112 148 critica do 208 discurso do sabre 0 159 funiio totalizadora do 265 funoes constitutivas do 282 fundaiio do do tipo roma no pelos rels francos 183 nascimento e decadencia dos 1401 racionalidade administrativa do 204 racismo de 73968285 306312 saber do sobre 0 154 Estatiza9ao do biologico 298 Estrangelros expulsiio dos 117 Estrateglas 523 globals 52 250 Evolucionlsmo 72 307 Exclusiio 101 mecanismos de 38 Exercito 27 55 1901 Feudallsmo 88 146 181256 segundo Mably 2445 execracao do durante a Revoluiio 2556 inicia do segundo Boula invilliers 178 invencao do segundo Bou lainvilliers 1801 nascimento do segundo Dubos 2412 d Feudos origem dos 146 Filologia lingua naclonalidades 226 Filosofia 28 218 da historia 2301 2834 do seculo XIX e antihls toricismo 2056 e guerra das raas 712 e historia 2834 e saberes 218 political 28 1123 Filosofia grega posiiio mediana na 61 Fil6sofo personagem da paz 62 Fisco e organizacao nobiliiria 2034 Foras 6610561878200 2 22830 234 ver tambem Relaiio das Frana 91 1358 140 e naiio 264 segundo Sieyes 264 continuidade entre Rama e a 1378 Francos 88 91 136 13840 146 150 177 180 2436 275 e propriedade da Galia 192 e soberania rcmana 179 81 na Galia segundo Mably 2434 na historiografia momir quica 2401 aliaoca entre remanos e 23941 democracla barbara dos 2434 mito dos 239 origem genmlnica dos 139 Freudismo 50 Freudomarxismo 50 Fuhrer 67 97 Galia 1457 1706 17881 franca 180 prlmitiva 146 romana 146245 segundo Boulainvilliers 1734 segundo Montlosier 274 6 mito da romana 173 Gauleses 88 91 142 1457 149 163 liberdades orlginais dos 246 Genealogias 139 como anticiencias 14 da nobreza francesa 91 das lutas em Boulain villiers 2278 dos saberes 19 Genocidio 302 Germanos 140 147 162 167 173189902756 segundo Montlosier 275 Govemos 129 lSI iNDICE DAS NOJES E DOS CONCEITOS 362 despotico seguodo Bou lainvilliers 172 e guerra segundo os Le vellers e os Diggers 129 31 e naao 267 espirito primitivo do 228 Guerras 3 227 536 589 85929910114121129 30 146 176 1789 1812 19452578260273280 330710 como analisador da socie dade segundo Boulainvil liers 186189 como analisador das rela 6es de poder 534 102 como analisador das rela 6es politicas 257 como cifra da paz 59 como conclusao da politi ca no nazismo 310 como condiao de sobrevi vencia da sociedade 258 como estado perrnanente segundo Boulainvilliers 194 como gabarito de inteligi bilidade dos processos his toricos 285 como matriz da verdade do discurso historico 197 como matriz das tecnicas de dominaao 53 como principia de inteli gibilidade da sociedade 195 EM DEFESA DA SOCIEDADE como relaao social per manente 56 como trama ininterrupta da historia 70 de Religiao 141 de todos contra todos 1023 e biopoder 308 e continuaao da political 55 e corpo social 190 194 e direito 19452045 e Estados 556 1023 1078 e fundamentos do direito segundo Boulainvilliers 1869 e historia 66 1948 e institui6es de poder 56 e lei 589 12930 e nascimento dos Esta dos 58 e poder 3 226 129 132 e poder politico 569 Ill e political 55 198 e regeneraao da raa 3078 e revolta 55 e revoluao 2823 e soberania 1112 e universalidade 2801 nas amilises hist6ricopo liticas do soculo XVlll 1856 permanente 59 102 primitiva 1034 segundo A Thierry 270 segundo Boulainvilliers 186 194 268 denegaao da em Hob bes 1114 efeitos gerais da sabre a ordem civil 1901 eliminaao da na nova his toria 269 estado de 1058 estatizaao da 556 pratica da e saber histori co 2058 pniticas e institui6es de 55 reduao da no discurso da historia 2578 2823 rela6es de 1001 Guerra civil 130 2802 Guerra das raas 100285 ver tambem Luta das raas Ra as como matriz da guerra social 70 e racismo modemo 309 discurso da 75 812 88 9923 filosofia e 71 teoria da 71 transcriao biol6gica da teo ria da 71 Guerra social 712 258 Higiene 97 300 e medicinal 3012 363 Historia 61 65 93 99 133 1646 1957 2028 230 24951 2552724 307ver tambem Contrahist6ria Dis curso hist6rico Genealogias Saber historico biblica da servidao e dos exilios 90 ciclica 2301 como calculo das foras 193 como contrasaber da no breza 1578 1967 como retomada da Revo luao 256 como saber antiestata 223 como saber das lutas 153 da burguesia 2823 da Iuta das raas 8794 99 de tipo biblico e discurso de oposiao 8258991 e barbaro 2334 e burguesia 1972523 e conhecimentos da admi nistraao publica 1623 1656 e constituiao 22830 e decifraao da verdade 834 e direito 601 1678 2045 2101 e direito publico 14850 e Estado 2123 2223 e filosofia 2834 364 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDICE DAS NOriES E DOS CONCElTOS 365 e fona 66 199202 e guerra 66 1947204 5257 e guerra segundo Bou lainvilliers 1869 e historicismo 2057 e luta das raas 803 e luta politica 2223 emonarquia 16362512 e natureza segundo Bou lainvilliers 1889 e politica nos seculos XIX e XX 269 e poder 66 7680 834 e saber do soberano 1623 e soberania 80 85 167 e universalidade juridical 61 genealogica 77 miticoIendaria dos roma nos 82 miticoreligiosa dos ju deus 82 na luta politica 1967 romana da soberania 91 segundo Boulainvilliers 199204 segundo Maquiavel 2012 discurso da 2578 ensino de 149 filosofia da 23012834 fun6es da 7580 83 gabaritos de inteligibilidade da nova 2703 inteligibilidade da e racio nalidade na administraao do Estado 2034 lei da e direito natural 1889 lei nao igualitaria da 1889 ministerio da 1646 212 222 nova 169 principio da 64 narrativa da e administra ao do Estado em Boula invilliers 2034 narrativa da e exercicio do poder 15960 sujeito da 15960 168 verdade da e posicao es trategica 204 Historicidade indoeuropeia 867 93 Historicismo 2057 dos Levellers e dos Dig gers 1278 dos parlarnentaristas In gleses 1278 e historia 2056 aoti e ciencias humanas 2056 aoti e filosofia do seculo XIX 2056 Historicismo politico 1323 e discurso juridicofilos6 fico 1323 eliminaao do em Hob bes 1323 elogio do 1323 Historiografia 178 do rei 21 01 222 e tragedia 2101 protestante 167 Homem da troca 232 especie 289 292 294 natural 231 vivo 286 289 292 294 regulamentacao dos proces 50S bio16gicos do espe cie 2967 Homo oeconomicus 232 Ideologia 40 Igreja 155159 e aristocracia gaulesa 1823 e nobreza gennanica 184 alianra entre e monarquia franca 1834 Imperium romano 137 Individuos 345 corpo 292 e poder 345 Inimigos 306 de c1asse 978 de raa 978 Instituiao6es 10 27 312 54 18991 298 e disciplina 298 e Estado 298 e utas reais 113 psiquiatrica 8 18 Internamento 36 Invasao6es 120 140 148 150167174228239246 274 e direito publico 148 e poder monarquico 148 segundo A Thierry 2801 segundo Dubos 23941 inversao da lese da 2545 origem gennanica da 142 Irracionalidade fundamental e verdade 65 Jerusalem 83 86 Judeus 101 126311 vertam bern Raajudia hist6ria miticoreligiosa dos 82 Leis 771612612634 como instrumentos de po der segundo os Levellers 127 como legitimidade funda mental 50 comum lIS comum e estatutos re gios lIS e conquista 127 e constituiao 230 e guerra 58 12930 e lutas reais 113 fundamentais dos genna nos 143 na Frana segundo Sieyes 264 original do povo saxao 125 saxas 124 130 366 EM DEFESA DA SOCEDADE iNDCE DAS NOrrES E DOS CONCETOS 367 saxas e soberania norman da 1212 batalhas e nascimento das 589 Levellers 118 127 130 Leviata 34 40102 107 Liberalismo romanidade do 2478 Liberdades 170 177 1878 234 246 2489 primitiva segundo Bou lainvilliers 187 constituiao das 253 dissocialao entre e germa nidade 2456 Linguas 226 e direito na Inglaterra 115 e sistema do saber em Boulainvilliers 1834 latina e pnitica do direito 184 Logos 197 Loucura 369 3078 medicalizaao da 38 Lutas 938 113 166 205 212251 civil e luta militar segun do a nova historia 2689 civis na Inglaterra 114 como matriz de uma his toria 269 como tensao voltada auni versalidade do Estado 2689 da aristocracia francesa contra a monarquia abso luta 569 da burguesia 2489 da nobreza contra amonar quia e a burguesia 1701 deas classes ver Clas ses dos saberes tecnologicos 222 e submissiio 24 fundamental segundo Bou lainvilliers 2278 politica e saber historico 1123 1967 politicas inglesas do secll 10 XVll 569 fundo civil da e Estado pa ra os historiadores do se culo XIX 269 problema da no socialis mol 3145 teoria da pela vida 72 Luta das raas 26 924 118 ver tambem Raas e historia 804 discurso da 756 812 84945 discurso da convertido em discurso do poder 723 historia da 845 94 Luzes problematica das 213 Magna Carta 117 124 129 Marxismo 89 145 19314 Materialismo historico 133 Mathesis desaparecimento da 218 Medicalizaao 38 46 291 Medicina ver tambem Tecni cas mediconormalizadoras como saberpoder 302 como tecnica political 302 e constituiao 229 e higiene 301 e higiene publica 291 papel da 46 Memoria 83 hist6rica das revoltas na Inglaterra 117 perdida da nobreza 204 Metodo precauoes de 29 32 34540 Minoria 16 Mito troiano 87 1357 145 Monarquia 1646 251 2768 absoluta 241 absoluta inglesa 114 absoluta na Frana 170 absoluta segundo Mably 244 administrativa 41 constitucional segundo Hot man 1434 e aristocracia segundo Ma bly 244 e revollas populares 2778 feudal 41 francesa 148 francesa e invasao genna nica 239 universal dos Habsburgo 1379 universal na Frana 147 aliana entre franca e Igre ja 183 papel da em Montlosier 276 Morbidade 2902 Mortalidade 296 processo de 290 293 Morte 11028582912957 de Franco 296 do outro e racismo 305 e biopoder 296 303 305 desqualificayao progressiva da 294 direito de 2867 exposiyao it e racismo 306 Naaooes 1601 16770259 67 e burguesia 169 e classe 161 e Estado 1689 2668 272 e naoes segundo a nobre za 25960 e nobreza segundo Mont losier 2746 eraa 161 e terceiro estado 2646 2823 estrangeiras dentro do Es tado 141 lei e legislatura 2614 segundo amonarquia abso luta 260 368 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDICE DAS NOrOES E DOS CONCEITOS 369 segundo a reaao nobilia ria 25960 segundo Boulainvilliers 2612689 segundo Sieyes 2605 sujeito e objeto da nova historia 168 criterios da existencia da 168 definiao juridica da 262 duas na 1nglaterra 169 70 homogeneidade da france sa 1501 luta entre as 166 nobreza e 161 Nacionalidades 168 lingua e filologia 226 movimentos das na Eu ropa 71 Narrativas da hist6ria e exercicio do poder 15960 das derrotas 812 das origens 136 do direito 137 normandas 1157 saxas 1157 Narrativa historica 160 168 e caleul0 politico 202 Natalidade fen6menos globais de 290293 Natureza natural 231 e historia segundo Bou lainvilliers 1889 estado 104 homem 173 Nazismo 19967 biopoder no 30912 exposiao a destruiao total e 310 extenninayao das ra9as e 310 guerra conclusao da politi ca no 310 poder disciplinar e 311 raa superior segundo 0 310 sociedade disciplinar e pre videnciciria no 310 suicidio absoluto da ra9a e 311 Neutralidade e verdade 601 Nobreza 1557 1612 168 70 197 administrativa galaroma na 1723 e consciencia de si 185 1967 e naao segundo Montlo sier 2746 e racionalidade hist6rica 196 e saber do rei 1548 feudal em Montlosier 2746 gaulesa e rei 1923 germanica e Igreja 1834 segundo Boulainvilliers 1534 185 esquecimento de si pela 185 genealogia da francesa 91 invenao tardia da 239 luta da contra a monarquia e a burguesia 170 memoria perdida da 204 rebaixamento da pelos ro manos 1723 reconstituiao da como fora 204 ruina da 1589 saber negligenciado pela 204 Norma 45 73 302 entre poderes disciplinar e regulamentador 302 Normalizaao 46 ver tambom Tecnicas medicononnaliza doras da sociedade 73 dos comportamentos 299 sociedade de 46 302 306 Norman yoke 128 Normandismo 129 Normandos 88 91 117 119 24 12930 192 invasao e conquista da In glaterra pelos 17981 Ordem 6379 85 civil contra ordem de ba talha 54 Organiza9ao militar e ocupaao franca 1812 e sociedade 18991 Origemns narrativa das 1356 Ortologia como disciplina da enun ciaao 221 Dutro relaao de tipo biologico en tre eu e 0 3045 Paixoes no principio da historia 64 Particularidade e universalidade no dis curso politico 2656 Patrimonio biol6gico perigos para 0 73 Paz e verdade 612 Perigos e defesa da sociedade 258 internos 297 para 0 patrim6nio biologi co 73 eliminaao dos biologi cos 73 306 inimigos enquanto para a popuiaao 306 noao de biologico 97 101 raa como biologico 723 1001308 Poderes 193638474954 589 66 76 789 845 92 110 121 132 199202246 28692949302730910 jNDICE DAS NOtOES E DOS CONCElTOS 370 assassino 30910 atornico e biopoder 303 de soberania 294 298 303 disciplinar 47 217 309 e contrato 201 24 e defesa da sociedade 26 e direito 1920 29 e discurso hist6rico 250 e dorninaiio 3440 e dominaao segundo os Diggers 1301 e instituioes 323 467 e re1aiio de fora 23 199200 e repressiio 224 48 50 e saber 174046 e sujeito 50 e verdade 28 individualizante 2889 psiquiatrico 2540 regio 301 analise do 212 326 3640 carater relaciona do segun do Bou1ainvilliers 2001 cerirnonia do 2089 circulaiio do 345 continuidade do 767 845 discurso do e teoria biolo gica 3067 dispositivos de 19 fonna rni1itar do e organiza iio do direito civil 182 limites do 28 EM DEFESA DA SOCIEDADE mednica do nos seculos XVII e XVIII 42 mecanismos de 28 301 3659 re1aiio5es de 512 2001 sistema indoeuropeu de re presentaiio do 7880 856 taticas do 3940 tecnicas de e corpo 2878 tecnicas disciplinares de 2212 tecnicas e tecnologias de 3562878 unidade do na teoria da soberania 523 Poder politico 41 2868 e guerra 41 569 Ill 151 concepiio juridica e liberal do 1920 concepiio marxista do 1920 Policia 97 298 Politica 20 22 551978257 como continuaao da guer ra 55 do Principe 70 e hist6ria nos seculos XIX e XX 269 constituiiio da 172 tim da 23 Popu1aiio 2901 2934 3068 como objeto dos mecanis mos regu1arizadores 302 corpo e nonna 3023 e bioregulamentaiio 2923298 e Estado 298 medicalizaiio da 291 Potencias e poderes 49 Povos 89 911822434 e reis entre os francos se gundo Mab1y 2434 e soberano durante a Re voluiio 2534 soberano e reis segundo Montlosier 2789 direitos do na Ing1aterra 118 Presente 2713 como principia de inteli gibilidade 272 e discurso hist6rico 279 e esquecimento do estado primitivo de guerra 271 segundo A Thierry 279 desdobramento do 143 valor do no discurso histo ricopolitico 271 Previdencia mecanismos de 2934 tecnologia biopolitica de 297 Previdencias 298 mecanismos de 291 sistemas de 300 Principe 201 saber do 1512 Produiio capitalista 37 371 Propriedade relaroes de e conquista se gundo os Levellers 129 30 Psicanalise 10145 Psiquiatria ver Instituiiio psi quiatrica Pureza da raa 95 101 305 308 Purificarao da raa 309 permanente e racismo 73 Raas 95 ver tambem Guer ra das Luta das adversa como perigo bio 16gico 3078 como perigo bioI6gico 3078 em guerra e racismo de Estado 978 inferior 305 judia como perigo bio16 gico 1001 no sentido medicobioI6 gico 89945 superior no nazismo 310 h sele5es bio16gicas bio 10gia 226 binarismo das 26 conceito de 26 conflito de e guerra de classe 712 desdobramento de urna 722 ii 372 EM DEFESA DA SOCIEDADE iNDICE DAS NOrxJES E DOS CONCEITOS 373 destruiyao da adversa 3078 discurso das 801 978 eliminaao das 3089 enfrentamento das 712 extenninaciio das no na zismo 310 fortalecimento da e da es pecie 25 guerra das 712 1001 285 3089 guerra e regenerayao de sua propria 3078 inimigo de 978 integridade da 945 luta das 223 926 1178 proteao biologica da 945 regenera9ao da e guerra 3078 sub 89 sub e perigos biologicos 723 suicidio absoluto da no nazismo 312 superioridade da 945 teoria das 712 118 Racionalidade e dominaao 64 e ilusao 64 estrategica 64 historica e nobreza 1978 potencia da 1978 Racismo 75 947 99 ver tam bern Discurso racista biologico 967 biologicosocial 72 como ideologia 3940 da guerra 3089 e anarqismo 311 e biopoder 3037 e colonizaao 307 e defesa da sociedade 723 e direito de morte de ma tar 3069 e discurso revolucionirio 956 e Estado 3089 e fortalecimento de uma populaao 3089 e fuocao assassina do Es tado no biopoder 306 e genocidio colonizador 307 e guerra 3078 e naao 161 e purificaiio pennanen te 723 e socialismo 3125 e tecnologia do poder 3089 moderno e guerra das ra as 3089 religioso 1001 socialista e socialdemo cracia 3145 tradicional 3089 exposiciio a morte no 306 historia do 99100 Racismo de Estado 723968 285309 e raas em guerra 97 sovi6tico 97 Rea9ao nobiliaria 164 Reconciliaciio e guerra 27980 e revoluao 27982 Rei 302 1528 176 1789 1812241 e aristocracia segundo Ma bly 2445 e direito cesareo 241 e imperador 254 e pavo entre os francos segundo Mably 2445 e revoltas 2789 enquanto magistrado ci vil 1812 orpo do e suditos 259 60 direito do 137 historiografia do 21 01 2223 Reich 97 Terceiro 67 Relaciio de dominaiio ver Do minaao Relaao deas foras 224 53104510891121889 20422730 como objeto hist6ricopo litico 1967 como substancia da hist6 ria 202 e rela6es de verdade 612 fundamental na nova his toria 2712 segundo Boulainvilliers 1967 segundo Maquiavel 196 Representaao6es 1068 jogo das caculadas 1056 Repressao e poder 215478501 conceito de 213 38 478 nocao de na analise politi copsicologica 50 Republica de aquisiao 10811 de instituiao 1078 Ill Revoltas 117 129 1312247 249277 e abusos 124 e direito absoluto 132 e guerra 12930 raciais 1178 segundo Bou1ainvilliers 192 discurso da 856 Revoluao 42 91 93 230 burguesa inglesa 56 como cielo e como volta 253 da historia 2301 e barbarie 2368 e constituiao 22830 e guerra 2812 e reconciliaao 27980 e romanidade 2478 francesa 2256 278 francesa e hist6ria das ra as 2556 francesa e monarquia 2789 inglesa 89 124 128 374 EM DEFESA DA SOCIEDADE INDICE DAS NOrOES E DOS CONCEITOS 375 Roma 83 868 98 1369 143 continuidade entre e a Frana 1378 louvor de 167 reativaao da republicana durante a Revoluao 253 Romance e norma 209 gotico 2556 Romanidade como mobil para a bur guesia 2478 e liberalismo 2478 e revoluao 2478 Romanos 142 1724 2402 246 sistema juridicopolitico dos 147 sistema politico dos segun do a historiografia dos se culos XVllIXIX 2467 Rousseaunismo da burguesia 253 Ruptura profetica 82 momento da do direito pu blico 167 Saber administrativo 1589 do escrivao 1579 do Estado sobre 0 Estado 1534 do intendente 1589 do principe 1512 do rei 1547 do rei e nobreza 1547 do soberano e historia 1623 e desordem 207 e ordem 207 e paz 207 e poder 184046 e sujeitos 250 e violencia 207 juridico 1578 local e diferencial 12 medico no seculo XVllI 2167 negligenciado pela nobre za 204 ocidental e ideia platoni cal 207 tecno16gico no seculo XVIII 2136 aparelhos e instrumentos de 389 apelo il recuperaao do por Boulainvilliers 185 critica do do intendente em Boulainvilliers 202 disciplinamento dos 207 21723 sistema do e lingua em Boulainvilliers 1834 utilizaao do administrativo contra a monarquia abso luta 202 volta do 113 SaberPoder 155 226 administrativo 163 segundo Boulainvilliers 185 Saberes e corpo 2212 e disciplina 2212 e Estado 2156 multiplos e economia 2145 tecnicos 2146 tecnologicos multiplos 222 centralizaao dos 2167 combate dos na epoca das Luzes 2134 disciplinarnento dos 217 23 efeitos de poder dos 214 genealogia dos 136 2134 hierarquizaao dos 2167 insurreiao dos 123 insurreiyao dos sujeita dos 11 tuta econ6micopolitica em torna dos no securo XVllI 2145 normalizaao dos 2156 Saberes historicos 161201 2056 como arma discursiva 225 como anna na guerra 2068 como arma political 1656 como instrumento de luta entre a nobreza 1623 das guerras 113 e guerra 206 e luta political 113 205 na Europa 912 colonizay3o do pela mo narquia 1656 reativaao dos pela bur guesia 252 regularizaao do 250 taticas do 2267 valor politico do 1656 Sax6es 91117122126192 Sele6es biologicas 226 Selvagem 2324 e barbaro 2334 e troca 234 Servidao historia biblica da 901 historia da 856 Sexualidade corpo e populaao 300 e doenas 3002 controle da 369 controle disciplinar da 300 medicalizaao da 38 regulamentaao da 300 valorizaao medica da 3002 vigilancia da 300 Sistema indoeuropeu de representaao do poder 7880 856 Soberania 302 79 85 99 10815 137 167 de aquisiao 10810 de instituiao 1078 do Estado 956 do pavo entre os genna nos 143 do rei da Frana 137 376 EM DEFESA DA SOCfEDADE iNDfCE DAS NOrDES E DOS CONCEfTOS 377 e pavo segundo Montlo sier 2789 e vontade 1134 na tragectia classical 2101 nonnanda e leis saxas 1212 racismo e Estado 3089 romana e francos 17881 romana 1734 modelo juridico da 49 522001 poder de 294 298 303 relaao5es de 109 teoria da 34 404 49 522857 Soberano 102 como homem de paixao em Racine 2101 e morte 2857 e pavo durante a Revolu ao 2534 e sUdito 2857 constituiao do 2878 direitos do na Inglaterra 1178 individualidade fabricada do 1078 saber do e historia 1623 Socialdemocracia e liquidaao do racismo socialista 3145 Socialracismo 312 Socialismo 3124 e biopoder 3125 e mecanica do poder 3123 e racismo 3125 incumbencia da vida 3125 enfrentamento fisico no 3125 eliminafao do adversario no 3125 Sociedade 160 258 ver tam bern Defesa da e constituiao de urn Es tado segundo A Thierry 2812 e norrnalizaao 456 3056 e organizaao militar 189 92 urbana e capacidade admi nistrativa 2812 concepao binaria da 59 60 estmtura binaria da 59 60 945 Sofista discurso do 68 Soissons historia do vaso de 179 182 Stalinismo 19 SUditosSujeitos 4952 da historia 15962 168 do discurso hist6ricopoli tico 601 e poder 286 e saber 250 e soberania 113 e soberano 286 guerreador 63 que fala na historia 159 60 1678 univesal e dialetico 69 ausencia de neutro na 50 ciedade 60 constitui5es dos 35 fabricaao dos 52 nobreza como da hist6ria segundo Boulainvilliers 185 Sujeiao5es 26 procedimentos de 326 40 relaoes de 512 tecnicas de 52 Taticas 53 de intimidaao 105 discursivas 251 discursiva e ideologia 2256 Tecnicas disciplinares de poder 221 mediconormalizadoras 96 Tecnologias disciplinar 297 302 regulamentadora 297 302 previdenciaria 297 Tempo organizaao do 88 Teona bio16gica e discurso do poder 307 Terceiro Estado 170251264 52823 como sujeito hist6rico 251 e universalidade estatal 265 segundo Sieyes 25860 2612 Totalidade estatal 27980 nacional e universalidade do Estado 268 Totalizayao e dialetica 689 e historia 2723 estatal segundo A Thierry 27980 nacional 280 Trabalho tecnologia disciplinar do 27 Tragedias de Racine 209 e historiografia 2101 francesa como liy30 e ce R rimonia de direito publi co 2089 grega 209 historicas 208 lei e ilegitimidade nas 208 Transviado 95 97 Troca 2323 235 Troia 87 1356 Universal e verdade 284 entrada do no real 272 potencia do e burguesia 283 valor do 197 Universalidade do Estado e totalidade na cional 268 e guerra 281 e particularidade no dis curso politico 265 INDICE ONOMASTICO 378 estatal 281 estatal no terceiro estado 265 no discurso juridicofilo sofico 62 fun5es de da burguesia 2823 Universaliza9ao e sociedade burguesa 282 Universidade aparecimento e funlao da 2189 Vencedoresvencidos 109 111 2 114 118 120 190 193 271275280283 Verdade como arma 689 e conhecimento 213 e desordem 207 e desrazao 65 e dialetica 689 e dissimetria 612 e guerra 207 e guerra no discurso his torico 197 e irracionalidade funda mental 65 e ordem 207 e paz 207 e poder 28 e universal 2834 e violencia 207 no discurso hist6ricopo litico 601 EM DEFESA DA SOCIEDADE decifraao da e historia 823 dependencia da it paz e it neutralidade 612 discurso da 28 divisao entre verdade e er ro 196 efeitos da 28 produao da 28 regime da 196 rela5es de e rela5es de fora 612 Vida 94 10910 2859 291 29473017313 e biopoder 2967 problema da no pensa mento politico 288 proterao da e contrato so cial 287 tecnologia regulamentadora da 297 teoria da luta pela 72 Violencias 92 Virus fabricaao de incontrola veis e destruidores pelo biopoder 303 Visibilidade campo de 288 colocarao em dos indivi duos 299 Vivo fabricaao do ser pelo bio poder 303 Alexandre 0 Grande 67 Antraigues E L H L d 254 Arlur 116 Atila 237 Audiger P 1456 Augusto 190 Aulard FA 254 Bacon N 126 Bailly 1 S 279 Barincou E 201 Berlin 1 116 Bichat X 229 Binswanger L 8 Blackwood A 120 124 Boisguilbert P de 203 Bonneville N de 235 243 Bordeu T 229 Bossuet 1 B 175 Boulainvilliers H de 57 135 1526 16960 167 17181 1839 1912042112278 230423623892414245 2489 254 257 261 264 268279 Boulay de Ia Meurthe A J 255 Bouquet M 136 Boutillier 1 137 Brequigny L G O F de 2456 248 251 Bruto 87 117 BuatNanay L G du 154 159 163 171 228 2356 257264279 Buonarroti F M 578 Caligula 172 Carlos Magno 67 1489 163 244248 253 Carlos Martelo 149 Carlos V 120 Carlos X 274 Cassirer E 63 Castoriadis C 237 380 Cesar J 136 138 142 147 172 Chapsal JF 2456 248 251 Chretien de Troyes 116 Churchill W S 123 Clausewitz K von 3 223 545 198 Clovis 81 84 146 149 163 176179182240 Coke E 57 122 1245 Comeille P 209 Courtet A V 58 Crooke A 34 Daniel S 124 Darwin Ch 71 307 Davies G 128 Defert D 8 Deleuze G 9 16 Desnos R 2378 Devyver A 153 171 178 255 Dreyfus A 314 Dubos JB 23942 2456 248250 Dumezil G 78 Eduardo 0 Confessor 67 116 121 Eneas 87 Engels F 923 Estaing J d 57 171 Ewald F 8 Fenelon F de 152 Ferguson A 175 Fest J 311 EM DEFESA DA SOClEDADE Filipe Augusto 190 Fourier Ch 312 Franco 87 Franco F 296 Fredegano pseudo 135 Frederico BarbaRoxa 67 Frederico 11 67 Freret N 57 177 Freud S 22 Genette G 237 Gibbon E 175 Gregoire de Tours 149 179 Grotius H 148 Guattari F 9 16 Guilherme 0 Conquistador 84 115 1204 128 Guiraudet J 121 Guizot F 93 165 169246 2701 Haller W 128 Haroldo 116 121 123 Harrison W 124 Hegel G W F 22 Heidegger M 8 Henrique V11 115 Hill Ch 127 Hitler A 311 Hobbes Th 26 34 59 70 99 10214 121 1323 148 Holinshed R 124 Hom A 125 Hotman F 13945 Hugo Capeto 153 244 Huisman D 8 Husser E 8 iNDICE ONOMASTICO Jaime I 1189 Jordanis 147 Jouffroy dAbbans A F L 274 Juquin P 18 Justiniano 137 Kant 1 623 Lagrange J 8 Laplanche J 237 Lefort C 237 Legrain M 301 Lilbume J 57 128 Luis XIV 70 89 91147151 220320911213 Luis XVI 163211213254 Lyotard JF 237 Mably GB de 235 2435 2478250253 Magnan V 301 Maquiavel N 26 6970 175 1962012 Marat JP 163235243 Marcuse H 9 Mario 172 Marx K 923 116 MarxAveling E 116 Mehring F 116 Meroveu 1489 Michelet J 89 200 Miguet F A M 89 Moises 126 Monmouth G de 1167 Montagu E W 175 Montesquieu CL de 175 235 381 Montlosier F de 155 171 249257 270 2748 Moreau JN 1645 2113 222239242 Morel BA 301 Morin E 237 Nero 209 Nietzsche F 24 1778 Nowel R 124 Overton R 128 Panofsky E 86 Paris P 136 Pasquier E 140 Pepino 149 Petrarca F 86 98 167 Pirro 209 Platao 207 Priamo 87 Proyart LB 255 PufendorfS 148 Racine J 209 2103 222 Reich W 9 22 24 37 Reiche R 37 Rhenanus B 140 Richelieu 144 147 Ronsard P de 135 Rousseau JJ 41 Sabine G H 130 Scott W 116 Selden J 124 126 Serres J de 144 Shakespeare W 2089 I I000o 382 Siagrio 179 Sieyes EJ 57 169255257 25965274 Simon R 231 Solon 62 Speed J 124 Speer A 311 Sydenham T 229 Tacito 147 Tamerlao 237 Tarault JE 145 Thierry Amedee 51 Thierry Augustin 43 71 93 lI6 1368 165 169 246 24925727027981283 Thiers LA 94 270 EM DEFESA DA SOCIEDADE Tillet J du 144 Tito Livio 7679 82 Turco 87 Turgot RJ 248 Vauban S de 203 Vernant JP 61 Viard 1 136 Vico G B 231 VidalNaquet P 61 Wace R 116 Wade 1 93 WaIT 1 127 Weber A 8 Weydemeyer J 93 Winstanley G 130 b t Cromosete Gr6fica e edilora Ltdo Imutla abamn Roo Uhlood J07 Vlo Erne 03183000 Soo Polo SP 11la 10111 6101176 EIIodmremb